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WISRAH VILLEFORT

ULISES MEJIAS

VOL. 9 / N. 48 - SET/OUT/NOV 2020

MONALISA GHARAVI TARCÍZIO SILVA

ALGORITMO

CHRISTIANE PAUL




Na plataforma digital, você tem acesso a catálogos, publicações, brochuras e materiais educativos produzidos no contexto das mostras e exposições realizadas nas unidades do Sesc SP.

Disponível em sesc.digital



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42

48

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COLUNA MÓVEL

ESTUDO DE CASO

REPORTAGEM

ESTUDO DE CASO

TARCÍZIO SILVA

ACERVOS DE NET ART

VITÓRIA CRIBB

Racismo algorítmico, a

MONALISA GHARAVI

intensificação da opacidade

Em Bio, trabalho no

Plataformas e artistas

intimidade aos algoritmos, inda-

e a reprodução das

Twitter, a artista iraniana

buscam alternativas para

gando como eles nos rastreiam

desigualdades e estruturas

mantém-se invisível ao

preservar obras que lidam com

e compreendem os nossos

de poder contemporâneas

rastreamento de dados

a obsolescência tecnológica

padrões de comportamento

A artista se endereça com

28 ESTUDO DE CASO

DESCOLONIZADOR DE ALGORITMOS Pro j etos a r t í s t i cos d e Ad a m H a r ve y m os t ra m o p o d e r d os d a d os p a ra o co n t ro l e so c i a l e p a ra a d e fe s a d os d i re i tos h u m a n os

Da série Casa-Movente (2009), de Helene Sacco

VFRAME (2018) de Adam Harvey

62

74

78

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ENSAIO

ENTREVISTA

RESIDÊNCIA

PROJETO VERNISSAGE

LITERATURA EXPANDIDA

ULISES MEJIAS

OUTROS ESPAÇOS

COMO HABITAR O PRESENTE

Em vez de se ver ameaçada

Autor afirma que o colonialismo

Modelos híbridos online e

Artistas desafiam noções de

pela profusão midiática, a

de dados é uma ordem emergente

presenciais, como a Veiculo SUR,

tempo e espaço em mostra de

iniciativa literária ganha novos

para apropriação da vida

inauguram novas formas de

vídeos no site e na vitrine da

contornos e ambientes

humana, com fins lucrativos

deslocamento e experiências

Galeria Simone Cadinelli

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CRÍTICA

CRÍTICA

MÁQUINAS TREINAM HUMANOS Curadoria de Trevor Paglen e Kate Crawford revela como sistemas de Inteligência Artificial categorizam o mundo e reproduzem assimetrias

98 EM CONSTRUÇÃO

GALERISTAS RACIALIZADOS House of Ayedoun (HOA) disputa espaço e visibilidade no mercado de arte

36 ESTUDO DE CASO

MERCADO LIVRE? Perfil de Wisrah Villefort no Instagram replica imagens de sites de compras, ironizando o sistema de rastreamento de dados digitais

SEÇÕES

8 14 22 88

Editorial Da Hora Acervos Itaú Cultural Crítica

FOTOS: ADAM HARVEY/ REPRODUÇÃO/ PAULA ALZUGARAY/ WISRAH VILLEFORT/ DIVULGAÇÃO


E D I TO R I A L

8

DIVISOR DE ÁGUAS NO MAPA DO FOGO Desde março, quando foi decretada a

tradicionalmente contido em 100

pandemia da Covid-19, até 1º de setembro,

páginas impressas. Dela fazem parte os

fechamento da edição #48 da seLecT,

textos de Opinião que publicamos no site

tivemos todos, cada qual imerso em

da seLecT desde o início da pandemia:

sua própria tela ou casulo, um semestre

entre eles, Margem de Negociação, de

que nos desafiou à reflexão. Superado o

Pollyana Quintela; Parem a Competição

estágio do assombro, pudemos, uns mais

Já, de Daniel Jablonskli e Flora Leite;

e outros menos, entender que o mundo já

Museologia pós-pandemia, de András

não é mais o mesmo.

Szántó; Inércia Produtivista, de Patricia

Tanto uns quanto outros se deparam

Mourão; A Crise e a Desigualdade Racial

com o choque do real. No mapa do fogo

nas Artes: Um Diálogo sobre Cotas, de

ardem os incêndios do desmatamento

Luciara Ribeiro e Domingos Oliveira;

consentido, cresce a pobreza e a

Demissões em Massa e Mudanças de

disparidade social, aumenta a violência

Base, de Leandro Muniz, e também uma

policial e expande-se significativamente

entrevista de Nina Rahe com a curadora

o espectro da violência social algorítmica.

do Whitney, Christiane Paul, cuja

Ela se projeta aprofundando o racismo

íntegra e o original em inglês podem ser

e consolidando a negligência do Estado

acessados no site da seLecT.

com os mais vulneráveis e com a cultura.

Buscando formas de resistência a essa

Esta edição reflete a mudança que

realidade emergente, que entre nós inclui

atravessamos e se propõe a tentar

também o retrocesso de conquistas

riscar um divisor de águas nesse

democráticas, recorremos às pedagogias

mapa do fogo. Entre as profundas

insurgentes dos artistas e curadores,

transformações que testemunhamos,

voltadas a educar para as novas formas

firma-se uma nova modalidade de

de controle distribuídas nos apps e

colonialismo (o dos dados), conforme

nas redes sociais. Assim, Maryam

explica o professor Ulises Mejias em

Monalisa Gharavi e seu corpo invisível ao

entrevista à seLecT. Nesse contexto

rastreamento de dados; Vitória Cribb e a

de “datacolonialismo”, o corpo é

reinvenção dos espaços da arte digital; e

dominado pelo escaneamento de sua

o discurso e a prática crítica de Tarcízio

fisiologia e deslocamento no espaço e

Silva, Trevor Paglen, Kate Crawford e

“transformado em senha”, diz Giselle

Adam Harvey traçam rotas para refazer

Beiguelman, editora convidada desta

esse mapa do fogo, apontando meios

edição em Live disponível em nosso

sobre “como descolonizar algoritmos”.

canal no YouTube. A revista também mudou e esta edição, que dedicamos a decifrar a centralidade

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do algoritmo na cultura contemporânea,

Paula Alzugaray

compreende mais do que estaria

Diretora de Redação



EXPEDIENTE

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EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY

DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN EDITORA CONVIDADA: GISELLE BEIGUELMAN EDIÇÃO E REPORTAGEM: NINA RAHE E LEANDRO MUNIZ DESIGNER: KAIKE SIMÕES

COLABORADORES

André Fischer, Daniel Hora, Francisco Correia, Marcela Vieira, Nathalia Lavigne, Peter Pál Pelbart, Tarcízio Silva

PROJETO GRÁFICO

Ricardo van Steen e Cassio Leitão

SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO

CONTATO

PUBLICIDADE

CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

WWW.SELECT.ART.BR

Cristina Dias Hassan Ayoub

faleconosco@select.art.br

ACROBÁTICA EDITORA LTDA. Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320

Pelo email assinaturas.select@gmail.com ou (11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES)

SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320 IMPRESSÃO: Oceano Indústria Gráfica Ltda., Rodovia Anhanguera, Km 33, Rua Osasco, nº 644, Parque Empresarial, Cajamar - SP, CEP: 07750-000

PAT R O C Í N I O :

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como habitar o

PRESENTE ?

Ato 2 – Estamos aqui

24/08 a 25/09/2020 # NAVITRINE E SITE

Ana Clara Tito - Batman Zavareze Gabriela Noujaim - Ivar Rocha Jonas Arrabal - Leandra Espírito Santo Martha Niklaus - Nathan Braga Panmela Castro - Roberta Carvalho Simone Cupello - Talitha Rossi Ursula Tautz - Virgínia Di Lauro - VJ Gabiru

www.simonecadinelli.com | Rua Aníbal de Mendonça, 171 - Ipanema | 21 3496-6821


Agenda do fim do mundo Depois seis meses de uma quarentena não plenamente realizada no Brasil e mais de 120 mil mortos pelo coronavírus, esta seleção inclui novas janelas da produção cultural on-line e também projetos presenciais, que aos poucos voltam a acontecer.

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ANIMAL CREPUSCULAR animalcrepuscular.online O artista Thiago Martins de Melo e o curador Germano Dushá apresentam uma exposição virtual (abaixo, print do site) que amplia procedimentos da obra do artista maranhense para o mundo digital. Com programação do designer Raul Luna, o site divide a obra de Melo em três capítulos, inclui trabalhos inéditos para a internet e colaborações de outros artistas e ativistas, como Kum’tum Akroá Gamela, coletivo Mordo (Aline Baiana, Camila Caux, Eric Macedo) e Maria Noujaim.

SELECT.ART.BR

MAR/ABR/MAI 2020

FOTO: PABLO BERNARDO


E N T R E V I S TA

1 CURADORX, 1 HORA youtube.com/c/1curadorx1hora O curador Raphael Fonseca lançou um canal no YouTube, no qual entrevista curadores de diferentes gerações para entender suas metodologias e práticas. Os vídeos vão ao ar às quartas-feiras e domingos e o projeto – que foge do formato live e veicula conversas gravadas – já contou com a participação de Solange Farkas (à dir.) Amanda Carneiro, Tiago Sant’Ana, Cristiana Tejo e Marcus Lontra.

F E S T I VA L

19º FESTIVAL ARTE SERRINHA arteserrinha.com.br O evento da Fazenda Arte Serrinha, em Bragança Paulista, conta este ano com uma edição prolongada, de 20/7 a 29/11, transmitida via YouTube. As atividades versam sobre as possíveis interações entre arte e ciência e incluem shows e debates com Denise Mattar, Fábio Miguel, Ricardo Martinez-Garcia e Fabio Delduque, idealizador do projeto, entre outros. Entre os destaques, a instalação Tempo Hábil, de Ana Paula Oliveira para a Casa Parque, na qual seis dormentes de madeira são presos por cintas para tensionar uma carga de caminhão de caminhão.

FOTOS: DIVULGAÇÃOD


N O VA Y O R K

CINDY SHERMAN De 26/9 a 3/1/2021, Metro Pictures, 519 West 24th Street | metropictures.com Depois da exploração de estereótipos femininos do cinema clássico americano, das figuras da história da arte e de imagens de abjeção, Cindy Sherman retoma, em sua nova individual na Metro Pictures, uma série 16

de fotografias nas quais explora a androginia, questionando as construções de identidade. Os fundos das imagens são compostos de fotografias capturadas em viagens à Bavária, Xangai e Reino Unido, que a artista manipula digitalmente criando efeitos de distorção de forte apelo pictórico. Os personagens, vestidos em trajes masculinos, olham diretamente para o espectador, desafiando-o, desconstruindo e problematizando a própria ação de ver e ser visto.

FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA/ GALERIA METRO PICTURES

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ANÁLISE

#NAVARANDA youtube.com/c/ CasadeCulturadoParque Toda terça-feira, o #NaVaranda, projeto digital da Casa da Cultura do Parque, publica um vídeo, inédito, em que artistas e pesquisadores (à esq. a artista

Maria Noujaim) apresentam análises de obras, artistas e imagens, propondo a compreensão de sua lógica interna e de sua dimensão social. No primeiro episódio, publicado no YouTube em 23/6, o crítico Tiago Mesquita discute a obra do escultor Amílcar de Castro. O projeto inclui ainda a artista e professora Renata Felinto discutindo a produção artística fora do eixo Sudeste-Bahia, e leituras de Lenora de Barros das colunas que produziu para o Jornal da Tarde na década de 1990.

LIVRO

EXPERIMENTAR O EXPERIMENTAL: ONDE A PUREZA É UM MI(S)TO, FUROR DA MARGEM editoracircuito.com.br Em desdobramento de um curso de pós-graduação ministrado na UFRJ, os pesquisadores Ivair Reinaldim e Michelle Sommer lançam livro (à esq.) sobre a crítica de arte no Brasil. Além da análise dos autores, há registros de aulas e a inclusão de textos históricos que buscam localizar a ideia do experimental na arte brasileira. A publicação pode ser baixada gratuitamente no site editoracircuito.com.br

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FOTOS: DIVULGAÇÃO


M A P EA M E N TO

PROJETO AFRO projetoafro.com O resultado da pesquisa de campo que o jornalista e pesquisador Deri Andrade vem realizando junto a artistas brasileiros afrodescendentes está disponível na plataforma Projeto Afro, que tem como objetivo identificar e divulgar essa produção em suas múltiplas atuações e linguagens. O projeto já recebeu 157 portfólios e mapeou 142 artistas de diversas regiões do Brasil. Acima, instalação de Juliana dos Santos, mapeada pelo projeto.

MÚSICA

HIGH FIDELITY open.spotify.com A artista Vivian Caccuri apresenta novo álbum, realizado a partir de um convite do Museu de Arte Contemporânea de Detroit. O projeto é parte de uma instalação sonora apresentada na exposição Sonic Rebellion: Music as

Resistance e foi produzido com fitas encontradas em uma emissora de rádio abandonada na cidade. A partir do conteúdo – programas infantis, discussões políticas, campanhas de engajamento comunitário etc. – Caccuri fez uma mistura experimental, inserindo também composições musicais próprias

FOTOS: DIVULGAÇÃO/ CORTESIA DA ARTISTA


BASEL

CENTROPY Individual de Deana Lawson, até 11/10, Kunsthalle Basel | bienal.org.br Como parte das ações expandidas da 34ª Bienal de São Paulo, a fotógrafa norteamericana Deana Lawson apresenta uma exposição no espaço físico da Kunsthalle Basel, com obras que discutem diásporas africanas em vários lugares do mundo, incluindo uma série inédita produzida em Salvador e comissionada pela Fundação Bienal (à esq, detalhe de

Chief, 2019). Lawson explora questões como fisicalidade, identidade, gênero e família, questionando os estereótipos e as potencialidades da ideia de negritude.

PIVÔ SATÉLITE pivo.org.br/satelite O Na nova plataforma do Pivô, em funcionamento desde julho, três curadores convidados indicam quatro artistas para ocupar, individualmente, uma sala de projetos durante um mês. A primeira convidada para ocupar o espaço entre junho e dezembro é Diane Lima, com a exposição Os Dias Antes da Quebra, que inclui a participação de Rebeca Carapiá (à esq.), biarritzzz, Diego Araúja e Raylander Mártis dos Anjos. Os artistas problematizam questões de linguagem, gênero, raça e as expectativas sobre seus corpos, como o projeto Eu Não Sou Afrofuturista, de biarritzzz, que mistura emojis, vídeos e música para expressar sua indignação com certas categorizações.

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FOTOS: DEANA LAWSON/ CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO/ JÉSSICA SANTOS


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PROGRAMA

RÁDIO ÂNSIA casadopovo.org.br/radio-ansia A plataforma de encontros sobre ecologias kuir foi ao ar durante junho no site da Casa do Povo. Com apresentação de Jonas Van, da Universidad Descoconida (UU), a Rádio Ânsia é um espaço para escuta e discussão de saberes dissidentes, propondo outras formas de existências integradas à terra. O projeto é parte da programação online da Casa do Povo e um desdobramento da Cozinha Aberta, que em 2019 distribuiu refeições preparadas na cozinha da instituição a partir da coleta da xepa da feira do Bom Retiro.

S Ã O PA U L O

PROGRAMA DE OCUPAÇÕES DA OMA GALERIA open.spotify.com A galeria de arte contemporânea, situada em São Bernardo do Campo, ocupa um espaço de uma casa típica das pequenas e médias cidades do País: um quintal circunda a casa, possibilitando que as exposições aconteçam não apenas no interior, em espaços transformados em cubo branco, mas também nas áreas limítrofes entre o privado e o público. A partir desta percepção, a OMA Galeria lançou a terceira edição de seu edital para jovens curadores, este ano destinado a ocupar a área externa da galeria. Foram selecionadas as curadoras Camila Marchiori, Núria Vieira, Erica Burini e Marilia Scarabello que realizam seus projetos ao longo do segundo semestre de 2020, criando um trânsito entre a rua e o espaço da arte.

FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA/ CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO/ JÉSSICA SANTOS/ JONAS VAN/ DIVULGAÇÃO


PROJETOS

A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L

ARTE E VIDA DIGITAL

ENTRE O SOLO ARGILOSO E OS ALGORITMOS

PROGRAMAS DE COMPUTADOR E IMPREVISIBILIDADE

O texto de Duane Ribeiro,

texto de Marcos Cuzziol aborda como programas e algoritmos, ainda que

analista de comunicação 22

Publicado em 2015, na edição 19 da revista Observatório Itaú Cultural, o configurados por pessoas, podem ser imprevisíveis. O pesquisador analisa o

Debates, textos e publicações promovidos pelo instituto apontam como

do Itaú Cultural, parte do

a experiência digital e os dados colhidos por tecnologias da informação

Urbanas (2018) e das

pelo cientista John Holland, que podem se desenvolver evolutivamente para

ideias do filósofo Bruno

além da operação “criacionista” do programador. Por meio de um mecanismo

Latour para discutir como

“darwiniano” de derivação a partir de suas possibilidades internas, os

as tecnologias da informa-

programas podem gerar novos programas. Eles analisam, a partir de milhares

mapeiam e moldam a subjetividade e a vida pública

ciclo de debates Brechas

ção estão transforman-

VERBETES

do a vida. Para Latour, o conhecimento dá-se pela Imagem digital de Anna Carolina Bueno

desenvolvimento dos algoritmos genéticos, criados entre os anos 1960 e 1970

de combinações, aquelas que melhor funcionam e ampliam as possibilidades de resolução de problemas que não estavam mapeados pelo humano

interação de diversos níveis

por trás das máquinas. Além desses encontros inesperados, programas

e usos de informação e a

podem ser instruídos a descobrir essas alternativas de modo evolutivo.

cidade é o fruto da relação

Algoritmos genéticos podem ser treinados para que os inputs e outputs

entre instituições, matérias

desenvolvam habilidades, como identificação de padrões de voz, formas e

e inscrições. Ao atualizar essa premissa, levando em consideração a experiência

escrita, e desempenhem resultados a partir disso, como as tecnologias de reconhecimento facial que são usadas na vigilância das cidades.

mediada pelo mundo virtual, as relações com a cidade tornam-se mais complexas, na medida em que o mapeamento de dados – possível pelos aplicativos de smartphones e tablets – permite compreender as relações de espaço e outras variáveis no tempo, como deslocamentos, acidentes de percurso, eventos sociais ou interesses pessoais. As

IMAGEM DIGITAL

LITERATURA DIGITAL

observações de Ribeiro

É o termo mais correto para designar o que

É a exploração das possibilidades formais surgidas com o

sobre as proposições de La-

se costuma chamar no Brasil de fotografia

desenvolvimento de tecnologias visuais e sonoras, como o vídeo, o

tour apontam para os usos

digital – aquela diretamente produzida

computador e a edição eletrônica de textos. Essas tecnologias têm

ambíguos das tecnologias

por um processo digital –, para distingui-

disponibilizado novos recursos expressivos, que reformulam não só a

da informação, para fins de

la da fotografia convencional. Como o

produção dos textos literários como também a sua leitura. A principal

controle e manipulação.

processo é muito recente, não existe

inovação que marca a literatura digital é a migração do texto da página

ainda um consenso universal em relação à

impressa para a tela, trazendo para o gênero literário as possibilidades

terminologia. Os americanos, por exemplo,

de animação comumente relacionadas com o cinema e o vídeo. (...)

denominam esse sistema de digital imaging,

Essas novas coordenadas da produção literária desafiam os escritores a

enquanto os franceses preferem denominá-

lidar com uma ambiguidade essencial da palavra escrita, que é a relação

lo de système numérique, em referência ao

entre a sua função icônica (isto é, como imagem antes de tudo) e a sua

sistema binário de codificação que constitui

função simbólica, condicionada pelos significados verbais. As primeiras

a base da imagem digital.

experiências de literatura digital têm suas raízes na poesia concreta,

+

Links em select.art.br/acervos

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Programas de computador

A CIDADE REFLETIDA NAS TELAS Como parte do Brechas Urbanas (2018), o debate entre o artista Lucas Bambozzi e o cientista social Sergio Amadeu da Silveira discute de que modo a tecnologia molda os espaços públicos e subjetivos da cidade. Ao apresentar projetos e curadorias, Bambozzi fala de seu interesse pelo campo magnético gerado pela profusão de equipamentos de comunicação e suas ondas eletromagnéticas que escapam ao nosso aparelho sensorial. Já Silveira discute o impacto que aplicativos de smartphones tiveram no ambiente urbano, transformando as relações de trabalho, modificando interesses imobiliários e transportes. O Uber, que surgiu como otimização de um comércio local, ampliou-se de tal modo que a expressão uberização ganhou o significado de

que já esboçava uma poesia-em-movimento, mas que ainda ficava

precarização do trabalho. Para o cientista social, os algoritmos preditivos tomam cada vez mais decisões pela população, que

presa à página impressa.

perde ingerência sobre o espaço urbano. Ele termina com a provocação “temos como evitar que empresas como a Cambridge Analytica definam o futuro de um país inteiro?”

FOTOS: ANNA CAROLINA BUENO / ANDRÉ SEITI/ CORTESIA ITAÚ CULTURAL

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CO LU N A M Ó V E L / A N D R É F I S C H E R

MATEMÁTICA MORAL X IDENTIDADE DE GÊNERO: O ALGORITMO NÃO VENCERÁ

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Para identificar se é homem ou mulher cisgênero a precisão seria de 98%. Porém, não conseguem reconhecer pessoas trans em 30% dos casos. Isso, se forem brancas, já que não foram programados para reconhecer pessoas com pele negra. Sequer são capazes de avaliar as que se autodenominam não binárias ou de gênero fluido, o que as tornaria literalmente invisíveis para mediando processos em todas as esferas da nossa existênorganizações que começam a usar esses aplicativos, como a pocia. A recente aceleração da migração para o ambiente digilícia e a imigração em aeroportos. tal explicitou a necessidade de deOutro exemplo explícito é a maneira cisões estratégicas, éticas e morais como mecanismos de busca relacionam sobre identidades de gênero e sopalavras ligadas a identidades de gênero bre o próprio modelo de sociedade. e orientações sexuais a padrões morais No cerne dessa revolução digital retrógrados. Até meados de 2019, ao se está a programação e, evidentedigitar “lésbica” no Google, eram invamente, a matemática. Os algoritriavelmente listados sites pornô entre mos, a base da programação, são os primeiros resultados. Uma provável a aplicação prática do pensamento causa para essa tendência preconceitumatemático ao processamento de osa pode ser o fato de que apenas 10% informações. Por isso, a ciência da das pessoas que trabalham com Intelicomputação pode ser considerada gência Artificial na empresa sejam muuma filosofia contemporânea que lheres. Foram necessários protestos inconstrói (e neste caso também maflamados de grupos de militância LGBT terializa) novas possibilidades de para que a empresa alterasse seus códiser e estar. Assim como os filósoFacial Weaponization Suite (2012), gos e as consequentes entregas, como já fos, o que os programadores fazem de Zach Blas: máscara dribla sistemas de havia acontecido anteriormente com os é criar interpretações da realidade. reconhecimento facial de homens gays termos “homossexual” e “transexual”. Algoritmos “pensam” como quem Empresas de tecnologia, governos e os criou, geralmente são fruto de toda a sociedade precisam monitorar concepções patriarcais, machistas os impactos de vieses morais dos algoritmos através do estae binárias sobre gênero e orientação sexual. Suas visões de belecimento de bases éticas. Algo que o papa Francisco já chamundo heteronormativas, que entendem como “padrão” e que muitas vezes são lgbtfóbicas, costumam excluir a exismou de “Algorética” e que está sendo discutido no Congresso dos Estados Unidos através do Algorithmic Accountability tência de transexuais e de pessoas que não se encaixam nas gavetas homem-mulher. Em seus códigos-fonte buscam Act (Lei de Responsabilidade Algorítmica). Sistemas de decisões automatizados são baseados em inteenquadrar características biológicas a padrões de comportamento e consumo determinados, reforçando antigos esteresses ideológicos e/ou comerciais e têm como objetivo final forjar opiniões, condicionar comportamentos e influenciar reótipos de gênero, como se vagina e pênis fossem fatores inexoráveis na elaboração de desejos ou pensamentos. desejos. Algoritmos podem facilmente mudar a opinião de uma pessoa, conseguem até manipular seu comportamento Esses algoritmos moralistas estão por toda parte. Dos assistentes virtuais domésticos aos novos aplicativos de reconhetemporariamente. No entanto, ainda que possam reforçar preconceitos, não são, nem serão, capazes de aprisionar desecimento facial, cada vez mais presentes, de metrôs a shoppings. Alguns destes chegaram ao mercado alardeando reconhecer se jos, apagar identidades de gênero ou alterar orientações sexuais. Pelo menos por enquanto. uma pessoa é gay ou lésbica com margens de acerto de 90%. A MATEMÁTICA É INTERPRETADA, HÁ MUITO TEMPO, COMO ABORDAGEM RACIONAL PARA DAR SENTIDO A TUDO AO NOSSO REDOR. MAS FOI A PARTIR DO FIM DO SÉCULO PASSADO QUE APOSTAMOS, COMO PROJETO DE CIVILIZAÇÃO, NO DESENVOLVIMENTO VERTIGINOSO DE SISTEMAS E APLICATIVOS

FOTOS: DAVID EVANS FRANTZ / CORTESIA ZACH BLAS STUDIO VOL. 9 / N. 48

SET/OUT/NOV 2020


PARTICIPE DO 3º SEMINÁRIO PROGRAMAÇÃO DIA 15/9, ÀS 16H,

via plataformas digitais da revista seLecT Luis Camnitzer , artista, curador e professor “The New Man” Dora Longo Bahia, artista e professora “Arte e educação: Relação ou contato A articulação de zonas de irresponsabilidade como princípio de formação artística”

DIA 16/9, ÀS 16H,

via Zoom, com inscrições pelo Sympla Apresentações dos artistas finalistas Anápuáka Muniz Tupinambá Hã hã hãe (Rio de Janeiro, RJ) Anne Magalhães (São Paulo, SP) Antonio Tarsis de Jesus Miranda (Salvador, BA) Gustavo Caboco (Curitiba, PR) Renata Aparecida Felinto dos Santos (Crato, CE)

DIA 17/9, ÀS 16H,

via Zoom, com inscrições pelo Sympla Apresentações dos formadores finalistas André Vitor Brandão da Silva (Petrolina, PE) Eduarda Gama Canto (Cachoeira, BA) Galeria REOCUPA (São Paulo, SP) Lara Ovídio de Medeiros Rodrigues (Baixada Fluminense, RJ) Tarcisio Almeida (Salvador, BA) Vicenta Perrotta Neto (São Paulo, SP)

DIA 22/9, ÀS 16H,

via plataformas digitais da revista seLecT Sepake Angiama, curadora e diretora do programa educativo da documenta 14 Premiação dos projetos nas categorias Artista, Formador, Camisa Educação e Arapuru

Co-Realização

Apoio

Parceria

Realização


C O L U N A M Ó V E L / TA R C Í Z I O S I LVA

RACISMO ALGORÍTMICO: ENTRE A (DES)INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

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E A EPISTEMOLOGIA DA IGNORÂNCIA NOS ÚLTIMOS 20 ANOS, A ABUNDÂNCIA DE DADOS GERADOS NA INTERNET E ATRAVÉS DA INFRAESTRUTURA DE SENSORES FÍSICOS, HUMANOS E SOCIAIS REFORÇOU A ABORDAGEM CONEXIONISTA-INDUTIVA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA). Com uma quantidade tão grande de dados sobre

te, plenamente comprometidas com a ignorância sobre a realidade social, racial e histórica. Ou, mais especificamente, com a epistemologia da ignorância branca, uma lente conceitual proposta pelo filósofo jamaicano Charles Wade Mills.

inputs (entradas) e outputs (saídas, resultados) de processos de interesse comercial e/ou político, abordagens de aprendizado profundo, onde o próprio programa é desenvolvido e otimizado continuamente para os fins do sistema, tornaram-se realidade, com diferentes graus de autonomia. Resumindo, trata-se de dar quantidades massivas de exemplos etiquetados e conectados de dados aos sistemas de IA referentes a um domínio de atuação, graças a um enorme histórico de informação gerada anteriormente, permitindo ao sistema encurtar as distâncias e os recursos necessários entre input e output. Os dados que alimentam os novos sistemas baseados em IA com a virada computacional são dos mais variados: histórico de milhares de contratações de uma grande corporação; locais e horários de crimes e perfis de criminosos abordados pela policía; gastos, procedimentos e taxas de recuperação em pacientes da saúde pública; buscas de perfis e posterior engajamento com vídeos em plataformas de mídias sociais; trajetos, rentabilidade e gorjetas de motoristas, e tudo o que você conseguir imaginar que possa estar registrado através de interfaces de aplicativos, sistemas de geolocalização, câmeras e sensores. Parece fantástico, não é? Bilhões ou trilhões de pequenas decisões realizadas por indivíduos, empresas e instituições públicas alimentam bases de dados gigantescas que podem ser perscrutadas como fonte de aprendizado por softwares cada vez mais eficientes, graças à Inteligência Artificial. Otimização, eficácia, lucratividade, gestão enxuta e inovação parecem não ter limites. Em prol do progresso, defende-se como autoevidente que o caminho neoliberal por mais tecnologia, “dataficação” e Inteligência Artificial seria o único e correto a ser seguido. Entretanto, é possível rejeitar a ode à Inteligência Artificial que se baseia em dados para replicar o status quo e servir à reprodução das relações sociais e políticas contemporâneas no Ociden-

ANCESTRAIS DAS TECNOLOGIAS ALGORÍTMICAS

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Mills aponta que, durante os últimos séculos, o Ocidente foi construído pelas realidades da dominação eurocêntrica dos artefatos de tortura e vigilância colonial e escravista, ancestrais das tecnologias carcerárias algorítmicas de hoje, até a dominação epistêmica distribuída e afiliada nos colonialismos internos. Neste Ocidente eurocentrado, a epistemologia da ignorância branca, conforme Mills aponta em The Racial Contract (Cornell University Press, 1997), parte do contrato racial que promove padrões de disfunções cognitivas localizadas e globais – mas funcionais psicológica e socialmente. Ironicamente, esse contrato racial, ou pacto narcísico da branquitude, elaboração conceitual da psicóloga Maria Aparecida da Silva Bento, produz o resultado de que a branquitude não é capaz de – ou não busca – entender o próprio mundo que moldou, em defesa da manutenção dos próprios privilégios, enquanto abdicam da carga psicológica que estaria em jogo ao enfrentar a realidade da desigualdade e desumanização dos outros decorrentes de tais vantagens. Por meio dessa lente conceitual, é mais palpável entender como tantas manifestações de racismo algorítmico podem surpreender os poderes hegemônicos públicos e empresariais. Nos anos recentes, testemunhamos casos de robôs que não conseguem ver rostos de pessoas negras, reconhecimento facial que gera falsos positivos para criminosos em rostos negros, algoritmos de alocação de recursos de saúde que punem pacientes negros, carros autônomos que atropelariam pedestres negros com mais frequência, melhores condições para hosts brancos em aplicativos de hospedagem, e muitos outros, em listas que não param de crescer. Nessa direção mantenho a “Linha do Tempo do Racismo Algorítmico” com atualizações contínuas em meu site (tarciziosilva.com.br).


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No trabalho Fifteen Pairs of Hands (2012), o artista Bruce Nauman funde em bronze uma série de variações compositivas feitas com a suas mãos

MUDANÇAS NOS DESENHOS DE PODER

Mas, se a profusão dos casos impressiona, é preciso lembrar: apenas uma pequena quantidade de sistemas algorítmicos está sendo analisada ou auditada, número pífio em comparação à aceleração de suas implementações descuidadas. E. Tendayi Achiume, relatora especial da ONU e professora de Direito da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), cita algumas dezenas de casos famosos em um relatório recente (Racial Discrimination and Emerging Digital Technologies: A Human Rights Analysis, 2020). Nele Achiume defende que dados, códigos e sistemas não devem estar protegidos do escrutínio público por argumentos falhos como “segredo de negócio”. Lucratividade em um mundo cada vez mais desigual não pode estar acima do bem público. Entre suas recomendações, ela enfatiza que mudanças genuínas nos desenhos de poder nos setores de tecnologias digitais emergentes

são algo absolutamente necessário – em contraposição aos esforços superficiais para incluir minorias, conhecidas como “tokenismo”. Essa ações se esgotam em iniciativas de diversidade que não mudam processos ou prerrogativas, apenas emulam representatividades sem poder. Não se trata de algoritmos racistas ou apenas “enviesados” nas bases de dados e códigos, mas sim de racismo algorítmico: a intensificação da opacidade e da ignorância para a reprodução das desigualdades e estruturas de poder contemporâneas. Subjacente à lógica do aprendizado de máquina, o poder hegemônico estabelece que as decisões e dinâmicas sociais, comerciais e de gestão pública nos últimos anos estavam corretas e devem ser replicadas e reforçadas, com mais eficácia e opacidade, por sistemas algorítmicos. Abdicar da epistemologia da ignorância – tanto sobre a tecnologia quanto sobre o racismo – é indispensável para um futuro justo.

FOTO: BOBISTRAVELING/ CREATIVE COMMONS


ESTUDO DE CASO

ADAM HARVEY DESCOLONIZADOR DE ALGORITMOS O artista aponta as ambivalências da Inteligência Artificial com projetos que mostram o poder dos dados para o controle social e para a defesa dos direitos humanos

GISELLE BEIGUELMAN

Think Privacy, campanha de conscientização sobre uso dos dados em curso, desde 2016. Em formato de pôsteres, foi exposta na loja do New Museum, Victoria and Albert Museum e Bienal de Seul

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Reprodução das imagens postadas na conta de Instagram @mercado_livre (entre 2019 e 2020), na qual o artista Wisrah Villefort replica imagens que circulam pelas plataformas de venda do sul global.

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA


ADAM HARVEY É UM ARTISTA-PESQUISADOR COM FOCO NAS ESTÉTICAS DA VIGILÂNCIA. COMBINA PROCEDIMENTOS DO CAMPO DA MODA E DA COMUNICAÇÃO COM AS CIÊNCIAS DA COMPUTAÇÃO. É a partir dessa composição

sui generis que opera no campo da arte, com obras que colocam em pauta a privacidade e os meandros opacos dos processos algorítmicos. Ficou internacionalmente conhecido com uma série de maquiagens e penteados criados no seu mestrado na New York University, desenvolvidos para enganar câmeras de Reconhecimento Facial, o CV Dazzle. O Look Book arrojado desse trabalho, desenvolvido entre 2010 e 2014, teve seis versões. Com ele enfrentou o desafio de criar uma camuflagem que funcionasse politicamente, desfuncionalizando os mecanismos da visão computacional, e como estilo, no campo da moda conceitual. Deu certo. Daí em diante, toda uma pedagogia voltada para educar o público para as novas formas de controle, distribuídas nos aplicativos e redes sociais mais comuns, foi se consolidando e usando os mais variados formatos. São pôsteres, como a série Think Privacy (2018), incialmente comissionada pelo New Museum de Nova York, e capas antirrastreamento para celulares, como o OFF Pocket (2013), que integra a coleção do britânico Victoria and Albert Museum, entre outros dispositivos. Formado em engenharia e fotojornalismo pela Universidade do Estado da Pensilvânia, Harvey é mestre pelo Programa de Telecomunicação Interativa da Universidade de Nova York

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(ITP-NYU). Baseado em Berlim, é membro do Grupo de Inteligência Artificial e Filosofia da Mídia da Universidade de Arte e Design de Karlsruhe (Alemanha). Seus projetos mais recentes, MegaPixels e VFRAME, são produto dessa formação para lá de transdisciplinar.

A SELFIE DE HOJE É O PERFIL BIOMÉTRICO DE AMANHÃ

No primeiro caso, ele volta ao tema do Reconhecimento Facial, abordado em CV Dazzle e em outras obras, porém colocando ênfase nos seus aspectos éticos e investigando o papel dos bancos de dados on-line na expansão da vigilância biométrica. Tecnologia baseada em aprendizado de máquina, um dos pilares da Inteligência Artificial (IA), o Reconhecimento Facial funciona a partir de duas operações: o rastreamento e a extração. O rastreamento é a tradução geométrica dos pontos nodais, como a distância entre os olhos, o comprimento do nariz e o tamanho do queixo. Esses pontos são medidos por algoritmos e o resultado dessas equações é a leitura facial. No processo de extração, as características individuais que particularizam um rosto e o diferenciam de outros são calculadas também por algoritmos. Os cálculos que individualizam as imagens são feitos por meio de comparações com outras imagens da pessoa, disponibilizadas nos datasets (conjunto de dados organizados), provenientes da incontável quantidade de imagens que despejamos on-line. Dito de outra forma, como alertava um dos


Modelos de bombas de fragmentação utilizados no treinamento de algoritmos de reconhecimento de imagens em vídeo usados no projeto VFRAME, em desenvolvimento desde 2018

FOTOS: ADAM HARVEY / REPRODUÇÃO


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MegaPixels (2017-2019), plataforma desenvolvida por Adam Harvey e Jules LaPlace. Investiga a ética, a origem e as implicações da privacidade de imagens armazenadas em bancos de dados públicos para usos em sistemas de reconhecimento facial

pôsteres mais conhecidos da série Think Privacy, “a selfie de hoje é o seu perfil biométrico de amanhã”. E é navegando contra essa filosofia que a plataforma MegaPixels se coloca. A partir de uma coleção de gigantescos datasets disponíveis na internet, como o MS-Celeb, da Microsoft, e o Brain Wash, de um café em São Francisco, entre outros, inclusive de universidades, Harvey, em parceria com Jules LaPlace, investiga a rota de origem e destino dessas imagens. Os resultados são, no mínimo, assustadores. Foram coletadas no projeto 24 milhões de fotos não consensuais (isto é, sem que o fotografado tenha ideia de que sua foto foi reutilizada) em 30 datasets de análise facial. Todas estão disponíveis na internet, in the wild, como se diz em jargão da área. Dessas imagens, mais de 15 milhões de retratos vêm de mecanismos de busca, outros quase 6 milhões do Flickr, cerca de 2,5 milhões do Internet Movie Database e quase 500 mil de

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câmeras de vigilância CCTV. Há, aproximadamente, 1 milhão de identidades arquivadas nesses 24 milhões de fotos. E essa é apenas uma amostra dos resultados parciais do MegaPixels. O projeto mostra também que apenas 25% das citações feitas a esses datasets em artigos acadêmicos são de instituições dos EUA. A vasta maioria é feita da China. Aparece aí uma situação mapeada pelos professores Nick Couldry (London School of Economics and Political Science) e Ulises Mejias (State University of New York), que defendem a tese da emergência de um neocolonialismo dos dados, um Cloud Empire, no qual a China e os Estados Unidos são protagonistas. Descolonizar os dados passa, segundo os autores, por mobilizar novas formas de pensar o mundo, incorporando pressupostos do pensar coletivo indígena e, entre outras ações, a elaboração de táticas de contra-apropriação dos mecanismos de dominação hegemônica (leia entrevista à pág 74).


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Acima, CV Dazzle (2010-2020), projeto de mestrado defendido na NYU que explora como a moda pode ser usada para camuflagem de tecnologias de reconhecimento facial. Da esq. para a dir.: CV Dazzle Look 1. 2010; CV Dazzle Look 2. 2010 (para DIS Magazine); CV Dazzle Look 3. 2010 (para DIS Magazine); CV Dazzle Look 4. 2010 (CV Dazzle Look 4. para DIS Magazine).

FOTOS: ADAM HARVEY / REPRODUÇÃO


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Adam Harvey cria um sistema de engenharia simbólica reversa que se apropria das tecnologias de rastreamento e controle para pautar a defesa dos direitos humanos

CONTRAMODELO À VIGILÂNCIA ALGORÍTMICA

É nessa última perspectiva que opera o mais ambicioso projeto de Harvey até o momento, VFRAME (2019), acrônimo para Visual Forensics and Metadata Extraction. Realizado com o Arquivo Sírio, uma organização dedicada a documentar crimes de guerra, tem como foco a identificação, em vídeos captados nas zonas de guerra, de bombas de fragmentação. Conhecidas como armas-contêineres, bombas de fragmentação são bombas que carregam outros artefatos explosivos. São uma das criações mais horrendas da Alemanha nazista e que continuam sendo usadas nas guerras do Oriente Médio, especialmente na Síria. O VFRAME é um instrumento para denunciar a presença dessas bombas, que são proibidas em 120 países. Antes que se pergunte, o Brasil não é signatário dos tratados internacionais que as proíbem. Produz e exporta esse tipo de armamento. Um dos maiores problemas por esse tipo de armamento é que as bombas podem permanecer intactas, en-

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terradas por muitos anos, atingindo a população civil. Nos últimos cinco anos, 77% das mortes por bombas de fragmentação ocorreram na Síria. Em 2017, das 289 mortes ocorridas, 187 foram registradas ali. O VFRAME usa modelagem 3D e fabricação digital, combinados a um software de processamento de imagem com ferramentas de visão computacional e Inteligência Artificial para detectá-las. Seus algoritmos são capazes de organizar, classificar e extrair metadados de 10 milhões de vídeos, feitos nas zonas de guerra e disponíveis on-line, em menos de 25 milissegundos, identificando, nesses vídeos, o uso das bombas de fragmentação. O software realiza um trabalho em escala massiva impossível de se fazer manualmente. Apropriando-se de datasets e processos de machine learning, o VFRAME enuncia, assim, um contramodelo à vigilância algorítmica. Ao apostar no uso da IA e do Big Data como poderosos recursos na defesa dos direitos humanos, define também um campo nas práticas de descolonização dos dados.


Protótipo do sistema de detecção de bombas de fragmentação em território sírio desenvolvido para a ONG Arquivo Sírio no projeto VFRAME, em curso desde 2018. 35

FOTOS: ADAM HARVEY / REPRODUÇÃO


ESTUDO DE CASO

WISRAH VILLEFORT MERCADO LIVRE E LIBERDADE ADMINISTRADA Perfil no Instagram replica imagens de sites de compras, refletindo irônica e criticamente sobre a dinâmica de rastreamento de dados no mundo digital

LEANDRO MUNIZ

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Nesta e nas págs. seguintes, reproduções das imagens postadas na conta de Instagram @ mercado_livre (entre 2019 e 2020), na qual o artista Wisrah Villefort replica imagens que circulam pelas plataformas de venda do Sul Global.

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA


DESDE 2017, O ARTISTA WISRAH VILLEFORT ALIMENTA O PERFIL @MERCADO_LIVRE NO INSTAGRAM, NO QUAL REÚNE PRINTS DE PRODUTOS ANUNCIADOS NA PLATAFORMA DE VENDAS HOMÔNIMA.

Ao replicar essas imagens de objetos de consumo, o @mercado_livre coloca em questão nossa experiência com o mundo digital. Parodiando a suposta dinâmica de liberdade de um site no qual se podem comprar coisas das mais triviais às mais excêntricas, evidencia como as sugestões de interação na internet são resultado de um profundo e capilarizado processo de mapeamento de dados que se utilizam dos algoritmos para o controle social. Na conta de quase 22 mil seguidores é possível acompanhar as mudanças de qualidade de imagem ao longo desses três anos – mais pixeladas e rebaixadas em 2017, completamente artificializadas e saturadas atualmente –, além de tendências, peculiaridades dos objetos e interesses do artista manifestados em sua seleção. É fácil perceber que os posts de peças de plástico que reproduzem partes do corpo humano ou materiais abjetos têm mais likes que aqueles que representam frutas e verduras. Também é evidente como dildos, fantasias e outros instrumentos fetichistas ganham mais atenção tanto nas curtidas quanto nos comentários, entre a polêmica, o humor e o conservadorismo.

Villefort traz à superfície como o soft power está no controle não apenas de grandes acontecimentos políticos e sociais, mas também na esfera mais enraizada e subjetiva da vida cotidiana

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Em um dos posts vemos o print screen da foto de um objeto de plástico em forma de pássaro que, na verdade, é um vibrador. O que está em jogo aqui é uma série de camadas de mediação que são, elas mesmas, o material do trabalho. Muitos desses itens têm um aspecto e uma paleta de cores infantilizadas, ao mesmo tempo que há uma forte carga sexual. Alguns têm finalidades esdrúxulas e surpreendem por sua inventividade formal. Villefort usa as diversas “representações de representações” que compõem a circulação de imagens na internet como matérias e linguagens do trabalho, produzindo um perfil no Instagram que discute criticamente o próprio meio. “Só uso imagens de plataformas de vendas do Sul Global, mas elas reproduzem a performatividade da branquitude”, diz Villefort à seLecT. Ao escolher tratar apenas das ferramentas da porção do globo oprimida histórica e economicamente, e constatar o quanto elas reencenam uma performatividade da branquitude, Villefort traz à superfície como o soft power está na administração e no controle não apenas de grandes acontecimentos políticos e sociais, mas também na esfera mais enraizada e subjetiva da vida cotidiana, como os gostos e os desejos. Vale pensar ainda que a branquitude de que o artista fala nos remete não apenas a uma supremacia das representações de corpos, mas também a hábitos e formas de sociabilidade que foram muito descritos na arte pop, como um antecedente histórico do processo que vemos em curso hoje. O consumo acelerado, as cores sintéticas e vibrantes e os materiais plásticos, entre outras características presentes no projeto @mercado_livre, já estavam anunciados naquelas obras e foram radicalizados agora, em um contexto em que a padronização de comportamentos se dá pela possibilidade de alcance nas redes e pela capacidade de mobilizar a interação de outros usuários.



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As imagens e sua circulação pelas redes sociais são componentes transformadores da subjetividade, das relações sociais e da política

O PESO DAS IMAGENS Muito da discussão sobre trabalhos de arte em plataformas digitais passa por um debate sobre que tipo de experiência fenomenológica esses projetos propiciam. Sabemos que boa parte da história da arte se fez em processos de expansão dos materiais e procedimentos artísticos, como ao incorporar objetos da vida cotidiana, em um movimento autorreflexivo a respeito dos limites e das potencialidades do campo artístico. Não seria diferente com o Instagram, a internet e as telas de smartphones que mediam e modelam a nossa vida atualmente. No trabalho de Villefort, percebe-se como a luminosidade das telas é uma característica fundamental. “O fóton é matéria e as imagens são objetos que não apenas representam, mas atuam ativamente na vida”, diz o artista. Coincidentemente, são esses fótons e sua quantidade mínima de matéria que unem quase todos no globo atualmente, para além dos limites físicos do espaço. As imagens digitais também têm características intrínsecas ao regime de controle de dados e rastreamento algorítmico que sustenta o atual estatuto da economia e da política, naquilo que o sociólogo Manuel Castells chamou de “capitalismo informacional”. No artigo Proxy Politics: Signal and Noise, a artista Hito Steyerl explica como as câmeras de smartphones capturam basicamente ruídos e como a imagem que vemos é gerada por algoritmos que escaneiam os nossos bancos de dados, em busca de padrões que possam formar as imagens compostas nas telas. A parti-

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cipação nas redes é uma forma de alimentação dessas ferramentas de rastreamento. Hoje, a produção e o reconhecimento das imagens, ou os resultados das ferramentas de busca e navegação, dão-se de modo relacional, pelo rastreamento de contextos e interesses. Considerando que essas ferramentas estão em conformidade com o pensamento científico e com as demandas corporativas das redes sociais, seus limites de compreensão trazem embarcados problemas sociais como o racismo algorítmico, o controle da distribuição de atenção e a posse de dados. Steyerl – assim como o projeto de Villefort – demonstra que essas estruturas configuram todo um modo de percepção, ação e interação entre as pessoas e são resultado de políticas e dinâmicas de poder. As tecnologias têm histórias e, num mundo mediado e regulado por imagens, discuti-las é um problema político. O @mercado_livre de Villefort identifica os limites de seus aparatos, tanto da plataforma de compras quanto do próprio Instagram. Reconhece também, com toda ambiguidade ideológica e complexidade de pensamento crítico, o fascínio que as formas e as cores desses produtos exercem na percepção, transitando entre a euforia de alguns dos comentários e a anestesia dos usuários que passam batidos por mais uma página no Instagram. As imagens e sua circulação pelas redes sociais são componentes transformadores da subjetividade, das relações sociais e da política. Sabemos que as eleições de Jair Bolsonaro e de Donald Trump foram baseadas nos disparos em massa de fake news e como seus (des)governos são ancorados nas performances de virilidade, xenofobia e racismos diversos. Os algoritmos e seus usos para fins de controle nos mostram o que queremos ver e ouvir e sugerem o que já imaginamos saber, em uma restrição da verificação de dados ou da abertura para o desconhecido. Esses problemas não são o pano de fundo, mas a própria matéria do trabalho de Villefort.


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ESTUDO DE CASO

MARYAM MONALISA GHARAVI: CANCELAMENTOS POSSÍVEIS Em Bio , trabalho que nasce como uma performance no Twitter e deu origem a um livro, a artista iraniana atualizou sua biografia durante um ano, como forma de se manter invisível ao rastreamento de dados e desaparecer na internet

N AT H A L I A L AV I G N E

Nas próximas páginas, trechos do livro Bio (2018), publicado pela editora Inventory Press. VOL. 9 / N. 48

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FOTOS: CORTESIA DA EDITORA


QUANTAS DEFINIÇÕES SOBRE SI MESMO PODEM-SE CRIAR AO LONGO DE 365 DIAS? COMO UM ANO PODE SER NARRADO DIARIAMENTE A PARTIR DE IDENTIDADES QUE SURGEM CONTAMINADAS POR FATOS BANAIS OU GRANDIOSOS DO COTIDIANO?

Bio (Inventory Press, 2018), trabalho da iraniana-americana Maryam Monalisa Gharavi, parece tratar de um tema já banalizado em tempos de redes sociais, onde perfis – verdadeiros ou não – são criados e apagados do dia para a noite e qualquer descrição sobre o mundo nunca se descola de um ponto de vista pessoal. Mas a combinação simbiótica entre as duas narrativas – falar de si enquanto se fala do mundo, e vice-versa – aqui é levada ao extremo. Durante um ano a artista e poeta usou a “bio” de seu perfil no Twitter como um espaço de escrita diária. Contrariando os princípios do acúmulo e disputa por visibilidade que regem qualquer rede social, ela deletava a cada dia a postagem anterior – e a performance provavelmente não foi vista por quase ninguém. Ao final, ela apagou também sua conta, desaparecendo sem deixar nenhum rastro on-line. A obra está entre muitas interseções de meios e gêneros artísticos. Se hoje existe como um livro publicado em 2018, ela tem origem em uma performance realizada no Twitter entre maio de 2014 e maio de 2015, acontecendo apenas nessa especificidade de tempo e espaço. Bio também levanta outras discussões além da tão falada criação de múltiplas identidades na internet e da cultura do indivíduo que parece moldar tudo ao redor – dos anúncios que chegam nas timelines das redes a opiniões políticas. Trata também de experiências artísticas pensadas

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como táticas de infiltração e formas de resistir a sistemas de vigilância. Essa foi uma das motivações da artista: ao descobrir que a “bio” era o único espaço onde os dados dos usuários não eram lidos algoritmicamente e armazenados pela plataforma, sua intenção era se infiltrar nesse meio burlando suas regras; mantendo-se presente enquanto buscava o desaparecimento onde isso é cada vez mais difícil. Assim como não há nenhum registro do trabalho em seu formato original na internet além de artigos e informações publicadas posteriormente, também não se encontra qualquer menção à performance no livro de 736 páginas, numeradas com a data de cada postagem em folhas duplas. Os textos – um híbrido entre poemas visuais e aforismos (“A batalha para compor a vida é travada diariamente entre [...]os méritos do trivial e mundano contra o heroico e importante”) – podem ser lidos de forma independente, mas vale seguir a sequência e acompanhar a evolução do processo do início. Lá estão as primeiras autodefinições possíveis em sua biografia, das mais genéricas (“Possuidor de um telencéfalo e polegares altamente opositores”) às mais particulares (“Única filha de uma única filha de uma única filha”). A seguir, surgem passagens que refletem sobre o experimento de se apresentar ao mundo de tantas maneiras – “Coloquei um eu na internet e acompanhei sua disseminação”; “Como vestir uma máscara (pôster do consultório médico/título alternativo para o livro). “Ou outras, mais à frente, que expressam um descontentamento com as redes e um desejo por alternativas – “Mídias antissociais ou uma sociedade não mediada são outras opções”, publicou no dia 7 de junho de 2014.



COLONIALISMO DE DADOS É curioso rever o trabalho de Monalisa Gharavi no contexto atual. Seis anos, afinal, fazem uma enorme diferença na história ainda recente das tecnologias pós-redes sociais e da discussão sobre a falta de transparência no uso de dados pessoais. Hoje, o termo Big Tech saiu dos rincões do Vale do Silício e do mundo digital, entrando de vez no vocabulário cotidiano. Embora o Twitter não esteja oficialmente na lista das cinco empresas que concentram as plataformas de maior uso de dados – Amazon, Facebook, Apple, Google e Microsoft –, o volume de informações acumuladas por essa rede não é nada desprezível. A extração de dados por plataformas digitais é comparada hoje a um novo tipo de colonialismo – como defendem Nick Couldry e Ulises A. Mejias em The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism (Stanford University Press, 2019). Para os autores, a principal mudança é que a experiência humana e as relações sociais tornaram-se os grandes alvos de extração lucrativa nos mais variados aspectos – e essa é a chave para entender como o capitalismo está evoluindo. Eles estendem a análise não só às empresas que promovem a “socialização grátis”, como Facebook e Twitter, mas a plataformas como Uber, Airbnb e Netflix, que cobram pelo serviço, mas ganham infinitamente mais com informações que coletam dos usuários sem informar bem como. Quando a performance Bio foi realizada, o Twitter ainda mantinha a ordem cronológica no feed de notícias, adotando a sistematização por algoritmos em 2016. A mudança, acompanhada pela adesão em massa de políticos à plataforma após a eleição de Donald Trump, ressuscitou essa rede social, que andava em baixa naquele momento. De certa forma, o trabalho da artista antecipa uma discussão que ganharia outra proporção em 2018, quando a revelação do escândalo da Cambridge Analytica – empresa que recolheu dados pessoais de mais de 50 milhões de usu-

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ários do Facebook nas eleições americanas – tornou mais comum um discurso crítico e menos otimista sobre o uso de redes sociais. Bio parte também de uma pesquisa de Monalisa Gharavi sobre artistas e poetas que já adotaram práticas de cancelamento de textos, como rasuras e outras interferências na leitura – entre eles Man Ray, em Untitled Poem (1924); Marcel Broodthaers, em Un Coup de Dés Jamais N’Abolira Le Hasard (1969); e Anna Maria Maiolino, em Poema Secreto (da série Mapas Mentais, 1971). Sua intenção era reutilizar esse método de criação e adaptá-lo para o mundo virtual e para uma rede social, um terreno onde o excesso dá as ordens e desaparecer tornou-se quase impossível. “Não é apenas porque esses atributos são o oposto da autopromoção, do engrandecimento e da reinserção macro e micro na economia da atenção, mas porque eles são a antítese do material ativo da internet em si – aparência e superfície”, escreveu em uma sequência de textos para a publicação The New Inquiry. O trabalho aponta ainda para outro tipo de cancelamento, diferente da cultura que vem sendo questionada por corrigir injustiças, eliminando o debate e as diferenças. De certa forma, tudo isso é também consequência direta da maneira como os algoritmos trabalham para moldar o nosso entorno à nossa imagem e semelhança. Embora Bio não tenha um propósito ativista, o método adotado por Monalisa Gharavi é um bom exemplo de como artistas podem assumir um papel político ao quebrar a lógica aleatória desses sistemas, interferindo nas regras e relações de poder estipuladas por essas grandes empresas. Se, na arquitetura das plataformas digitais, o desaparecimento tem um tom quase sempre apocalíptico – a busca por informações nunca é priorizada, as memórias são efêmeras e há sempre o risco de que encerrem suas atividades sem maiores explicações –, Bio mostra que o desaparecimento pode ser usado também como uma estratégia a favor.


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R E P O R TA G E M

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EXPECTATIVA X REALIDADE A

PA NDEM I A

REACE N D E

O

D E B ATE

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A

PRO D UÇÃO E A PRESER VA ÇÃ O D A NE T A R T E N OS LEMBR A

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D ES S E G ÊNERO QUE FOI A P ONTA D O, HÁ UM QUA R TO DE

S ÉCUL O,

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LI N G UA G E M

P R OMI SSOR A

O projeto House of Seneb, de Tabita Rezaire, centrado na noção de tecnologias de cura africana, é feito em colaboração com outros artistas e foi apresentado no aarea em 2019 com um vídeo 3D de Alicia Mersy.

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NINA RAHE

“O ARTISTA PLÁSTICO JOSÉ ROBERTO AGUILAR, DIRETOR DA CASA DAS ROSAS, FOI PICADO PELA MOSCA DA INTERNET. ACHA QUE UMA NOVA LINGUAGEM ESTÁ EM GESTAÇÃO NA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES”, DIZ UMA REPORTAGEM DA FOLHA DE S.PAULO, EM 1996. Outra, publicada um ano depois, enfatiza a novidade de uma mostra

que poderia ser vista virtualmente: “Se você não puder ir até a Casa das Rosas para ver BitFoto, a nova exposição da instituição, tudo bem. Fisicamente ela nem existe mesmo. A exposição está em cartaz em um site na internet”. Um quarto de século depois dessas experiências, pouco sobrou da nova linguagem que estava em gestação, pelo menos em relação ao que circulou nas redes da Casa das Rosas. Como a instituição não comporta uma reserva técnica, a ideia de um acervo virtual mostrou-se, à época, sedutora. Ninguém estava preparado, no entanto, para enfrentar uma mudança de gestão, entre 1999 e 2000, que resultou na desativação do servidor da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, onde os projetos e exposições estavam hospedados. O que se salvou, segundo Lucas Bambozzi, artista que estava à frente da coordenação de novas mídias do espaço, coube em um CD com 670 MB – o conteúdo, entretanto, não é operacional, restringe-se a arquivos de vídeos e fotos. “A gente tinha a ideia desse museu virtual e não nos demos conta de que todo esse acervo precisaria ser preservado de outra maneira”, explica Bambozzi. “Foi um fim trágico, um golpe e, ao mesmo tempo, uma tomada de consciência de como essas tecnologias são frágeis e tornam-se rapidamente obsoletas.”

FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD FOTO: DM,DIVULGAÇÃO/AAREA BRUNO LEÃO/ PATRI


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Em Andar em Círculos (2018), Marcius Galan utilizou um GPS para registrar no aarea suas caminhadas pelo mesmo perímetro. Na pág. ao lado, a obra Meta4walls, de Lucas Bambozzi, exposta na 25 a Bienal de São Paulo, com curadoria de Christine Mello.

As atividades na Casa das Rosas foram possíveis por meio de um apoio da marca HP, que forneceu computadores ao espaço, e da Fapesp, que possibilitou acesso a uma internet dedicada de 64 kbps, conexão em tempo integral que só passou a ser comum a partir dos anos 2000. Para se ter uma ideia da dimensão do que aconteceu ali, vale lembrar que o espaço abrigou a primeira mostra internacional competitiva de net art, em 1996, na qual um dos trabalhos premiados, My Boyfriend Came Back from the War, da artista russa Olia Lialina, é referência no gênero ainda hoje. No trabalho, que foi remixado por vários artistas, Lialina criou uma narrativa hipertextual utilizando múltiplas janelas com conteúdos simultâneos – o site em preto e branco contrariava o exagero de cores que dominaram a Web 1.0.

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RECONSTRUIR PARA PRESERVAR Considerando o pioneirismo do Brasil dentro desse contexto, que inclui também um núcleo dedicado à net art na 25ª Bienal de São Paulo (2002), com curadoria de Christine Mello, era de se supor que haveria uma inserção dessas obras no sistema de arte, não só em exposições como também em acervos, mas a realidade que vimos nas últimas duas décadas não foi condizente com essa expectativa. No acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, uma das poucas – senão raras – instituições brasileiras que possuem obras de net art em sua coleção, há apenas trabalhos de Giselle Beiguelman que foram doados ao MAC USP em 2015. “Foi o primeiro museu brasileiro a ter uma obra minha. Eu já tinha obras no acervo da ZKM, que é o principal museu de arte e mídia do mundo, e em outras coleções no exterior, porém nada ainda no Brasil”, diz a artista. Desde a aquisição, no entanto, o museu não incorporou ao seu acervo nenhum outro trabalho do gênero. Uma das questões que se colocam para a inserção da net art em coleções é a sua dificuldade de preservação, com a necessidade de atualizações constantes. Para O Livro Depois do Livro, por exemplo, ficou estabelecido que a obra não deverá ser restaurada no sentido de emulação do original, mas que, para preservar a sua poética, ela será infinitamente reconstruída. Um dos empecilhos de restauro desta peça foi o fato de que, em sua primeira versão, uma página falsa entre as páginas criava uma espécie de fade, impedindo que as pessoas utilizassem os recursos de ir e voltar do browser. Com a velocidade da internet atual, no entanto, essa opção se perdia. Agora, para as obras mais recentes, como I Love Your Gif, de 2013, e Coronário, comissionada pelo programa IMS Convida neste ano, Beiguelman conta que se preocupou em utilizar códigos mais abertos, com flexibilidade à diversidade de equipamentos e passíveis de ser atualizados com mais facilidade. “A net art é uma obra incontrolável em termos de conservação, você pode refazer a programação, criar outras semelhantes, mas o ambiente on-line de uma época não se recupera”, diz. “Os museus em geral, e os brasileiros em particular, resistem porque é algo que demanda investimento contínuo.”

FOTOS: DIVULGAÇÃO/AAREA / CORTESIA DO ARTISTA

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OBRAS NATO DIGITAIS Ainda que a pandemia tenha jogado luz sobre uma produção on-line, com programas como o IMS Convida, do Instituto Moreira Salles, que acabou por constituir um acervo de obras nato digitais, desenvolvidas exclusivamente para a plataforma, a preocupação curatorial, neste caso, não estava centrada no suporte, o que resultou em uma gama de trabalhos e artistas que não estão necessariamente interessados em explorar os recursos dessa linguagem. “O que se procurou foi uma grande diversidade em termos de identidade racial, social, cultural, antropológica”, explica João Fernandes, diretor artístico do IMS. A coleção que se constitui, de todo modo, é inteiramente digital, já que, por mais que algumas obras incluam desenhos ou pinturas em sua produção, o Instituto torna-se detentor unicamente da cópia digital – os parâmetros de conservação de cada um dos trabalhos ainda não estão fechados e devem ser assunto de discussão de uma série de debates que o Instituto pretende promover em torno do programa, como uma espécie de “metaconvida”. Do mesmo modo, o Itaú Cultural, instituição que lançou programas emergenciais diante da crise, também não promoveu à net art ao centro das discussões. Com 18 peças em sua coleção de arte cibernética, constituída por obras que abordam a tecnologia e suas possibilidades de interação, o Itaú não conta com nenhum exemplar web based, embora lide com questões igualmente desafiadoras na preservação desse acervo. A instalação interativa Desertesejo, de Gilbertto Prado, por exemplo, que funciona em um ambiente virtual, precisou ter sua programação completamente reconstruída para continuar a ser exibida. Criada em 2000, ela utilizava um plugin VRML que deixou de ser atualizado e, por isso, sua estrutura precisou ser refeita usando um ambiente de desenvolvimento de videogames, o Unity 3D. “Ainda que se tenha respeitado a identidade visual e a experiência original, se a gente comparar a um restauro tradicional, seria como repintar um quadro novamente”, explica Marcos Cuzziol, gerente do Núcleo Inovação do Itaú Cultural. Assim, enquanto museus estrangeiros têm ampliado o campo de discussão sobre a net art – como a Tate, em Londres, que comissiona o gênero desde 2000, e o Whitney Museum, em Nova York, que criou um acervo para essa produção e por onde passaram mais de cem obras no projeto artport –, as instituições brasileiras parecem não ter a mesma pretensão. A assessoria do Inhotim, por exemplo, afirmou que a aquisição de novas obras não é uma prioridade neste ano, período em que o Instituto está focado em desenvolver projetos já previstos, como o pavilhão da Yayoi Kusama, que será inaugurado em 2021. Nas 1.791 obras que o espaço possui, entre esculturas, pinturas, instalações, obras audiovisuais, fotografias e desenhos, não há net art. A Pinacoteca do Estado de São Paulo também não prevê nenhuma aquisição a curto prazo – a instituição possui uma coleção de 10.400 obras, entre esculturas, desenhos, instalações, vídeos e performances. E assim é com o Museu de Arte de São Paulo, os museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro e quase todos os outros espaços no Brasil. “Durante um tempo houve um desinteresse, uma ignorância voluntária, mas, a partir do momento em que começam a acontecer aquisições no MoMA e no Guggenheim e a net art passa a fazer parte de um pensamento legítimo dentro da arte contemporânea, acho que os curadores que torciam o nariz têm de se colocar em relação ao que pensam sobre isso”, diz Bambozzi. Na pág. ao lado, Cachoeira de Dados (2017), de Denise Agassi, obra que estava disponível no domínio plataforma.midiamagia.net.

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SEM INTERLOCUÇÃO Uma das iniciativas mais relevantes nesse sentido é o aarea, que comissiona trabalhos desenvolvidos especialmente para a internet. Ativa desde 2017, a plataforma já exibiu obras de 30 artistas e, embora o site não dê acesso a esse arquivo, sua preservação não deixa de ser uma preocupação constante, já que cada trabalho representa um desafio diferente para a conservação. Há desde casos que se aproximam da performance, como Arquivos Anexos (2017), de Fabio Morais – no qual o artista escreveu uma ficção on-line, dando ao público o acesso ao editor de textos do seu computador –, até outros em que o desafio é a dependência de diferentes canais ou a obsolescência da própria tecnologia. Em A Sonata dos Espectros (2018), por exemplo, a artista Cinthia Marcelle deixava que os visitantes criassem uma playlist ao escolher links de músicas do YouTube. “A gente fica à mercê das políticas de uso de cada empresa. Se o YouTube muda sua política de uma hora para outra, é um risco que precisamos assumir”, explica Adriano Ferrari, programador do aarea. “Em um restauro, teríamos de pensar em outras maneiras possíveis, como utilizar o Deezer, o Spotify, ou criar um acervo de música que fosse ligado à própria obra.” A vontade de Livia Benedetti e Marcela Vieira, criadoras da plataforma, em relação à sua história, é que esse arquivo se torne público e tenha uma vida para além do aarea. “Começamos uma conversa com o Centro Pompidou, com o Whitney Museum, mas aqui não encontramos interlocução, os museus não querem falar com a gente”, diz Marcela Vieira. E é nessa mesma busca que agora partem os artistas Lucas Bambozzi e Denise Agassi com o projeto ://backup, que está ainda em gestação, mas tem o objetivo de criar um espaço para que os trabalhos de net art possam continuar existindo. A ideia surgiu no momento em que Agassi esqueceu, durante uma viagem, de pagar o domínio plataforma.midiamagia.net – hoje fora do ar – e quase perdeu todos os trabalhos que estavam ali armazenados. “Consegui baixar pouco antes de tudo se perder, mas me dei conta de que, se acontecesse algo comigo, tudo desapareceria”, diz. Foi a partir do susto que ela iniciou uma série de conversas com artistas e curadores para pensar em formas mais perenes de conservação. O ://backup prevê então um resgate da memória dessa produção dispersa, com a disponibilização de obras que ainda poderiam ser acessadas e a emulação de outras que não conseguem mais ser reativadas. “Quero criar um jazigo, uma lápide, um obituário, morrer dignamente em um lugar para onde possam olhar e pensar”, brinca Bambozzi, que diz gastar, desde 2000, cerca de R$ 1 mil por ano para manter seus trabalhos on-line “de uma forma precária”. Postcards (2000), por exemplo, está no ar no domínio comum.com/diphusa/postcards, mas sem a funcionalidade original, já que as imagens pedem um plugin que não pode mais ser aberto. O próximo passo do projeto, no entanto, não parece nada fácil: será a busca de aportes institucionais ou, mais uma vez, formas independentes e colaborativas de viabilizar a permanência da net art

I Love Your Gif (2013), uma das obras da artista Giselle Beiguelman que estão na coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

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CHRISTIANE PAUL A NET ART É COLECIONÁVEL Para a curadora de novas mídias do Whitney Museum, a inclusão do gênero em acervos de museus chama a atenção do mercado de arte

A curadora Christiane Paul durante conferência na New York University

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DESDE 2001, CHRISTIANE PAUL, CURADORA DE NOVAS MÍDIAS DO WHITNEY MUSEUM OF AMERICAN ART, está à frente do artport – portal do museu criado especificamente para o comissionamento de net art e por onde já passaram mais de cem obras do gênero. Agora, quando as instituições de arte se veem obrigadas a formular uma programação on-line, Christiane acredita na continuidade do progresso que vem acompanhando lentamente nas últimas décadas. “A net art deixou de ser a enteada que não fazia parte da família”, diz à seLecT. NR

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seLecT: Olhando retrospectivamente, o que se tornou realidade do sonho que envolveu a prática artística e curatorial com o surgimento da internet? Christiane Paul: A net art, a única forma de arte criada para ser experimentada em espaços online, está mais integrada ao mundo da arte convencional e ainda mantém uma posição única fora dele. Ela também começou a se entrelaçar com o mundo físico, levando à criação de obras que não seriam possíveis sem a rede, mas que assumem a forma física e são comumente descritas como arte pós-internet. Hoje os curadores se entendem cada vez mais como mediadores entre plataformas de troca, sejam elas a galeria, sejam o virtual, e a Covid-19 mudou a “relação de poder” entre o espaço físico e o on-line, colocando o ambiente da web em primeiro plano. A pandemia pode mudar um cenário no qual o mundo da arte mainstream e o mundo das novas mídias nem sempre convergem entre si? É um fato que os mundos do mainstream e das novas mídias artísticas existem lado a lado há décadas e que os festivais e as organizações focados na arte digital são os que apoiaram a evolução das novas mídias e vêm escrevendo sua história. Na década passada, em especial, isso mudou lentamente e vimos instituições tradicionais – Grand Palais e Centre Pompidou, em Paris; Whitechapel Gallery, em Londres; MoMA e Whitney Museum, em Nova York; ou Young Museum, em São Francisco – exibindo exposições focadas em artistas e robôs, IA, artes programadas e a história das novas mídias. Acho que agora seria um bom momento para os dois campos, mainstream e novas mídias, avaliarem que interseções fazem sentido, mas não vejo que o ambiente da Covid-19 forneça novas plataformas para isso; as instituições parecem ter se concentrado principalmente em representar seus respectivos trabalhos. Por que existe uma relutância em investir em arte digital born? A relutância à arte digital nasce de uma história longa e complexa a partir da década de 1960. Acredito que um dos maiores desafios que essa forma de arte coloca é o entendimento de sua linguagem e sua estética visual e conceitual, bem como seu contexto. O público costuma percebê-la como nerd, obtusa e fria, sem “toque humano”, mas isso parece mudar à medida que as pessoas


estão mais expostas à tecnologia. Estética à parte, a arte digital pode ser difícil de se apresentar e as instituições muitas vezes carecem de infraestrutura para isso. A preservação e o colecionismo, bem como o fato desta forma de arte estar sub-representada no mercado, foram outros fatores. Acredito que vimos muito progresso nesses tópicos nas últimas duas décadas. Graças a muitas iniciativas, agora existem práticas sólidas de preservação, os modelos de colecionismo evoluíram, o mercado de arte presta mais atenção e surgiram colecionadores sérios especializados neste meio. A dificuldade de inserção da net art pode ser justificada pela falta de interesse do mercado? O fato de a arte digital não estar no radar do mercado artístico certamente desempenhou um papel importante nas dificuldades em torno de sua integração ao mundo da arte em geral. No entanto, a situação parece estar mudando. Existem galerias estabelecidas – como a Bitforms, a Postmasters e a Transfer, nos EUA; Upstream, na Holanda; e Galerie Charlot, em Paris – que representam de forma consistente a arte digital; e grandes feiras, como a Frieze ou a Expo Chicago, têm organizado debates sobre o colecionismo de arte digital. Como você vê a evolução da net art e sua mudança de status dentro do museu, considerando sua atuação à frente do artport? O ambiente da net art mudou tremendamente da Web 1.0 para o cenário das redes sociais da Web 2.0, na década de 2000. Enquanto a arte dos anos 1990 se envolvia com problemas sérios – sua exploração da identidade online, estruturas de dados –, a produção era mais divertida e travessa. Os artistas sempre podem estar conceitualmente à frente da curva, mas, na década de 1990, eles também estavam tecnologicamente à frente, inventando ferramentas que mais tarde seriam integradas a produtos comerciais. À medida que a web se tornava corporatizada e as plataformas para troca de conteúdo mais comercialmente direcionadas, o tom e a estética da net art mudavam no envolvimento com esse ambiente. A posição que o artport mantém também mudou ao longo do tempo. O portal agora tem seu próprio orçamento curatorial (em vez de ser apoiado por patrocinadores externos) e, em 2015, foi tomada a

decisão de trazer os projetos criados no artport para o acervo do Whitney Museum como uma entidade própria, a coleção artport. Qual foi a importância dessa ação? Foi de tremenda importância, afirmou que a net art é colecionável e que ela deixou de ser a enteada que não fazia parte da família. Também deu aos artistas um status de “artista de coleção”, o que vem com uma associação vitalícia. Os projetos do artport sempre foram comissionados sob uma licença não exclusiva, permitindo que os artistas mantenham os direitos autorais e mostrem o trabalho. Decidimos jogar das duas formas e manter esse status enquanto ainda trazemos o trabalho para a coleção.

A COVI D -19 MUD OU A “R ELA ÇÃO DE P OD ER ” ENTR E O E SPA ÇO FÍ SICO E ON LI NE, LE VA N D O O A MB I E NTE DA W EB PA R A O P R I ME I R O P LA N O Quais foram as dificuldades encontradas para preservar as obras? Devido aos ciclos cada vez mais rápidos de obsolescência tecnológica, a preservação da net art e da arte digital em si é definitivamente um desafio. Porém, iniciativas voltadas à preservação da arte digital estão em andamento há mais de uma década e os museus criaram consórcios focados na conservação digital e organizaram workshops e conferências. O Whitney formou um comitê de conservação de arte digital que analisa as obras do artport e esteve em contato com organizações como a Rhizome para discutir estratégias. Como parte da Media Preservation Initiative (MPI) do Whitney, trabalhamos consistentemente na preservação dos projetos do artport e começamos a colaborar com os cursos da New York University (NYU) dedicados à análise e conservação desses projetos. O que podemos esperar para o futuro da net art? Na última década, a net art evoluiu cada vez mais para a “networked art”, por exemplo, ramificando-se para dispositivos móveis e tornandose disponível como um aplicativo que pode funcionar em conjunto com uma instalação ou outros componentes off-line. Espero que a atenção que a net art está recebendo durante esta pandemia renove o interesse pelo meio e inspire modelos sustentáveis ​​para o suporte institucional. Também acredito que veremos cruzamentos mais sofisticados entre espaços físicos e on-line. seLecT EXPANDIDA Leia a íntegra em select.art.br/entrevista FOTO: DIVULGAÇÃO

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ESTUDO DE CASO

VITÓRIA CRIBB: PARA O MEU AMIGO ALGORITMO Vídeos e textos da artista carioca replicam as experiências de flutuação e dispersão da internet, comentando as ambiguidades das redes sobre a nossa subjetividade

LEANDRO MUNIZ

Na página ao lado e na seguinte, frames do vídeo @lusão (2020), produzido por Vitória Cribb durante webresidência no Olhão

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FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA


Nesta e nas págs. seguintes, reproduções das imagens postadas na conta de Instagram @ mercado_livre (entre 2019 e 2020), na qual o artista Wisrah Villefort replica imagens que circulam pelas plataformas de venda do sul global.

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA


O vídeo @ilusão começa com uma cena em que uma espécie de deserto, ou oceano de informação, se transforma aos poucos na figura de uma mulher. Sua pele é a superfície por onde corre um texto. Construído digitalmente, o vídeo é narrado pela artista Vitória Cribb (Rio de Janeiro, 1996), que relata com pesar os ciclos repetitivos das longas jornadas na internet, a anestesia do corpo e o mal-estar causado pelo controle algorítmico. Se a repetição é um tema que o vídeo aponta com melancolia e intenção crítica, a operação formal que o constitui é uma espécie de flutuação entre sequências de sons e imagens que parecem emular a dispersão própria da navegação na internet, em que links, pop ups e janelas se abrem infinitamente. Estudante de desenho industrial, Cribb transita entre a produção de imagens e vídeos digitais – que exibe em painéis eletrônicos na cidade ou em plataformas on-line –, projetos comissionados para espaços independentes e instalações feitas em festas. Sua investigação passa pela exploração da potência desses deslocamentos por espaços além da arte, considerando a precariedade institucional para trabalhos que lidam com mídias digitais. ENCONTROS PROGRAMADOS

Em setembro de 2020, Cribb publicou, na revista O Turvo, o texto Espontaneidade Programada, comentando seus mixed feelings ao ter a música Technologic (2005), do Daft Punk, recomendada para ela em uma plataforma de streaming. A artista se endereça diretamente aos algoritmos, indagando, com intimidade, como eles nos rastreiam, compreendem nossos padrões de comportamento, nos sugerem aquilo que gostamos, mas não nos podem ouvir. Essa lógica reitera uma aproximação entre iguais, em que acasos e encontros parecem programados e codificados, “consumindo nosso 4G, bateria e energia vital”, segundo a artista. A materialidade das telas touch screen e essa nova condição

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do corpo – estático, mas em plena atividade psíquica, inclusive, implica grande desempenho motor – dedos e olhos frenéticos –, além do processamento subjetivo de informações e estímulos visuais e sonoros. No texto Tecnologias da Felicidade (2): Você É um Zumbi Controlado pelos Algoritmos?, o psicanalista Christian Dunker discute como a exposição excessiva às telas provoca a atrofia do córtex e a redução da sensorialidade não visual. Essas experiências parecem descritas nas relações entre as imagens e os textos de Cribb, assim como o paradoxal excesso de socialização das redes, em relação à solidão física dos usuários diante da tela personalizada. @ilusão descreve, então, a sensação de um mundo mediado por superfícies anódinas e a experiência da apatia e da anestesia dos sentidos em meio ao excesso de estímulos informacionais e imagéticos. TEMPO IMPRODUTIVO

Na música do Daft Punk, verbos no imperativo descrevem o consumo digital: compre, clique, apague, atualize, envie, comprima, descomprima, baixe, nomeie, e assim por diante, em repetição. Porém, essa compulsão de uma ação em outra, ainda que seja uma referência para Cribb, não encontra vigor em seu vídeo. Em @ilusão, ou mesmo em seu texto, a artista cria uma atmosfera de desfuncionalidade e melancolia. O tempo menos produtivo e a eficácia no uso de ferramentas de blender e renderização são pretextos para a criação de uma temporalidade dilatada, lenta. Se @ilusão mostra uma mulher racializada monumentalizada, seus olhos vidrados e seu grito mudo demonstram uma relação de mal-estar com esse universo. Sobre o corpo da personagem é projetado – ou circula, como o sangue? – um texto que replica o procedimento da música da banda europeia de elencar uma série de verbos. Aqui, porém, eles desfilam no infinitivo: ouvir, despertar, desbloquear, deslizar, pensar, urinar,


lembrar, deslizar, clicar, ler, abrir, fechar, marcar, bocejar, fingir, e assim por diante. Além da diferença entre o imperativo e o infinitivo, é marcante no texto a intromissão de experiências ligadas ao funcionamento orgânico do corpo, diferentemente da música, que desencadeia ações mecânicas e tecnológicas. Podemos especular sobre as mudanças de contexto para tais diferenças. Enquanto a música do Daft Punk foi produzida em 2005 por uma dupla de homens brancos europeus, @ilusão foi produzido por uma mulher negra em 2020 no Brasil. “Eu sou uma das poucas mulheres negras, aqui, trabalhando com essa linguagem que une arte e tecnologia, mas não quero ser enquadrada em categorias, como a ideia de afrofuturismo. Já me identifiquei no começo, mas acho que o trabalho pode percorrer outros caminhos”, diz Cribb à seLecT. É importante ressaltar que, ainda que a produção de Cribb seja recente e uma série de possibilidades do trabalho ainda não tenha sido ex-

plorada, assim como algumas sínteses formais e conceituais ainda não estejam bem resolvidas, a artista tem uma circulação internacional – virtual – maior do que no contexto nacional. Apesar dos limites institucionais para a absorção de “novas mídias” no Brasil – tanto na produção quanto na exibição –, há outras potências envolvidas na circulação pela internet que permitem que um vídeo feito no Rio de Janeiro seja exibido num letreiro digital em Nova York, apenas com o envio de um arquivo. Com o cenário institucional em desmonte, hoje no Brasil, e poucas iniciativas de ponta que incentivem a experimentação com os meios digitais, o mercado domina, determina calendários institucionais e formata parte da produção artística – que se torna excessivamente objetual e domesticada. Nesse contexto, mesmo que, com seus trabalhos digital born, Cribb não proponha estratégias de desmonte e recodificação no uso dos algoritmos, ela expõe os limites de sua ação em nossa subjetividade.


ENSAIO

LITERATURA EXPANDIDA: UMA POSSIBILIDADE?

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MARCELA VIEIRA

A CIÊNCIA TRANSFORMA SUAS LINGUAGENS, A POESIA INVENTA SUAS LÍNGUAS. TANTO EM UMA QUANTO EM OUTRA NÃO É O CASO DE EXPLORAR, MAS DE AVANÇAR EM DIREÇÃO À TOTALIDADE, AO IRREALIZÁVEL; NÃO É NECESSÁRIO DIZER ONDE AMBAS SE ENCONTRARÃO – NEM SE ELAS PRECISAM DESSE ENCONTRO

Édouard Glissant, Poéticas da Relação

Talvez haja uma dificuldade hoje, em setembro de 2020, quando convivemos com a pandemia da Covid-19, em se imaginarem alternativas ao isolamento urbano que não estejam diretamente associadas à internet. Ambos os fenômenos, pandemia e internet, parecem ter se adaptado um ao outro, instaurando mudanças não apenas provisórias, mas permanentes, no que concerne aos modos de leitura, escrita e comunicação. A pandemia, se não intercede se impondo como temática a um poeta ou prosador, ameaça consolidar a presença indiretamente, com reações de angústia e desconforto desencadeadas pela noção de finitude. Por outro lado, a concentração para a leitura e para a escrita revela-se cada vez mais intermitente, desafiada a disputar com os atrativos das telas dos dispositivos, onde tudo – cultura, informação e afetos – converge de forma aparentemente naturalizada. Nesse ínterim, as atualizações da tecnologia operam-se em lances vertiginosos em direção a uma totalidade que de certo modo ecoa teorias já defendidas, por exemplo, por Walter BenEl Patio (2018-2019), de Sol Calero, representa quintal interno da arquitetura colonial venezuelana jamin em seus célebres A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica e O Narrador.

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FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE


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Acima, Marília Garcia em leitura de lançamento da edição #1 da revista Serrote (2019). Na pág. anterior, Tudo Está Dito (1974), de Augusto de Campos.

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SIMULTANEIDADE DE EXPERIÊNCIAS Noções de espaço, tempo cronológico e psicológico foram exploradas e praticamente refundadas por autores modernos, inspirando processos irreversíveis na prosa. Hoje, em vez de se verem ameaçadas pela profusão midiática, tanto a iniciativa literária quanto a imagem e sua reprodutibilidade estão passíveis a novos contornos e ambientes, muitas vezes compartilhando a mesma rede de circulação. Multiplicaram-se, com isso, as possibilidades de técnicas de escrita e, com elas, a capacidade de leitura. Reformulou-se o papel do narrador, a quem não mais cabe executar a faculdade de “intercambiar experiências”, descrita por Benjamin, pois a experiência e a forma de contá-la foram alteradas pela simultaneidade sem limites proporcionada por computadores e celulares. O que temos visto neste tempo de uma internet instituída pela pandemia é uma nova leva de escritores que encontraram em redes sociais um contexto estimulante para a circulação das próprias produções em canais a priori destinados à reprodução da imagem. As editoras, por sua vez, vêm-se impelidas a apostar no formato digital como alternativa às vendas; também aproveitam para reativar sites, convidando autores para escreverem em blogs, e recorrerem a lives, onde, em geral, fala-se sobre o texto. A POTÊNCIA PLÁSTICA DA LÍNGUA Essas são iniciativas que enfatizam uma estrutura tradicional interessada no contraste entre resultado final e procedimento, relações bem definidas, leitor e autor. Não que a nossa intenção seja desprestigiar a importância do livro, mas tratar o texto como imagem, postá-lo, divulgá-lo, falar sobre ele, pode ainda ser insuficiente vista a potência plástica da língua. É curioso que tão raras inciativas se valham da oportunidade do advento virtual, não enquanto temática ou meio de difusão, mas apropriando-se de ferramentas da tecnologia que permitam levar a cabo, por exemplo, aparatos poéticos mallarmaicos ou práticas concretistas deles derivados, como as dos irmãos Campos e Décio Pignatari, todos interessados em experimentações dos recursos poéticos em seus variados níveis, desde as escolhas tipográficas até a invenção de um novo espaço na página tão física, limitada e definida. Preocupado com a sobrevida desse tipo de acervo digital, ameaçado pela atualização de softwares, o aarea relança Chance Words (2006), de Augusto de Campos, realizado em Flash (como se sabe, todos os arquivos neste formato têm data contada, até o fim de 2020). Algumas iniciativas, contudo, valem ser mencionadas por estarem saindo do livro para experimentar alhures competências ainda pouco discutidas entre texto e internet. Em termos de produção nacional, é interessante observar o percurso da poeta Marília Garcia, e específicas publicações suas, como Paris Não Tem Centro , onde ela explora uma elasticidade da linguagem que parece investigar as prováveis relações entre a palavra escrita e outros estímulos visuais, fundando aproximações que compõem seu estilo FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / CORTESIA INSTITUTO MOREIRA SALLES


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poético tão particular. Também tradutora e editora, suas escolhas denotam referências que muito dizem sobre a sua própria prática poética, como a exemplar tradução que apresentou para o livro Traffic, de Kenneth Goldsmith, em que o autor “simplesmente” transcreve a programação integral de 24 horas de uma rádio em Nova York. Por sua vez, Marília Garcia e Leonardo Gandolfi, tradutores de Trânsito para a editora Luna Parque, repetem a iniciativa do autor e registram parte da emissão de uma rádio de São Paulo. A façanha dessa escolha surpreende, pois, ao abrir mão de traduzir o original ao pé da letra, ambos os tradutores parecem não somente ter compreendido o gesto de Goldsmith, que também é um gesto duchampiano, mas sim se juntado a ele para uma composição semelhante de reapropriação da matéria e do ato narrativo. Em março de 2019, Marília Garcia lê em público, no IMS, um poema que foi publicado na edição número 31 da revista Serrote. O texto aborda explanações da palavra “eco” e, para a leitura, a poeta preparou uma série de imagens que permitiam desenvolver o eixo temático de forma a complementá-lo, criando uma espécie de sobrevida do texto, em oportunidade que só poderia ser realizada “ao vivo” e “além” da página. Recentemente, Garcia reapresentou, em leitura pelo Zoom, um texto seu a convite do programa de residência artística para o Pivô. O formato, que buscava interseccionar imagem e texto numa dinâmica controlada pela própria escritora, adaptou-se perfeitamente ao ambiente artístico e também ao virtual, contribuindo com novidades estéticas em ambos os contextos. TEMPORALIDADE DERIVADA DO ISOLAMENTO Migrando da estaticidade física da página, o escritor João Paulo Cuenca parece ousar, embrenhando-se em meandros virtuais condizentes aos nossos tempos. “Mas hoje não há mais longe. Nada é longe. Não há mais fora”, diz em um dos versos de Diário da Quarentena, exibido no site do IMS, em programação prevista para exibir trabalhos produzidos no período do isolamento para as telas. Nesses vídeos, Cuenca diagrama e manipula texto, som e imagem, ora refletindo sobre sensações derivadas da clausura destes primeiros meses de pandemia, ora resgatando as memórias de um tempo remoto. Forma e conteúdo, neste caso, estão aptos a ser continuamente redescobertos, num caminho que, ao que tudo indica, parece não se esgotar. Em sua mais nova empreitada, o escritor colocou no ar um site no qual o leitor pode acompanhar o processo de criação de seu novo livro Nada É Mais Antigo Que o Passado Recente , que já traz no título a impressão dessa temporalidade derivada do confinamento e das redes. Com um plano de assinatura mensal oferecido no site, o leitor dispõe-se a receber diariamente, por WhatsApp, mensagens, links e fotografias compartilhadas pelo autor. Apropriando-se desse canal de comunicação e fazendo uso das próprias ferramentas responsáveis por também concentrar as possibilidades de dispersão, Cuenca parece estar jogando com as armas atuais e arriscando a própria narrativa ao assumir a aventura por um processo ruidoso que envolve excessiva troca social.

seLecT EXPANDIDA Leia o texto na íntegra em select.art.br/categoria/ensaio

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Frame do vídeo Marcha dos 100 mil (2020), de André Vallias

ATUALIZAÇÃO DOS RECURSOS André Vallias, poeta e pesquisador das mídias digitais, uma das maiores referências a respeito do assunto no Brasil, tem no ar, desde o início dos anos 2000, um site que merece a visita pelo alto nível do material do qual é repositório, armazenando poesias autorais e de outros poetas, mas também indicando produções suas enquanto designer , poeta, e editor de iniciativas digitais, vide a pioneira Revista Errática. Perguntado sobre sua produção atual, o poeta indica seu novo canal Vimeo, com felizes incursões pelo experimentalismo da edição audiovisual. Em conversa por telefone, Vallias, que desde os anos 1990 faz uso dos recursos digitais, aponta para a drástica mudança da internet nesses 30 anos, como, por exemplo, o modo de navegação. Hoje, a descoberta de novos sites, blogs, páginas pessoais ou de notícias, dificilmente acontece à revelia da mediação de redes sociais. Diante desse fato, não podemos perder de vista uma idiossincrasia cada vez mais flagrante do uso das redes: capacitada a romper fronteiras territoriais, a internet tende a ser cooptada por espécies de “feudos” representados por conglomerados. Expostas a essa corrida movida a interesses particulares e privados, teme-se que certas línguas, encerradas em seus territórios linguísticos, estejam fadadas ao desaparecimento, real ou simbólico, uma vez que a totalidade babélica talvez se confirme como um empreendimento quimérico também nas redes. O assunto é amplo e levanta discussões políticas, econômicas e sociais que retomam posicionamentos de principal importância e que caberiam ser tratados em outro espaço dedicado ao tema. Por ora, permanecemos com a curiosidade: se tanto a ciência quanto a poesia, como defende Édouard Glissant em citação aqui retomada como epígrafe, estão aptas a eterna reinvenção de seus recursos – e, portanto, de sua própria definição –, como pode se dar o encontro entre ambas? Ele precisa de fato ocorrer? A esta pergunta cabe aos escritores responderem. Enquanto isso, aguardamos ansiosos pelas tentativas.

FOTO: CORTESIA DO ARTISTA


ENSAIO

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A L G O R I T M O : UMA

GENEALOGIA

A O L O N GO DE SUA RE LAÇ ÃO HIST ÓRIC A C OM A S MÍDIAS, A ARTE D E MON ST RA TÁT IC AS D E CON TRAPOSIÇÃO E SABOTAGE M D OS IN T E RE SSE S VEL ADO S

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N AS

OPE RAÇ ÕE S

ALGORÍT MIC AS


Objeto Cinético C-15 (1969-2001), de Abraham Palatinik

DANIEL HORA

Os avanços e a disseminação da eletrônica ao longo do século 20 ampliaram as capacidades integradas de registro, processamento e transmissão da produção cultural, fatores que caracterizam as mídias desde a sua fase industrial. O trabalho que antes exigia empenho em atos de manipulação tecnológica, com o predomínio da combinação de recursos de hardware, passa a oferecer cada vez mais espaço para o jogo exploratório em torno de sistemas controlados por softwares. Entre os diferentes momentos, manifesta-se a inquietação ante a transição de caixas-pretas eletromecânicas para versões lógicas mais intrincadas. Desloca-se a atenção da engenharia com peças físicas para o controle de circuitos miniaturizados baseado na mediação por instruções matemáticas. Numa genealogia desse processo, encontramos exemplos como o Modulador de Espaço-Luz (1923-1930) de László Moholy-Nagy, os aparelhos cinecromáticos de Abraham Palatnik, a partir de 1950, e a CYSP 1 (Escultura Cibernética EspaçoDinâmica, 1956) de Nicolas Schöffer. De modo ainda singelo, as funções algorítmicas já são elementos constituintes desses dispositivos. Estão presentes em sua montagem FOTO: CORTESIA GALERIA NARA ROESLER


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efetiva, como o cérebro de um corpo-máquina, ou estão conceitualmente antecipadas. Ao construir esses dispositivos, os artistas atuam em confronto direto ou indireto com a especialização profissional tecnológica. Em outro viés mais desconstrutivista, exemplo pioneiro do desvio operacional das caixas-pretas programadas é a performance de autodestruição executada pela máquina concebida por Jean Tinguely para a sua Homenagem a Nova York (1960). Com sentido semelhante, a ação recombinatória dos códigos anuncia-se nas composições com registros sonoros em fita magnética e apropriações da transmissão radiofônica por John Cage e nos televisores alterados por Nam June Paik. Em lugar de dispositivos funcionais alternativos, a produção desses artistas estimula o público a desfazer, em termos metafóricos ou concretos, a assimilação de estruturas cognitivas impregnadas na pretensa neutralidade das lógicas de estabilidade, linearidade e previsibilidade das mídias e da sociedade. Nesse movimento confluem vertentes tais como a poesia concreta, o geometrismo plástico e visual, as instruções de execução e participação conceitualistas, e o cinema estrutural. Quando pensamos na antecipação e adoção dos computadores como mídias contemporâneas da arte, lembramos de nomes como Carlos Cruz-Diez, Waldemar Cordeiro, Georg Nees, Michael Noll, Frieder Nake, Manfred Mohr e a pioneira Vera Molnar.

DATIFICAÇÃO DA REALIDADE

Das abstrações geométricas da década de 1940, Molnar passa em seguida para a concepção de uma arte hipoteticamente executada com uma “máquina imaginária”. A partir do fim de década de 1960, a artista inicia sua produção efetivamente computacional, carregada pelo ímpeto de exploração das regras e estruturas características de sua geração. Em obras como Percursos (1976), efeitos de serialidade e aleatoriedade são combinados com técnicas manuais. Sua intenção é considerar os imprevistos e os equívocos na relação humana com os algoritmos. As obras de Molnar participam dos primeiros experimentos e questionamentos acerca da morfogênese generativa e interativa. Anunciam práticas mais recentes de parametrização, performance com agentes artificiais e imagens processadas por redes neurais. Dos anos 1980 em diante, as caixas-pretas algorítmicas passam a sustentar processos culturais mais amplos de “datificação” da realidade, para o seu subsequente processamento local ou distribuído em redes, via telecomunicação. No projeto Shoe-Field (1982-1988), Sonya Rapoport estrutura uma base de dados com a coleta de respostas sobre a escolha dos sapatos do público participante, além de fotografias dos tipos de calçados. Um programa de operações comutativas é usado para organizar informações em diagramas e gráficos gerais ou personalizados, indicando aspectos qualitativos e quantitativos e traços de reciprocidade entre diferentes pessoas. Nesse e em outros trabalhos da mesma época, observa-se como as caixas-pretas de algoritmos são assumidas como mídias de interação crítica ou de problematização sobre os agenciamentos entre objetos, informações, sociedade e organismos biológicos. Algo que envolve desde escalas individuais ao alcance comunitário ou ecológico. Outros exemplos nessa direção são a narrativa colaborativa de A Dobra do Texto (1983), de Roy Ascott, ou as performances telerrobóticas e participativas de Eduardo Kac, como Ornitorrinco (1989) ou Rara Avis (1996), em que o visitante, vestindo um capacete de imersão, tem acesso à perspectiva visual das câmeras presentes nos olhos de uma arara-robô circundada por rouxinóis dentro de uma gaiola.

Na pág. ao lado Shoe-Field (1986), de Sonya Rapoport

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FOTO: CORTESIA ESTATE OF SONYA RAPOPORT


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Na pág. ao lado, o artista Eduardo Kac com sua obra Ornitorrinco (1989), em Chicago. Acima, Interactive Plant Growing (1992), de Christa Sommerer e Laurent Mignonneau

TÁTICAS DE SABOTAGEM

Mais recentemente, a compreensão estética sistêmica torna-se um requisito para decifrar as implicações políticas e ambientais subjacentes a automações algorítmicas. Na instalação Cultivo Interativo de Plantas (1992), a dupla Christa Sommerer e Laurent Mignonneau constitui uma interface natural envolvendo vegetais vivos e duplos virtuais visualizados em projeções de imagens. Os variados graus de diferença de voltagem que resultam da proximidade e do toque do público sobre as plantas reais são captados por transdutores eletrônicos. Os sinais são, então, processados por regras matemáticas baseadas em princípios de desenvolvimento e evolução biológica, gerando transformações no crescimento das plantas virtuais em tempo real. Em trajetória concomitante, os artistas passam a lidar com a banalização dos processos computacionais na cultura cotidiana. No contexto dos metaprogramas algorítmicos, a gestão de conjuntos de dados integra-se às classificações ditadas por relacionamentos e reputação comercial e social. As consequências sociopolíticas desse panorama tecnológico são temas comuns aos trabalhos de net art de nomes como JODI e Eva & Franco Mattes. Destaca-se nesse contexto a ação online e multiplataformas Patrimônio Nacional – Separação por Cores (1997), do coletivo multiétnico Mongrel. Nesse trabalho, os artistas sugerem a composição digital de antiestereótipos de um homem e uma mulher. O projeto coloca em questão noções raciais, de identidade e de classe social, com a intenção de contrariar a suposta neutralidade social das redes. Ao longo de sua relação histórica com as mídias, a arte demonstra táticas de contraposição e sabotagem dos interesses velados nas operações algorítmicas. A genealogia de suas intervenções perpassa desde as construções e subversões dos aparatos eletrônicos, até alcançar os desvios estéticos da automação lógica e as propostas de interação crítica em um universo amplamente codificado. Os êxitos artísticos obtidos a cada lance de exploração e desmontagem contribuem significativamente para a resistência contra projetos opressivos amparados pelo poder de controle ofuscado nas caixas-pretas.

seLecT EXPANDIDA Leia o texto na íntegra em select.art.br/categoria/ensaio

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FOTOS: ED BENNETT / CORTESIA DOS ARTISTAS


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O artista Eduardo Kac com sua obra Ornitorrinco (1989), em Chicago


E N T R E V I S TA / U L I S E S M E J I A S

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É PRECISO COMBATER O COLONIALISMO DE DADOS

ACADÊMICO E ATIVISTA, ULISES MEJIAS DISCUTE A EMERGÊNCIA DE UM NOVO FORMATO DE COLONIALISMO, O DOS DADOS, QUE OPERA POR UM CLOUD EMPIRE (UM IMPÉRIO DA NUVEM), PROTAGONIZADO PELOS EUA E PELA CHINA, E É REFORÇADO POR GOVERNOS POPULISTAS E TECNOTOTALITÁRIOS

GISELLE BEIGUELMAN

ULISES MEJIAS É PROFESSOR ASSOCIADO DA STATE UNIVERSITY OF NEW YORK (SUNY), EM OWEGO. Nascido no México, vive desde os anos 1990 nos Estados Unidos. Autor, com Nick Couldry (London School of Economics and Political Science) de The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism, é diretor do Institute for Global Engagement, uma instituição acadêmica multidisciplinar voltada para a promoção da diversidade e da diferença e para o interculturalismo. É também cofundador da Tierra Común, uma rede de ativistas com foco na América Latina VOL. 9 / N. 48

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e no Sul Global, que propõe intervenções para descolonizar os dados. De acordo com Mejias, apesar de o colonialismo histórico e o dos territórios informacionais serem muito distintos no conteúdo e na forma, seu pressuposto é o mesmo: apropriar-se do cotidiano de todos pela ideia de que a extração e a expropriação são processos naturais e que não temos escolha, a não ser contribuir para essa expropriação.


“EM VEZ DOS MUÇULMANOS, O NOVO INIMIGO SERÁ O IMIGRANTE, POIS OS DADOS TÊM SIDO USADOS COMO FERRAMENTAS DE HIGIENISMO COLONIAL PARA DEFINIR ˜QUEM ESTÁ DENTRO E QUEM É A AMEAÇA INFECCIOSA DE FORA” 75

seLecT: Comecemos nossa conversa pela questão da língua. Em nossa correspondência, você comentou que seu “espanhol está um pouco atrofiado”. Entre nós é famoso o verso “Minha língua é minha pátria”, de Fernando Pessoa, popularizado pela canção de Caetano Veloso.

Realmente, a questão da linguagem pode nos ajudar a entender o problema da colonização de dados. Se me permitem uma breve nota bibliográfica, nasci no México, mas moro nos Estados Unidos há mais tempo do que vivi em meu país natal. Falo inglês melhor do que espanhol e faço meu trabalho na língua gringa. A minha língua não é a minha pátria porque, como imigrante, não sinto que tenho uma pátria. Além disso, o espanhol e o português também são línguas coloniais, portanto, falar essas línguas em vez de falar inglês não é necessariamente um ato de descolonização, certo? Por isso acho que a fantasia de podermos descolonizar nossas línguas é um pouco inútil. Primeiro, porque a maioria de nós é mestiça e as línguas coloniais são de fato nossas línguas nativas (eu gostaria muito de aprender nahuatl, mas como mestiço não posso fingir que é a minha língua nativa). Em segundo lugar, as línguas coloniais podem ser muito úteis para expressar ideias e sentimentos descoloniais. Como disse Audre Lorde, as ferramentas do senhor podem ser usadas para desmontar a casa do senhor. O mesmo acontece com os dados: são a nova linguagem colonial. E, sim, você tem de criticar e analisar essa situação, mas também tem de aprender a expressar ideias descoloniais usando essa nova linguagem. É importante promover a internet em outros idiomas, mas, para mim, pessoal mente, acho mais importante que todos falemos mais de um idioma, inclusive idiomas que, para o bem ou para o mal, são efetivamente universais. Como o inglês ou a linguagem dos dados, hoje. A descolonização também pode ocorrer nessas línguas, se a fizermos de forma crítica.

Ulises Mejias:

Em última análise, a colonização de dados é uma tentativa de universalizar uma ideia, a de que a extração e a expropriação são processos naturais e que não temos escolha a não ser contribuir para essa expropriação, por meio de uma abstração de nossas vidas, realizada cotidianamente pelos dados. Em nosso livro definimos o colonialismo de dados como uma ordem emergente para a apropriação da vida humana, de forma que dados possam ser continuamente extraídos dela com fins lucrativos. Não estamos dizendo que o colonialismo histórico e o colonialismo de dados são exatamente a mesma coisa. A forma e o conteúdo são muito diferentes. Mas a função é a mesma, e essa função é a expropriação. A questão é como se pode resistir a esta nova forma de expropriação, e dizemos no livro que podemos aprender muito com os povos que resistem ao colonialismo e ao capitalismo há 500 anos. Mas aqui é preciso esclarecer algumas coisas. Em primeiro lugar, não estamos dizendo que resistir ao colonialismo de dados nos coloca no mesmo nível que os povos indígenas que sofreram um nível de violência inimaginável durante a história do colonialismo. Como diria Philip J. Deloria, não estamos “fingindo ser índios”, porque isso seria grosseiramente desrespeitoso. Sim, o colonialismo de dados nos torna sujeitos coloniais subalternos, mas mais do que nativos, creio que agora somos informantes nativos que, como Gayatri Chakravorty Spivak diria, são aqueles que desempenharam o papel de fornecer informações para que o sujeito etnográfico europeu pudesse “ler” ou compreender as culturas que estavam colonizando. Como La Malinche, traduzimos nossas vidas para a linguagem dos dados para que as empresas possam nos entender e usar esses dados para nos colonizar. Em outras palavras, não somos vítimas, mas participantes ativos neste processo. O segundo ponto é que a descolonização é um projeto transmoderno, segundo Enrique Dussel. Não sou um especialista em modelos indígenas de pensamento coletivo e meus colegas teriam de me educar a esse respeito. Mas acho que esses modelos, mesmo que nos inspirem, não serão suficientes para resistir ao colonialismo de dados. Teremos de misturá-los com outros modelos, como o feminismo, o marxismo, a teoria crítica da raça etc., para gerar uma playlist completamente transmoderna. Os problemas transmodernos requerem soluções transmodernas. Essas soluções podem incluir modelos de pensamento indígenas, sim, mas também devem incluir muitas outras coisas. Nessa mesma obra, vocês demonstram o surgimento de um novo Império da Nuvem protagonizado pelos Estados Unidos e a China. Estamos vivendo na

Em The Costs of Connection, você e Nick Couldry ar-

era dos Estados plataforma? Uso aqui uma expressão de Benjamin Bratton

gumentaram que a descolonização dos dados passaria

em The Stack: On Software and the Sovereignty. Que posição ocupam países

por outros sistemas de pensamento. As matrizes in-

como o Brasil nesta nova dinâmica do capital?

dígenas nos permitem pensar sobre outros formatos

O papel de países como o Brasil vai ser muito importante. No momento, as opções são entre o Caríbdis do Vale do Silício e a Cila do Partido

algorítmicos?

FOTO: DIVULGAÇÃO


consideraria tal coisa no momento. Temos um longo caminho a percorrer. Mas é preciso levar em consideração que, se esses problemas fazem parte de uma história de mais de 500 anos, não seremos capazes de resolvê-los em alguns dias. 76

Qual é o papel das artes neste sistema de nova colonialidade por meio dos dados?

As respostas culturais e artísticas ao colonialismo transformaram profundamente nossas sociedades e continuarão a fazê-lo. Quando não se podia resistir ao colonialismo com o corpo, podia-se resistir com a mente, e estamos à beira de um novo movimento cultural de resistência ao colonialismo de dados. Essas formas de resistência sempre estiveram lá, mas têm sido o domínio de grupos excêntricos ou minorias, como os hackers. A pandemia global está ajudando essas alternativas a se tornarem mais corriqueiras. Mas não será fácil e sempre haverá uma reação contra a resistência. Além do mais, a arte também pode servir a propósitos coloniais ou comerciais.

América Invertida (1943), do hispano-uruguaio Joaquín Torres-Garcia

“EM UMA PUBLICAÇÃO NA AL-JAZEERA, ARGUMENTEI QUE OS

GOVERNOS

DO

SUL GLOBAL PODERIAM NACIONALIZAR DADOS,

OBRIGANDO

EMPRESAS

COMO

FACEBOOK E GOOGLE A PAGAREM UMA TAXA PELO USO DE DADOS GERADOS POR USUÁRIOS DO SUL”

Comunista Chinês. Mas não temos de escolher entre esses dois monstros. Os países do Sul Global têm de formar um novo Movimento de Países Não Alinhados, para gerar alternativas ao colonialismo de dados. Essas alternativas terão de vir da sociedade civil, pois é claro que a maioria dos nossos atuais governos está no caminho oposto, rumo ao tecnototalitarismo e ao populismo. Em uma publicação na Al-Jazeera, argumentei que os governos do Sul Global poderiam nacionalizar dados, obrigando empresas como Facebook e Google a pagarem uma taxa pelo uso de dados gerados por usuários do Sul. Mas nenhum governo atual

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No mundo pós-pandêmico, quais cenários de colonialismo ou descolonização são anunciados?

O que mais me preocupa é que as medidas de “emergência” que supostamente foram tomadas para combater a pandemia se tornem mais permanentes. Disseram-nos que os dados eram necessários para combater o Sars-cov-2 e, claro, a epidemiologia precisa ser baseada em resultados empíricos. Mas com essa desculpa foram introduzidas várias tecnologias de vigilância e análise de dados que minam a liberdade do indivíduo e os princípios de uma sociedade aberta. Voltar no tempo vai ser difícil. Vimos isso depois dos atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos: a pretexto de segurança nacional foi institucionalizado todo um “teatro” de segurança que não nos deixava mais seguros e, pelo contrário, foi utilizado para perseguir alguns membros da sociedade, muçulmanos em particular. Vinte anos depois, continuamos sofrendo com essa herança, e temo que o mesmo aconteça agora. Em vez dos muçulmanos, o novo inimigo será o imigrante, pois também há muitas histórias de como os dados têm sido usados como ferramentas de higienismo colonial para definir quem está dentro e quem é a ameaça infecciosa de fora. Por isso é preciso combater o colonialismo de dados.

FOTO: REPRODUÇÃO/ CREATIVE COMMONS


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RESIDÊNCIAS ON-LINE

Em t emp os de pandemia, a r e si d ê nci a Ve i cul o S U R a p r es en t a mo delo co mbina d o e ntr e e x pe r i ê nci a s e d e s loc ame nto s v irtuais, enqua nto a i nd a nã o é po ssí ve l t r a n s it ar pelo mundo

O DESLOCAMENTO TAMBÉM É IDEOLÓGICO VOL. 9 / N. 48

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DEVIDO À PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E AO ISOLAMENTO SOCIAL, AS RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS VIRAM-SE NUM IMPASSE. NA seLecT #44 ANALISAMOS O QUE CONSTITUI, COMO SE VIABILIZAM E QUAL É O PERFIL DE ARTISTAS QUE PARTICIPAM DE UMA RESIDÊNCIA. Uma premissa seria o deslo-

LEANDRO MUNIZ

Atividade da residência veiculo SUR 2018 em Santiago, Chile.

camento e, considerando que essa prática está em suspensão, para se evitar o alastramento do vírus, vale a pergunta: cabe ainda chamar de residência se a interação é puramente virtual? Alguns projetos deslocaram a totalidade de sua programação para o mundo virtual, outros suspenderam atividades e há ainda aqueles que, mesmo em tempos de reclusão, colocaram artistas em trânsito. A despeito das boas iniciativas desses novos projetos digitais no Brasil e no mundo, alguns se caracterizam como grupos de acompa-

FOTOS: ANA PAULA MATHIAS E MAËLYS MEYER


Atividade da residência veiculo SUR 2018 em Huentelauquén, Chile

nhamento e discussão, ou como projetos de ocupação das redes sociais e sites de espaços independentes e instituições, sem necessariamente propor um tempo de suspensão da produtividade para abrir um local para reflexão – o que seria próprio da ideia de residência. Valeria ainda relativizar a categoria takeover (ocupação de redes sociais), que ganhou ainda mais ressonância no meio artsy em geral e em algumas residências. Afinal, a dinâmica de troca de visibilidade por trabalho não remunerado parece um elemento falho da dinâmica desse sistema. OUTROS ESPAÇOS

Nesse contexto, a residência Veiculo SUR estabeleceu um modelo que combina experiência de discussões on-line e uma continuidade presencial, assim que houver condições para tal. Gerido pelos artistas Maëlys Meyer, MarVOL. 9 / N. 48

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cela Olate, Mario Lopes, Thaïs Ushirobira, David Muñoz, Andrea Arobba, e Ana Paula Mathias, e realizado em parceria com instituições no Brasil, Chile, Finlândia, França, Alemanha e Uruguai, o projeto existe desde 2018 e tem como objetivo a criação de deslocamentos de artistas do Sul ao Norte, de modo nômade e coletivo. Os selecionados para participar compartilham de tempo juntos em um trajeto que passa por esses países, onde cada um dos articuladores está sediado, discutindo seus interesses em busca de conexões e da criação de um espaço comum. A residência é focada em corpos e experiências dissidentes. Trata-se de uma afirmação política de que os modos de produção artística no Sul têm suas especificidades, a partir das urgências de cada lugar. Seu teor, portanto, coloca em evidência o conflito sofrido por esses corpos, intensificado pela sensação


de ser imigrante. Um artista de cada um desses países é selecionado e, na etapa on-line, junto ao articulador, vai pensar uma programação a partir de seus interesses e questões locais, replicando a dinâmica de deslocamento por diferentes contextos na experiência virtual. “Nos interessa criar situações de deslocamento ideológico, não apenas geográfico”, diz Maëlys Meyer à seLecT. “Nessa etapa remota, além de adaptar o pensamento para o virtual, nos interessa construir juntos, de acordo com quem participa.” Além de repensar a importância do atual momento histórico, essa etapa on-line será um momento de troca entre residentes, organizadores e instituições. “Quando abrimos a convocatória, veio a pandemia. Faz sentido continuar com um projeto de deslocamento em um momento em que temos de ficar em isolamento e

distanciamento?”, diz Thaïs Ushirobira. “O deslocamento nunca foi equânime por questões econômicas, raciais e políticas, mas entendemos que, já que as fronteiras vão ficar mais estreitas, faz mais sentido ainda criar possibilidades para corpos fora das normas.” Completamente gerida por artistas, a Veiculo SUR busca não só criar situações institucionais, mas de um tempo em suspenso, onde se possa compartilhar dúvidas, incertezas e, principalmente, caminhar junto a partir da singularidade de cada participante. “Uma residência gerida por artistas não é só um local de visibilidade ou de legitimação. É um espaço onde o diálogo pode acontecer e nós podemos nos colocar em suspensão, nos deixar atravessar, seja no deslocamento entre Norte e Sul, seja nos encontros remotos, que na verdade já era o nosso modo de operar, desde o começo”, diz Ushirobira.


P R OJ E TO V E R N I S S AG E

NEM SÓ AQUI, NEM SÓ AGORA

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Obra O Fogo, de Gabriela Noujaim, que discute a relação entre amor e dor. Na pág ao lado, vitrine da Galeria Simone Cadinelli

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NINA RAHE

NA EXPO SIÇÃO CO MO HABITAR O PRE SE N T E ?, Q UE ACONTECE CONCOMITANTEMENTE NO SITE E NA VITRINE DA SIM ON E CADIN EL LI ART E C ON T E MPORÂN E A, N O RIO, A R TISTAS DESAFIAM AS N OÇ ÕE S D E T E MPO E E SPAÇ O

FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA / FREDERICO ARÊDE


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Em um trecho de Roteiro para um Filme Sem Imagens (2019), de Jonas Arrabal, ouvimos a seguinte sentença lida pelo artista Shinpei Takeda em japonês: “Esvaziar o mar. O personagem entra na água e retira uma pequena quantidade com um balde até um dia esvaziar por completo. Andar em terra firme”. O vídeo de, aproximadamente, 15 minutos – sem nenhuma imagem, mas apenas narrações e suas respectivas legendas sobre a tela preta – ilustra bem o conceito da exposição Como Habitar o Presente?, da qual Arrabal participa ao lado de 26 artistas. Para a mostra, que acontece no site e na vitrine da Galeria Simone Cadinelli, no Rio de Janeiro, a ideia da curadora Érika Nascimento foi discutir, por meio de trabalhos audiovisuais, a dimensão do tempo em um momento em que o conceito aparece completamente dilatado – nesse período pandêmico, abordar a temporalidade implica lidar com uma série de utopias, como a expectativa de andar em terra firme depois de esvaziar o mar. “Queríamos projetar novos mundos possíveis nesta época em

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Na pág. ao lado, Embaixo da Escola (2020), de PV Dias e, acima, vídeo Sem Título (2014), da série Estranhamentos, de Ursula Tautz.

que um vírus afasta os nossos corpos e impõe limites e barreiras no cotidiano, evidenciando abismos já existentes”, diz a curadora da mostra, que foi dividida em dois atos: Ato 1 – É Tudo Nevoeiro Codificado, e Ato 2 – Estamos Aqui. Os trabalhos selecionados exploram os desdobramentos do tempo em relação à memória de um certo passado, à atenção exigida neste turvo presente e à expectativa diante do futuro incerto, que não necessariamente vai se concretizar. Arrabal encontrou na Ilha do Japonês, uma ilha artificial criada na década de 1960 em Cabo Frio como base para barcos pesqueiros, o norte para desenvolver o trabalho apresentado. Nele, o artista cria uma fábula que tem como pano de fundo o resgate de sua própria história. “Minha família é de Cabo Frio, sempre observei essa ilha e tinha uma imagem quase como se ela pertencesse aos meus familiares”, diz Arrabal, cujo bisavô veio do Japão fugido da guerra, em uma trajetória “cheia de lacunas”. VOLTAR AO PASSADO E PROBLEMATIZAR O PRESENTE Muitos vídeos em Como Habitar o Presente? partem em uma busca para recuperar a memória e se lançam na difícil tarefa de deslocar não apenas o tempo, mas também o espaço – duas noções que, nesta pandemia, aparecem mais atreladas do que nunca. “Sempre pensei em como conseguiria deslocar essa ilha para o ambiente expositivo”, diz Arrabal. De modo similar, Ursula Tautz, no vídeo Sem Título (2014), da série Estranhamentos, refaz o caminho percorrido por sua família durante a guerra ao retornar à cidade polonesa Ołdrzychowice Kłodzkie, onde viveram seus ancestrais.

FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS


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Lapso (2017), da série Apagamento, na qual Leandra Espírito Santo aborda as redes sociais como forma de padronização de identidades

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FOTO: CORTESIA DA ARTISTA


Ao tentar reconstruir o passado e criar laços afetivos com seu “lugar de origem”, Tautz procurou inserir-se na paisagem e na arquitetura de uma época que já não existe e acabou, inclusive, sendo coagida por uma moradora que ameaçou chamar a polícia para tirá-la de lá. “Era uma cidade muito pobre e eu estava cheia de equipamentos”, diz a artista. “Acho que não fui expulsa pela moradora, mas pelo lugar, que não me pertence. E hoje esse passado se tornou duplo, já que não posso mais voltar ao tempo da minha avó e nem ao tempo dessa viagem.” Diferentemente de Arrabal e Tautz, a artista Gabriela Noujaim procurou enfatizar apenas o presente nas duas obras que expõe na mostra. Em O Fogo (2019), sua mão, que traz escrita a palavra amor, procura controlar a chama de uma vela, estabelecendo um jogo entre o tempo e a dor. “Queria abordar a falta de empatia entre as pessoas, a falta de amor, para problematizar o momento em que vivemos”, diz. Já em Mulheres Latinamerica 2020, trabalho que desenvolveu entre março e junho deste ano, a impressão é de que, contra a ausência de empatia, Noujaim criou por conta própria uma rede de afetos. Ela enviou pelo correio máscaras cirúrgicas com um mapa da América Latina para grupos de mulheres, entre profissionais da saúde, indígenas e vítimas de agressão. No vídeo, cerca de 15 aparecem vestindo as máscaras encaminhadas pela artista, que explora também o som da batida de um coração, o áudio da sua respiração e a projeção de uma radiografia de pulmão sobre seu corpo – o trabalho termina com todas as participantes ocupando um só quadro. “Essa ação atravessou a impossibilidade de contato físico”, diz Noujaim. “Quis problematizar o presente.” LEGITIMAÇÃO E APAGAMENTO Para problematizar a realidade em que estamos vivendo, inclusive, não poderiam faltar na seleção obras que discutissem o virtual. Os trabalhos É Tudo Stories/ Dark Social Feelings (2018-2010), de Aslan Cabral, que consiste em uma sequência de 28 stories do Instagram, e Embaixo da Escola (2020), de PV Dias, no qual um gif do artista é lançado no corredor de armários da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, discutem os espaços de representação e legitimação da arte. Já a obra Clarão (2017), de Leandra Espírito Santo, vê a presença na rede e os usos de recursos digitais como formas de apagamento. Nela, a artista cria uma sequência de imagens em stop motion, na qual seu rosto aparece encoberto por uma caixa de luz que, de tempos em tempos, é acesa – os lampejos são tão rápidos que não permitem que a imagem se fixe. “As redes sociais foram um motivador do pensamento desse trabalho, porque nelas as expressões são sempre padronizadas e você se depara com um indivíduo que não consegue perceber de verdade”, diz Espírito Santo, que explora a representação a partir das possibilidades de revelar ou ocultar algo. O projeto da mostra, de acordo com Érika Nascimento, surgiu da necessidade de testar novas possibilidades de exposição. Enquanto o site da Simone Cadinelli permitiu o acesso a uma quantidade mais ampla de pessoas, a vitrine do espaço tornou-se uma janela para outro tipo de público, os transeuntes da Rua Aníbal de Mendonça, em Ipanema, que não estão, necessariamente, habituados a galerias de arte.

COMO HABITAR O PRESENTE? Ato 1 – É Tudo Nevoeiro Codificado, até 22/8 Ato 2 – Estamos Aqui, de 24/8 a 25/9 Simone Cadinelli Arte Contemporânea [vitrine da galeria], Rua Aníbal de Mendonça, 171, Ipanema, Rio de Janeiro simonecadinelli.com

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Nesta e na pág. ao lado, detalhes da instalação Selfie Dataset (2015), banco de dados de autorretratos extraídos das redes sociais, que inclui série de imagens de trabalhos da artista Cindy Sherman

CRÍTICA

Milão

MILÃO

PERFORMATIVIDADE CALCULADA Projeto apresentado na Fundação Prada antes da pandemia revela como sistemas de Inteligência Artificial de redes sociais categorizam o mundo e reproduzem assimetrias PAULA ALZUGARAY

Humanos programam máquinas que classificam imagens, que treinam humanos. Alguns passos além da imagem técnica existe um gênero de fotografia ao qual se convencionou chamar de “imagens de treinamento”. Elas são coletadas na internet e rotuladas para a alimentação de sistemas de Inteligência Artificial desenhados para a vigilância e o reconhecimento facial. Esse gênero de imagem criada

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especificamente para e, muitas vezes, por computadores foi o objeto da mostra Training Humans, que esteve em cartaz no Osservatorio Fondazione Prada, de Milão, até fevereiro de 2020. Com curadoria do artista Trevor Paglen e da pesquisadora Kate Crawford, a mostra apresentou uma evolução das “imagens de treinamento” dos anos 1960 até hoje, mostrando que, embora os dados utilizados para programação de máquinas tenham mudado, os critérios que determinam o olhar maquínico de classificação de indivíduos têm parâmetros muito semelhantes àqueles utilizados pela criminologia do fim do século 19. Os curadores argumentam que, em suas telas, telefones celulares e deslocamentos na cidade, os indivíduos são hoje monitorados, representados, interpretados e codificados por tecnologias de dados que reproduzem controversos sistemas de julgamento moral aplicados pelo psicólogo norte-americano Paul Ekman, que afirmou que a amplitude do sentimento humano poderia ser reduzida a seis emoções universais. Teorias como essas reaparecem nos sistemas de IA que estão hoje medindo as expressões faciais das pessoas, a fim de avaliar se são propensas a ter doenças mentais ou cometer crimes, o que nos remete aos pressupostos do criminologista Alphonse Bertillon (1853-1914), pai do retrato falado. Em sua Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia (1983), Vilém Flusser já previa o desafio que a sociedade enfrentaria ao procurar decifrar as implicações por trás da cultura visual maquínica e das tecnologias da imagem cotidiana. E a mostra Training Humans prestou-se a esse desafio. A exposição trouxe à luz as caixas-pretas de 19 sistemas de IA desenvolvidos desde 1963. Essa genealogia mostrou que os projetos, que eram inicialmente desenvolvidos por agências governamentais de inteligência – como o Facial Recognition Project Report, da agência de inteligência dos EUA (a CIA), atualmente são elaborados por centros de pesquisa universitários em colaboração com as grandes corporações da internet.


O sistema Imagenet (2009), por exemplo, é um banco de dados que buscou representar a totalidade dos objetos do mundo, a partir da coleta de milhões e milhões de imagens postadas nas redes. A responsabilidade pela classificação dessas imagens ficou a cargo de analistas da agência de serviços MTurk, da Amazon, e as legendas revelam todos os tipos de preconceitos e discriminações – de racismo a misoginia e sexismo. A mostra apresenta um pequeno recorte desse banco de dados, com foco nos conjuntos de retratos de pessoas. Outros projetos, como Selfie Dataset (2015), foi criado com fotos extraídas do Flickr, ou Labeled Faces in The Wild (2007), formado por 13.233 imagens de 5.749 celebridades usadas em pesquisas de reconhecimento facial. Ele inclui, por exemplo, uma galeria de personas incorporadas por Cindy Sherman, nas séries Untitled Film Stills (19771980) e Untitled (1987-1995), em que a artista explora padrões cinematográficos, máscaras e monstruosidades. Os dois últimos projetos apresentados na mostra são de autoria do próprio Trevor Paglen. Age, Gender, and Emotions in the Wild (2019), é uma instalação interativa, produzida a partir de modelos desenvolvidos por pesquisadores do Facebook e da Amazon, a fim de estimar a idade, o gênero e o estado emocional de seus usuários. Na instalação, a

imagem do visitante é captada por uma câmera instalada no ambiente da exposição e transmitida em tempo real em uma tela. Diante da tela, o visitante relaciona-se com sua própria imagem, como se estivesse diante de um espelho. Com a face enquadrada, ele tem contato com a velocidade de “pensamento” do sistema, que registra estimativas para sua idade, gênero e emoção. A segunda instalação, Image-Net Roulette (2019), usa uma rede neural para categorizar o espectador e palpitar sobre sua atividade e profissão. Em ambos os casos, a variação esquizofrênica dos dados aplicáveis à face – que no meu caso alteraram de 25 a 43 anos; de feminino para masculino; e de medo para tristeza e neutralidade, sem chegar a uma conclusão – indica a arbitrariedade das leituras. Posterior à pesquisa de Paglen e Crawford, o aplicativo de vídeos TikTok – atualmente no centro de uma crise internacional entre China e EUA por ter ocultado, por meio de uma camada criptográfica, o recolhimento de identificadores únicos de milhões de aparelhos móveis – trouxe à tona questões relativas à ética do rastreamento de dados que se prestariam ao debate proposto pela exposição. Trata-se aqui, então, de reconhecer a perversa lógica de um ciclo vicioso: somos treinados pelos sistemas a performar de determinadas maneiras em milhares de imagens publicadas nas redes sociais. Dessa performatividade calculada são extraídos os padrões que classificam o nosso comportamento, impondo-nos as tipologias de uma suposta “normalidaTraining Humans de”. Sistemas como esses, que comem Fondazione Prada imagens e cospem regras, nos servem Osservatorio para pensar o que exatamente significa De 12/9/2019 a 24/2/2020 o desejo de “voltar ao normal”, após a fondazioneprada.org/ pandemia. project/training-humans

FOTOS: PAULA ALZUGARAY


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CRÍTICA LIVRO

RADICALMENTE VIVO Ao descrever sua trajetória de homem trans em colóquio psicanalítico e em livro, Paul B. Preciado mostra quanto esforço foi preciso para deixar de ser “objeto” de olhar e sustentar um processo de descolonização do corpo PETER PÁL PELBART

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EU SOU UM MONSTRO, declara Paul B. Preciado diante de 3,5 mil psicanalistas em Paris, num colóquio intitulado Mulheres em Psicanálise. Sim, um monstro que fala, diz ele. Afinal, escapou da gaiola feminina onde a vida toda se sentira aprisionado pela expectativa que recai sobre toda e qualquer mulher. Quantos deveres lhe são atribuídos, desde os conjugais, familiares, reprodutivos, até os estéticos, corporais, sexuais? Sem falar do silenciamento pessoal, do sujeitamento social, da opressão, exploração e violência física que tal condição impõe. O relato de como “Beatriz” sobreviveu desde pequena a tal domesticação é comovente. O que lhe permitiu atravessar o inferno, relata, foi a leitura incessante de autoras feministas negras, lésbicas, punks, através das quais teve acesso às vozes heréticas que verbalizavam tudo aquilo que “ela” vivia como intolerável. Ao mudar de gênero e penetrar na gaiola masculina, Preciado sentiu-se liberado dos olhares, expectativas, humilhações, assédios vários, tendo acesso a uma condição de “universalidade neutra” – isto é, o padrão de normalidade a partir do qual se “mede” a subalternidade feminina. Donde a prova cabal, se é que esta faltava, da absoluta assimetria de gênero e dos mecanismos que o fabricam, por dentro e por fora. É óbvio que a transição a que Preciado se dispôs, com a aplicação controlada de gel de testosterona, a travessia do labirinto jurídico, médico, psicológico, psiquiátrico, não teve por objetivo conquistar o conforto subjetivo vivido pelos homens, repleto de violência e arrogância, igualmente insuportáveis. Constituiu uma estratégia calculada e refletida para embaralhar as cartas e, através do próprio corpo, desafiar a codificação política dominante. Só assim foi possível reivindicar o que também Judith Butler exigiu, o reconhecimento legal do estatuto de pessoa não binária. Pois é assim que Preciado se define: homem trans, corpo não binário. Anos atrás, já com trajetória bombástica no campo dos estudos e do ativismo queer, vários livros publicados que causaram furor pelo mundo todo e respeitabilidade acadêmica (no Brasil, até o momento, foram dois: Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica e Manifesto Contrassexual, ambos pela n-1edições. Em breve, também Pornotopia), aos 38 anos de idade Beatriz Preciado decidiu adotar oficialmente o nome de Paul B. Preciado. Juridicamente, a partir daí, desertou do gênero feminino. Muita gente se perguntou se esse gesto não representava uma traição à causa feminista, justamente por parte de alguém que sempre colocou em xeque, da maneira mais cáustica, a binariedade de gênero. Mas foi todo o contrário. KAFKA No Relatório para uma Academia, de Kafka, um macaco conta para cientistas como sua “hominização” fora a única saída encontrada para escapar ao jugo opressivo de seu captor. Era preciso entrar na jaula da “subjetividade humana” e adotar os códigos vigentes, inclusive aqueles responsáveis pela sua captura, para poder “safar-se”. O paradoxo em Pedro o Vermelho é claro: precisou adotar a lógica do dominador para deixar de ser dominado. Estranha liberdade... Ou melhor – não é liberdade, mas apenas uma saída.


Na pág. ao lado, a capa do livro Je Suis Un Monstre Qui Vous Parle, acima, o filósofo Paul B. Preciado

Foi essa a estrutura da belíssima performance kafkiana de Preciado diante da Escola da causa freudiana francesa. Não por outra razão causou o escândalo que causou. Ao descrever sua trajetória de homem trans, o autor mostra quanto esforço foi preciso para deixar de ser “objeto” de olhar ou de discurso, tal como foram sempre as mulheres, e os animais em zoológico, para se tornar “sujeito de fala”. O que isso revela é simplesmente aquilo que por milênios foi silenciado: que apenas o corpo e a subjetividade masculinos eram considerados perfeitos. A história da filosofia, da medicina, da pedagogia, da psiquiatria, da psicologia, da arte e, obviamente, da psicanálise assenta-se sobre uma epistemologia de gênero, que é, afinal, parte indissociável de um dispositivo político maior responsável pela subalternização da mulher e da “normalização” da feminilidade. Nessa epistemologia, a tentativa de qualquer indivíduo de escapar à binariedade pressuposta é tachada de aberrante, animal para alguns, psicótica para outros, monstruosa para terceiros. Mas esse ser “trânsfuga” do regime binário heteropatriarcal é alguém que teve a coragem de sustentar um processo de despatriarcalização e descolonização

do corpo – que uma nova clínica deveria conseguir acompanhar. O corpo trans revela uma “potência de vida”, mas para ele nada está dado. A liberdade sexual é “um túnel que se escava com as próprias mãos”. Só através de uma tal escavação é possível livrar-se daquela rede “semiotécnica e cognitiva” que limita a percepção, bem como as maneiras de sentir e de amar. Ao término deste livro muito bem escrito, instigante, provocativo, que lança uma luz ao que é tão óbvio e está debaixo do nosso nariz o tempo todo, mais do que nunca nos perguntamos se a identidade sexual, tão relevante na suposta constituição da subjetividade, segundo a psicanálise, com todo o cortejo de noções que a acompanham, tais como organização da libido, complexo de Édipo, atividade/passividade, inveja do pênis, estado pré-genital e genital, em suma, um inconsciente da diferença sexual, sem falar da patologização da homossexualidade, não faz parte de um mito contemporâneo, indissociável do dispositivo epistemológico e político heteropatriarcal. Mas não se trata de um ataque à psicanálise enquanto tal. O autor nunca escondeu que esteve no divã de freudianos, kleinianos, lacanianos, guattarianos, e que tem consciência que tudo o que de relevante pôde ter vivido ali deu-se apenas quando as/os analistas desviavam do enquadre teórico binário ao qual manifestavam, ao menos formalmente, a fidelidade de escola. Certamente, alguns psicanalistas responderiam, com razão, que a psicanálise é justamente esse desvio. Para além das polêmicas com a psicanálise, porém, uma afirmação de cunho filosófico e existencial permite vislumbrar o alcance maior dessa perspectiva. Trata-se da concepção, por assim dizer, antigenealógica do autor. O desafio, para um trans, seria ativar genes que foram anulados pela presença prevalente de certos hormônios, liberando assim a expressão de um fenótipo que, normalmente, ficaria mudo. “Para ser trans, é preciso aceitar a irrupção triunfal de um outro futuro em si, em todas as células de seu corpo. Fazer uma transição equivale a compreender que os códigos culturais da masculinidade e feminidade são anedóticos se comparados à infinita variação das modalidades de existência.” Através do turbilhão de transformações no qual mergulha um trans não se trata apenas de uma mudança de gênero, mas de uma relação outra com os elementos que compõem o mundo – devir-vegetal, devir-inumano e tantos outros! Ao formular uma pergunta que deve atravessar qualquer pessoa que tenha cruzado, ouvido ou lido Preciado – a saber, terá sido “operado”? – ele mesmo responde que com muito cuidado e ao longo de muitos anos, de inúmeras sessões, “operou” o aparelho epistêmico que diagnosticou Je Suis Un Monstre Qui seu corpo e suas práticas como patoVous Parle lógicos. Aí, pergunta: “E vocês, carxs De Paul B. Preciado pela psicanalistas, vocês se operaram?” editora Grasset Eis um livro, uma existência, uma trajetória, que precisou inventar uma nova língua para ter acesso ao que hoje parece o mais difícil: estar radicalmente vivo. FOTOS: DR GRASSET/ MARIE ROUGE


CRÍTICA

Frame de Sem título (1977), de Carmela Gross e, na pág. ao lado, frame de Videologia (1978), de Regina Silveira

SÃO PAULO

PARA VER O CIRCO PEGAR FOGO Emblemáticos do espírito experimental de toda uma época, vídeos produzidos em laboratório de pesquisa no MAC USP, nos anos 1970, fazem crítica à televisão e convite ao abandono de zonas de conforto

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O projeto prospectivo de experimentação com vídeo, implantado por Walter Zanini no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), em 1977, teria seu equivalente hoje se uma instituição museológica se dispusesse a lançar um espaço de pesquisa de ponta em arte digital. Embora esse ímpeto pioneiro tenha despontado no LabMis – um laboratório público destinado à pesquisa e criação em novas mídias –, na gestão de Daniela Bousso à frente do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), em 2008, é triste reconhecer que o nosso sistema institucional não estava preparado para atender aos terrenos mais arriscados da arte contemporânea. O programa anual, que atendia à necessidade de políticas públicas no campo da produção artística, foi simplesmente desmantelado em um cabo de forças político. “Comparar o Paço e o MIS com qualquer outra instituição é não levar em conta que, ao assumirem posturas francamente prospectivas no campo da arte, essas instituições jamais terão resultados imediatos de público”, declarou na época o crítico Tadeu Chiarelli, então diretor do MAC USP. Enquanto o apoio institucional a estes campos de estudo desafiadores e desconhecidos permanece como horizonte a ser navegado, voltemos aos arquivos que iluminam a história da arte contemporânea brasileira. A exposição on-line Vídeo_MAC é esse lugar. Com curadoria de Roberto Moreira S. Cruz, a mostra resgata um acervo de vídeos de artistas que atuaram no museu entre 1977 e 1978. Após décadas extraviado, o material foi localizado pela artista Regina Silveira e a pesquisadora Cristina Freire no acervo do MIS, sem a devida indexação, e devolvido


ao MAC USP em 2013. No site do museu estão veiculados 18 trabalhos desse raro conjunto, que hoje integra a pesquisa de pós-doutorado de Moreira S. Cruz. Grande parte das experiências com novas mídias, nos anos 1970, passava pela desconstrução da mensagem televisiva, emitida pelo meio de comunicação de massa por excelência do momento. A possibilidade de reação a um meio tão impositivo como a televisão era algo que cabia como luva ao crivo crítico dos artistas que experimentavam as linguagens. Em Sem título (1977), Carmela Gross revela sua faceta media artist ao desenhar com pincel uma grade visual sobre uma tela de tevê que transmite um programa de entrevistas típico da programação matinal, até cobri-la por completo com uma tarja preta. O apagamento do conteúdo televisivo é também o dispositivo de um dos vídeos de Julio Plaza, que, após exibir uma tela de tevê com o título do trabalho, Descanso 3’ (1978), corta para uma tela escura, sem nenhuma imagem, durante três minutos. Em Artifício (1977), Regina Silveira promove a desconstrução paulatina da palavra-título,

ao remover as fitas adesivas sobre as quais estava escrita. Embora o trabalho não opere diretamente sobre a tela, ao produzir o desaparecimento da imagem em linhas horizontais, ele produz um comentário sobre o modo como a imagem era magneticamente construída nas televisões de tubo. As sobreposições de linguagens são premissas entre os artistas que trabalharam no laboratório de Zanini. Caso de Reviver (1978), de Donato Ferrari, que integra recursos do cinema (no movimento de câmera do primeiro plano sequência, nada usual nos primórdios do vídeo), da fotografia, da poesia visual e da publicação (ao brincar com o texto com tipografia sobre lâminas de acetato). E também de Videologia (1978), de Regina Silveira, que faz dialogar o vídeo e a gravura – ao registrar o processo de revelação de uma imagem em uma chapa de off-set. O objeto revelado, uma arma de fogo, anunciava a temática cortante de Regina Silveira. Emblemático do espírito experimental de toda uma época, O Circo (1977), de José Roberto Aguilar, é um elogio do risco e um convite aos Vídeo_MAC telespectadores passivos das telas de MAC USP tubo catódico a abandonarem suas Exposição permanente zonas de conforto. “Se fazer as coisas mac.usp.br no risco é ser importante, então quero ser importante”, diz o palhaço de Aguilar. “A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo.” PA

FOTOS: CORTESIA MAC USP


CRÍTICA

Acima e na pág. ao lado., vistas da exposição Homo Kosmos

LISBOA

O LUGAR QUE HABITAMOS Em curadoria de Tobi Maier, os artistas Yonamine e Tiago Borges apontam ao espaço para ficcionar uma nova narrativa que, tal como milhões de anos atrás, começou a ser escrita na escuridão FRANCISCO CORREIA

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Num primeiro instante, na Galeria Avenida da Índia, em Lisboa, os estímulos que se revelam na penumbra parecem contraditórios – talvez sejam mesmo, e ainda bem. Por um lado, as lâmpadas de luz negra, em conjunto com o grande asteroide que gravita perto da entrada, “pintado” pelas cores luminescentes das projeções, que se espalham pelo espaço e lhe dão uma sensação de movimento, transportam-nos para um imaginário sci-fi. Por outro lado, a abordagem punk e malcomportada que a dupla empresta aos seus projetos nos traz à memória a porosidade dos lugares primordiais. A repetição dos ícones serigrafados e as palavras pintadas no caos devolvem-nos às paredes das cavernas – ou das cidades, lá fora, cobertas a pichação. É nessa tensão absurda e fantástica entre passado e futuro, manualidade e tecnologia, que nasce a possibilidade de pensarmos o lugar que habitamos. Afinal, o Espaço, o grande fetiche tecnológico das civilizações modernas, é o lugar do recomeço, do vazio, onde tudo é potência, assim como as cavernas, onde os primeiros registos da humanidade foram marcados a tinta por mãos nas paredes. E pouco interessa a intenção, pois inegáveis são as marcas deixadas: as pinturas, as gravuras, os objetos que assinalam o início das ficções, que por fraqueza tendemos a aglutinar como única e, por engano, consideramos factual. Homo Kosmos (cough cough) é um misto de energia revolucionária festiva e de trevas. E se é sobre a procura de mundos desconhecidos, é também sobre a procura de uma nova compreensão das narrativas históri-


cas; sobre uma reescrita da cultura capaz de lidar com as heranças de violência e opressão ainda agora menorizadas. A propósito, aliás, do abominável conceito de “nova normalidade”, adotado nestes tempos de pandemia: quão novo é este normal? O que é o normal??? O subtítulo (cough cough) talvez seja poeira na garganta, levantada pelo descolar da nave espacial anteriormente construída pela dupla, AfroUFO (para a 31ª Bienal de São Paulo), ou pela pandemia que abalou 2020, fazendo-nos engasgar nos problemas estruturais há muito anunciados. Que vão das repercussões em nível mundial da luta antirracista, após o assassinato de George Floyd nos EUA à escalada da extrema-direita organizada, apoiada em discursos de ódio bafientos e em ações inexplicáveis. Afinal, que mundo é este que escolhemos criar, hoje, quando estamos tão perto das cavernas como da luz que vem das estrelas? No percurso destacam-se as figuras citantes do traje da KKK, translúcidas e suspen-

sas, fantasmas do passado ou protótipos adormecidos numa linha de montagem. Assim como a pequena divisão anexa onde a luz negra faz reluzir as cores elétricas dos símbolos acumulados nas paredes, que juntamente com a projeção ao fundo criam um dos momentos de maior efeito visual, deixando-nos talvez na sala de comandos da nave, agora em circulação. Ainda assim, ao contrário de AfroUFO em que a obra é simultaneamente o objeto e o espaço expositivo, Homo Kosmos (cough cough) consiste num ambiente e é obrigada a lidar com o interior de um antigo armazém (ex-ateliê de Lagoa Henriques) transformado em white cube. Apesar da irreverente utilização das paredes ou da estrutura metálica do teto, a dimensão grotesca e extravagante da intervenção tropeça no embrulho branco, de módulos e paredes falsas, que neutraliza este e qualquer outro espaço. Pois, se as esculturas, pinturas e serigrafias, as Homo Kosmos (cough projeções em movimento e o som se cough), Yonamine e devoram, anulando a sua particulariTiago Borges dade objetual, propondo uma unidade Até 4/10/2020 – um ambiente que oscila entre a préGaleria da Avenida da Índia egeac.pt/equipamento/ -história, as cidades contemporâneas galeria-avenida-da-india/ e o espaço –, a força desta esmorece no diálogo com uma galeria tão ampla e arrumadinha. FOTOS: GUILLAUME VIEIRA


Editado pela pesquisadora e ativista C. Riley Snorton e pelo professor Hentyle Yapp, o livro Saturation: Race, Art and The Circulation of Value (Saturação: Raça, Arte e a Circulação de Valor) foi publicado este ano pelo New Museum em associação com a MIT Press. O título conta com colaborações de pesquisadores como Gayatri Gopinath, Sarah Haley, Denise Ferreira da Silva, Lisa Lowe e artistas como Candice Lin, Jeffrey Gibson, Tina Takemoto e M. Lamar, entre outros, em um exame rigoroso e complexo de como artistas e pesquisadores racializados ultrapassam, reiteram ou ficam condicionados às expectativas sobre seus corpos e discursos. Saturation é um debate sobre a questão racial nos frames da própria arte. De saída, a publicação reconhece que a inclusão de grupos “minoritários” nas instituições de arte – da produção artística aos cargos de poder –, ainda que estes tenham aumentado nos últimos anos, é insuficiente. Mas o maior mérito do conjunto de textos é colocar em questão a própria estrutura institucional e epistemológica da arte.

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Frame de Yo Ma Cracka (2017), do artista e músico M. Lamar M. Lamar, Yo My Cracka, 2017 (still). HD video, sound; 6:23 min. © M. Lamar. Courtesy the artist

more complex representation of sex. I’m still thinking through what I know of the communities—particularly artists of color—who were making work then and what people are doing now, and trying to calibrate that in my head. Since this panel is premised on a shift, I thought I would take us back to that period and talk about a video that I made in 1990 called Steam Clean.7 It was commissioned by Gay Men’s Health Crisis and the AIDS Committee of Toronto, as part of their Safer Sex Shorts. This tape was part of a number of low-budget videos that were commissioned, and the idea was that if you showed safer sex, if you showed pleasure in safer sex, then people would begin to use protection. The context was the AIDS crisis. HIV/AIDS was what both impelled and served to justify the depiction of

CRÍTICA

EXHIBITIONIST TENDENCIES

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SATURAÇÃO: RAÇA, ARTE E A CIRCULAÇÃO DE VALOR Ensaios reunidos em publicação do New Museum apresentam debate qualificado sobre as diferentes configurações da violência colonial e a diversificação racial nas dinâmicas do campo artístico

LEANDRO MUNIZ E PAULA ALZUGARAY

seLecT EXPANDIDA Leia o texto na íntegra em select.art.br/categoria/critica VOL. 9 / N. 48

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QUESTIONANDO A SUPREMACIA BRANCA O conceito de saturação é uma síntese feliz de um problema duplo: refere-se à materialidade das cores e pigmentos e à capacidade de uma solução ficar tão carregada, que se torna ineficaz ou imóvel, impedindo a adição de mais material. Assim como o conceito de raça é uma construção atrelada ao início do capitalismo, a forma como compreendemos o espectro cromático vem da óptica newtoniana, na qual o astrônomo define a ideia de saturação como o ponto em que as cores puras mais se diferem do branco no círculo cromático. O branco ocupa o centro dessa discussão, correspondendo à visão eurocêntrica e de dominação ocidental sobre outras culturas. Ao partir e questionar a lógica newtoniana que informa nossa compreensão das cores e, por analogia, das raças, Saturation mostra como as metodologias, as formas de construção de conhecimento e as instituições modelam nossa compreensão, sensibilidade e ação no mundo. Saturação é, portanto, um conceito que discute criticamente a supremacia branca no campo artístico, apontando a exaustão de certos códigos e os limites da própria ideia de representação, tão caro ao debate racial. DILEMAS DO EXCESSO E A SOCIOLOGIA DA EXCLUSÃO Os ensaios de Saturation compreendem a dimensão estrutural do debate sobre “diferenças identitárias”, como raça e gênero, junto a questões de concentração e distribuição de poder econômico e social, postos em perspectiva com problemas como globalização e hierarquias espaciais na geografia das cidades. A aceleração e o excesso do volume de trocas e interdependências alcançam quase todas as esferas da atividade humana. O consequente paradoxo entre a hibridização e a homogeneização de hábitos, costumes e valores sociopolíticos é equiparado, por Lisa Lowe, à “dialética da modernidade” de Theodor Adorno, segundo a qual novos modelos de miséria e destruição avançam em consequência das contradições implícitas nas promessas modernas de progresso e razão científica. Embora o comércio e a circulação global de bens, pessoas e valores tenham atingido uma condição sem precedentes no fim do século 20, a


origem da globalização estaria nas transformações políticas estruturais da Segunda Guerra Mundial. Ali estão implicados os movimentos de descolonização e, em tendência diretamente inversa, a ascendência dos Estados Unidos como potência global, impondo um “valor positivo” e modernizador como modelo universal de desenvolvimento. As implicações mútuas entre globalização, pensamento moderno e diferença racial são aprofundadas pela socióloga brasileira Denise Ferreira da Silva, em conversa com C. Riley Snorton, no texto Toward the End of Time (Rumo ao Fim do Tempo). Ferreira da Silva pontua que a diferença racial é montada com ferramentas do texto científico-social, e o que entendemos, rotulamos e chamamos de “modernidade” estrutura-se sobre a violência colonial e racial e sobre os discursos científicos de Galileu e Francis Bacon, no século 16. A despeito da demarcação dessas origens da modernidade e da globalização, a autora afirma que a racialidade “não é uma questão de tempo, está aquém e além do tempo”. Sua “sociologia da exclusão” aplica-se ao tempo presente, quando o pensamento decolonial chega ao museu, e percebe-se que entre suas funções historicamente primordiais está a construção do sentimento de pertencimento, entre determinados públicos, e de exclusão, entre outros. MUDANÇAS EPISTEMOLÓGICAS E AS ARMADILHAS DA REPRESENTAÇÃO Os ensaios reunidos em Saturation partem de questões específicas da arte para estabelecer conexões mais profundas com outros campos, de forma a desconstruir a naturalização do eurocentrismo – e, por extensão, da branquitude –, mostrando os limites inerentes da lógica de inclusão e diversidade, quando os critérios sociais para essa inclusão não são transformados e criticados. A ideia de representatividade, por exemplo, mostra limites claros por não atingir mudanças estruturais, além da reiteração dos “lugares” e expectativas sobre os agentes racializados. Publicado nos Estados Unidos, o livro pode ter frutos interessantes, quando analisado no Brasil. Os dois países compartilham de crises políticas em governos que têm por base comportamentos xenofóbicos, machistas e cujas meFOTOS: CORTESIA NEW MUSEUM/ MIT PRESS/ CORTESIA DO ARTISTA

Acima, a capa do livro Saturation: Race, Art, and the Circulation of Value

didas de proteção à população contra o novo coronavírus foram ineficazes. Os episódios descritos ao longo das páginas, como exposições sobre “negritude” curadas por pessoas brancas, artistas brancos representando o que se imagina de uma cultura negra, artistas negros reiterando uma certa imagem de negritude ou casos de censura e apagamentos, também encontram seu paralelo na cena cultural do Brasil. Em agosto, o debate sobre raça ressurgiu em torno de uma fala do curador da 34ª Bienal de São Paulo e do texto Saturation: Race, Art, da antropóloga Lilia Schwarcz sobre and the Circulation of o novo filme da cantora pop Beyoncé. Value As críticas, réplicas e tréplicas foram Edição de C. Riley devidamente realizadas, repercutidas Snorton e Hentyle Yapp Copublicado pela e comentadas, mas mostram que as MIT Press e pelo New estruturas mais enraizadas do racismo Museum ainda têm nuances a serem combatidas cotidianamente.


EM CONSTRUÇÃO

DEBATE RACIAL CHEGA AO MERCADO DE ARTE Galeristas racializados disputam espaço e visibilidade em novas galerias e residências artísticas

A obra Calçado de Monstro (2020), de Estileira, no showroom da Galeria HOA, inagurada em 2020

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HOUSE OF AYEDOUN É O NOME DA GALERIA RECÉMFUNDADA EM 2020 PELA MULTIFUNCIONAL IGI AYEDOUN – ARTISTA, EDUCADORA, PRODUTORA DE MODA E AGORA GALERISTA. A HOA surge como desdobramento de um ateliê compartilhado em casa de quatro andares na Vila Anglo, que se expandiu para shows de artistas como Ventura Profana e apresentações de ball rooms de famílias como a House of Mutatis. O espaço nasce com um projeto de funcionamento autossustentável, no qual a galeria tem o papel de monetizar e estruturar um programa de residências. O objetivo é introduzir artistas racializados no mercado de arte. “Passei o último ano e meio numa bateria de residências artísticas, entre a Espanha e o Marrocos, e lá entendi como residências artísticas podem criar estratégias autossustentáveis, sem nenhum apoio governamental. Então veio a

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ideia de ter uma galeria que mantém uma residência como lugar experimental, mas possa introduzir artistas no mercado”, diz Ayedoun à seLecT. “Observei o cenário da arte e os artistas racializados têm avanços incríveis, mas com pouca inserção no business, que também é parte da arte e eu vou ocupar esse lugar. Vou com unhas e dentes para construir uma estrutura de mercado mais igualitária.” Outros projetos de galerias focadas na representação de artistas racializados, geridos por pessoas racializadas e surgidos em 2020, são a 01.01 Art Platform, dirigida conjuntamente por Ana Beatriz Almeida, Keyna Eleison, Moisés Patrício, Camila Rocha Campos e João Simões, e a Diáspora Galeria, fundada por Alex Tso. Mesmo em meio à tragédia do coronavírus e o crescente desmonte das poucas ações públicas na cultura, iniciativas privadas surgem em busca de um campo artístico mais plural. LM

FOTO: DIVULGAÇÃO



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