CADEIA DE RECICLAGEM

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Cadeia de reciclagem um olhar para os catadores Jacques Demajorovic Mรกrcia Lima


Nota dos editores Sociedade de consumo e ponto final? É assim que nos definimos, sem maiores consequências? Os avanços tecnológicos e o desenvolvimento econômico permitiram, em nossa história, maior conforto e bem-estar social. A expectativa de vida tem aumentado, como também tem crescido a população que vive nos centros urbanos. Com isso a demanda por bens descartáveis tem gerado uma das questões mais delicadas para a gestão das cidades: o que fazer com o lixo? Não se trata, no entanto, apenas da implantação de políticas públicas, da coleta e transporte ou da destinação e do tratamento do lixo, mas também da conscientização seja do cidadão que “consome”, seja da indústria que elabora o que é “consumível”. Trata-se, assim, da compreensão da corresponsabilidade dos vários atores sociais envolvidos nesse processo que compromete o meio ambiente, e os catadores são um elo muito importante na cadeia de reciclagem, cooperando com a preservação do meio. O olhar social deve buscar um enfoque mais justo para todos os elos dessa corresponsabilidade social, e Cadeia de ­reciclagem: um olhar para os catadores, coedição do Senac São Paulo em parceria com as Edições Sesc São Paulo, é uma forma de colaborar no refinamento crítico desse olhar. 7



Apresentação o livro Cadeia de reciclagem: um olhar para os catadores, de autoria de Jacques Demajorovic e Márcia Lima, representa uma auspiciosa contribuição para o público interessado, professores, movimentos sociais, agentes econômicos e pesquisadores, sobre um tema que apresenta desafios crescentes para a sociedade contemporânea: a destinação dos resíduos sólidos e sua disposição inadequada, assim como a falta de políticas e de ações empresariais pautadas pela responsabilidade compartilhada. O livro aborda três temas estratégicos para promover o debate. Inicialmente o desenvolvimento urbano e a gestão de resíduos, a seguir uma análise da cadeia de reciclagem e dos atores sociais envolvidos, catadores e cooperativas e, finalmente, as articulações que se tornam necessárias para fortalecer e integrar a cadeia de reciclagem. Um dos maiores desafios com que se defronta a sociedade moderna é o equacionamento da geração excessiva de resíduos e sua disposição final ambientalmente segura. Esse desafio decorre da necessidade de dar respostas a um modelo socioeconômico pautado pelo crescimento da produção aliado às 9


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práticas de gerenciamento inadequado de resíduos sólidos e à falta de áreas de disposição final na maioria das cidades do planeta. Embora a visibilidade do tema tenha aumentado muito desde a Conferência Rio 92, em escala global – pelo fato de ele fazer parte de uma agenda na qual se destaca a necessidade de organização da sociedade para enfrentar duas questões que têm se tornado essenciais para a sobrevivência da sociedade contemporânea: o aquecimento global e as variabilidades climáticas –, cabe lembrar que, desde essa conferência, incorporaram-se novas prioridades à gestão sustentável de resíduos sólidos, que representaram uma mudança paradigmática que tem direcionado a atuação dos governos, da sociedade e da indústria. Incluem-se nessas prioridades a redução de resíduos nas fontes geradoras e a redução da disposição final no solo, a maximização do reaproveitamento, da coleta seletiva e da reciclagem com a inclusão socioprodutiva de catadores e a participação da sociedade, a compostagem e a recuperação de energia, como avanços para a sustentabilidade urbana. Busca-se assim a superação da pobreza, a promoção da equidade, a melhoria das condições ambientais e a prevenção de sua degradação, mas também o fortalecimento da vitalidade cultural, do capital social e da cidadania, além das inter-relações com questões de âmbitos regional e global, como o efeito estufa, que tem relação direta com a emissão de gases gerados na produção e a disposição final de resíduos.

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apresentação

A gestão e a disposição inadequadas dos resíduos sólidos causam impactos socioambientais, e a adoção de padrões de produção e de consumo sustentáveis e o gerenciamento adequado dos resíduos sólidos podem reduzir significativamente os impactos ao ambiente e à saúde. Atualmente, o desafio é inverter a lógica prevalecente e investir cada vez mais na redução da produção excessiva e no desperdício, assim como na coleta seletiva e na compostagem, e cada vez menos na destinação final dos resíduos. Nas cidades brasileiras tem se expandido o contingente de catadores, e o grande desafio que se apresenta é fortalecer a gestão integrada, tendo-se como vetor indutor a coleta seletiva, que é urgente, estratégica e que poderá, no futuro e se bem conduzida, com transparência e diálogo com os atores envolvidos, representar uma oportunidade de redução dos custos da cidade com esses serviços, de geração de milhares de postos de trabalho e de promoção de maior corresponsabilidade dos cidadãos com a limpeza e a sustentabilidade urbanas. A modalidade de programas municipais de coleta seletiva, desenvolvidos em parceria com organizações de catadores de materiais recicláveis, vem se multiplicando pelo país e se tornando modelo de política pública de resíduos sólidos, na medida em que aliam a minimização de resíduos com a inclusão social e a geração de trabalho e renda. Essa situação exige políticas públicas efetivas, que possibilitem a inserção desses programas municipais, demanda o reconhecimento das organizações de catadores na condição de protagonistas da gestão integrada e compartilhada de 11


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resíduos sólidos, bem como a inserção dos catadores autônomos nos programas de investimentos públicos e privados voltados para o fortalecimento institucional para gerar mais postos de trabalho e renda. Finalmente, a logística reversa requer novas formas que a sociedade tenha de promover a cadeia produtiva, assim como as responsabilidades a ela associadas, na medida em que o objetivo tem de ser a produção de menos resíduos e a efetiva implementação de ações pautadas pela reciclagem e pela geração decrescente daqueles. Todos os temas abordados pelo livro representam desafios da contemporaneidade, imprimindo maior racionalidade econômica e social ao destino final dos resíduos com vistas em fortalecer uma governança integrada e sustentável dos resíduos, valorizar o trabalho dos catadores e estimular diversas formas de corresponsabilização dos atores que formam a cadeia da reciclagem. Pedro Roberto Jacobi Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo. Coordenador do Laboratório de Governança Ambiental da USP. Editor da revista Ambiente & sociedade.

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Para Fernando Murachco Demajorovic Meu querido Fe.

A meus pais Maria de Lourdes Oliveira Rodiguer Benedito Rodiguer Meus eternos incentivadores.

Aos catadores, organizados ou n達o, principais agentes ambientais de coleta seletiva no Brasil. 13



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Desenvolvimento urbano e gestão de resíduos sólidos 15



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a década de 1950, em contraste à economia esfacelada resultante do período de insanidade vivido durante a Segunda Guerra Mundial, representou o início de uma fase de prosperidade econômica sem precedentes na história, que mudaria o cotidiano de pessoas nos quatro cantos do planeta pelos sessenta anos seguintes. O período denominado Anos Dourados foi caracterizado pelo baixo índice de desemprego, crescimento econômico acelerado e grande expansão do consumo. Sem se preocupar com o expressivo aumento do uso de recursos naturais, a população dos países desenvolvidos e parte da dos países em desenvolvimento comemoravam os Anos Dourados como uma festa sem hora para terminar.1 A consolidação das indústrias automobilística e petrolífera como motores dessa economia focada na produção e no consumo de massa alterou profundamente o perfil dos ansiosos novos consumidores. Carros, eletrodomésticos e uma infinidade de produtos em embalagens variadas, além de novos espaços de consumo, como supermercados e shopping 1

Os Anos Dourados correspondem ao período que vai de 1950 até a Crise do Petróleo em 1973 e são caracterizados pelo intenso crescimento da economia mundial iniciado pelo Plano Marshall – o financiamento da reconstrução da economia europeia destruída durante a Segunda Guerra Mundial.

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centers, passaram a integrar o dia a dia de uma parcela crescente da população mundial, principalmente nos grandes centros urbanos. O crescimento do número de consumidores alimentava continuamente uma engrenagem baseada no aumento vertiginoso da produção, distribuição e consumo das mercadorias. Mesmo com o fim dos Anos Dourados, no início da década de 1970, e os problemas econômicos enfrentados por diversos países, como o Brasil, durante a década de 1980,2 o total de recursos financeiros gerados na economia global não parou de crescer. Se em 1960 o produto interno bruto mundial registrava parcos US$ 1,3 trilhão, no fim do ano de 2010 o valor gerado na economia mundial registrou US$ 63 trilhões (Banco Mundial, 2011). Embora os países desenvolvidos continuem a representar a maior parcela do PIB mundial, observa-se um crescimento mais rápido do PIB nos países em desenvolvimento e nas economias emergentes, tais como China, Índia e Brasil. É nesses países que emprego, renda e consumo crescem de forma significativa. Tamanha expansão da economia mundial, associada ao grande aumento do consumo, tem gerado uma série de problemas socioambientais. Para sustentar o aumento da demanda mundial, os recursos naturais são consumidos em quantidade e velocidade sem precedentes, levando os pesquisadores a alertarem sobre o perigo de seu esgotamento. Em

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A década de 1980 ficou conhecida no Brasil como a “década perdida” em razão da queda dos investimentos e do baixo crescimento da economia no período.


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2005, a Avaliação Ecossistêmica do Milênio, uma pesquisa que envolveu 1.360 cientistas em 95 países, concluiu que, ao mesmo tempo em que as atividades antrópicas conseguiram assegurar grandes conquistas para melhorar o bem-estar humano e o desenvolvimento econômico, o aumento da demanda nos últimos cinquenta anos, associado ao uso insustentável dos recursos naturais, comprometeu severamente os serviços prestados pelo ecossistema, o que traz impactos negativos para esse bem-estar (Millenium Ecosystem Assessment, 2005). Essas modificações no ecossistema foram feitas como nunca antes na história. A diminuição da disponibilidade para consumo de água potável, madeira, fibras e combustíveis tem ameaçado os benefícios até agora alcançados para as gerações futuras. A pesquisa mostra ainda que o aumento da demanda mundial ameaça severamente 15 dos 24 serviços prestados pelo ecossistema, como pode ser visto na tabela 1. O sistema produtivo não apenas consome recursos, mas também devolve ao meio ambiente quantidades crescentes de materiais na forma de resíduos. Dados da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe, 2008) mostram que a coleta mundial de resíduos sólidos urbanos é estimada em 1,2 bilhão de toneladas. Naturalmente, a contribuição para esse total é bastante desigual entre os países mais ricos e os mais pobres, pois a geração de resíduos está diretamente ligada ao grau de desenvolvimento econômico. Assim, 19


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Água

Água doce

Produtos bioquímicos, remédios naturais, produtos farmacêuticos

uso não sustentável para consumo humano, indústria e irrigação; volume de energia hidráulica não alterado, mas os diques aumentam nossa capacidade de utilizar essa energia

perda por extinção, exploração predatória

perda por extinção e perda de recursos genéticos da lavoura

Recursos genéticos

Combustível de madeira

produção de algumas fibras em queda, crescimento de outras produção em queda

+/-

Algodão, cânhamo e seda

perda de floresta em algumas regiões, crescimento em outras

produção em queda

+/-

aumento substancial da produção

↑ ↓

Aquicultura

Alimentos silvestres

Madeira

produção em queda devido à exploração predatória

Pesca de captura

aumento substancial da produção

↑ ↑

aumento substancial da produção

Observação

Lavouras

Condições

Animais de criação

Subcategoria

Fibras

Alimentos

Serviços de provisão

Serviços

Tabela 1. Estado geral dos serviços de provisão, reguladores e culturais c a de ia de re c i cl age m : um olhar para o s catad ores


Serviços

perda de isoladores naturais (zonas úmidas, manguezais)

+/↓ ↓ ↓

Regulação de doenças

Regulação de pragas

Polinização

Regulação de ameaças naturais

+/-

Valores estéticos

Recreação e ecoturismo

mais áreas acessíveis, muitas delas degradadas

declínio da quantidade e da qualidade

Fonte: Millenium Ecosystem Assessment, 2005.

rápido declínio de bosques e espécies sagradas

controle natural degradado por uso de pesticidas

varia dependendo da mudança do ecossistema

piora da qualidade da água

Valores espirituais e religiosos

Serviços culturais

aparente queda global do volume de polinização

Purificação da água e tratamento de resíduos

aumento da degradação do solo

Regulação da erosão

varia dependendo da mudança e do local do ecossistema

preponderância de impactos negativos

+/-

Regional e local

fonte de sequestro de carbono desde meados do século XX

capacidade da atmosfera para se despoluir diminuiu

Observação

Regulação hídrica

Global

Regulação climática

Condições ↓

Subcategoria

Regulação da qualidade do ar

Serviços reguladores

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enquanto os países ricos, integrantes da OCDE,3 são responsáveis por 50% desse total, o restante do mundo – Ásia, América Central, América do Sul e África –, onde se concentra a maior parte da população mundial, gera conjuntamente a outra metade dos resíduos coletados. Tais números são explicados pela enorme variedade observada no consumo por habitante em diversos países. Se a coleta per capita anual de um cidadão norte-americano é de cerca de 800 kg, nas Filipinas essa quantidade se reduz a cerca de 180 kg. Independentemente das disparidades encontradas, a questão do lixo traz enormes desafios para as políticas públicas, seja nos países industrializados ou nos países em desenvolvimento. A expansão da população urbana e o aumento do consumo de produtos descartáveis e menos duráveis fizeram crescer a quantidade final de resíduos gerados, que precisam ser coletados, transportados e destinados adequadamente pelo poder público. Ainda que esse crescimento indique a necessidade premente do desenvolvimento de alternativas em todos os países para gerenciar uma quantidade cada vez maior de lixo, é

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A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é uma organização internacional e intergovernamental integrada hoje por 34 países, entre eles aqueles considerados mais industrializados da economia do mercado. Com sede em Paris, na França, representantes dos membros se reúnem para trocar informações e definir políticas, a fim de maximizar seu crescimento econômico e seu desenvolvimento (CGU, 2007). Apesar de contar com a força de países como Estados Unidos, Alemanha, Japão e França, nenhum dos integrantes do chamado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) faz parte deste grupo.


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importante ressaltar que a natureza dos problemas enfrentados pelos países ricos e pelos países pobres é bastante distinta. Nos países desenvolvidos, como já está garantido que o lixo produzido tenha como destino aterros sanitários e incineradores, o debate centra-se nas políticas de redução do volume de lixo gerado, ampliação da reciclagem e implementação de tecnologias de tratamento menos poluentes. Já nos países em desenvolvimento, como no caso do Brasil, os problemas se ampliam, pois parcela significativa dos resíduos sequer é tratada adequadamente, sendo seu destino os lixões ou a queima a céu aberto, o que amplia a poluição do ar, da água e do solo e potencializa impactos sobre a saúde humana. Nesse contexto, implantar programas que diminuam a geração de resíduos sólidos e seus impactos são desafios que afetam todos os países, demandando do setor público, de empresas e de cidadãos um novo olhar para a questão.

A evolução dos resíduos sólidos na sociedade e seus desafios Procurar alternativas para lidar com o lixo gerado nas comunidades não constitui um problema novo na humanidade. Esse problema se agravou quando os homens decidiram se fixar nas cidades: a vida sedentária fez com que os indivíduos e o lixo passassem a dividir o mesmo espaço. Em pouco tempo, percebeu-se que tal convivência implicava desagradáveis impactos ao ser humano. Mau cheiro, atração de animais e doenças indicavam a necessidade de separar urgentemente os 23



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