dezembro 2008 ano XVI NĂşmero 32 ISSN 0104-7841 g
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editores responsáveis Helena Maffei Cruz (Instituto Familiae) — coordenação Carlos Eduardo Zuma (Instituto Noos) Rosana Rapizo (Multiversa) EDITORAS ANTERIORES Gladis Brun (1991/1996) Rosana Rapizo (1997/2005) SUPERVISÃO EDITORIAL Instituto Noos PRODUTOR EXECUTIVO Carlos Eduardo Zuma PRODUÇÃO EDITORIAL Clarissa Luz REVISÃO Tatiany Pessoa PROJETO GRÁFICO E CAPA Amanda Simões DIAGRAMAÇÃO Ilustrarte Design e Produção Editorial COnselho EDITORIAL Azair Vicente/SP Carmem Lent/RJ Eloisa Vidal Rosas/RJ Harlene Anderson/EUA Jorge Bergallo/RJ Juliana Gontijo Aun/MG Marcelo Pakman/EUA Marilene Grandesso/SP Sallyann Roth/EUA Saul Fuks/Argentina
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores. NOVA PERSPECTIVA SISTÊMICA é uma publicação quadrimestral do Multiversa, Instituto Noos e Instituto Familiae com distribuição dirigida. Registro: INPI 816634556 Acesse o nosso site: www.revistanps.com.br
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sumário
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Editorial Helena Maffei Cruz
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engajando crianças e jovens: um teatro de possibilidades Engaging Children and Young People: a Theatre of Possibilities
Jim Wilson 27
A ética na terapia pós-moderna: reflexões sobre a prática no atendimento a famílias em situação de violência Ethics in the post modern therapy: reflections about the practice with families living in situations of violence
Cíntia Brasil Simões Pires, Ludmila Azambuja, Marisa Costa Couto, Heloisa Rodrigues da Costa e Vera Souza Mendes 36
Histórias de famílias que têm filhos em abrigos STORIES OF FAMILIES WITH CHILDREN IN SHELTERS
Maria Amalia Faller Vitale 48
Conversando sobre mudanças junto a uma equipe multiprofissional: uma perspectiva Socioconstrucionista Talking about changes with a multiprofessional team: a socio-constructionist perspective
Gisele Rangel Nascimento, José Fernando Petrilli Filho, Melissa Fernanda Fontana Torres, Patrícia Bighetti Toniollo e Terezinha Aparecida Fiorini Picolo
57
Migrações, famílias e o paradigma sistêmico Migration, families and the systemic paradigm
Leonora Corsini 65
FAMÍLIA, CONJUGALIDADES E UTOPIAS – REFLEXÕES sobre UM MUNDO HIPERMODERNO FAMILIES, CONJUGALITIES AND UTOPIAS – REFLECTIONS about a HYPERMODERN WORLD
Adriano Beiras 73
Educação a distância e construcionismo social: aproximações possíveis The distance learning in a social constructionism perspective
Vera Cecília Frossard 83
Ecos • INCLUSÃO E COMPROMETIMENTO: UMA REFLEXÃO SOBRE A SALA DE AULA Lucila Toledo Bernardes
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Conversando com... • o cinema: Linha de passe? Marília de Freitas Pereira
90
Estante de livros •Histórias para a hora de acordar Eloisa Vidal Rosas
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Família e comunidade em foco • ENTREVISTA COM CLAUDIA CABRAL Carlos Eduardo Zuma
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Normas para a publicação de artigos
editorial
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e eu tivesse que escolher um título para este número da revista, seria: Paradigma Sistêmico e Dialogia. A NPS convida você a dialogar com um leque de temas que configuram práticas inovadoras inspiradas pela compreensão socioconstrucionista da terapia como um diálogo. Jim Wilson, terapeuta do distante País de Gales, dialoga com o teatro brasileiro, articulando suas práticas terapêuticas com crianças – nomeadas como Engajando crianças e jovens: um teatro de possibilidades – com as teorias de Augusto Boal sobre as possibilidades do teatro, ampliadoras do conhecimento. Convidanos a interagir com nossos clientes dentro do espírito de Paulo Freire, “imbuído de uma profunda confiança nas pessoas e no poder criativo delas”. As habilidades e os recursos da criança, da família e do terapeuta, juntas, proporcionam o material para as condutas que descreve e que incluem ação, movimento físico, uma metodologia lúdica tratada com seriedade – um teatro de possibilidades. Se o trabalho com crianças desafia nosso grau de conforto e desconforto criativo, o atendimento a famílias em situação de violência alia a essa exigência uma constante interrogação à ética, começando pelo sentido, ou melhor, pelos sentidos da própria palavra ética. Cíntia Brasil Simões Pires, Ludmila Azambuja, Marisa Costa Couto, Heloisa Rodrigues da Costa, Vera Souza Mendes – membros de uma equipe de atendimento a famílias em situação de violência do Multiversa/Noos – discutem A ética na terapia pós-moderna: reflexões sobre a prática no atendimento a famílias em situação de violência. Tendo como premissa básica, na prática clínica, pensar a violência como construção de um processo relacional do qual participam todos os envolvidos, as autoras buscam um caminho em que teoria e prática se retroalimentam, descrevendo éticas múltiplas, coerentes com cada contexto apresentam sua prática – desde os acordos prévios do sistema terapêutico, até os acordos intra-equipe, inter-equipes e inter-institucionais, fundamentais nos atendimentos em que há violência. A ética do cuidado está presente também no relato de Maria Amália Faller Vitalle: Histórias de famílias que têm filhos em abrigos. A autora utiliza uma ferramenta muito conhecida da terapia familiar – o genograma – em uma pesquisa qualitativa com famílias que têm filhos abrigados no Município de São Paulo. A construção conjunta, tecida na relação família e pesquisadora, permitiu a acolhida das histórias familiares e as interpretações da própria família acerca de
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* Ver página 65 desta edição
seu movimento ao longo das gerações, mostrando as encruzilhadas que podem afetar as crianças em seu direito à convivência familiar. Conversando sobre mudanças junto a uma equipe multiprofissional: uma perspectiva socioconstrucionista nasceu como trabalho de conclusão de curso de Gisele Rangel Nascimento, José Fernando Petrilli Filho, Melissa Fernanda Fontana Torres, Patricia Bighetti Toniollo, Terezinha Aparecida Fiorini Picolo, apresentado na Unidade Ribeirão Preto, do Instituto Familiae, e relata o atendimento a uma equipe multiprofissional de saúde e a construção de uma narrativa sobre mudanças. Acompanha o processo de mudança na equipe multiprofissional, que deu-se à medida que foi possível atravessar de um lugar de desconforto, insegurança, impotência, negativismo, orfandade e incompetência para outro de conforto, reconhecimento de capacidades e descrição de novas possibilidades e nomeação de novas necessidades. Abrindo o leque de diálogos possíveis, Leonora Corsini, discorrendo sobre Migrações, famílias e o paradigma sistêmico, propõe ampliar nossa escuta, pensando a família contemporânea no contexto de uma sociedade pós-industrial, pós-fábrica, de permanente mobilidade. Com um conjunto de perguntas instigantes em relação às condições e ao percurso traçado pelos membros das famílias que deixaram suas cidades ou seus países de origem, aponta para questões importantes para nós terapeutas ou para profissionais que atuam no campo das relações sociais. A problemática dos filhos que, ao nascerem na migração, perdem a nacionalidade dos pais; o dilema de regressar para construir uma família ou casar-se no novo país, entre outras questões, enriquecem nosso repertório interpretativo. Adriano Beiras apresenta, em Família, conjugalidades e utopias: reflexões sobre um mundo hipermoderno, um “ensaio teórico-crítico sobre conjugalidades, parentalidade e temas relacionados, pensados em um momento de nossa sociedade caraterizado como hipermoderno”* Traça um olhar crítico para os acontecimentos de nossa época no que se refere a estas temáticas, procurando refletir sobre os desafios lançados à nossa clínica, pela especificidade das relações dessa sociedade. Vera Cecília Frossard explora A educação a distância e construcionismo social: aproximações possíveis. Qualifica como vibrante o ambiente de colaboração na produção de informação, conhecimento e cultura, da Internet, apontando para um menor vigor quando o contexto é a educação a distância que utiliza a Internet como meio. Busca refletir o porquê desta diferença e inicia uma aproximação com as principais características do construcionismo social como um aporte teórico relevante para a educação, no incremento da co-construção de saberes e colaboração entre pares. Nossas seções também ampliam o leque de conversas enriquecedoras para nossa prática: Ecos nos traz as considerações de Lucila Toledo Bernardes sobre os ecos do artigo de Elizabeth Polity – Crianças e suas redes: conversando sobre a inclusão escolar –, publicado na 31ª edição da NPS, em sua prática como educadora. Inclusão e comprometimento: uma reflexão sobre a Sala de Aula descreve a complexidade do tema, que não diz respeito apenas ao contexto escolar, mas traz implícita
a atitude socialmente construída de padrões para dar sentido ao que somos e organizar nossas vidas e o estranhamento e preconceito em relação àquilo que foge a esses padrões. Convida-nos a construir fóruns de reflexão atentos a essa complexidade. Marília de Freitas Pereira, conversando com o cinema, faz um relato emocionado do filme Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, que retrata o cotidiano de uma família de trabalhadores da periferia paulistana. Agradece aos criadores e intérpretes dessas personagens, “pois esse filme oferece uma oportunidade de diálogo sobre as condições de vida da sociedade brasileira.”* Como disparadores desse diálogo indaga: o que as pessoas representadas no filme diriam de si mesmas? Como elas se descreveriam? Como descreveriam a realidade em que vivem? Como nossos conhecimentos podem ser úteis em condições tão adversas e o que conheceríamos se escutássemos as vozes dessas pessoas? Convida-nos a criar, entre as pessoas que vivem em condições de pobreza e nós, contextos de conversas que transformem o nós e o eles em um nós que inclua a criação de novas possibilidades para todos. Você vai agradecer à Marília por mais essas perguntas a nossa ética. Estante de livros traz o delicioso resultado de muitas conversas de Eloisa Vidal Rosas com alguns de nossos colegas. Entre você também na conversa mandando resenhas para nós! Reencontre amigos e conhecidos da área da terapia familiar e conheça o que eles gostam de ler. Enriqueça sua estante com as inúmeras sugestões de livros que são vozes presentes nos diálogos internos de tantos colegas. Família e comunidade em foco: Nova Perspectiva Sistêmica entrevistou a psicóloga e terapeuta de família Claudia Cabral, que participou da elaboração do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. As informações e reflexões dessa entrevista importam a você, terapeuta ou não. Claudia finaliza afirmando que o terapeuta de família precisa conhecer a realidade escolar na comunidade em que a criança vive e saber de que maneira a escola vê a família. Aponta uma crença comum na rede de educação: a família está transferindo o problema para a escola e a escola está com esse ônus. Ambas as instâncias se culpabilizam e esse eixo de culpabilização não leva a nada. “Se queremos uma leitura sistêmica, devemos sair um pouco do consultório para nos conectarmos com os outros atores, do município, da região, do bairro.” Segundo Bakhtin,** toda compreensão é respondente. “A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, responder, concordar etc” (p. 13). As perguntas apresentadas nos temas desta revista oferecem vocabulários geradores de novas compreensões dos significados construídos na sociedade em que vivemos, novas práticas e novos diálogos entre você e sua NPS.
EDITORIAL
Boa leitura! Helena Maffei Cruz
* Ver página 88 desta edição. ** BAKTIN, M. apud CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin, trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva. 2004.
artigo
engajando crianças e jovens: um teatro de possibilidades* Engaging Children and Young People: a Theatre of Possibilities
Jim Wilson Terapeuta de famílias com crianças, consultor de terapia sistêmica do Conselho de Psicoterapia do Reino Unido. Consultor de terapia familiar do Serviço Nacional de Saúde britânico e de uma associação de Famílias Acolhedoras. Autor dos livros Child-Focused Practice: a Collaborative Systemic Approach e The Performance of Practice, publicados por Karnac Books.
Resumo: Uma abordagem moldada pelos princípios sistêmicos e construcionistas sociais é utilizada para ilustrar uma ampla gama de possibilidades terapêuticas além das escolas ortodoxas e dos métodos de terapia familiar. É dada atenção ao estilo pessoal do terapeuta, com especial atenção ao grau de conforto e desconforto criativo experienciados ao se trabalhar com crianças. São fornecidos exemplos de opções e condutas que podem se apresentar quando o terapeuta adota uma postura improvisacional mais colaborativa. As habilidades e os recursos da criança, da família e do terapeuta, juntas, proporcionam o material para as condutas particulares descritas. Tais condutas contemplam ação, movimento físico e incluem métodos divertidos tratados com seriedade – um teatro de possibilidades. Dentro do espírito de Paulo Freire (1970), o esforço terapêutico está imbuído de uma profunda confiança nas pessoas e no poder criativo delas. Para atingir esse objetivo, os terapeutas devem ser parceiros exploratórios em seus relacionamentos com os clientes.
ABSTRACT: An approach informed by systemic and social constructionist principles is used to illustrate a broad range of therapeutic possibilities beyond orthodox schools and methods of family therapy. Attention is paid to the personal style of the therapist with particular attention to the degree of comfort and creative discomfort experienced in working with children. Examples are provided of options and modes that may present themselves when the therapist adopts a more collaborative improvisational attitude. The abilities and resources of child, family, and therapist together provide the material for the particular modes described. These address action, physical movement and include seriously playful methods – a theatre of possibilities. In the spirit of Paulo Freire (1970), the therapeutic endeavour is imbued with a profound trust in people and their creative power. To achieve this goal, therapists must be exploratory partners in their relationships with their clients.
Palavras-chave: crianças; teatro; improvisação; abordagem colaborativa.
Key words: children; theatre; improvisation; collaborative approach.
Nosso trabalho é sempre um ponto de encontro entre nós como pessoas, não entre nós como experimento. O objeto para estudo é a intercomunicação entre mim e o paciente, encontrandonos em termos equilibrados, cada um ensinando ao outro e se tornando enriquecido pela experiência do envolvimento... O que fazemos em nosso trabalho é providenciar um cenário profissional composto de tempo, espaço e comportamento... e observamos o que acontece. Isto é o mesmo que a forma em arte... que permite o impulso instantâneo e o gesto criativo inesperado. Isto é o que esperamos e valorizamos enormemente em nosso trabalho, que nos leva até mesmo a conter nossas brilhantes idéias, quando elas ocorrem, por medo de bloquear as brilhantes idéias que possam surgir do paciente infantil ou adulto. WINNICOTT, 1970, p. 278, apud SHEPERD et al. 1996. * Este título faz referência a um capítulo de VETERE. A. DOWLING, E. (editors) Narrative Therapy with Children and their Families: a Practiotioner’s Guide to Concepts and Approaches. London: Rutledge, 2005.
Clara, de 6 anos, está me contando sobre seus amigos e as brincadeiras que eles gostam de fazer. Ela me conta como consegue saltitar e cantar enquanto pula, e há um enorme prazer na forma como descreve sua brincadeira. Sua mãe, também presente na sala, parece abatida e deprimida. Ela está passando por um divórcio, em que há muita tensão e discussão sobre com que regularidade
deverá ser permitido à Clara ver seu pai. Ela está preocupada com a forma como Clara está administrando esse momento tão tenso e a trouxe para obter ajuda. Este é nosso terceiro encontro, e minha impressão é de que Clara é uma criança bastante resiliente, que está mais preocupada com sua mãe do que com ela própria. Enquanto eu tento envolver a mãe em uma conversa sobre suas preocupações, Clara espontaneamente se dirige ao quadro branco em meu consultório e adota a postura de uma professora. “Eu sou a professora, e você (apontando para mim) se chama Tommy, e você (apontando para sua mãe) se chama Scarlet... e não é para vocês conversarem!” Ela declara isso com alguma autoridade. Sua mãe parece levemente perplexa, mas Clara imediatamente deu-me uma oportunidade. Eu levanto a mão e peço permissão para falar. Clara, a ‘professora’ diz: “Sim, Tommy?” Eu percebo que estou interpretando uma criança pequena e, assim, minha voz muda de tom para tentar transmitir a Clara que quero entrar nesse novo teatrinho de sala de aula que ela criou para nós: “Por favor, professora, eu tenho uma pergunta. Algumas crianças me dizem que, quando os pais delas não vivem mais juntos, as crianças tentam encontrar formas de ajudar para que isso não os afete muito. Por favor, professora, a senhora pode me dizer quais são as melhores coisas para ajudar quando seus pais não vivem mais juntos?” Na sua iniciativa, ela proporcionara uma oportunidade para se criar um contexto diferente que a envolvesse mais completamente e me permitisse trocar minha posição de terapeuta para a de terapeuta como aluno,
exatamente como Clara mudara de cliente para cliente como professora. Ao longo de sua improvisação, as respostas de Clara foram intrigantes: ela mencionou como achava importante que crianças não pensassem o tempo todo nas “coisas ruins” e que tentassem fazer outras coisas para fazê-las se sentirem menos tristes, apesar de que “os monstros podem às vezes vir à noite”. Clara, dessa forma, deu um exemplo de estratégia de distração freqüentemente usada por crianças de sua idade para enfrentar emoções difíceis1. Eu pude apreender, pela expressão surpresa da mãe de Clara, que ela nunca ouvira sua filha falar dessa forma antes. Nós começáramos a criar um espaço mais improvisacional dentro do encontro. Inicio apresentando três dimensões do processo de se envolver ou participar com crianças e jovens na terapia. Essas dimensões são: 1. O envolvimento e o terapeuta improvisacional. 2. Envolvimento: descobrindo teorias úteis e uma orientação inclusiva. 3. Habilidades de envolvimento: um teatro de possibilidades. Descrevo a terapia como um teatro de possibilidades como minha metáfora de trabalho, por causa de suas conotações com o lúdico, o simbólico, e a associação de formas de teatro com a idéia de improvisação, crucial para o efetivo envolvimento2, 3, 4. Revisar e desafiar a ortodoxia, na teoria e na prática, proporciona oportunidades de improvisar novo raciocínio e o desenvolvimento de habilidades, ilustradas através das histórias a seguir (detalhes das quais foram modificados para preservar o anonimato).
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A investigação termina com dicas para uma orientação mais improvisacional para a profissão.
Envolvimento e o terapeuta improvisacional
O objetivo de Winnicott, de tentar criar “um ponto de encontro entre nós como pessoas”, é informado por seu estudo e por profundo comprometimento com o discurso psicanalítico. Na medida em que minha formação é em abordagens sistêmicas, resulta que a reflexão acerca de minha atividade como terapeuta será explicada por essa perspectiva. Por exemplo, se uso marionetes em uma sessão, meu estudo de terapia sistêmica de família e os desenvolvimentos de teorias narrativas e construcionistas sociais são vozes presentes indicando como as marionetes se comportam e sobre o que elas conversam (embora, até hoje, nenhuma das marionetes tenha sido convocada para descrever suas influências teóricas sobre seus jovens clientes). Capítulos anteriores do livro do qual este artigo é um capítulo, apresentaram minhas influências em terapia familiar, de modo que vou limitar a discussão a um breve relato (para uma orientação geral, mais completa, veja WILSON, 1998)5.
Das conversas sobre sistemas científicos à linguagem em ação
Eu devo muito das minhas primeiras influências teóricas às idéias dos Associados de Milão6, 7, 8 e, especificamente, a Gianfranco Cecchin9, 10, 11 e a suas consultas em andamento, já por muitos anos, com meus colegas do Family
Institute, em Cardiff. Esse treinamento ensinou-me a arte das perguntas influenciadoras e a capacidade de valorar a lógica sistêmica em qualquer situação dada. Os ensinamentos dele (embora ele nunca se referisse a eles com tal) interromperam qualquer tendência que eu pudesse ter tido no sentido de ter crenças muito firmes sobre como as famílias deveriam conduzir suas vidas e resolver seus problemas. Em vez disso, eu aprendi a assumir uma postura de curiosidade divertida e séria irreverência em relação a práticas ortodoxas e às limitações de teorias grandiosas. Em anos recentes, como muitos outros terapeutas de família, eu abri meus olhos às possibilidades existentes em influências mais colaborativas à prática.12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 Esses profissionais empregam as metáforas conversação, narrativa ou história para a terapia e concentram a atenção em como a linguagem cria realidade/realidades. A ênfase em linguagem, história e conversação, certamente, influencia minha profissão, mas é importante acrescentar como essa mudança tem obscurecido o papel da comunicação através da ação e da atividade na terapia. Muitos terapeutas familiares são treinados para adotar uma posição muito sedentária – conduzindo uma sessão a partir dessa única posição e esperando que os clientes façam o mesmo – a não ser, naturalmente, que haja algumas crianças pequenas no recinto. Em tais circunstâncias, vários brinquedos (se disponíveis) podem ser colocados no canto da sala, e as crianças, convidadas a contribuir de uma distância segura. Isso talvez seja uma caricatura, mas há ainda demasiados colegas que estão completando treinamento em terapia familiar sem
nenhuma experiência direta de interagir terapeuticamente com crianças, na presença dos pais delas ou sozinhas. Entretanto, sem entrar na potencial e freqüentemente real experiência de desconforto e/ou satisfação de tentar algo diferente, novas habilidades não irão se desenvolver e os profissionais estarão ‘jogando de forma segura’, deixando de realizar seus potenciais como profissionais ou extrair a criatividade que possa estar em repouso na mente da criança, se simplesmente conseguíssemos nos aproximar delas. É pelo potencial para enriquecer a prática com crianças e pais que a metáfora dominante da terapia como uma conversação tem seus limites na prática, se não, falando estritamente, na teorização narrativa. No entanto, as palavras linguagem e conversação têm dominado a gramática da terapia e as palavras drama e ação têm assumido apenas papéis menores em anos recentes, possivelmente porque, na Grã-Bretanha ao menos, as abordagens voltadas à ação, associadas às primeiras terapias estruturais, foram consideradas fora de moda, ‘cheirando’ a valores patriarcais e a uma atitude do tipo “o terapeuta sabe o que é melhor” com respeito ao funcionamento familiar. Essa tendência na cultura da terapia familiar tem contribuído para uma ênfase demasiada na terapia como um instrumento conversacional. A palavra falada é invisível, mas o termo linguagem em ação leva em consideração muito mais flexibilidade de movimento físico – assim como movimento de pensamento e palavra. E tais instâncias estão intrinsecamente ligadas. Idéias servem de base à ação e a movimentos com vistas a mais possibilidades improvisacionais.
Como o escultor norueguês Gustav Vigeland (1869-1943) aconselha (em uma inscrição no Parque de Esculturas Vigeland em Oslo): “Escolha suas palavras, elas se transformam em ações. Compreenda suas ações, elas se transformam em hábitos. Estude seus hábitos, eles moldam seu caráter.”
Além de uma consideração de linguagem e ação, o terapeuta deve estar atento às oportunidades para improvisação. Esse princípio se aplica, do mesmo modo, ao experimentar novas técnicas e pode conduzir a uma prática e a um terapeuta mais ‘entusiasmados’. Assim, o envolvimento de crianças e jovens é facilitado pelo terapeuta que esteja disposto a explorar o que é possível, enquanto, ao mesmo tempo, esteja consciente de suas próprias limitações e das restrições do contexto de trabalho. O envolvimento não se deve exclusivamente à técnica: ele vem de uma conexão sintonizada com o contexto no qual o encontro entre cliente e terapeuta ocorre. O objetivo de tentar introduzir uma diferença não muito incomum, no estilo de Andersen19, significa lidar com nossos sentimentos de conforto e desconforto e prestar atenção aos sinais de conforto e desconforto mostrados por nossos clientes. Isso nos ajuda a auferir a capacidade de todos os envolvidos, a fim de tornar a sessão terapêutica segura o suficiente para se improvisar20. Nossa capacidade de nos envolvermos com crianças inclui uma consideração das possibilidades e limitações de nossa identidade profissional e como nossas atividades ou nossos encaminhamentos de trabalho constroem um protocolo profissional, dentro do qual certas formas de se comportar e agir com os clientes são
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aceitáveis ou inaceitáveis. Preconceitos profissionais organizam a prática como uma crença de que terapeutas de família não devam se encontrar com crianças individualmente ou usar técnicas artísticas criativas, uma vez que essas práticas são do domínio de outros profissionais. É fácil cair na ortodoxia quando, na realidade, certas ortodoxias são barreiras à criatividade. Preconceitos contra a criatividade podem também se infiltrar nos programas de formação em terapia familiar.
O perigo de se esquecer métodos antigos
Certa vez, eu estava dando uma consultoria para terapeutas familiares experientes, pretendendo explicar minhas idéias a respeito de mais possibilidades improvisacionais no trabalho com crianças. No intervalo para café, um participante do grupo aproximou-se de mim para me contar que ele se formara como ludoterapeuta muitos anos antes. No entanto, quando, mais tarde, começou sua formação em terapia familiar, deixou de lado aquelas habilidades, técnicas e métodos que haviam dado forma a seu repertório como ludoterapeuta, para que ele pudesse se concentrar nos procedimentos necessários para se tornar um terapeuta da família. Essa divisão de disciplinas em profissões específicas talvez seja compreensível, embora ela levante uma questão importante: nós limitamos os nossos recursos potenciais como terapeutas e, da mesma forma, as conexões potenciais que poderíamos fazer com crianças, por aderirmos a idéias de como alguém deva conduzir-se na qualidade de terapeuta
da família? A adesão a uma suposta ortodoxia pode limitar as possibilidades de se fazer o encontro terapêutico mais criativo para todos na sessão. O retorno dado por crianças em terapia21 indica que o terapeuta que não seja condescendente e mostre capacidade de fazer uso de atividades, assim como de palavras, em um encontro vai proporcionar participação mais ativa por parte das crianças. A sensação da criança de ser compreendida, de tal forma que suas dificuldades sejam levadas a sério, é crucial para um bom envolvimento. É também de importância vital que o terapeuta faça todos os esforços para tentar compreender a situação pela perspectiva da criança – para entrar no playground de idéias e atividades familiares à maioria das crianças. Esse playground inclui atividades como arte, música, brincadeiras, faz-de-conta, contar histórias, jogos e um ritual divertido. As composições dramáticas em jogo podem ser usadas para dar um aspecto ao encontro como se fosse do campo teatral não apenas para a criança, mas também para cada participante na sessão. A porta da terapia pode se transformar em um potencial arco de proscênio em que os atores e a platéia dão forma a suas diversas atitudes e no qual o trabalho sistêmico do terapeuta é manter um contexto improvisacional seguro.
Habilidades de envolvimento: a habilidade de se colocar fora do papel central e assumir uma nova posição
A habilidade de se colocar fora do papel central22 refere-se a nossa capacidade, como adultos, de tentarmos imaginar como o mundo é experien-
ciado pelo outro, como para ver por trás dos olhos da criança. As quase inescapáveis conseqüências de se trabalhar a partir de dentro dos serviços sociais e de saúde das comunidades são que as crianças encaminhadas a esses serviços logo adquirem definições de sua identidade moldadas pelos adultos e pelos profissionais que as circundam, criando uma forma de sedimento que sufoca a identidade de uma criança e sua capacidade de resiliência. Essa influência pode manter um poder quase hipnótico sobre nós, se não formos cuidadosos. Freqüentemente, existe uma tensão entre as perspectivas de cuidadores adultos, terapeutas e outros agentes definidores, e é essa tensão de perspectivas que cria o material para o contexto improvisacional sistêmico. Se nós também não nos envolvemos com os guardiões da identidade da criança, podemos correr o risco de perdermos o controle terapêutico sobre o trabalho.
Envolvendo-se com o contexto emocional; descobrindo a música nas palavras
Em uma sessão familiar, um pai estava tão zangado com a filha, censurando-a e apontando-lhe o dedo acusadoramente, que eu quase interrompi a sessão. Eu também havia perdido de vista o desespero dele para encontrar respostas para o comportamento desafiador de sua filha. Eu precisava estabelecer uma ligação mais proveitosa com o pai, de modo que ele me permitisse estabelecer uma ligação mais proveitosa com sua filha. Nesse caso, eu pude, afinal, conversar com ele sobre o efeito de seu recente diagnóstico de diabetes e as restrições que isso signi-
ficou em sua vida. Ele falou sobre seus estresses em casa e sobre suas preocupações financeiras. Apenas quando ele falou sobre sua vida e suas incertezas, conseguimos desenvolver uma conversa diferente sobre sua filha. Essa atenção à música de incerteza nas palavras queixosas do homem ajudou-me a me afastar da possibilidade de me tornar o antagonista do pai. A necessidade de criar uma conexão imaginativa com a perspectiva da criança está, portanto, relacionada à habilidade do terapeuta de envolver os pais (e/ou outros atores significativos). Fazer isso requer uma busca de um contexto de recursos, de dentro do qual uma idéia, um comportamento ou uma emoção novos possam emergir. Isso significa sair ativamente, procurando uma conexão com aspectos das vidas de nossos clientes, que contenham potencial e força, sem desafiarem as identidades negativas muito prematuramente. Essas descrições negativas de si e as descrições de outros, freqüentemente, são parte da família e precisam ser compreendidas mais que punidas. Além disso, o terapeuta sistêmico necessita observar seu diálogo interno19 para sua orientação e conexão. Porque o contexto de brincadeiras é um campo de leveza, os terapeutas sistêmicos que costumam planejar e pensar intensamente, com antecipação, podem descobrir que suas boas intenções estão lhes passando a perna. Entretanto, nós também temos que nos permitir pensar: termos ‘pequenas teorias’; sintonizarmo-nos com o contexto emocional (o estado de espírito e a atmosfera da sessão); considerarmos nossas respostas tanto psicológicas quanto intelectuais; perceber, observar e refletir sobre qual
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posição a criança está nos oferecendo. O terapeuta sistêmico improvisacional tem que esperar para ver o que pode emergir, enquanto, ao mesmo tempo, atém-se a idéias informadas pelo complexo contexto de relacionamentos dentro do qual a interação se desenvolve.
O Envolvimento na Prática: um teatro de possibilidades
Augusto Boal, o profissional de teatro, considera que o poder do teatro de fortalecer o conhecimento devese a três ingredientes essenciais, que vou ilustrar através de exemplos de casos. O primeiro deles é “A propriedade de ampliar tudo, nos permitindo ver as coisas que (de uma maneira mais distanciada) escapariam de nosso olhar.”4
O menino que perdeu seu riso
Alan acabou de completar 5 anos e já está suspenso da escola por agredir outras crianças, cuspir nos professores e se recusar a obedecer às regras na sala de aula. Sua mãe e seu pai estão muito preocupados. Eles me explicam, no decurso de nosso primeiro encontro, que Alan sempre foi uma criança protegida. Ele teve muitas complicações médicas quando nasceu e ainda requer exames médicos regulares por causa de possíveis problemas de desenvolvimento. Eu fico sabendo que Alan teve uma irmã mais velha, que morreu no hospital quando ela tinha apenas 10 semanas de vida. No decurso de nossos encontros, a morte dessa primeira filha começa a ser discutida, e a intensidade dos sentimentos
de perda e de raiva pela perda dela é palpável, imediata e nos leva, a todos, às lágrimas. Após algumas sessões, os pais, Sian e Neil, se perguntam se Alan acharia proveitoso encontrar-se comigo sozinho. Eu concordo que esse pode ser um passo produtivo. (Um aparte: às vezes, pais que procuram um terapeuta a respeito de um problema centrado na criança tenderão a achar que aquela criança especial precisa de atenção especial, e Alan não era nenhuma exceção. Nessas situações, eu tento, sempre que possível, envolver os pais como meus consultores para as sessões individuais com o filho. Nessa situação, eu providenciei que os pais observassem minha ação com Alan por trás de espelho unidirecional e, em uma data posterior, organizei um encontro (às vezes, ao telefone) para partilharmos nossas impressões da minha sessão ou sessões com o filho deles. Eu percebo que, na maioria das situações, os pais ficam imediatamente interessados no papel deles como consultores/observadores e, conseqüentemente, sentem-se muito mais envolvidos no processo terapêutico. Isso requer certa dose de coragem de todas as partes envolvidas, especialmente, do terapeuta, que pode se sentir estranho ao ser observado ou preocupado em se sair tão bem na sessão – desanimando os pais ainda mais. Pela minha experiência, isso é improvável de acontecer, uma vez que honestidade e confiança suficientes tenham sido estabelecidos entre genitor, criança e terapeuta. É mais fácil reconhecer quando se está operando com perícia, quando o conhecimento é desenvolvido de modo recíproco. Sian e Neil ficaram satisfeitos por serem solicitados, e Alan ficou encantado por estar brincando comigo na sala.
A ação foi parcialmente moldada por meu desejo de apresentar temas que pareciam relevantes para a experiência do garoto e também, implicitamente, para os pais. Na escola, ele fora intimidado por colegas; tivera muitas discussões com professores; fizera repetidas visitas ao hospital; recentemente, havia se separado de sua mãe para começar na escola; ele estava achando difícil fazer amigos e, talvez, ele e seus pais estivessem vivendo sob a sombra da morte da irmã. Nós criamos uma história em que ele era um médico, ‘Dr. Alan’, dando conselhos a um personagem chamado ‘Chicken Boy’ (Menino Medroso), que tinha muitas das dificuldades que o próprio Alan experienciara. Entretanto, na representação, eu estava forçando um pouco demais e precisava relaxar mais, pensar menos e prestar mais atenção ao que estava acontecendo na interação momento a momento com Alan, para perceber para onde ele poderia desejar dirigir a representação. Quando abrandei meus esforços, percebi que, durante toda a atuação, não me lembrava de ver Alan sorrindo ou dando risada. Tampouco recordava vê-lo sorrindo ou dando risada em nenhuma das sessões anteriores. Isso criou uma nova idéia. Eu disse: “O Garoto Medroso tem outra coisa com que ele está preocupado. Você sabe o que é essa coisa? Vou lhe dizer. Ele acabou de perceber que ele perdeu seu riso. Você tem alguma idéia de onde ele o colocou? (coloco minhas mãos nos bolsos para procurar e pareço preocupado) Onde foi parar a risada dele?” Alan e eu então passamos algum tempo procurando pelo riso perdido e, por fim, eu disse: “Eu me pergunto como essa risada vai soar quando ela sair?” E apresentei
alguns sons engraçados na esperança de que minha tola imitação de risada pudesse conduzir a algumas risadinhas verdadeiras. As risadinhas não surgiram, mas, finalmente, um sorriso surgiu em seu rosto. Isso foi notável por ser inesperado. Logo após isso, nós terminamos a sessão e, quando os pais vieram de trás do espelho, eu pude perceber que Neil estava sensibilizado pela representação, mas eu não queria iniciar uma conversação naquele estágio. Isso teria criado um conflito de contextos entre o campo do jogo imaginativo e o contexto da conversa analítica entre mim e os pais sobre a sessão lúdica. (Um aparte: refiro-me a esse estágio de modo variado, como reuniões de trabalho com os pais, ou conferências telefônicas, ou reuniões sobre impressões partilhadas. Os pais, no papel de ‘consultores’, criam uma atmosfera que pode dissipar as expectativas do terapeuta como o Mágico de Oz. Os pais, algumas vezes, farão observações a respeito de modos de interação entre a criança e o terapeuta que refletem suas próprias lutas. Mais que isso ser construído como um fracasso do terapeuta, no sentido de realizar seu trabalho, é mais freqüente o caso em que esse modelo de ligação se torna uma fonte para futuras explorações conjuntas de novas possibilidades. Esse quadro mais proveitoso torna-se possível ao se criar um contexto em que os pais participem ativamente nas sessões lúdicas da criança. Posturas defensivas são menos prováveis, e o mito do terapeuta como ‘Super-Homem’ se dissipa sem que a credibilidade do terapeuta se perca. O objetivo de criar um contexto improvisacional tem precedência sobre o desejo de se exibir perícia).
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Reflexão sobre o garoto que perdeu seu riso
O menino perdeu seu riso poderia ser visto como uma metáfora para uma família que tenha perdido seu senso de alegria na vida. Era como se esse momento na dramatização com Alan criasse uma conexão entre a criança e o padrão de tristeza que parecia impregnar sua família. Isso era apenas parte do trabalho com Alan; seus problemas relacionados à escola envolveram uma rede sistêmica de contatos mais ampla, incluindo o diretor da escola e um psicólogo educacional. Mais ainda, Alan está fazendo mudanças também, e seus pais descrevem a atmosfera em casa como “muito mais leve”. Os pais de Alan acompanharam a sessão desejosos de falar sobre a perda de Anna, sua filha, e seus subseqüentes anos tomando antidepressivos. Obter o envolvimento das crianças na terapia é um processo sistêmico, em múltiplos níveis, que leva em consideração as perspectivas e preocupações dos pais e de outros profissionais envolvidos com a ela.25, 26, 27 A não ser que haja um contexto geral de interesse e mútuo respeito entre os profissionais e a família, é improvável que o terapeuta e a família façam uso pleno desses esforços de cooperação. O segundo ingrediente essencial do poder do teatro no fortalecimento do conhecimento é “A duplicação do eu que ocorre no indivíduo que sobe ao palco... o que permite a auto-observação”.4 A família como diretor e o terapeuta como ator do diálogo interior Uma colega que trabalha em serviço de assistência social, Sônia, foi convidada por mim para apresentar suas reflexões sobre a conversa que
eu acabara de ter com três membros de uma família: uma mãe na casa dos 30; um garoto chamado David, de 15 anos de idade, vivendo temporariamente com uma família acolhedora; e sua irmã mais nova, Jenifer, de 11 anos de idade, que vivia com sua mãe em casa. A sessão fora cheia de tensão, com a mãe queixando-se da falta de compreensão do menino, e o menino queixando-se, da mesma forma, de que a mãe jamais fazia o suficiente para superar a depressão e “dar um jeito na vida dela”. Apesar dessa atmosfera tensa, foi uma sessão animada, e havia alguma esperança de que o garoto retornaria, com o tempo, aos cuidados de sua mãe. Quando indaguei Sônia sobre suas reflexões, ela falou, apaixonadamente, em apoio à mãe e criticou o garoto por não compreender a mãe, levantando a mão e apontando um dedo acusadoramente. Estava claro que ela escolhera ser a advogada da mãe nessa sessão. Eu não antecipara essa resposta e percebi que, conforme ela falava, eu me tornava um aliado secreto do garoto. Eu notara que minha impressão de me identificar com a perspectiva do menino ficava mais forte quanto mais minha colega advogava apaixonadamente pela mãe. Assim, como nós poderíamos usar essas atitudes de modo a, de alguma forma, beneficiar a família? Minha tentação inicial foi defender o garoto, mas isso teria levado a uma escalada de animosidade no confronto entre minha colega e eu mesmo, e teria se transformado em uma encenação da interação e da dificuldade deles. Assim, em vez disso, eu assumi um risco e sugeri que minha colega Sônia e eu devíamos tentar algo. Eu me perguntava se Sônia estaria apta a advogar a
partir da posição da mãe, enquanto eu assumiria a posição do garoto, e juntos tentaríamos improvisar nossas associações extraídas da raiva entre David e sua mãe Rebeca. Para meu alívio, minha colega entrou no espírito da improvisação, e perguntamos à família se seria possível para eles comentarem nossas tentativas de conversar, como se nós estivéssemos falando sob cada uma das perspectivas deles, para tentar compreender o que mais poderia estar presente nas trocas inflamadas. O que é importante sobre esta técnica é que ela vai além de uma representação de comportamentos e palavras como o encenado em uma típica simulação. Em vez disso, é uma excursão imaginativa para dentro do diálogo interno presumido e, até então, não expresso, de modo a ajudar a expandir as possibilidades na terapia. Fazer isso de um modo sensível requer do terapeuta julgar quanto risco deve correr. Nós temos que julgar quanto desse diálogo interno imaginado seria ouvido e retribuído de um modo proveitoso, e quanto dele poderia ser percebido como demasiadamente intrusivo e excessivamente revelador, a ponto de a integridade dos clientes ficar ameaçada. Assim, existe uma fronteira delicada ao se criar um roteiro para essas conversas internas/ externas dentro de uma zona de desconforto segura o bastante. A segunda consideração, que é fundamental para esse tipo de improvisação, é que os clientes estão ativamente envolvidos em modificar e dar forma à expressão desse teatro de reflexão. Nosso retorno é recebido com um senso de humildade profissional que leva em consideração correções a serem feitas e, ainda assim,
permite o estabelecimento de algum debate com a família. Nesse exemplo em particular, levou uns poucos minutos, antes que minha colega do serviço social e eu pudéssemos entrar em uma narrativa na ‘primeira pessoa’.
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Diálogo interno do filho (jw*), em resposta a uma acusação de egoísmo feita por Sônia como a mãe**: “Sim, eu sou egoísta. Você está certa, mas eu aprendi a ser egoísta. É importante para mim cuidar de mim mesmo, porque, ao longo dos anos, tivemos tantas mudanças e tantas coisas aconteceram que eu estou com medo que, se for para nós voltarmos a viver juntos de novo, os mesmos problemas de sempre vão surgir, e eu simplesmente não quero que isso aconteça. Eu não quero ainda mais uma dessas mudanças.” [Mais tarde, o tom do teatro começa a mudar de raiva para tristeza e apreensão diante do medo de um futuro fracasso]. Diálogo interno da mãe (Sônia): “Sim, acho que você está certo e sinto que é importante que nós tentemos fazer isso dar certo dessa vez, porque não podemos continuar do jeito que você está indo.” Diálogo interno do filho (jw): “Você é minha mãe, e vou sempre amá-la, mas tem que ser diferente dessa vez.” Diálogo interno da mãe (Sônia): “Talvez eu também tenha que pensar sobre as mudanças no futuro, mas você tem que parar de pensar sobre o que você quer e o que você precisa para pensar sobre o que nós precisamos e o que nós queremos!”
* Jim Wilson ** Trecho retirado de gravações em vídeo e editado.
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Diálogo interno do filho (jw): “Bem, talvez você esteja certa, mas, talvez, eu também precise ser um pouco egoísta para me proteger.” O diálogo desenvolveu-se mais e levou a uma discussão – mais tarde, depois da performance – com a família sobre o colapso nos relacionamentos familiares alguns anos antes, do qual eles nunca se recuperaram. Os temas de perda e mágoa estiveram aparentes, embora nunca revisitados ou expressados novamente, e, em vez disso, a raiva entre o menino e sua mãe se tornara uma cena persistente e repetitiva em uma peça em ato único. Nossa tentativa de introduzir o diálogo interno improvisado da mãe e do filho interrompeu a escalada de agressividade de ambas as partes nas discussões e expandiu a narrativa para incluir outros temas relacionados, ainda que não expressados. Fazer a representação dessa forma modificou as interações entre mim e minha colega. Nós falamos menos pela ótica da oposição e, em vez disso, desenvolvemos uma narrativa diferente, que se expressava em uma maior apreciação do ponto de vista do outro. Por se criar, falando metaforicamente, um arco de proscênio no entorno do recinto da narrativa, nós encontramos um novo modo de falar e, mais importante, uma nova forma para a família fazer comentários sobre aquela conversação: refletirem, eles mesmos, sobre os significados implícitos na conversação, que pudessem ser relevantes. A improvisação interrompeu a escalada de agressividade entre mim e minha colega, assim como também o fez entre o garoto e sua mãe. Fazer parte da platéia, observando a inte-
ração, de alguma forma, uniu a mãe e o filho. Eles, então, tornaram-se parte da equipe de roteiristas e diretores, de modo a apresentar suas impressões e sugestões de correções ao nosso roteiro. A interação entre nós se tornou mais uma colaboração de diretores e atores do que uma sessão formal de terapia. Tanto minha colega como eu fomos capazes de reavaliar nossas posturas dentro desse campo, não apenas os membros da família. Pudemos todos observar nossas atitudes, ao mesmo tempo em que salvamos as aparências no mundo como se do teatro improvisacional sistêmico. Enquanto o exemplo acima representa um uso mais consciente da metáfora do teatro em terapia, o próximo exemplo é uma ilustração de como se pode também aplicar essa orientação ao se criar um contexto que atua com o tempo. Este é o terceiro ingrediente essencial do poder de fortalecimento do conhecimento do teatro: “O exercício sem grilhões de memória e imaginação, o jogo livre de passado e futuro.”4 Conversa sobre viagem no tempo
Jonathan tem 13 anos, e sua mãe Shauna sente que não pode mais tolerar o comportamento antagônico dele. No decurso de nosso trabalho, soubemos que a mãe de Jonathan acha que tudo deu errado depois que o pai dele partiu, quando ele tinha 8 anos, e, desde então, “toda discussão que temos parece remeter de volta àquele tempo”. Jonathan concorda que pelo menos algumas das discussões a respeito do passado foram sobre a partida de seu pai. Indago a mãe sobre o seguinte:
JW: “Imagino que você deva ter tentado explicar a Jonathan, quando ele tinha 8 anos, por que o pai dele foi embora e o que aconteceu a ele”. SHAUNA: “Não. Não o fiz porque eu fiquei muito deprimida e todos foram deixados ao sabor do vento”. JW: “Então, isso poderia significar a existência de muitas perguntas na mente de seu filho e muitas respostas que você não teve a oportunidade de lhe dar, porque você estava tão deprimida?” SHAUNA: “Sim, era impossível, e eu sinto que esse foi um tempo em que tudo deu errado depois daquilo”.
Reflexão sobre a conversa sobre viagem no tempo
Era difícil para o menino e sua mãe conversarem sobre a partida do pai, sem a mãe se tornar defensiva e Jonathan se transformar no acusador colérico. Contudo, como essa cena se pareceria, se nós criássemos uma oportunidade de viajar no tempo, para possibilitar que as perguntas fossem feitas e permitir à mãe a oportunidade de responder a seu filho? Perguntei a Jonathan se seria possível: “Por favor, poderia me ajudar a tentar algo um pouco diferente?” Sua mãe e ele concordaram em “deixar-me fingir, por assim dizer, ser Jonathan aos 8 anos e retornar àqueles dias, 7 anos atrás, para perguntar aquelas questões de sua mãe que nunca puderam ser indagadas e para proporcionar a sua mãe a oportunidade de responder e explicar”. Jonathan encolheu os ombros e concordou que seria “o.k.” tentar e sua mãe, embora apreensiva, também queria tentar. Essa mudança da realidade da conversação aqui-e-agora sobre o passado para uma improvisação tea-
tral, colocava o passado e o presente juntos, para possibilitar a expressão de questões e respostas que foram impossíveis de exprimir na realidade áspera do presente na terapia. Então, como Jonathan (aos 8 anos), eu fiz a minha mãe um certo número de perguntas que imaginava serem vantajosas para a mãe responder. Eu indaguei por que meu pai partiu, se foi minha culpa ele ter partido, depois perguntei: “Por que você não poderia ter resolvido as coisas e se saído melhor?” E a pergunta mais difícil de todas: “Então, se não foi minha culpa ele ter partido, foi sua?” Quando fiz cada uma dessas perguntas, prestei atenção a cada resposta da mãe de Jonathan. Pude perceber que ela estava achando o exercício irritante, mas ela queria persistir e, quando eu fiz a última pergunta, ela ficou muito chorosa. Isso a liberou para explicar que, depois que seu marido foi embora, ela conheceu outro homem que atacou a ela e a seu filho, fisicamente. Ela nunca se perdoara por isso e sentia que seu filho a culpava pelo que acontecera. A conversação – viagem no tempo – levou em consideração novas idéias, ao mesmo tempo em que manteve a integridade dos participantes. Quando retornei a seu filho, indagando sobre suas impressões, ele deu apoio a sua mãe. Ele criticou minha performance, dizendo que era muito complexa: “quando você tem 8 anos, você faz o que seus pais mandam você fazer”. O mundo é feito de preto e branco. Eu concordei com ele que “quando você tem 15 anos, é claro, você começa a ver o mundo como cheio de áreas cinza também”. Nesse exemplo acima, a atitude do terapeuta é flexível. É brincadeira de uma maneira séria; é teatral, mas tem
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o propósito de aliviar o sofrimento humano. A criatividade gerada é intencional e vai além do entretenimento (que, em si mesmo, pode também ser educativo). Entretanto, o terapeuta não está representando com as vidas das pessoas e, assim, o espírito do encontro tem que ser moldado por éticas profissionais e o desejo de ajudar – a performance é uma ajuda ao processo terapêutico, não um fim em si mesmo.
O envolvimento e a opinião das crianças sobre o que funciona
Se ouvirmos o que nossos jovens clientes nos contam sobre o que importa quando eles se encontram com um terapeuta profissional, as respostas são, de um modo animador, óbvias e acessíveis. A qualidade do profissional de parecer autêntico e não condescendente é crucial; a habilidade de prestar muita atenção ao uso de linguagem apropriada à idade e de ser capaz de proporcionar uma combinação de conversa e atividade com crianças mais jovens, com o objetivo de criar um senso de segurança e confiança, e a capacidade de trabalhar com as preocupações peculiares aos jovens clientes são todas qualidades comuns a um bom envolvimento, a partir de qualquer base teórica. A habilidade de levar a sério as perspectivas do jovem indivíduo e de explorar seus pontos de vista é essencial. Isso significa entrar em um debate na base da confiança de vez em quando, oferecendo estratégias alternativas de resolução de problemas30 e lhes dando apoio ao longo das mudanças que eles querem fazer.31 Isso também requer flexibilidade em posturas que vão do facilitador,
através de um espectro de repertórios, até o ‘ator difícil’4 no outro extremo. Em meu trabalho com crianças mais velhas e adolescentes, a sala de terapia se transforma em uma oficina. Podemos usar desenhos para representar as cenas problemáticas, soluções tentadas e registros de recursos internos e externos, obstáculos para se encontrar soluções e imagens de futuros alternativos33. Para alguns jovens, que não se sentem confortáveis com conversação direta, é mais eficaz usar métodos menos diretos para se comunicar, como criar jornais e diários, poesia e cartas, histórias sobre as vidas deles, ou escrever canções, ou produzir vídeos e usar outras mídias. Um colega, recentemente, mostroume um desenho animado, criado por filhos de pessoas que buscaram asilo político, para expressar suas opiniões e experiências de estar fazendo a transição para a vida no Reino Unido. Essas contribuições do playground de idéias proporcionaram ao terapeuta oportunidades de se envolver e colaborar com os jovens indivíduos, tanto explorando o contexto das vidas deles e de suas dificuldades como depois descobrindo os próximos passos para seguir adiante.
O menino que teve uma grande mudança de perspectiva: começando com a conexão óbvia
Seamus tem 13 anos e, nas sessões, sua mãe e seu pai pareciam estar completamente absorvidos pelos mais insignificantes detalhes relacionados à vida dele. Eles disseram que ele estava sendo intimidado por colegas na escola, e ele assentiu.
O pai, repetidas vezes, contatara a escola e tivera uma série de reuniões com professores e, ainda assim, as provocações continuaram. Parecia, nessa família, que todos respiravam com o mesmo par de pulmões – uma atitude superprotetora sufocante, que restringia as oportunidades na vida, como se os horizontes do menino estivessem sendo delineados pelas preocupações de seus pais. Eu soube que Seamus queixava-se com a mãe, todos os dias, quando ele voltava para casa da escola. Na sessão, ela tinha a aparência de uma mulher muito preocupada, que mantinha sua cabeça baixa, assustada de se pronunciar contra o marido. Depois do primeiro encontro, pedi para ver Seamus sozinho, porque eu precisava de algum espaço para respirar e precisava saber de Seamus a respeito de suas idéias de como resolver o problema das provocações na escola. Em nossa busca por recursos úteis, soube que ele tinha uma técnica chamada Tim silencioso, que permitia a ele não responder às zombarias nas provocações. Nós concordamos que esse era um recurso útil para se usar, e eu lhe perguntei mais sobre sua vida fora da escola. Descobri que ele era um bom ginasta na cama elástica e que gostava de ser treinado, assim, eu sugeri que eu poderia ser seu treinador, para ajudá-lo a lidar com o problema das provocações. Ele deveria manter registros em um diário sobre sua técnica do Tim silencioso e sobre o quão eficaz ela poderia ser, mas eu sugeri que não era para ele contar a seus pais, todos os dias, quando ele voltasse para casa, sobre sua vida escolar, ou discutir quaisquer problemas que surgissem. Em vez disso, foi solicitado a ele que mantivesse segredo desse diário com
seus pais (mais tarde, eu expliquei essa tarefa a seus pais e disse que me ajudaria enormemente se eles apoiassem o filho deles em seu projeto particular). O problema das provocações desaparecera quando da próxima sessão, mas seu tom ainda era triste e derrotado. Ele explicou que as provocações não eram mais um problema, mas que ele estava muito preocupado com o fato de sua mãe e seu pai estarem discutindo e me perguntou se eu poderia ajudá-los, porque eles estavam falando em se separar. Esse discurso não acontece com muita freqüência em minha prática, mas, com Seamus, isso levou a uma discussão com os pais a respeito das preocupações do filho com eles, e eles aceitaram ter sessões de terapia de casal, para explorar dificuldades deles que vinham de longa data. Essa é uma ilustração da necessidade de se conectar com os problemas identificados por nossos jovens clientes e de quão útil é tentar criar um contexto que seja familiar a eles e seja retrospectivo de um contexto de recursos já manifestos em suas vidas. Foi também importante para mim não me precipitar à frente de meu raciocínio. Ocorrera-me que a atitude dominadora do pai em relação à mulher e ao filho era uma forma de provocação, como a da escola, e o que estava sendo apresentado pelo menino era uma metáfora para um problema em outro lugar qualquer assim como um problema real em sua vida. É também ligeiramente cômico recordar que, quando eu falava aos pais sobre a preocupação de seu filho por seu casamento problemático, o pai dava um jeito de me corrigir, dizendo “Você cometeu um erro no início, por
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simplesmente se concentrar no problema da escola. Você deveria ter perguntado mais sobre o relacionamento conjugal, em vez de simplesmente agir baseado em sua opinião sobre Seamus e a escola!” Eu fiquei contente de ser corrigido por ele, porque isso permitiu à mãe e, particularmente, ao pai manter a integridade deles. A confiança do filho em mim abriu a porta para se enfrentar problemas conjugais que vinham de muito tempo. Reflexões sobre o menino que teve uma grande mudança de perspectiva
Esse caso tenderia a sugerir que o problema do garoto representava um problema em algum outro lugar da vida da família dele. Embora essa tenha sido uma idéia útil nessa ocasião, não é usada como uma aplicação universal. Wachtel34 sugere que nós devamos ser cuidadosos ao considerar a pressuposição de que cada problema infantil deva ter suas origens sistêmicas em algum outro lugar na família. O perigo com esse preconceito é que isso implica outros membros da família e põe em risco que eles se liberem. Isso também desvia o foco do terapeuta daquilo que diz respeito à criança quando esse pode ser muito bem um lugar proveitoso para se começar. Em Child-Focused Practice35, 36, 37, 38 a preocupação é de que sempre se mantenha em mente a necessidade de ouvir as perspectivas da criança e que se trate delas seriamente, além de colocá-las lado a lado àquelas outras perspectivas de membros da família e de outras pessoas significativas na vida da criança. Isso cria um sistema expandido dentro do qual a perspectiva da criança pode ser compreendida.
Colaboração, perícia e um teatro de possibilidades
Este título ilustra uma orientação colaborativa no trabalho que, implicitamente, desmascara a inútil mística do especialista em psicoterapia com crianças e famílias. Práticas de reposicionamento incluem os exemplos acima assim como outros métodos de ação não desenvolvidos aqui, tais como reversões, criação de miniesculturas, jogos de adivinhação de pensamentos, crianças como consultores e terapeutas e grupos de irmãos como co-pesquisadores. Todos esses métodos têm como meta mudar as respostas físicas e – se espera – as experimentais e cognitivas no cliente e no terapeuta. Práticas de reposicionamento criam mudanças no contexto da criança em terapia. O trabalho do terapeuta é procurar meios de promover conhecimento especializado no contexto (nosso próprio assim como o de nossos clientes). Vários colegas muito capazes e criativos, que trabalham em profissões assistenciais, ainda se prendem a uma idéia utópica de que haja um especialista, em algum lugar, que será capaz de tratar os jovens clientes deles simplesmente da mesma forma como se esperava que o Mágico de Oz fornecesse respostas aos problemas dos viajantes na estrada de tijolos amarelos. A crença no assessor especialista é necessária quando o especialista fez um julgamento certo. No entanto, às vezes, as palavras e opiniões do especialista seguem sem um exame minucioso, e o conjunto de recursos e o potencial que estão em algum lugar na rede profissional e familiar são ofuscados por uma deferência acrítica.
Muitas crianças ‘cuidadas’ pelo sistema de assistência do estado se beneficiam muito de uma abordagem na qual um contexto de assistência é proporcionado por um longo período de tempo, juntamente com apoio periódico e aconselhamento quando requerido39. O envolvimento terapêutico não é um evento único, mas um processo que se estende além do foco relativamente estreito da sala de terapia. A orientação sistêmica improvisacional explorada aqui revela a boca de cena e faz a cortina se abrir sobre o sigilo terapêutico que tanto já fez parte das antigas tradições. Por criar oportunidades para as crianças e suas famílias para se tornarem colaboradores/consulentes ativos que reflitam sobre o progresso de seu filho e que participem diretamente na criação de soluções, o palco é o cenário para uma aventura mais igualitária, que humaniza a conexão terapêutica com as crianças e com aqueles que cuidam dela. Usar formas colaborativas de se trabalhar com os clientes não é uma questão de estratégia; é, na essência, uma forma de desmistificar o processo terapêutico. Essa forma de abordar a terapia lida com as idéias trazidas de conceitos sistêmicos e relacionados, e cria uma prática improvisacional que tenta liberar novas idéias, histórias e ações, bem como a posse partilhada do processo de mudança. A improvisação do pensamento nos conduz a uma consideração de idéias além das regras de teorias recebidas, e a improvisação da prática nos leva além da ortodoxia de técnicas recebidas. Com a consideração de que nenhuma interação pode ser plenamente instrutiva, eis aqui algumas idéias para se promover uma postura im-
provisacional no sentido de se conseguir o envolvimento de crianças e outros na terapia.
Dez sugestões para o terapeuta improvisacional (Como alternativa, crie sua própria lista) 1- Estude uma abordagem teórica em
profundidade, de modo que ela se torne sua segunda natureza, exatamente como um músico precisa aprender escalas, até que ele possa tocar naturalmente, sem pensar nelas. 2- Uma vez fluente, observe outras abordagens e outros métodos para incorporar à sua prática e se assegure de que sua atitude seja moldada com vistas ao desenvolvimento de novas possibilidades em benefício dos clientes, e não ao autoengrandecimento do terapeuta. 3- Considere aqueles aspectos de si próprio que pareçam inibir oportunidades de adentrar sua própria zona de desconforto. Tais aspectos podem ser crenças sobre não querer se constranger ao brincar com crianças ou conversar com jovens relutantes ou agressivos em terapia, especialmente, se os pais estão observando/participando. Cuidado com aquelas idéias que marginalizam as crianças do contexto terapêutico. Tais idéias farão com que você racionalize o fato de não entender as crianças, quando, de fato, é a sua timidez, o seu constrangimento ou o seu medo que o impedem de permanecer na luta, especialmente, quando a sessão pode ser confusa ou antagônica.
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4- Tente desenvolver um grupo de
9- Lembre-se de que nossos clientes
apoio profissional que valore sua experimentação e cuide de assegurar que se reflita sobre a prática de uma maneira séria. 5- Leve em consideração as formas em que sua vida é inspirada por processos criativos fora de seu trabalho, como teatro, leitura, tocar um instrumento musical, escrever histórias, praticar um esporte e assim por diante. Depois, se pergunte: de que maneiras podem esses recursos pessoais ser traduzidos de um modo útil, dentro de meu trabalho com crianças e famílias? 6- Tente assegurar que você crie uma diferença não tão incomum no seu trabalho. Isso significa explorar teorias, métodos e técnicas e praticálos até que você sinta que eles pertençam a você – ou rejeitá-los se a diferença é demasiado incomum. 7- Tente estabelecer uma prática que possibilite que você se torne um especialista em criar conhecimento especializado dentro do contexto. Isso, normalmente, significa desenvolver um senso de humildade sistêmica em relação ao que é possível, especialmente, na presença de crianças pequenas, quando a atitude mais criativa pode se tornar engenhosamente incompetente; deixe seus clientes corrigi-lo e se permita cometer erros, uma vez que tenha criado um ambiente seguro o bastante em que possa fazer isso. Isso estimulará seus clientes a correrem riscos da mesma forma. 8- Não desista do rigor teórico. Continue a estudar teorias e leia de uma maneira tão abrangente quanto possível sobre todos os ângulos do campo da terapia familiar.
não estão procurando por um ‘terapeuta miraculoso’ ou uma ‘performance de ganhar Oscar’. Eles estão preocupados em achar alguém que tenha a capacidade de estabelecer emocionalmente uma ligação com eles e que transmita um senso de conhecimento especializado e competência. 10- Em certas ocasiões, esteja preparado para prazos longos e sempre procure estabelecer um contexto de recursos, em vez de se sentir obrigado a prover todos os recursos você mesmo, uma vez que isso provavelmente conduzirá a insatisfação e desgaste. O resto é prática...
Nota
É difícil ser preciso em relação ao desenvolvimento de uma idéia em uma sessão uma vez que todas as notas sobre nossas lembranças são escritas após o fato. Mesmo nos exemplos acima, nos quais fitas de vídeo proporcionaram um diálogo preciso, nós ainda estamos nos reinos da memória e da imaginação. Boal4 argumenta que “uma idéia voa à velocidade da luz, mas sua articulação... em palavras se arrasta como um cavalo e uma charrete” (p. 61).
Agradecimento
Este capítulo é dedicado à memória do Dr. Gianfranco Cecchin, por sua contribuição ao campo da terapia familiar e pela vitalidade, perspicácia e humanidade que ele trouxe a seu treinamento e a sua prática terapêutica.
Referências bibliográficas:
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man Systems as Linguistic Systems: Preliminary and Evolving Ideas about Implications for Clinical Theory. Family Process, 27: 317-93, 1998. 16 WHITE. M.; EPSTON, D. Narrative Means to Therapeutic Ends. New York: Norton, 1990. 17 WHITE, M. Re-authoring Lives: Interviews and Essays. Adelaide: Dulwich Centre Publications, 1995. 18 SMITH, C.; NYLUND, D. (ed.) Narrative Therapies with Children and Adolescents. New York: Guilford Press, 1997. 19 ANDERSEN, T. (ed.) The Reflecting Team. New York: Norton, 1990. 20 BYNG-HALL, J. Rewriting Family Scripts. New York and London: Guilford Press, 1995. 21 STITH, S. M.; ROSEN, K. H.; McCOLLUN, E. E.; COLEMAN, J.U.; HERMAN, S. A. The voices of children: preadolescent children’s experiences in family therapy. Journal of Marital and family Therapy, 22:6986, 1996. 22 DONALDSON, M. Children’s Mind. New York: Norton, Glasgow, Fontana, 1978. 23 CARR, A. (ed.) What Works with Children and Adolescents? Londres: Routledge, 2000. 24 CARR, A. (ed.) Prevention: What Works with Children and Adolescents. Londres: Brunner-Routledge, 2002. 25 FONAGY, P.; TARGET, M.; COTTREL, D.; PHILLIPS, J. & KURTZ, Z. What Works for Whom? New York: The Guilford Press, 2002. 26 KIM-BERG, I.; STEINER, T. Children’s Solution Work. New York & Londres: Norton, 2003. 27 CARR, A. (ed.) Prevention: What Works with Children and adolescents. Londres: Brunner-Routledge, 2002.
Engajando crianças e jovens: um teatro de possibilidades Jim Wilson
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SELEKMAN, M. D. Solution – Focused Therapy with Children: Harnessing Family Strengths for Systemic Change. New York: Guilford Press, 1997. 29 WACHTEL, E. F. Treating Troubled Children and Their Families. New York: Guilford Press, 1994. 30 WILSON. J. Child Focused Practice: a Collaborative Systemic Approach. Londres: Karnac, 1998. 31 WILSON, J. How can you tell when a Goldfish Cries? Finding the Words in Therapeutic Stories with Chil28
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dren. Australian and New Zealand Journal of Family Therapy, 21,1: 2933, 2000 a. 32 WILSON, J. Child Focused Practice with Looked after Children. Child Care in Practice, 6:4, 2000b. 33 WILSON, J. Louie and the singing therapist in Focusing Practice on Children. Context, 64: 1-2, 2003. 34 FONAGY, P.; TARGET, M.; COTTREL, D.; PHILLIPS, J.; KURTZ, Z. What Works for Whom? New York: The Guilford Press, 2002.
A ética na terapia pós-moderna: reflexões sobre a prática no atendimento a famílias em situação de violência
artigo
Ethics in the post modern therapy: reflections about the practice with families living in situations of violence
Resumo: Este artigo visa refletir sobre algumas questões éticas que permeiam o atendimento a famílias em situação de violência. Temos, como premissa básica na prática clínica, pensar a violência como construção de um processo relacional do qual participam todos os envolvidos. Assim, buscamos um caminho que se retroalimenta na teoria e na prática, utilizando, como norteadores, os referenciais teóricos da terapia sistêmica e do construcionismo social. Diferentes posições epistemológicas levam a diferentes posicionamentos éticos. A complexidade do mundo pós-moderno impõe abandonar uma ética única e reconhecer a necessidade de vislumbrar éticas múltiplas, coerentes com cada contexto. Essa concepção de ética encarna nossa prática clínica em vários níveis – desde os acordos prévios do sistema terapêutico até os acordos intraequipe, interequipe e interinstitucional, fundamentais nos atendimentos em que há violência.
ABSTRACT: This article aims to think over some ethical issues that permeate the care for families in situations of violence. Our basic premise, in clinical practice, is thinking about violence as a construction of a relational process which involves all concerned. Thus, we sought a way which feeds back into the theory and practice, using as guidelines the theoretical references for systemic therapy and social constructionism. Different epistemological positions lead to different ethical positions. The complexity of post-modern world requires abandoning a single ethics and recognizing the need to perceive multiple ethical, consistent with each context. This conception of ethics embodies our clinical practice at various levels – from the prior agreements of the therapeutic system, until the agreements intra-team, inter-team and inter-institutionals, extremely significant in the clinical practice where there is violence
Palavras-chave: etica; violência; prática clínica.
Keywords: ethics; violence; clinical practice.
Cíntia Brasil Simões Pires, Ludmila Azambuja, Marisa Costa Couto, Heloisa Rodrigues da Costa, Vera Souza Mendes Terapeutas de família, membros de uma Equipe de Atendimento a Famílias em Situação de Violência do Multiversa/Noos.*
INTRODUÇÃO
O trabalho com famílias em situação de violência, ao longo dos anos, tem nos confrontado com inúmeros dilemas de natureza ética. Desde as questões relativas à inclusão do autor no atendimento terapêutico, passando pela possibilidade, sempre presente, do risco de vida, até os limites conferidos ao sigilo. Cedo, percebemos que os padrões que nos formaram, entronizados pelo paradigma da modernidade e ainda bastante presentes no contexto social, conflitavam com algumas das nossas propostas construcionistas de trabalho. Essas indagações emergentes da prática clínica nos obrigaram a buscar soluções teóricas harmônicas com nossos princípios e valores. Com esse objetivo, pesquisamos as definições de ética que melhor se adequavam às questões suscitadas nos dilemas impostos pela nossa prática clínica. Como lidar com um tema tão delicado com uma ética em construção? Como
* Essa equipe assegura o trabalho, iniciado em 2001, no então Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro, hoje Multiversa, coordenado por Rosana Rapizo e, recentemente, incorporado à parceria Multiversa/Noos, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.
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lidar com a pluralidade de realidades – as nossas, como terapeutas; as deles, como clientes; as dos clientes, como homens, mulheres e filhos frente à violência? Ainda, como lidar com as diferentes realidades criadas pelo trabalho interinstitucional? É possível fugir da demanda imposta pela violência por uma intervenção resolutiva? Podemos co-construir, em contrapartida, uma terapia que se quer conversacional, atendendo à pluralidade dos discursos que entrecruzam a prática violenta? É com essa idéia que trazemos as indagações que farão parte desse trabalho. 1. Reflexões a partir da prática
A possibilidade de refletir sobre as inúmeras questões éticas presentes em um atendimento em que há violência surgiu a partir de um caso clínico que se estendeu por cerca de dois anos. Tratava-se de um atendimento de família encaminhado pelo Hospital da Lagoa, em função dos problemas na escola e da gagueira do filho mais velho. A família, originária do nordeste, era composta por dois meninos e pelo casal, contando com vários tios e tias morando na mesma comunidade. O casal apresentava demandas opostas quanto à permanência na relação. Ele desejava permanecer e ela tinha muito medo, mas desejava separar-se. Casaram-se muito jovens, no nordeste, e desde lá o relacionamento foi sempre marcado por muita violência. Nos últimos tempos, a violência recrudesceu com o aumento de ciúmes e desconfianças, redundando em ameaças de morte a ela e aos filhos. A violência era explícita e de ambos os lados. Enquanto ele era muito rude, com dificuldade
de abstrair e refletir sobre si mesmo e a própria vida, ela era muito comunicativa e intermediava – na realidade, ‘lia’, pois ele era analfabeto – o mundo para ele. As características específicas deste caso nos levaram a diferentes e variados movimentos, na tentativa de interferir na dinâmica já tão engessada dessa relação. Essa movimentação levou-nos a procurar recursos em outras instituições e, também, a flexibilizar o formato dos atendimentos. Dentre os recursos utilizados, tivemos a ampliação da rede institucional, com encaminhamento para os grupos reflexivos de homens e de mulheres do Instituto Noos; a ampliação da rede familiar por meio de contatos telefônicos e a utilização de diferentes formatos (recortes), respondendo aos diferentes momentos da terapia. A multiplicidade dessa abordagem causou inúmeros impasses no que dizia respeito ao manejo da informação demandando movimentos novos. Esses movimentos foram antecedidos por profunda reflexão em função das questões éticas por eles precipitadas. Qual é a extensão do sigilo entre as equipes? O que fazer com os segredos individuais compartilhados com a equipe terapêutica quando o casal era atendido separadamente? Como lidar com a dupla inserção de alguns profissionais da equipe presentes no grupo reflexivo do Noos e no sistema terapêutico? Todas essas dúvidas e inquietações nos levaram a refletir sobre qual é a ética que norteia a nossa prática. 2. Conceitos de Ética e Moral
A ética é um campo de estudo altamente controverso e absolutamente essencial. Diversos autores identifi-
cam ética com moral tratando ambos os termos como sinônimos. Outros fazem uma distinção clara entre esses conceitos. A questão que se esboça é: de que concepção de ética estamos falando? Segundo Moore1, ética é uma palavra de origem grega, com duas origens possíveis. A primeira é a palavra grega éthos, com e curto, que pode ser traduzida por costume; a segunda também se escreve éthos, porém com e longo, que significa propriedade do caráter. A primeira é a que serviu de base para a tradução latina moral, enquanto a segunda, de alguma forma, orienta a utilização atual que damos à palavra ética. Leonardo Boff contribui para a distinção desses conceitos em seu livro Ética e Moral2. Segundo ele, a ética considera as questões de fundo, os princípios e os valores que orientam a sociedade, enquanto a moral refere-se a costumes, hábitos e valores aceitos. Tomamos por base a crença de que a ética não pode ser dissociada da realidade sociocultural concreta, que valores éticos de uma comunidade são singulares, variando de acordo com o ponto de vista histórico e circunstâncias determinadas. A ética leva-nos a refletir sobre os valores que priorizamos, o sentido dos atos que praticamos e as responsabilidades que assumimos. 3. Premissas para o trabalho com violência
Quando trabalhamos, o fazemos norteadas por um princípio ético claro: somos contrárias à violência e não compactuamos com ela. Entretanto, como abrir espaço para a multiplicidade de discursos – pressuposto fundamental da visão construcionista
– mantendo, ao mesmo tempo, uma postura que, de antemão, é contrária à violência? É o próprio construcionismo que nos possibilita reconhecer as articulações e os caminhos que levaram ao ato violento sem, contudo, legitimá-lo. Por meio do acolhimento dos diferentes discursos, criamos um espaço protegido de julgamentos e curioso a respeito da teia de significados que validam a prática violenta. Uma das hipóteses que construímos é a de que a violência surge da dificuldade de conexão com alguns sentimentos ou da escassez de recursos para lidar com eles, levando a comportamentos mais reativos. A partir daí, a criação de um espaço reflexivo propicia o contato com outras formas de lidar com os próprios sentimentos, possibilitando maior flexibilidade no manejo dos relacionamentos. Entendemos que a violência se constrói no processo relacional do qual participam todos os envolvidos, assim, não privilegiamos o lugar de autor ou vítima. Buscamos priorizar o processo como um todo, sem deixar que a ênfase recaia sobre o fato violento, cujas explicações, em geral, têm vínculos com a moral e não com a ética. As respostas que surgem como justificativas para os atos violentos (se perguntássemos “por quê?”) são da ordem do dever ser, são respostas a expectativas normativas, ficando limitadas à moral. Evitamos perguntas lineares que levem a respostas de causa e efeito que possam, porventura, validar a violência praticada. 4. Questões éticas na prática clínica
Os atendimentos a famílias em situação de violência impõem diversos di-
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lemas de ordem ética que nos convidam, cotidianamente, a rever posturas já consolidadas no exercício da nossa profissão. Embora as versões contraditórias – bastante recorrentes quando há violência – convidem o sistema terapêutico a tomar partido, temos o cuidado de manter a coerência com os referenciais teóricos que nos orientam. Dessa forma, procuramos focalizar outros aspectos do contexto, o que ajuda o terapeuta a não ficar polarizado em nenhuma das versões. Essa ênfase no processo convida o casal ou a família a incluir o enfoque reflexivo, com contornos éticos, e não o enfoque investigativo, que busca culpados e inocentes, com contornos moralistas. Também o lugar de testemunha que o terapeuta e a equipe passam a ter para essas famílias é de grande importância. O espaço terapêutico possibilita, por sua própria estrutura, a presença de testemunhas ouvindo histórias que, em geral, são mantidas em sigilo. Essa possibilidade tende a ajudar o casal ou a família a ter mais clareza e a (re)conhecer melhor as suas diferentes versões sobre o que está acontecendo, de forma a poderem tornar-se autores de sua própria história. Em relação ao caso que atendemos, as versões contraditórias eram inúmeras, principalmente, no início do processo – ela entendia que ele era o responsável por todas as situações conflitivas que viviam: seu ciúme desmedido e fantasioso, seus freqüentes descontroles gerando agressões físicas, sua instabilidade profissional que a fazia, cada vez mais, sair de casa para trabalhar (vendendo cosméticos na comunidade onde morava), gerando mais ciúmes e desconfian-
ças. Ela entendia que deveriam separar-se, embora tivesse muito medo das repercussões disso e dos desafios que teria de enfrentar na criação dos dois filhos. Ele aceitou participar do processo terapêutico para tentar resgatar o casamento, entendia que ela lhe dava motivos suficientes para que desconfiasse de sua fidelidade: ficava muito tempo fora de casa, conversava com muitas pessoas da comunidade (homens e mulheres), era muito receptiva com desconhecidos e muito arredia com ele. Também entendia que, devido a essa situação conflitiva do casamento, não conseguia “ter cabeça” para manter-se nos empregos. Focalizar outros aspectos da relação do casal, além daqueles que ambos sempre traziam como motivo para as dificuldades, permitiu que pudessem refletir sobre outros fatores que também faziam parte do cenário e que não estavam sendo considerados – a vinda do casal do nordeste, ainda jovem, para tentar a vida no Rio de Janeiro trouxera problemas novos: para ele, saindo da posição de cônjuge mais experiente e provedor para a posição de homem com dificuldade de se colocar profissionalmente, necessitando da renda da mulher para compor as despesas da família e, além disso, tendo que conviver com valores bem diferentes no que se refere ao lugar do masculino e do feminino na sociedade; para ela, tornando-se mulher e mãe, a possibilidade de abrir um espaço de trabalho que conjugasse sua necessidade financeira à criação dos filhos e à construção de uma nova rede social tornou mais fácil a adaptação às drásticas mudanças culturais. Trazer para reflexão a situação dos filhos como expectadores dos difíceis
momentos vividos pelo casal, pensar nas conseqüências disso, bem como avaliar seus projetos de futuro como indivíduos e como casal, entre outras coisas, propiciou uma visão mais abrangente, menos linear, ajudandoos a redimensionar a importância de muitas situações vividas. A possibilidade de haver risco de vida para algum dos membros da família, sem dúvida, mobiliza toda a equipe com relação ao estabelecimento dos limites de seu campo de ação. Acreditamos que, em alguns casos, a avaliação desse risco indique a necessidade de encaminhamento para a esfera legal. Quando julgamos que há risco, mesmo que esse possa prescindir da esfera legal, utilizamos a ampliação da rede, o que atenua o perigo de a equipe tomar para si uma responsabilidade que ultrapassa seus limites profissionais. Diferentes equipes podem fazer face a diferentes necessidades. O trabalho vinculado a uma instituição – no caso, o Multiversa – garante a possibilidade de contar com uma equipe e dialogar com outras instituições – neste caso, o Instituto Noos. Os grupos reflexivos do Noos para homens e mulheres em situação de violência na família oferecem um espaço de contenção e reflexão individual que complementam nosso trabalho nos casos de maior gravidade. Por entender que esse caso se caracterizava por um alto grau de risco de vida – o marido, freqüentemente, declarava (inclusive, diante da equipe terapêutica) que poderia matá-la se tivesse confirmada a traição que suspeitava ocorrer –, lançamos mão de diferentes recursos: atendemos em equipe, indicamos que participassem dos grupos reflexivos do Noos e busca-
mos ampliar a rede familiar do casal por meio de contatos telefônicos e de convites a familiares para que participassem de alguma sessão do processo terapêutico, especialmente, quando percebíamos que o casal passava por momentos particularmente delicados. A rede familiar, muitas vezes, ofereceu a contenção que eles ainda não conseguiam ter. Esse aumento da rede tem como conseqüência o aumento da complexidade do trabalho, gerando novas e diferentes reflexões éticas. Por exemplo, a relação da família com a equipe terapêutica, desta com o agressor, com a instituição, com as demais equipes envolvidas no processo e com outros segmentos da sociedade que têm direitos e deveres de interferir quando o assunto é violência. No caso em questão, convivemos com impasses importantes. Alguns membros da equipe terapêutica coordenavam o grupo reflexivo para mulheres do Noos, para o qual a esposa havia sido, por nós, encaminhada. Assim, em certos momentos, essas profissionais tinham acesso a informações que ainda não tinham chegado à equipe terapêutica, o que provocava considerável desconforto. Fomos, então, construindo a possibilidade de compartilhar essa nossa dificuldade com o casal, reafirmando que essas duas equipes – uma do Multiversa e outra do Noos – sempre que julgassem necessário, poderiam trocar informações sobre o caso. Também flexibilizamos nossa idéia prévia sobre a forma como deveríamos tratar a questão do sigilo quando, aqui e ali, convidávamos alguns terapeutas do grupo reflexivo de homens do Noos a compartilharem conosco suas considerações e preocupações com relação
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ao caso. Em algumas circunstâncias, principalmente, quando o marido parecia muito descontrolado e ausente do grupo, combinamos com o coordenador que se comunicasse diretamente com ele, visando oferecer suporte e estimulá-lo a continuar no grupo, como um recurso para aquele momento de crise. Inauguramos assim uma forma de lidar com as diferentes realidades de um trabalho inter-institucional, profundamente necessário em situações de maior complexidade, nas quais a violência inclui, de forma tão inequívoca, o risco de vida. A flexibilização no formato do atendimento terapêutico traz questões éticas quanto ao manejo dos segredos que possam surgir quando trabalhamos com recortes (o atendimento ao casal, aos membros do casal individualmente, aos filhos etc.). No caso atendido, as sessões, durante um bom tempo, incluíam invariavelmente o casal, marido e mulher. No entanto, durante o processo terapêutico, eles foram trabalhando na direção de uma possível separação que inspirava muitos cuidados. Foram propostas sessões individuais, com o objetivo de poder tratar, independentemente, demandas tão diferenciadas. O marido, por fim, passou a ver a separação como uma possível solução, embora ainda nutrisse a expectativa de que isso não fosse necessário. Já a mulher estava totalmente convencida sobre a separação, restando a necessidade de se organizar para que isso pudesse transcorrer da melhor maneira possível para todos. Tivemos que lidar com algumas questões éticas ligadas ao conteúdo trazido por eles nessas sessões individuais. Optamos, mais uma vez, por esclarecer, previamente, que,
nesse formato, correríamos o risco de passar a ter acesso a alguma informação que o outro, porventura, não tivesse e sobre a disposição de cada um deles em aceitar essa possibilidade. Historicamente, o sigilo é um dos pontos centrais da relação terapeutacliente; contudo, o atendimento a famílias, que permite novas configurações, impõe repensar essa antiga questão. Estabelecemos, como ética de trabalho, acordos prévios que incluem a forma como podemos – equipe e clientes – manejar essas questões. O sigilo, neste atendimento específico, em virtude da parceria com outras instituições, teve de ser amplamente discutido no que diz respeito a sua abrangência, a seus significados e às conseqüências em cada um dos diferentes níveis: interinstitucional, interequipe e intra-equipe.
4. Reflexões teóricas
Qualquer processo psicoterápico é coerente com determinadas crenças e construções sociais que o legitimam naquele momento e contexto. Se a ética se constitui a partir de princípios e valores, diferentes posições epistemológicas levam a diferentes posicionamentos éticos. As grandes verdades vinculadas à Era Moderna falavam de um mundo previsível, com leis universais, deterministas e reversíveis. Coerente com esse paradigma, a cibernética de primeira ordem incluía, para a compreensão de sistemas humanos, a idéia de uma realidade objetiva, ‘lá fora’, que poderia ser descrita com precisão. Isso propiciava intervenções focadas no problema e na sua solução. O terapeuta acreditava poder fazer uma lei-
tura objetiva da situação e, com isso, poderia propor intervenções que visavam solucionar o sintoma/problema. Essas certezas geravam condutas éticas bem definidas para ambos. O terapeuta sabia o que o cliente precisava modificar e o cliente estava ali para mudar a partir das orientações do terapeuta. O momento de transição entre o paradigma tradicional e a incorporação do novo paradigma da ciência vem provocar profundas transformações no modo de conhecer o mundo. Os grandes sistemas de crenças – científicos e políticos – ligados ao projeto da modernidade desmoronaram em alguma bifurcação crítica. Esses sistemas explicativo-descritivos totalizadores permitiam contar com uma visão da história, com um projeto político, com um ideal científico, com uma ética e uma estética.3
Alinhando-se com o novo paradigma da ciência, a cibernética de segunda ordem, no campo da terapia familiar, propiciou a consideração de que a realidade é co-construída e, portanto, intersubjetiva. Esses novos princípios implicam uma redefinição importante do poder e da responsabilidade do terapeuta e, conseqüentemente, significados não mais construídos unilateralmente, mas sim fruto de um processo interativo, do qual participam terapeuta e cliente. Em princípio, ao romperem-se as certezas, ganhamos novas e mais ricas interrogações. As relações entre o singular e o geral, entre o central e o periférico, o pessoal e o comum, não são hoje meras especulações filosóficas. Do tratamento que lhe dermos, das reflexões que construirmos dependerão nossos contextos para a ação e os desenhos que co-acreditamos, obturando as surpresas ou abrindo alternativas a mundos emergentes.5
A pós-modernidade trouxe consigo uma profunda contestação das verdades universais propostas pela modernidade; passamos da simplicidade para a complexidade, da estabilidade para a instabilidade e da objetividade para a intersubjetividade. Os reflexos dessa quebra de paradigmas podem ser percebidos na prática terapêutica, exigindo profundas mudanças de ordem ética, profissional e, mesmo moral.
Segundo Rapizo, referindo-se à cibernética de segunda ordem, “o processo de ‘conhecer o conhecer’ torna a reflexão ética inescapável.”6 É certo que a valorização das diferentes narrativas que surgem no contexto terapêutico, legitimadas como descrições intersubjetivas da percepção do mundo, criam infinitas realidades, que, por sua vez, impõem diferentes reflexões éticas. Como afirma Goolishian,
No campo da psicologia, e em particular na psicoterapia, perdemos a ilusão ligada à modernidade de poder contar com uma narrativa ou um tipo de discurso capaz de prover um roteiro unitário, um desenho homogêneo para os vários espaços existenciais da vida contemporânea.4
os terapeutas agora devem lidar com preocupações éticas que encarem a pluralidade das realidades. As realidades que existem, os vários mundos que existem, nessa visão hermenêutica são muito mais do que meras fabricações lingüísticas, simples distinções cognitivas, ou histórias facilmente mutáveis. [...]
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a terapia e a ética demandadas por este pluralismo são muito diferentes da ética demandada pelas terapias anteriores.7
não há mais metanarrativas a serem alcançadas que nos guiem em nossa prática ou orientem nossos métodos. A terapia ética e competente está sendo traduzida em uma tapeçaria multicolorida de idéias, crenças e significados. Este pluralismo nos deixa sem um tom, padrão ou método único que possa nos guiar. Na era pós-moderna da terapia, não há uma ética única ou universal. Ao invés disso, há múltiplas camadas de um conjunto complexo de considerações éticas que mudam de conversação para conversação, de contexto para contexto. 9
A transição do paradigma moderno para o paradigma pós-moderno trouxe uma profunda transformação, que se refletiu em todos os níveis da prática clínica. No que diz respeito a essas transformações, o próprio Goolishian enfatiza o abandono do lugar de poder, antes ocupado pelo terapeuta: Os terapeutas mais co-criam as conversas com as pessoas do que são interventores que fazem coisas com as pessoas. A terapia se torna um processo igualitário e colaborativo. Em oposição a um processo hierárquico e de expert. A expertise do terapeuta é estar em conversação com a expertise do cliente. Essas mudanças criam um mundo inteiramente diferente de terapia e também criam um novo grupo de questões éticas, profissionais e morais.8
Entendemos, então, que uma ética coerente com o paradigma pós-moderno precisa ser construída a partir de acordos interrelacionais que dêem conta das transformações constantes, impostas por uma visão calcada na intersubjetividade e na complexidade.
5. Considerações finais
Quando admitimos a visão construcionista, percebemos que a ética não é única, nem histórica ao processo; ela se dá nas conversações e nos encontros terapêuticos, nos quais novas redes de significados vão impondo novas preocupações éticas. Como afirma Goolishian,
Na nossa prática clínica, embora tenhamos um norteador claro – que é o de não legitimar a violência como forma de relação –, orientamos nosso trabalho pelo que Leonardo Boff denominou uma ética humanitarista, o que nos permite conviver com as contradições e nos enriquecermos com elas. Segundo ele, “(...) duas forças sustentam uma ética humanitarista: a ternura e o rigor. A ternura é o cuidado com o outro, o gesto amoroso que protege. O rigor é a contenção sem a dominação, a direção sem a intolerância”. 10 Dessa forma, conseguimos flexibilizar nosso trabalho, podendo, assim, transitar por um assunto tão árido e cheio de aparentes dilemas éticos sem que isso nos paralise. A ética que privilegiamos é, então, construída, desconstruída e reconstruída sempre que o contexto nos impõe novos desafios. 6. Referências bibliográficas
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artigo
Histórias de famílias que têm filhos em abrigos Stories of families with children in shelters
Maria Amalia Faller Vitale Doutora em Serviço Social pela PUC/SP; professorasupervisora pela Federação Brasileira de Psicodrama; pesquisadora da Associação de Pesquisadores de Núcleos de Estudos da Criança e do Adolescente/ NECA; terapeuta familiar psicodramatista.
* Foram realizados quatro genogramas, tendo participado ainda como pesquisadoras nesta etapa e interlocutoras das reflexões aqui apresentadas: Dalva Azevedo Gueiros e Maria Beatriz Amado Sette. ** Coordenação: Eunice Fávero (UNICSUL), Maria Amalia Faller Vitale (NECA) e Myriam Veras Baptista (NCA/PUC-SP).
Resumo: Neste artigo, pretende-se delinear alguns aspectos de pesquisa qualitativa, realizada por meio de genograma, com famílias que têm filhos abrigados no Município de São Paulo. A pesquisa faz parte de conjunto mais amplo que inclui três projetos integrados e que foi desenvolvido em parceria entre instituições universitárias e de pesquisa, abrigos e famílias. A construção conjunta do genograma – tecida na relação família e pesquisadora – permitiu a aproximação das histórias familiares e das interpretações da própria família acerca de seu movimento. Ao longo das gerações, formam-se as encruzilhadas que podem afetar as crianças em seu direito à convivência familiar.
Abstract: This article tries to delineate some aspects of the qualitative research made by the genogram with families with children protected by the São Paulo City Council. The research is part of a wide project that includes three other projects developed in partnership with university researchable institutions. The construction of the genogram – built between family and researcher – permitted the approximation of their life histories and their interpretations about these movements. Some cross-ways of life through out the time may affect the children in their wrights for the familiar conviviality.
Palavras-chave: família; abrigo; geração; pesquisa; genograma.
Key-words: family; shelter; generation; research; genogram
Como vivem, o que sentem, o que demandam as famílias que têm filhos em abrigos no município de São Paulo? O inegável reconhecimento da importância das famílias para crianças e adolescentes abrigados contrasta com o silêncio ou a precariedade de diálogo com essas famílias. A idéia norteadora desta pesquisa foi dar voz às famílias que têm filhos abrigados. O esforço para seu desenvolvimento converteu-se em três projetos integrados de investigação. O primeiro procurou delinear os contextos em que viviam as famílias, com base no levantamento de dados socioeconômicos conjunturais. Os outros pautaram-se em uma abordagem qualitativa, por meio do genograma e de reuniões grupais que pretenderam facilitar a expressão dessas famílias, construída na relação pesquisador e pesquisada. O genograma centrou-se na história familiar, e as reuniões grupais, na relação da família com as políticas sociais. Este texto focaliza somente pequena parte da pesquisa realizada por meio de genogramas*, sendo apresentado somente um deles. Cabe ressaltar que a pesquisa foi desenvolvida em parceria com**: • NCA/PUC-SP – Núcleo da Criança e do Adolescente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. • NECA – Associação de Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente.
• UNICSUL – Universidade Cruzeiro do Sul. Mestrado em Políticas Sociais. Linha de pesquisa: Políticas sociais, famílias e desigualdades sociais. O projeto teve o apoio da Corregedoria-Geral da Justiça/Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Assessoria à Justiça da Infância e Juventude. Integram os contextos colaborativos, de modo decisivo, alguns abrigos do município de São Paulo* e as famílias com filhos abrigados. Refletir sobre a família exige o reconhecimento de que essa é uma realidade sócio-histórica – portanto, em constante transformação –, compondo uma rede complexa de significados. Assim, é aqui percebida como uma questão em aberto. O desenvolvimento de pesquisa que pretenda dar visibilidade a aspectos de uma temática tão desafiadora, como a família que possui filhos em abrigo, pela ótica da própria família despertou uma primeira inquietação: como facilitar a aproximação das histórias familiares? O genograma emergiu como recurso metodológico criativo e diferenciado, que poderia trazer à tona as construções acerca das histórias familiares. Esse instrumento está incorporado em nossa prática com famílias. A familiaridade com o seu emprego também foi decisiva para a escolha. O genograma, conhecido por aqueles que trabalham com família, é um instrumento que ajuda a compreendê-la pelo vértice do percurso intergeracional.Constitui um formato gráfico em que a genealogia familiar, nas linhas gerais paternais e maternais, é representada por símbolos.
Dele recolhem-se informações sobre os membros da família e suas relações ao longo de pelo menos três gerações1. Vale lembrar que as gerações, por sua vez, são portadoras de história e estão articuladas umas às outras. As relações intergeracionais representam a família em sua dimensão temporal. Por meio do genograma, é possível construir, em conjunto com as famílias, suas histórias de vida, suas trajetórias e suas interpretações acerca desses movimentos. Ele possibilita, assim, a tessitura, com a família, de dados relativos à demografia, à estrutura, às alianças intergeracionais. Questões mais complexas, como modelos vinculares, tradições e crenças, e rupturas familiares, também emergem no decorrer da elaboração do genograma. Ele facilita, ainda, a identificação de eventos significativos e/ou estressores ao longo do percurso de vida familiar. Nessa direção, é possível obter uma interpretação subjetiva da história da família, construída por ela própria na relação dialógica com o pesquisador. Nesse processo, cada família atribui significados compartilhados a sua história e à experiência vivida e, assim, expressa a singularidade de seu mundo, criado e recriado em seus contextos de pertencimento. O genograma tem sido bastante utilizado por terapeutas familiares na prática clínica, mas também vem sendo empregado, mais recentemente, de modo proveitoso, na pesquisa em outros contextos (não clínicos), sobretudo, entre os que consideram a família pelo ângulo da rede relacional entre gerações. Segundo Marques2, o uso desse instrumento contribui para a construção de interpretações tanto no plano horizontal, referente às condições atuais
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* Os abrigos não serão especificados, tendo em vista preservar as identidades dos pesquisados.
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da família, quanto no plano vertical, relativamente à história familiar. Os pesquisadores3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 que o empregam destacam a pertinência dessas duas dimensões (horizontal e vertical) quando se trata do estudo da família, assim como a riqueza dos depoimentos obtidos, tendo em vista os diferentes temas investigados. No caso desta pesquisa, o genograma foi escolhido como ferramenta para se aproximar, pelo interior, das histórias da família na perspectiva intergeracional, que é própria do grupo familiar. Os participantes, por meio dele, evocaram a memória familiar, na medida em que cada memória individual é um ponto de vista sobre a família e um processo constante de interação com a vida social. Assim, facilita-se o cruzamento entre o tempo individual, familiar e coletivo. Com base nessa memória, que também é afetiva e relacional, as famílias resgataram as pontes intergeracionais que dão sentido a suas histórias. Estas revelaram as relações que se correlacionam no tempo e por meio de eventos interligados. Esse conjunto configura os elos construídos entre as gerações em que as famílias participantes que têm filhos abrigados inscrevem suas vivências, seus pensamentos, seus sentimentos, suas demandas... O genograma apresentado a seguir foi construído com a colaboração da mãe de crianças abrigadas, considerada representante da família, que já havia participado da primeira fase da pesquisa (identificação dos contextos socioeconômicos). Nessa fase inicial, ao finalizar o levantamento de dados, a pesquisadora convidava alguns dos entrevistados (que se mostravam mais disponíveis) para participar, em princípio, de uma segunda etapa da investigação, oferecendo explicações
sobre esse novo momento da pesquisa e sobre os próximos pesquisadores. Caso aceitassem participar dessa segunda etapa, era estabelecido o contato entre as pesquisadoras e os possíveis participantes, de modo a concretizar o segundo passo investigativo. Avaliamos essa forma de encaminhamento de maneira positiva, já que facilitou a aproximação entre pesquisado e pesquisador e permitiu a ambos deterem algumas informações mínimas iniciais para dar continuidade ao projeto. O processo de elaboração do genograma, nesta pesquisa, suscitou algumas reflexões que gostaríamos de compartilhar. A relação entre pesquisadora e pesquisada ganhou concretude a partir do genograma e, assim, estabeleceuse o diálogo. Na construção – em conjunto com a participante convidada – do formato gráfico dos dados familiares, a pesquisadora ficou implicada na história intergeracional. Além disso, a atividade conjunta, que requer folha de papel, lápis, borracha e caneta, adquire um caráter lúdico, que favoreceu a troca entre pesquisadora e pesquisada. Como o genograma é um facilitador do resgate da história familiar para e pela própria família, em pouco tempo, um rico cenário intergeracional foi sendo composto. Além do mais, por meio desse instrumento, a família ganhou destaque não só como núcleo atual, mas também como rede horizontal e vertical. Classe social, geração, gênero, trabalho, religiosidade, eventos estressores significativos, percurso de vida, entre outros, são mediações que emergem na relação pesquisadora-pesquisada e, portanto, na construção e interpretação do genograma.
Para o aproveitamento dessa ferramenta na pesquisa, nossa experiência sugere a sua realização em pelo menos dois momentos: na construção gráfica e de resgate da história intergeracional, e no aprofundamento de algumas questões com os participantes da pesquisa e estes, com o pesquisador. O genograma da Família Santos
O genograma foi construído com a colaboração de Marina, mãe de duas crianças abrigadas, e será apresentado em duas partes: I. Formato gráfico, seguido de observações gerais com base nas principais categorias apontadas por McGoldrick & Gerson1. II. As interpretações de Marina, portavoz da história familiar, emergidas
no decorrer da construção do genograma.
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Essas interpretações foram organizadas por recortes extraídos do discurso de Marina, desenhados por esta pesquisadora, e alinhavados na interlocução com autores que têm refletido sobre famílias em situação de vulnerabilidade. Todavia, a riqueza existencial contida nos depoimentos, por certo, não será desvelada. O que se pode é apenas apresentar uma versão, um lado da história, que não se encerra em si mesma, nem se esgota neste relato. E mais: ao apresentar esses recortes, há certo pudor, como tão bem aponta Velho11, “(...) pudor necessário quando se lida e fala da vida de outras pessoas, mesmo protegidas pelo anonimato” (p.10).*
I – Genograma Maria
José
Família Santos
irmão irmão adotivo adotivo
Linei
João ?
Júlio desaparecido
Mirtes
Márcia
Vera
Marli
Marta
Lia Mário
Luiz preso
Paula Pedro
Lúcia Lucas abrigada abrigado
Marina
* Observa-se que há um termo de consentimento livre e esclarecido. Os nomes apresentados são fictícios.
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O genograma inclui quatro gerações – apenas na linha materna, pois não há informações sobre a linha paterna – e mostra, como evento significativo do percurso de vida familiar, o processo de migração de membros da família. A trajetória da família iniciou-se com sua saída de Pernambuco em direção a São Paulo, passando pela Bahia. Esse movimento deu-se, principalmente, a partir da geração intermediária. Foi destacado, como evento estressor, ainda nessa mesma geração, o desaparecimento do pai de Marina. Com relação à estrutura e à organização familiar, o genograma revela separações, por razões diversas, bem como recasamentos em todas as gerações. Não são apontadas mudanças relevantes com relação ao número de filhos ao longo das gerações. A distribuição de gênero por geração revela maior número de mulheres na geração mais velha e nas intermediárias. Com relação à geração mais nova, a situação é mais eqüitativa. No que diz respeito ao nível de escolaridade, ou seja, à instrução formal, observa-se – como tendência – a predominância do nível médio em, pelo menos, três gerações. Não se tem informação sobre a escolaridade da geração mais velha. Com relação à geração mais nova, verifica-se que a filha mais velha de Marina tem nível universitário incompleto e as crianças estão no ensino fundamental; a adolescente (filha da irmã de Marina) está no nível médio. No que concerne à religiosidade, observa-se o predomínio da religião evangélica nas gerações intermediárias. Em termos de situação ocupacional, os homens apresentam ocupações definidas, em três gerações, enquanto as
mulheres, quando trabalham, encontram-se em situações tanto informais (mãe de Marina e a própria Marina) quanto formais (irmãs de Marina). Há morte de crianças na geração mais velha e na intermediária. O genograma aponta ainda transtornos de ordem psiquiátrica em duas gerações (avó e mãe de Marina). Dados como datas de nascimento, casamentos e separações não aparecem no genograma, ora pela dificuldade em obter essas informações (há imprecisão sobre os dados), ora para proteger a identificação da família investigada.
II – Interpretações e interlocuções As interpretações de Marina O percurso intergeracional: perdas, separações e rupturas Meus avós maternos eram de Pernambuco. Meu tio João foi o primeiro que veio embora para São Paulo. Não deu mais notícias. Não se sabia nada dele. [...] Muito tempo depois, minha mãe soube que ele casou aqui, mas não tinham contato. Lá com meus avós ficou uma tia. Quando ela morreu, minha avó ficou com minha mãe. Meu avô abandonou minha avó; ele tinha outra. Ela [avó] falava assim: que ele abandonou. Ele [avô] teve cinco filhas com a [outra] mulher. Meu pai estudou para contador; não encontrava trabalho lá na Bahia. Ele veio com minha mãe para São Paulo. Tinha um emprego aqui. Um dia ele saiu e não voltou mais. Minha mãe procurou por tudo. Não soube mais dele. Ela foi até no programa de TV do Jacinto Figueira
(que anunciava gente que desaparecia). Eu me lembro muito bem: ela me levou junto e o Jacinto falava: seu Júlio, o senhor tem uma filha tão linda. Volta, seu Júlio! [...] Não paramos para pensar sobre o que aconteceu. Minha mãe (mas ela devaneava muito) dizia que ela tinha visto ele na rua e que ele estava rico. Acho que era tudo devaneio dela, não acreditamos muito nela; minha mãe tinha problemas psiquiátricos. [...] Não sei o que ela tinha, falavam em menopausa precoce... Minha avó também tinha problemas psiquiátricos, ela foi internada. Quando o pai desapareceu, minha mãe não pôde pagar as prestações e foi perdendo tudo. Me lembro do rapaz que veio buscar o fogão. Ela disse: “estou esquentando o leite das filhas”. Ele deixou esquentar o leite, ficou esperando e depois levou o fogão. Passamos fome – me lembro de comer só chuchu. Minha mãe procurou o pastor evangélico e ele arrumou um emprego de doméstica na casa de um irmão (de comunidade) viúvo. Ele tinha dois filhos: uma menina (13 anos) e um menino (15 anos). Com o tempo, eles gostaram um do outro e casaram. Nós [irmãs] tínhamos cinco, seis, oito anos (mais ou menos). Eles casaram e nós [filhas] fomos morar com ele. Como ele era evangélico, queria legalizar [...]. Mas a menina [filha dele] nunca aceitou, achava que minha mãe queria ficar no lugar da mãe dela. Isto perdurou para o resto da vida. O lugar da mãe dela teria que permanecer sempre vazio. Com o menino, minha mãe não teve problemas. Minha mãe e meu padrasto tiveram um filho, mas ele morreu pequeno.
Até a casa que meu padrasto deixou para minha mãe... Infelizmente, ele morreu antes de deixar o inventário, mas ele falava de boca e todo mundo sabia que ele construiu a casa para deixar para ela. Ele dizia: “para ela ficar com as meninas”. Quando ele morreu, ela [filha] tirou tudo, passou tudo para ela, até do irmão ela tirou. Ficamos um tempo na casa, nós e o filho dele. A filha já estava casada. [...] Ele [filho do padrasto] era doente, nós cuidávamos dele; ela não cuidava do irmão. Ela pegou todos os documentos quando o pai dela faleceu. Passado um tempo, o irmão faleceu; ela pagou dois advogados para tirar a gente da casa e conseguiu. Minha mãe foi casada com esse homem vinte e cinco anos. Ela não teve nenhuma consideração. Minha mãe faleceu ainda dentro da casa durante o processo. Meu padrasto deixou pensão para minha mãe e minha irmã caçula deficiente física. Eu tinha me casado e permaneci na casa. [...] No fim, acabamos saindo também [devido às pendências judiciais]. Quando casei, eu queria trabalhar, mas meu marido não queria. Só se a mãe dele olhasse as crianças. Ela aceitou. Minha sogra olhava meus filhos. Eu pagava um salário para a minha sogra, ela olhava muito bem. Mas o casamento não ia bem e me separei. Ele voltou para a casa da mãe e minha sogra falou para olhar os filhos na casa dela. Ela morava longe; antes meu marido levava ela de carro. Depois as crianças acabaram ficando lá. Casei de novo, mas não deu. Ele era violento, a família dele se metia. Fui morar com a sogra e a irmã dele. Foi um in-
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ferno. Ele foi preso. Não deu certo com a família dele (ainda mais quando ele foi preso) e fiquei sem casa. Foi assim que acabei trazendo meus filhos para o abrigo.
O genograma revela o percurso intergeracional marcado por rompimentos. A figura masculina é apresentada por Marina como propulsora de rupturas, ‘abandono’, migração, desaparecimento, morte ou prisão. As separações e as rupturas – ao longo do percurso de vida familiar – aparecem associadas à ausência de trabalho ou a empregos instáveis das mulheres. Nessa condição, elas se tornam chefes de família em alguma etapa do ciclo de vida. As ‘mães sós’ emergem nas três gerações da família de Marina. Esses aspectos, conjugados, configuram uma situação de vulnerabilidade. As mulheres – na tentativa de superar a fragilidade – transitam de uma casa familiar para outra: a mãe para a casa da filha e/ou para a casa de um novo parceiro ao longo das gerações. Nessa trajetória, perdas e ganhos domésticos e relacionais são contabilizados. Por vezes, os fios da rede intergeracional vão se apartando, como ocorre com a linha paterna da família de origem de Marina. O processo de rupturas reordenou ainda o lugar das crianças. A geração intermediária cresceu sob o ‘abrigo’ do recasamento da mãe de Marina, em termos de espaço doméstico e relacional. A casa advinda desse casamento, no entanto, nunca foi apropriada pelo núcleo original de Marina. No contexto intergeracional, as separações de Marina se apresentam como as únicas aparentemente movidas, principalmente, pela mulher. No segundo casamento de Marina, há ainda uma
configuração multifamiliar, envolvendo várias gerações no mesmo espaço da casa. Todavia, a geração mais nova (os filhos desse casamento de Marina) não pôde manter-se no núcleo familiar. As crianças foram abrigadas de fato. O abrigo aparece, quem sabe, como saída quando não há para onde uma mulher transitar com seus filhos diante dos processos de ruptura. “Dadas as dificuldades que uma mulher pobre enfrenta para criar seus filhos, a tendência será lançar mão de soluções temporárias a fim de contornar a situação, entre as quais está a possibilidade de que os filhos fiquem com o pai”12 (p. 32). Nesse caso, podese acrescentar também que o abrigo mostrou-se, em princípio, como solução temporária na vida de Marina e seus filhos. Na verdade, as duas situações – filhos com o pai e filhos em abrigo – estão presentes. O primeiro marido de Marina esteve vinculado aos cuidados com os filhos, tendo assumido, inclusive, a guarda deles – entendendo-se cuidado, aqui, na dimensão relacional e para além do papel de simples provedor. Em síntese, as instabilidades do mundo do trabalho, a ausência de uma moradia, de uma sede da família, aliadas às formas de convivência, apontam para o redesenhar contínuo das fronteiras familiares, como bem revela a história da família de Marina. Esse percurso, entretanto, não esvazia o sentimento de família. Figuras paternas: lembranças Tenho lembranças boas do meu pai. Lembro que um dia, pouco antes dele desaparecer, ele foi numa joalheria e comprou uma correntinha para cada uma de nós. Lembro dele estudando muito.
Da família do meu pai, não sei nada, não tenho lembranças. O meu padrasto era evangélico, era muito rígido, mas ele foi um homem bom com a gente.
É importante ressaltar que a figura masculina é considerada central na trama intergeracional, seja pela sua ausência (voluntária ou involuntariamente), que favorece os processos de ruptura e perda, seja pela sua presença no imaginário familiar no lugar de pai/padrasto. O homem ausente tem uma voz viva na história familiar. Trabalho: o percurso da situação ocupacional Pai contador: Meu pai estudava muito. Lembro dele estudando – se formou contador. Em São Paulo, trabalhou numa firma boa, perto do Hospital das Clínicas.
Mãe dona-de-casa/doméstica: Minha mãe, no começo, não trabalhava. Quando ela ficou sozinha, falaram para ela: tem que procurar emprego de doméstica. Não tinha outra coisa para ela fazer.
Padrasto: Tinha distribuidora de alimentos. Depois que se aposentou, construía casinhas.
As irmãs: Minhas irmãs estão empregadas. Uma trabalha como auxiliar de almoxarifado e a outra tem um trabalho numa escola.
Marina: Trabalhei em escritórios, como auxiliar. Eram serviços temporários. Hoje faço apoio de eventos. Faço bicos. Trabalho doze horas à noite, para ganhar 40 reais.
Isto quando tem algum evento. Volto de madrugada.
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Primeiro marido de Marina: Meu primeiro marido era autônomo em setor de serviços. Ele tem, hoje, um bom trabalho, deu tudo para os filhos. Ela está na faculdade, ele [ex-marido] pagou boas escolas.
Segundo marido de Marina O segundo era trabalhador, tinha carteira assinada. Depois se envolveu com roubo [...], ele está preso.
Os homens têm ocupações mais bem definidas, em três gerações, como assalariado (o pai de Marina), proprietário de pequeno negócio (padrasto), prestador de serviços (primeiro marido de Marina) e, num primeiro momento, assalariado (segundo marido). Já as mulheres oscilam entre situações informais e/ou precárias – como é o caso da mãe e da própria Marina – e formais, mas de menor remuneração – como as irmãs de Marina. A desigualdade da situação entre homens e mulheres torna-se aguda ou revela-se quando as rupturas ocorrem por separações ou mortes. As mulheres tornam-se, em algum momento, chefes de família, com todas as implicações que essa condição suscita no que se refere aos cuidados dos filhos. No caso de Marina, os efeitos dessa condição passam a ser minorados para os filhos quando o pai possui uma situação socioeconômica mais estável que se contrapõe às dificuldades maternas. Os dados do genograma revelam a assimetria da condição de trabalho entre homens e mulheres. A baixa qualificação profissional exclui as mulheres dessa família de uma situação mais estável e consolida a vulnerabilidade.
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Rede familiar/rede de ajuda: um sistema que torna a vida possível Interajuda feminina Minha ex-sogra (sempre gostei muito dela), ela me ajudou muito com os meus filhos. Se minha mãe estivesse viva, eu não teria meus filhos abrigados. Ela não deixaria os netos. Ela me ajudaria. Com as minhas irmãs tenho contato; uma é solteira, a outra tem uma filha, mas nunca casou.
Rede/religião O pastor [evangélico] ajudou minha mãe, deu um tipo de cesta básica e arrumou o emprego de doméstica para um irmão viúvo. Foi uma irmã que me falou da alternativa do abrigo. Sou evangélica, a religião está me ajudando. Laços fraternos Meus filhos vêm direto visitar as crianças. No fim de semana, às vezes, fico direto com os pequenos na casa de meu ex-marido. As crianças dão presentes para eles. Os pequenos têm um amor pelos grandes. Quando é um feriado, eles vão lá. Rede pública Tem uma coisa que eu fico pasma. A primeira vez que meu marido foi preso, ele tinha carteira assinada. Ele ganhava auxílio-reclusão na prisão que era muito maior que o salário dele trabalhando. Tudo bem, a família não tem nada a ver, mas... Porque uma mãe trabalha, tem que abrigar os filhos. Os benefícios do governo... tem tanta sacanagem... conheço gente que não precisa e recebe.
Eu já fui atrás desses programas e não tenho nada.
A rede familiar integra inúmeras práticas e diversas composições por gênero e geração. Todavia a rede de parentesco se destaca: “As dificuldades enfrentadas para a realização dos papéis familiares no núcleo conjugal, diante de uniões instáveis e empregos incertos, desencadeiam arranjos que envolvem a rede de parentesco como um todo, a fim de viabilizar a existência da família”12 (p. 29). A rede feminina e de parentesco constitui a principal referência de ajuda para a mulher, no caso de Marina. As avós (vivas ou mortas) têm seu papel na história da família. No plano concreto, a sogra de Marina foi importante não só nas relações afetivas com os netos, mas também nos cuidados e na educação das crianças. No plano do imaginário, a mãe de Marina tem um papel atribuído – ela asseguraria a identidade e a coesão do grupo familiar da filha: “Se minha mãe estivesse viva, eu não teria meus filhos abrigados”. A rede da família de Marina materializa-se, ao longo das gerações, mais por colaboração do que por afinidade. Os homens, embora tenham alguma força simbólica, tendem a ter pouca participação nas práticas cotidianas de cuidados e de socialização dos filhos. A rede de apoio múltiplo emerge como preponderantemente feminina. Os “laços esgarçados”12, concretizados por meio do abrigamento dos filhos, advêm, basicamente, das tensões e dificuldades que a família de Marina enfrenta para encontrar respostas às demandas e às formas de ‘ruptura’ que se apresentam em seu cotidiano, no decorrer do seu percurso de vida.
Esses laços desenham não só o núcleo familiar com ausência paterna, mas a rede que se fragiliza. No caso de Marina, pode-se acrescentar que a rede formada pela comunidade religiosa aparece também como decisiva no encaminhamento de soluções para problemas do dia-a-dia (especialmente, nas duas gerações intermediárias). Essa rede parece ter amplitude no que se refere ao tamanho e, portanto, gerar um sistema mais amplo de trocas e de influências no indivíduo; quando se trata de Marina, oferece um sentido de pertencimento que foi desfeito ou perdido ao longo da sua trajetória7, mas fundamental para fazer frente aos desafios impostos pela vida familiar. A rede de apoio familiar está, portanto, vinculada ao modo de inserção social da família. Com relação à rede fraterna – na geração mais nova –, os irmãos vivem uma realidade compartilhada em graus diversos. Seus ciclos de vida são diferentes (jovem adulta, adolescente e crianças), assim como suas condições socioeconômicas e de moradia. Todas essas condições estão ainda vinculadas ao fato de os irmãos não coabitarem, por não terem o mesmo pai. Essa situação, entretanto, não exclui a formação dos vínculos entre eles. Nesse sentido, percebe-se que os vínculos fraternos não coincidem somente com as fronteiras da casa. Na geração intermediária, ou seja, na situação de recasamento da mãe de Marina, a convivência com os filhos dos casamentos anteriores gerou, ao mesmo tempo, um sistema parcial de trocas entre os membros jovens e de disputa acirrada pelos bens do pai e do padrasto. Esse conflito está vivo na memória de Marina; revela as contradições que envolveram o arranjo familiar construído na geração inter-
mediária, bem como seu efeito para a geração seguinte. As difíceis situações vividas ao longo das gerações sinalizam que, em muitos momentos, houve ou há um enfraquecimento dos vínculos e, portanto, da própria rede. Para Marina, a relação com a rede de políticas sociais é inexistente. Os possíveis recursos colocados à disposição por essas políticas não são por ela identificados. A ausência de um sistema de proteção social mais consistente (serviço de guarda, escola integral, renda, entre outros) penaliza, mais uma vez, a mãe que está só com as crianças.
Tempo de abrigo: necessidades, demandas e representações Abrigo? Ninguém na família esteve. Nem sabia da existência de casa assim. Foi uma irmã [evangélica] que me falou quando fiquei na pior. As pessoas de fora pensam que você está curtindo a vida. Mas para a gente a sensação de impotência é muito grande. Você fica refém do próprio sistema. Você tem que ter aluguel, tem que ter uma cama. Eu só tenho uma cama de casal. Vai a assistente social, fala que eu tenho que ter uma cama para cada uma. Está cheio de criança que dorme no chão, que fica sozinha em casa, só que o juiz não sabe. Eu tenho que ter os requisitos, mas você olha o sistema. Tem milhões de desempregados. Falei para o juiz: “Excelência, tem tantos jovens desempregados, é difícil para quem tem 45 anos [conseguir emprego]”. Aqui, bem ou mal, eles comem. Tem psicólogo, tem escola, tem material, se come, tem vida saudável [muito emocionada].
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Me pergunto sobre a separação: será que fiz a opção certa? [...] Eu falo com os filhos: “aqui não está bom, eu sei, mas vocês apanhando do seu pai, tia, naquela sujeira, eu trabalhando...” Não poderia ficar lá. Eu sei que aqui não tá bom. Eles perguntam quando vão embora. [...] Vocês apanham de outras crianças, mas lá vocês apanhavam de gente grande. Têm que esperar para a gente resolver. Eu não tinha alternativa [muito emocionada]. Moro na zona quase rural, muito pobre, não tem segurança. Ficamos lá três meses juntos (eu e as crianças). A gente vai amadurecendo. Se você olhar, eu tinha a mesma história. Eu estou sem filho. Só que a diferença é que hoje estou mais amadurecida. Lá meus filhos ficaram com meu marido, esses estão no abrigo. Antes eu estava preocupada em ter companhia, hoje quero cuidar dos meus filhos.
O relato de Marina sobre sua relação com o abrigo é permeado de ambigüidades. O abrigo emerge, de um lado, como alternativa segura para o amparo das crianças e, de outro, como solução inicialmente provisória, mas que se cristaliza com o passar do tempo. A falta de recursos e a fragilidade das redes pessoal e social sedimentam a base do não ter para onde ir que afetam o núcleo mãe e crianças. Nesse contexto, o abrigo apresenta-se como uma saída concreta e viável. Na narrativa de Marina, a relação com o abrigo reveste-se da representação do fracasso e do cuidado materno: fracasso de uma mãe que acredita não ter conseguido dar conta de sua trajetória; cuidado, porque se configura como um dos poucos caminhos encontrados para fugir de adversidades
maiores e proteger as crianças. A interrelação mãe, crianças e Judiciário, por outro lado, constrói uma história cujo final é nebuloso ou, pelo menos, em aberto para todas as partes. Por essas razões, a relação entre família e abrigo só pode ser contextualizada no entrecruzamento de muitos aspectos e atores. Mais ainda: necessita ser percebida como uma etapa inconclusa do percurso de vida familiar e para além do momento atual.
Apreciações finais
Com base no genograma, procuramos expressar as interpretações atuais de uma mãe sobre sua vida familiar construída entre as gerações. Reconhecemos, mais uma vez, que a forma de exposição dessas interpretações, por certo, não revela toda a intensidade daquele momento de trocas no decorrer da construção do genograma. Todavia, como diz Velho11: “esses são os recursos que disponho neste momento” (p.58). A perspectiva intergeracional mostrou a família como uma ‘realidade’ que não pode nem ser delimitada em si mesma, nem ser vista somente pelas condições presentes. Quando uma família leva seu filho para o abrigo, ela está em seu pior momento, mas poderá ter mais competência do que apresenta na situação de abrigamento. Nesta pesquisa, de caráter qualitativo, delineou-se o movimento que desvela a composição e a estrutura familiar, o percurso de perdas e rupturas familiares, as trajetórias escolares e ocupacionais, a ausência ou fragilidade das figuras paternas, a precariedade das múltiplas redes de apoio familiares, as representações sobre o abrigo e sobre as políticas públicas e
o sentimento de família. Esses aspectos formam, ao longo das gerações, as encruzilhadas que afetam as crianças e podem levar ao abrigamento, mas também inspiram saídas e esperanças. Em que pese a reconhecida heterogeneidade própria das situações familiares, espera-se contribuir em direção à desconstrução de idéias que tendem a atribuir culpas ou estigmas às famílias, ao mesmo tempo em que as aprisionam em rótulos simplificadores. A voz das famílias que têm seus filhos abrigados por intermédio de Marina pode oferecer pistas, sinalizar indicações que aprimorem as ferramentas para o trabalho cotidiano nos abrigos, para o papel das políticas públicas e para novas interlocuções investigativas no que se refere ao direito à convivência familiar de crianças e adolescentes e, assim, abrir espaço para maior diálogo com essas famílias.
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Conversando sobre mudanças junto a uma equipe multiprofissional: uma perspectiva Socioconstrucionista Talking about changes with a multiprofessional team: a socio-constructionist perspective
Gisele Rangel Nascimento Psicóloga. São Carlos – SP
José Fernando Petrilli Filho Enfermeiro e professor assistente II – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). São Carlos – SP
Melissa Fernanda Fontana Torres Psicóloga. Ribeirão Preto – SP
RESUMO: O trabalho em equipe vem se configurando, na atualidade, como uma prática valorizada em diversas áreas; na saúde, tal realidade se faz presente, sobretudo, por meio das equipes multiprofissionais. O presente artigo objetiva relatar o atendimento a uma equipe multiprofissional de saúde e a construção de uma narrativa sobre mudanças. Foram realizados sete atendimentos, com freqüência mensal, tendo no discurso Construcionista Social o referencial teórico. A mudança de narrativa da equipe atendida foi construída, dialogicamente, por meio de eventos lingüísticos ocorridos na conversação terapêutica.
ABSTRACT: Team work has currently become a valued practice in several areas. In the health area, it is also a reality, mostly through multiprofessional teams. The present article aims at reporting the service delivered to a multiprofessional health team and the construction of a narrative about changes. Seven services were held every month, using Social Constructionist discourse as the framework. The change in the narrative of the attended team was constructed through dialogues by means of linguistic events that took place during the therapeutic conversation.
Palavras-Chave: equipe de assistência ao paciente; processos grupais; pesquisa qualitativa.
Key-Words: patient care team; group process; qualitative research.
Patrícia Bighetti Toniollo Psicóloga. Jaboticabal – SP
Terezinha Aparecida Fiorini Picolo Psicóloga. Ribeirão Preto – SP
INTRODUÇÃO
O trabalho em equipe vem se configurando, na atualidade, como uma prática valorizada em diversas áreas; na saúde, sobretudo, devido às especificidades do trabalho, às múltiplas dimensões do ser humano e do processo saúde-doença, que demandam o cruzamento de olhares entre as diferentes especialidades, por meio das equipes multiprofissionais. A equipe multiprofissional se faz presente nos diferentes espaços onde se praticam ações de saúde. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) reconhece 14 profissões de nível superior; somam-se a essas inúmeras profissões formais de nível médio que atuam na atenção a esse setor1. Na área da saúde, temos uma complexidade para o trabalho em equipe, uma vez que este implica e envolve, necessariamente, uma produção que não é material, não tem uma forma concreta, porém interfere diretamente na maneira de viver das pessoas. Além dessa produção, o trabalho em saúde também produz trabalhadores e equipe. Esta última não se faz apenas pela convivência de trabalhadores num mesmo serviço de saúde, uma vez que precisa ser construída e entendida como uma estrutura em permanente desestruturação/re-estruturação2. Essa proposta de trabalho tem sido assinalada como estratégia para enfrentar o processo de especialização na área da saúde. Assim, considera-se o trabalho em
equipe multiprofissional como uma modalidade de trabalho coletivo, em que se configura a relação recíproca entre as múltiplas intervenções técnicas, bem como a interação dos agentes de diferentes áreas profissionais, tendo, na comunicação, o elemento mediador da articulação das ações e da cooperação3. Nesse processo, que é construído e re-construído a partir do encontro de diferentes profissionais em um contexto comum, permeado por mudanças, uma gama de novos sentidos é suscitada. Assim, estes podem ser negociados e compartilhados pela equipe multiprofissional e por aqueles com quem estabelecem uma conversação terapêutica com vistas à elaboração de narrativas mais flexíveis e fluidas, acerca do que descrevem como problemático ou problema. Frente ao exposto, destacamos que o presente artigo é fruto do atendimento desenvolvido junto a uma equipe multiprofissional de saúde, durante o curso de formação em Atendimento Sistêmico a Famílias e Redes – Instituto Familiae – Ribeirão Preto/SP.
cializado em um Hospital Universitário, no interior paulista. Tal equipe é constituída por profissionais voluntários: médicos, nutricionistas, psicólogos, terapeuta ocupacional, estagiários, residentes, pós-graduandos e docentes de uma universidade pública. Ao longo do primeiro atendimento foi construído o pedido junto à equipe; assim, foi explicitada a narrativa acerca de mudanças no contexto de atuação e das dificuldades que vinham enfrentando.
Objetivo
A partir de onde ‘olhamos’: o referencial teórico Adotamos, para a conversação com a referida equipe, o discurso Construcionista Social. Situado como forma de elaboração à crise paradigmática das ciências humanas, o Construcionismo vem desenvolvendo um arcabouço teórico a partir de uma concepção do funcionamento não empirista da ciência, bem como de suas formas de investigação, conferindo novos contornos à noção de objetividade4.
Relatar o atendimento a uma equipe multiprofissional de saúde e a construção de uma narrativa sobre mudanças.
Contextualizando os atendimentos A equipe atendida e o pedido Trata-se de uma equipe multiprofissional que presta um serviço espe-
Os atendimentos Os atendimentos ocorreram no Instituto Familiae – Ribeirão Preto/SP – com freqüência mensal entre os meses de julho de 2007 e março de 2008, perfazendo um total de sete encontros, com duração de 1.30h cada. As sessões foram gravadas por meio de filmagem Vídeo Home System (VHS), com consentimento prévio da equipe. O número de participantes da equipe multiprofissional atendida variou entre cinco e oito pessoas no decorrer dos referidos encontros, uma vez que a participação era aberta a todos os membros.
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Nesse contexto, a realidade passa a ser entendida como aquilo que as pessoas constroem como real5, ou seja, a realidade deixa de ser tudo aquilo que está “fora” para ser aquilo que nasce das conversações, o que, por sua vez, possibilita superação do dualismo sujeito-objeto e assinala a centralidade da linguagem nessa perspectiva. A linguagem, nessa perspectiva, é considerada uma prática social e constituinte da realidade, ou seja, os sentidos que informam nossa compreensão acerca do mundo são construídos socialmente, por meio de trocas conversacionais entre pessoas, em dado contexto. Desse modo, o Construcionismo vem, sobretudo, propiciar a reflexão sobre as implicações acerca das concepções de realidade para a construção de práticas sociais, bem como formas de vida, uma vez que, para os construcionistas, os sentidos que informam nossa compreensão sobre o mundo são construções sociais, situadas em um contexto sócio-histórico e cultural específico6. Assim, nossas construções do mundo e de nós são limitadas por nossa linguagem, sendo que tais construções têm sua origem em nós mesmos. Portanto, se nós geramos as convenções do discurso, tendo o poder de descrições satisfatórias da realidade, também podemos alterálas7. Tais entendimentos conferem ao Construcionismo contornos de uma perspectiva dialógica e relacional, de forma a suscitar profundas implicações ontológicas acerca do ser e do existir humano em um mundo repleto de possibilidades.
Narrando alguns momentos do atendimento A utilização de uma palavra no gerúndio para iniciar essa parte do presente artigo visa, ainda que de forma singela, assinalar o caráter processual e dinâmico da referida conversação. Durante esse atendimento a uma equipe multiprofissional, aspectos relacionados com o saber e o fazer terapêutico foram compartilhados entre nós, alunos da segunda turma do curso de Atendimento Sistêmico a Famílias e Redes – Instituto Familiae (Ribeirão Preto-SP), sendo utilizados para elaboração de nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, posteriormente, do presente artigo. Assim, por meio deste, buscamos ser interlocutores de outros alunos, nessa abordagem em que podem coexistir a simplicidade, a densidade, a sensibilidade, as incertezas e a coerência, que se construiu nova e rica em possibilidade para nós. Portanto, consideramos o presente como uma pequena parte, porém importante, desse trajeto de grande aprendizado, permeado por emoções, reflexões, dúvidas, buscas e encontros. Como conversamos Para o atendimento dessa equipe, contamos com Terapeutas de Campo (TC) – docentes do curso e Equipe Reflexiva (ER) – alunos; assim, nos inspiramos no modelo de Andersen8. No início dos atendimentos, um dos membros se descreveu com sentimentos de medo, insegurança e orfandade – sentimentos que, posteriormente, foram verbalizados também por outros integrantes da equipe. Tais descrições foram justificadas a partir do afastamento de um membro significativo para o grupo e da ausência
de outro, descrito pelo mesmo, até então, como não-participativo. Nessa sessão, prevalecia o sentimento de falta (nomeado de orfandade), em virtude de ausências, seja pela saída de uma integrante considerada significativa pelos presentes (nome fictício Cristina) ou pela ausência de outro membro (nome fictício Roberto). As TC e a ER buscavam durante o processo terapêutico fomentar um contexto facilitador para que o até então não dito encontrasse um terreno fértil para se ampliar a partir de diferentes interlocutores. Nesse contexto, as TC e a ER atuaram como cocriadores de sentidos da linguagem por meio de uma genuína curiosidade, explorando novas descrições do problema. Quando a equipe multiprofissional e os TC estavam interagindo, a ER escutava e observava em um lugar ao fundo da sala. Quando a ER era chamada a se manifestar pelas TC, os membros da ER exteriorizavam o que pensaram e sentiram a partir do que ouviram, conversando entre si. Quando a ER terminava sua exposição, as TC e a equipe conversavam sobre o que ouviram e o que puderam refletir enquanto escutavam, exteriorizando suas conversas internas, de modo a estabelecer um contexto para a construção de um novo quadro de significados, o qual propiciou possibilidades novas de ver o problema. Podemos dizer que a ER configurou um contexto facilitador para a construção de significados e da validação da lógica aditiva (isto e aquilo) e o abandono da lógica disjuntiva (isso ou aquilo)10. O uso do termo terapeuta aqui é baseado na definição de Anderson e Goolishian9 de que esse cria um espa-
ço facilitador da conversação, participando do desenvolvimento de novos sentidos, realidades e narrativas. Já a ER, de acordo com Andersen8, propõe-se como uma forma de desenvolver um processo reflexivo diante do cliente. O que chamamos de problema O problema não foi visto como uma entidade objetiva, determinado por causas específicas, nem considerado como próprio ou intrínseco às pessoas ou aos sistemas que o descrevem, uma vez que pode ser entendido como uma descrição (ou descrições) possível – assim se configurando como uma realidade lingüística socialmente construída e sustentada pelas pessoas na coordenação de suas ações9. Nesse contexto, entendemos que mudanças vivenciadas/descritas acerca do cenário de atuação da equipe atendida se estruturavam em suas narrativas por meio da dita orfandade, seja pela saída de um integrante ou pela pouca participação de outro. Coerente com a idéia de que o que chamamos de realidade é uma construção discursiva, o problema pode ser visto como o que a pessoa e o sistema do qual ela participa descrevem como problema. O processo terapêutico Nessa perspectiva, a terapia é um recurso conversacional, focado na relação entre pessoas e na busca de construir um espaço aberto ao diálogo, no qual a possibilidade de emergência de sentidos alternativos é potencializada. Para Anderson e Goolishian9, novos futuros resultam do desenvolvimento de narrativas que conferem
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novos sentidos e entendimentos à vida de uma pessoa e que lhe possibilitam novos meios de ação. Esse desenvolvimento é construído entre pessoas em diálogo (localmente). Para isso, TC e ER tiveram que sair do lugar de “especialistas” – no sentido de quem possui um olhar privilegiado sobre o significado das falas de seus clientes – para ocupar um lugar de co-construtores dessas falas e dos significados compartilhados naquele momento interativo. Ao longo dos atendimentos, houve uma mudança que consideramos relevante no relato do presente artigo. Após a saída de Cristina, a equipe relatou que Roberto, até então descrito como pouco presente, passou a se mostrar mais partícipe. Nesse contexto, a ER, buscando refletir sobre os recursos que a equipe poderia acessar tanto na figura de Cristina quanto em Roberto, oferece a metáfora sobre o “queijo com a goiabada”. Posteriormente, os membros da equipe pareceram significar essas duas figuras de maneira que uma não precisasse excluir a outra, e sim pudessem se complementar; assim, esses poderiam se relacionar com aspectos positivos tanto de Roberto quanto de Cristina (que se desligou, ainda que provisoriamente, da equipe). Assim, a equipe se abrira a uma possibilidade criativa de um “novo” relacionamento com essas figuras. A partir da conversação da ER, houve ampliação dos sentidos possíveis acerca das mudanças que aconteciam no contexto de atuação da equipe, abrindo a possibilidade de aspectos diferentes poderem dar um “sabor complementar”, a partir da metáfora do “queijo com goiabada”. Portanto, no referido atendimento, a
partir da conversação da ER, houve a possibilidade de construção de uma versão alternativa para a questão vivida pela equipe, ampliando a lógica da situação ou do problema. As TC também foram, a cada atendimento, incluindo algumas metáforas e utilizando-se de recursos conversacionais que suplementaram as metáforas oferecidas pela ER, possibilitando a co-construção de outros olhares para o problema relatado pela equipe. Pudemos perceber o processo terapêutico como uma atividade lingüística, na qual o eixo da conversação sobre um problema possibilitou um processo de desenvolvimento de novos significados e novas compreensões. Na abordagem construcionista, terapeuta e cliente participam juntos na definição do problema, sendo o cliente o especialista9 do conteúdo apresentado e o terapeuta o especialista do processo conversacional. Em nosso atendimento, o sistema terapêutico foi formado em torno de um problema, tornando-se um sistema de organização e dissolução dele. Para tanto, as TC lançaram mão do uso de perguntas conversacionais, sendo estas o instrumento primário para facilitar o desenvolvimento do espaço conversacional e do processo dialógico. Tais perguntas foram feitas sempre a partir de uma posição de não-saber das TC, que se transformaram em participantes do diálogo, coautoras das histórias construídas no sistema comunicacional, por meio de uma atitude ou postura, na qual suas ações apresentam uma curiosidade genuína e abundante9. O lugar do terapeuta Na conversação terapêutica, o terapeuta explora a organização dos rela-
tos coletivos e, por meio de perguntas e comentários, favorece certos tipos de transformações na natureza dos relatos, na maneira dos contatos e na relação entre eles11. Com o uso das metáforas e das conversações, as TC e a ER puderam ocupar o lugar de co-construtores da mudança de narrativa junto à equipe atendida, contribuindo e abrindo espaço para novas reflexões, que fomentaram novas narrativas, o que ficou explícito ao longo dos atendimentos por meio da mudança de narrativa observada. As perguntas dos terapeutas devem ser adequadamente incomuns, o que se pode saber observando as reações dos clientes. Nessa situação, as perguntas tendem a gerar uma leve tensão, marcada por algum tipo de mudança na atividade dos clientes, sem redução no fluxo de trocas durante a conversa 8. Com isso, ao longo dos atendimentos, criou-se um espaço facilitador da conversação, levando adiante a investigação dentro dos parâmetros do sistema terapêutico. As TC assumiram, assim, a responsabilidade de criar um contexto conversacional, que permitiu a colaboração mútua no processo de definição e redefinição do problema. Assim, as TC, como participantes e facilitadoras da conversação, situaram-se em uma posição igualitária e não hierárquica, tornando-se elementos do sistema12 e da definição do problema. Na posição de facilitadoras e participantes da conversação, as TC buscaram criar e sustentar uma conversação dialógica, considerando e trabalhando com todas as narrativas construídas, compartilhando assim a responsabilidade pelo processo. A conversação terapêutica acontece quando o terapeuta ocupa a posi-
ção do não-saber, manifestando uma curiosidade espontânea e genuína sobre a narrativa do cliente. O terapeuta faz então perguntas, informado pela necessidade de saber mais a respeito do que está sendo dito. As perguntas do terapeuta explicitam os momentos em que novas informações podem abrir possibilidades de outros sentidos e entendimentos, tanto para o cliente como para o terapeuta6. Na perspectiva conversacional, o terapeuta deixa o lugar de especialista de conteúdos e ocupa o lugar de especialista do processo conversacional, sempre atento ao modo como se conversa, sobre o que se conversa, focalizando a qualidade das interações estabelecidas entre os participantes (inclusive, a si mesmo). Finalizando, pode-se dizer que o lugar do terapeuta na perspectiva construcionista social está, basicamente, na curiosidade e na postura do não-saber, que abrem espaço conversacional, aumentando, assim, o potencial do desenvolvimento narrativo de novos meios de ação e liberdade pessoal. A construção da mudança de narrativa Esse mecanismo de construção conjunta contribuiu para a percepção de algumas mudanças acerca dos desconfortos descritos, inicialmente, pela equipe. A equipe pôde olhar, de forma diferente, para suas questões, proporcionando para as pessoas ali presentes tranqüilidade e novas possibilidades de sentir e agir. Roberto conseguiu se inserir no grupo acrescentando novas possibilidades. Podemos dizer que as metáforas e conversações ao longo dos atendimentos permitiram a co-construção de um novo sentido para as mudanças vivenciadas pela equipe.
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No decorrer dos atendimentos realizados, contudo, a equipe pôde começar a construir, por meio de um contexto facilitador e empoderador, uma postura em que prevaleciam sentimentos de coragem e capacidade de realização do trabalho. Durante os atendimentos, a equipe saiu de narrativas de impossibilidades, como quando foi falado sobre a saída de Cristina e da pouca participação de Roberto junto ao serviço, bem como sua maior inserção após a saída de Cristina. Essas questões foram trazidas no atendimento como sendo fonte de sofrimento e preocupação para os membros da equipe. Nesse momento dos atendimentos, vários membros da equipe se descreviam com um sentimento de medo, relacionado, primeiramente, com a saída de Cristina e, posteriormente, com a aproximação de Roberto. Ao final dos atendimentos, tanto a saída de Cristina como a maior participação de Roberto junto ao serviço de saúde foram descritos pela equipe com mais otimismo e esperança. O processo de inclusão de Roberto e o afastamento de Cristina, a partir de novos olhares e da abertura para as diferenças, foi sendo construído a cada atendimento, possibilitando a emergência do processo de mudança. Anderson e Goolishian9 definem mudança como uma criação dialógica de uma nova narrativa e, portanto, a abertura de oportunidades para novos meios de ação. No atendimento à equipe multiprofissional, houve a criação dialógica de novas narrativas, constituindo a mudança da história e da auto-narrativa. Nesse sentido, nos sentimos convidados a apreender a singularidade da verdade narrativa de cada cliente.
Durante a conversação supracitada, a linguagem se fez presente de uma forma que construiu, que criou mundos, em vez de, simplesmente, representá-lo. Por meio da linguagem e das trocas conversacionais, houve um processo de construção de significados. O processo terapêutico propiciou uma oportunidade para o desenvolvimento de novas narrativas, permitindo uma gama de meios alternativos de ação para a dissolução do problema e a conseqüente mudança. Rasera13 acredita que, por meio do processo de conversação dialógica, dáse o processo de mudança. Conforme a investigação ocorre, novos sentidos e entendimentos são construídos, os quais não são mais caracterizados como problemas. A mudança se dá por meio das redescrições, dos novos e diferentes significados atribuídos a situações antes vivenciadas como problemáticas. Podemos dizer que, de acordo com Anderson e Goolishiman,9 houve uma mudança – “o desenvolvimento de um novo significado através do diálogo”. Considerações Finais
A utilização da metáfora e as conversações permitiram à equipe a assunção de uma postura aditiva acerca das mudanças em seu contexto de trabalho. Ao mesmo tempo em que essa abertura surgia, os sentimentos de incômodo foram perdendo o sentido apresentado anteriormente, uma vez que ia sendo construída a noção de que, juntando “sabores” diferentes, se descobria um novo sabor. Percebemos que o processo de mudança esteve diretamente ligado às
construções feitas ao longo do processo conversacional. O jogo de diálogos internos e externos e o caráter de colaboração entre os envolvidos fizeram parte do desenvolvimento do processo. A mudança de narrativa da equipe atendida foi construída dialogicamente, através de eventos lingüísticos ocorridos na conversação terapêutica, explorando os discursos de problema trazidos por eles e explorando novos sentidos e entendimentos do mesmo por meio do diálogo. As trocas dialógicas facilitaram a mudança das narrativas do sistema atendido, por meio de um espaço aberto ao diálogo, no qual a possibilidade de emergência de sentidos alternativos foi potencializada. Em outras palavras, a visão da terapia como uma construção social ajudou a transformar as narrativas de conteúdos descritos como problemáticos em narrativas mais flexíveis, que permitiram novas possibilidades interativas, produzindo mudanças como conseqüência. O processo de mudança para equipe multiprofissional se deu à medida que foi possível atravessar de um lugar de desconforto, insegurança, impotência, negativismo, orfandade e incompetência para outro de conforto, reconhecimento de capacidade, conseguindo-se pensar em novas possibilidades e necessidades. Ao final dessas considerações, assinalamos as possibilidades de espaço de co-construção por meio de questionamento e reflexão, uma vez que esses possibilitaram a saída do domínio do discurso que fala do limite, da falta, para um discurso acerca das possibilidades e dos potenciais14.
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Migrações, famílias e o paradigma sistêmico
artigo
Migration, families and the systemic paradigm Resumo: Neste texto, são discutidas as possibilidades de interseção entre os estudos sobre as migrações e sobre a família, tendo em vista a mobilidade e a circulação de pessoas que caracterizam o mundo globalizado e cada vez mais cosmopolita, e como isto se reflete nas novas configurações produtivas e nas novas configurações dos vínculos afetivos e relacionais nas famílias. Novas imagens de famílias de migrantes, ou de migrantes que constituem famílias, emergem, com seus desejos, suas crenças, suas memórias, suas culturas, seus anseios, que se mesclam em um contexto em que as mudanças de lugar, as trocas, a adoção de outros paradigmas passam a ser a regra, e não uma exceção.
Abstract: This paper discusses possible intersections connecting migration studies and investigations about the family, from the standpoint of mobility that characterizes our global and cosmopolite world, emphasizing the effects on the new productive configurations within contemporary world and the reconfigurations of affective and relational links in the families. New images of migrant families, or else, of migrants constituting families, emerge, with their desires, beliefs, memories, cultures, expectations, intermingled in a context in which the exchange of place, the adoption of new paradigms, become the rule and not an exception.
Palavras-chave: êxodo; migrações; subjetividade; paradigma sistêmico.
Key Words: exodus; migrations; subjectivity; systemic paradigm.
Leonora Corsini Psicóloga, terapeuta de família, mestre em psicologia pelo IP/UFRJ e doutora em Serviço Social pela ESS/UFRJ. Além de exercer a atividade clínica, dedicando-se ao atendimento e à formação de terapeutas de família, atua como pesquisadora associada do Laboratório Território e Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ.
Êxodo e migração
O êxodo – processo de saída em massa de um território, ou a espera caminhante, como bem definiu Ernst Bloch – é uma marcha para frente em que muitas coisas serão deixadas para trás, muitas novas coisas precisarão ser construídas. No cenário do nosso mundo globalizado, o êxodo e as migrações, que se constituem no âmbito de constantes atravessamentos de fronteiras, de intercâmbios de saberes, informações, tecnologias, culturas e práticas, vêm dar novos sentidos a noções como identidade nacional e pátria, por exemplo. José Jiménez, estudioso do campo da estética e comunicação1, redefine pátria como algo que se situa, de maneira subjacente, na busca; uma pátria que é como um caminho que se constrói ao caminhar. Nesse sentido, a autêntica pátria do homem não teria contornos geográficos ou fronteiras uniformes; a imagem da pátria que emerge é a imagem da diferença, da diversidade de sentimentos, linguagens e culturas, dos itinerários plurais que são traçados em nosso incessante caminhar. Pátria, nesse sentido, poderia ser outro nome para a subjetividade. O argumento de Jiménez é de que, no mundo cosmo-político e globalizado no qual a economia, as técnicas, as comunicações de massa são convertidas em instâncias planetárias, o homem é cada vez mais um ser de diferenças, e o sentir-se estrangeiro é uma nova e radical condição de nomadismo profundo e generalizado, em que a busca de novos vínculos de pertinência redefine a situação da cultura contemporânea. Os fluxos migratórios constituem, na verdade, um fenômeno bastante antigo, que sempre esteve presente ao longo da história, mas que vem adquirindo um
“O mundo é pequeno pra caramba, tem alemão, italiano, italiana. O mundo, filé à milanesa, tem coreano, japonês, japonesa.” O Mundo, Zeca Baleiro, Paulinho Moska, Chico César e Lenine “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria.” Língua, Caetano Veloso
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contorno especial nas ciências humanas e sociais hoje, por suas implicações econômicas, culturais, políticas, filosóficas, psicológicas, religiosas etc. No plano dessas novas configurações políticas, produtivas, territoriais e subjetivas, reforçadas pela globalização, podemos analisar as migrações como movimentos de mão dupla ou de dupla dimensão: de ruptura, no sentido da resistência positiva de quem deixa um território (desterritorialização); de recomeço e adaptação a um novo território, processo sempre atravessado por conflitos e lutas (reterritorialização). O sociólogo argelino Abdelmalek Sayad2 diz que, assim como os movimentos de desterritorialização e de reterritorialização dos migrantes são interligados entre si, o par conceitual imigração (deixar um território)/emigração (chegar a um território) corresponde a termos co-extensivos “que se fazem eco, que remetem a conjuntos de coisas que, embora pertencendo a diferentes ordens, são indissociáveis, devendo sempre ser pensadas juntas”. Seguindo essa “trilha”, postulamos que as histórias dos migrantes são também histórias de família, buscando estabelecer algumas articulações entre os estudos sobre as migrações e os estudos sobre as famílias, tendo como ponto de partida a idéia de que esses dois campos de investigação se articulam e se intersectam em um espaço comum nos estudos sobre as subjetividades contemporâneas. Efeitos dessas interseções ou interconexões podem ser vislumbrados, por exemplo, no crescente interesse pelas memórias familiares e culturais, pelos processos de reconstituição e reconstrução das redes afetivas e sociais daqueles que migraram e assim por diante.
Apesar de a inter-relação entre o fenômeno das migrações e os estudos sobre a família ser também histórica, mesmo as pesquisas e análises mais recentes sobre os novos formatos e as novas configurações do trabalho e da produção têm negligenciado ou não têm priorizado a questão da família, a nosso ver, fundamental. Existe, de fato, uma vasta literatura tratando do surgimento de novos atores sociais a partir das reconfigurações do trabalho e da produção – e, dentre esses novos atores, as mulheres, cada vez mais atuantes nas próprias comunidades e nos bairros de assentamento de imigrantes3, 4, 5, 6, 7 –; os estudos sobre as famílias migrantes, abrangendo as relações entre parentes mais ou menos próximos de indivíduos protagonistas no processo migratório (sejam homens ou mulheres), vêm perdendo terreno, desde a década de 70, para as análises voltadas às dinâmicas de gênero. De fato, desde a revolução industrial e com o surgimento da burguesia, a família ocidental consolidou-se como célula biológica que outorgava um lugar central à maternidade. Entretanto, diante do desafio da irrupção do feminino no mundo do trabalho não-doméstico, a família foi se desviando dessa função de célula básica da sociedade, fazendo surgir, em seu lugar, a idéia da família em desordem das sociedades pós-industriais8. Por outro lado, não podemos negar que a expressiva incorporação das mulheres ao processo migratório reforça as condições para que os assentamentos de migrantes e refugiados permaneçam e se consolidem, além de contribuir para uma maior participação dos imigrantes nas demandas ao poder público e ao Estado. Saskia Sassen4 diz que isso pode ser lido
como uma ruptura das dinâmicas tradicionais, na qual as mulheres e as famílias migrantes vêm substituir categorias fordistas, como a do salário-família, por exemplo. A filósofa e feminista Seyla Benhabib7 acrescenta que as lutas e os movimentos contra a opressão no mundo contemporâneo acabaram redefinindo o que antes era considerado privado, nãopúblico, fora da esfera de interesses especificamente políticos, como as questões de justiça e de relações de poder. Os ativistas e militantes desses movimentos, ao tematizarem as relações assimétricas de poder que marcam a divisão do trabalho entre os gêneros, acabaram incorporando ao debate temas antes circunscritos ao domínio da vida privada – os afetos, o cuidado, a educação de crianças, as relações familiares etc. –, transformando-os em assuntos de interesse da justiça e do direito. Vemos assim que o fenômeno das migrações está relacionado, de diferentes maneiras, a tudo o que se liga à produção da vida e aos cuidados com o que convencionalmente é designado como reprodução. As múltiplas facetas e dimensões subjetivas da experiência migratória permitem hoje que façamos uma reflexão sobre as próprias práticas e os dispositivos de saúde (aí incluindo as terapias), os mecanismos de atenção psicossocial, os cuidados e a atenção integral às famílias a partir de um novo ângulo e em uma perspectiva multidimensional e interdisciplinar*. As migrações mundiais entram, assim, como elementos fundamentais numa pauta de discussões e preocupações em torno da formulação de políticas públicas de saúde, educação, habitação, cultura, previdência e assistência que pos-
sam dar conta do fenômeno em toda sua complexidade.
Migrações, famílias e o paradigma sistêmico Leonora Corsini
Mobilidade do trabalho e das dinâmicas produtivas refletindo na nova configuração da família
Em sua dimensão de resistência positiva e constituinte, as migrações mundiais podem ser entendidas como expressão de uma nova dinâmica produtiva que se constitui na mobilidade e na circulação de pessoas. Trata-se de outra visão da produção de riqueza, em que se vai valorizar a economia dos fluxos (em lugar dos estoques de bens e mercadorias), cuja principal implicação é a produção de subjetividades ou de formas de subjetivação10. Essa nova perspectiva aponta para uma ontologia da produção, marcada pela mobilidade e pelos fluxos, por dinâmicas auto-organizadoras e constituintes, processos que, por sua vez, expressam-se, nitidamente, nas migrações contemporâneas. Na perspectiva dos filósofos Antonio Negri e Michael Hardt11, a nova configuração do processo do trabalho e das dinâmicas produtivas tem sua origem no fato de que, na sociedade-fábrica, a distinção conceitual tradicional entre trabalho produtivo e improdutivo e entre produção e reprodução** acabou sendo definitivamente ultrapassada – o que não quer dizer que o declínio da fábrica como lugar de produção tenha feito desaparecer o regime e a disciplina fabris, no sentido da sociedade disciplinar de Foucault. O efeito de tal mudança foi o de fazer com que a disciplina e o regime de produção não ficassem mais limitados a um espaço específico dentro da sociedade, passando
* A Secretária Nacional da Assistência Social, Ana Lígia Gomes, declarou, recentemente, o quanto é importante que as questões sociais estejam pautadas na grade curricular e na formação e na prática dos profissionais de saúde e atenção psicossocial – aí incluindo psicólogos, educadores e assistentes sociais –, para que estejam preparados para o trabalho social com famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social. Ao mesmo tempo, torna-se importante que a atuação do psicólogo não esteja mais restrita aos métodos e modelos de atendimento clínico e psicoterapêutico convencional (Jornal do Federal, Conselho Federal de Psicologia, maio de 2007)9 ** De acordo com a concepção de Marx e Engels, o fator decisivo da história é a produção e a reprodução da vida imediata. “Esta produção e reprodução são de dois tipos: por um lado, a produção dos meios de existência, de produtos alimentícios, habitação e os instrumentos necessários para tudo isso; por outro, a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família de outro”12.
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a estar presentes, a “se insinuar” em todas as formas de produção social. Negri13 sustenta que em todo o circuito de reprodução da força de trabalho, da maternidade à educação, da gestão da comunicação à organização do tempo, tudo entra hoje na pauta da produção. “Temos a possibilidade de explicar a produção e, portanto, de organizar a vida humana no próprio cerne desta riqueza, constituída de todas as potências da ferramenta: as linguagens e os afetos” (p. 29). Assim, só podemos pensar a família contemporânea no contexto de uma sociedade pós-industrial, pósfábrica, de permanente mobilidade; um âmbito relacional primordial; o espaço em que se estabelecem as relações e as trocas, em que se constituem as subjetividades, em que se multiplicam as redes, em que opera a economia dos afetos, ultrapassando aquela idéia tradicional de célula ou matriz de reprodução das forças produtivas. Algumas indagações têm norteado nossa reflexão acerca das possíveis interconexões entre famílias e migrações contemporâneas, no que diz respeito às condições e ao percurso traçado pelos membros das famílias que deixaram seus lugares, suas cidades, seus países de origem, tais como: migraram com ou sem parentes? Continuam remetendo dinheiro para seus familiares? Buscam trazer outros familiares para o novo lugar que escolheram para viver? Quais são os impactos dessas condições singulares nas experiências cotidianas dos migrantes, de adaptação e instalação nos locais escolhidos como destino? Nesse sentido, trata-se de uma tentativa de trazer a família de volta para o campo de investigação sobre as migrações. Este trazer a família de volta
parece-nos importante por algumas razões. Em primeiro lugar, porque a família foi (e continua sendo) um âmbito experiencial privilegiado para os próprios migrantes e para os formuladores das políticas voltadas para a migração. Por outro lado, os vínculos familiares estão presentes em várias situações que poderiam ser descritas como efeitos produzidos pelas migrações: as remessas de divisas, em que impressionantes volumes de dinheiro são remetidos formal ou informalmente aos países ou lugares de origem para melhorar a condição de vida dos familiares ou para ajudá-los a também fazerem o percurso migratório; a problemática dos filhos que, ao nascerem na migração, perdem a nacionalidade dos pais (houve, recentemente, um movimento pela manutenção da cidadania brasileira dos filhos de emigrantes nascidos fora do Brasil, os Brasileirinhos apátridas), o que algumas vezes acaba levando a uma cisão nas famílias, já que alguns membros têm direitos e cidadania e outros não; o dilema do regresso: retornar ao local de origem para construir uma família ou casar-se no novo país e estabelecer novas relações (e uma nova família)?
As histórias dos migrantes são também histórias de família
Seja porque os migrantes sempre trazem em sua bagagem um pouco de seus laços, seus vínculos, suas vivências familiares – na forma de memória afetiva e subjetiva –, seja porque, ao migrar, vão constituir novos laços familiares, novas redes sociais14, as histórias dos migrantes fazem eco com as histórias de família. E quais são as co-
nexões que poderíamos fazer entre essas histórias e a epistemologia sistêmica? Para começar, muitos estudiosos das migrações adotam o paradigma sistêmico para analisar o fenômeno, situando, analiticamente, as migrações dentro de sistemas que possuem características geopolíticas e sócioeconômicas determinadas. Essa perspectiva é considerada sistêmica porque a mobilidade, junto com os processos de readaptação e integração, é continuamente retroalimentada e reconstruída a partir do próprio movimento migratório. Além disto, o próprio campo da terapia familiar se constitui e se mantém como um entrecruzamento de diferentes saberes (psicologia, biologia, física quântica, filosofia, ontologia etc.) e também a partir das caminhadas e mudanças de país de muitas vozes migrantes, como Salvador Minuchin – psiquiatra argentino e um dos precursores da terapia sistêmica que se radicou nos Estados Unidos, dando início a um trabalho pioneiro com famílias porto-riquenhas dos guetos empobrecidos de Nova Iorque. Assim como Minuchin, muitos outros terapeutas e pesquisadores da família fizeram o percurso migratório: Carlos Sluzki, Mony Elkaïm, Francisco Varela, Heinz von Foerster, Ivan Boszormenyi-Nagy, Paul Watlzlawick... Essas múltiplas vozes estrangeiras também contribuíram para que novos formatos e novas configurações da prática sistêmica fossem experimentados, o que permitiu transformar a relação terapêutica em uma rede de conversações em torno de um problema e o terapeuta, em um participante ativo da transformação coletiva de significados15. E não seriam as mudanças e transições que foram acontecendo no
campo da terapia familiar desde os primeiros estudos sobre a Cibernética e a Comunicação, passando pela noção da família como sistema autônomo, auto-organizado, não-linear e não-determinístico da Cibernética de Segunda Ordem, até chegar aos atuais desdobramentos do Construcionismo Social, também o atravessamento de um outro tipo de fronteira, a fronteira dos condicionamentos lingüísticos, das certezas estabelecidas, dos preconceitos que nos engessam ou limitam a nossa visão? Outra questão ainda em aberto é a que diz respeito às relações existentes entre a situação das famílias que vieram de outros países, de outras cidades ou regiões e os estereótipos que acompanham esses migrantes e seus descendentes. Talvez não tenha sido suficientemente explorado pelos pesquisadores e terapeutas de que forma as pessoas idosas, solteiras e as crianças são vistas e percebidas como mais “estrangeiras” nas comparações entre grupos familiares migrantes. Nesse caso, podemos levantar a hipótese de que existem diferentes maneiras de se perceber o migrante de acordo com sua situação na hierarquia familiar, pela passagem do ciclo vital e pelas novas fronteiras ou estruturas relacionais que permitirão negociar esses estereótipos, que vão além de – e, muitas vezes, se somam a – estereótipos culturais ou religiosos. As culturas e memórias familiares daqueles que migram também afetam as experiências e a auto-identificação dos migrantes. Essas culturas familiares estão inseridas em contextos sociais e políticos em constante transformação, que, por sua vez, dão lugar a novos padrões e redes de migração, bem como a formas específi-
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cas de participação econômica, social e política nas sociedades de acolhida e nas sociedades de origem. Lembramos aqui o testemunho da paraguaia Ramona Alvarez Fleitas,16 que faz parte, junto com bolivianos, peruanos, equatorianos, de um grupo de migrantes não-desejados da Argentina, ou seja, migrantes que não fazem parte da mistura de raças, que não são oriundos dos chamados países centrais europeus, norte-americanos ou mesmo asiáticos. Em outro momento, os não-desejados foram, sim, desejados para trabalhar como bóiasfrias nos latifúndios do cone sul e continuam sendo “admitidos” em metrópoles como São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, como mão-deobra barata e precarizada, destinada a serviços domésticos ou a subempregos em condições de profunda exploração. Existem ainda os que partem em exílio forçado por conta de guerras, perseguições políticas, catástrofes ambientais. No Brasil, chegou, nas décadas de 70 e 80, um grande número de argentinos e chilenos que migraram para escapar às perseguições e “desaparecimentos” perpetrados pelas ditaduras militares. Os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela – que são referência entre os terapeutas familiares sistêmicos – também tiveram que deixar o Chile por razões políticas, sendo que Varela acabou se fixando na França, onde viveu seu até falecimento, em 2001. Experiências de imigração forçada podem ser, de fato, muito dolorosas e, por vezes, traumáticas. Nesses casos, a vivência do migrante é também uma vivência de exclusão, de se retirar e estar fora de uma vida, uma vivência que se faz acompanhar de todo o processo de aprender uma nova língua,
novos códigos, de reconstituir as redes e os vínculos de pertencimento e, mesmo, de redescobrir e atualizar laços e vínculos do passado. A terapeuta familiar Magdalena Ramos faz um comovente relato (Sou daqui e sou de lá17) de sua experiência como exilada argentina que desembarcou no Brasil em 1976 e que passou por todo esse processo. Ela conta, em seu livro biográfico, como essa experiência a fez reencontrar a história de seus avós, que deixaram a Espanha para viver na Argentina – e que, portanto, também haviam sido imigrantes auto-exilados como ela –, e como essas descobertas foram úteis para que ela pudesse se conectar com outras formas de exílio e exclusão: “Uma pessoa pode se sentir exilada da sociedade onde vive por ser marginalizada, pode se perceber exilada de sua família por ser excluída e não aceita”, ela diz. A experiência de migrar, para além de todos os sentimentos paradoxais e tensões que a atravessam, abre também novas possibilidades de construir uma nova vida, de realizar sonhos ou de obter reconhecimento. Ademir Pacelli nos mostra, de maneira poética e sensível, em O migrante na rede do outro,18 como migrar é também aventurar-se no campo do outro e se deixar impregnar e ser tomado pelo vislumbre de outro universo subjetivo, ao refazer a trajetória da escritura (migrante) de Clarice Lispector na personagem Macabéia do romance A hora da estrela,19 que a captura em seu percurso de migrante nordestina e pobre. Existe uma frase que diz: “calçar os sapatos dos outros muda a perspectiva das coisas”. Esta frase nos faz pensar em mudança e troca de lugar, em aprendizado, em processos de adaptação e construção de novos mundos
e novas realidades. Tem a ver com experimentar ou aventurar-se no mundo do outro. No entanto, o movimento inverso também é possível: descalçar os sapatos para entrar em contato com aquilo que é mais íntimo em nós, a nossa pátria mais interior, como diz José Jiménez1. Trazemos, para ilustrar, mais uma história lindamente narrada no filme de Radu Mihaileanu Va, vis et deviens (no Brasil, traduzido como Um herói do nosso tempo20). No filme, Salomão, um menino cristão, negro, nascido na Etiópia, que vive em um campo de refugiados no Sudão é entregue, aos 9 anos de idade, para o governo de Israel, para ser adotado por uma família israelense, numa tentativa desesperada de sua mãe de salvá-lo da miséria e da fome. Salomão parte para viver com uma família de judeus de origem francesa em Tel Aviv, sem entender direito o que está acontecendo, instado pelas palavras da mãe: “vá, aprenda, transforme-se”. Em sua aventura, ele aprende a usar os mais variados recursos e artifícios para se passar por judeu e órfão de pai e mãe e se adaptar à nova vida. Ele acaba conseguindo, mas não deixa de guardar lembranças e recordações de sua infância e de sua mãe, com quem secretamente “conversa” nas noites de lua. Nos momentos em que se reconecta com suas lembranças, Salomão simbolicamente retira os sapatos e pisa descalço no chão, gesto que se repete quando retorna à África, já adulto e agora médico da Cruz Vermelha, para finalmente reencontrá-la.
Referências bibliográficas
JIMÉNEZ, José. Sem pátria: os vínculos de pertinência no mundo de hoje – família, país, nação. In: Dora
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Fried Schnitman (org.) Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 138-151. 2 SAYAD, Abdelmalek. La Double Absence. Des illusions de l’emigré aux souffrances de l’immigré. Éditions de Seuil, 1999. 3 MEZZADRA, Sandro. Derecho de fuga. Migraciones, ciudadanía y globalización. Madri: Traficante de Sueños, 2005. 4 SASSEN, Saskia. Global cities. The de-nationalizing of time and space. Documento apresentado na conferência Bridge the Gap? Fukuoka, Japão, julho de 2001. Disponível em http://www.btgjapan.org/catalysts/saskia.html. 5 ______. The global city: New York, London, Tokyo. Nova York: Oxford University Press, 1992. 6 SINGERMAN, Diane. Restoring the Family to Civil Society: Lessons from Egypt. Journal of Middle East Women’s Studies, 1-32, 2006. 7 BENHABIB, Seyla. The rights of others. Aliens, Residents and Citizens (The Seeley Lectures). Cambridge University Press, 2004. 8 ROUDINESCO, Elisabeth. La familia en desorden. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004. 9 GOMES, Ana Lígia. Psicologia nos CRAS. Seção Sua Profissão, Jornal do Federal. Conselho Federal de Psicologia, Ano XX, n. 86, maio de 2007. 10 LAZZARATO, Maurizio. Puissances de l’Invention. La psychologie économique de Gabriel Tarde contre l’économie politique. Paris: Seuil, Les Empêcheurs de penser en rond, 2002. 11 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. O Trabalho de Dionísio. Para a crí-
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tica ao Estado pós-moderno. Juiz de fora: Editora UFJF – Pazulin, 2004. 12 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 13 NEGRI, Antonio. Exílio, seguido de Valor e Afeto. São Paulo: Iluminuras, 2001. 14 SLUZKI, Carlos. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. 15 RAPIZO, Rosana. Terapia Sistêmica de Família. Da instrução à construção. Rio de Janeiro: Noos, 1996. 16 FLEITAS, Ramona Alvarez. Nanduti: oñondivepá. Articulação Fe-
minista MARCOSUR, UNIFEM e REPEM/DAWN. Disponível em: http://www.mujeresdelsur.org. uy/campana/libro_port15.htm. s/d. 17 RAMOS, Magdalena. Sou daqui e sou de lá. Autobiografia do exílio. São Paulo: Editora Ágora, 2007. 18 FERREIRA, Ademir Pacelli. O migrante na rede do outro. Rio de Janeiro: Te Corá, 1999. 19 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 15ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 20 UM HERÓI DO NOSSO TEMPO (Va, vis et deviens). Direção: Radu Mihaileanu. França/Israel: Canal +/France 3 Cinéma/Eurimages, 2005.
FAMÍLIA, CONJUGALIDADES E UTOPIAS – REFLEXÕES sobre UM MUNDO HIPERMODERNO*
artigo
FAMILIES, CONJUGALITIES AND UTOPIAS – REFLECTIONS ABOUT A HYPERMODERN WORLD Resumo: Este artigo consiste em um ensaio teórico-crítico sobre conjugalidades, parentalidade e temas relacionados, pensados em um momento de nossa sociedade caraterizado como hipermoderno. Buscou-se traçar um olhar crítico para os acontecimentos desta época no que se refere a essas temáticas, procurando refletir sobre os desafios de psicólogos clínicos e sociais quanto às consequências da hipermodernidade para as relações humanas.
Abstract: This article consists of a theoretical-critical essay on conjugalities, parenthood and related themes, thought in a moment that our society is characterized as hypermodern. A critical view of this age’s happenings in what refers to those themes was sought, attempting a reflection on the challenges to clinical and social psychologists posed by hypermodernity and it’s consequences to human relations.
Palavras-chave: hipermodernidade; conjugalidade; parentalidade.
Key words: hypermodernity; conjugality; parenthood.
Vivemos num momento muito curioso da história da humanidade, em que diversas transformações e diversos desenvolvimentos tecnológicos provocaram significativas mudanças nas relações humanas. Participamos de um momento intensamente híbrido, em que o antigo e o novo brigam por espaço, mesclam-se e se contradizem. No âmbito familiar e conjugal, não é diferente. Já não falamos mais uma família, e sim familiaS, novas configurações familiares ganharam espaço e destaque, as mulheres têm conquistado espaços e direitos mais igualitários, os homens têm resignificado seu lugar, seu modo de ser. Estaria a familia em desordem? – como diria Elisabeth Roudinesco1, em um de seus livros. Quais os reflexos dessas questões em nossa sociedade? Ou melhor seria perguntar: essas transformações são reflexo de quê, de onde? Apesar de tantas mudanças e tranformações, ainda existe a busca de um ideal de família e de conjugalidade, ideal este que vemos na mídia, nos discursos de jovens e anciões, independentemente de orientações sexuais. Ideal este que, muitas vezes, contradiz determinadas conquistas, mas continua lá num pedestal, num paraíso perdido a ser alcançado. A que ele serve? O que seria de nossas buscas sem esse ideal, sem essa... arrisco dizer utopia de relações humanas, conjugais e familiares? Paraíso perdido e almejado que conduz a diversas atitudes e confusões que complicam e movimentam as relações conjugais e familiares do novo século.
O VELHO E O NOVO, O MODERNO E O ARCAICO
Por outro lado, o velho e o moderno convivem em algumas famílias, nas quais aspectos agora indesejáveis são suprimidos e outros permanecem fortes, ocorrendo
Adriano Beiras Psicólogo, psicoterapeuta individual, de casais e de família e mediador familiar; especialista em Terapia Relacional Sistêmica (Familiare Instituto Sistêmico – SC); mestre em Psicologia pela UFSC, pesquisador do Núcleo Margens do Departamento de Psicologia da UFSC; doutorando em Psicologia Social pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), Espanha.
“O casamento foi inventado para os seres humanos medianos, que não são aptos nem para o grande amor nem para a grande amizade, portanto para a maioria, mas também para aqueles, raríssimos, que são aptos tanto para o grande amor quanto para a grande amizade.” Nietzsche “La utopía da sentido a la vida, porque exige, contra toda verosimilitud, que la vida tenga un sentido.” Magus
* Gostaria de agradecer aos meus colegas mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e, em especial, a Profª Drª Leila Torraca de Brito e ao Prof. Dr. Jorge Coelho. Agradeço por suas contribuições e reflexões em disciplinas e reuniões de pesquisa – nos meses em que estive cursando doutorado nessa instituição, durante o primeiro semestre de 2008 – que muito contribuíram para o desenvolvimento das questões expostas neste texto.
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uma mescla de ideais antigos e novos. Figueira2 chegou a essa conclusão já na década de 80, em estudo com famílias de camadas médias. Ressaltou que, perto de um grupo ou de alguém que se mostra como moderno, existe sempre alguém que desempenha a função de “encarnar tudo o que não se quer (mais) ser/ter” (p. 29). Este autor questionou, na época em que seu estudo foi realizado, se realmente havia uma nova família brasileira. Segundo ele, o processo de modernização da família brasileira inseria-se, então, na ideologia do igualitarismo, apresentando-se mais no plano do ideal do que no do real. Concluiu que a família modernizada mostrava-se hesitante e ambígua, considerando que o processo de modernização se dava de formas múltiplas e complexas, não lineares. Que momento é este que vivemos e de que forma ele engendra as relações afetivas desta época? É um período caracterizado pelo amor líquido, como diria Zygmunt Bauman3, momento do rápido, do imediato, do excesso, emerge aqui o homem hipermoderno e seus desafios. Era da informação, das curtas distâncias, da tecnologia, do rápido, do hiperconsumo. Eu te consumo e você me consome, somos produtos, produtores, vendedores e compradores, vivemos em um momento dominado pela lógica capitalista que nos impulsiona a desejar cada vez mais, gozar e gozar e gozar (pensando em termos freudolacanianos), consumir, consumir e consumir... e sumir... O que resta de nós? Quem somos neste meio que nos consome e nos saDisfaz (mesclando aqui satisfação e sadismo) insatisfazendo... Consumir alguém implica o quê? Implica a instabilidade, a troca rápi-
da deste “produto”, do ser humano transformado em objeto de consumo, que se desatualiza, que descontenta, pois sempre parece haver algo melhor, mais fácil e de maior gozo além do que se tem.
VIVÊNCIAS DE UMA ÉPOCA “INSÓLIDA”
Estas reflexões são impulsionadas pela minha experiência como terapeuta de casais e por conversas com meus colegas, amigos e familiares. É impulsionada também pelo fato de eu vivenciar, em minha família, diversas gerações, idéias de tempo distintas, dada a diferença de idade de meus irmãos e pais, entre outros familiares. Saltam aos olhos esses aspectos, esses desafios e essas inconstâncias, que nos levam a armadilhas, a desejos não realizados, a descontentamentos afetivos e sexuais. O que esperar desta época? Como fugir, driblar esta lógica que nos engole? Ou, simplesmente, deveríamos nos render a ela? Com o progressivo desaparecimento de valores universais (Kant), o relativismo entrou em cena, impulsionando diversas possibilidades de ser e estar no mundo, de se relacionar, de ler nossa sociedade. Se, por um lado, esse aspecto ampliou e enriqueceu nossa época, por outro, nos colocou em uma crise de valores, que ocasiona uma gama de consequências e desafios. O homem passa a não ser, necessariamente, o chefe de família; hierarquias que oprimiam as mulheres vão, aos poucos, sendo desconstruídas; o pai perde autoridade, os filhos ganham direitos, as crianças passam a ser sujeitos de direito. A ordem anterior que organizava o meio familiar já não é mais a mesma, já não é a que
prevalece. Que ordem se tem agora? Não estou aqui levantando uma bandeira de volta ao passado, aos valores universais ou ao patriarcado, mas sim pontuando um momento histórico, híbrido, no qual a relativização, a crise de valores, o excesso de opções e possibilidades, entre outros aspectos trazem a tona uma série de novas questões para se pensar nossa época.
CONJUGALIDADES HIPERMODERNAS
No âmbito da conjugalidade, desenvolver uma união estável e duradoura tornou-se um desafio ainda maior que anteriormente. Como acreditar que é possível aprofundar uma relação, aprender e ajustar o convívio a cada dia se somos estimulados a acreditar que o mais fácil e prático é, na primeira dificudade, trocar de parceiro(a), como se troca um produto por outro mais atualizado, mais em moda ou mais prático? Como sinaliza Sennett4, os contratos entre os sujeitos passam a ser rápidos, as relações perdem importância e os laços afetivos são dominados por uma ordenação de curto prazo. O imediatismo, a superficialidade e a deteriorização das relações estão presentes; cada vez mais, torna-se custoso aprofundar ou investir em algo, em alguém, e esse investir ganha o sentido do investimento financeiro3, do investimento como se estivéssemos falando de bolsa de valores das relações sociais, com a mesma lógica, com os mesmos elementos – rentabilidade, lucros, perdas, ganhos imediatos –, mas, ao mesmo tempo em que parecemos ter mais opções, ficamos cada vez mais sem opções. Estatísticas
mostram o aumento de pessoas morando sozinhas, o prolongamento da vida de solteiro(a), divórcios, dádivas de um individualismo crescente e da diminuição de um pensamento mais social, coletivo e cooperativo. Baseando-se nessa lógica, surge, nos últimos anos, a figura do life couching, o especialista que treina, que aconselha o cliente quanto à melhor forma de obter o mais satisfatório resultado no “investimento afetivo”, entre outros aspectos da vida do cliente. Assim, vendem-se, para além dos livros de auto-ajuda, fórmulas, regras, dicas para o melhor rendimento, para a maior “lucratividade” e o maior aproveitamento das relações. Como se isso não pudesse ser aprendido na prática, a longo prazo – o que seria o problema em um momento de curto prazo, imediatismo, rapidez e variedade de opções.
OBSERVANDO O COTIDIANO
Vejamos alguns exemplos ilustrativos. chego em minha casa, ligo a televisão; na tela um programa de auditório de uma apresentadora infantil, agora, com um programa para toda a família. Uns dos atrativos do programa é a visita de um ator ou uma atriz famosos à casa de uma família de classe média do Rio de Janeiro, com filhos, momento no qual o convidado famoso torna-se babá das crianças daquela família. Olho para a família e não posso deixar de observar como ela é ideal e “perfeita”. Um pai, uma mãe jovens bonitos e filhos (sempre, pelo menos, um casal), bem sucedidos. As brincadeiras com convidado sempre estimulam a beleza – desfile de moda, fantasias, competição etc. Retrato per-
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feito de uma família “perfeita”, ideal, adequada. Então, me perguntava por que raramente vejo na televisão outras configurações familiares. O que isso provoca no telespectador? Desejo de ter essa família, de ser essa família... mas será que ela existe? Será que é tão bonita assim? Que problemas ela enfrenta? Esta é a magia da mídia, vender uma imagem, vender um ideal, uma utopia, desejos... Vejamos algumas novelas: podemos até observar diferentes configurações familiares e conjugais, mas qual é sempre o final? Não foge da utopia do ideal, do felizes para sempre, do casamento perfeito e dos filhos que virão. Se foge desse ideal, um dos personagens, na maioria das vezes, morre, como vemos em alguns exemplos de relacionamentos homoafetivos ou outra configuração que fujam do normativo. Faz-se importante lembrar que, segundo Giddens5, a emergência do amor romântico no final do século XVIII coincide com a emergência da novela, que era considerada a forma narrativa recém-descoberta. Nesse sentido, as novelas insistem no amor romântico, no casamento tradicional e no felizes para sempre, sendo praticamente indispensáveis nas tramas para se chamarem, efetivamente, novelas. Estariam as novelas desatualizadas? Ou estariam ainda cumprindo com as expectativas dos telespectadores? Troco de canal e vejo uma emissora especializada em músicas e videoclipes, direcionada ao público jovem. Na tela, um programa que se chama A fila anda, no qual garotas ou garotos são apresentados a um(a) pretendente, que deve escolher, rapidamente, qual pessoa deseja, mediante uma percepção imeditada de características que ali são apresentadas. Ao
renegar a(o) pretendente, a fila anda. Interessante pensar nesse termo, que já virou moda entre os jovens, se não deu certo com o parceiro atual ou o parceiro do fim-de-semana, passa-se adiante, pois a fila anda! Saindo do âmbito da mídia e seguindo para o meu cotidiano de terapeuta de casais, a grande questão é como manter uma história a dois, como sustentar uma relação afetiva por anos. O felizes para sempre começa a ser trocado para o eterno enquanto dure, mas por que alguns têm durado breves meses ou poucos anos? O que havia antes que há de menos, atualmente, como ingrediente de uma relação estável? Talvez menos opções, menos possibilidades de trocas, e valores universais e fixos. Talvez mais solidez, estabilidade, promessas. Ou mesmo outra lógica de relações. Algumas coisas eram como eram e não se deveria questionar, diriam alguns.
SE FALARMOS DE AMOR...
E se falarmos em amor? Que amor? Que intensidade? Ou seria paixão? Ou seria amizade? Bauman3 afirma que o desaparecimento do relacionamento amoroso como duradouro e para sempre, nesta época de hipermodernidade, coloca em cena uma série de possibilidades novas para o que chamamos de amor, ou seja, passa-se a classificar como amor o sentimento que surge em um relacionamento breve, encontros de fim de semana e em festas, paixões intensas ou, ainda, qualquer noite de sexo pode ser chamada de fazer amor. Então, seguimos a refletir, parece estar dificil nomear os sentimentos tão subjetivos de uma relação afetivo-
sexual.Tudo se nomeia como amor: o amor verdadeiro, o te amo que se dissolve em poucos meses ou na primeira briga, em alguns casos, colocando em dúvida sua estabilidade, sua incondicionalidade. Um amor líquido, como diria Bauman3, em oposição à suposta rigidez e estabilidade dos tempos modernos. Agora torna-se algo fluído, volátil, como um líquido que nos escapa entre as mãos, no meio dessa liquidez, dessa instabilidade (reflexo talvez deste momento hipermoderno). Ou seria o amor verdadeiro, incondicional e estável uma utopia? Confluentes com esta época, surgem conflitos, confusões, casamentos desfeitos em uma rapidez impensável em outras épocas, novas configurações afetivas que ganham espaço. Bauman3 reflete ainda: E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satistação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a ‘experiência amorosa’ à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultado sem esforço (p. 21 e 22).
Essas “mercadorias”, quando consideradas defeituosas ou insatifatórias, rapidamente são trocadas por outras, na esperança sempre presente de que irão satisfazer mais, mesmo que por pouco tempo. Bauman lembra que computadores, automóveis, telefones
perfeitamente ainda usáveis, nesta época de intenso consumo e trocas, são deixados de lado sem remorsos e considerados obsoletos, mesmo que em bom estado. Novas versões entram no mercado constantemente, tornando as anteriores verdadeiros lixos tecnológicos. Nesse sentido, o autor questiona “Alguma razão para que as parcerias sejam consideradas uma exceção à regra?”3 (p. 28). Temos agora a possibilidade de escolha – que se volta, muitas vezes, contra nós –, possibilidade de negociação na relação, diversidade de configurações, divisão mais fluida de funções. Reflexo, talvez, desta época de excessos, de diversidade, de liberdade, de relativismo, superficialidade e rapidez. Não é à toa que o ficar faz tanto sucesso entre os mais jovens. Olhou, gostou, beijou, transou e partiu pra outra. Quer ficar um pouco mais, entra num rolo; quer curtir a amizade, mas não quer namorar, entra na amizade colorida, que permite outros relacionamentos paralelos; quer morar junto, mas sem casar (afinal casar é algo tão sério e soa como certo e definitivo), promove seu namorado(a) a namorido(a), expressão nova no meio desta geração. Dentre tantas opções, surgem outras demandas, novas dificuldades, novas angústias e novos questionamentos. Singly6 discute a questão de o casamento não ser mais atrativo, visto que ele representaria uma ligação direta com os papéis tradicionais de conjugalidade, tornando a concubinagem, o morar junto, entre as outras opções levantadas acima, mais atrativas, dado sua flexibilidade e adaptação para cada parceiro e a manutenção de interesses individuais dos cônjuges. Bauman3 comenta que o viver junto
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significa manter as possibilidades em aberto, ou seja, deixar a relação fluir e acontecer até quando ainda for conveniente para os parceiros. Não há, nesse caso, qualquer jura de amor eterno, ou seja, tudo seria mais volátil e instável, e há uma ilusão de uma não renúncia a outras possibilidades de relações num futuro próximo ou distante.
PARENTALIDADES HIPERMODERNAS, OS IMPASSES DE UMA ÉPOCA
No âmbito da parentalidade, os impactos deste momento hipermoderno também não passam despercebidos. Como exemplo, podemos citar a pesquisa de Brito7 sobre as dificuldades do meio jurídico em definir a paternidade. Essa autora investiga, em seu livro, ações de contestação de paternidades, a partir de uma grande incidência de exames de DNA. Discute, no meio jurídico, as diferenças entre uma paternidade biológica e a afetiva. Pergunta o que é, afinal, um Pai. Sabemos que, como estudou Perucchi8, o discurso jurídico normatiza e produz sujeitos, produz paternidade e regula seu exercício. Complemento ainda que esse mesmo discurso segue influenciado por este momento de volatilidade, imprevisibilidade, de relações concebidas como objetos de mercado, de consumo. Como pergunta Brito7 em suas reflexões, estariam as relações de filiação também instáveis, incertas? Estaria a família incerta? Na medida em que existe a possibilidade de uma contestação de paternidade, depois de anos de vivência, a qualquer momento, seu pai pode não ser mais considerado pai, mediante os meios jurídicos, afetando toda uma
rede de relações. Então, fica a pergunta sobre o que é um verdadeiro pai e se o meio jurídico tem todo esse poder em definir esta questão. Brito7 demonstra, em sua pesquisa, situações impensáveis em outras épocas no direito de família, verdadeiros nós para o meio jurídico e também para a psicologia. Essas questões podem ir além se pensarmos nas conseqüências dessas determinações jurídicas quanto à paternidade e refletirmos sobre a hipermodernidade. Estamos, nesta lógica hipermoderna, a procura de novos pais, de pais perfeitos (estaria aqui, novamente, outra utopia?), pais melhores, mais adequados, mais afetuosos, mais semelhantes fisicamente às crianças?7 Ter filhos passa a ser mais um novo produto da sociedade, algo que se pode comprar, programável, mais um produto a ser consumido. Qual seria o próximo passo? Filhos geneticamente alterados em cada geração, atualizados e descartados no mercado capitalista como computadores e celulares? Assim, visualizamos as questões levantadas por Brito quanto à instabilidade da parentalidade no meio jurídico, refletindo nosso momento atual. Filhos podem ser deletados, álbuns de família e parentes também, tudo por uma instável norma jurídica que qualifica e confunde filiação e parentalidade, e que não está atenta às consequências sociais de suas decisões. Bauman3 alerta que estamos vivenciando uma cultura de desvinculação, de descontinuidade e esquecimento, um oposto a anterior modernidade sólida. Posições fixas e estáveis passam a ser desprezadas, e a descartabilidade virou regra, como ocorre com produtos. Agora, as relações humanas
passam a ter prazos de validade. O autor lembra que o mercado capitalista não pode continuar seu percurso se as pessoas se apegarem aos produtos ou se mantiverem qualquer comprometimento com algo. Nesse sentido, temos uma indústria de marketing produzindo e gerando desejos, estimulando o consumo e a busca de uma ilusória satisfação máxima. Nas relações humanas, não tem acontecido de forma diferente.
FINALIZANDO... OS DESAFIOS VIVENCIAIS E PROFISSIONAIS HIPERMODERNOS
Nosso desafio atual é conviver com o instável, com a angústia, com a insatisfação, viver cada momento como o último, aprofundar e intensificar as relações e saber renunciar para escolher. Pensar com o olhar crítico e distanciado as relações sócio-afetivas, parentais e conjugais, sob o crivo do pensamento hipermoderno e de estudos sobre utopias que nos ajudam a estranhar o caminhar, o que temos feito em nossas relações humanas. Estes auxiliam também a refletir sobre nossa atuação como psicólogos clínicos e/ou sociais, em prol de um questionamento e uma reflexão quanto a como desconstruir ou pensar outras lógicas, outros caminhos para as relações. Além disso, é uma maneira de estar alerta quanto às possíveis conseqüências desse caminhar que nos engole, da lógica de mercado. Diante desses pressupostos, na condição de terapeuta, vejo-me na posição de co-construtor, juntamente com cliente em atendimento (indivíduo, casal ou família) de novas possibilidades, de questionamentos, de pensar junto
como deslizar sobre essas questões, buscando melhores alternativas, buscando equilíbrios, revendo e ressignificando valores e questionando determinados movimentos, mediante esta ótica. Minha escuta como terapeuta, diante deste olhar, torna-se mais crítica, questionadora, fundamentada e contextualizada em uma época, em um momento sócio-histórico. Incitar essas reflexões na clínica torna-se um desafio constante. Ao mesmo tempo em que responde angústias e destrava nós, também questiona meu papel como terapeuta, quando não angustia ainda mais. Deixar-se levar pelos imperativos hipermodernos ou resistir, reinventar, desconstruir? Quando é possível se reinventar? Que benefícios eu tenho em seguir esse movimento que me seduz e me engole? Que conseqüências positivas ou negativas me traz? Essas são questões minhas, nossas, de nossos clientes, as quais, independentemente de meus próprios valores, são construídas no processo terapêutico. Não há respostas prontas, não há receitas; são construções constantes e em movimento, sempre alinhadas a uma preocupação ética e de responsabilidade. Seguramente, não se pode questionar que o contexto terapêutico é um espaço propício para essas reflexões, e os estudos sociais nos auxiliam muito na fundamentação dessa prática, trazendo elementos, vislumbrando novas peças para o quebra-cabeça diário, construído com nossos clientes, sobre seus caminhos e as angústias de um mundo hipermoderno que nos desafia a cada instante. Questionar a minha própria prática também é fruto dessas reflexões, dessa lógica hipermoderna. Como
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terapeuta, sou também um produto capitalista desse sistema? Algo para ser consumido? Também descartado? Que implicações surgem dessa posição? Neste ponto, entram, atualmente, diferentes linhas e abordagens terapêuticas que estão bem alinhadas à lógica de mercado. Estariam as terapias mais processuais, longas, por vezes, angustiantes e doloridas, em extinção? Diante do contexto rápido, diretivo e consumista, devem ser todas as terapias integradas e adaptadas a essa lógica ou estariam fadadas a se extinguirem? São dilemas discutidos em diversas linhas teóricas, na psicologia clínica, as quais buscam seu lugar no sistema hipermoderno. Nesse sentido, sigo buscando fazer uma prática que possa ir além, evidenciando para o cliente essas reflexões, de modo a integrá-las a suas questões próprias, as quais o levam à clínica, com minhas questões e intervenções, com nossa relação. No entanto, se não tenho receita, se não quero ser um produto, o que tenho para oferecer? Reflexões, co-construção, novos e velhos caminhos, estratégias... Mas sempre com uma preocupação ética e atento a esses elementos todos aqui explorados. Talvez, ainda assim, eu seja um produto.... porém questionador, não alienado, reflexivo, com um olhar que vai além do sistema em que vivo. Ou... seria isso tudo também uma utopia? Convido o leitor a refletir....
REFERÊNCIAS bibliográficas
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“arcaico” na nova família brasileira: notas sobre a dimensão invisível da mudança social. In: FIGUEIRA, Sérvulo A. (Org). Uma nova Família? O moderno e o arcaico na família de classe média brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. p. 11-30. BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. SENNETT, R. A Corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. São Paulo: Editora Record, 1999. GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor & erotismo na sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. SINGLY, F. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. BRITO, L. M. T. Paternidades Contestadas: a definição da paternidade como um impasse contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. PERUCCHI, J. ‘Mater semper certa est, pater nunquan’: o discurso jurídico como dispositivo de produção de paternidades. Florianópolis, 2008. p. 242. Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina.
Educação a distância e construcionismo social: aproximações possíveis*
artigo
The distance learning in a social constructionism perspective. Resumo: Vivenciamos na Internet, hoje em dia, vibrante ambiente de colaboração na produção de informação, conhecimento e cultura. Esse cenário é mais tímido quando o contexto é a educação a distância, que utiliza a Internet como meio. A colaboração não acontece espontaneamente, como na Internet. Professores e pesquisadores da área buscam estratégias para promoção de debates com maior participação dos alunos, em fóruns de discussão, pois a participação não é expressiva. O artigo busca refletir sobre o porquê dessa diferença. O Construcionismo Social é aqui trazido como um aporte teórico relevante para a educação, no incremento da co-construção de saberes e da colaboração entre pares.
ABSTRACT: We are experiencing on the Internet today a vibrant atmosphere of collaboration in the production of information, knowledge and culture. However, such scenario looks shyer when the context is distance learning in formal learning processes. Collaboration does not happen spontaneously, as in the Internet. The Professors and researchers search for strategies to promote better debates in foruns because the participation is not expressive. The aim of this work is to show the reason of this difference. The Social Constructionism has been brought here as a relevant theoretical support to boost the co-construction of knowledge and pair collaboration.
Palavras-chave: construcionismo social; educação a distância; colaboração; moderação eletrônica.
Keywords: social constructionism; distance learning; collaboration; e-moderating.
Vera Cecília Frossard Psicóloga, mestre em ciência da informação pelo IBICT/ECO-UFRJ; terapeuta de família; membro da coordenação pedagógica de educação a distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
A colaboração na internet
A colaboração na Internet é espontânea. A Internet se formou assim, colaborativamente. A maior parte dos softwares que gerenciam a Internet é de código aberto: os usuários têm a liberdade de executar, copiar, estudar, modificar, aperfeiçoar e redistribuí-los. Outro exemplo desse espírito colaborativo na Internet são as RFC**. Engenheiros de redes descrevem protocolos de rede e submetem à avaliação da comunidade mundial. A votação determina se o protocolo será publicado. Esses dois exemplos de colaboração são os pioneiros na Internet. Esse comportamento se espalhou, de forma generalizada, para além da categoria profissional dos informatas. Artistas, pesquisadores, profissionais liberais, jovens introduzem novas formas cooperativas de produção de informação, conhecimento e cultura, em oposição às formas tradicionais de propriedade, baseadas em hierarquia e mercado1. Indivíduos tornam-se produtores de seu próprio ambiente informacional e cultural. Nunca houve uma mídia que lhes desse voz em larga escala. Passamos de uma economia industrial da informação – caracterizada por poucos produtores para muitos consumidores passivos – para uma economia interconectada da informação, em que a produção é feita em colaboração e os consumidores participam desta produção1. A Internet está plena de exemplos desse novo
* Trabalho adaptado de artigos para os eventos XI Congresso Cread Mercosul, Buenos Aires, agosto de 2007 e XII Congresso Cread Mercosul, Rio de Janeiro, outrubro, 2008. ** Request for Comments. Ver http://www.rfc-editor.org
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* Ver http://pt.wikipedia.org ** Ver www.gnu.org/ copyleft/fdl.html *** Ver http:// creativecommons.org **** Ver www.benkler.org/ wealth_of_networks/index. php/Main_Page
modelo cultural. O exemplo mais conhecido é a Wikipédia, enciclopédia feita, colaborativamente, por milhares de pessoas.* A enciclopédia atinge a marca de dois milhões de artigos publicados. Ela é gratuita, escrita em mais de oitenta idiomas. Wikipédia é implementada pelo Wiki, um software livre que permite edição colaborativa para criação de textos. Outros exemplos: • Open Directory Project, em que 40.000 pessoas colaboram para criar um diretório como o Yahoo; • Kuro5hin.org é um site sobre tecnologia e cultura, produzido, colaborativamente, pelos usuários da Internet; • O Everything2 é uma comunidade on-line sobre todo tipo de assunto: cultura, humor, tecnologia, poesia, ficção. Os textos são interligados aos outros por meio de palavraschave designadas pelo autor. Os leitores também criam associações entre os textos em decorrência de sua leitura e seu acesso; • SETI@home, em que voluntários oferecem a CPU do seu computador para a maior aplicação distribuída que existe, para busca de vida inteligente em outros planetas. As informações coletadas por meio de um rádio telescópio são processadas em milhões de computadores dos voluntários. • Folding@home, que faz o mesmo para análise de resistência de drogas, para o tratamento de várias doenças. Outro inovador movimento na Internet é a iniciativa de informação livre ou copyleft, a qual preconiza a informação de acesso universal e aberta como o software de código
aberto: use-a, modifique-a, incorpore melhorias e disponibilize. Autores produzem seu trabalho com licenças que lhes garanta a autoria, mas a informação está disponível na rede, sem custo para o público leitor. Licenças como GNU Free Documentation License,** da Free software Fundation, e The Creative Commons Non-Commercial Share Alike License (CCNCSA),*** permitem que textos, apresentações e conteúdo de páginas na web sejam distribuídos e reaproveitados, mantendo, porém, o reconhecimento das autorias. Yochai Benkler, autor referenciado neste trabalho, oferece seu último livro para download1, além de permitir que o público colabore, interfira no texto, por meio da ferramenta de edição Wiki.**** Este é um interessante caso de escrita colaborativa que parece inaugurar um inovador modelo para produção de trabalhos científicos. A livraria virtual Amazon, no entanto, vende o trabalho para quem estimar ter o produto livro, original, com boa brochura e encadernação. Trabalhos colaborativos na Internet parecem indicar uma inovação com potencialidade de reorganizar o nosso espaço cultural e econômico. A educação a distância tem amplo e fértil terreno a explorar, tomando partido da colaboração entre pares e o efeito da construção desta inteligência coletiva, distribuída, ativa, sinergicamente, em interação por meio da rede.
Afinal, o que é Educação a Distância?
A educação a distância tem como característica a separação entre professor e alunos no espaço e/ou tempo. A comunicação, nesta modalidade de
educação, é mediada por tecnologias. A primeira delas foi a escrita, por meio da comunicação epistolar. A Grécia e a Roma antiga já usavam correspondências para enviar informações científicas para discípulos distantes fisicamente de seus mestres2. Esse costume atravessou os séculos, mas os principais marcos da educação a distância, como estratégia formal de ensino em escolas e universidades, remontam ao século XIX, nos Estados Unidos e na Europa, principalmente, para o ensino de línguas, a formação técnica e docente. Em meados do século XX, o rádio e a televisão passaram a ser utilizados como tecnologias preferenciais para a EAD. As experiências no Brasil se tornam expressivas a partir do século XX. Em 1922, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro criou um programa com o uso do rádio para ampliar o acesso à educação. O Instituto Universal Brasileiro oferece cursos livres e profissionalizantes por correspondência desde 1941. O Projeto Minerva, da Rádio MEC, com apoio de material
impresso, ofereceu ensino básico para milhares de pessoas. A Fundação Roberto Marinho, com o Telecurso 2º Grau e o Supletivo 1º Grau, preparou milhares de alunos para os exames supletivos, com programas televisivos e material impresso disponíveis em bancas de jornal. Mais recentemente, o Telecurso 2000 tem oferecido capacitação para o trabalho para milhares de pessoas, também com programas gravados e auxílio de material didático impresso. A educação a distância levou informação e capacitação para milhares de pessoas por correio postal, rádio e televisão. No entanto, o uso da Internet (e das tecnologias de comunicação e informação) trouxe fenomenal crescimento para a EAD, tornando-a bem mais popular e com potencial de ser interativa. Pesquisa recente, solicitada pela Câmara dos Deputados, mostrou o incrível crescimento da EAD que usa a Internet como meio, no Brasil*, em apenas seis anos:
Ano
Cursos
Matrículas
2000
10
1.689
2001
16
5.359
2002
46
40.714
2003
52
49.911
2004
107
56.611
2005
189
114.642
2006
349
207.206
Os cursos a distância na Internet, geralmente, são oferecidos em Ambientes Virtuais de Aprendizagem: sistemas de informação que utilizam a ferramenta de comunicação e informação mais popular da Internet, o WWW. Esses ambientes, em geral, reúnem as ferramentas usuais da Internet, como e-mails, fóruns de dis-
cussão, blogs, chats, bibliotecas virtuais, grades com os materiais didáticos dos cursos em várias mídias. Alunos e professores acessam o ambiente do curso para leituras, estudos, trocas e interação com o grupo. Quase todas as universidades brasileiras e instituições de ensino técnico e superior, de alguma maneira, estão
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* Informações sobre a pesquisa podem ser obtidas em www.ead. fiocruz.br/noticias/index. cfm?matid=13509. Demais informações sobre os números em EAD podem ser obtidos na página do Inep www.inep.gov.br
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envolvidas com iniciativas de educação a distância. Como os exemplos são muitos, apenas para ilustração, seguem algumas instituições: consórcios de universidades públicas do Rio de Janeiro (Fundação Cecierj/Cederj); consórcio de universidades particulares (Rede de Cooperação Universitária); Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fiocruz, para qualificação dos profissionais do Sistema Único de Saúde. Recentemente, a EAD virou política pública, com a Universidade Aberta do Brasil, como estratégia para oferecer formação universitária para vários profissionais, principalmente, professores do ensino fundamental. A Internet, além de popularizar essa modalidade de educação, trouxe a possibilidade de práticas educacionais interativas e dialógicas. O rádio e a TV são unidirecionais, não permitem a promoção de espaços de troca e colaboração. No entanto, professores apontam a baixa participação dos alunos em fóruns de discussão. Alunos se dedicam ao estudo, lêem os materiais didáticos e a bibliografia recomendada, elaboram trabalhos e atividades, mas interagem pouco. As discussões em grupos, para reflexão e trocas, não ampliam o tema como desejado. A seção seguinte articula algumas idéias sobre isso. A colaboração na educação a distância
A educação a distância não espelha o ambiente espontâneo de interação e colaboração característico da Internet. Professores e pesquisadores da área buscam estratégias para promoção de debates com mais e melhores participações em fóruns de discussão,
pois eles não acontecem espontaneamente. As experiências em EAD, que detectam a baixa interatividade dos alunos, são inúmeras; refereciam-se, à guisa de exemplo, alguns trabalhos recentes.3, 4, 5, 6, 7, 8 Será o aspecto formal da educação o obstáculo para maior colaboração entre alunos: currículos e programas previamente determinados, atividades inseridas em um sistema de avaliação, com respostas consideradas melhores do que outras, prazos fixos, competências pessoais não exploradas? A colaboração na Internet é espontânea, permeada pela liberdade de escolhas; as pessoas dedicam suas competências específicas à construção de informação, sem ninguém dizer a elas em que deverão contribuir. Os blogs, as comunidades temáticas, a construção conjunta de textos, os sites de histórias e os artigos são a expressão da liberdade de escolha. Este pode ser um dos aspectos que limita a construção conjunta de conhecimento na educação a distância: a ausência de maior engajamento dos alunos nas propostas educacionais e na valorização dos saberes prévios. Será possível uma educação com uma perspectiva construcionista social, que leve em conta os significados trazidos pelos alunos como ponto de partida para o processo dialógico, que poderá incorrer em novas e ampliadas descrições da realidade, sem valorações por notas, sem currículo pré-definido? Romper com currículos e notas envolve questões políticas, de difícil resolução, uma vez que a educação escolar e formal é regulamentada. No entanto, à semelhança das práticas terapêuticas de terapias compreendidas como construção social, alguns pressupostos do construcionismo
social podem ser úteis em práticas na educação, como o foco no processo de comunicação da turma, e não somente sobre o conteúdo, a curiosidade do professor sobre as descrições dos alunos, perguntas que convidem à reflexão. Promove-se, assim, uma educação em que alunos e professores percorrem caminhos que se fazem ao caminhar, construindo novos significados compartilhados, isto é, realidades discursivas, a cada passo.
Construcionismo Social e Educação
Para o construcionismo social, a realidade e o conhecimento são construídos a partir de interações humanas inseridas na linguagem, em um contexto histórico e cultural9. A ênfase do construcionismo social é voltada para o modo como as pessoas criam significados próprios. É na linguagem e na prática social que o conhecimento é constituído10. Apesar da dificuldade em compor conjunto único de definições que englobe todos os autores construcionistas sociais, há convergência em torno de quatro idéias:11 1- A especificidade cultural e histórica das formas de conhecer e descrever o mundo. As descrições sobre o mundo produzem a realidade pela linguagem, a partir de condições sócio-históricas dos sistemas de significação. Não há relação de necessidade entre as palavras e a realidade descrita por elas. 2- O conhecimento é produzido por meio da interação social, dos significados construídos em relacionamentos, a partir de processos sociais de negociação, comunicação, conflito e consenso.
3- Interligação entre conhecimento e
ação. As descrições que constroem a realidade produzem formas de agir sobre o mundo, implicam formas de ação social. 4- Valorização de uma postura crítica. Pensar sobre os significados construídos traz constante postura de reflexão sobre a realidade na medida em que indagamos sobre o que nos é dado como certo, para que e para quem servem as descrições e valores em um dado momento histórico e social. A apropriação dessas idéias no campo da educação nos traz amplas possibilidades de construção de conhecimento. Transformar narrativas, ampliar significados, criar novos vocabulários tem o efeito de reinventála sob bases mais amplas. Não seria esse também o papel do professor? Educar vem do latim educere, que quer dizer criar, nutrir, cultivar. Sugere idéia do cuidado com a terra e com as pessoas. A etimologia da palavra educação nos faz lembrar o campo da saúde.12 Ambas as áreas convergem para a idéia de acolhimento e transformação. As analogias entre o trabalho do terapeuta e professor são bastante cabíveis. A seguir, aspectos centrais do construcionismo social e sua utilização na terapia familiar, e as possíveis analogias com práticas da educação. 1) Foco no significado: a investigação construcionista leva em consideração os significados particulares que as pessoas constroem nos relacionamentos e que balizam sua vida, e os novos significados construídos no processo de terapia (aprendizado). O recontar de uma narrativa produz outra, com aspectos da antiga narrativa,
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porém ampliada.13 Este é o importante aspecto dialógico do aprendizado. Cada comentário tem uma lógica, tem significados próprios. Perguntar sobre eles pode enriquecer o diálogo. Embora articulasse sua prática com a metáfora sistêmica, a postura de curiosidade, desenvolvida por Cecchin, gera práticas dialógicas. O autor propõe que o terapeuta (professor) deva manter em alerta sua curiosidade pela fala do outro, escutando-a como algo novo, do qual não ouviu falar.14 Novos significados surgem ou são ampliados a partir desse interesse pela fala do outro. Cecchin propõe as perguntas circulares como uma ferramenta linguística para manter o terapeuta (professor) em constante postura de curiosidade, convidando o indivíduo a refletir sobre suas idéias. Ele acredita que podemos observar conseqüências interessantes originárias de um contexto interrogativo, em que se abandonam “verdades” rígidas, caracterizadas pelo verbo ser, “a realidade é assim”, para ênfase nas relações. “Isso faz com que as coisas circulem”,15 pois as idéias conectam-se umas às outras. A partir de perguntas circulares, as hipóteses dos alunos ganham em amplidão e complexidade analítica. Essas perguntas circulares podem começar com se e se direcionar para o futuro e para situações hipotéticas. Por exemplo: se acontecesse tal fato, como a sua descrição sobre tal coisa ficaria? No momento em que uma pergunta sacode o sistema de crenças, cria oportunidade para novas narrativas, e as explicações ganham em dimensão: “se somos curiosos, questionamos as premissas, nossas próprias e as dos outros.”14 Toda a produção intelectual do aluno traz descrições próprias sobre
o mundo, seu repertório particular. Perguntar sobre esses significados é valiosa estratégia para ampliar o conhecimento. Qual foi o ponto de partida, que experiências pessoais o ajudaram em sua construção? Essas são perguntas que convidam o aluno à reflexão e podem gerar novas respostas. O professor abandona o seu lugar de especialista para transformar-se em genuíno curioso sobre os significados trazidos pelos alunos, deixando transparecer o respeito pela produção da turma e valorizando o diálogo como premissa básica para construção do conhecimento. Nesta concepção teórica, não faz sentido avaliar a produção do aluno que não seja dialogicamente construída. Se as respostas não levam em conta as várias facetas do problema/ fenômeno analisado, o professor sugere novos cenários ou elementos, usando, por exemplo, as perguntas circulares, citadas por Cecchin. O tutor não avalia a resposta atribuindo-lhe nota reduzida, não solicita ao aluno refazer o trabalho por estar incompleto, mas sugere-lhe contextos que não cabem em sua resposta. O aluno agora tem o desafio de ampliála, sendo co-responsável pela construção do conhecimento e bem mais motivado a refletir sobre sua produção, a qual se fez na troca, a partir do diálogo. Exemplos de perguntas que ampliam: o fenômeno/problema acontece em que condições? Como ele se relaciona com outros elementos desse contexto? Se acontecesse dada situação, como seria sua análise sobre o fenômeno/problema? O ato de perguntar, se compartilhado com a turma, ajuda-os a exercitarem a curiosidade e o pensamento reflexivo, além de criar um sentido
de produção coletiva da turma; todos são responsáveis, de alguma maneira, pela produção dos trabalhos. Cabe uma última pergunta ao aluno: qual pergunta mais o ajudou a refletir sobre o trabalho e o motivo. Assim, o grupo procede à análise das perguntas que mais ampliaram, ganhando expertise em perguntar, aprimorando a curiosidade. 2) Foco nos processos terapêuticos (educacionais) como co-construção: o terapeuta (professor) não adota postura de especialista. A responsabilidade do terapeuta (professor) é criar um contexto de colaboração por meio do qual seja possível estabelecer reflexões que levem a significados ampliados ou novos. Dessa maneira, promove-se nova dinâmica de relacionamentos entre terapeuta (professor) e família (alunos), caracterizada por colaboração na produção de sentidos, e não por mecanismos de hierarquia. De um lado, a participação do terapeuta (professor) neste processo dialógico dá-se como um observador participante que busca – por meio de uma posição igualitária, e não hierárquica – construir, colaborativamente, com os outros; de outro lado, como facilitador, ele busca promover e sustentar a conversa. Ele considera e trabalha com todas as visões surgidas,16 mantendo a sua postura de curiosidade. 3) Foco em processos reflexivos: quando pessoas compartilham seus pontos de vista, cada uma recebe da outra diferentes descrições de realidade.17 Os processos reflexivos são trocas entre o falar com os outros sobre vários assuntos e escutar os outros a falarem sobre os mesmos assuntos. A fala com os outros é um diálogo externo. Aquela que a pessoa
tem consigo mesma (quando escuta a fala dos outros) é um diálogo interno, isto é, com diferentes vozes não presentes no momento, mas participantes dos diálogos acontecidos na história de relacionamentos de cada um, além das vozes implícitas nos valores culturais transmitidos nos vocabulários utilizados. Esses dois tipos de fala podem dar ao mesmo assunto significados diferentes. O que acontece na fala externa será uma perspectiva para a fala interna e viceversa. Perspectivas múltiplas sobre o mesmo assunto criarão novas idéias e novos significados. Uma versão diferente influencia a atitude de uma pessoa em relação a esse mundo e a torna diferente do que era antes.18 Na terapia de família, esses processos têm sido possibilitados por meio da equipe reflexiva: um grupo de terapeutas assiste, em silêncio, à conversa entre a família e os terapeutas de campo. Em algum momento, eles são convidados a enunciarem suas idéias, isto é, seus diálogos internos, sobre o que ouviram na sessão até aquele momento. A família tem a oportunidade de experimentar a fala interna, escutar, em silêncio, a equipe reflexiva. Ambas as falas são propiciadoras de construção de novos significados. A educação a distância pode se valer desses espaços reflexivos por meio dos fóruns de discussão, mesclando os diferenciados níveis de reflexão, as falas interna e externa. A turma, dividida em grupos, alternaria os momentos de debate sobre determinado tema – enquanto um grupo debateria um tema, o outro observaria sem interferência. Após tempo préestabelecido, alternam-se as posições entre esses grupos. Ao fim, promove-se debate para analisar o processo
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de construção dos grupos. Algumas perguntas norteadoras para esse fórum de avaliação: quais são os momentos/temas mais acalorados, quais são as convergências/divergências de opinião, quais são as idéias originais, quais são as mais citadas? Houve comentários/perguntas sem interlocução e interação? Que análise pode ser feita sobre a evolução do debate? Houve características próprias dos grupos? Como as pessoas sentiram os vários espaços de reflexão? Ouvir o debate provocou novas opiniões? Analisa-se o processo de comunicação e construção da turma. É importante manter-se atento à introdução de diferenças, buscando a “diferença que faz diferença”, lembrando a definição de Bateson19 sobre informação, “Informação é uma diferença que faz diferença”; Tom Andersen diferencia três tipos de diferença: a primeira é uma diferença muito pequena para ser notada pelo aluno; a segunda é uma diferença considerável, grande o suficiente para ser notada; a terceira é uma diferença grande demais, que pode ter um efeito desorganizador no sistema. Em tais casos, o sistema, geralmente, se fecha para aqueles que tentariam implementar tal diferença.12 A partir dessas considerações, surgiram algumas diretrizes para o trabalho do professor: atividades alheias às realidades dos alunos, que não levem em conta suas competências pessoais, suas singularidades, seu tempo, podem gerar um sistema paralisado (considerado, nesse contexto educacional, aquele em que não há interação na construção de novos significados), isto é, um sistema cuja “informação não fez diferença”, ou porque é grande demais para ser alcançada, ou porque é pequena de-
mais para ter valoroso significado. Cursos a distância correm este risco, de não levarem em conta as realidades locais, separadas dos grandes centros produtores do conhecimento. O professor deve estar atento a perceber “informações que fazem diferença” para a turma e convidá-los a formarem comunidades de discussão ou outra proposta de interesse dos alunos. O professor sensível ao processo de comunicação dos alunos não deixa que perguntas, reflexões e comentários que “fazem diferença” fiquem sem contribuições. Os demais alunos são convidados a comentar idéias originais que tenham potencial de se desdobrar em significados ampliados sobre temas. O curso, assim, se aproxima da realidade dos alunos, leva em conta suas competências, seus interesses particulares O professor facilitador dirige seu olhar para o processo de comunicação.
Considerações finais
A Internet estendeu o tapete vermelho para a emergência de formas colaborativas para a produção da informação, do conhecimento e da cultura. Entretanto, esse fenômeno é mais tímido na educação que utiliza a Internet como meio, a educação a distância. A fala de alguns professores da Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz sintetiza a necessidade de maior colaboração entre alunos: “O que fazer para que os alunos debatam mais nos fóruns?”; “O debate está fraco, como promover maior colaboração?”; “Os tutores têm que ser provocativos”; “Temos que reforçar a participação nos fóruns”. Muitas pesquisas sobre interação em fóruns de
discussão detectam a baixa participação dos alunos e a necessidade de traçar estratégias para promoção de maior participação.3, 4, 5, 6, 7, 8 Este trabalho buscou refletir o porquê dessa diferença entre a Internet e educação a distância: a Internet é um espaço livre de troca e colaboração. As propostas pedagógicas, em sua maioria, são definidas sem o engajamento dos alunos. Os alunos têm liberdade reduzida, limitam-se a construir respostas, as quais devem ser convergentes aos objetivos de aprendizagem do curso. Se assim for, serão avaliados positivamente. O construcionismo social, por respeitar e levar em conta os significados trazidos pelos sujeitos, sem juízo de valor, e por promover espaços de compartilhamento dessas visões de mundo, cria possibilidades de transformação e ampliação de narrativas, pela troca, pela reflexão e pelo diálogo. O construcionismo social desponta como uma teoria libertária e inovadora para a educação. Este é um terreno fértil ainda a explorar. Um dos desafios é a formação do professor para transformar-se em genuíno curioso sobre os significados trazidos pelos alunos, saber lançar perguntas reflexivas para ampliação dos temas em debate, ter olhos para o processo de comunicação da turma. O mundo é construído pelos seres humanos, e não descoberto por eles, como se houvesse verdades a desvelar. Essa concepção é particularmente interessante na educação, pois convida cada pessoa a refletir sobre sua responsabilidade ética na construção de novos significados sobre a realidade. “Qualquer coisa que inventamos é de nossa responsabilidade”20. O conhecimento traz conseqüências sociais, e este é o termômetro para considerá-lo válido ou não9. A educação tem papel diferenciado para promover formas
de conscientização da implicação dos sujeitos na promoção de uma sociedade mais justa e cidadã.
REFERÊNCIAS bibliográficas
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Educação a distância e construcionismo social Vera Cecília Frossard
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INCLUSÃO E COMPROMETIMENTO: UMA REFLEXÃO SOBRE A SALA DE AULA
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LUCILA TOLEDO BERNARDES
ducar é, antes de tudo, falar de uma relação profunda entre educador e educando. Aquele que escolhe a educação como profissão parte do pressuposto de que aposta em seu aluno. O educador por opção acredita na pessoa que seu aluno possa a vir a se tornar. Há quem diga que faz tal escolha para perpetuar a cultura, por acreditar no futuro ou, simplesmente, para se eternizar nas gerações vindouras. Otimista, ele acredita no outro, no humano e na idéia de poder ensinar e cuidar de seu aprendiz. Não importa a causa, mas essa paixão, essa vontade, o propulsiona à utopia. Como nos diz Terezinha Rios1, “(...) não é algo Utópico no sentido de que não possa ser realizado, mas sim algo a ser realizado. As utopias nos fazem caminhar. É preciso saber trabalhar com o conceito de Utopia não como uma meta além do alcance, e sim como uma expectativa para a qual se progride, convertendo o ideal ainda não realizado em realização, no sentido de que ‘o que ainda não é pode vir a ser’.’’ Aquele professor que se implica com o aluno e assume responsabilidades no processo de ensino-aprendizagem não se exime do papel de educar. Nessa ação educativa, não há limites para as diferenças que possam aparecer. Capazes de aprender, somos todos. O professor consciente, que assume esse compromisso, considera o ponto de partida diferenciado de cada aluno e pode desenvolver um bom trabalho. As crianças ditas normais e aquelas com necessidades especiais, “incluídas” ou “excluídas”, têm espaço e vez nas mãos de um professor que acredita verdadeiramente na capacidade de seu aluno, seja essa qual for. Contudo, quando falamos em inclusão escolar, nos deparamos com variáveis que vão além da relação professor-aluno. A escola se estrutura num contexto coletivo, representando o mundo social das crianças e dos adolescentes e, como tal, oferece regras de convivência, conhecimentos culturalmente compartilhados, proporcionando a construção da identidade de cada um a partir da relação com seus pares. As escolas são, em sua maioria, organizadas por classes estipuladas pela faixa etária. Para cada série, são traçados objetivos pedagógicos e normas de conduta que abordam o modo de se organizarem materiais e tarefas, assim como princípios como respeito, solidariedade e cooperação. Ao se defender uma meta anual para os alunos, cria-se, por um lado, uma forte referência de percurso e desenvolvimento que serve como parâmetro para pais, educadores e também para as crianças. Os alunos têm a possibilidade de se superar, inspirados e desafiados pelo grupo. Por outro lado, busca-se, em tese, equiparar aprendizagens, o que seria uma ilusão, uma vez que somos diferentes e aprendemos de forma e ritmos diferentes. Lino de Macedo2 sugere que, ao refletirmos sobre a Educação Inclusiva, olhemos pela lógica da relação, e não pela lógica da exclusão, que se apóia na lógica das classes.
Pedagoga, orientadora educacional do Colégio Santa Cruz; professora de Teoria de Educação do Instituto Tomie Ohtake; aluna do quarto ano do curso de formação em Terapia Familiar do Instituto FAMILIAE, São Paulo, SP.
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Define-se a inclusão pela lógica da relação, por intermédio da qual um termo é definido em função de outro. A lógica da exclusão é definida pela extensão dos termos que possuem algo em comum, ou seja, atendem a um critério ou referente (exterior). A lógica da inclusão é definida pela compreensão, ou seja, por algo interno a um conjunto que lhe dá sentido2.
Incluir, do latim includere, tem como definição abranger, envolver, implicar, compreender... Uma ação que tenha como proposta a Educação Inclusiva só se dá por meio desses sinônimos. De alguma forma, ela sempre considera o outro, a relação. Abrange-se todo o grupo, envolve-se com o trabalho, implica-se com o aluno e se compreende todo o contexto envolvido. Esse é apenas um modo de se apresentarem tais palavras na ação educativa. Certamente, há outros. Ao ler o texto de Elizabeth Polity3, retomei as experiências de sucesso de inclusão que vivi e conclui que todas também tiveram, em sua base, a relação que se estabeleceu entre a criança, o grupo, sua família e a equipe de educadores (professor, orientador, coordenador e diretor). Para se receber uma criança portadora de necessidades especiais em uma escola regular, há de se ter um plano de ação no qual toda a rede social da criança ou do adolescente esteja comprometida. A mediação tem um papel fundamental nesse processo, pois é o professor que vai ler as necessidades do aluno, que vai criar caminhos e buscar recursos. Nesse sentido, é importante que o professor seja curioso, um pesquisador, não apenas busque informações sobre o quadro específico daquela criança, mas aprimorando seu olhar e implicando o grupo nesse processo. Se o grupo não é trabalhado, fica algo velado na sala de aula, um sentimento de mal-estar entre o estranhamento que pode surgir com a presença de uma criança que age e aprende de modo diferenciado, e a cobrança de uma atitude solidária, cooperativa e respeitosa para com aquela diferença. Dificilmente, uma escola regular conta, a priori, com recursos para atender crianças com histórias tão diferentes. Crianças que apresentam síndromes genéticas têm necessidades diferentes das crianças portadoras de deficiências físicas, que, por sua vez, são diferentes das crianças com questões neurológicas ou psíquicas graves. O desafio que a escola enfrenta é construir formas de ação para cada caso e contexto. Esse processo abrange um currículo individual, que apresente metas possíveis para aquela criança, adaptação do espaço físico, preparação de atividades específicas e modos de viabilizar o atendimento dessa criança e do grupo ao mesmo tempo. Como, atualmente, a Educação Inclusiva consta na lei, inquieta-me o fato de a criança estar com o grupo, mas não necessariamente desafiada em suas possibilidades. Se ela é considerada “café-com-leite”, o educador abriu mão de educar. Numa sala de aula, as diferenças aparecem ao nos depararmos com a singularidade de cada aluno. O professor, diariamente, observa suas dificuldades, sejam elas pontuais ou mais intensas, de ordem cognitiva, emocional ou de convivência. Quando essa diferença é mais acentuada, e a criança, de alguma forma, destoa do grupo, é muito importante que o professor possa contar com parceiros que ampliem o olhar e a leitura dessa criança. Há mais de 20 anos, trabalho em
escola e sempre tive o privilégio de poder pensar em conjunto sobre o contexto de cada aluno. Não que seja uma tarefa fácil, mas a presença de interlocutores que possam refletir sobre a complexidade de cada caso faz com que se construam caminhos possíveis e que se converse sobre as dúvidas, incertezas e dificuldades também dos educadores envolvidos no processo. Como professora, vivi situações, na sala de aula, em que tinha que optar entre oferecer atendimento individualizado para a criança numa atividade de desenho ou escrita e, ao mesmo tempo, atender às dúvidas e necessidades do restante do grupo. Decidir, rapidamente, se correria atrás do aluno que saiu da sala para brincar no parque ou se continuaria a história que estava contando para o grupo. Suportar e acolher a angústia do olhar de frustração da criança que percebe seus próprios limites e que não está acompanhando o grupo. Ter que conter, fisicamente, a criança que, contrariada, se descontrola e agride seus colegas. Frente a essa problemática recorrente, como continuar desafiando a criança a aprender, crescer, dentro daquilo que é possível? Nesse momento, poder pedir ajuda para ampliar a reflexão e expressar essas inquietações foi muito importante. Atualmente, como orientadora educacional, quando as professoras trazem a questão sobre como cuidar do grupo e ajudar a criança ao mesmo tempo, ofereço a idéia de que o olhar é como uma lente, que é capaz de fazer um zoom, mas também de se distanciar. Esse movimento de vai-e-vem, que ora está voltado para o todo, ora para a necessidade individual, ajuda o professor a ter clareza do rumo que pode tomar. O importante é a busca do ritmo mais interessante para dar a esse movimento. Aprofundar-me nos fundamentos do construcionismo social, no qual a linguagem, os relacionamentos humanos e os contextos locais são focos de estudo, foi primordial para consolidar meu trabalho na escola. Tenho buscado ampliar as conversações com famílias e professores, para vislumbrarmos possibilidades de ação. O tipo de descrição de um pedido, uma inquietação ou uma situação que me é trazido passou a ser objeto de minha atenção. A idéia de que a linguagem constrói mundos e que, conseqüentemente, pode determinar atitudes e ações, me ajudou a propor, nas conversações, novas narrativas que potencializassem os alunos. Se a descrição de uma professora sobre a criança fica somente focada na falta, nas restrições daquele aluno frente ao grupo, dificilmente é possível atuar sem angústia e caminhar. Tenho incentivado os professores a descreverem também as conquistas e, assim, perceberem o tipo de intervenção que esse enfoque, mais amplo, sugere. Por exemplo, se uma criança que antes ficava isolada no recreio conseguiu bater corda para um colega, isso já é uma vitória. Entretanto, não podemos deixá-la para sempre batendo corda. Qual será o próximo desafio? Ensiná-la a pular? Se isso não é possível, que outra atividade podemos sugerir e ensinar? Não é porque uma criança não acompanha o grupo em determinados aspectos que ela não o acompanhará em todos. O desafio, ao lidar com essa criança, é traçar metas para ela em relação a ela mesma e em relação ao grupo. Numa conversa com a família, sobre uma criança que está precisando de mais tempo para se alfabetizar, quando surge uma descrição do tipo “ele não conse-
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gue porque tem preguiça”, abre-se a possibilidade de ampliar o diálogo através de perguntas como: “O que você está chamando de preguiça? Será que a preguiça não sinalizaria uma atitude de pouco comprometimento? É esse o caso? Será que a preguiça mostra uma tendência do aluno a fazer menos do que consegue?” Ou ainda: “Será que o que você chama de preguiça pode ser uma dificuldade?” Noutra situação, quando a descrição para uma criança com restrições cognitivas for “é só uma questão de tempo, pois sei que quando meu filho crescer ele poderá cursar as melhores faculdades”, como criar uma conversa que fale dos sonhos que temos sobre os filhos mesmo antes de eles nascerem? Qual é o filho real e o ideal? Como poderemos ajudar os pais que se debatem frente aos limites de seu filho, tendo que abrir mão de projetos tão almejados? Minha experiência com pais de crianças com necessidades especiais mostra que, quando se constrói uma relação de confiança e parceria, inclusive, ampliando esse diálogo aos especialistas envolvidos (fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos e psicopedagogos), a compreensão sobre a criança e a situação se transformam. Cria-se uma área de conforto ou, ao menos, uma certa leveza para continuar lidando com a situação. O mesmo ocorre quando criamos espaços para nomear o mal-estar, os medos e a irritação, tão presentes nesses contextos. Penso que o parâmetro essencial para avaliar o sucesso ou não dessa inclusão seja se a criança e o grupo estão se beneficiando efetivamente e se a família está sendo acolhida em suas demandas. Quando uma das partes fica desconsiderada pela situação, porque esbarrou em limites dos educadores, da instituição ou mesmo dos pais e até da criança, uma nova conversa precisa ser aberta. Infelizmente, no Brasil, ensino de qualidade ainda está, em grande parte, associado à escola particular. A educação pública enfrenta uma série de problemas e carências: professores mal remunerados, salas numerosas, pouco espaço para troca e formação dos educadores. Ministrando Teoria da Educação para professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental, escuto, como queixa principal, a falta de condições: falta material, boa vontade dos gestores, troca e espaço para a criação de novos projetos e metodologias. Dentro desse contexto, ter que atender a uma criança com necessidades específicas pode parecer tarefa impossível. Contudo, não é. Se alguns educadores mantêm-se paralisados no discurso da carência e da queixa, há também aqueles que conseguem olhar para si e, nos pequenos atos, batalhar por sua turma e seu aluno. Entre o real e o ideal, há um percurso válido e possível. Atualmente, várias iniciativas têm sido desenvolvidas, desde propostas de tutores que acompanhem essas crianças até projetos de sala de aula voltados para a discussão da inclusão. Há escolas em que se faz um trabalho conjunto com a equipe de professores, funcionários e alunos, responsabilizando todos pelo cuidado e pela inserção dessas crianças. Há, também, propostas em que as crianças não necessariamente precisam permanecer na sala de aula todo o tempo, desenvolvendo atividades em outros espaços da escola. Do ponto de vista da criança, poder estudar numa escola regular é um grande aprendizado. Lá, ela lidará com os limites e as normas inerentes à convivência diária, desenvolvendo habilidades sociais. Elizabeth Polity também levanta ou-
tro aspecto valioso: “(...) o contato e o convívio, no plano formal e informal, entre pessoas diferentes (no caso, alunos) são uma oportunidade para a construção de laços de vinculação, de relações afetivas, que podem vir a revelar-se, ao longo dos anos, como um suporte emocional fundamental na construção da personalidade desses alunos.”3 Os outros alunos, por sua vez, podem ganhar na compreensão da diferença. Freqüentemente, o grupo sabe compreender e entender gestos e pedidos dessas crianças. O olhar sobre essa criança pode ser multiplicado pelas várias leituras que seus colegas podem oferecer. Eles são importantes intérpretes não só de intenções, mas também de emoções. Inclusão escolar é um tema polêmico, que traz uma complexidade que não diz respeito apenas ao contexto escolar. Nela, está implícita a atitude socialmente construída da busca de um padrão para dar sentido ao que somos e organizar nossas vidas. Aquilo que foge a esse padrão é visto, muitas vezes, com estranhamento e preconceito. O desafio é podermos construir fóruns de reflexão que pensem, continuamente, nessa complexidade. Uma experiência muito gratificante me convidou a fazer uma pequena analogia desse processo com a arte. Quando era professora, numa aula de artes, projetei, para meus alunos de 6 anos, o quadro As Meninas, de Velasquez, e, logo em seguida, as releituras que Picasso fez da obra. Nessas imagens, as crianças perceberam o quanto ele desconstruiu e construiu formas, brincou com cores e linhas, deixando somente alguns dos elementos da pintura original. Depois da apreciação e discussão, propus às crianças que fizessem suas releituras. Naquele ano, havia na sala uma criança que, devido a uma questão neurológica, tinha um comprometimento motor. Ela conseguia andar, falar, fazer as atividades gráficas, mas com muita dificuldade. No dia seguinte, a mãe dessa criança me contou que a filha havia descoberto que o seu desenho também era bonito, já que o pintor mais famoso do mundo fazia “quadros lindos de um jeito bem diferente”. Assim como Picasso desconstruiu padrões para construir possibilidades diferentes de expressão, os educadores também podem questionar antigos paradigmas educacionais para criar uma nova e criativa “estética’’ das relações.
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Marília de Freitas Pereira Psicóloga; terapeuta de adultos, famílias e casais; coordenadora de projetos de capacitação de operadores sociais; sócia fundadora, docente e membro do Conselho Diretor do Instituto FAMILIAE, SP.
...o cinemA: Linha de Passe?
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cinema, a música, o teatro, a pintura são linguagens que nos fazem experienciar e conhecer diferentes formas de estar no mundo. Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, retrata o cotidiano de uma família de trabalhadores da periferia paulistana. Agradeço aos criadores e intérpretes dessas personagens, pois esse filme oferece uma oportunidade de diálogo sobre as condições de vida da sociedade brasileira. Assistir Linha de Passe foi uma experiência de vida. Saí da sessão cansada, e eu, que adoro cinema, me perguntei – o que significa este cansaço? Walter Salles já foi descrito como estetizando a pobreza (Central do Brasil) ou a crueza da dura lei de um mundo primitivo (Abril despedaçado), mas Linha de Passe nos faz esquecer que estamos vendo uma obra de ficção e, nas palavras de André Singer:1“A ficção soa tão verdadeira que poderia ser um conjunto de depoimentos sobre o cotidiano na periferia de São Paulo. O resumo das experiências relatadas é simples: qualquer que seja o caminho tentado, para quem teve a ‘má sorte’ de nascer pobre, é impossível escapar de um círculo de violência e humilhação”. Fui identificando e nomeando a dor, o sofrimento, a desesperança, a exasperação, a humilhação, a violência... Poderia ficar só com essas palavras, mas também me ocorreram outras: persistência, carinho, cuidados, sonhos, irmandade, maternidade, paixão... Durante a sessão, vivi como Cleuza, sem tempo para si mesma, para conversar, para se perceber, para nomear emoções, acontecimentos... Tudo é muito intenso e muito rápido, e é preciso continuar... O filme me fez viver seu desespero na divisão entre cuidar da própria casa e da casa onde trabalha, cuidar de seus filhos, torcer por eles e mantê-los na linha. Ao escrever este artigo, casualmente, ouvi Elis Regina cantar Maria, Maria (Milton Nascimento e Fernando Brant) e pensei na Cleuza: “Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta, uma mulher que merece viver e amar, como outra qualquer do planeta”. Essa música e o filme falam de “uma gente que ri, quando deve chorar e não vive... apenas agüenta.” Cleuza e seus quatro filhos tentam reinventar suas vidas, lutam para sobreviver e realizar seus sonhos, mas o filme vai revelando a brutalidade da cidade e a falta de oportunidades que lhes permitam alguma continuidade, um projeto, um significado para a vida maior do que “apenas agüentar”: o não saber do caçula, com seus expressivos olhos em busca de um elo que dê sentido à diferença entre ele e seus irmãos; a fé e perseverança do evangélico tentando o “bom caminho”; o motoboy, em sua desesperada corrida de obstáculos ou o talentoso jogador, tentando um lugar em um sistema corrupto. No entanto, apesar das adversidades, ali está uma família: ao final do dia, os irmãos jogam bola, brincam e brigam; a mãe prepara a festa surpresa; o filho desentope a pia para a mãe... Onde eu vi desespero e desesperança, vi também cuidado e afeto.
No entanto, não podemos esquecer que esse é o filme que eu vi. E o filme é o recorte feito por Walter e Daniela, com cuidado, com respeito e com poesia. Então penso: o que as pessoas representadas no filme diriam de si mesmas? Como elas se descreveriam? Como descreveriam a realidade que vivem? Ou, ainda, como elas se sentem ao se verem assim representadas? Jovens vivendo em condições semelhantes às do filme, dessa “gente que ri quando deve chorar”, participaram de uma sessão especial, seguida de uma conversa pública, coordenada pelo jornalista Gilberto Dimenstein. Identificaram-se com a vida dos personagens, mas acharam a história muito sem esperança. Eles acreditam que têm mais possibilidades de ultrapassar a “linha de passe” para um lugar melhor na sociedade. Para mim, essa é uma questão importante para terapeutas e estudiosos das relações humanas e da constituição de subjetividades. Como nossos conhecimentos podem ser úteis em condições tão adversas? O que conheceríamos se escutássemos as vozes dessas pessoas? Se, como Goolishian2, acreditamos que somos “arquitetos do diálogo”, pergunto: que conversas podem ser úteis para pensar essas questões? Para quem importam essas conversas? Principalmente: como criar contextos de conversas, entre as pessoas que vivem em condições de pobreza e nós, que possibilitem soluções e caminhos comuns, nos quais as diferenças estão incluídas? Como transformar o nós e o eles, em um nós que inclua a criação de novas possibilidades para todos? Esse belo filme sobre a feiúra das relações entre a São Paulo de grife e a base que garante o seu funcionamento me convida ao dialogo sobre essas questões. Alguém mais se sente convidado?
Referências
Singer, A. Linha de impasse. Folha de São Paulo – Tendências e debates, 10 set 2008, p.3. 2 Goolishian, H. Anderson, H. Los Sistemas Humanos como Sistemas Lingüísticos: implicaciones para la teoría clínica y la terapia familiar. In: Revista de Psicoterapia, vol. II – nº 6-7, p.42. 1
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estante de livros
Eloisa Vidal Rosas Psicóloga, terapeuta de família e casal e mestre em Comunicação Social pela UFRJ.
Histórias para a hora de acordar
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resci no meio de livros. Filha única, eles eram meus companheiros inseparáveis. Através da leitura, o mundo se apresentava muito mais interessante: sem fronteiras, povoado por povos fantásticos, mágicos. Eu tinha acesso a uma miscelânea de textos e autores, que consumia sem nenhum critério pedagógico ou organizador. Minha curiosidade passeava por Popular Mechanics, Gallinas y Gallineros, Mistério Magazine de Ellery Queen, Paraty e Seleções do Reader’s Digest, além das Aventuras de Tarzan, Memórias de Sophia, Coleção Menina e Moça e, um pouco adiante, por influência de excelentes professores, os clássicos. Eu lia – ainda leio! – de tudo, e esse tudo fez e faz parte da minha vida. Borges,1 citando Ralph Waldo Emerson, diz que “Uma biblioteca é uma espécie de escritório mágico. Nesse escritório estão encantados os melhores espíritos da humanidade, mas esperam nossa palavra para sair de sua mudez. Temos que abrir os livros, então eles despertam” (p. 25). Recordo com carinho divertido os livros ‘proibidos’, dos quais não lembro o conteúdo, mas sim as sensações que provocavam. Assim, entre um e outro, fui me construindo como pessoa e dei um lugar à ‘louca da casa’, como Santa Teresa d’Ávila (citada por Rosa Montero2) designava a imaginação – e não creio que para ela isso fosse, como eu considero, um elogio. Borges diz, em Conferências,1 que “dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo... mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação” (p. 13). Foi ainda nesse maravilhoso livrinho que encontrei a absolvição, pelas palavras de Montaigne, aí citado, da culpa de largar um livro pelo meio: “Montaigne aponta que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que se ele acha uma passagem difícil em um livro, o deixa: porque vê na leitura uma forma de felicidade” (p. 24). Um dia desses, estava pensando sobre isso e tive a idéia de perguntar aos terapeutas de família quais livros recomendariam para os leitores – livros que faziam pensar e que de alguma forma haviam contribuído para que se tornassem melhores profissionais. Recebi muitas respostas, algumas citando livros; outras, autores; e muitas e boas idéias para futuras leituras! Para começar, Denise Duque recomenda dois livros: Cisnes Selvagens, de Jung Chang e Castelo de Vidro, de Jeannette Walls, que considera excelentes exemplos de resiliência. Ainda como exemplos de resiliência, Gizele Bakman cita A Menina que Roubava Livros, de Marcus Zusak, e Eu, Malika Oufkir: prisioneira do Rei, de Malika Oufkir e Michèle Fitoussi. Para Gizele, são histórias que ratificam sua crença em que a família e a rede significante têm um papel importante na estruturação e na manutenção da resiliência. Solange Diuana, por sua vez, cita Nietzche, Jacques Donzelot, Michel Foucault e Robert Castel, que a ajudaram a “desconstruir uma moralidade envolvida na forma de olhar as construções pessoais e familiares, e a perceber os
interesses sociais, econômicos e políticos embutidos no modelito de família que nos apresentaram como normal”. Christina Sutter colaborou com títulos que, segundo ela, ajudaram-na na prática clínica: São Bernardo, de Graciliano Ramos; O Deus Selvagem, de Al Alvarez; Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez; O Amante, de Marguerite Duras; O Espelho no Espelho, de Michael Ende; Neve, de Orhan Pamuk e Don Casmurro, de Machado de Assis. Os Buddembrooks, de Thomas Mann, além de Machado de Assis e Eça de Queiróz, são os preferidos de Sandra Fedullo Colombo. Além destes, ela cita O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzatti, como um livro que mudou sua vida. Já Miriam Schenker nos conta que Gilberto Velho, Zygmunt Bauman, Richard Sennett e Hannah Arendt a fizeram e ainda fazem pensar. Emerson Rasera gosta e indica A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector, e Amor nos Tempos do Cólera, de Garcia Márquez. Tantos livros, tantos autores, tantos personagens. Resolvi interromper a lista para compartilhar meus pensamentos: Rosa Montero2, no seu livro A Louca da Casa, cita um jovem escritor português, José Peixoto, que batizou as imaginárias possibilidades de existência dos e se (p. 15). No nosso ofício de terapeutas, mergulhamos com nossos interlocutores em inúmeros e se: “e se fosse assim... e se fosse assado...” Inventamos, com nossos clientes, avatares de histórias possíveis que criamos colaborativamente no espaço lúdico da conversa terapêutica e que são inspirados em todos os inúmeros personagens que povoam nossas singulares cosmogonias. “Os dois que recordei imediatamente e que me tocaram há muitos anos, quando descobri o pensamento sistêmico, e que são exemplos da força das relações no sistema familiar ou social mais amplo, foram Cisnes Selvagens e O Colecionador, de John Fowles.” Os outros preferidos de Juliana Aun são O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marquez, O Penhoar Chinês, de Rachel Jardim, Chica da Silva e o Contratador de Diamantes, de Júnia Ferreira Furtado. Este último, segundo Juliana, interessante para “quem lida com famílias pobres e negras, como exemplo de solidariedade feminina”. Além destes, ela cita Bridget Jones, de Helen Fieldings, como auxílio na terapia com jovens casais e Terapia, de David Lodge, para curar, segundo ela, da mania de terapia! Marilene Grandesso cita O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra, como um salto paradigmático na sua vida. Também Carlos Zuma lembra-se de Capra, acompanhado de Gregory Bateson e Watzlawick – A Pragmática da Comunicação Humana. Jorge Bergallo cita Heinz von Foerster, Gregory Bateson e Humberto Maturana. Ana Sílvia Bastos, ainda nessa mesma onda, diz que os três volumes da coleção Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais, de Juliana Gontijo Aun, Maria José Esteves de Vasconcellos e Sonia Viera Coelho não podem faltar na sua estante. Clarice Cassuriaga lembra-se de Bauman, em Amor Líquido, e de Maria Tereza Maldonado, em Palavra de Mulher. Para Berenice Fialho, os títulos marcantes foram: As Minhas Universidades de Gorki; Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada, de Karl Marx; Mãe Coragem, de Bertolt Brecht; Confesso que Vivi, de Pablo Neruda; A Mística Feminina, de Betty Friedman; e os livros de Simone de Beauvoir Cerimônia do Adeus, Segundo Sexo e Velhice: Realidade Incômoda.
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Sergio Rocca conta que, até hoje, volta ao livro de Nathan Akerman – The Psychodynamic of Family Life. Segundo conta, “desde que o adquiri, em 1986, vem dando-me estímulo e alento à minha própria humanidade, dentro do meu desempenho profissional.” Sergio manda um recado: “Eles podem morrer, mas as idéias, percepções, construções e intuições ficam.” Novamente recordo Borges1 , que diz que um livro “tem que ir além da intenção de seu autor. A intenção do autor é uma pobre coisa humana, falível, mas no livro tem que haver mais. [...] Se fala da desaparição do livro; creio que é impossível. Perguntar-se-á que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco. A diferença é que um jornal se lê para o esquecimento, um disco se escuta do mesmo modo para o esquecimento, é algo mecânico e, portanto, frívolo. Um livro se lê para a memória” (p. 20 e 28). Helena Maffei Cruz antecipa que “com certeza farei injustiça a leituras antigas que já estão encarnadas” e envia os títulos que fizeram diferença recentemente: Felicidade, de Eduardo Gianetti da Fonseca; Quando Nietzche chorou, de Irvin Yalon; Reparação, de Ian McEwan e o “eterno Machado de Assis”. Bia Costamilan cita O Filho dos Outros, de Joanna Trollope; Caixa Preta, de Amos Oz; Marcas de Nascença, de Nancy Huston e Contra o Amor, de Laura Kipnis. Kikita Azevedo lembrou imediatamente O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion. Mara Moulin Freire também cita Marcas de Nascença e O Ano do Pensamento Mágico, além de Os Catadores de Conchas, de Rosamunde Pilcher. Contei ainda com a contribuição de Sônia Areias, que “aprendeu muito” com A Cama na Varanda, de Regina Navarro Lins, e de Maria Regina Ferreira, ardorosa divulgadora de Fique de Bem com seu Cérebro, de Suzana Herculano-Houzel. Juares Costa refere-se, citando Carlos Sluzki,3 à leitura “de ontem à noite”. Para ele, o livro de “ontem á noite” é uma série de Isaac Asimov, As Fundações. Trata-se de uma utopia, em surge “um rico e instigante debate entre a proposta de Gaia de criar uma única mente galáctica, unindo a humanidade em um grande organismo vivo, e a defesa da individualidade”. Muito atual, não? Por último, Saúl Fuks nos conta: “o primeiro livro que posso mencionar foi algo que li quando ainda estudava no secundário e que definiu minha escolha pelo psi: Jean Cristophe, de Romain Rolland. Em seguida, O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, Cristo Crucificado e Zorba, o Grego, de Nikos Katzantzakis. Decididamente, a ficção científica abriu minha mente mais que qualquer teoria psicológica. Recordo especialmente O Senhor das Moscas, de William Golding; Fazedor de Estrelas, de Olaf Stapleton, todos os livros de Ray Bradbury, além de Julio Cortazar, Roberto Artl, em Siete Locos, Ernesto Sábato e Leopoldo Marechal, em Adan de Buenos Aires”. Saúl faz uma digressão interessante: “Gostaria de acrescentar que, quando a internet entrou na minha vida, a leitura ocupou outro lugar e as metáforas da web ocuparam um lugar de honra: os textos encheram-se de referências, pés de páginas, aspas e formas de referir a um mundo interativo que pouca literatura pode oferecer”. Espero que, passear por estas veredas, tenha sido tão delicioso para vocês quanto para mim. Reencontrei autores que foram importantes na minha história, lembrei passagens que não estavam à mão, conheci novas possibilidades. Atualizei narrativas, parei um tempo para me dar conta dos enredos particu-
lares que invento e reinvento a cada dia, a cada momento. Encantei-me com depoimentos de queridos amigos, emocionei-me ao compartilhar construções de metáforas. Saí mais rica dessa experiência. Obrigada.
REFERÊNCIAS bibliográficas
BORGES, J. L., Borges Oral – Conferencias. Buenos Aires: Maria Kodama e Emecé Editores, 1989. 2 MONTERO, R., A Louca da Casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. 3 Sluzki, C. Transformaciones: un esquema acerca de los cambios narrativos en la terapia. Sistemas Familiares, julho 1998. 1
Este espaço está aberto aos leitores que desejem colaborar com sugestões de livros ou comentários sobre algum título que tenha chamado a atenção.
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Carlos Eduardo Zuma Psicólogo, terapeuta de família e casal, Secretário Executivo do Instituto Noos.
PLANO NACIONAL DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA ENTREVISTA COM CLAUDIA CABRAL
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ova Perspectiva Sistêmica entrevistou a psicóloga e terapeuta de família Claudia Cabral, diretora executiva da Associação Brasileira Terra dos Homens, pós-graduada em pedagogia, membro do Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente e consultora do UNICEF. Claudia participou da elaboração do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. NPS foi conversar com ela na intenção de levar aos seus leitores mais informações sobre este plano. Fale um pouco sobre o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. O que é? Está em elaboração? Em que estágio está?
Claudia: O Plano já foi oficializado em dezembro de 2006. Sua elaboração teve início em 2003, quando foi criado o Comitê de Reordenamento de Abrigos, em Brasília, pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Existia uma verba que era compulsoriamente repassada para um grupo de abrigos que estavam na rede SAC* – uma rede de abrigos conveniada à antiga LBA**. Com a extinção da LBA, continuou-se o repasse da verba para esses abrigos inscritos na rede e não se sabia se já tinham passado por reordenamento, ou seja, adequação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesse momento, surgiu a pesquisa do IPEA***, cujo objetivo foi o de levantar exatamente a situação dos abrigos da rede SAC. O que revelou a pesquisa do IPEA? Claudia: Registrou-se uma média de vinte mil crianças naquele momento, vivendo em abrigos. Segundo algumas amostras, o percentual de abrigos inscritos na rede SAC, que recebiam verbas do Ministério, era de vinte ou vinte e cinco por cento do total de abrigos existentes em cada região. Ou seja, a estimativa seria, na verdade, de oitenta mil crianças vivendo em instituições pelo Brasil afora. Dessas crianças, cerca de setenta por cento poderiam não estar nos abrigos, já que tinham família, recebiam visitas e iam regularmente para casa.
* Serviços de Ação Continuada. ** Legião Brasileira de Assistência. *** Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Neste universo de crianças em abrigos, quantas realmente estariam aptas para adoção? Claudia: O percentual de crianças nos abrigos para adoção é de quinze por cento. Em todas as pesquisas tem sido isso: entre dez e quinze por cento. Nesse universo,
encontramos um grupo, digamos, de vinte a vinte e cinco por cento que são realmente casos mais difíceis, de maior complexidade, que precisariam ser atendidos em Abrigos, em Casa Lar, em Família Acolhedora ou outro tipo de programa.
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Como funcionou o Comitê de Reordenamento de Abrigos? Claudia: Aquele Comitê de Reordenamento de Abrigos se transformou numa Comissão Intersetorial em defesa, proteção e promoção da convivência familiar e comunitária que elaborou os subsídios para um Plano Nacional do Direito à Convivência Familiar e Comunitária a ser lançado conjuntamente entre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Nacional de Assistência Social. Em 2005, a Comissão se reuniu. Eu fiz parte dela atuando como consultora do UNICEF. Na época, éramos três consultores ajudando a sistematizar os trabalhos. Além de ter havido uma participação popular muito grande, contamos também com vários atores chamados por nós. Havia juízes, promotores, defensores, conselheiros tutelares, várias ONGs especializadas no tema. O Ministério de Desenvolvimento Social participou maciçamente, assim como, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Algumas outras representações, tais como, a dos Ministérios da Saúde e da Educação também se fizeram presentes. O esboço do Plano Nacional foi escrito por essa Comissão e depois lapidado pelo Governo. Vale sublinhar que tudo que pensamos em âmbito nacional precisa ser considerado para o bairro onde a criança vive. Por isso, temos que pensar globalmente, mas também entender como aquela ação deve repercutir no bairro. E quem está mais perto da criança é a família, a escola, o hospital, a praça. Assim, é necessário considerar a rede de saúde e educação, presente em cada comunidade. E, mais ainda: as áreas de esporte, lazer, cultura, assistência social, os conselhos tutelares e de direitos. Por isso, todos os órgãos representativos destes setores estiveram juntos elaborando o Plano Nacional, cuja perspectiva de implementação é de 2007-2014. E o que consta no Plano? Claudia: O plano aborda quatro eixos de ação. O primeiro eixo é a análise situacional, ou seja, diz respeito ao levantamento da situação de cada município, de cada estado, do país todo, acerca dos casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes e dos programas oficiais de proteção e prevenção. É importante que essa análise e esses dados estejam sempre atualizados. Mas cabe a pergunta: qual sistema vai alimentá-los? O Conselho Tutelar, que recebe todos os casos e é a porta de entrada da criança com violação de direitos, teria que centralizar essas informações através do SIPIA*. O segundo eixo é o atendimento. Como atender a família em nível preventivo? Ou seja, como a Educação, a Saúde – e aí, como eu estava falando do bairro –,
* SUAS – Sistema Único de Assistência Social relacionado à Política Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social.
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*Sistema de Informação para a Infância e Adolescência. Para saber mais, ver www. mj.gov.br/sipia
como a escola, os hospitais podem estar atentos à prevenção da violência e à proteção da criança através da família? E depois, quando a criança já sofreu uma violação de direitos, como é que isso pode ser trabalhado? Com relação a este último caso, a responsabilidade cabe aos serviços de proteção especial previstos no SUAS*. São os programas de Apoio Sociofamiliar Especializado, Famílias Acolhedoras e Acolhimento Institucional. Os abrigos estão incluídos no Acolhimento Institucional. Há muitas nomenclaturas, e nomenclaturas confusas. Por exemplo: Casa Lar, Casa de Passagem, República etc. Quando se propôs falar deste eixo no Plano, a idéia era propor a criação de parâmetros para cada uma destas modalidades de atendimento da proteção especial. E se falou também da adoção, do papel dos grupos de apoio à adoção, de como está essa questão junto ao Judiciário, da adoção tardia, da adoção interracial e da crença das pessoas de que toda criança que está em abrigo é adotável. Está na cara que não é! Normalmente, de doze a quinze por cento das crianças apenas estão disponíveis para adoção. O que o plano frisa o tempo todo é a mudança da ótica sobre a família que tem menos recursos, afirmando que ela é capaz, sim, de proteger; e questiona como podemos fazer com que o sistema de proteção reconheça nessa instituição família a capacidade de proteção, de fato, e não queira tirar a criança da família por qualquer motivo, culpando ou responsabilizando esses familiares. Mas como trabalhar com essa família e como acreditar em seu potencial de reorganização? Nestes casos a teoria sistêmica é perfeita. Quando comecei a fazer minha formação em terapia de família, tentava criar uma associação entre a terapia de família e o social o tempo todo. Primeiro, se todo operador social soubesse minimamente fazer um genograma, num primeiro momento, ele não ficaria centrado apenas na mãe que vem trazer a criança para o atendimento, mas já iria ampliar sua leitura para o funcionamento da família. Para desenhar o genograma, o operador seria obrigado a trazer, no mínimo, três gerações e, com isso, encontraria, junto à família, aliados que nunca teve para o seu trabalho. Segundo, se estamos dentro de um juizado e abrimos um processo, encontramos páginas, páginas e páginas. Se temos um genograma, e todo mundo conhece seu funcionamento, olhamos, nos situamos e já temos um contexto. Terceiro, a própria família se revê. Outro forte conteúdo de capacitação é sobre a primeira cibernética, a posição de poder e de controle do papel do Judiciário, do Conselho Tutelar, do assistente social da Prefeitura e o exercício da leitura da segunda cibernética da ressonância, da implicância do profissional, que é fundamental para quem trabalha na área. Não é fácil, porque trabalhamos com uma criança em situação de rua, com uma família superdesorganizada – ou organizada da forma que pôde, mas que não protege –, que vive situação de violência... Você começa a querer tomar alguma atitude. Se você é um conselheiro tutelar, começa logo a querer interferir. Claro que tem que fazer algo, mas precisa ter um mínimo de compreensão antes. E eles não têm, não existe essa preparação para tamanha responsabilidade, como a de afastar uma criança de sua família. Acho que é importante considerar o quanto a formação Sistêmica é importante para o social e para implementação de políticas públicas.
Você disse que o período de implementação é de 2006 a 2014. Quando ele foi lançado? Claudia: Ele foi oficialmente lançado em dezembro de 2006, em Brasília, pelo Conselho Nacional de Assistência Social e pelo CONANDA* em uma audiência conjunta. O que já foi um marco de mudança, porque nunca os dois conselhos haviam feito coisas juntos, até então. Com esse plano lançado, tudo ficou mais fácil. Porque o Estatuto já trouxe uma nova ótica, uma nova organização sobre o sujeito, os direitos, a participação da sociedade e o controle social. O lançamento de um plano, no caso da Convivência Familiar e Comunitária, que está em consonância com a Política de Assistência Social toda centralizada na família, – falando em matricialidade na família – implica que toda a atenção vai para lá e toda a cobrança operacional vai para lá também. Torna-se uma normativa que legitima a aplicação de verba. Desta forma, temos a verba para construir CRAS** e CREAS*** e para trabalhar a família. Há que se trabalhar a família e a verba ir para essa finalidade. O Ministério repassa a verba para o estado e o município. Assim, a necessidade de capacitação nesse momento, nessa área de formação, é enorme. As pessoas precisam saber trabalhar com família se quiserem colocar em prática a política que está desenhada e determinada. A partir do momento que essa atividade vira uma normativa, o Juiz, o Ministério Público e o Conselho de Direitos podem pressionar a entidade ou organização a trabalhar daquela forma: tudo centrado na família. O plano traz o eixo do atendimento, que é um pouco isso: como trabalhar com a família de origem ou, pelo menos, propõe que cada município escreva esse como. Ainda sobre os eixos do Plano... O terceiro eixo é o normativo. Esse eixo corresponde às leis, às normas, aos planos e às políticas locais. Cabe aos conselhos estaduais de direitos da criança e do adolescente traçar um plano para a situação do estado naquele momento. Cabe ao conselho municipal desenhar o plano municipal, deliberar a política municipal. Temos aqui no município do Rio de Janeiro, a política para violência doméstica que está toda delineada, a política para abrigo, e agora o conselho está preparando a política para criança em situação de rua. Estar no conselho municipal e desenhar uma política é dizer como operacionalizar esse atendimento e, dentro dele, como incluir princípios. Além disso, nesses princípios fala-se da primeira e segunda cibernética, ou seja, se nesse princípio fala-se de incluir todos os membros da família, se nesse princípio fala-se de como trabalhar uma família, minimamente já se cria um terreno e uma ótica de trabalho em rede, da rede intrafamiliar, da rede extrafamiliar e de como essa comunidade está organizada... Essa visão política da rede extrafamiliar é super importante, porque não adianta ficar só atendendo a família e não ter a noção das forças políticas, das relações daquelas instituições naquele bairro onde elas estão. Tudo é influenciado e está sendo influenciado. Nós sabemos. Então é assim: temos que conhecer as forças que estão em volta. Também não adianta só abrir um centro de suporte no atendimento à terapia de família para os encaminhamentos eventuais que o Conselho Tutelar venha a fazer, se não temos a mínima noção do jogo de forças da comunidade em que aquela família está inserida. O
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* Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor. ** Fundação Estadual do Menor.
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que o CRAS, CREAS e o Juizado estão fazendo com esta família na hora em que ela pleiteia alguma coisa? Como é que o Juizado funciona? Quais são os direitos que a família pode reivindicar? Onde ela pode reclamar? O quarto eixo do plano, que eu acho fundamental, é o eixo da mobilização e da mudança de cultura. Porque acho que isso permeia tudo, porque é uma questão, antes de tudo, de mudanças de crenças, de valores e de atitudes em todos os sentidos. E isso é o mais difícil de ser atingido. Então esse deve ser um investimento maciço, é um movimento constante, temos que atrair as pessoas para refletir, se auto-analisar, parar e pensar no seu papel e nessa postura de segunda cibernética, que é a base para uma construção coletiva. Seria o eixo, então, mais preventivo? Quando falamos de mudança de cultura, mudança de atitude, de alguma forma a gente está falando de prevenção também, não está? Claudia: É por isso que eu acho que é mais importante. E o maior problema de todos é a descrença na capacidade da família, na sua capacidade de reorganização. Este é o primeiro ponto e ele é histórico. Se olharmos para todo o século passado, reforçou-se o papel de que a família é incapaz, de que o governo é quem vai assumir tudo, de que o governo é que vai proteger. Então, criou-se a FUNABEM*, a FEEM**, a LBA e outras estruturas assistenciais. E isso continua. Há ainda o reforço da Igreja Católica que, desde sua origem, tem foco na questão caritativa, e isso não vai mudar de uma hora para outra. O ECA propõe tal mudança, mas dezoito anos é muito pouco para uma mudança nesse sentido. É por isso que eu falo muito da segunda cibernética, porque acho que ela é um pouco a base da leitura que temos de fazer de comportamento para podermos provocar mudanças. Você falou da importância dos profissionais terem uma capacitação para entender a dinâmica familiar, de fazer um genograma, de ter alguns recursos que a terapia de família normalmente fornece. Então, o profissional que está lá na sua instituição, que se propõe a atender as famílias que são referenciadas pelo Conselho Tutelar, e também os técnicos que trabalham nos órgãos governamentais, pelo sistema de garantia de direitos, precisam ter uma noção de família, do funcionamento da família, da dinâmica familiar e de alguns recursos também para poder agir. É isso?
* Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ** Centros de Referência de Assistência Social. *** Centros de Referência Especializada de Assistência Social.
Claudia: Acho que o ideal seria que todos os juízes, promotores, defensores públicos, conselheiros tutelares tivessem o mínimo de informação sobre o funcionamento de uma família. É óbvio que quem se especializou no assunto vai ter uma outra função dentro da sociedade, é um outro ator. É um ator que vai atender, vai acompanhar atendendo diretamente o caso. O juiz não atende, mas ele determina o atendimento. O Conselheiro Tutelar também determina, acompanha o atendimento e encaminha para o atendimento, mas alguém tem que atender. Esse alguém que vai atender, aí sim, seria o assistente social e o psicólogo da prefeitura,
de uma ONG ou de um centro de atendimento em terapia de família. Se bem que, na linha da terapia de família, eu acho que o atendimento no consultório não é o acompanhamento psicossocial que o sistema pede. Pode-se até escolher um recurso desse tipo para somar à equipe que está acompanhando, mas a equipe que acompanha o caso precisa perceber todos os contextos em que a família está inserida. Existem diversos programas e recursos para os vários membros da família, mas alguém tem que ser a referência para essa família, e esta referência é uma equipe de acompanhamento psicossocial. Mas, quando o conselheiro tutelar recebe a denúncia e a família chega para falar com ele – no caso, pode ser a mãe sozinha, ou a criança ou o pai – este tem que ter um mínimo de conhecimento. O conselheiro deve compreender que ele está utilizando dos seus conceitos e preconceitos para interpretar aquilo; que existe uma diferença entre o que ele sente, o que ele vive e o que o outro está trazendo. E o que o outro está trazendo é de um espectro maior, e é necessário também escutar outros atores, pois ele não pode ficar só numa versão da denúncia. Ele tem que saber disso. Se ele não tiver esse mínimo de informação, o que acontece é que, na mesma hora, ele tira a criança da família porque acredita ou compactua com a versão daquela pessoa. Ele tem esse poder. Tira a criança daqui, tira dali, põe para lá, vai para cá. Com dois anos de idade uma criança vai para um abrigo, depois com três anos vai para uma família acolhedora, depois vai para lá e vai para cá. Então, por mais simples que seja a formação desse conselheiro tutelar ou por mais diferente que seja a formação de um juiz, ele tem que, minimamente, estar familiarizado com esses conceitos para exercer sua função no interesse da criança. O plano foi lançado em dezembro de 2006. Qual é a situação atual, dois anos depois? Claudia: Nós, da Terra dos Homens, temos um papel importante nessa história, porque ajudamos a escrever o plano. Me lembro que, antes de 2006, quando entregamos os subsídios do plano para o governo... Até que o governo lapidasse o conteúdo e o enviasse para consulta pública e o lançasse em 2006, começamos a ficar preocupados. Sentimos que o sistema entendia que o Família Acolhedora era a grande salvação e que, inclusive, iria substituir os abrigos – o que e não é verdade. É um tipo de alternativa, e não a única opção. A primeira opção é a família de origem. Fiquei com medo porque, como esse plano falava muito claramente, pela primeira vez, no Família Acolhedora, poderia acontecer a mesma coisa que aconteceu com as Casas Lares na época do estatuto: todos os abrigos viraram Casas Lares com casal social tendo que dormir nas casas – uma confusão total. Eu me preocupei com isso e comentei com o UNICEF. Falei que precisaríamos iniciar rápido esse movimento de mobilização e de criação de parâmetros mínimos para os programas que foram descritos no plano. No final de 2005, o UNICEF fechou um projeto conosco chamado GT Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária, que é o Grupo de Trabalho Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária. Ficamos um ano só com o
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UNICEF, depois entrou o Instituto C&A e, posteriormente, a Secretaria de Direitos Humanos, depois o Instituto Camargo Corrêa, e, assim, temos o apoio e o projeto está indo muito bem. Na verdade, ele tem como objetivo a implementação do Plano em nível nacional. São 14 estados. Produzimos uma publicação na qual, no primeiro caderno temos Princípios de diagnóstico; no segundo, O trabalho com a família de origem; no terceiro, Família Acolhedora e no quarto, Acolhimento Institucional e suas modalidades. E isso já está pronto. O GT nacional já escreveu e está sendo distribuído para todos os conselhos municipais para colaborar com as políticas. Vou dar uma noção de como está sendo a implementação do Plano. O Conselho Estadual da Criança e do Adolescente, do qual participo, criou o GT Estadual no Rio de Janeiro. Depois que o nacional passou aqui, fomentou, deixou o rastro e, com todos os 14 estados já criando o GT Estadual, o Rio não vai criar? Então, a Secretaria de Estado de Assistência Social, que está conosco no GT nacional, entrou com a gente e com o próprio Conselho da Criança. Hoje mesmo tivemos uma reunião com vinte ou trinta municípios daqui do estado do Rio que vão criar os seus GTs municipais. E haverá eventos nas regiões. Todos os conselhos municipais da mesma região vão se reunir e vão realizar um evento. O primeiro evento será em Itaguaí, no mês de agosto, Itaguaí com Angra e com Parati. Para quê? Para implementar o plano da convivência em âmbito local, municipal. Como? Pegando esse plano de que falei da análise da situação e fazendo um levantamento de como está; estabelecendo políticas locais de como atender famílias; trazendo o tema e refletindo sobre ele; convidando pessoas especializadas no tema. Da mesma forma que isso está acontecendo aqui no Rio, está também acontecendo nesses 14 estados e, no ano que vem, entrarão os outros 13 estados. Semana que vem estou indo para Santa Catarina para fazer o encontro da região sul, junto com os 14 estados.
O que você acha importante o terapeuta de família saber? Claudia: Eu acho que o terapeuta de família precisa saber, por exemplo, se há escola suficiente naquela comunidade em que a criança está; e de que maneira a escola vê a família. Porque hoje existe toda uma crença na rede de educação de que a família está transferindo o problema para a escola e que a escola está com esse ônus. Então eles culpabilizam um ao outro. E a gente sabe que esse ciclo de culpabilização não leva a nada. Entender como aquela escola está funcionando, entrar em contato com ela, mostrar a importância do acolhimento à família. Ao mesmo tempo trazer para a família a importância de ela se aproximar da escola e ter um olhar crítico sobre como a escola está funcionando, como os professores têm respaldo, ou não. Ou seja, um tentar se colocar no lugar do outro. O terapeuta de família pode oferecer uma mediação, porque pode tanto ligar para a escola quanto falar com a família. Mas, para isso, tem que haver um mínimo de informação sobre como está a rede de educação; sobre quais são as políticas dos diferentes setores atualmente desenhadas para a família. Por exemplo: os pro-
gramas Escola que protege e Saúde da Família, da Saúde, e os CRAS e CREAS, da Assistência Social. Acho que, se queremos uma leitura sistêmica, devemos sair um pouco do consultório para nos conectarmos com os outros atores (daquele município, daquela região, daquele bairro) que também oferecem serviços, porque o público é o mesmo.
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NORMAS PARA a PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS Os artigos destinados à publicação devem obedecer aos seguintes requisitos: 1. O texto deve ter o máximo de 15 páginas, com espaçamento simples, em fonte Times New Roman, corpo 12. 2. As ilustrações contidas nos artigos (quando for o caso) não devem exceder ¼ do espaço do texto. As figuras, imagens e tabelas deverão ser enviadas em formato .JPG ou .TIF, no modo de cor grayscale (tons de cinza), em alta resolução (maior ou igual a 300 dpi). 3. O(s) artigo(s) deve(m) incluir título (em português e em inglês), nome(s) do(s) autor(es), qualificação do(s) mesmo(s), nome da instituição a que está(ão) vinculado(s), cidade e país. 4. Os artigos devem conter um resumo de até dez linhas e a indicação de palavras-chave (ambos em português e em inglês). 5. As referências devem seguir as normas da ABNT, sendo numeradas conforme seu aparecimento no texto e, ao fim do artigo, ordenadas indicando-se autor, título, local de publicação, editora e data de publicação. Em caso de citação no corpo do artigo, as páginas citadas devem constar ao final da citação. 6. Após a publicação, o artigo passa a ser propriedade da revista. A reprodução em outro veículo deverá conter referência ao nome e ao número da revista. 7. A revista aceita a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Tudo que implique ação legal é de responsabilidade exclusiva do autor. 8. A revista aceita divulgar artigos que já tenham sido publicados anteriormente, desde que sejam informados a data e o periódico em que foram publicados. 9. O artigo não deve infringir nenhuma norma ética, sobretudo a de proteger a identidade de pacientes mencionados em relatos clínicos. 10. A aprovação de artigos é subordinada à apreciação de dois membros do Comitê Editorial.
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