SeLecT Nº 17

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a r t e d e s i g n C u lt u r a C o n t e m p o r â n e a t e C n o l o g i a

Fernando arias Bijari CoCo FusCo dias & riedweg oCupa alemão

folIa atIVIsta

Marcos Chaves capta a tensão social em ensaio fotográfico exclusivo InspIrados na InsatIsfação

Curadores da 31ª Bienal de SP defendem a motivação coletiva Vende-se

“Arte política” para amenizar consciências pesadas VIsÕes crÍtIcas

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Ato Único I (2001), Iran do Espírito Santo

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ARTE, POLÍTICA E RuAS

abr/mai 2014 aNO 04 EDiÇÃO 17 r$ 14,90

Artistas propõem reflexões sobre estruturas de poder e dinâmicas sociais


em tempo

A Select nº17 eStá nAS melhoreS bAncAS de todo pAíS. A edição completA tem 108 páginAS. Aqui você AceSSA pArte do Seu conteúdo. Folheie e deguSte. pArA ASSinAr e conSultAr AS ediçõeS AnterioreS, Feche eStA jAnelA e AceSSe oS linkS ASSine e Arquivo, no cAnto Superior dA telA. boA leiturA!


MUNDO CODIFICADO

CULTURA X NATUREZA A pujança selvagem, a imensidão do território, o vazio demográfico. Desafios da natureza que confrontam a tecnologia e o homem Song Dong e Yin Xhiuzhen , china PeDro Motta , BraSil roDrigo Bueno, BraSil SuSan turcot, canaDá alBerto BaraYa, colôMBia

GEOPOLÍTICA E GEOPOÉTICAS l u c i a n a pa r e j a n o r b i at o

Artistas repensam a política e chamam a atenção para as novas fronteiras do 73 mundo globalizado

INFOGRÁFICO peDro botton

c r i s p i n gu r h o lt P R A B H A K A R PAC H P U T E Aernout Mik andrea geyer

susan turcot

K a r i n a a gu i l e r a S K v i r S K y andrés serrano

H OW D OYO U S AY YA M I N A F R I C A N?

jr a n t o n i m u n ta da s

NaN GoldiN

K A R A WA L K E R

Adel Abdessemed

PEPON OSORIO Jean-François Boclé E d ua r d o G i l A l b e r t o b A r AyA

b l a n c a h a d da d L u i s M o L i n a- Pa n t i n

B a r t h é l é m y t o gu o

COLECTIVO TRANVíA CERO

SOCIAIS e l e n a t e j a da- h e r r e r a

Novas e velhas desigualdades vividas por atores que nunca dispõem de protagonismo político ou social

N a r da a lva r a d o

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M a r i l á Da r D o t p e d r o m o t ta RodRigo Bueno

EnriquE JEzik

alfreDo Jaar, chile colectivo tranvía cero, equaDor PraBhakar PachPute, ínDia PePon oSorio, Porto rico taller PoPular De Serigrafía, argentina anDréS Serrano, eua criSPin gurholt, noruega Jr, frança anDrea geYer, aleManha PratchaYa Phinthong, tailânDia SiMon DenY, nova zelânDia

v i r g i n i a d e m e d ei r o s

J o s é C a r l o s M a r t i n at

ALFREDO JAAR

jorge menna barreto Ta l l e r P o P u l a r d e S e r i g r a f í a Grupo de Arte CAllejero

GEOGRáfICAS O peso da história e das heranças coloniais que assombram o presente e se interpõem violentamente entre os homens

luiS Molina-Pantin, venezuela eDuarDo gil, venezuela ahlaM ShiBli, PaleStina Yael Bartana, iSrael aDel aBDeSSeMeD, argélia nicholaS Mangan, auStrália

h


RaCiaiS As implicações (e complicações) que a cor da pele ainda suscita vistas através da luta por reconhecimento étnico, da afirmação de valor cultural ou da denúncia de abusos de direitos

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lYnette YiaDoM-BoaKYe, inglaterra BarthéléMY toguo ,CaMarões Jean-françois BoClé, MartiniCa pieter hugo, áfriCa Do sul guY tilliM, áfriCa Do sul hoWDoYousaYYaMinafriCan?, eua

inSTiTuCionaiS As imposições dos equipamentos culturais, as determinações jurídicas, os compartimentos éticos

I lya & E m I l I a K a b o Kov h a r u n fa r o c k i aleksandra mir Michael Bielicky e kaMila B. RichteR

grupo De arte CalleJero , argentina enrique JeziK, argentina José Carlos Martinat, peru narDa alvaraDo, Bolívia CláuDia Cristóvão, angola MiChael BieliCKY e KaMila B. riChter, rep. tCheCa aernout MiK, holanDa harun faroCKi, aleManha aleKsanDra Mir, polônia

Yo u n g - H a e C H a n g H e av Y I n d u s t r I e s AhlAm Shibli

Sanghee Song

Ya e l B a r ta n a

song dong e Yin Xhiuzhen Xu Bing P R A B H A K A R PAC H P U T E P r at c h aya P h i n t h o n g

gÊneRo e CoRPo

C l áu d i a C r i s t óvã o

pieter hugo

Confrontos com os dispositivos de controle dos desejos, das vontades de ser livre do atavismo biológico e dos cânones sexistas

nicholas mangan fiona hall

gu y t i l l i m

simon deny

linguagem A linguagem como ponte que une e que marca as distâncias, como ritual de comunicação e como impossibilidade de diálogo

Jorge Menna Barreto, Brasil Marilá DarDot, Brasil Xu Bing, China Young-hae Chang heavY inDustries, Coreia Do sul antoni MuntaDas, espanha

BlanCa haDDaD, venezuela elena teJaDa-herrera, peru Kara WalKer, eua sanghee song, Coreia Do sul virginia De MeDeiros, Brasil nan golDin, eua


ENSAIO

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DE COLETIVO A MULTIDÃO Ruas, igrejas, museus e até shopping centers são reivindicados e ocupados por novos modos de pensar e fazer política, em movimentos que não cedem aos clichês de esquerda e direita Giselle beiGuelman

Sai 2 mil e crazy, entra 2 mil e catarSe. Foi aSSim que o ano começou no BraSil, turBinado pelo clima eleitoral, a copa do mundo e o Sopro da haShtag que entrou para a noSSa hiStória: #vemprarua. interpretada no contexto de revoltas e movimentos sociais que eclodem no mundo inteiro desde 2011, ela torna as manifestações brasileiras ainda mais interessantes. da tunísia a Wall Street, do cairo a madri, de São paulo a Brasília, de Sochi, na rússia, a Kiev, na ucrânia, passando por caracas e rio de Janeiro, não só as ruas, mas as igrejas, os museus e até os shopping centers estão sendo reivindicados, disputados e ocupados por novos modos de pensar e fazer política. Vadias, maconheiros, pacifistas, gays, jovens em busca de diversão, estudantes, professores, trabalhadores, senhoras, senhores e black blocs aparecem em marchas, paradas, manifestações e aglomerados de todos os portes e perfis. com poucos denominadores comuns, suas ações e pautas evidenciam que uma das marcas do nosso tempo é a irrupção da multidão. diferentemente das massas, a multidão não é uma unidade, mas segue princípios – temporários e provisórios – de auto-organização. as multidões dependem, ao mesmo tempo que SELECT.ART.BR

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A liberdade de ir e vir é um dos temas centrais das manifestações brasileiras, colocando em questão não só políticas de transporte, mas os aparatos de segurança e violência Foto: Mídia NiNja


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Abaixo a Marcha das Vadias, em defesa da condição feminina contemporânea, é emblemática da força das micropolíticas e suas pautas que não cabem nos circuitos tradicionais do Estado e dos partidos

Acima, um dos ícones das manifestações brasileiras, o Batman carioca evidencia que as manifestações em curso transformaram as ruas em uma batalha de linguagens

fomentam, das instâncias micropolíticas e suas formas de tensionar e de se articular com as macropolíticas. Fala-se aqui não da luta dos pequenos contra os grandes, de quantidades, mas de qualidades. Às macropolíticas correspondem as estruturas estáveis, sedimentadas, como as instituições e os partidos. Às micropolíticas, os potenciais em aberto de toda uma série de forças sociais mutantes e fluidas que não cabem no aparato tradicional do Estado. Não é preciso ir muito longe, nem no espaço nem no tempo, para visualizar essas teorias encenadas, vividas, testadas, disputando territórios físicos, informacionais e simbólicos. O Movimento Passe Livre e os rolezinhos são acontecimentos praticamente autoexplicativos desses conceitos. Eles vazam, escorrem, transbordam as pautas partidárias clássicas. Ações como o do G.U.L.F (Global Ultra Luxury Faction), que invadiu o museu Guggenheim de Nova York no dia da inauguração da exposição sobre o Futurismo, no fim de fevereiro, é outra evidência desse processo. O protesto que realizam é contra as condições de trabalho dos migrantes que constroem a sede desse museu em Abu Dabi. Ele traz à tona outros meandros ao artivismo contemporâneo, alargando os horizontes da crítica institucional, tão cara a artistas como Hans Haacke e Andrea Fraser. Por meio de ações diretas e via internet, discutem, desde outubro, aspectos pouco contemplados: as implicações sociais dos processos de implantação e exportação de um museu. SELECT.ART.BR

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fOTOS: fERnAndO fRAzãO/AgênCIA BRASIL E MídIA nInjA


Thiago Leite / ©Shutterstock

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Christian Boltanski Concebida pelo artista especialmente para o ambiente do Sesc Pompeia, a exposição 19 924 458 +/- apresenta um retrato coletivo e em movimento de São Paulo, composto por elementos e dados relacionados à cidade. Curadoria de Marcello Dantas. De 9 de abril a 29 de junho de 2014. Terça a domingo, 10h às 20h Sesc Pompeia Rua Clélia, 93, São Paulo/SP CEP: 05042-000 Tel.: (11) 3871.7700 facebook.com/sescpompeia sescsp.org.br/pompeia Prefira o transporte público sescsp.org.br/transportepublico Realização

Barra Funda 2.000m CPTM Água Branca 800m | Barra Funda 2.000m Terminal Lapa 2.100m


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Geração pós-Muro Multifacetados, esses movimentos arregimentam setores diversos que subvertem a ordem, trazendo novos extremos a um circuito que antes era compreensível entre clichês de esquerda e direita. Protagonizados pela chamada geração pós-Muro (nascida depois da queda do Muro de Berlim, em 1989), seus pais, no Brasil, dividem-se entre aqueles que acreditaram que viveríamos o fim das utopias e aqueles que nem sequer sabiam que Berlim existia. Globalizados, combinam máscaras com humor, cartazes com internet e violência com discursos bem articulados. Sua forma de reivindicar a esfera pública é midiática e midiatizada. Midiática porque é produzida com consciência da importância de propagar-se nos veículos de comunicação internacionais. Faixas em inglês, por exemplo, apareceram em todas as grandes manifestações. Isso não é pedantismo nem acaso. É estratégia. De quem sabe que o vídeo do YouTube pode parar na CNN ou vice-versa. Mas é também midiatizada, pois é através e nos meios de comunicação que as ações e reivindicações se colocam. Não só porque as redes sociais têm em todos esses processos um papel fundamental de articulação e mobilização. Em alguns casos, como no de São Paulo, criam até uma nova geografia dos protestos, inserindo lugares como a Ponte Espraiada no seu mapa, para dali aparecerem no cenário ao vivo dos telejornais da Globo News. Produzem também novos vocabulários visuais. Quem imaginaria que a imagem mais bem acabada da mídia brasileira, a das grandes emissoras de tevê, incorporaria com tanta rapidez as imagens tremidas, fora de foco, a câmera “ofegante” dos ninjas nas suas reportagens ao vivo? Espaço cada vez mais evidente de pulsação das diferenças, as ruas são tomadas por todas as classes e tornam-se também o lugar de uma guerra de linguagens, de enunciados e de maneiras de ver o mundo. Disputa-se palmo a palmo não só o direito de ir e vir, mas o de ser visível. Para dar-se conta disso, basta lembrar do bate-boca entre o Batman de Madureira e um morador do Leblon no começo do ano que virou hit no YouTube ou das estarrecedoras imagens do jovem negro acorrentado por “justiceiros” a um poste no Flamengo. Essa batalha simbólica não é um indicativo de curto-circuito social, como desejariam demiurgos das velhas esquerdas e direitas. É indicativa da pluralidade de vozes e novos protagonistas que entram em circulação. A bem-vinda overdose de imagens que circulam nas manifestações aqui e no mundo todo o comprova. As narrativas que projetam não fazem coro. São ruidosas e midiatizam as ruas. Que venha a catarse. SELECT.ART.BR

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Disputa-se palmo a palmo não só o direito de ir e vir, mas o de ser visível

Ativistas invadem o Guggenheim de Nova York para protestar contra as condições de trabalhos dos imigrantes na construção de sua sede em Abu Dabi fOTOS: G.U.L.f (GLBAL ULTRA LUxURy fACTIOn)

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fogo cruzado

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tODA ARtE É POLÍtICA?

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MÁRION STRECKER

Criadores de várias gerações respondem a pergunta feita por seLecT

Berna Reale na performance Palomo (2012)

BERnA REALE artista

“Penso que não”

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Foto: Leandro Franco Minervino/cortesia da artista


MarCo Giannotti artista e professor da Usp 61 72

“Toda arte é política, é constitutiva de toda cidade (pólis), assim como a política pode ser uma arte. Mas, infelizmente, nem sempre a política faz bons artistas e a arte, bons políticos...”

Lourival Cuquinha em sua instalação Bolha Bank (2013), na ArtRio

LourivaL Cuquinha artista

“Toda arte é vontade de potência de uma ideia e, na medida em que dialoga com outras ideias, se politifica. Acho que, quanto mais se relacionar, mais arte e mais política é. Ela existe quando existe alguém discutindo-a, mesmo que internamente, diante dela. A vontade de todo “objeto” artístico é política, pois requer espaço nas ideias.”

Fotos: Carolina Vendramini e márion streCker


fogo cruzado

t oD a arte é Pol Í ti Ca?

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José Celso Martinez CorrÊa

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diretor de teatro

“A Arte, se for mesmo Arte, sim, é Política. Quando cover ou não nascida da seiva do Corpo ReCriador NÃO É. A Arte é Política – “em si” – (parece um clichê/mas é mesmo), tem Poder & Phoder, interfere em Tudo e em Todos, direta ou indiretamente, pois é a única expressão trans-humana q consegue superar as certezas na fatalidade dos sistemas q nos tiranizam como o atual Mitho da Inevitabilidade da Sujeição ao Mercado, Mas, se ela vira uma simples e cara “commoditie”, perde seu PODER/BROXA. Arte é “eu é um Outro” de Rimbaud, criada pela transa entre este “Outro” e o Corpo, plugada ao Inverso do Universo: o “TUDÃO”, como diz João Gilberto. É muito maior que o Corpo da Própria Pessoa do Artista mas nasce, quer se queira ou não, no Corpo Carnal humano na sua sub ou trans-humanidade, em seu corpo animado elétrico Físico Quântico explodindo quando é parida o chamado Super-Ego. Inicialmente habita nosso “país de dentro”, nossos intestinos q o Artista, por uma necessidade mais forte q ele, q faz jorrar a força incontrolável da natureza cultivada em nossos tormentos ou prazeres mas arrancada de nós com/em Partos-Cagadas/ Mijadas/Gozadas. São Seres Vivos as Obras de Arte, e trazem Beleza & Feiura ou Vice-Versa nunca vista até então na superfície da Terra em cada instante. A Arte brota às vezes do Corpo que cria Outros no SELECT.ART.BR

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Próprio Corpo: na Transfiguração do Performer do Ator/Atriz/ Palhaç(a)o/Dançarin(a)o/Acrobata ...nas letras reescritas /recombinadas/reinventadas pelo Poder do Poeta nos Poemas/Roteiros/Romances/Peças/ Reportagens quando q Lavra a palavra na fertilidade da agricultura ...em Quadros/EsCulturas/Instalações/ Sons/Músicas/Ritmos/nas Ciências/nas Ações também...nas criações dos Povos como o Candomblé/ o Carnavalnascidas das entranhas dos desejos políticos de liberdade ...surge na natureza como nesta tarde em SamPã em q o Sol se pôs desenhando estradas luminosas infinitas em seu Entorno. A Infraestrutura da Arte hoje veio da África – está no Ritmo Quebrado dominante hoje na Cultura Global. Não se pode jamais utilizar o q é Arte para não castrar seu Poder Político, pois assim Ela passa a servir a um comando Policial Positivista do Super-Ego e a Arte é um fenômeno de repentino DESTAMPE do SUPER-EGO. Se servilizada vai criar então um Universo medíocre muito limitado. A Arte foi usurpada por pessoas sem nenhum Talento q se fazem chamar por Políticos, E Ela pode surgir no mais Brega/ou no mais Sofisticado, não importa, às vezes leva séculos para a obra ser descoberta, mas fica no tudo se transforma até um tempo em q é agenciada por corpos humanos, mas, quando ela surge, o mundo muda sem q não se saiba, apesar de hoje aparentemente massacrada pela abstração chamada dinheiro, q nada ouve-vê-sente-percebe do mundo concreto fenomenológico é o q nos mantém vivos por gerações e gerações não há maior Poder do q na Arte por isso Mercantilizada Martirizada.


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José RoBeRto aguilaR

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artista

“Claro que não! Tem certas coisas que não são, não! Senão o Jung estava fodido!”

“Autorretrato com máscara de pintura” (1968), de José Roberto Aguilar, revólver spray sobre chapa de alumínio, 90 x 90 cm

RodRigo BRaga artista

“Entendo que arte por si só lida com valores – dos mais subjetivos aos cuidadosamente construídos – e que isso já agregaria a ela um potencial político, transformador etc. Contudo, eu não generalizaria em dizer que ‘toda arte é política’. Algumas formas de arte não conseguem sair dos valores e sentidos criados apenas no campo restrito da própria arte, não gerando poder discursivo maior, que possa vir a reverberar nos códigos sociopolíticos ou mesmo na formulação de novos pensamentos para além do pequeno universo da arte.”

Fotos: Cortesia do artista e MarCelo Feitosa. Na outra págiNa, MoNtageM de aNa MaCedo


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au to r

portfólio

A cArnAvAlizAção dAs ruAs m a r c o s c h av e s

Outro Brasil se anuncia. Irreverente, rebelde, inédito, contrapõe-se à miséria e às mazelas cotidianas sem concessões ufanistas e sem derrotismo. É carnaval. Caem as máscaras e sobe o pano


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curadoria

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VISÕES crítIcaS Artistas passam ao largo das políticas de Estado e propõem reflexões sobre estruturas de poder, relações de força e dinâmicas sociais G i s e l l e B e i G u e l m a n e m á r i o n st r e c k e r

FErNaNDO arIaS como se imagina o mundo perfeito? Em dezembro passado, Fernando Arias (Armenia, Colômbia, 1963) saiu de Chocó, próximo ao Pacífico, no noroeste colombiano, em direção ao Rio de Janeiro. O objetivo era recolher histórias, mensagens, vozes, cantos, sons e imagens, a partir da seguinte pergunta: Como se imagina o mundo perfeito? A viagem dá continuidade às ações da Fundação Más Arte Más Acción, criada por ele com o inglês Jonathan Colin. Arias atravessou a Bacia Amazônica, que “une e separa o Brasil e a Colômbia”. SELECT.ART.BR

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Acima, Sábado à Noite no Parque de Diversões (2011), instalação com vídeos de Dias & Riedweg, usa imagens de um colorido balé de engrenagens enferrujadas em parque de diversões encravado entre favelas no Centro do Rio. Ao lado, Fernando Arias colhe depoimento de soldados do Exército colombiano em Chocó; a imagem faz parte do audiovisual “Cantos de Viagem”, exibido em março na Casa Daros, no Rio

dias & riedweg EngrEnagEm EnfErrujada Como a psique individual influencia e forma o espaço público e vice-versa. Essa é uma das pesquisas da dupla Mauricio Dias (1964, Rio) e Walter Riedweg (1955, Lucerna), que trabalha em conjunto há 20 anos. Policiais da fronteira do México com os EUA, nordestinos que são porteiros em São Paulo e moradores das favelas do Rio estão entre os personagens de seus trabalhos, que frequentemente se realizam na margem da sociedade.

Foto: cortesia Galeria Vermelho. na páGina ao lado: Fernando arias


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Yinka Shonibare mbe Tensão racial e culTural Ele nasceu em Londres, em 1962, mas foi criado em Lagos, na Nigéria, de onde voltou para estudar arte, primeiro no Byam Shaw College of Art (hoje Central Saint Martin’s College of Art and Design) e, em seguida, no Goldsmiths College. Faz parte da geração conhecida como YBA (Young British Artists). Colonialismo, pós-colonialismo no mundo globalizado, raça e classe social são os assuntos que Shonibare explora em suas pinturas, esculturas, fotografias, filmes e performances. Ele já expôs na Documenta 10, na Bienal de Veneza e em museus e galerias dos Estados Unidos a Hong Kong.

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Acima, Nelson’s Ship in a Bottle, de Yinka Shonibare MBE, que faz referência à Batalha de Trafalgar (1805), em que o almirante Nelson perdeu a vida mas tornou-se um herói. As velas são padrões africanos. Ao lado, Construção de Valores (2012), de André Komatsu feito com ventiladores industriais e fotocópias de dimensões variadas, exposto no Pinchuck Art Centre, em Kiev, na Ucrânia

FOTOS: WIkIMEdIA COMMOnS. nA págInA AO LAdO: CORTESIA pInChuk ART CEnTRE


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andré komatsu DesorDem e rigor A Tate Modern de Londres, a Pinacoteca de São Paulo e o Museu do Bronx, em Nova York, são algumas das instituições que possuem obras do paulistano André Komatsu (1978, São Paulo). Muitos de seus trabalhos são metafóricos e estão impregnados de crítica social e política, de forma mais ou menos explícita. Desordem e rigor convivem em suas criações.


janeZ janZa Quem é janez janza? Em 2007, três artistas eslovenos resolveram mudar seus nomes para o do primeiro-ministro daquele país, Janez Jansa, um político de direita reeleito em 2012. Reemitiram documentos, casaram com suas esposas novamente, mas não recomeçaram suas vidas. A manutenção de suas identidades pessoais, a despeito da sua nova existência legal, implica propositalmente a recusa a uma existência performática. Introduz em seu lugar uma questão biopolítica: a transformação de um nome próprio em brand, mas um brand destinado a falhar. Afinal, nada mudou. Apenas tudo.

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Ao lado, pôster do documentário My Name is Janez Jansa (2012), uma das obras relacionadas à vida dos artistas Janez Jansa, Janez Jansa e Janez Jansa. Abaixo, pen drive infectado com o vírus de espionagem internacional Flamer (2013), de Julian Oliver

julian oliver (in)segurança nacional Flamer é o nome dado a pessoas violentas e agressivas na internet. É o nome também de um vírus de computador encontrado em 2012 no Irã e em outros países do Oriente Médio. Criado especialmente para espionagem de Estado, essa poderosa arma cibernética foi instalada num pen drive por Julian Oliver (Nova Zelândia, 1974), que desenhou para ele uma capa em forma de arma. Caso o pen drive seja inserido em um computador com sistema operacional Windows, o vírus infectará a máquina, servindo novamente à espionagem. Oliver diz que o pen drive está em “quarentena estritamente monitorada”, em seu estúdio em Berlim. SELECT.ART.BR

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FOTOS: CORTESIA dOS ARTISTAS

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graziela Kunsch Além-plAno 72

Mutirão é um projeto da documentarista Graziela Kunsch (São Paulo, 1979) que acompanha ações de movimentos sociais, especialmente os de moradia e o Movimento Passe Livre. Reúne uma série de vídeos, formados por um único plano, como se cada um fosse peça de um processo maior. O foco principal do trabalho são as conversas – os momentos de articulação coletiva das ações/dos vídeos. São muitas horas registradas, que poderiam render um ou mais documentários. Mas ele seria interminável. Como as lutas políticas.

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Conversa do Projeto Mutirão na Escola Pública do Audiovisual, em Fortaleza, em outubro de 2013

Tania Bruguera Arte Útil Conhecida por suas performances radicais, como a roleta-russa que protagonizou na Bienal de Veneza, a artista cubana Tania Bruguera (Havana, 1968) vem se dedicando agora ao que chama de Arte Útil. Mais do que um título e um museu online, Arte Útil é uma metodologia. Contempla obras criadas com propósitos artísticos, mas que tem resultados práticos e benéficos para as pessoas. Por esse motivo, explica Bruguera, esse tipo de obra não pode falhar. Tem de funcionar. Exemplo de obra “que funciona” é o mictório do Museu de Arte Útil, que opera uma inversão do princípio do ready-made, de Duchamp. Na obra em questão, em vez de deslocar o objeto comum para o contexto da arte, é a escultura assinada que assume uma função no banheiro masculino. Arte Útil (2010), de Tania Bruguera


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artes visuais

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CoCo FusCo e a alegoria de KaFKa Mirtes Marins de Oliveira

Crítica à violência sistemática cometida por europeus e norte-americanos contra africanos e asiáticos a partir do século 18 é o mote da poética da artista cubano-americana “Um RelatóRio paRa Uma academia” é Um texto cURto de FRanz KaFKa, escRito entRe 1916 e 1917, no qUal o naRRadoR discURsa paRa Uma plateia de doUtoRes sUa passagem da condição de macaco apRisionado paRa a de hUmano FoRa da jaUla. capturado nas costas africanas, encarcerado e exibido, o palestrante relata como foi se aproximando da cultura civilizada: do aperto de mão mais básico até a compreensão da diferença entre liberdade e “encontrar uma saída”. o projeto de fuga da jaula foi aos poucos substituído pelo aprendizado com os humanos: cuspir, fumar, beber, sessões de tortura para domesticar a natureza animal e, por fim, o domínio da linguagem. “aprende-se quando se quer uma saída.” assim, com o tempo, o macaco palestrante inverteu a situação: seu SELECT.ART.BR

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primeiro professor tornou-se ele mesmo um símio, e ele, macaco, alcançou a formação média de um europeu. a alegoria de Kafka permite a leitura, entre outras, como crítica à violência sistemática cometida por europeus e norte-americanos contra africanos e asiáticos a partir do século 18, quando os capturados nessas comunidades eram exibidos em diferentes metrópoles europeias sob pretexto científico ou de entretenimento, procedimento expositivo inaugurado por cristóvão colombo, em 1493, ao trazer um grupo de arawaks caribenhos e exibi-los na corte espanhola. estão presentes no discurso para os acadêmicos de Kafka as apropriações e conflitos identitários que continuam a pautar a sobrevivência de exilados, imigrantes ou refugiados: aprender (com) seu algoz para sobreviver.

Na performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West (1992), Coco Fusco e Guillermo Gomez-Peña habitam jaula durante três dias


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Foto: cortesia da artista


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Um Relatório para uma Academia serviu como mote para Coco Fusco desenvolver, juntamente com o artista Guillermo Gomez-Peña, a performance Two Undiscovered Amerindians Visit the West (1992), ação que faz parte de um projeto maior, The Year of the White Bear, composta de apresentações, textos e vídeos, entre outras produções. Two Undiscovered Amerindians Visit... era uma proposta de vivência dos artistas em uma jaula, durante três dias, como ameríndios recém-descobertos na inexistente ilha de Guatinu. Colocados no exato lugar do narrador de Kafka, era possível verificar fortes analogias temporais: “(…) estávamos intrigados com a missão de performatizar a identidade de um Outro para uma audiência branca, sentindo suas implicações para nós como artistas da performance que lidam com identidade cultural no presente. Perguntávamo-nos se as coisas haviam mudado”.

Histórias autênticas ameríndias Convidados para apresentar um trabalho na Edge’92 Biennial, que ocorreria entre Londres e Madri, a jaula estreou em praça pública. Em Madri, foi apresentada na Columbus Plaza e recebeu mais uma camada interpretativa, servindo como demonstração anticolonialista e anticelebração do suposto “descobrimento” da América. Nos três dias de performance, dedicavam-se às tarefas da tradição de Guatinu, como confeccionar bonecas para vodu, levantar pesos, assistir à televisão ou trabalhar no computador. O visitante que contribuísse com alguma doação poderia assistir a Fusco dançando rap ou Peña, contando, em linguagem ininteligível, histórias autênticas ameríndias, ou mesmo tirar fotos com os enjaulados. Dois seguranças também participavam da performance e serviam para intermediar a conversa com os visitantes, levar os artistas ao banheiro devidamente encoleirados e alimentá-los com sanduíches e frutas. Segundo Fusco, no Whitney Museum, em Nova York, adicionaram sexo ao espetáculo, oferecendo ao visitante uma espiada em um autêntico órgão genital masculino de Guatinu, pela quantia de 5 dólares. Um painel também oferecia uma cronologia das SELECT.ART.BR

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exibições de não ocidentais e um falso mapa do Golfo do México, mimetizando os procedimentos didáticos das Exposições Universais, vigentes a partir do século 19. Além da recepção contraditória por parte do público, que nem sempre atentava para a ironia da proposta, Fusco aponta para o contexto perverso no qual a performance se desenvolveu, o da administração de George H. W. Bush, que buscava alinhavar em documentos oficiais uma relação de similaridade simbólica entre o Descobrimento do Novo Mundo e a existência de uma Nova Ordem Mundial, a partir do final da Guerra Fria. Na contramão do multiculturalismo isento que dominava a cena acadêmica norte-americana naquele instante, as apresentações de Fusco e Peña evidenciavam a constatação de Ella Shohat e Robert Stam: multiculturalismo sem a crítica ao eurocentrismo ou ao norte-americanismo é só um shopping de culturas. A observação da violência que domina os conflitos identitários alcança, em Fusco, a condição feminina instrumentalizada – e ausente – também no circuito artístico, constatação anteriormente identificada nas obras da cubana Ana Mendieta. Assim ocorre em The Incredible Disappearing Woman (2003), realizada em parceria com Ricardo Dominguez, que reverbera a história verdadeira de um artista que alegava ter realizado gravações em

A performance Bare Life Study #1 (2005) foi realizada em frente ao Consulado dos Estados Unidos em São Paulo


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Em trabalho recente, a artista interpreta Dra. Zira, psicóloga e veterinária, que leciona sobre o comportamento humano voltado para a pilhagem e a acumulação áudio, com finalidade artística, de uma relação sexual mantida com um cadáver de mulher alugado na fronteira com o México. Na performance, três mulheres recebem instruções de quatro personagens, via internet. Para Fusco, seu objetivo era “refletir sobre questões éticas e estéticas de como realizar a realidade da violência política inteligível em uma cultura saturada de informações, dominada pela simulação. Na pressa para celebrar o potencial de expansão da comunicação proporcionada pelas novas tecnologias, assumimos que o aumento da circulação de informações produz, necessariamente, melhores possibilidades de interação intercultural substantiva”.

HumilHação encenada Coco Fusco veio ao Brasil em 2005 e apresentou Bare Life Study #1, intervenção urbana realizada em frente ao Consulado dos Estados Unidos em São Paulo, na qual comandou um grupo de 50 pessoas em uniformes de cor laranja, vestimenta dos detentos nos presídios americanos. Sob suas ordens, munida de um megafone, os participantes passam a limpar o chão com escovas de dentes, procedimento

de humilhação recorrente em prisões americanas. A performance foi a primeira de uma série, elaborada desde então pela artista, que discute criticamente o papel exercido por mulheres militares. Fusco está agora de volta para uma residência artística de quatro meses, nos quais vai interagir com alunos e professores da Fundação Álvares Penteado (Faap), dentro das atividades do Programa Faap/Fulbright Distinguished Chair in Visual Arts. Nessa presença, repercute seu último trabalho, realizado no fim de 2013. Nele, a artista realiza um salto rumo às origens de Undiscovered Amerindians Visit the West, sem deixar de lado sua feroz crítica feminista. Em sua performance Observations of Predation in Humans: A Lecture by Dr. Zira, Animal Psychologist, Fusco reencarna a personagem do filme Planeta dos Macacos, Dra. Zira, psicóloga e veterinária. Discursa sobre sua especialidade: o comportamento humano, cuja agressividade está também orientada para a pilhagem e acumulação. Ecos de Um Relatório para uma Academia se ouvem aqui. Mas a performance de Coco Fusco vai além, já que pode indicar que o macaco de Kafka é também mulher.

Observations of Predation in Humans: A Lecture by Dr. Zira, Animal Psychologist (2013), o trabalho mais recente de Coco Fusco, eco evidente de texto de Franz Kafka FotoS: corteSia da artiSta


v e r N I SSAG e

pAT r o c Í N I o

ApoIo

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Leve como pApeL, mALeáveL como o corpo

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Tiragem Limitada, exposição inaugural da Arteedições Galeria, apresenta obras de nove artistas, em que a qualidade democrática da gravura e do papel se expande para esculturas e instalações SELECT.ART.BR

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Tiragem LimiTada eLucida uma nova ordem reLacionaL enTre as mídias conTemporâneas. além de obras impressas em metal e litogravura, a exposição traz edições em escultura, instalação e objetos, mostrando que a qualidade múltipla está longe de ser uma condição limitada às técnicas de impressão e reprodução, como a gravura, o print, a fotografia, o vídeo e as chamadas imagens técnicas. compreendem-se, nos trabalhos de nove artistas reunidos nesta exposição com organização de claudia marchetti, as maneiras com que a gravura “exporta” para as outras mídias a sua qualidade democrática. realizada há exatos dez anos, com edições em papel de artistas contemporâneos britânicos, a exposição paper democracy havia atraído atenção para a gravura como meio democrático de circulação da arte. em texto de apresentação, o crítico suhail malik associava a gravura à prática do jornalismo. em sua disponibilidade material e econômica, facilitadora da distribuição e da multi-

FOTO: CORTESIA dA ARTISTA. nA págInA AO LAdO, BEn wESTOBy/CORTESIA whITE CuBE


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Daggering (2013), de Eddie Peake, é uma edição de 75 lenços pintados individualmente com spray. Usado como acessório, faz do corpo humano um suporte da gravura. Na página à esquerda, Department of Water and Power (Los Angeles) (2004), portfólio de quatro silkscreens de Sarah Morris


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plicação da opinião pública, o jornal seria o precursor do que viria a ser a democracia moderna, na forma como a conhecemos. O papel, suporte material do jornal, seria o elemento determinante “para a vasta proliferação de um espaço político versátil e militante”, segundo Malik. Na exposição Tiragem Limitada, que inaugura a Arteedições Galeria, em São Paulo, o conceito da democracia do papel expande-se para as técnicas ditas “tradicionais”, que um dia primaram e zelaram pela singularidade da obra de arte. A leveza e a maleabilidade da matéria papel, que há mais de três séculos se oferece como suporte para a difusão de ideias, críticas, reflexões e crônicas da vida social e política, hoje se estende a matérias mais densas. Como o bronze e o concreto, que compõem a obra de Adriano Costa especialmente produzida para a mostra. Material frequentemente utilizado pelo artista, o bronze é em geral posicionado no chão, numa atitude de quebra de hierarquias. Na instalação O Jogo dos 7 Bobos (2014), as peças são posicionadas sobre tijolos de concreto. A textura, o peso, a longevidade e a mítica carregada pelo bronze ao longo de toda a história da arte são qualidades que interessam ao artista. Mas, apesar de sua indiscutível nobreza, essa matéria estabelece, na obra de Adriano Costa, uma relação horizontal com o concreto, a madeira ou o pano de chão. Esses tensionamentos entre peso e leveza, longevidade e efemeridade, são particularmente sugestivos no trabalho gráfico do escultor Richard Serra. Célebre por obras de escala monumental e penetrável, em geral realizadas em ferro, Serra integra a exposição com quatro gravuras em metal que revelam como o pensamento escultórico se comporta no suporte maleável do papel. Produzidos dentro do espectro da gravura tradicional, ou como edições escultóricas, os trabalhos apresentados em Tiragem Limitada compartilham de uma mesma intenção de colocar o meio gráfico em posição limítrofe em relação a outros campos da arte ou da vida. As litogravuras de Cy Twombly dialogam com a documentação científica. Em composições que articulam a pictografia (a imagem bruta, antes de se tornar signo e representação) e o texto enciclopédico, a série Natural History Part I: Mushrooms (1974) encadeia uma série de referências, da antiguidade à arte contemporânea. Composta de dez gravuras, interferidas individualmente com colagens e traços em crayon, a série é um modelo espetacular do ideal da “tiragem limitada”, já que possui apenas 17 exemplares, um deles pertencente à coleção da Tate, em Londres. Jake e Dinos Chapman dialogam a tradição editorial e articulam um pensamento crítico em relação ao próprio meio gráSELECT.ART.BR

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fico. A série Bedtime Tales for Sleepless Nights (2013) é uma tiragem recente de 35 gravuras em metal das imagens que ilustram o livro de mesmo título, lançado pela Fuel e a White Cube Gallery em 2012. Em sua alegoria crítica da moral vitoriana, os irmãos Chapman mais uma vez evocam o álbum gráfico Desastres da Guerra, de Goya – que foi adquirido por eles em 2003 e que teve cada uma de suas 80 gravuras manipuladas com pinturas. No texto que acompanha a última prancha do álbum de gravuras, eles citam Deleuze e Guattari, em negação a Goya, terminando seus contos de horror com o statement: “Lembrem-se, pequenos. O inconsciente tem seus horrores. Mas eles não são antropomórficos. Não é o sono da razão que engendra monstros, mas a racionalidade vigilante e insone”. A qualidade versátil do papel projeta-se também entre as outras obras da exposição. Safety Last (2011), de

À direita, O Jogo dos 7 Bobos (2014), de Adriano Costa, instalação realizada especialmente para a exposição


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Ao lado, Rubber Mat (1996), de Mona Hatoum, artista libanesa radicada em Londres, que trabalha com temas relacionados a violência, voyeurismo e repressão

Catherine Yass, dialoga com o cinema ao se apropriar de fotogramas de um clássico do cinema mudo; Rachel Whiteread faz esculturas modelando com gesso objetos da vida doméstica; e Sarah Morris, que, desde meados dos anos 1990, realiza pinturas, filmes e gravuras abstratas sobre o que ela descreve como “tipologias urbanas, sociais e burocráticas” baseadas em cidades do mundo, apresenta Department of Water and Power (Los Angeles) (2004), portfólio de quatro silk-screens. O mais jovem artista da exposição, Eddie Peake costura conceitos da cultura de massa em uma peça que é tanto obra artística quanto acessório. Daggering (2013), edição de 75 lenços pintados individualmente com spray, foi concebida para ser usada. Portanto, instaura o corpo como suporte da gravura. O corpo humano e a vida doméstica são também territórios de exploração de Mona Hatoum, presente nesta exposição com Rubber Mat (1996). O objeto, um múltiplo de silicone que está no departamento de prints da coleção do MoMA-NY, tem a forma de um tapete estampado com um tubo intestinal. A tradição da escultura minimalista, os carpetes de cultos muçulmanos, a fragilidade de um corpo jogado no chão, o mal-estar de uma noite insone, a matéria prosaica da vida. O encadeamento de imagens liberadas pela obra da artista libanesa lhe confere a condição de escritura. Assim como o texto riscado no carpete de entranhas de Hatoum, cada uma das obras em exposição é portadora de um discurso sobre o nosso tempo, a ser multiplicado e compartilhado entre vários leitores. A seção Vernissage é um projeto realizado em parceria com galerias de arte, que prevê a publicação de um texto crítico sobre a obra de um artista que estará em exposição durante os meses de circulação da edição. Fotos: cortesia white cube e cortesia do artista/arteedições/MeNdes wood


r e p o r ta g e m

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A periferiA Arde l u c i a n a pa r e j a n o r b i at o

Artistas à margem dos grandes centros urbanos buscam transformar a realidade social por meio de uma produção engajada desde o berço SELECT.ART.BR

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Conhecidos por codinomes, Toddy e Val (à dir.) lideram o OPNI (SP), cuja galeria de grafite a céu aberto é atração na região de São Mateus

A históriA se repete não importA pArA que lAdo: pegAr metrô ou trem, chegAr Ao ponto finAl (ou quAse) e tomAr AindA um ônibus, indo novAmente Até A últimA pArAdA. o fato de milhões de brasileiros enfrentarem essas viagens urbanas cotidianamente faz pensar em como a localização geográfica muda a perspectiva pela qual cada cidadão vê a si e a vida. mesmo o poder público se dissolve na distância. quanto mais afastado o bairro, mais pobreza e menos urbanização. Assim, é natural que a arte produzida nessas regiões seja política desde o berço. na busca pela transformação do ambiente ao redor e de sua articulação com o centro, os artistas periféricos são engajados, atuam coletivamente e tentam suprir com beleza e atitude o que falta em ação oficial. se no campo da música o recado é mais duro pela via do rap ou se dilui no desejo de reconhecimento apregoado pelo funk, principalmente em sua vertente “ostentação”, as artes em geral e as visuais em particular, encabeçadas pelo grafite, introduzido no brasil em meados dos anos 1980 com a cultura hip-hop (baseada em dJing, rap e street dance, além do grafite), têm sede de poesia e não fecham a porta ao trânsito de mão dupla. Artistas do centro migram para os extremos em projetos parceiros, seja o JAmAc de mônica nador ou o teatro hip-hop do núcleo bartolomeu de depoimentos, ambos de sp; ou as exposições travessias, realizadas na favela da maré (rJ) pelo observatório de favelas desde 2011, levando artistas consagrados como vik muniz, ernesto neto e raul mourão (curador da última edição ao lado de felipe scovino) para a comunidade. A iniciativa é um desdobramento do programa imagens do povo, que começou em 2004 como um curso de fotografia para os jovens locais e gerou uma agência de fotógrafos e um banco de imagens. “o que esses fotógrafos populares fazem é olhar para a favela de pontos não retratados pela mídia tradicional e passamos a entender isso como uma questão fundamental: a disputa por imaginário nas cidades”, diz gilberto vieira, 25 anos, produtor da instituição.

A questão do intercâmbio entre centro e periferia também norteia o imargem, coletivo do extremo sul da cidade de são paulo, cujo lema é “arte, convivência e meio ambiente”. localizado no grajaú, tem na margem da represa billings sua sede atual, uma casa recém-ocupada em regime de comodato, e seu início em uma exposição homônima. encabeçado pelos irmãos mauro, 33 anos, e Wellington neri, de 29, o coletivo trabalha com grafite e esculturas-lixeiras, entre outros, para conscientizar a população local de questões como meio ambiente, direitos humanos e trânsito urbano. As intervenções, oficinas e “debatepapos” promovidos trazem especialistas vindos de outras regiões para fazer a ponte do pensamento local com a cidade. “A gente tem a missão de diminuir o isolamento entre centro e periferia, tentar trazer para os jovens outras referências de cidade, de pertencimento, de circulação. A cidade é de todos, a billings é de todos, a paulista é de todos”, diz mauro, cujos grafites de figuras alongadas e com o jogo de palavras recorrente “ver a cidade” grafado junto podem ser vistos também na região daquela avenida. chamados agentes marginais, os vários integrantes do imargem são educadores, artistas, biólogos, pedagogos. “A gente costuma dizer que faz ‘poesia da margem à centralidade’”, diz o também educador Wellington. A atuação direta com o público é ampliada por meio de projetos em parcerias com a secretaria municipal do verde e meio Ambiente e a secretaria municipal de direitos humanos. “o cotidiano endurecido faz com que as pessoas não prestem atenção na sujeira que deixam cair no chão, na cor que querem no muro, na quantidade de grades que a cidade tem, no tipo de lugar que têm o direito de acessar, então tentamos insistir, resistir, persistir nessa conscientização”, diz mauro.

Contingente artístiCo perifériCo grafiteiro e escultor, ele integra esse contingente artístico periférico, majoritariamente jovem, que vem atraindo visibilidade até no exterior. mauro neri esteve na itália em 2008; outra grafiteira, soberana Ziza, codinome de regina Foto: MAtEUS SILVA DESIGNER

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O trabalho de artistas, videoartistas, músicos e poetas, mesmo sem ajuda de editais ou verba pública, produz resultados notáveis e cria novas possibilidades de olhar Elias da Costa, viajou para Washington e, pelo projeto City Off Hip Hop (2011), para Berlim. “Eu era a única mulher. O lugar mais longe aonde eu tinha ido era Campinas. Minha mãe falava: ‘Lá eles não gostam de negro, hein, cuidado’ (risos). Mas fui super bem recebida, o pessoal foi muito simpático, principalmente os artistas; às vezes, mais simpáticos que os daqui”, diz Regina. Moradora do Jardim Peri, distrito de Cachoerinha, zona norte de São Paulo, ela tem como premissa de seu graffiti a visibilidade das causas afro-brasileiras e da mulher. “Quando quer passar essa mensagem de valorização da mulher, a gente se torna feminista. Não que eu seja anti-homem, mas me encaixo no feminismo que quer fazer pensar”, diz ela. Além disso, Regina ganha a vida como educadora no Centro Municipal da Criança e do Adolescente de Cachoeirinha, onde dá oficinas de artes que a lembram de seu passado. O papel dos centros culturais na periferia é crucial para o surgimento de artistas regionais: como Ziza, quase todos os entrevistados da matéria iniciaram na arte dentro dessas instituições. Por sua participação no coletivo Literatura Suburbana, Ziza foi convidada a ser curadora e ilustradora da coleção literária Besouro, patrocinada pelo projeto Aprendiz/Comgás e contemplada pelo edital VAI, da prefeitura, cujos dez volumes serão utilizados pela rede municipal de ensino como material didático sobre a cultura afro-indígena. Com a inscrição na categoria de microempreendedor individual, ela agora é microempresária do SELECT.ART.BR

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Ilustração de Soberana Ziza, da região de Cachoeirinha (zona norte de SP), que explora por meio do grafite e do design gráfico imagens engajadas na exaltação às mulheres e ao povo negro


Estúdio Soberana, dentro do qual cria projetos de design gráfico e grafite e a marca de roupas Soberana, ainda em estágio inicial. “É bom se profissionalizar.” Se a formação universitária influencia na produção desses artistas, o inverso também acontece. Leandro Araujo, 25 anos, nascido na Favela de Vila Santa Inês, na região de São Miguel Paulista (zona leste da capital), começou aos 19 a frequentar as então recém-criadas oficinas de azulejo do Ateliê Azu, foi se envolvendo mais até se tornar sócio no negócio e passar a morar na sede de três andares e a coordenar as oficinas. “Sou o responsável por conversar com os pais das crianças, porque ainda tem muita gente que não compreende o nosso trabalho aqui”, diz. Contando atualmente com verba da Fundação Fenômenos, do ex-jogador de futebol Ronaldo, o Ateliê Azu surgiu em 2007 pelas mãos do gravador Elcio Gonçalves Torres, 48 anos. Ex-traficante e ex-presidiário nascido na Penha, Elcio encontrou na arte um caminho para colocar no mundo sua inquietação. Abandonou seu estúdio localizado nos Jardins e escolheu a comunidade de Santa Inês pela proximidade com seu bairro de nascença. “O que se convencionou chamar de artista plástico exerce seu ofício no lugar errado. Ele não tem serventia nenhuma na Vila Madalena, em Pinheiros, no Centro, porque lá tudo já está feito. O artista tem função transformadora, até didática, ele opera com as muitas questões da vida e do mundo”, diz. Partindo dessa premissa, instalou o ateliê de pintura de azulejos não só para capacitar a molecada da região, mas para transmitir valores que põe em prática nos mutirões de revitalização de lugares abandonados na favela, como a Praça São José, um entroncamento de ruas antes tomado pelo entulho.

consegui fazer o (mural do) Che Guevara, se eu tivesse 50 mil fogos de artifício, eu teria soltado, porque foi quando consegui trabalhar com azulejo da minha forma”, declara. Urbanismo é o fio condutor das várias premissas que o coletivo OPNI (Objetos Pixadores Não Identificados) trabalha em sua galeria a céu aberto, na região de São Mateus (zona leste de SP). Pelo grafite, os líderes do grupo, Val e Toddy (que preferem ser chamados pelos codinomes), encontraram a sensação de pertencimento que não tinham antes. “Nós éramos adolescentes meio deslocados na sociedade, até que o grafite acolheu a gente”, diz Toddy. Sem ajuda de editais ou verba pública, os líderes do grupo, que inclui videoartistas, músicos e poetas, sentem que as pinturas da sua quebrada criam novas possibilidades de olhar entre a população local. “Quando a gente vê a possibilidade de uma família passear na nossa galeria a céu aberto, do pessoal beber uma cerveja e poder ver alguém fazendo grafite ou vendo o trabalho pronto, curtindo a arte ou mesmo jogando crítica de arte no nosso trabalho, é legal. A gente consegue aflorar esse olhar para a arte na periferia”, explica Val. Nos desenhos, figuram as mulheres, base da comunidade, que criam os filhos no esforço; os barracos traduzidos na vivacidade que a pintura do coletivo transmite; o orgulho negro e, pontualmente, cenas de denúncia de um cotidiano nem sempre feliz.

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No alto, à esq., parede pintada com símbolo do projeto Cartograffiti, do Imargem, à beira da represa Billings; abaixo, Leandro Araujo aplica azulejos que fundam praça onde antes era depósito de entulho na Vila Santa Inês

50 mil fogos de artifício “Eu enxergava o azulejo como um fim, mas descobri que era um meio. Através dele descobri que conseguia fazer o cara refletir sobre o espaço em que vive, que público e privado têm de conversar, fazê-lo entender que público é de todo mundo”, diz Elcio. Caso do vigia Laércio Caraibeira da Silva, 32 anos, morador da comunidade. Nos mutirões e eventos realizados pelo Azu, ele ajuda fazendo tanto a limpeza do local quanto criando mosaicos de função urbanística, que nunca imaginou realizar. “Quando eu Fotos: ateliê azu/divulgação. na página ao lado cartograFFiti/imargem (alto) e ilustração soberana ziza


Abaixo, estampa produzida em uma das atividades culturais do Ocupa Alemão (RJ), que busca conscientizar a população do complexo de favelas por meio da arte; ao lado, um dos exemplares do projeto Afeto na Lata, criado pelo articulador Helder Holiveira para circular frases engajadas de poetas e músicos do Grajaú (extremo sul de SP)

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das tintas em spray, pinta frases de escritores e músicos da periferia, como Sergio Vaz, organizador do sarau da Cooperifa, uma das iniciativas mais antigas da cena da quebrada, com 12 anos (na região de Parelheiros, sul de SP). Depois as abandona em algum lugar público para que alguém pegue. “É uma forma de fazer circular esse pensamento da periferia de maneira espontânea, sem cobrar” diz Helder, também coordenador do centro cultural da CSN, em Volta Redonda, espaço que ajudou a popularizar. “Não é que não acredite na arte solitária, mas não é comigo, gosto do diálogo e da troca com os outros”, completa. Sem números oficiais definitivos quanto à quantidade de coletivos atuantes hoje, mas com estimativas que somam milhares, seja na capital paulista ou na fluminense, a expressão artística da periferia é extensa, organizada e engajada. Mas ainda tenta alcançar a grande massa. “Claro que conseguimos falar com um pessoal já meio iniciado, mas nos perguntamos como atingir a massa, o pessoal que não conhece arte”, reflete Mauro Neri. Dessa forma, a democracia da arte se prova pelo bem e pelo mal: seja no Centro, seja na periferia, seu caráter contestatório deve ainda enfrentar a incompreensão do grande público.

eda tn ov a v i t u r t sno c an oã ç e l o c l ed a f

Acima, estampa produzida em uma das atividades culturais do Ocupa Alemão (RJ), que busca conscientizar a população do complexo de favelas por meio da arte. Abaixo, um dos exemplares do projeto Afeto na Lata (SP), criado pelo articulador Helder Holiveira para circular frases engajadas de poetas e músicos do Grajaú

Denunciar foi o estopim para a criação do Ocupa Alemão, um grupo que conta hoje com sete moradores do Complexo do Alemão (zona norte do Rio) que usam espaços abandonados para intervenções artísticas de cunho político. Partindo de uma manifestação contra abusos cometidos pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Alemão e no Morro do Boréu em 2012, jovens como Thamyra Thâmara de Araújo, 25 anos, e Pamela Souzza, de 24, mobilizaram-se para prestar assistência de direitos humanos na comunidade. “De repente, a demanda ficou muito grande, a gente não tinha como atender tanta gente”, conta Pamela. A solução encontrada foi a mudança de atuação: em vez de prestar assistência direta, passaram a realizar programações e oficinas culturais de conscientização, desde vivências poéticas até improvisação com máscaras para debater os limites do corpo negro, direitos humanos e inserção social. “A gente tem licença poética para todo tipo de ação, inclusive para reivindicar nossos direitos pela internet”, diz. Não à toa, a página do grupo no Facebook é um forte canal de comunicação – e ativismo – com mais de 2,5 mil curtidas. O barateamento da tecnologia, a difusão da internet e o surgimento das redes sociais são fatores importantes na ampliação do alcance dos coletivos e na criação de uma rede periférica comunicante com o Centro, principalmente para o rap. “A possibilidade de dividir com rapidez suas músicas é algo mágico”, diz o rapper Criolo, egresso do Grajaú (SP). “Quando comecei, tínhamos de ‘loopar’ a instrumental na fita cassete de quatro em quatro segundos, só para ter uma base para rimar. Depois, para essa fita chegar em outro bairro dependia de quem fosse para lá, pois nem o dinheiro da condução tínhamos. Poderia demorar mais de um mês para levar uma música sua para outras pessoas. Hoje você faz em minutos”, diz ele. Também morador da região e parceiro do Imargem, Helder Holiveira, 46 anos, criou uma forma poética de passar mensagens políticas. Conhecido por todos da região como articulador, inventou por acaso o projeto Afeto na Lata, como forma de presentear um amigo. Nas embalagens vazias SELECT.ART.BR

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FOTOS: jOãO LIMA /OCupA ALEMãO E ThAMy CABRAL


Ministério da Cultura e Museu de Arte Moderna de São Paulo apresentam

De 1 abr - 15 jun no Museu de Arte Moderna de São Paulo

Vontade construtiva na coleção Fadel

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v c n c f

o o a o a

n t ade ns t r u t i v a

#vontadeconstrutiva Curadoria: Paulo Herkenhoff Grande Sala Patrocínio

l e ç ão de l

Realização

poder provisório Fotografias do acervo do MAM #poderprovisorio

Mídia Ninja (Brasil, 2013). Ruas de junho, 2013. Impressão jato de tinta sobre papel. 46 x 70 cm. Coleção MAM, doação dos artistas por intermédio do Clube de Colecionadores de Fotografia MAM.

Curadoria: Eder Chiodetto Sala Paulo Figueiredo

Realização

O MAM fica no parque Ibirapuera, portão 3. +55 11 5085-1300 Ter - dom, 10h - 18h Bilheteria até 17h30

E na internet também. :: mam.org.br :: redes sociais/mamoficial :: google art project


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e n t r e v i s ta

“Nós” em vez de “eu” Pa u l a a l z u g a r ay, giselle Beiguelman e márion strecker F O T O S P i o F i g u e i r oa

Inspirada pelos coletivos e pelo clima de insatisfação social, a 31ª Bienal de São Paulo quer a imaginação do momento político

A 31ª BienAl de São PAulo, que Será ABertA em SetemBro, eStá Sendo influenciAdA PelA inSAtiSfAção SociAl que APArece nAS recenteS mAnifeStAçõeS PolíticAS Ao redor do PlAnetA. o espírito coletivo está no centro de suas propostas, desenvolvidas por um grupo de curadores que trabalha em conjunto há cerca de dez anos, sem um líder definido. o título será “como falar de coisas que não existem”, e terá seu verbo principal alterado com o passar do tempo. três dos curadores, o escocês charles esche, a israelense Galit eilat e a brasileira luiza Proença, foram sabatinados, em afinação com seu clima coletivo, por três integrantes da equipe de seLecT.

À esquerda, os curadores Galit Eilat, Luiza Proença e Charles Esche, da equipe da 31 a Bienal de São Paulo

Charles, você é o curador-chefe da 31ª Bienal de São Paulo ou se recusa a assumir essa posição hierárquica? Charles Esche: fui chamado porque alguém tinha de ser chamado, mas, desde o início, propus que trabalhássemos como um time. não sou nem nunca fui o curador-chefe. trabalhamos juntos há cerca de dez anos, em diferentes formações, como um coletivo. Como vocês tomam as decisões? Votam? Buscam consenso? Galit Eilat: de muitas maneiras. cada decisão envolve muita discussão e muita confiança. Às vezes, não há discussão e simplesmente concordamos imediatamente. ou então um toma a decisão e os outros seguem. temos uma maneira orgânica de trabalhar. entendemos o que cada um de nós pode trazer em sua área de conhecimento e nos baseamos muito nisso na hora de tomar uma decisão sobre um artista, o espaço, um texto, ou sobre como abordar algo. nossa comunicação é diária, de hora em hora. Esche: isso só funciona se o grupo trabalha junto há muitos anos. Pense num time de futebol. um time realmente bom não precisa de um capitão, porque todos sabem como jogar.

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“Passamos um período em que o privado foi muito privilegiado, muito mais do que o comum. Voltou a ideia do grupo, do coletivo na prática artística”, diz o curador Charles Esche Foram incorporados novos colaboradores no time, como Luiza Proença e Benjamin Seroussi. Como vocês se acharam e decidiram trabalhar juntos? Eilat: Foi por recomendação. Sabíamos que precisávamos de apoio de curadores locais, que conheciam a cidade, os artistas, a língua, a história, poderiam nos dar um outro ponto de vista daqui e para aqui. Então perguntamos para pessoas, entrevistamos pessoas, e acho que conseguimos o melhor que funcionaria para nós. Vocês vão privilegiar artistas que trabalham em coletivos em vez de nomes que atuam individualmente? Esche: Humanos dependem de sociedade. Acho que é um bom momento de pensarmos no “nós” em vez de no “eu”, tanto com relação à condição social quanto à situação artística. Passamos um período em que o privado foi muito privilegiado, muito mais do que o comum. Voltou a ideia do grupo, do coletivo na prática artística, refletindo, espelhando e contribuindo para esse desenvolvimento. Luiza Proença: E não serão só artistas, mas também escritores, curadores... A noção de curador tem sido posta em xeque desde os anos 1970, e essa temática está aparecendo em toda parte. Curadores são realmente necessários? Esche: Sim, tem sido uma longa discussão, eu concordo. Mas os curadores cumprem uma função. Você precisa do dispositivo, que dá forma e organiza a estrutura que faz sentido ao público. Serve como um manual para fazer uso da arte. Esse é o papel do curador. Se não houvesse o curador, o artista sofreria uma pressão extraordinária, não só para produzir o trabalho, mas também da mídia e para construir e encontrar o SELECT.ART.BR

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público. Seria um trabalho realmente duro para o artista. Se existe um gap entre o artista e o público, então o curador é necessário. Estou totalmente aberto à ideia de que o curador possa ser abolido. Não me incomodaria, mas não vejo que seja desnecessário no momento. Alguns artistas comentam que os curadores hoje são mais poderosos do que nunca. Eilat: Concordo até certo ponto, até o do mercado. Quando o mercado é muito presente, então o papel do curador não é realmente importante. Você acha que o curador tem mesmo esse papel, de criar um equilíbrio entre o artista e o mercado? Eilat: Poderíamos falar sobre o valor simbólico que o curador agrega e sobre o valor do mercado, e como eles interagem um com o outro. Haverá interação entre os artistas dentro do espaço expositivo? Normalmente, o mapa da Bienal acaba tendo a forma de espaços divididos, não é verdade? Esche: Estamos tomando a arquitetura do pavilhão como ponto de partida. O que esse edifício precisaria ter para ter interação? Nesse sentido, o prédio tornou-se muito importante, quase liderando o trabalho curatorial. Quem a gente convida, como convida, por que convida? É fato que o arquiteto começou a conceber o espaço da 31ª Bienal sem saber que obras serão mostradas? Esche: Nós não temos um arquiteto. Temos um curador que tem treinamento arquitetônico. Eilat: Ele é arquiteto. Não diga que não temos um arquiteto! Dentro da equipe curatorial há um arquiteto. Não o convidamos depois de já termos as obras definidas e sabermos como a exposição se pareceria. Nós o chamamos para pensar conosco. Isso muda tudo. Começamos a pensar a exposição quando convidamos os artistas e não quando já temos as obras definidas. De alguma forma, o conceito do museu sem paredes influenciou esta Bienal? Esche: Bienal sem paredes, não museu. Porque a Bienal de Veneza anda muito museológica, tentando copiar os museus. Não será uma Bienal completamente vazia, mas espero que seja mais aberta do que, digamos, a última, em termos de estrutura. E queremos a impressão de que não sejam cubos brancos.


Como as manifestações de rua no Brasil influenciaram a curadoria? Eilat: Não só as manifestações no Brasil, mas também as que estão acontecendo em Istambul e em muitos outros lugares. Não estamos falando de um só fenômeno, e também não estamos prontos para comentá-los, mas de qualquer forma considero que influenciaram muito. Algo muito importante está acontecendo. As pessoas estão dizendo “não”. Pedem mudanças, às vezes sem dizer mudanças para quê, exatamente, o que é muito interessante. Esche: As manifestações querem dizer que não estamos satisfeitos com o presente, não estamos falando sobre o futuro ou sobre o passado, mas sobre o presente. Então essa insatisfação é que nos influenciou. Vocês promoveram várias reuniões com pessoas do sistema de arte brasileiro. Como essas reuniões se refletem na exposição, se é que se refletirão? Esche: Essas reuniões nos ajudaram a criar compreensões sobre o Brasil. São o DNA da Bienal, enformam sua estrutura. Seria totalmente diferente se não houvessem ocorrido. Não teríamos informação. E como você definiria a cena artística brasileira, tomando como ponto de partida os dois conceitos que você apresentou no texto que escreveu para a seLecT nº 14. Nesse texto você dizia que há uma arte mainstream, material e comprometida com a inovação, e uma arte interrogativa, comprometida com o social. Esche: Mainstream. Mas isso não é uma exclusividade brasileira. Em todos os lugares isso acontece. Porém, aqui o mercado é muito forte, dominante. Especialmente porque as instituições não o são. As galerias assumem papéis que são de instituições, promovem residências... Não há nada errado nisso, mas significa que os artistas são mais influenciados pelo mercado. O mercado modela o seu trabalho e suas oportunidades. Não estou fazendo de forma alguma um juízo de valor, mas em outros lugares, como na Europa Ocidental, onde

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as instituições são fortes, a arte que se produz é diferente. Eilat: Isso ocorre também na Turquia, onde se percebe uma força muito grande das galerias, concentradas em Istambul e Ankara. Em cidades menores, o público, não necessariamente o Estado, tende a ter presença mais visível, atua como uma força de compensação à falta de outra estrutura mais comercial e cria uma espécie de mundo paralelo da arte. E isso pudemos ver aqui, em Belém, Porto Alegre... São lugares muito diferentes, mas suas atividades, os artistas que encontramos lá têm atitudes muito diferentes dos que encontramos no Rio e em São Paulo. Eles têm de se inventar, pois não é tão óbvio que tenham onde expor. Em lugares assim, você precisa ser mais criativo, no sentido de que precisa criar as condições do próprio trabalho. Vocês estão trabalhando com muitos artistas de fora do eixo Rio-SP? Esche: Sim, mais de fora do que de dentro desse eixo. Isso permitiu percebermos diferentes formas de lidar com a história e as narrativas nacionais. A 31ª será uma Bienal política? Esche: Não, absolutamente não. Política é o que acontece em Brasília. É uma coisa muito chata. É uma Bienal social, sobre a sociedade, não sobre poder e Estado, sobre Lula ou Dilma. A Bienal pretende mostrar o que há de melhor na arte contemporânea? Esche e Eilat: O melhor? É o que alguns curadores dizem há anos: que a função da Bienal é mostrar o melhor da arte contemporânea. Esche: Entendo a questão, mas nunca pensei que mostraria o melhor. Interessa-nos aquilo que está no título: como falar de coisas que não existem. Levamos isso muito a sério. Queremos fazer uma Bienal que discuta coisas que não existem, que podem vir a existir. E, definitivamente, “o melhor” não é o critério que usamos... Não dizemos: isso é o melhor? Dizemos: isso é apropriado para as coisas que estamos querendo fazer? Isso é relevante? Isso é interessante? Eilat: O melhor será conseguir captar a imaginação política por meio do projeto. Esche: O que nos interessa é a imaginação de um determinado momento político. Não é um envolvimento engajado na política, é uma relação. E essa relação é via imaginação.


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Coleção

Imagens da repressão pa u l a a l z u g a r ay

No alto da página, atos públicos do Movimento pela Anistia e a violência crescente nas ruas do Rio e de São Paulo, testemunhados por Juca Martins. Acima, o fotógrafo registra estratégia de guerra assumida em repressão à greve dos bancários, na capital paulista, em 1979 SELECT.ART.BR

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FOTOS: JuCA MARTInS/COLEçãO SILvIO FROTA


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Juca Martins, Evandro Teixeira e Orlando Brito, três grandes fotojornalistas ativos desde os anos de chumbo, integram a coleção de fotografias da ditadura, de Silvio Frota

No alto da página, a prisão dos estudantes que participavam do Congresso da UNE em Ibiúna (SP), em 1968, e a investida de soldados a cavalo contra populares, na Igreja da Candelária (RJ), momentos documentados por Evandro Teixeira. Acima, a repressão aos movimentos de rua no Brasil em imagem de Juca Martins FotoS: AcimA, evAndro teixeirA/coleção Silvio FrotA. AbAixo: jucA mArtinS/coleção Silvio FrotA


Quarenta e cinco anos separam a passeata do 100 mil das Jornadas de Junho. entre o mais abrangente protesto contra a ditadura militar – que reuniu artistas, intelectuais, estudantes, clero e operários, em junho de 1968, no centro do rio de Janeiro – e as mobilizações populares – iniciadas em junho de 2013 com o movimento passe livre, em são paulo, e alastradas para várias cidades brasileiras – há fortes associações. ambos foram marcadamente pacíficos e tiveram participação massiva de setores diversos da população. ambos também renderam imagens que rapidamente se tornaram ícones geracionais e comportamentais. “É impressionante a similaridade entre as imagens antigas e atuais. a fotografia tem esse compromisso, serve como aviso e lembrança de que não estamos livres de ter expurgada a liberdade conquistada com tanto sacrifício”, afirma o empresário cearense silvio Frota, dono de uma coleção de fotografias que hoje soma mais de 2 mil itens. iniciada há cinco anos, complementando uma coleção de pintura formada há 30 anos, a coleção de fotografia rapidamente ganhou protagonismo no conjunto geral. dentro dela, o fotojornalismo tem lugar estratégico. “o fotojornalismo tem uma importância fundamental para mim, pois tenho-o como base do que quero para o futuro da coleção: contar uma historia”, diz o colecionador, que abrirá em Fortaleza um espaço para a apresentação pública de sua coleção. algumas pérolas da coleção são apresentadas neste dossiê. elas são de autoria de três dos mais importantes fotógrafos do jornalismo brasileiro, responsáveis por corajosa cobertura da ditadura. evandro teixeira (fotógrafo do Jornal do Brasil por 47 anos, entre 1963 e 2010); Juca martins (fotógrafo independente, prêmio esso de fotografia, colaborador da Istoé, entre outros veículos), e orlando brito (célebre pelos retratos da solidão do poder) integram o núcleo de “imagens da ditadura”, da coleção de silvio Frota.

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Nas imagens à esquerda, jornalistas, intelectuais e artistas, como Antonio Calado, Paulo Autran, Djanira, Gil, Chico, Caetano, Edu Lobo, Norma Benguel, Odete Lara e Clarice Lispector, foram flagrados pelas lentes de Evandro Teixeira na Passeata dos 100 mil, em 1968 SELECT.ART.BR

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“A fotografia lembra que não estamos livres de ter nossas liberdades expurgadas”, diz Silvio Frota

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A solidão do poder foi muito bem representada por Orlando Brito. Abaixo, o general presidente Ernesto Geisel, em 1972. Acima, o “badernaço”, manifestação contra o pacote econômico de 1986, em Brasília

FotoS: orlando brito/Coleção Silvio Frota. na página ao lado, evandro teixeira/Coleção Silvio Frota


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