A RT E D E S I G N C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A E T E C N O LO G I A
ASHLEY BICKERTON IVANA VOLLARO BERNARDO OYARZÚN RODRIGO ALMEIDA DIRCEU MAUÉS
OUT / NOV 2011
O idioma freestyle e anárquico não tem fronteiras
LATINOS FOR EXPORT YES, IMPORTÁVAMOS HERÓIS E COCA-COLA Y AHORA TENEMOS EXECUTIVOS E ARTISTAS PARA EXPORTAÇÃO SANTA BANDIDAGEM DIVINDADES PROTEGEM TRAFICANTES, PROSTITUTAS E MALANDROS
HABLA-SE PORTUNHOL
RUMO AO SUL CARLA PERNAMBUCO MARCELO GLEISER COCO FUSCO E CAROLINE RIBEIRO DESPEM A AMÉRICA
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I S SN
OUT/NOV 2011 ANO 01 EDIÇÃO 02 R$ 14,90
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Yellow canoe 2006, Pintura de Ashley Bickerton
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S, E Õ Ç I OS P X E , GAR S U W L O Ó MS R SH U A N R T A CON TEC N A I E D I E M A. QU E Ç R A A O I R H G G a DE OLO MEL N O grátis n s C S a d S E o I t a, O A, T cnologi e T sticos, e á l DANÇ NTRAR TUD e p t s r a A t tis de O tura e res, ar C a o r t i es e N r t i c s E L e É tro, as, gos, tes
lo ea ast os, catá isuais, T os, cine r c V v i i s s l bras de e ú t o m r m o A m c a o e c a o d iv s ec ca incent bibliot opédia ideote e v a d a Brasil m a m U o m n Encicl U . a s . r a s e r g r u o r do OM ult t. Um p eeàc esquisa s, CD-R t p r D a e V s à D a , o t interne s Ds lis dá aces s, jorna ídeos, C e o v f a , a z s r i a r g t o ó s al vi core nais, re entos. ltural v l r u a o t j C , s s ú o a a v ic It no ios. O acadêm ção de r a á t m n r e o f a docum ento e m i c e ficção e h n co antir o r a g a r pa contribuindo para a valorização da arte e da cultura no Brasil
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index
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ARTISTAS VIAJANTES O devaneio, o aleatório e o imprevisto como estratégias da arte contemporânea
fOTO g RAfIA DA SéRIE NOTÍCIA DA A MéRICA , DE PAULO NA z A RETh
38 CA PA
44 CULTURA
48 VISÕES DO PARAÍSO
54 PANORÂMICA
60 PORTfóLIO
Pratique portunhol
A ordem é exportar
Uma arte além-mar?
Santeria e banditismo
Bernardo Oyarzún
Escritores e artistas de Norte a Sul multiplicam os sentidos do idioma anárquico
O latino faz a América e dá um basta na supremacia imperial da linguagem
Artistas que trocaram os EUA e países da Europa por cantos exóticos ao Sul
Zé Pelintra, Ismael Sanchez e outros santos malandros que burlam a burocracia canônica
Artista chileno discute o eterno choque cultural entre indígenas e a colonização europeia
foto: cortesia galeria mendes wood
index 70
CompoRTAmenTo
Evas descamisadas Musas do futebol dão novo significado ao estereótipo do esporte masculino
66 CULTURA DIGITAL
94 moDA
Rapte-me, camaleoa
Tecnofagias latinas
O xale, o poncho e a roupa tradicional em novas versões
Tradição e inovação integram-se em projetos de Dirceu Maués, Edwin Sanchez e Arcangel Constantini
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DesIGn
Vida ao ar livre Matérias naturais e formas orgânicas no mobiliário de raiz brasileira
SEçõES 16 CARTAs | 18 eDIToRIAL | 21 nAve nA GAção | 32 TRIbos Do DesIGn | 36 mUnDo CoDIfICADo | 102 TeRRITóRIo 118 RevIews | 120 CRíTICA | 122 CoLUnAs móveIs | 126 seLeCTs | 128 obITUáRIo | 129 DeLeTe | 130 ReInvenTe
expediente
12
EDITOR E DIRETOR RESPONSÁVEL: DOmINgO ALzugARAy A Ay EDITORA: CÁTIA Á ALzugARAy ÁTIA A Ay PRESIDENTE-ExECuTIVO: CARLOS ALzugARAy A Ay DIRETORA DE REDAçãO: PAuLA ALzugARAy A Ay EDITORA-ChEfE: gISELLE bEIguELmAN EDITORA DE ARTES VISuAIS: ANgéLICA DE mORAES DIREçãO DE ARTE : RICARDO VAN STEEN REPóRTERES: JuLIANA mONAChESI E NINA gAzIRE COLABORADORES
André Passos, Carla Pernambuco, felipe Chaimovich, fernanda Chieco, Jorge Caldera, Jorge La ferla, Juarez fonseca, Lucas bambozzi, marcelo gleiser, maria Iovino, Nino Cais, Nilando beirão, Rene de Paula, Roberto Wagner e Vitor Amati
pROjEtO gRáfiCO
Cassio Leitão e Ricardo van Steen
DESigNERS
bruno Pugens e Daniel manzini
EStA t giáRiO tA
Adriano Vanni
pRODuçãO
Anna guirro
EDiçãO DE imAgEm
monica maia e Carla Romero
COpy-DESk E REviSãO
hassan Ayoub
pRé impRESSãO
Retrato falado
CONtA tAt tA AtO SERviçOS gRáfiCOS OpERAçõES LOgíStiCA E DiStRiBuiçãO vENDA AvuLSA mARkEtiNg
faleconosco@select.art.br gERENTE INDuSTRIAL: fernando Rodrigues COORDENADORA gRÁfICA: Ivanete gomes DIRETOR: gregorio frança gERENTE: Thomy Perroni ASSISTENTE: Luiz massa ASSISTENTES JR.: fábio Rodrigo e André barbosa COORDENADORA: Vanessa mira COORDENADORA ASSISTENTE: Regina maria ASSISTENTES: Karina Pereira e Denys ferreira gERENTE: Rosemeire Vitório COORDENADOR : Jorge burgatti ANALISTA: Cleiton gonçalves ASSISTENTE: bruna Pinheiro DIRETOR: Rui miguel gERENTES: Débora huzian e Wanderly Klinger REDATOR: Thiago zanetin DIRETOR DE ARTE: Charly Silva ASSISTENTE DE mARKETINg: marciana martins e marina bonaldo
puBLiCiDADE
DIRETOR NACIONAL: José bello Souza francisco gERENTE: Ana Lúcia geraldi SECRETÁRIA DIRETORIA PubLICIDADE: Regina Oliveira COORDENADORA ADm. DE PubLICIDADE: maria da Silva gERENTE DE COORDENAçãO: Alda maria Reis COORDENADORES: gilberto Di Santo filho e Rose Dias CONTATO ONT : publicidade@select.art.br RIO DE JANEIRO-RJ: DireONTATO tor de Publicidade: Expedito grossi gERENTES ExECuTIVAS: Adriana bouchardet, Arminda barone e Silvia maria Costa COORDENADORA DE PubLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.s: (21) 2107-6667 / (21)2107-6669 bRASíLIA-Df: gerente: marcelo Strufaldi; Tel.s: (61) 3223-1205 / 3223-1207; fax: (61) 3223-7732 SP/CAmPINAS: mário EsTel.ita - Lugino Assessoria de mkt e Publicidade Ltda.; Tel./fax: (19) 3579-6800 SP/RIbEIRãO PRETO: Andréa gebin - Parlare Comunicação Integrada; Tel.s: (16) 3236-0016 / 8144-1155 mg/bELO hORIzONTE: Célia maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./fax: (31) 3291-6751 PR/CuRITIbA: maria marta graco - m2C Representações Publicitárias; Tel./fax: (41) 3223-0060 RS/ PORTO ALEgRE: Roberto gianoni - RR gianoni Com. & Representações Ltda. Tel.: (51) 3388-7712 PE/RECIfE: Abérides Nicéias - Nova Representações Ltda.; Tel./fax: (81) 3227-3433 bA/SALVADOR AL ALVADOR : Ipojucã Cabral - Verbo Comunicação Empresarial & marketing Ltda.; Tel./fax: (71) 3347-2032 SC/fLORIANóPOLIS: Paulo Velloso - Comtato Negócios Ltda.; Tel./ fax: (48)3224-0044 ES/VILA VELhA: Didimo benedito - Dicape Representações e Serviços Ltda.; Tel./fax (27)3229-1986 SE/ARACAJu: Pedro Amarante - gabinete de mídia - Tel./ fax: (79) 3246-4139/9978-8962 mARKETINg PubLICITÁRIO - DIRETORA: Isabel Povineli gERENTE: maria bernadete machado COORDENADORA: Simone f. gadini ASSISTENTES: Ariadne Pereira, Laliane barreto e marília Trindade 3PRO DIRETOR DE ARTE: Victor S. forjaz REDATOR: Alessandro de Araújo
ASSiNAtu NA RAS NAtu
DIRETOR: Edgardo A. zabala DIRETOR DE VENDAS PESSOAIS: Wanderley Quirino gERENTE DE ASSINATuRAS: marcelo Varal SuPERVISORA DE VENDAS: Rosana Paal DIRETOR DE TEL.EmARKETINg: Anderson Lima gERENTE DE ATENDI A mENTO AO ASSINANTE: Elaine basílio gERENTE DE TRADE mARKETINg: Jake Neto gERENTE DE PLANEJAmENTO: Reginaldo marques gERENTE DE OPERAçõES DE ASSINATuRAS: Carlos Eduardo Panhoni gERENTE DE TEL.EmARKETINg: Renata Andrea gERENTE DE CALL CENTER: Ana Cristina Teen gERENTE DE PROJETOS ESPECIAIS: Patrícia Santana
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Valorizar as conquistas brasileiras e reconhecer as suas. Estilo é ter um banco diferente que liga tudo isso.
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colaboradores
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André Passos
Carla Pernambuco
Fotógrafo com formação em Londres, trabalhou para publicações internacionais como Harper’s Bazaar e Purple. – moda p 94
Há 16 anos é chef e proprietária do restaurante Carlota, com filial no Rio. Apresenta o programa de TV Brasil no Prato, na FOXß. – colunas móveis p 123
Fernanda Chieco
Jorge Caldera
Artista visual pós-graduada pelo Goldsmiths College, de Londres, está em residência no Icheon Art Platform, na Coréia do Sul. – mundo codificado p 36
Escritor e editor. É autor de História do Brasil com Empreendedores (2009) e Mauá, Empresário do Império (Cia. Das Letras, 1995). – colunas móveis p 125
Maria Iovino
É professor titular de física e astronomia no Dartmouth College, EUA. Seu livro Criação Imperfeita, foi traduzido para 12 línguas. – território p 102
Curadora e autora de livros sobre artistas da América Latina, coordenou na Colômbia a pesquisa de documentos ICAA/MFAH. – review p 119
Ana Valdés Uruguaia radicada na Suécia, é antropóloga, escritora e curadora. Trabalha com cartografias cidadãs e geografias insubmissas. – selects p 127
Nirlando Beirão
Rene de Paula Jr.
Jornalista e escritor, dirige a revista Status. Nomeado, pelo Ministério da Cultura da França, Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres. – cultura p 44
Descobriu a internet em 1995 e se encantou. De agência em agência, vem compartilhando experiências sobre o impacto da internet. – colunas móveis p 124
Rodrigo Macieira Fã da música e da literatura feita pelos hermanos, desde 2007 mantém o coletivo www.sinopuedobailar.com, focado em cultura latino-americana. – selects p 126
Solange Porto
Vitor Amati
É set designer e produtora de arte para cinema, publicidade e editorial. Cursou EBA/UFRJ e EAV Parque Laje. – d e s i g n p 86
É diretor de cinema e fotógrafo. Atualmente trabalha também com publicidade. – panorâmica p 54
Lucas Bambozzi
Nino Cais
Roberto Wagner
Midiartista e curador, seu projeto Mobile Crash (2009) recebeu Menção Honrosa no prestigioso prêmio do Ars Electronica. bienal de istanbul – exclusivo on - line
Artista visual, participou de exposições no Brasil e no exterior. Em 2009, foi premiado pelo 15º Salão da Bahia. – cultura p 44
Fotógrafo, membro do coletivo SX-70, desde 2000 colabora com revistas como Vogue, Trip, Mag e Época Negócios. – d e s i g n p 86
Jorge Laferla
Juarez Fonseca
Professor titular da Universidade de Buenos Aires, é pesquisador e autor de mais de 25 livros sobre cinema e vídeo. – colunas móveis p 122
Crítico de música, produtor de shows e agitador cultural, foi editor do caderno Cultura do jornal Zero Hora (Porto Alegre). – música p 106
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Marcelo Gleiser
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cartas
Gostaria de parabenizá-los pelo trabalho relevante e realmente inspirador que fazem na seLecT. Por que vocês não disponibilizam a revista para Android? Assim irão atingir outro público que também se alimenta de cultura, tecnologia e criatividade. Roger Perisson Cuiabá Parabéns pela revista e pela proposta editorial e gráfica. Sobre apropriações e recriação vale lembrar o escritor Valêncio Xavier (1933-2008), autor de O Mez da Gripe. Vocês conhecem, não?! O escritor foi um pioneiro na arte da apropriação de imagens e textos de várias procedências, recombinando significados e criando uma obra original. Será que Kenneth Goldsmith aprovaria? Parabéns a todos! Ricardo Humberto Curitiba Só recentemente consegui parar e esgotar toda a delícia da seLecT. Está BÁRBARA! Parabéns! Não dá vontade de largar. Vocês arrebentaram. Heloísa Buarque de Hollanda, crítica literária e professora de Teoria Crítica da Cultura na Escola de Comunicação da UFRJ A revista é um grande espetáculo. João Camargo, empresário
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Parabéns pela revista!!! Adorei!!! Mesmo!!!! Erika Palomino, jornalista e crítica de moda Parabéns pelo projeto, precisávamos de uma revista pilotada por pensadores de alto nível como vocês. Tenho certeza que será um sucesso. Marcy Junqueira, diretora da Pool de Comunicação A revista ficou ótima, porque não é óbvia, traz muita coisa que a gente nem sabe direito o que é – assim, fica obrigado a ler! Parabéns por esta iniciativa! Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Ohtake Parabéns a toda equipe da seLecT pela coragem e ousadia de lançar uma revista de cultura em nosso país. Fernanda Feitosa, diretora da SP-Arte Impecável. Faltava esse bom produto no mercado parabéns. Isabella Prata, diretora da Escola São Paulo Vi, li, senti!!! Revista maravilhosa! Parabéns e sucesso. Fabio Cimino, galerista Ainda não vi a revista fisicamente falando, mas vi na internet: está excelente! Alcino Leite Neto, editor do PubliFolha Tenho acompanhado de
longe os grandes lançamentos de Alzugaray/Van Steen. Fico feliz em ver como vocês estão cada vez melhores. Espero que a seLecT faça MUITO sucesso! Marilia Muylaert, publisher Peguei a revista, bem bonita e oportuna nesse momento de mercado aquecido. Parabéns! Ronaldo Bressane, escritor Sucesso, a revista é incrível e a equipe sem comentários! Coragem. Sonia Guggisberg, artista Adorei a seLecT. Belo time, ótimas pautas e um baita design. Tenho certeza de que essa nova plataforma vai mexer profundamente com o segmento. Helio Gomes, jornalista Linda e muito legal a revista! Todos os textos são bons, mas, amizade à parte, o do João é excelente! Arthur Casas, arquiteto Parabéns pela seLecT, achei muito bem refletida e feita. Mario Gioia, curador Tive a oportunidade de ler a edição número zero e fiquei realmente impressionada. Os assuntos muito interessantes, além da ótima qualidade do texto e a profundidade com que vocês abordaram cada matéria. Gostaria de parabenizar
a toda a equipe. Queria destacar a matéria “O fim do digital”, que me impressionou bastante por conseguir fugir do enorme lugar comum que cerca esse assunto. Como publicitária, estou acostumadíssima a ouvir coisas sobre o fim do digital, on-line vs off-line, etc., e todas elas são muito repetitivas e chatas. Quando vi a chamada de capa, achei que não teria paciência para ler mais uma linha. Só dei o braço a torcer porque conheço e admiro o trabalho da Giselle, então resolvi dar uma chance e a leitura foi surpreendente, enriqueceu um assunto já saturado de uma forma muito interessante. Parabéns pelo trabalho que vocês estão realizando. Raquel Cardoso, publicitária
Fiquei sabendo da revista por uma amiga, mas depois é que fui conhecer melhor na net. Sempre leio tudo da Paula Alzugaray na seção de artes visuais da IstoÉ e, quando descobri a revista, fiquei maravilhada! Aguardo o lançamento do próximo número. Sofia Medeiros, leitora Gostei tanto da nova revista, precisamos de profissionais que pensam em projetos como esse. Parabéns. José Antonio Marton designer
escreva-nos rua itaquera 423, pacaembu são paulo SP cep 01246-030 revistaselect revistaselect www.select.art.br faleconosco@select.art.br
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CIA DE FOTO
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editorial Paula Alzugaray
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Linguagens Reinventadas Giselle Beiguelman
Floto voi allén lejos. Hónder en niebla plurcambiocolor veo ciudá. Sas biopalacios i biochozas, de armazón I pienso. Xul Solar
Faz quase cem anos que Xul Solar inventou o neocriollo, ou criol, idioma que tem por base o espanhol e o português, mas que incorpora também o inglês, o francês, o alemão, o latim e o grego. Emblema utópico da unificação dos povos do mundo – a partir de bases latinas –, o neocriollo era, mais que uma parábola da modernidade, uma atitude visionária que anunciava o que estava por vir. Um dia, as crianças poderiam inventar novas linguagens, com regras próprias, quando trocassem mensagens de texto pelo celular ou entrassem em chats na internet. O criol de Xul Solar – e, por que não, também os jogos de linguagem de Borges, Rosa, Augusto e Haroldo de Campos – vem desaguar no portunhol selvagem de Douglas Diegues, e na lengua izquierda de Bernardo Oyarzún. O idioma de Oyarzún, artista chileno contemplado no portfólio desta segunda edição de seLecT, nasce da articulação de línguas nativas americanas e europeias vinculadas com a colonização da América. “É uma forma de contar a história da América por meio do choque de línguas, cujo resultado conhecido para as nativas é a atrofia de seu pensamento e fala”, diz o artista para a jornalista Juliana Monachesi. seLecT #02 elege o portunhol como signo das hibridações, como celebração da mistura, da colagem, das multilínguas, das reinvenções, dos diálogos. Celebramos também os viajantes que, afinal, são os grandes responsáveis pela relativização de nossas certezas. Isso conta a reportagem “Artistas viajantes abrem trilhas”, de Angélica de Moraes. Celebramos os roteiros do Sul e a mais longa linha de ônibus da América do Sul: SP-Lima, em 5.917 quilômetros, ao som de tantos idiomas amazônicos quanto o tupi-guarani, o mbyá, o kaiowá, o pai tavytera, o chiripá, o omagua, o ñengatú, o muinane, o miraña etc. etc. Si, en seLecT habla-se portunhol, guaranhol, lengua izquierda e variações. O Brasil reinventa o portunhol em cada quilômetro de sua fronteira, assim como a América reinventou o spanglish, quando o furacão Irene passou por NYC, em agosto. No dia seguinte ao pronunciamento do prefeito Mike Bloomberg em broken espanhol, o Twitter mostrou a popularidade absoluta do “spãnish”. O então recém-criado domínio @ElBloombito conquistou 15 mil seguidores em três dias. No fechamento desta edição, em 16 de setembro, já tinha chegado a 22.621. Comprovando a força da hibridação, o @ElBloombito foi considerado pelo The New York Observer “the best thing about hurricane Irene”.
Ricardo van Steen
Angélica de Moraes
Juliana Monachesi
Nina Gazire
Bruno Pugens
Paula Alzugaray Diretora de Redação
Anna Guirro
P S. Contam lendas da internet que a última sexta-feira de outubro é o portunhol day. Uni-vos!
Ilustrações: Ricardo van Steen, a partir do aplicativo face your mangá
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Hassan Ayoub
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notícias + tendências + transcendências
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Livros
Culinária de laboratório A gastronomia molecular chega ao mercado editorial pelas mãos do ex-cientista-chefe da Microsoft , rebatizada de cozinha modernista Como dominar técnicas de cozimento usando nitrogênio líquido, centrífugas industriais e equipamentos de esterilização de material cirúrgico? Após a leitura das 2.438 páginas dos cinco volumes de Modernist Cuisine, os segredos das estrelas da cozinha molecular mundial estarão desvendados. Talvez seja a obra definitiva da culinária de laboratório, iniciada pelo catalão Ferran Adrià, nos anos 1990. Além de analisar técnicas e ingredientes, a publicação tem 300 páginas de receitas originais ou adaptadas de master chefs como Grant Achatz, Adrià e Heston Blumenthal. Para ilustrar, fotografias micro e macroscópicas levam o leitor ao desconhecido interior dos ingredientes, inatingíveis a olho nu.
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L i v ros t raze m foto g rafi as qu e desv e n dam as r e aç õ es qu í m i cas e fí si cas dos a li m e n tos
O título mais apropriado talvez fosse “cozinha pós-modernista”, porque integra ciência e tecnologia. Contudo, inegavelmente, os autores falam com propriedade: Nathan Myhrvold estudou matemática, física teórica, cosmologia e teoria quântica, esta em pós-doutorado com o físico Stephen Hawking, na Universidade de Cambridge. Ex-cientista-chefe da Microsoft, Myhrvold estudou culinária na França e abriu uma empresa de investimentos em invenções. Chris Young e Maxime Bilet foram chefs do The Fat Duck, melhor restaurante de cozinha molecular da Inglaterra. PA
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d es erto e c huva , d e k i l i an g l asn e r
Design
Lógica ambiental Mostra de design na Europália, em Bruxelas, deixa de lado o viés artesanal brasileiro Em meio às incertezas que rondam o festival belga Europália, que este ano tem como país homenageado o Brasil, uma mostra de design brasileiro destaca-se na programação. Intitulada Design Brasil, a exposição parte do conceito Espontaneidade, Entusiasmo e Alegria: O outro de nós, estabelecido pelo curador-geral do evento, o artista Adriano de Aquino, para apresentar o que se produz em design no País hoje, deixando de lado a produção artesanal. “A exposição reúne apenas produtos que estão efetivamente no mercado e que possuem um compromisso com o acabamento, a criatividade, a solução industrial lógica e com o respeito ambiental”, afirma o curador Túlio Mariante. Como exemplos, ele cita o ventilador de teto Spirit, de Guto Índio da Costa, o Design Brasil, de 12 de dosador de espaguetes Panovembro 5 de fevereiro. zzo, de Pedro Braga Leitão, o Design Vlaanderen, Bruxelas banco Do-In, de Fred Gelli, www.europalia.be e o anel Puzzle, de Antonio Bernardo. JM po ltro na ch ifruda , de sérgio ro dr i g u es , incluída no núcleo A Excel ência da M ade i ra
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Exposição
Vitalidade do desenho contemporâneo O recifense Kilian Glasner abre primeira individual em São Paulo com conjunto vigoroso de trabalhos Há certos tabus que demoram a ser derrubados. Um deles, remanescente da hegemonia da arte conceitual, era que saber desenhar não estava com nada. O negócio era pensar. Daí que passamos por enorme safra de maus desenhistas intencionais e, até, por desenhos de nível subescolar com pretensão (aceita!) de conceituais. O conjunto de obras que o artista recifense Kilian Glasner, 33 anos, inaugura na sua primeira individual em São Paulo é ótima demonstração de que o circuito superou o tabu antidesenho que assolou a contemporaneidade. Há vida inteligente no desenho. Sempre houve, aliás. Desde sua instalação Rua do Futuro (Rumos Visuais Itaú Cultural, 2009) Glasner afirmava, com carvão sobre muros
de alvenaria, estar absolutamente seguro dos recursos do traço e saber propor uma poética visual eficiente, descolada da mera representação. Essa característica se acentuou agora. Os desenhos com pastel seco sobre papel trazem esmagadoras perspectivas, que remetem à impermanência dos caminhos humanos, às escolhas e desvios da estrada, ao futuro nebuloso e à luta de auNatureza Impermanente tossuperação. Deserto e Chuva Kilian Glasner, de 8 de tem estrada feita de raias de outubro a 8 de novembro, piscina sobre mar que se abre Galeria Moura Marsiaj, Rua como se tocado pelo cajado de Mateus Grou, 618 São Paulo Moisés. Boas ressonâncias de Anselm Kiefer. AM
bienal
Arte como solução (e conexão) Bienal VentoSul chega à sexta edição e propõe a arte como espaço de reflexão para a crise
O bra d e a l e jan dro paz n a b i e n a l ve n tosu l
Com o conceito Além da Crise, a Bienal VentoSul chega à sua 6ª edição assumindo como sede a cidade de Curitiba e ocupando diversos espaços da capital paranaense. O tema procura tratar diferentes concepções da palavra Crise, presente nos discursos de diversos campos do conhecimento e da mídia. O conceito foi definido pelos curadores Alfons Hug, que também foi curador da 25ª e da 26ª Bienal de São Paulo, e Ticio Escobar, que esteve à frente da curadoria da Bienal do Mercosul na 2ª e na 5ª edição. “A arte atua tanto aquém quanto além da crise. Aquém porque é por ela afetada; além porque oferece alternativas à sociedade. Obviamente, os artistas que convidamos não trabalham o tema de uma forma panfletária ou sociológica, mas a partir de reflexões estéticas complexas e ambíguas”, 6º Bienal VentoSul, até explica o curador Alfons Hug, referindo-se a Li20 de novembro, Museu liana Porter, John Bock, Nelson Félix, Patrick HaOscar Niemeyer, Rua milton, Alejandro Paz e Cristina Canale, entre os Marechal Hermes, 999, 80 artistas de 37 países selecionados. O trabalho Centro Cívico, Curitiba de Cristian Segura escapa ao perímetro urbano da (PR), e em diversos locais cidade e instaura um circuito de vídeos de artistas da cidade argentinos em ônibus que fazem o trajeto Curitiba-Porto Alegre. Ao instaurar um circuito Sul, o www.bienaldecuritiba.com.br trabalho reflete sobre os limites geográficos das duas bienais, Ventosul e Mercosul. NG
À esquerda: divulgação e; À direita: divulgação
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Dança
Aproximações cênicas Bienal Internacional de Dança do Ceará completa 15 anos, lpromovendo cruzamentos entre a cena cearense e artistas de loutros cantos do mundol
Um lugar familiar que todos reconhecemos, mas onde nunca estivemos, é evocado pelos quatro personagens da peça Alaska, coreografada pela argentina Diana Szeinblum e apresentada na oitava edição da Bienal Internacional de Dança do Ceará. Entre intensa programação de residências, debates, workshops e espetáculos, este ano o evento recebe coreógrafos e bailarinos da Bélgica, França, Israel, Argentina e Brasil. Com a presença de algumas das mais influentes personalidades da dança contemporânea belga, como Michèle Anne De Mey e Pierre Droulers, a Bienal comemora 15 anos de atividades – decisivas para a formação de artistas, para a aproximação da dança com outras linguagens artísticas e para a visibilidade da exuberante cena local. Sob a direção de David Linhares, o evento é responsável ainda pela criação da revista Olhar Ce e do programa Terceira Margem, exibido quinzenalmente pela TV O Povo. Graças à Bienal, a dança no Ceará está na tevê, nas bancas de jornal e em um circuito de oito cidades do interior. PA
alaska, coreografia de diana szeinblum, é um dos destaques
8º Bienal Internacional de Dança do Ceará, de 21 a 29 de outubro, em Fortaleza, Barbalha, Guaiúba, Itapipoca, Juazeiro do Norte, Limoeiro do Norte, Nova Olinda, Paracuru e Sobral. www.bienaldedanca.com
mídia
Dramaturgia indígena Índios do norte do Peru se preparam para realizar a primeira radionovela em idioma awajún do mundo
E t n ia awa j ú n r e p r ese n tada e m radi on ove l a
Radionovelas en la Selva Norte del Peru é um projeto dos comunicólogos Matías Vega e José Guillermo Guevara financiado pelo Prince Claus Fund. Os pesquisadores vêm trabalhando desde julho junto a comunidades indígenas da Amazônia peruana para produzir a primeira radionovela falada no idioma da etnia awajún. O projeto tem como objetivo a realização e emissão de uma novela de rádio baseada na vida cotidiana e do imaginário local. “Os ouvintes ficaram envolvidos ao se identificar com os enredos, personagens, locais, linguagem e humor. Os temas de fundo são o multiculturalismo, o conflito entre tradição e modernidade e as implicações de uma vida democrática”, explicam os coordenadores do projeto, que ainda está em fase de produção. Os awajún não só produzirão a novela, como também escreverão os roteiros. A escolha do rádio como mídia deu-se pela dificuldade de acesso e às grandes distâncias entre as comunidades indígenas do norte do Peru. N G
fotos Jazmín Tesone (no alto) e Jeffrey S. Cremer (acima)
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KILIAN GLASNER
NATUREZA IMPERMANENTE ABERTURA
EXPOSIÇÃO
08/10/2011 08/10 A 08/11 SÁBADO / DAS 11 ÀS 15HS
TEXTO CRÍTICO DE DANIELA BOUSSO GALERIA
TEL – 55 11 3031 1061 RUA – MATEUS GROU, 618 – PINHEIROS/SP – CEP – 05415-040 HORÁRIOS – TERCA A SEXTA DAS 10:30H ÀS 19H, SÁBADO DAS 12 ÀS 18H
navegação
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exposição
Zurique expõe artista uruguaio Wifredo Díaz Valdéz desconstrói objetos do cotidiano rural, reverberando tradição que deriva de Torres-García
W i f r e d o D í a z Va l d é z : Construir Desconstruindo, até 6 de novembro, Daros Latinamerica/Hubertus Exhibitions, Zurique, Suíça
Nas mãos do artista uruguaio Wifredo Díaz Valdéz (1932), objetos de madeira do cotidiano rural do seu país se desdobram em várias formas. Ele subverte a simplicidade utilitária das peças, transformando-as Ciclo Meridianos, em esculturas de precisos encaixes e jogos de volumes e planos. Algo que remete ao legado do também até 29 de novembro, MAMuruguaio Joaquin Torres-García (1874-1949), pioneiro da abstração geométrica na América Latina. Mas, RJ/Oi Futuro e CCBB-RJ, ao contrário de Torres-García, Valdéz tem a trajetória quase toda inscrita no circuito uruguaio, com espoRio de Janeiro, Brasil rádicas presenças no exterior, como ocorreu na 4ª Bienal de Havana (1991). Daí a importância da iniciativa da Casa Daros de promover a primeira apresentação desse notável artista ao público europeu. www.daros-latinamerica.net A exposição frisa o foco da instituição suíça no resgate histórico, contextualização e estudo da arte latina. Inaugurada ao público em 2002, em Zurique, a Casa Daros atualmente restaura no Rio de Janeiro um prédio do século 19, no bairro de Botafogo, para abrigar sua sede brasileira, em 2012. A Coleção Daros Latinamerica possui um dos mais abrangentes acervos de arte Arquitetura contemporânea da América Latina na Europa. Soma cerca de mil obras de mais de uma centena de artistas, produzidas desde a década de 1960 até a atualidade. Enquanto não inaugura seu programa de exposições no Brasil, a Daros realiza no Rio um ciclo de cinco encontros com dez artistas representados em sua coleção. Os debates do ciclo Meridianos estão sendo gravados e reunidos em DVD e em Ricardo Legorreta ganha prêmio internacional uma publicação impressa, para distribuição em bibliotecas. AM pelo conjunto da obra
Modernismo e tradição mexicana O mexicano Ricardo Legorreta, um dos mais célebres arquitetos latino-americanos, recebeu o 2011 Praemium Imperiale, na solene companhia de Bill Viola (categoria pintura) e Anish Kapoor (escultura). Legorreta ficou conhecido internacionalmente pelos amplos pátios com fontes e pelas fachadas e colunas coloridas do Camino Real Hotel (1968), na Cidade do México, construído por ocasião das Olimpíadas e considerado um dos principais exemplos da arquitetura moderna mexicana. Entre os arquitetos que já receberam o prêmio de 15 milhões de yens (US$ 182 mil), outorgado anualmente pela Japan Art Association, estão Zaha Hadid (2009), Oscar Niemeyer (2004) e Rem Koolhaas (2003). A Catedral Metropolitana (1994), em Manágua (Nicarágua), a Faculdade de Administração EGADE (2001), em Monterrey (México), e o Juarez Complex (2003), na Cidade do México, estão entre seus principais projetos, sendo esse último uma ambiciosa revitalização do centro histórico da capital mexicana, que estava abandonado desde a destruição provocada pelo terremoto de 1985. JM
no alto: DIVULGAÇÃO; CRÉDITO: acima: amanda delorey/ society of architectural historians
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Rua das Acácias, 104 - Gávea Rio de Janeiro - RJ Tel. 55 21 2521-0426 www.silviacintra.com.br
Amilcar de Castro
Lucia Koch
Ana Maria Tavares
Luiz Ernesto
Carlito Carvalhosa
Marcius Galan
Chiara Banfi
Agenda 2011/2012
Maria Klabin
Cinthia Marcelle
Mariana Galender
Outubro
Cristina Canale
Miguel Rio Branco
Novembro - Maria Klabin
Daniel Senise Debora Bolsoni Henrique Oliveira Laercio Redondo
Nelson Leirner
Dezembro - Art Basel|Miami Beach - Solo
Paisagem Submersa Pedro Motta Rodrigo Matheus
- Ana Maria Tavares
project por Cinthia Marcelle Janeiro
- Exposição de Verão
Leda Catunda Untitled-1 1
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Artes visuais
Sinal de fumaça Ronald Duarte constrói ponte conceitual entre rituais bélicos de origem religiosa, a arte da performance e o cotidiano de violência do Rio de Janeiro
Na série Guerra é Guerra, o artista carioca Ronald Duarte relaciona temática afrorreligiosa, arte contemporânea e violência. Na ação Nimbo Oxalá, 20 participantes munidos de extintores de incêndio produzem uma imensa nuvem de cor. O trabalho é uma metáfora das relações entre o sagrado e o profano, representado na figura de Oxalá, entidade do candomblé criadora do mundo e dos seres humanos. A partir de 20 de outubro, Duarte apresenta mostra individual na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro. A mostra, intitulada Sete, reúne sete desenhos feitos com fogo, sete fotos de grandes dimensões de intervenções Sete – Ronald Duarte, urbanas, incluindo os registros da perforde 20 de outubro a 4 de mance Nimbo Oxalá, que, desde 2009, já dezembro, Casa de Cultura foi encenada na Áustria, Espanha, InglaLaura Alvim, Av. Vieira terra, Holanda, Argentina e Brasil, duranSouto, 176, Rio de Janeiro te a 29ª Bienal de São Paulo. NG
Estética ultraco lo rida co mo fi lt ro de e n e rg i a positiva e proteção astro ló g i ca
moda
Poder do pensamento X-Men, astrologia e a física quântica dão a tônica na coleção primavera/verão 2011-2012 de Gloria Coelho
N imbo Ox a l á : t e m át i ca af ror r el i gi osa n a arte co ntempo rânea
É o clima de psicodelia dos anos 1960 e 1970 a grande fonte de inspiração da coleção primavera/verão 20112012 da estilista Gloria Coelho. Não somente sua estética ultracolorida, mas principalmente a espiritualidade acentuada dos anos de Flower Power, que, segundo Gloria Coelho, voltam com toda força neste início de século. “Nesta coleção mesclamos a energia da passagem do planeta Netuno pelo signo de Peixes – que traz de volta a compaixão e a solidariedade – com a estética dos superheróis de X-Men”, diz a estilista. Ela concentrou toda a força positiva dessa fase astrológica para criar a coleção. “São roupas capazes de curar. As cores e os materiais, como os cristais e as lantejoulas, funcionam como filtros de energia positiva e forma de proteção”, afirma. Segundo Gloria Coelho, conceitos como física quântica permitem entender como a intenção do pensamento pode ser transformada em energia a ser compartilhada entre as pessoas. NG À esquerda, divulgação; À direita, Domingos Guimaraens e gloria coelho/divulgação
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KOTA EZAWA MARIANA TASSINARI THEO CRAVEIRO CHRISTIAN SCHOELER DANIEL STEEGMANN MARINA PEREZ SIMÃO JEN DENIKE KEVIN FRANCIS GRAY LETICIA RAMOS MARCOS BRIAS DIEGO SINGH LUCAS ARRUDA PAULO NAZARETH THIAGO MARTINS DE MELO ANA DIAS BATISTA RUA DA CONSOLAÇÃO, 3358, JARDINS, SÃO PAULO, SP, BRASIL, 01416-001, + 55 11 3081 1735 WWW.MENDESWOOD.COM, INFO@MENDESWOOD.COM | SEGUNDA A SÁBADO, DAS 10 ÀS 19HS
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internet
seLecT nas bancas, no iPad e on-line A revista do século 21 atua em múltiplas plataformas
Enfim, estamos on-line. Como tudo que diz respeito a seLecT, optamos por um caminho não muito convencional, especialmente para quem nasceu, como nós, em 2011: começamos no formato impresso, chegamos ao iPad e depois lançamos o site. Em um primeiro momento, nossos leitores ficaram intrigados. Afinal, uma revista lançada a partir da discussão sobre a emergência de uma extranatureza e que, no seu primeiro número, debateu os novos modelos de criatividade – com a chamada “Abaixo a originalidade!” e uma capa que clonava uma edição da Vogue americana – tinha de estar na web. E ainda não estava... Mas aqui chegamos e por vós esperamos com uma série de conteúdos exclusivos e abertos na internet, no site produzido e desenvolvido pela Ginga. Na versão para iPad, o leitor encontra nosso conteúdo trabalhado especificamente para essa plataforma. seLecT é uma revista sincronizada com o século 21. Em cada um de seus formatos, procura entregar-se ao leitor explorando o melhor que cada uma de suas interfaces pode oferecer. Reverbera, assim, o espectro de uma nova ecologia midiática produzida por uma multidão inteligente com quem nos interessa falar, ouvir e dialogar. www.select.art.br
arte
Astros de primeira grandeza
Fundação Bienal de São Paulo exibe coleção sueca que reúne grandes nomes da arte contemporânea dos EUA O próprio Gunnar Kvaran, curador do Astrup Fearnley Museum of Modern Art, admite: desde que o museu foi inaugurado, em Oslo (Suécia), em 1993, nunca sua importante coleção de astros da cena artística contemporânea teve mais de dois mil metros quadrados de espaço para ser exibida. Desde o dia 30 de setembro, no entanto, um recorte dessa coleção ocupa 15 mil metros quadrados do pavilhão da Fundação Bienal de São Paulo. É um grande evento e um evento grande. Imperdível. A mostra Em Nome dos Artistas, com curadoria de Kvaran, foi agendada pela Bienal paulistana para assinalar as comemorações dos 60 anos da Em Nome dos Artistas, mais longeva bienal internacional de artes depois da Bienal de Veneza. até 4 de dezembro. Centrada nos artistas norte-americanos presentes na coleção sueca, Fundação Bienal de a exposição tem obras emblemáticas de Jeff Koons, Charles Ray, Cindy São Paulo Parque do Sherman, Doug Aitken, Matthew Barney, Richard Prince e Robert Gober, Ibirapuera, São Paulo. entre muitos outros nomes. Damien Hirst comparece com várias obras, entre elas a famosa e polêmica escultura Mother and child divided, 1993 http://bit.ly/qkNoFl (Mãe e filho divididos), com vaca e bezerro cortados longitudinalmente e imersos em aquários com formol.(AM) detalhe da obra Triple Hulk Elvis III, de Jeff Koons/divulgação
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A n cest ra l Estética s d a d o m i n a ç ã o e d a assimila ç ã o apa re ce m aq ui , revelando as co n trad i ç õ es do processo d e co lo n i zaç ã o Inflatable Trophy Mount Tiger Head Taxidermia inflável para quem
tem (ou quer presentear alguém que tenha) espírito caçador e consciência ecológica; fabricado por Big Mouth Toys
Caneta crocodilo Feita com marfim resinado que imita pele de crocodilo, esta caneta da Faber-Castell é prática e pode ser encontrada tanto no modelo tinteiro quanto no esferográfico Cadeira Cheaney Inspirada por materiais
e habilidades de fabricantes de calçados e selas da Inglaterra Central, a cadeira da designer britânica de móveis Alexena Cayless é feita artesanalmente
Sofá In Duplo Assinado por Anne-Mette Jensen e Morten Ernst, o sofá tem formas orgânicas que remetem ao novo modernismo do design dinamarquês dos anos 1950; fabricado por Erik Jorgensen, tem pés de alumínio
Bone Lounge Chair Estruturas ósseas são a
inspiração desta cadeira assinada pelos alemães Simone & Christoph Voelcker e construída em máquina de prototipagem rápida, o que elimina o desperdício de material e diminui os custos de logística
Banquinho do Seu Fernando Fernando Rodrigues, artesão alagoano da Ilha do Ferro, projetava seus objetos a partir de troncos, raízes e galhos desprezados Cabideiro Ghost Antler Para criar esse cabideiro, o
designer Erich Ginder inspirou-se na moda dos caçadores que mantinham o troféu empalhado em cima da lareira. Muito ecológico, ele não matou nenhum bichinho ao criar a peça
Poltrona SK Fish Bone
O formato de esqueleto de peixe permite encaixes que tornam a cadeira 100% ecoamigável: a criação do designer francês Nicolas Marzouanlian não leva cola nem parafusos
Capacete Cracked Egg Shell Certificado para uso por skatistas, ciclistas e snowboarders, este capacete de alto impacto amolda-se à cabeça do usuário, tem forro absorvente e não quebra como casca de ovo
Cadeira de balanço J.J. Foi-se o tempo em que as cadeiras
de balanço eram coisa da vovó. Projetada pelo designer italiano Antonio Citterio, possui design moderno e minimalista, com acabamento de pelo de carneiro da Mongólia
LILIANA PORTER The Enemy e Outros Olhares Oblíquos Curadoria de Adolfo Montejo Navas | Exposição até o dia 22 de outubro
MÔNICA NADOR Autoria Compartilhada De 19 de novembro de 2011 a 30 de janeiro de 2012
rua gomes de carvalho, 842 04547 003 são paulo sp brasil tel. 11 3842 0634 / 0635 info@lucianabritogaleria.com.br www.lucianabritogaleria.com.br
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Conq u i st a d o r Precisão e res i stê n c i a s ã o at ributos d es s a tr i b o. D es i g n comprometi d o co m a s fo r ma s bélicas, a força e a invencibilidade Relógio Monaco 24 Concept Chronograph A TAG Heuer desenvolveu
este protótipo high tech em homenagem à tradicional corrida automobilística de resistência de Le Mans; as faixas azul e laranja fazem referência ao logo da Gulf Oil
Peugeot Capsule
Projetado por Alp Germaner, de Johannesburgo, África do Sul, este veículo UTV (para uso em fazendas) é munido de conectividade à internet via satélite, GPS e conexão com outras cápsulas
Ravage Transformer USB Drive O pen
drive transforma-se em gato, atualizando a transformação do personagem interpretado por Shia LaBeouf na versão para o cinema de 2009. Um gato que virava fita cassete.
Spyder MR1
Para jogar paintball, este modelo mecânico de arma de sinalização é fabricado pelo Kingman Group
Ski-Doo MX ZX 600RS Este trenó motorizado é o veículo
mais rápido para corridas na neve. Seu modelo 2010 é ainda o sonho de consumo de muitos pilotos. Possui motor de 151 cavalos
Grace Urban e-Bike Os designers e
empresários alemães Michael Hecken e Karl-Heinz Nicolai se juntaram para desenvolver uma versão sustentável de bikes elétricas. Esta recarrega com o próprio movimento
Binóculo Tasco Essentials É prática de um bom conquistador mimetizar a paisagem em seu entorno. Este binóculo camuflado possui lentes de 8 x 21 mm, perfeito para vigiar o alvo em densa selva fotos: divulgação
Réplica de obra de Aleijadinho.
Acervo do MAB-FAAP.
Edifício Lutetia – SP.
Residência Artística FAAP.
Cité des Arts, Paris.
Vitrais do prédio principal da FAAP.
Ateliê na Cité des Arts, Paris.
MAB-FAAP: 50 anos de arte e cultura.
Rua Alagoas, 903
Higienópolis www.faap.br
São Paulo SP
O Museu de Arte Brasileira (MAB-FAAP) está presente na vida cultural paulistana há 50 anos, tendo em seu acervo obras representativas de épocas e artistas de destaque no cenário das artes plásticas brasileiras, de Aleijadinho a Portinari e Tarsila do Amaral. A produção artística contemporânea é incentivada pelo Programa de Residência Artística FAAP, no Edifício Lutetia (centro de São Paulo), onde artistas de todo o mundo apresentam seus projetos. Por meio do convênio com a Cité des Arts, em Paris, artistas brasileiros têm a oportunidade de lá desenvolver seus trabalhos.
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Carmen Miranda era portuguesa, a jaca veio da Índia e o futebol, que chegou a reboque da influência inglesa no Brasil, é originário da China. Boa parte do Brasil realmente não é daqui
Banana Origem Oriunda do Oriente, do sul da China ou da Indochina. Há referências da sua presença na Índia, na Malásia e nas Filipinas, onde tem sido cultivada há mais de 4 mil anos. Entrada no Brasil Não se sabe por onde e quando foi introduzida no País. Já era consumida pelos índios quando os portugueses chegaram. Bombacha Origem Não há consenso sobre a origem da bombacha e sua introdução no Rio Grande do Sul. A versão mais aceita afirma que é de origem turca e teria sido copiada pelos conquistadores ingleses, que adaptavam sobras dos uniformes usados na guerra. Entrada no Brasil Via comerciantes ingleses que operavam na região do Rio da Prata, por volta de 1860. Caqui Origem China Entrada no Brasil Seu cultivo começou em 1916, na região de Mogi das Cruzes, via imigrantes japoneses, que trouxeram, além de variedades da planta, técnicas especiais para seu cultivo. Coco Origem Naturais das ilhas do Pacífico, milhares de anos a.C., os coqueiros se disseminaram primeiramente por dispersão natural e flutuação. Navegantes polinésios, malaios e árabes contribuíram para a expansão de suas zonas de cultivo. O acesso ao Atlântico se deu pela Península de Cabo Verde, quando Vasco da Gama retornou da Índia e do Leste da África, em 1494. Entrada no Brasil Fim do século 16, pela Bahia, via colonizadores portugueses. Futebol Origem China, no ano 2197 a.C., onde se praticava o Tsu-Chu, esporte relacionado ao treinamento militar, derivado da prática de chutar o crânio dos inimigos derrotados. Entrada no Brasil 1894, trazido pelo inglês Charles Miller. Na Inglaterra, os primeiros registros do futebol datam de 1175 e estavam associadas a comemorações de vitórias bélicas realizadas na Terça-feira Gorda. Jaca Origem Índia. Entrada no Brasil Século 18, pela Região Norte. É cultivada em toda a costa brasileira. Foi utilizada pelo major Archer, em 1861, para reflorestar a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, que havia sido desmatada pelo cultivo do café. Pandeiro Origem Árabe (entre Crescente Fértil e Egito), período neolítico. Entrada no Brasil Via portugueses. Primeiros registros: 1549, na primeira procissão realizada no Brasil em comemoração a Corpus Christi. fontes: ABIC, BBC, BrAsIl esColA, Center for new w Crops & plAnt produCts, At A purdue unIversIty, emBrApA p , mundo eduCAção, mundo pA estrAnho, perCurssIonIstA t .Com.Br, plAnetA tA net eduC netA CAção, wIkIpedIA
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pesquisa: Daniel Manzini ilustração: fernanDa chieco e Daniel Manzini
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Goiaba origem Sul do México em data e período remoto e incerto. entrada no Brasil a espécie comercialmente cultivada no Brasil foi trazida da austrália pelos ingleses da Sao Paulo railway para Tatuí. o cultivo sistemático se deu com a imigração japonesa na região de itaquera, em São Paulo. Canela origem Sul da Ásia. há menções à canela no Velho Testamento e na obra do grego heródoto. entrada no Brasil Século 16, com os colonizadores portugueses, que a trouxeram de Sri lanka (então, ceilão). Berimbau origem angola, cerca de 20 mil anos atrás. entrada no Brasil 1538, via escravos africanos, que o utilizavam na prática da capoeira. o percurssionista naná Vasconcelos é considerado o maior expoente musical desse instrumento. Café origem etiópia (África central). os primeiros cultivos apareceram no iêmen, por volta do ano 575 e a bebida aparece primeiramente no irã, em 1500. entrada no Brasil Por Belém, vindo da Guiana francesa, em 1727, pelas mãos do sargento-mor francisco de Mello Palheta, a pedido do governador do Maranhão e Grão Pará. Candomblé origem ife, sudoeste da nigéria. entrada no Brasil o candomblé é uma religião panteísta de origem africana, na qual se cultuam orixás. cada país africano cultua um orixá. o único país onde o candomblé cultua vários orixás é o Brasil, onde chegou no século 18, via escravos africanos. Carnaval origem Grécia, entre 600 e 520 a.c., era uma festa associada a cultos de fertilidade. os romanos introduziram práticas sexuais na celebração. incorporada à religião católica em 590 d.c., passa a marcar um período de festividades que aconteciam entre o Dia de reis e a quarta-feira anterior à Quaresma. os bailes de máscara são introduzidos na europa no século 16. entrada no Brasil Século 18, via franceses. Somente no século 19 aparecem os blocos de carnaval no Brasil. Feijoada origem europa mediterrânea, derivada de um prato tradicional que remonta pelo menos aos tempos do império romano. consiste basicamente em uma mistura de vários tipos de carnes, legumes e verduras. em Portugal, tornou-se o cozido; na frança, o cassoulet; na espanha, a paella. entrada no Brasil Via colonizadores portugueses. Passa a incorporar o feijão-preto no século 19 e inicialmente era consumida pela elite escravocrata e não pelos escravos. Samba origem angola. entrada no Brasil Século 18, via escravos africanos. o samba-de-roda baiano é a sua primeira forma. a Unesco tornou-a Patrimônio da humanidade da Unesco em 2005. o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone, de Donga ( 1917). Periquito origem austrália. entrada no Brasil Via ingleses, que o levaram à europa a partir de 1840 e o popularizaram no mundo todo.
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portunhol sem fronteiras Pa u l a A l z u g a r ay
Mais que uma colagem idiomática, mais que uma língua freestyle, anárquica, o portuñol é pessoal, intransferível e tem desdobramentos inesperados: o portunhol selvagem e o transportunhol borracho
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No Brasil, se habla muito mais portunhol do que se avista o mar. Isso, a julgar pela extensão de 16.886 quilômetros de fronteiras com nove países da América Latina, ante apenas 7,3 mil quilômetros de costa. O portunhol, esse idioma transnacional, sem dicionário, academia ou regras ortográficas, se desdobra em tantos portunhóis quanto há turistas e clandestinos cruzando as divisas. O fenômeno é típico das traduções apressadas e literais, similar a outras contaminações linguísticas, como o guaranhol, o spanglish ou o chinglish, que até virou nome de peça de teatro, em cartaz na Broadway a partir de 11 de outubro. (Acesse http://nyti. ms/pyjN2s e confira o slideshow produzido pelo New York Times). Mas com todo poder criativo dos outros, não há páreo para o potencial artístico, literário e cômico do portuñol. “Existe el portuñol de la frontera y el portuñol del viaje”, explica a artista argentina Ivana Vollaro, autora de documentário e série de trabalhos sobre o tema. “Los habitantes que limitan con Brasil como país vecino tendrán su portuñol regional, que seguramente no será el mismo del que vive en Buenos Aires y viaja a Rio de Janeiro. Los intentos ocasionales de relacionarse en una ciudad turística varían indudablemente en una frontera.” Entre as irrupções criativas das fronteiras, talvez a de maior projeção seja o portunhol natural de Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. Ali nasceu o portunhol selvagem, obra e criação do escritor Douglas Diegues. O portunhol selvagem é como Ponta Porã (MS, Brasil) e Pedro Juan Caballero (Amambai, Paraguai): uma conurbação. Se as malhas urbanas de ambas as cidades se expandiram até a fusão completa, o português brasileiro, o espanhol paraguaio e o guarani ali transbordaram seus limites, alagando-se, autodevorando-se e autodestruindo suas marcas identitárias. “El portunhol es bisexual. El portunhol selvagem es polisexual. El portunhol es meio papai-mamãe. El portunhol selvagem es mais ou
Foto: divulgação
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n a ex p os iç ão i n di vi dual ve r m e llo, n a gale ria v e r mel ho, e m são paulo (2 0 0 8), i van a vollaro fez uma in t e rv en ção n a fac hada (abai xo). a artista ta mbé m c r iou um m apa e um a i d e n t i dade gráfica pa ra o p o rt un hol (p ági n a an t e r i or). À di r e ita , ca pas d e l ivros d e ron ald o b r essan e e J oca reiners t er r ó n , p ub li cados p or e di toras carton e ras
“Algunos hablan del portuñol como lengua del futuro, otros como recuerdos de lenguas pasadas, mezcladas”, diz Ivana Vollaro
menos Kama sutra. el portunhol es urbano y post-modernus. el portunhol selvagem es rupestre y post-porno-vanguardista. el portunhol es binacional. el portunhol selvagem es transnacional”, define douglas diegues, autor do primeiro livro de sonetos salbajes jamais publicado nestas paragens, dá gusto andar desnudo por estas selvas (travessa dos editores, 2003). “ele é o jack Kerouac da nação portunholesca”, define ronaldo Bressane, autor de cada vez v que ella dice xis (Yiyi jambo, assunção, 2008), publicado pela editora cartonera, de douglas diegues. “tomei contato com o portunhol selvagem quando fui morar em cuiabá aos 8 anos e achei demais aquela mistureba de línguas malfaladas. muito tempo depois, conheci o douglas diegues, que me convidou para escrever no portunhol, que é o mais democrático dos idiomas, uma vez que cada um tem o seu”, diz Bressane, autor da primeira reportagem escrita na “língua do futuro” para um jornal brasileiro, o estado de s. paulo, onde narra sua experiência no encuentro mundial del portunhol selvagem, disponível em http://bit.ly/nrzwvq. talvez existam tantos portunhóis quanto manifestações literárias sobre o tema. cada autor, de fato, personaliza o seu idioma, já que essa é uma língua mutante, que se faz no calor da hora. “sobram identidades para o portunhol selvagem. es uma lengua selvagem, indomable. es uma viagem a las origenes de las lenguas que hablamos en los tropicos”, diz diegues. outra de suas múltiplas identidades se traduz em transportuñol Borracho (dulcineia catadora, são paulo, 2008), de joca reiners terrón, em que o portunhol recebe o aporte de outras tradições literárias, como o inglês, o alemão e o japonês. “transportunholei hans magnus enzensberger, ikkyu sojun, malcolm lowry, todos poetas borrachos”, diz
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Cartoneras: soCiabilidade nômade
terrón, natural de mato grosso, que, segundo ele, é um “lugar onde as línguas se misturam lindamente, como dois animais fazendo amor”. os escritores de portunhol selvagem dizem que assunción é a capital da ficção. deve ser, já que recebeu um encontro mundial sobre o idioma. mas há muito mais portunhol para além das transcriações desses poetas das selvas urbanas guaranis da tríplice fronteira. até pernambucano do v vale dos cariris já se aventurou nessa seara: é o jornalista xico sá, que publicou tripa de cadela & outras fábulas Bêbadas (dulcineia catadora, são paulo, 2008). há portunhol além das fronteiras da literatura. Na obra de ivana vollaro v , ele invade o território da arte e da poesia visual. em 2000, quando realizou uma residência artística no rio de janeiro, a artista iniciou uma pesquisa sobre o portunhol a partir da invenção de um sinal gráfico. ela criou um Ñ em que o acento espanhol ganha a forma de um h, remetendo ao som do nh, em português. a imagem gráfica é uma síntese das duas línguas, uma tentativa de uni-las sonora e visualmente. “el portuñol es como un ‘entre’, algo que une, una tercera margen que va y viene”, diz. “el portuñol más interesante es el de la persona que sabe las dos lenguas, que puede hacer esa síntesis y disfrutar el error. lo que más me interesa es el error como forma de creación y comunicación”, diz a artista, que compara o ato portuñolesco com o impulso inventivo do escritor mineiro guimarães rosa e do artista argentino xul solar, que criou o neocriollo, mistura de castelhano e português, com incrustações do inglês e do guarani. “como dice oswald de andrade, miremos a “la contribución millonaria de todos los errores”, aponta.
Não é incomum associar a vitalidade cultural latino-americana a contextos de crise. com as editoras cartoneras não é diferente. a primeira delas, eloisa cartonera, foi gerada na crise econômica argentina de 2001. sob a desvalorização do peso e o confisco das poupanças nasceu a economia dos cartoneros – desempregados que catavam papelão nas lixeiras para revender – e diversas editoras independentes. hoje, as editoras cartoneras são mais de 30, espalhadas por países como peru, Bolívia, paraguai, chile, méxico e Brasil. com nomes sugestivos e femininos – sarita, animita, Yerba mala, mandrágora, Yiyi-jambo, dulcineia –, elas têm bases e princípios comuns que acabam por caracterizá-las como um coletivo latino-americano. Não depender de patrocínios, buscar estratégias autossustentáveis e abrir caminho para novos autores são características que as alinha com as economias criativas. “No Brasil, temos uma tradição editorial restritiva que não dá vazão à produção literária emergente. folhetins clandestinos, a geração do mimeógrafo e, atualmente, os blogs nascem como atos de resistência. é nesse cenário que entram os livros com capas de papelão”, diz lúcia rosa, coordenadora do projeto dulcineia catadora, que surgiu na 27ª Bienal de são paulo, a partir de um trabalho colaborativo com o grupo argentino eloisa cartonera, que participava da bienal. formado por artistas, catadores e filhos de catadores, o dulcineia catadora tem um catálogo que engloba desde autores consagrados, como haroldo de campos e manoel de Barros, até livros de artistas e edições em portunhol. a Yiyi-jambo, criada no paraguai pelo escritor douglas diegues tem hoje mais de cem títulos, entre “poéticas ameríndicas e literatura triplefrontera”. Foto: divulgação
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“El portunhol es un transex de la fronteira. Algo que si adapta como las identidades si adaptan en el mundo contemporâneo”, diz Joca Reiners Terrón
breve história do portuñol, por douglas diegues Nel comienzo non había español nim português. solo había el portuñol. Y estaban los trobadores galaiko-portugueses, como martin codax (séculos xii e xiii), que utilizaban uma espécie de portunhol selvagem como lenguaje poético. del portuñol nasceu el português. Y después, ou antes, poco importa, nació el español. después, como lenguaje literário se puede verificar algunos momentos em que o portuñol aparece, como en juana de ibarbourou (1892-1979), que experimenta o portunhol (ou és experimentada por el portuñol) en uma noubella. después aparecem algunos vestígios de portunhol selvagem en fragmentos de o inferno de Walt street, del poeta maranhense sousândrade, y en fragmen-
tos de Galáxias, de haroldo de campos. después aparecen Wilson Bueno y suo papyro rarófilo, mar paraguayo, la primeira nouvelle del mondo escrita em portunhol selvagem, um mix de español y guaranises paraguayensis y português brasileiro. después yo publico el primeiro libro de poesia em portunhol selvagem del mundo, dá gusto andar desnudo por estas selvas. Y después xico sá publica caballeros solitários rumo al sol poente, el primeiro romance escrito em portunhol selvagem cabrobol. después aparece joca reiners terrón, que publica transportuñol Borracho, um libro de transcreacciones de poetas gringos como malcolm lowry y raymond carver al portunhol selvagem. después vienen ronaldo Bressane com cada vez v que ella dice xis, poemas em portunhol selvagem, para ficarmos apenas nel lado brasileiro. Nel lado paraguayo y argentino de la frontera, un par de escribas viene haciendo cosas en portunhol selvagem, tal como cristino Bogado, jorge canese, edgar pou, marcelo silva y guillermo daghero. debe haber mais gente. lo que me parece formidable. porque non existe portunhol selvagem único. cada escriba tem suo portunhol selvagem propio. cada persona ya nasce com suo portunhol selvagem personal & intransferibelle.
glossário selvagem
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o portunhol não tem dicionário. mas o portunhol selvagem conta com um glossário de palavras desse idioma que mistura português, espanhol e guarani. a seguir, um extrato do glossário publicado no livro rocio, de douglas diegues (dulcineia catadora, 2007). Bombachita kunu’u: inbencion del poeta posvanguardista paraguayo jorge Kanese en el Barrio sajonia y que significa tanguita ou kalcinha kariñosa. Capo: espécie de gênio de su área. Che rembô remoi: siento uma koceirinha selbagem en el porongo. Chorrea: jorra Chururú: chique, caro, famoso, luxuoso, esnobi, koncheto. Coisas tie’y: coisas grosseiras, vulgares, sinverguenzas, indecentes, ordinárias. Gratiola: grátis Gualicho: espécie de cornucópia primitiba feita de couro ou palha. Guaripola: Bebida alkoólika paraguayensis fabrikada klandestinamente y que ya causou la muerte de muchas personas. Jurujái: Bobom, bokaberta, babaguevo, panaka, tavyrongo. Kachaka: ritmo popular en villas kurepas y valles paraguayensis. Klandê: clandestino(a) roci o e um a f lor, de d ouglas d iegues, e tr i pa d e cade la , d e xi co sá, são livros e m p ort un hol do cat álogo da dulcineia catad ora , e di tora carton e ra de são paulo que tam b ém e d i ta li vros de a rtistas
Kangylon: impotenzia sexual, literária, econômika, cultural, mental, humana etc., que puede ser induzida, vakuneada ou adquirida... Foto: divulgação
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Nosotros, de Latinoamerica, passamos muito tempo importando Coca-Cola e ketchup Heinz. Pero ahora, yes, tenemos até executivos para exportação
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Nirlando Beirão
co l ag e n s N i n o ca i s
Países vendem e compram mercadorias. No âmbito das trocas culturais, também barganham signos e imagens. Às vezes, essas imagens, impregnadas de simbologia e até de afetividade, acabam por se transformar em mercadorias. O capitalismo é implacável: imagens são também submetidas ao cálculo do valor agregado. Daí a diferença entre Beatriz Milhazes, com suas detonações cromáticas de mais de milhão de dólares, e Maria Martins, a escultora ainda hoje subavaliada e que, no entanto, Marcel Duchamp amou em todos os sentidos. O tribunal financeiro dos leilões não busca a suposta justiça
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artística, rende-se ao pragmatismo da oferta e da procura. Nosotros, de Latinoamerica, passamos muito tempo importando Coca-Cola, ketchup Heinz e Chevrolets rabo-de-peixe e exportando café, açúcar e jogadores de beisebol. O mais americano dos esportes só tem Martinez, Reyes, Delgados. Na mão dupla do tráfego comercial, consumimos, mas também exportamos mitos. >>
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Quando um texano bebe sua Budweiser, está pagando royalties ao capital made in Brazil Que a Virgem de Guadalupe os abençoe. Mitos é que nos fazem entrar na foto panorâmica da caótica geopolítica da globalização. Che Guevara. Carmen Miranda. Evita Perón. Frida Kahlo. Yma Sumac. Diego Rivera. Ricardo Montalbán. Tito Puente. Célia Cruz. Katy Jurado. Cesar Romero. Cantinflas. O Zé Carioca. Vem de longe o fascínio das nações da parte de cima do mapa-múndi com nosso elenco de hot latinas e de latin lovers, de bombshells de quadris generosos e de revolucionários de sangue quente. Hoje temos Neymar, Messi, Bündchen, Santoro, Saldanha, Darín e Herchcovitch. Mas essa é outra história. Até o século 19, os colonizadores da Europa aprenderam a nos tratar com condescendência e paternalismo; no século 20, o novo colonizador da América quis nos tratar a dólar e chicote. Na relação entre o poder hegemônico e o courtyard dependente, a desigualdade nos reduzia ao mero estereótipo. Latino era nicho e ali devia resignadamente ficar. Aprisionados no que eles queriam que fôssemos, arrastamos em lamúrias e ressentimento a síndrome de underdog, ou como disse Nelson Rodrigues (um escritor que os americanos jamais vão entender), o complexo de vira-lata. Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, expôs num vilarejo qualquer a alegoria latino-americana de figuras espectrais que não há como dizer se são reais, se são fantasmas, se são miragens. Bem que a literatura depois tentou quebrar o molde, em busca de identidade própria, porém, acabou por impor outro, nas brumas entorpecentes do realismo mágico e nas exsudações calorentas de uma Macondo que extrapolou fronteira para se revelar intercontinental – o mundinho reiterado do P, prazer, preguiça, punição e putaria.
Notem bem: escrevo no passado, refiro-me a pessoas, a situações, a conteúdos simbólicos que, nas chacoalhadas recentes da conjuntura mundial, ganham outras referências. Hegemonias políticas e culturais fraquejam nas cambalhotas das crises que começam no bolso para expor na sequência as mediocridades da alma. Tanto que o Tio Sam, como previa o velho samba de Assis Valente, teve de entrar na nossa batucada. E na salsa, e na rumba, e na cumbia, no mambo, e até na música cafona dos mariachis. O bumbo de Mercedes Sosa, em resposta vingativa, agora atordoa a cabeça dos ex-senhorios do continente.
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Yes, no passado nós tínhamos bananas. Sí, hoy tenemos bacanas. Da Pequena Notável a galãs para exportação. Rodrigo Santoro, Gael García Bernal e Ricardo Darín fazem a América com uma determinação bilíngue. Hollywood já não nos humilha mais com a supremacia imperial da linguagem. Mudança drástica de temperatura: Alice Braga afronta o cânone estético antimorenas de um jeito que nem a tia dela, Sônia Braga, apesar de seus hits estrondosos (O Beijo da Mulher Aranha, Dona Flor), conseguiu suplantar. De uma geração para outra, barreiras caíram. Hollywood bem que se esmerou naquilo que o crítico mexicano Octavio Paz, Nobel de Literatura em 1990, chamou de “deslocamento”: a impressão persistente do latino recém-chegado de flutuar no ar. “Flutua porque não se mistura nem se funde com o outro mundo, o mundo norte-americano, feito de precisão e eficácia. Flutua: não acaba de ser nem acaba de desaparecer” (em O Labirinto da Solidão). Foi-se o tempo em que a usina de mitos da América tinha de recorrer à branquela Nathalie Wood, quando a heroína latina, a Maria de West Side Story, era obrigada a seduzir plateias de capiaus de Delaware e do Tennessee. Hoje, Hollywood badala a esguia Penélope Cruz. Contudo, como o preconceito espreita em cada entrelinha de script e em cada urgência de casting, os assobios ainda contemplam a centimetragem de ancas de Jennifer Lopez e de Cameron Diaz. E enquanto Andy Garcia insistir em lembrar que é cubano, em sua impenitente militância anti-Fidel, não será nem a sombra de um Al Pacino ou um Robert De Niro. Até as câmeras de Hollywood nosotros já podemos pilotar, com méritos reconhecidos de direção, do que dão provas Guillermo Del Toro, Robert Rodríguez, Walter Salles e Fernando Meirelles. Ninguém há de reconhecer neles qualquer sotaque latino, a linguagem é universal, se bem que cada um busque estilo próprio. Meirelles rodou seu novo longa-metragem 360 em seis países e dirigiu atores de nove nacionalidades diferentes. O mundo visto por um brasileiro? Carlos Saldanha, da milionária animação A Era do Gelo (três longas do tipo arrasa-quarteirão) inverte de vez, em Rio, o parâmetro da reserva de mercado. Ele que poderia, por CEP e formação, se fazer passar por um legítimo manhattanite, agora escancara sua paixão pela cidade natal e se regozija: sou brasileiro. Sul do Norte e Norte do Sul, o Brasil pipoca de ambiguidade ao definir se é ou não é um dos hermanos latinos. Em geral, quando
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se trata da cantilena “o mundo se curva”, a gente prefere dançar solo. Mas, já que interesses econômicos quase sempre aproximam mais do que vínculos eletivos, o sangue da latinidad tipo Mercosul começa a pulsar em nossas veias abertas.
É de se orgulhar que o icônico Abaporu, de Tarsila do Amaral, imponha-se hoje, com merecida pompa, no Museu de Arte LatinoAmericana de Buenos Aires, em vez de repousar no MoMA, no MFAH (Museu de Houston) ou dormitar na sala de visitas de algum magnata de São Paulo. Um dia as escolas brasileiras ainda hão de ensinar quem foi Simón Bolívar antes que o cinema americano faça isso por nós (como já fez com Emiliano Zapata, arregimentando um Marlon Brando para lá de caricato). Em ofícios de puro refinamento, igualmente, tais como a arquitetura, exportamos talentos (Isay Weinfeld e Marcio Kogan estão aí para não nos deixar mentir). Na moda, Alexandre Herchcovitch – para citar apenas um – abre alas na trilha aberta por Oscar de la Renta e Carolina Herrera. Mas, se for o caso de extravasar o espírito canarinho em berreiro de ufanismo digno de Galvão Bueno, vamos direto ao big business: quando um texano, um californiano bebe hoje sua Budweiser, ícone tão americano quanto o hot-dog e as sopas Campbell, está pagando royalties ao capitalismo made in Brazil, zil, ziiiilllll. Atende pelo nome de Carlos Brito o executivo que toca a AB InBev, a maior cervejaria do mundo desde a compra da Anheuser-Busch pela joint belgo-brasileira da InBev, em junho de 2008. Outro Carlos – Carlos Ghosn, CEO da Renault/Nissan – é um de nossos executivos for export dignos de figurar no Hall of Fame da Harvard Business School. Nasceu em Porto Velho, Rondônia. Na política, embora os argentinos tenham posteriormente desgastado o fascínio de ter uma mulher no poder, Eva Perón é de toda a galeria de ídolos de nuestra América o mais intrigante. Na representação do enigma latino-americano, a Sra. Perón, madre de los descamisados em costume de Chanel, foi única. “Seu caráter excepcional não se mantém só pela beleza, nem pela inteligência, nem pelas ideias, nem pela capacidade política, nem sequer pela origem social, nem por sua história de interiorana humilhada que vai à forra quando chega ao topo”, escreve a crítica Beatriz Sarlo. Eva Perón era a soma desses elementos, todos juntos, combinação desconhecida num cenário em transformação. O Primeiro Mundo comprou o mito Evita e o devolveu, em roupagem da Broadway e em figurino de Hollywood, como produto fotogênico da indústria do entretenimento, devidamente desidratado de política e de idealismo. No leito de morte, corroída ainda na flor da idade pelo câncer atroz, Evita teria dito, com aquele seu invariável pendor militante: “Volveré y seremos millones”. No simulacro gringo, ela voltou e era apenas uma – a Madonna.
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visões do paraiso
Ashley Bickerton: yellow cAnoe (2006).AcrílicA e impressão digitAl soBre telA em moldurA de mAdeirA entAlhAdA e incrustrAdA
Os artistas Ashley Bickerton, Kenny Scharf, Peter Doig, Melanie Smith e Not Vital trocaram os EUA e países da Europa por cantos exóticos mais ao sul J u l i a n a M o n ac h e s i À esquerda, Cortesia do artista e da galeria lehmann maupin, nova York; À direita, Cortesia da artista e da galeria nara roesler, são paulo
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melAnie smith: frAme do vídeo XilitlA (2011)
Existe uma arte do Sul? O que é o Sul? É uma divisão geográfica (América Latina, África do Sul, Sudeste Asiático e Oceania), um recorte geopolítico (países em desenvolvimento) ou uma condição térmica (regiões próximas da linha do Equador)? O que mais interessa a seLecT é averiguar se, afinal, existe um Sul da arte, algo como aquilo que Gauguin foi buscar no Taiti para revitalizar sua arte, atrofiada pelo cânone parisiense fin de siècle. Para responder a essa questão, ouvimos artistas de origem europeia e norte-americana sobre a opção de vida que fizeram ao trocar seus nativos Antilhas, Estados Unidos, Escócia, Reino Unido e Suíça por locais mais ou menos exóticos no Hemisfério Sul (ou próximo dele). Um homem azul que ora está alucinado sozinho em um bar sombrio, ora está abraçado a uma mulher grávida envolto em um halo de bem-estar doméstico. Ele sempre veste uma camiseta listrada de vermelho e branco, alusão a Picasso. Presença constante na obra do artista Ashley Bickerton há pelo menos 15 anos, o homem azul havia desaparecido no fim da década passada. “Eu me livrei dele, mas aí ele voltou gordo (na exposição que fez este ano, na galeria Lehmann Maupin, de Nova York)”, afirma em entrevista à seLecT. Arrumou um novo personagem para interpretá-lo. “Era sempre eu quem interpretava o blue man, porque eu cobro pouco, estou sempre disponível e faço exatamente o que eu mando. É uma questão de conveniência, mas de fato eu havia me
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livrado dele e, de algum jeito, ele acabou retornando. Eu consegui um cara de 200 quilos que vive aqui em Bali, um amigo louco, um surfista que não pode mais surfar. Ele é um maníaco, portanto, cabe perfeitamente no papel.” A camiseta picassiana e as descrições que o artista costuma oferecer de seu protagonista (“o refugiado existencial europeu”, “o fugitivo da literatura do século 20” ou “o homem à deriva que carrega toda a bagagem do século 20”) permitem ver nesse personagem um alter ego de Bickerton, que trocou Nova York por Bali, na Indonésia, há 17 anos. As pinturas, que o artista realiza em três etapas – a encenação para a foto, a pintura e a criação de uma moldura de qualidade escultórica a partir de uma tradição artesanal de Bali –, são composições, diz, negando a leitura autobiográfica. “Ah, o elefante na sala?”, reage Ashley Bickerton à pergunta sobre Gauguin. “Quando me mudei para
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vis천es do paraiso
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Kenny Scharf, lendário nome da street art nova-iorquina, divide seu tempo entre Nova York e Ilhéus, na Bahia. Adora pintar tomando água de coco e suco de caju
nA páginA à esquerdA, gold fAmili (2009), oBrA de Ashley Bickerton em tintAAcrílicA, óleo e impressão digitAl; nestA páginA, modA de mAngue (2010), oBrA dekenny schArf em óleo, AcrílicA e esmAlte soBre telA. Cortesia dos artistas e das galerias lehmann maupin e paul kasmin, nova York
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visões do paraiso à esquerda, The House to Watch the Sunset (2005), construção realizada por Not Vital em Aladab (Nigéria) 72
Para Laura de Mello e Souza, as viagens foram sempre uma experiência de alteridade; os povos do Sul são metáfora para os europeus pensarem sobre si
Bali, fiz de tudo para evitar a comparação e, então, quando já estava vivendo há dez anos aqui, olhei para minhas pinturas e percebi que elas tinham se transformado completamente.” Foi por volta de 2004 que, liberado do elefante na sala, suas obras ficaram decididamente mais coloridas. “As cores se tornaram absurdas, afrontosas, exageradas mesmo. A ponto de eu dizer para mim mesmo ‘preciso conseguir algum controle sobre a minha paleta, preciso olhar um pouco de Morandi’.” Mas os dez anos de negação têm menos a ver com o pintor francês do que com o universo de artistas pelo qual Gauguin foi cooptado, explica Bickerton. “Todo esse tipo de pessoas com sonhos de pintar imagens em tons pastel do folclore
local e de donzelas sombrias, ou pitorescas senhoras idosas, é tudo nauseante. Eu não quero ser associado a esse tipo de gente. De certa forma, Gauguin foi apropriado nesse nível, mas ele sempre esteve lá, e eu, de alguma maneira, sempre soube a espécie de presença seriamente pesopesado que ele era, então finalmente lidei com isso.” Como é característico da produção de Bickerton e de sua personalidade, o humor não poderia ficar de fora: “Concluí que ele foi o primeiro eurotrash (lixo europeu), essa espécie de velho sórdido aliciando menininhas; agora o mundo está cheio deles. Assim, eu decidi retratá-lo como apenas mais um cara gordo em uma motocicleta, com uma garota tatuada na garupa, como mais um turista sexual na Tailândia”. Outro artista que costuma ser associado a Gauguin por razões biográficas e estéticas, o escocês Peter Doig – que trocou definitivamente a Europa por Trinidad e Tobago em 2002 (ele tinha morado lá quando criança, nos anos 1960) – acentua também o lado menos glamouroso da vida nas ilhas: “Trinidad não é exatamente o paraíso tropical que muitos imaginam: Port of Spain (a capital) não é uma estação de férias, os mares podem ser brutais e os crimes violentos estão aumentando”, conta Doig em entrevista recente à revista W. A tipologia do artista viajante não começa, claro, com Gauguin, mas data do período das descobertas, que foram amplamente documentadas em desenhos e gravuras ao longo dos séculos 16 ao 18. Laura de Mello e Souza, especialista em história ultramarina desse período, conta que as viagens foram sempre uma experiência de alteridade. “Michel de Montaigne, que é uma espécie de pai do relativismo, foi muito influenciado pelos relatos de cronistas europeus que se dedicaram a entender povos e culturas distintos”, afirma. A historiadora defende a ideia de que a descoberta da América implica a constituição de uma “ciência do outro”, ou seja, os povos da América servem de metáfora para os europeus pensarem sobre si mesmos. Não é de surpreender que Melanie Smith, uma artista britânica que vive na Cidade do México desde 1989, tenha se interessado pelas construções surrealistas de Xilitla, cidade na região montanhosa do nordeste do México, onde o aristocrata britânico Edward James (1907-1984) fez construir grandes estruturas de concreto de inspiração fantástica entre os anos 1960 e 1984. A empreitada do conterrâneo ganha ares ainda mais surreais no vídeo Xilitla, que a artista mostrou entre agosto e setembro na galeria Nara Roesler, em São Paulo, e que integra a mostra da representação
À esquerda, cortesia do artista e galeria Thaddaeus Ropac, Paris; À direita, Cortesia galerias Gavin Brown’s Enterprise e Michael Werner, Nova York
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Ping Pong (2006-2008): óleo sobre tela de Peter Doig
nacional do México na Bienal de Veneza. As edificações, sem função arquitetônica (imensas flores de concreto, uma escada que não leva a lugar algum), são mostradas em uma projeção vertical, que acentua sua monumentalidade. Uma narrativa circular enfatiza a impossibilidade de representar uma utopia e a possibilidade sempre fragmentária e incompleta de observar qualquer alteridade. “Eu evitei ao máximo registrar este lugar como algo exótico e exuberante; me interessava pensar o que ele representa como um espaço atual, o que tem a nos dizer hoje”, conta Smith. As construções de outro europeu que escolheu um ponto mais ao Sul para instalar algo próximo a uma utopia caminham nessa direção: o suíço Not Vital passa, desde 2000, cerca de um mês por ano nas cidades de Aladab e Agadez, na Nigéria, produzindo edificações que vão de um posto de observação do pôrdosol a escolas“. A África abre um novo caminho para a realização de sonhos”, conta o artista. “Você é livre para construir o que quiser. É um lugar retirado da vida de e-mails e telefones. Você pode realmente se concentrar nos seus sonhos”, diz. Por que escolheu a África para fazer isso? “Porque é o continente mais interessante, com as maiores diferenças e desafios. É
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o lugar mais humano do mundo.” Kenny Scharf, o lendário nome da street art nova-iorquina, divide seu tempo entre Nova York e Ilhéus, na Bahia, desde 1982, quando veio ao Brasil para o carnaval e conheceu sua futura mulher, Tereza, em um voo do Rio a Salvador. “Ela é de Ilhéus, por isso compramos lá perto uma propriedade com uma pequena casa na praia em uma época em que não havia estradas nem eletricidade”, conta em entrevista à seLecT por e-mail. “Eu adoro pintar lá, tomando água de coco e suco de caju, então vivo no Brasil a maior parte do tempo possível!”, afirma o artista sobre Paraíso Verde, onde ele e Tereza mantêm alguns murais feitos pelo amigo Keith Haring. Melanie Smith conta que, quando terminou a faculdade em Londres, nos anos 1980, fim da era Thatcher, não havia boas perspectivas para iniciar uma carreira artística lá. “Eu não sabia nada sobre o México, só queria estar fora da Europa; fui passar seis meses na Cidade do México e acabei ficando”, afirma. Nascido em Barbados (colônia britânica até 1966), Bickerton morou nos cinco continentes por conta do trabalho do pai, um linguista com especialidade em línguas nativas: “Cresci surfando nos trópicos; antigamente, morando em Nova York, quando eu não tinha tanto dinheiro, ia uma vez por ano ao México, a Puerto Escondido. Quando ganhei mais dinheiro, a Indonésia era onde euqueria estar. Aos poucos eu me apaixonei”. Bickerton encontrou ganhos paralelos ao escolher Bali. “Toda namorada ou mulher que estivesse comigo sempre teve seus diferentes temperamentos e necessidades atendidos: a que gostava de festa e da cena das raves tinha tudo isso à disposição; a que queria fazer compras até cair podia fazer isso; a que queria se tornar espiritual, visitar templos e mergulhar em animismo, misticismo e hindu-budismo, podia fazer isso; então, todo mundo está sempre feliz aqui”, diverte-se.
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Santos não muito católicos Religiosidade, mau comportamento e banditismo integram-se na santeria latina
nina gazire
f oto s v i to r a m at i
Quem disse que para se tornar santo é preciso, primeiro, ser beatificado? No Brasil, México, Venezuela e Argentina, países extremamente católicos, porém marcados pelo sincretismo religioso e cultural, não é bem assim. Entre nosotros e nossos hermanos, a malandragem e a mestiçagem burlaram a burocracia canônica para criar devoções alternativas e adequadas às suas necessidades.
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Zé Pelintra: o malandro brasileiro “Zé Pelintra desceu, Zé Pelintra baixou”, cantava Itamar Assumpção. Zé Pelintra, ou Zé Pilintra, não inspirou apenas Assumpção e Wally Salomão a comporem uma música homônima em homenagem a uma das entidades mais populares tanto na umbanda quanto do imaginário brasileiro. Chico Buarque em sua famosa Ópera do Malandro também cantou sua versão da vida de seu Zé, forma pela qual a entidade é chamada pelas pessoas que a ela dedicam devoção. As origens de Zé Pelintra são confusas, mas, em parte, os pesquisadores concordam que sua figura surgiu em meio à fusão das mitologias afro-brasileiras, da umbanda e do catimbó (ou catimba). Seu Zé é bastante considerado não só entre os umbandistas, mas também por qualquer bom malandro brasileiro que bate ponto em bar de esquina. Tanto que o figurino do santo coincide com o preferido entre os sambistas: terno branco, sapatos de cromo, gravata grená ou vermelha e chapéu panamá de fita vermelha ou preta. Zé Pelintra é o espírito patrono dos botecos, das mesas de jogo e da boemia. Mas nem só de festa vive seu Zé. Para ele, voltam-se as preces daqueles que precisam de ajuda nas questões domésticas, de negócios ou finanças. Entre seus devotos, ele é reputado como obreiro da caridade e da feitura de coisas boas.
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Dama da Noite: mulher da vida Laraôie! Esse é o cumprimento que deve ser usado quando se está diante da presença de uma Pombajira. Pambu Inzila, no idioma africano nagô, era denominada a entidade Exu, que possui vários nomes e aparece no panteão divino de diversas etnias africanas que chegaram à América durante a colonização. Para o Exu são atribuídas diferentes concepções que variam de acordo com as religiões afrossincretistas ou latino-americanas. Mas todas concordam que esse orixá é uma espécie de mensageiro entre os homens e os deuses. Ele possui uma versão feminina que recebe o nome de Pombajira. Elas são muitas e possuem funções variadas. Mas a Pombajira Dama da Noite é a que frequenta os mesmos bares que Zé Pelintra. Assim como ele, a Dama da Noite adora a vida noturna. Usa trajes sedutores, nas cores vermelha e preta, traz consigo uma rosa vermelha que varia de posição de acordo com sua representação. Alguns afirmam que ela teria sido o espírito de uma mulher que, por ser pobre e órfã, caiu no mundo da prostituição. No Brasil é comum apelar à Dama da Noite para a solução de problemas relacionados a fracassos na vida amorosa. A entidade possui gosto apurado e entre suas oferendas costumam figurar garrafas de champanhe, cigarrilhas, rosas vermelhas, mel, espelhos, enfeites, joias, batons e perfumes.
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Santa Muerte: padroeira dos traficantes Santa Muerte é uma figura sagrada, venerada no México. Sincrética, como outras divindades latinas, mistura elementos de figuras femininas cristãs com a de Mictlantecuhtli, deusa asteca da morte. Ela é a Senhora das Sombras, a Branca, Senhora Negra, Menina Santa e a Magra. A ela são comuns os pedidos por bênçãos e proteção, principalmente quando alguém está entre a vida e a morte. É apresentada carregando uma foice ou um globo terrestre e seu manto varia nas cores vermelha, preta e branca. Popular em todo o México, vem sendo contestada. A pedido dos moradores das cidades de Nuevo Laredo e Tijuana, autoridades locais destruíram 30 capelas dedicadas à Santa Muerte, por terem sido construídas pelos traficantes da região, que a elegeram como uma espécie de padroeira.
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Ismael Sánchez: vida bandida
mo d e lo - F e r n an da Ri b e i ro Ass ist en t e d e fotogra fi a - Ad r i an o Van n i P ro duç ã o - An n a Gui r ro B el e z a - Ca r m e n Cor r ê a Ag ra d ec ime n tos - Cho pe r i a Li b e r dade , F áb i o Zava la , D e n is e F igue i ra , Marc e lo Ghe le r (P i u), Gle i so n Alv es, T equil as Ba r e Er i k P e t t e rse n
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Na Venezuela, a religiosidade popular mistura o espiritismo a rituais indígenas e a alma de algumas pessoas são cultuadas como entidades do pós-morte. Entre esses espíritos, um dos mais adorados é o de Ismael Sánchez, também conhecido como Ismaelito. Com um boné virado sempre para o lado esquerdo e um revólver na cintura, Ismael é o líder dos Santos Malandros ou Corte Calé. Trata-se de um grupo de espíritos que em vida foram bandidos, traficantes, malandros ou contraventores, mas que são vistos como justiceiros pelas camadas mais pobres da população venezuelana. Esse Robin Hood venezuelano em realidade teria lutado contra o determinismo social de um país extremamente desigual. Nos anos 1970, Sánchez teria assassinado pessoas, roubado lojas e cometido outras bandidagens que somam ao seu currículo as qualidades necessárias para se tornar no além-vida o líder dos santos malandros venezuelanos, cujas imagens povoam o cemitério General del Sur, o maior da capital, Caracas. Para venerar os santos malandros, centenas de pessoas realizam romarias diárias rumo a Caracas. Como parte do culto, os devotos rezam sobre os túmulos dos meliantes, levam flores, cigarros, cantam e acendem velas, pedindo o aumento da renda familiar, a bênção para uma longa vida cheia de saúde e – veja a ironia do destino – a proteção contra ladrões e a violência urbana.
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Gauchito Gil: romance proibido Todos os anos, no dia 8 de janeiro, milhares de devotos se reúnem na cidade de Mercedes, cidade natal de um personagem lendário da cultura popular argentina. O nome é Gauchito Gil e sua história de santo é entremeada por versões conflitantes. Mas sobre a história do homem há pelo menos um consenso: seu nome completo era Antonio Mamerto Gil Núñez. Teria nascido em algum momento de 1840 e morrido em 8 de janeiro de 1878. Uma primeira versão da paixão de Gauchito Gil conta que ele era um fazendeiro pobre que teria tido um caso com uma viúva rica. Quando os irmãos e o chefe de polícia da cidade (que também estava apaixonado pela viúva) descobriram o relacionamento, começaram a perseguir o rapaz. Para fugir, Gauchito teria se alistado no exército argentino, que lutava na Guerra do Paraguai. Outra versão narra que ele teria vivido durante o período de uma série de guerras civis, que aconteciam desde 1829, como o levante popular liderado por Juan Manuel de Rosas. Em meio a esse cenário, ele teria sido recrutado para lutar em um dos conflitos. Para não ir contra seus princípios pacifistas, decidiu fugir e desertar. É no desfecho da epopeia do santo herói que ambas as histórias se encontram. A polícia ou o exército teriam conseguido capturá-lo, após um ano de buscas. Na hora de ser executado, Gauchito teria pedido clemência a um dos soldados, dizendo ao seu algoz que seu filho estava muito doente. O soldado ignorou a mensagem e fuzilou Gauchito. Quando chegou em casa, encontrou o filho gravemente enfermo. Desde então, passou a rezar pela alma de Gauchito, que atendeu às suas preces, curando a criança.
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ArtistA chileno de origem indígenA reúne suA culturA mApuche à reflexão sobre o processo civilizAtório do continente lAtino-AmericAno J U L I A N A M O N AC H E S I
Morador de bairro popular de Santiago do Chile que protagoniza telenovela Mal de ojo (2007)
Uma coleção tipográfica de grandes dimensões, feita de terra batida no chão de um armazém no Cais do Porto. Letras de 1 metro de altura, construídas com terra vermelha guarani, formando um texto que ganha sentido conforme se caminha pelas suas entrelinhas. O trabalho de Bernardo Oyarzún na 8ª Bienal do Mercosul se completa com três vídeos que mostram falantes de língua guarani de comunidades distintas, contando um mito ou uma história do lugar. “Os guaranis dizem que o homem branco é de papel, porque a palavra não vale nada para ele”, relata o artista chileno de origem mapuche, que realizou uma residência na aldeia guarani de Koenjú, a 30 quilômetros de São Miguel das Missões, no interior do Rio Grande do Sul, como parte do projeto Cadernos de Viagem da Bienal. “Aqui a fé foi insuficiente ante as palavras poéticas e as mitologias dos guaranis”, afirma sobre as igrejas hoje em ruínas e onde os jesuítas fundaram, com o povo guarani, no século 15, uma civilização – destruída no século 18, na disputa de territórios entre Espanha e Portugal. A palavra é uma constante na obra de Oyarzún. Em um trabalho intitulado Território Mapuche, por exemplo, ele enfileira em >> quadro- negro os nomes de lugares no Chile que têm denominações mapuches, como uma aula de geografia que chamasse atenção para a presença indígena na cultura do país. Lengua Izquierda é a articulação de línguas nativas americanas versus línguas europeias vinculadas com a colonização da América: “É uma forma de contar a história da América por meio do choque de línguas, cujo resultado conhecido para as línguas nativas é a atrofia de seu pensamento e fala”, explica. Outra constante é a criação de obras em parceria. Teleserie – Mal de Ojo (2007) foi um trabalho feito com a comunidade de Pedro Aguirre Cerda, bairro popular de Santiago do Chile. Inspirada no formato das telenovelas latino-americanas, é uma produção audiovisual construída com histórias de bairro, FOTOS: cOrTeSia dO arTiSTa
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o foco da obra de oyarzún esta na discussão do choque cultural sofrido pelos indígenas e por outras comunidades marginalizadas
roteiro de ficção com pitadas de realidade, que conta com a participação de parte dos moradores na produção e no elenco. A filmagem realiza-se em exteriores e sets de gravação improvisados em casas do bairro, abrangendo ruas, praças, a música, a fala, compondo um espelho do lugar. “O set cumpre a função de encenar uma história e mostrar aspectos estéticos que refletem a criatividade e o repertório particular de imagens desse lar, um ambiente que chega ao local da exposição como maquete real, que revela seu contexto e onde se vê uma história verossímil, como documento histórico e inventário cultural.” Este ano, Oyarzún apresentará o projeto Teleserie em um bairro popular de Medellín, na Colômbia, novamente com produção in situ. A telenovela terá o título de Fronteras Invisibles. “O projeto é uma espécie de matriz que pode ser aplicada a qualquer lugar.” À eSquerda, chi-hua SalinaS Sung; À direiTa, cOrTeSia dO arTiSTa
À eSquerda, aurora, 2011, inStalação do artiSta na oitava bienal do MerCoSul; À direita, fetiChe, 2007; SeiSCentaS eSCulturaS de pequeno forMato, feitaS de reSina de poliéSter, repreSentando 20 tipoS de trabalho operário
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a geografia da colonização europEia se sobrepÔs aos antigos territórios indígenas, que não se organizavam como propriedade privada
mecânica popular, 2010; pequenas invenções criativas e marginais que contrastam com a paisagem urbana. à Direita, mecânica de solos, 2009: coleção de peças artesanais chilenas colocadas sobre uma base iluminada e território mapuche / lição de geografia, 2009; nomes de origem indígena de diversas cidades chilenas, escritas com giz em um quadro negro
foto: cortesia do artista
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É senso comum associar a artemídia com a interatividade. Mas interação tornou-se palavra tão recorrente no dia a dia que virou um conceito Bombril: serve para tudo e não define ou qualifica nada, especialmente do ponto de vista estético. Jorra interação por todos os poros da contemporaneidade. Basta ligar a televisão, o rádio, o computador, o celular e lá está a tal da interatividade a nos espreitar. Pode-se mesmo dizer que interação é a commodity da indústria da informática e das telecomunicações, seu produto primário e de base. Navegando contra essa tendência vem se consolidando na América Latina uma gama de práticas artísticas que chamam a atenção por tensionar o campo da interatividade para além da mera aplicabilidade embutida nos seus projetos industriais, mas sem apelar para um discurso conservador e extemporâneo que a renega. Trata-se de uma onda tecnofágica que devora a tecnologia, triturando-a para reinseri-la aos contextos locais e linká-la ao panorama global. Nesses projetos, são marcantes as operações de combinação entre a tradição e a inovação, a revalidação das noções de high e low tech e ações micropolíticas de apropriação das mídias. É o que fica claro quando se atenta para a produção de artistas como o brasileiro Dirceu Maués, o colombiano Edwin Sanchez e o mexicano Arcangel Constantini.
Giselle Beiguelman
América tecnofágica
Artemídia latino-americana devora tecn Acima , imagens dos pinhole-vídeos captados com câmeras artesanais de caixas de fósforo de Dirceu Maués. Abaixo, frames de vídeos gravados pelas Farc, copiados pelo colombiano Edwin Sanchez e usados em Crossing Points, em cartaz no Videobrasil . Veja os vídeos na exposição on-line Tecnofagias (select.art.br)
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a tecnologia para globalizar conceitos Dirceu Maués e a filosofia da caixa preta 2.0 Ele faz câmeras pinholes para capturar imagens que, digitalizadas e editadas em vídeo, são disponibilizadas na internet. As câmeras são de vários tipos e sua engenhosidade e visualidade estabelecem o status de obra de arte. De uma caixa de fósforos, utilizada para capturar um voo de Belém a Brasília, a uma lata redonda de Sonho de Valsa, para fazer uma série de fotos panorâmicas, tudo vira um terceiro olho nas mãos de Dirceu Maués (Brasil, Belém, 1968). Em tempos de câmeras digitais que fazem tudo, ele prefere começar por um dispositivo artesanal, concebendo a câmera de que precisa para a imagem que vai ainda inventar. Anacronismo? Nada disso. Puro
enfrentamento com a caixa preta, vontade de “ter controle sobre algumas coisas e não deixar o controle todo para a câmera”, diz. Apesar de o trabalho com pinholes permitir que ele participe da produção da imagem desde a construção da câmera, ele não apaga, mas sim acentua, o rastro maquínico do processo de criação, justamente por contradizer a lógica industrial. Maués explica o paradoxo: “Ao mesmo tempo que tenho um controle muito maior sobre tudo, estou aberto aos erros, acasos e imperfeições do processo. As câmeras industriais já vêm com seus programas e subprogramas, muitos botões para apertar. A despeito do número enorme de possibilidades de uso, de certa forma tudo isso representa uma limitação, pois acabamos seguindo padrões e modelos que já estão inscritos na câmera, padrões que perseguem uma certa perfeição que não me interessa muito”. fotos: divulgação
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Ao l a d o, c â m e r a s a rt e sa n a i s f e i ta s p o r Mau é s pa ra p r o d u z i r a s i m ag e n s d e s e u s v í d e os . A ú lt i m a f oto, à d i r e i ta , m ost r a c â m e r a e m d es e n vo lv i m e n to pa r a c i n e m a 3 D. A ba i xo, o m e x i ca n o A r ca n g e l Co n sta n t i n i a p r e s e n ta I c pt i cayot i , q u e r e to m a a t r a d i ç ã o m a r i ac h i d o co n tato p o r c h o q u e , e as e s p i g as f e i ta s co m o b i o p o l í m e r o PL A , s i n t e t i z a d o d o a m i d o d e m i l h o, q u e q u e st i o n a m a p o l í t i ca e co l ó g i ca da s co r p o ra ç õ es .
A construção das câmeras é, acima de tudo, “uma forma de colocar questões sobre a tecnologia”, afirma Maués. Esse questionamento passa, contudo, longe da vontade de negá-la. Evidências disso são os projetos mais recentes do artista, em que utiliza câmeras artesanais controladas por arduíno (uma plataforma de hardware aberto e de fácil reprogramação). “O objetivo é desenvolver uma pinhole que captura imagens diretamente em película de cinema e uma pinhole 3D”, diz.
Edwin Sanchez e a arte do assalto Designer, ele tem parte de seu sustento ancorada no mercado de vídeos institucionais. Em uma prestação corriqueira de serviço, Edwin Sanchez (Colômbia, Bogotá, 1976) foi contratado pelo governo para fazer um vídeo, utilizando material apreendido dos guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc). Ele fez o vídeo, mas copiou todo o material e o utilizou como base de sua instalação Crossing Points (2010), um dos projetos
Reciclagem, apropriação e politização das mídi selecionados para o Videobrasil 2011, em cartaz no Sesc-Belenzinho, em São Paulo, até 29 de janeiro. Os vídeos surpreenderam Sanchez porque apresentavam os guerrilheiros em seu cotidiano, “dormindo, comendo, tomando banho, contando piadas. Como pessoas, camponeses, trabalhadores, amigos, enfim”, conta. Ele afirma que a guerra civil colombiana é também uma batalha midiática, uma disputa de imagens: “Para o Estado colombiano, é importan-
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te lutar contra um inimigo forte, que seja perigoso e uma ameaça para a sociedade. Cria campanhas midiáticas de desprestígio e degradação, nacional e internacionalmente, contra seu inimigo, a guerrilha. Por isso acho importante evidenciar esse outro olhar do conflito”. O projeto já foi apresentado em Bogotá e retoma algumas estratégias do artista. Ele procura sempre lidar diretamente com problemas colombianos que
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Arcangel Constantini, o poeta do ruído final
s mídias marcam arte latina adquirem densidade por se articular a questões globais. Não idealiza o papel do artista na transformação social: “De dentro do circuito da arte, é quase impossível obter uma repercussão real ou afetar instâncias fora desse circuito. Mas isso é uma vantagem também, pois estou trabalhando com material quase roubado de uma instituição do Estado colombiano e, a partir da arte, posso falar sem ser incriminado. A arte permite jogar com a ilegalidade e o testemunho”.
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Desconstruindo velhos consoles de videogame Atari, fazendo barulho com telefones quebrados, dando, literalmente, choques elétricos nos visitantes de suas obras, Arcangel Constantini (México, Cidade do México, 1970) derrete utopias e aposta em futuros mais sensíveis ao outro. Perambulador de mercados populares na periferia da capital mexicana, onde se vendem inúmeros equipamentos quebrados, ele se alimenta desse lixo industrializado para desfetichizá-lo. “O que me interessa é o entorno e a percepção da obsolescência em suas distintas facetas. A decadência da matéria, causada pelas forças entrópicas, gera uma degradação constante da forma, como uma espécie de ruído. Enquanto isso, no entorno digital, um bit é um bit: o sistema que o contém é estável, não sofre degradação da informação por causa natural. Os erros nos processos digitais poderiam ser considerados uma referência dessa decadência”, diz o artista. Ele traz isso à tona em projetos como Atari-Noise (1999), em que o célebre equipamento de 1977 foi modificado para que seus usuários produzam imagens imprevisíveis, a partir dos botões nativos e dos criados por ele. Em um de seus projetos mais recentes, Plástico/Milho/Plástico (2010), Constantini leva essa dimensão da concretude tecnológica ao limite. Comissionada para o Ano da Biodiversidade, pela Universidade Autônoma do México, a obra consiste em 800 espigas de milho plásticas. Esse plástico foi feito com ácido polilático, utilizado na produção de um poliéster biodegradável, mas não reciclável, derivado do milho, da tapioca e da cana-de-açúcar. Para alguns, o projeto deve ter soado como a rendição ao sistema dos objetos e o fim da carreira de um dos príncipes do glitch, a incômoda estética do ruído. Quanta ingenuidade... É ele quem explica: “O milho é fundamental para nossa cultura. Mas a globalização permitiu que empresas capitalistas sem escrúpulos, que buscam apenas o lucro, modificassem geneticamente bactérias que processam o amido para passar a produzir o acido polilático, utilizado para o desenvolvimento de plásticos supostamente biodegradáveis, usados nas carcaças tecnológicas de telefones, laptops e brinquedos. O milho é um alimento fundamental de nossa dieta. Em um continente como o nosso, de tão alta taxa de desnutrição, ele está sendo usado para aumentar o mercado proprietário, sem tornar os consumidores conscientes do impacto gerado por essas empresas”. fotos: divulgação
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comportamento
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Evas latinas e futeboleñas
nina gazire
Como o estereótipo da mulher voluptuosa, imperativo na América Latina, ganha um novo significado com as musas do futebol Caliente! Este é um dos adjetivos mais usados pela mídia internacional para descrever a paraguaia Larissa Mabel Riquelme Frutos. Larissa Riquelme é a bola da vez. Desde que apareceu na Copa do Mundo de 2010 torcendo pela seleção paraguaia de futebol, não saiu mais dos ensaios fotográficos dedicados ao
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Larissa riquelme, musa da torcida paraguaia, no carnaval carioca a musa futeboleña paraguaia na copa de 2010, quando marcou seu gol no placar da fama
público masculino. Começou sua carreira de modelo aos 17 anos e, antes da fama mundial, já era conhecida da mídia paraguaia. Estreou usando o nome artístico Larissa Babel. Babel caliente? Permita-nos fazer uso de um silogismo bem clichê: Babel nos remete à história bíblica da torre que tinha como projeto chegar aos céus, desafiando o poder divino.
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O termo “caliente” também está associado ao pecado. É o adjetivo obrigatório para descrever a mulher latina que pode levar qualquer um da cama aos céus. Essa mistura entre o proibido, o exótico e o desfrutável cabe no arquétipo bíblico universal do feminino: o estereótipo da Eva. Mais do que as outras mulheres existentes mundo afora, a condição de Eva foi compulsoriamente reforçada na descrição das mulheres deste continente, desde a colonização e a conquista da América pelos ibéricos. Ao retratar as índias tupinambás brasileiras, por volta do século 16, o gravurista belga Theodor de Bry gravava em cobre a nudez dessas nativas. Mas o que chocava os colonizadores não era a nudez. Os tupinambás, conhecidos pelo hábito da antropofagia, apareciam de maneira supervalorizada, deleitandose em banquetes de carne humana. Nessas imagens, os homens eram mais contidos no ato da refeição profana, enquanto as mulheres estavam em estado de êxtase ao saborear a carne proibida. “A Eva não seria necessariamente o paradigma latino, ela está presente em todo imaginário descritivo em relação
ao feminino ocidental. Mas sociedades ocidentais cristãs sempre viram com desconfiança o fato de a América Latina ter sofrido uma mestiçagem”, explica a historiadora Mary Del Priore. Comer a carne alheia, copular com o estrangeiro. Mesmo que o canibalismo seja metafórico, o ato de se fundir ao outro foi a base formadora da sociedade latino-americana e motivo de temor por parte da Igreja Católica, que culpava as mulheres indígenas por tirar os cristãos do “bom caminho” da pureza étnica. A mestiçagem sempre foi vista como ameaça pelos europeus, que procuravam se manter entre as elites. E a mulher mestiça, negra e índia que não conseguia se sustentar trabalhando na mesma condição que o homem, podia encontrar na sexualidade sua alforria social. “A América Latina ainda é uma região pobre. O sexo sempre foi uma forma de ascensão social e isso foi dito e estudado por feministas e historiadoras especialistas sobre a condição feminina latinoamericana. Essa mobilidade social via sexualidade não diminui a vitória que as mulheres alcançaram naquela época”, explica a historiadora. >>
À esquerda, Keiny Andrade/LatinContent/Getty Images; À direita, Luis Vera/LatinContent/Getty Images
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Evas descamisadas Não, não queremos que a conclusão de nosso longo silogismo sobre o estereótipo de mulher latina e “caliente” – também aplicado à modelo Larissa Riquelme – recaia em uma vitimização da beldade paraguaia. Nascida em 1985, em Assunção, Larissa teve uma infância feliz e sempre gostou de futebol. “Quando pequena, eu ia ao campo ver o time de futebol do meu pai jogar”, conta. Fingir que era modelo famosa era uma de suas brincadeiras favoritas de menina. Começou a carreira em 2005, ao ganhar o reality show Verano Show. “Se a carreira de modelo não desse certo, eu seria advogada”, especula. Já famosa em seu país, foi paga por uma empresa de telefonia para fazer a propaganda de uma marca de celulares durante os jogos do Paraguai na copa de 2010. O marketing saiu pela culatra. Como uma artilheira do mundo das celebridades instantâneas, Larissa soube mirar a bola na boca do gol. Apareceu na mídia não só como garotapropaganda, mas também pelo modo passional
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com que torcia por sua seleção. Muito se especulou sobre seus 15 minutos de fama. Para alguns, eles não durariam até o final da Copa. Mas, mesmo com o fim do maior evento esportivo do mundo, ela se manteve na mídia – ainda que esporadicamente – até a chegada do dia 3 de julho de 2011, quando reapareceu nos jogos da Copa América torcendo fervorosamente pelo Paraguai. Em pleno inverno, continuou mostrando seu deslumbrante derrière e o celular entre os seios – sua marca registrada. Desde que apareceu na Copa, a modelo já lucrou cerca de US$ 1 milhão e vem recebendo inúmeros convites para propagandas de celulares, reality shows e novelas. Para aparecer nos jogos da Copa América, a modelo recebeu a quantia de US$ 15 mil por jogo. Dessa forma, acabou criando uma nova modalidade de torcedora que tem surgido aos montes durante os jogos de futebol pela América Latina. Foi também durante a Copa
herdeiras de larissa riquelme, a conterrânea patty veue e a larissa chinesa que apareceu em amistoso do real madrid as musas do peru, irina grandez e daisy araujo, e a venezuelana diosa canales na comissão de frente de seus times
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A mobilidade social na sexualidade é uma constante da história latino americana e não diminui a vitória que as mulheres alcançaram na colônia e em nossa época América que as modelos peruanas Irina Grandez e Daysi Araujo ganharam seus minutos de fama. O script era o mesmo de Larissa: blusa decotada com cores patrióticas e o celular entre os seios. Agora fazem propaganda desse novo tipo de serviço especializado de torcedoras decotadas em diversos vídeos do YouTube. Na Venezuela, a versão de Larissa tem por nome Diosa Canales. Modelo já conhecida entre seus compatriotas, Diosa usou uma versão mais que mini do uniforme de futebol venezuelano em uma aparição na Plaza Alfredo Sadel de Las Mercedes, em Caracas.
Sua presença durante os festejos da vitória da Venezuela sobre o Chile foi suficiente para atrair os comentários da imprensa internacional. Em meio à brincadeira das Evas latinas quase descamisadas, até mesmo uma Larissa chinesa surgiu durante o jogo do Real Madrid contra o Guangzhou Evergrande, em agosto. “Não me incomodam essas mulheres que se vestem e posam da mesma forma que eu”, finaliza Larissa Riquelme, que, quando tem tempo livre, se reúne com suas amigas para realizar campeonatos de futebol feminino.
À esquerda, divulgação, Water/EFE; À direita, AFP PHOTO / ALEJANDRO PAGNI, RODRIGO ARANGUA/AFP
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A experiência da viagem, por força de agenda globalizada ou por escolha pessoal, é fenômeno recorrente e deixa marcas na produção contemporânea
angélica de moraes
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à esquer da , “qualque r vazi o”, foto d e a l berto b i tar. ac ima , aust i n -par i s: um ruí do e n t r e ja n e e t ravi s, foto d e l e t íc ia car doso. am b os pa rt ic ipa m do pan oram a do ma m-s p
Jailton Moreira viajou por mais de 60 países ao longo de duas décadas. Isso rendeu algo como 100 horas de gravações em vídeo, que editou (“por enquanto”, frisa) em 150 segmentos de um a dez minutos de duração cada, que acessa e exibe como se fosse um VJ, na performance que integra o 32º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Denominada A Arte É Uma Viagem, a performance lembra uma conversa em torno da fogueira, modo ancestral de contar histórias.“É isso mesmo que faço nesse trabalho: conto histórias com fragmentos de viagens”, diz o artista multimeios gaúcho. Invocando Duchamp, acrescenta: “Isso não era arte até eu nomear assim, porque não tem autonomia como documentário nem como videoarte”. A “fogueira” é um grupo de monitores de tela plana. O público senta-se informalmente em torno desses focos luminosos hipnóticos e acompanha a narrativa do artista-viajante, que vai acionando e comentando, de improviso, miniedições de vídeos de viagens em roteiros que nunca se repetem. “Roteirizar viagem é perder o prazer da deambulação, do aleatório e do imprevisto”, observa ele.
A ideia para esse trabalho, conta Moreira, surgiu ao saber que, nos primórdios da história do cinema, as projeções de imagens mudas em movimento eram acompanhadas de narrativa oral, feita no momento da projeção. Consolidou-se quando teve oportunidade de conhecer, no interior da Etiópia, minúsculos e remotos museus, “pequenos acervos de templos religiosos, cujas peças são mostradas, uma a uma, ao visitante, de uma janela, pelo sacerdote”. Esse museu on demand acionou no artista uma reflexão sobre as muitas interfaces que a obra percorre entre a instituição e o olhar do público. “Na minha performance, busquei eliminar essas interfaces institucionais.” Qual o fascínio da viagem? “O que me interessa é a mudança de ponto de vista; gosto de relativizar minhas certezas. O mundo é mais interessante do que a arte. Tenho nojo da arte protegida e autor-referente do cubo branco, daí porque afirmo nessa performance que arte é viagem”, diz Moreira.
Nos pés, o pó dos caminhos O artista mineiro Paulo Nazareth também pegou a estrada para fazer da viagem, ao mesmo tempo, processo criativo e obra acabada. Ele ganhou visibilidade ao ser agraciado, em 2004, com a prestigiosa Bolsa Pampulha, fotos: ALBERTO BITAR e letícia cardoso
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durante o 28º Salão de Arte de Belo Horizonte (MG). Desde então, vem realizando fotografias que se equilibram com eficiência entre a beleza sedutora do exótico e ácidas reflexões de cunho sociológico, executadas com crueza imagética. Atualmente, Nazareth está em plena realização de uma viagem-performance que pode ser acompanhada pelo site http://latinamericanotice.blogspot.com/. Nele, o artista documenta e noticia o desenvolvimento do trajeto que iniciou no interior de Minas Gerais e vai terminar no bairro nova-iorquino do Brooklin, onde pretende “viver e saber o que acontece lá”. Detalhe importante e que funda a poética do trabalho: o trajeto é feito a pé e Nazareth está recolhendo nos pés “todo o pó dos caminhos”. Nesse percurso, vê cenas que admite por vezes ultrapassarem sua capacidade de captá-las em fotografia. Foi o que aconteceu no registro de 12 de setembro, quando escreveu em seu site: “Vinte horas menos dez minutos; dois homens com caras de indígenas, provavelmente
“o artista acaba se movendo para acompanhar o circuito do mercado e os fluxos dos capitais, que também são cada vez mais velozes”, diz cauê alves nahuatl, fazem exercícios de halterofilismo com um tronco de árvore, em uma praia de Vera Cruz, no Golfo do México”.
o deslocameNto como bússola A viagem como estopim do processo criativo do artista está no centro do projeto pensado pelos curadores Cristiane Tejo e Cauê Alves para a atual edição do Panorama do MAM-SP. “Mais do que uma exposição, é também uma plataforma de discussão e decantação de processos artísticos”, frisam os curadores no texto a quatro mãos no qual esclarecem seus objetivos. Pretendem fazer uma reflexão sobre o estado atual da arte contemporânea. Uma das características da atualidade seria, ainda conforme Tejo e Alves, o crescente deslocamento dos artistas e trabalhos de arte pelo globo e seus reflexos na
à esquer da , paulo n azar e t h n a p e r fo r ma n ce “obj e tos para ta mpa r o sol de se us olhos”, d e 2 0 1 0. a ba ixo, jai lton m or e i ra d ia n t e da p roj e ção de um f ram e d e “a a rt e é u m a vi age m ”, d e 2 0 11
arte brasileira. Daí porque o Panorama atual seria uma oportunidade de elencar “algumas noções de circulação e deslocamento na prática artística, do corpo dos artistas e do pensamento”, o que permitiria “uma visada ampla da multiplicidade da arte no Brasil”. Em entrevista à seLecT, Cristiane Tejo observa que, para além do modelo fundador do Panorama, “interessa menos o mapeamento e a listagem dos artistas do que a reflexão sobre o sistema da arte e seus condicionantes”. Entre os condicionantes mais evidentes da produção atual estaria, segundo ela, “o tempo ampliado dos programas de residência, o fe-
nômeno dos constantes deslocamentos dos artistas e como isso se reflete e se materializa na produção”. ”Interessou-nos analisar também”, afirma Tejo, “o fastio e a recusa de certos artistas em acompanhar a voracidade do sistema das artes, os que param para pensar na deriva e em trabalhos de longo prazo.” As viagens frequentes não estariam a reboque de demandas de agenda e estratégias de exposições de um mercado de arte globalizado, veloz e voraz? Em que medida o fenômeno dos artistas viajantes seria apenas resultado da curiosidade individual do artista? “Atualmente, ao mesmo tempo que temos uma situação institucional mais madura, que promove essas viagens, o artista acaba se movendo e acompanhando os fluxos dos capitais que também são cada vez mais velozes”, opina Cauê Alves.
cartografias obsessivas Cildo Meireles é protagonista-chave para a percepção do fenômeno artista-viajante. Ele é o artista brasileiro vivo de trajetória internacional mais longeva, ampla e sólida, status que administra desde 1970, quando participou da mítica coletiva Informations, no Museu de Arte Moderna de Nova York. Meireles participa da atual edição do Panorama do MAM-SP com uma obra muito significativa de sua antiga obsessão pelas viagens e pela cartografia que extrai dos lugares por onde anda: Cordões (1969). Trata-se do registro dos vestígios de uma
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artes visuais
ação performática em que estendeu 30 quilômetros de barbante de algodão ao longo de um extenso trecho do litoral sul do estado do Rio de Janeiro. “Era parte do traçado do que seria a rodovia Rio-Santos”, lembra o artista. Recolhido o pouco que sobrou desses barbantes após os diversos acidentes de percurso (“Muito moleque usou para empinar pipa; uma parte do fio foi queimada em incêndios da mata, outros arrancados por animais silvestres”, lembra ele), o resultado foi um objeto-viajante:um estojo que contém os fiapos de cordão e o mapa da região percorrida. Entre as inúmeras leituras possíveis, pode-se pensar que aquele emaranhado de frágeis fios aponta o paradoxo do ser humano tentar apossar-se da vastidão do mundo. Algo assim como o dedal que o filósofo Santo Agostinho (354-430 d.C.), aludindo à capacidade limitada de nossa percepção diante do mundo, aponta ser inútil para esgotar a água do oceano. Meireles lembra que Cordões integra uma série que denominou de Arte Física, ainda hoje com vários projetos irrealizados. “Agora me falta vigor físico para continuar a Arte Física”, diverte-se. “Um desses projetos chama-se Tordesilhas; eu estenderia um fio por todo o trajeto do Tratado de Tordesilhas”, acordo diplomático entre Portugal e Espanha, assinado em
“durante muito tempo fui defensor da construção de hidrelétricas; essa viagem mudou inteiramente minha opinião”, diz cildo meireles
1494, que estabeleceu a fronteira entre o Brasil e a América Latina. Um bandeirante teria levado 50 anos para realizar esse percurso por terra, semeando vilarejos ao longo do caminho, conta. Pausa dramática. “O sujeito tinha 22 anos quando começou a viagem e só terminou ao morrer, aos 72 anos.” Meireles conclui, com um suspiro: “Uma única viagem de vida; não, melhor deixar esse projeto pra lá”. Talvez tenha passado por sua memória o duro cotidiano enfrentado pelos sertanistas e indigenistas de sua família, que abrange três gerações e inclui grandes protagonistas na defesa dos índios diante da chamada marcha civilizatória. Extensos deslocamentos em condições por vezes bastante desconfortáveis não impediram que Cildo Meireles realizasse seu mais recente trabalho-viajante, que expôs no projeto Ocupação, no Itaú Cultural de São Paulo, de 21 de agosto a 2 de outubro: Rio/oir. O poético jogo de palavras tira partido da natureza bilíngue do assunto (as águas do Rio Paraná são compartilhadas por Agentina e Paraguai, em Foz do Iguaçu) ao acrescentar o verbo espanhol ouvir como espelhamento do rio.
nAs págInAs AntERIoREs, à EsquERdA, foto dE pA p uLo nAZAREtH, coRtEsIA gALERIA MEndEs Wood; à dIREItA, foto dE MARtIn stREIBEL; nEstA págInA, foto dE EduARdo fRAIpont
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à esquer da e aci m a , ma kin g o f d e r i o/oi r, de c i l d o m e i r e les: sons d es d e o est ron do da p o ro ro ca at é o gotejar d o o l h o d’ á g ua
Rio/oir é também o resumo exato do objetivo da obra: ouvir os cursos d’água, desde suas nascentes, das três principais bacias hidrográficas do País: Tocantins, Paraná e São Francisco. Desde a enorme queda d’água de Foz do Iguaçu (que já foi a várias vezes mais portentosa Sete Quedas, anulada pela hidrelétrica de Itaipu), até os últimos pingos de águas residuais levadas cano abaixo. A captação dos sons consumiu dois anos de viagens, que envolveram uma equipe técnica enxuta e uma aventura geográfica que incluiu até mesmo a captação dos sons da pororoca, de cima da prancha de um surfista equilibrado em suas ondas. Os sons, mixados, resultaram em obra sonora de envergadura inédita e ressonância poética e política de fragor
poderoso. Rio/oir foi gravado em disco de vinil que, parado, mostra uma aprazível vista do Rio de Janeiro. Em movimento assemelha-se a um redemoinho marrom de esgoto. Do lado A, os sons de água; do lado B, sons de risadas. Ironia fina do artista, flagrando a inconsequência suicida de um povo que dá de ombros para a tragédia da morte de seus rios. Por que ouvir os rios? “Durante muito tempo fui defensor da construção de hidrelétricas como fonte de energia limpa; essa viagem mudou inteiramente minha opinião”, esclarece Meireles. “O Rio São Francisco atualmente tem nove hidrelétricas ao longo do seu leito e isto trouxe como consequência uma vazão atual de apenas 8% do volume original do rio, que está secando a uma velocidade espantosa”, denuncia. Focado na função política da arte sem descuidar da qualidade artística necessária para garantir potência e legitimidade ao discurso nela embutido, Meireles é muito atento aos destinos cada vez mais nebulosos das nações indígenas. Preocupa-se com a hidrelétrica de Belo Monte, já em fase de execução no Rio Xingu (Amazônia), que vai atingir as populações ribeirinhas e a reserva indígena do Xingu, território exemplar e único na preservação cultural de várias nações. “Quem mexe com água está mexendo com a natureza e ela tem suas próprias regras”, frisa. “Muito em breve, todas as águas fluviais do Brasil serão, de certa forma, residuais, porque estão sendo poluídas na origem; estão sendo canalizadas e privatizadas.” Amargo mas real relatório de viagem. Panorama da Arte Brasileira 2011 – Itinerários, itinerâncias, de 16 de outubro a 18 de dezembro, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Parque do Ibirapuera (Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº - Portão 3), T (11) 5085-1300 www.mam.org.br foto: EduARdo fRAIpont
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D e c ima pa ra bai xo: Salto A n ge l , Am azôn i a venezuela na ; Cata ratas do Igua çu, pa ra ná; Cidade perdi da de Pa le n qu e , Mé xi co ; À d ir e ita : Catarata de San rafae l , Equad or e Mach u picch u, Peru
DE CIMA PARA BAIXO, FOTOS THOMAS COEX/AFP PHOTO, Mauricioluis.deviantart, Dennis Jarvis @archer10
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G i s e l l e B e i g u e l m a n e R i c a r d o Va n S t e e n
D i á r i o d e u m a v i ag e m e m b usca da A m é r i ca e d ê n i ca n a c o m pa n h i a d e t r ê s p o e ta s
Saio em busca do Eldorado, o reino mítico que ficaria em algum lugar entre o Amazonas e o Peru. Cidade onde todas as construções são de ouro e a riqueza, inesgotável. Não encontro o paraíso tão buscado pelos colonizadores da América. Desisto e vou-me embora para Pasárgada. É que cansei de fazer ginástica, de andar de bicicleta, de andar de carro e subir em avião. Decido que, de agora em diante, só tomarei banhos de mar. E quando cansar, deito na beira do rio e espero o silêncio me encontrar. (Baseado em Manuel Bandeira, Vou me Embora para Pasárgada) DE CIMA PARA BAIXO, FOTOS DIVULGAÇÃO, Jessie Reeder
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viagem
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DE CIMA PARA BAIXO, CERRO ALCÁZAR, SAN J UÁN, ARGENTINA; ÁRVORE DE PEDRA , BOLÍ VIA; VALLE DE LA LUNA , ARGENTINA ; À D IREITA , VULCÃO MICHIMAHUIDA E TORRES D EL PAINE, CHILE
DE CIMA PARA BAIXO, FOTOS DIVULGAÇÃO, Ian Parker/Evanescent Light, Loin des yeux
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Seguindo meu caminho, descubro que grandes são os desertos e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto, que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes. Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, grandes porque de ali se vê tudo... Não tirei bilhete para a morte. Não houve vontade ou ocasião que eu não agarrasse. Hoje não me resta, em véspera de nova viagem, com a mala aberta esperando a arrumação adiada, senão saber isto: grandes são os desertos e tudo é deserto. Grande é a vida e não vale a pena nada mais que a vida. (Baseado em Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, Grandes) DE CIMA PARA BAIXO, FOTOS Carlos Gutierrez, Julien Chopard
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De cima para baixo, PUNTO FIJO, VENEZUELA; ILHA DO MALPELO , COLôMBIa; salar de uyuni, bolívia; à direita, canyon sumiero, méxico; torres del paine, chile; cerro torre los glaciares, national park, patagônia, argentina
DE CIMA PARA BAIXO, FOTOS DIVULGAÇÃO, Mafalda Coelho/Flickr, Ian Parker/Evanescent Light
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Chego ao fim do percurso. Sinto de novo a natureza, longe do pandemônio da cidade. Aqui tudo é cheio de santa singeleza. Vagueio pela múrmura leveza, que deslumbra de azul e claridade. Mas nada. Resta vívida a saudade, da cidade em bulício e febre acesa. Ante a perspectiva da partida, sinto que me arranca algo da vida. Mas quero ir. E ponho-me a pensar: que a vida é esta incerteza que em mim mora, a vontade tremenda de ir-me embora e a tremenda vontade de ficar. (Baseado em Vinicius de Moraes, Natureza Humana) DE CIMA PARA BAIXO, FOTOS Ted Allan Steadman, Simon Fitzpatrick, DIVULGAÇÃO
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casa na árvo re e m j uqu i t i ba , s p, co n st ru í da co m mourõ es e cab os de vassou ra , proj e to de rica rdo va n stee n . n a P á g i n a ao l ado, Ban co Brasileirinh o A bacaxi (Co n c e i to : Fi r m acasa)
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viagem ao fundo da mata Materiais naturais e formas básicas sintonizam o design de última geração com a vida ao ar livre
Fotos roberto wagner direção RICARDO VAN STEEN produção de objetos Solange PORTO
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Po ltro na Par i pu e i ra , de Hugo Fran ç a (ateliê H ugo Fran ç a), e lu m i n á r i a co m espelh o de Ro dr i go al m e i da (Mi n i - Lof t ). na página ao l ado, po lt ro n a m ac ram ê de jea n-pierre To rt i l (Co n c e i to : Fi r m acasa)
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P o lt ro n a v idi gal da Lat toog ( P e dro Moog e Leo na rdo Lattavo) ; Ba n co bras ile i r i n ho Fac e Ve r m e lho, da Con ceito : Firmacasa e ba nco ba n d eiro l a d e i van R e ze n de . n a p ági n a ao la do, po ltro na ba laco baco, d e N ico l e To m azi V e r di (A Lot Of ); Bowl Bronz e, de R egina Medeiros (LS S el ect io n ), Mesa Água , d e d om i n gos T óto ra , e Pu fe Co lo rido de Ma rc elo Rose n baum (Con c e i to: F i r m acasa)
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nesta página , ca deiras de Oswal do A rt h u r B rat ke (E t e l Interio res) . na página ao la d o, cade i ra Oxu m , de Ro dr i go A lmeida , ba nco f lo resta e f ru t e i ra fo l h a , de P e dro P e t ry (At e l i ê P e dro P e t ry) pro dução a nna guirro ; Assist e n t e de pro du ç ã o de art e e o bjetos V ito r Doura do ; Co ntra- Reg ra Val di r Bat i sta Sou to ; Ajuda nte Nenel L ima; M oto r i sta J ú n i o r V i tal i n o
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Jimi Hendrix nunca veio ao Brasil. Mas os ventos daqui sopraram para lá e levaram a onda dos xales, batas, franjas, batiques e ponchos que por aqui enfeitaram Mercedes. Mas aí veio Santana, do México. Então, abra os braços, morena, solte o cabelo e baile REALIZAÇÃO – STUDIO THE LIBRARY, MODELO – CAROL RIBEIRO STYLING – CAROL TARSITANO, PRODUÇÃO – ANNA GUIRRO MAQUIAGEM – ELIEZER LOPES CABELO – ADAL ALVES ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA – IVAN PIRES
Fotos a n d r é pa s s o s , edição de moda c i r o m i d e n a
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P O N C HO D E F RAN JAS ROB E RTO CAVALLI CA L Ç A PA N TA LON A LI A SOUZA SA N D Á L IA ST U DI O T M LS CO L A R D E P EN AS OPTO
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V EST I DO B LU M AR I N E SAI A PAT R I C I A M OT TA CO L AR DE PE N AS O PTO
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V EST ID O D E F RAN JAS D’AROUC HE CA L Ç A MA X MARA CASACO D E C ROCHÊ DOI SE LLES SA N D Á L IA ST UDI O T M LS CO L A R D E P EN AS OPTO
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VEST I DO B LU E PO R KAT I A I G N AC I O CO L AR DE PE N AS O PTO SAN DÁ L I A ST U DI O T M L S
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V EST ID O BLUMAR I N E CA L Ç A RO BE RTO CAVALLI PA L E T Ó AC ERVO P ESSOAL CASACO D E C ROCHÊ DOI SE LLES SA N D Á L IA ST U DI O T M LS
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À ESQUER DA , T ÚN I CA J O DE M E R CO L A R D E P EN AS OPTO À D IR E ITA , V EST I DO ÚLT I M A HO RA ( M & GUI A) SA N D Á L IA ST UDI O T M LS
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território
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O Cruzeiro do Sul muda com o tempo. É uma clara expressão do dinamismo constante da natureza M a r c e lo G l e i s e r
Quando retorno ao Brasil a passeio ou a trabalho, duas coisas fazem meu coração bater mais rápido: de dia, o canto do bem-te-vi; de noite, a visão do Cruzeiro do Sul. Não há como escapar, ao menos longe da poluição urbana, daquelas cinco estrelas, arranjadas como que por algum escultor celeste, na forma de cruz. Ou quase. Afinal, temos a quinta estrela fora dos eixos, chamada de épsilon Crux, a menos brilhante. Em termos de brilho, as cinco estrelas seguem uma ordem perfeita, decrescendo da mais brilhante na base da constelação, a alfa Crux ou Acrux, em sentido horário até a última, a épsilon Crux. O fato de serem cinco e não quatro estrelas parece-me providencial: lembrança de que a perfeição é apenas um conceito, algo a que podemos aspirar a atingir, mas que, na realidade, é inatingível. Acho que todo brasileiro sabe, ou deveria saber, que, se traçarmos uma linha reta ao longo do eixo mais longo do Cruzeiro, começando da estrela mais “alta”, a gama Crux ou Gacrux, até a que está na base, a alfa Crux ou Acrux, e continuarmos por 4,5 vezes essa distância, chegamos ao Polo Sul celeste. Por milênios, a constelação serviu como um marco, orientando os viajantes do Hemisfério Sul. Obviamente, seu impacto não se restringe ao Brasil. O Cruzeiro do Sul aparece também nas bandeiras da Austrália, Nova Zelândia, Papua-Nova Guiné e Samoa. Mais recentemente, reapareceu até na bandeira do Mercosul. Estrelas são a escrita dos céus. Desde tempos imemoriais, muito antes da invenção da bússola, que as constelações representam uma espécie de mapa dual, ao mesmo tempo direcional e mítico. Para as culturas pré-científicas, os céus eram sagrados, a morada dos deuses. Portanto, interpretar o céu e seus movimentos significava interpretar as intenções divinas. A astrologia, que fez (e ainda faz) parte de inúmeras culturas, pode ser vista como uma forma de dialeto soletrado nas constelações, comunicação entre os deuses e as pessoas. Os céus servem de oráculo, determinando o futuro das pessoas, ou ao menos sugerindo certas tendências nas diversas áreas da vida de cada um. Já os aborígines australianos, por exemplo, viam no Cruzeiro do Sul um enorme gambá sentado, representando o deus celeste Mirrabooka. Uma imagem da
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Na serigrafia a noite (1998), IRAN DO ESPÍRITO SANTO apaga as cores e formas da bandeira Brasileira
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constelação, esculpida em pedra, foi encontrada em Machu Picchu, no Peru. Para os Incas, a constelação se chamava Chakana, ou Ponte Celeste. Os maoris da Nova Zelândia a chamavam de Te Punga, a âncora que segurava a Via Láctea na sua posição. Inúmeras culturas austrais deram ao Cruzeiro do Sul uma interpretação mítica única, que atendia às suas necessidades. O notável é a universalidade do apelo exercido por essa constelação, um emblema de identificação inquestionável das culturas do Hemisfério Sul. Do ponto de vista científico, é sempre bom lembrar que constelações são acidentes: mesmo se percebemos as estrelas como que impressas na abóbada celeste, esta abóbada bidimensional – para nós parecendo o interior de uma gigantesca bola – não existe. O espaço é tridimensional e as estrelas não residem no mesmo plano. Fora isso, as estrelas estão em movimento. Para nós, podem parecer paradas, mas na realidade não estão. Suas velocidades radiais (na nossa direção) chegam a centenas ou mesmo milhares de quilômetros por segundo! Não percebemos isso devido às suas enormes distâncias. Tal qual um avião, que parece mover-se lentamente nos céus mesmo se voando a velocidades de 600 km/h, quanto mais distante o objeto, mais lento nos parece. A Terra também tem vários movimentos. Fora seu giro diurno e sua órbita anual em torno do Sol, ela também tem um movimento chamado precessão dos equinócios, nome complicado que, simplesmente, diz que a Terra é como um pião desequilibrado, inclinado cerca de 23,5 graus em relação à vertical. Essa precessão é extremamente lenta, demorando 26 mil anos para completar uma volta! Isso significa que nossa percepção dos céus também gira, e o que hoje está nos céus do Hemisfério Sul esteve nos céus do Hemisfério Norte no passado e poderá estar no futuro. Por exemplo, o Cruzeiro do Sul era perfeitamente visível para os gregos de 1000 a.C., mesmo que pouco acima do horizonte. Hoje já não é. A escrita dos céus, portanto, muda com o tempo, uma clara expressão do dinamismo constante da Natureza. Se conseguirmos sobreviver pelos próximos 10 mil anos, teremos de redesenhar a bandeira nacional.
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literatura
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Um Brasil escapa ao clichê do calorento trio elétrico baiano e propõe que se integrem a geada, a neblina e a cerração aos índices de brasilidade Angélica de Moraes
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Vitor Ramil é um compositor que escreve ou um escritor que compõe? Difícil dizer. Seja usando a melodia da palavra ou a palavra encadeada em frases melódicas, o artista gaúcho envolve e seduz. Até mesmo quando se aventura no campo da crônica de viés sociológico. Foi assim que, em 1992, resolveu botar no papel sensações e ideias que surgiram no calor carioca de um fim de tarde e repercutem cada vez mais na atual produção cultural. Ele estava, de calção e chinelos, assistindo ao Jornal Nacional na tevê. Primeiro, viu matéria sobre um trio elétrico no carnaval baiano, arrastando multidões seminuas, que pulavam sem parar. A notícia foi dada em tom de normalidade, mas Ramil não conseguiu se imaginar no espírito daquela festa. Na matéria seguinte, as imagens foram apresentadas como raras, fora do comum: a chegada do frio no Sul. “Seminu e com calor, reconheço imediatamente aquele universo como meu. Mas as imagens são apresentadas num tom de anormalidade, de curiosidade, de quase incredulidade, como se estivessem chegando de outro país – fala-se em “clima europeu” –, o que faz com que eu me sinta estranhamente isolado, mais do que fisicamente distante”, relata no livro Estética do Frio (Ed. UFRGS, 1992). As observações do compositor acabaram repercutindo. Porque tocavam nesse nó cego do pertencimento cultural, comum a várias regiões do Sul brasileiro, onde o frio age durante vários meses do ano. A música foi a plataforma inicial, mas o cinema e a literatura estão cada vez mais atentos a essas particularidades. Nesse viés, há Satolep (Cosac Naify, 2008), bela ficção memorialística de Ramil sobre sua cidade natal, Pelotas (RS), com personagens fantasmáticos envoltos em neblina e frio. Vale frisar que o entendimento da diferença regional não tem o objetivo de reviver ranços separatistas. Ao contrário. Os artistas que espontaneamen-
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te se reuniram (ou podem ser reunidos) em torno da estética do frio buscam a integração. Há neles o combate aos clichês reducionistas da cultura de massas, que relega boa parte da diversidade cultural brasileira a algo estrangeiro, tachado até de europeu para melhor caricaturar a estranheza postiça. Porque há realidades regionais que nunca vão caber na imagem hegemônica de um país suarento e compulsivamente alegre. Nem na quimera tecnoxamânica da cultura globalizada. Mas que também não cabem na noção igualmente reducionista do gaúcho mítico, com certificado de origem controlada conferida e vigiada pelos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Historiadores como Sandra Jatahy Pesavento e Tau Golin (A Ideologia do Gauchismo, Porto Alegre, Ed. Tchê, 1983) demonstraram que o mito ufanista do gaúcho não passa de um constructo ideológico, uma invenção a serviço de um projeto político irradiado do latifúndio das estâncias (fazendas). Para Golin e Pesavento, essa mitologia começou a ser forjada após a dispersão dos povos indígenas das Missões Jesuíticas pelo Tratado de Madri (1750) e pela necessidade de aglutinar as populações marginais catequizadas em projeto cujo motor era a mão de obra rural barata e bucha de canhão nas várias guerras de fronteira. Nem a indumentária emblemática do gaúcho, a bombacha, escapa à revisão histórica. Golin afirma que a adoção desse vestuário como característico do pampa remonta “à Guerra da Crimeia (1853-1856), quando as fábricas inglesas produziram milhares de uniformes para o exército da Turquia. Todavia, o conflito terminou antes do esperado e os ‘pantalones turcos’ ficaram encalhados. O mercado rio-platense foi a salvação para tão grande prejuízo”. E conclui: “O gaúcho só passou a usar bombachas porque o mercantilismo inglês não admitia saldo negativo em seu caixa”. Duro golpe nos que ainda acreditam na xenófoba visão cultural regionalista.
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música
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A vigorosa e crescente convergência de ritmos entre compositores e intérpretes brasileiros, argentinos e uruguaios Juarez Fonseca
Tríplice fronteira sonora
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Quando formulou sua estética do frio, o compositor Vitor Ramil tinha claro que não era em oposição a uma estética tropical, e sim em acréscimo à diversidade da música brasileira. Vinte anos depois, ele vê o tema sendo aplicado por outros artistas em meio a um crescente contato entre músicos brasileiros, uruguaios e argentinos. Em um dos lados da questão está a milonga, gênero meio mítico – feito o blues – que até hoje não se sabe ao certo como se formou na região do Pampa, comum aos três países. Para uns, derivaria da habanera cubano-espanhola – assim como o choro e o maxixe, e daí o samba, no Brasil. Também há quem nela note traços de uma música medieval portuguesa, a “melos longa”. Certo é que a milonga é a mãe do tango; e a estética do frio não seria a mesma sem ela. As ideias e as milongas de Vitor Ramil, mais a agitação musical no extremo sul, motivaram o cineasta curitibano Luciano Coelho a realizar o documentário A Linha Fria do Horizonte, que começou a ser rodado no início do gelado julho de 2011 em Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul, seguindo para Montevidéu e Buenos Aires, até agosto. A equipe registrou paisagens e particularidades culturais da região, com depoimentos de músicos como os uruguaios Daniel Drexler e Ana Prada, os argentinos Kevin Johansen e Carlos Villalba, os brasileiros Arthur de Faria e Marcelo Delacroix.
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No filme, Johansen revela que uma de suas influências é a música brasileira, em especial o tropicalismo. Ou seja, a estética tropical. Paradoxo? Não exatamente. Foi ao ouvir por acaso, em 2003, o disco Tambong, de Ramil, que o hoje internacional Jorge Drexler quis conhecê-lo, pela semelhança musical. Tornaram-se parceiros. Tambong tinha sido gravado em Buenos Aires, com produção de Pedro Aznar. Na época, os irmãos Daniel e Jorge Drexler haviam adotado a expressão “templadismo” para identificar seus trabalhos e os de outros jovens, que eram ao mesmo tempo claramente uruguaios, mas diferentes da música tradicional do país. A expressão “templado” (temperado) também tem a ver com o clima, as estações definidas, muito frio no inverno, muito calor no verão. Quando Ramil lhes falou da estética do frio, sentiram-se em casa. Viram que, nos dois lados da fronteira, havia visões parecidas. Daniel diz que não lhes ocorria a possibilidade de mostrar sua música no Brasil. O primeiro show de Jorge foi em Porto Alegre, antes de ele ficar famoso com o Oscar (para a música do filme Diários de Motocicleta) e teve Ramil como anfitrião. O criador da Ramilonga já tinha prestígio nos círculos antenados de Buenos Aires, mas a via de mão tripla com as capitais do Prata foi ficando cada vez mais fluente. Em 2009, depois de estrear, em Porto Alegre, o show Sin Fronteras (com Ramil, Delacroix, Daniel Drexler e Ana Prada) fez sucesso em Montevidéu. No ano seguinte, Arthur de Faria liderou a criação da Surdomundo Imposible Orchestra,
integrada por outros brasileiros (os paulistas Maurício Pereira e Caíto Marcondes), dois uruguaios e dois argentinos. A Surdomundo apresentou seu mix de músicas dos três países em Buenos Aires, São Paulo e Porto Alegre, onde este ano Daniel, Ana e Kevin vieram lançar seus discos. O contato já envolve pontos além da estética do frio. O compositor Richard Serraria lançou na internet o álbum Pampa Esquema Novo, com músicos dos três países cruzando milonga, samba, maçambique (ritmo afro-gaúcho), maracatu e o uruguaio candombe. O título inspira-se no clássico disco Samba Esquema Novo, de Jorge Ben: música quente, cheia de tambores, em contraste com as depuradas e reflexivas canções de Vitor Ramil ao violão. Um dos convidados do álbum de Serraria, Zeca Baleiro também tem trabalhado em parceria com Ramil. Para seu último disco, Zeca compôs a Milonga del Mejor. Assim, a milonga do frio encontra a milonga do calor. Ambas são brasileiras.
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FOTO RICARDO VAN STEEN
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curto-circuito
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Balanço de notícias culturais nos jornais O Estado de s. Paulo e New York times
OEsP
sEMANA DE 21 A 27 DE AgOstO
EUA, CANADÁ E AUstrÁliA
A M É r i C A l At i N A
ÁsiA
ÁFriCA
E U r O PA
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ExistE uma artE latino-amEricana? ExistE um pEnsamEnto do sul? Em quE mEdida Essas pErguntas são EstErEotipadas E falsEiam nossa pErcEpção? pção? confira as opiniõEs dE três protagonistas d E uma briga (ou sEdução) cultural sEm tréguas
ANgÉliCA DE MOrAEs
BrAsil
curto-circuito
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Quem ganha a parada: eles ou nós? Quem conquista quem? Primeiro é preciso estabelecer as fronteiras entre cada um desses lados, claro. Mas elas continuam existindo? É precisamente aí que, em tempos globalizados e internéticos, a confusão se instala. Para debater os contornos e consequências atuais do chamado diálogo Norte-Sul, seLecT convidou a artista multimeios cubano-americana Coco Fusco, o curador brasileiro Teixeira Coelho (Museu de Arte de São Paulo) e o curador venezuelano Luis PérezOramas (30ª Bienal de São Paulo e Departamento Latino-Americano do Museu de Arte Moderna de Nova York). Coco Fusco tem na questão latina o fulcro do seu trabalho. Teixeira Coelho acha que latinidade é um gueto do qual os artistas devem fugir. Para Luis Pérez-Oramas, a relevância da arte é determinada por seu lugar de produção. Leia, a seguir, essas e muitas outras discordâncias que nos fazem pensar além fronteiras.
Coco Fusco
Pode-se falar de um pensamento do Sul? No que elE difere do conhecimento produzido nos centros hegemônicos (EUA e Europa)? Você pensa nisso ao realizar seu trabalho?
C o c o F u s c o Vivemos e percebemos a questão do Sul às vezes como um peso desagradável ou assunto antropológico que não pertence ao campo artístico. Muitos fatores motivam esse repúdio: o formalismo, os gostos do mercado internacional, o desejo de ser ultramoderno. Mas há contradições e problemas sociais do Sul que nos fazem ser mais conscientes dos aspectos antidemocráticos do capitalismo e do socialismo. Eu tenho em mente essas diferenças todo o tempo. Muitos projetos meus exploram situações sociais e históricas dessas condições de vida do Sul.
Te i x e i r a C o e l h o Isso soa como o eterno retorno de velhos hábitos do pensamento, num momento em que EUA e Europa não são mais tanto o centro hegemônico. Pelo menos em artes visuais somos parte do centro há algum tempo. Além disso, há mais de um Sul e, em cada um, milhares de outros. Epistemologia do Sul me parece outro nome para o gueto em que repetidamente nos querem encerrar. Meu ideal continua a ser o do internacionalismo sem marcas de fronteira.
L u i s P é r e z - O r a m a s É preciso manter presente uma certa consciência de nossa própria ancestralidade. Mas isto não é assunto exclusivo do Sul. Há conhecimentos ancestrais na Europa e na América do Norte que também estão relegados pelos sistemas lineares de aniquilação da memória. Aby Warburg, do coração cultural do Norte, proclamou e praticou a relevância das memórias ancestrais na compreensão dos sistemas artísticos. Se algo me surpreende negativamente hoje no mundo da arte contemporânea é a maneira como nós críticos, curadores, artistas, administradores institucionais e comunicadores assumimos cegamente a ideologia de aniquilação de memória, implícita na lógica do progresso tecnológico ilimitado. Hoje, para muitos, artista dos anos 80 ou 90 é artista pré-histórico. A estética da resistênciaDIANTE à imposição de modelos vindos do exterior, defendida por Marta Traba, é hoje página virada? A globalização nos levou a uma transculturação e à perda das identidades regionais?
F u s c o Usar a cultura para resistir a modelos do estrangeiro não tem muito sentido hoje em dia. Além disso, a transculturação não começou com a globalização mas com a colonização. O que a globalização fez foi acelerar esses processos por meio das novas tecnologias e acordos comerciais que facilitam o intercâmbio de produtos. Algumas tradições vão ser perdidas porque elas não são estáticas, elas também mudam. Creio que há até tradições que se gostaria de descartar, como aquelas impostas para facilitar o controle social.
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Te i x e i r a C o e l h o - Hoje, os tempos são mais de indignação diante de tudo que está aí do que de resistência; aquilo em nome do que se resistia, faliu. Resistência, hoje, quando existe, é ao que vem de dentro, vide Líbia, China etc. A identidade é ideia em xeque. Felizmente. Na fórmula irretocável do escritor Claudio Magris, as fronteiras sempre cobram seu tributo em sangue. As identidades também. O mundo fica cada vez menor e a intimidade entre ideias e saberes é inevitável e necessária. Os modelos não vêm mais do exterior porque quase nada mais é exterior (ou interior). Diferenças continuam a existir; mas as identidades estão todas em trânsito.
Uma exposição do MoMA dedicada à arte latino-americana, nos anos 80, foi compreensivelmente recusada por artistas brasileiros e outros, que responderam: quando nos convidarem como artistas, não como artistas latino-americanos, e para uma exposição de arte, não de arte latino-americana, iremos com prazer. “Quando artistas recusam o rótulo, é preciso parar e pensar”. O recurso ao território como explicação é apenas questão tática, não instrumento da verdade.
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O r a m a s Existe arte produzida na América Latina e isso é tão complexo e específico como quem a produz. Seria importante pensar a arte ou a produção artística em termos relacionais, como todo processo de produção de sentido. Pensar com igual intensidade a relevância da arte como determinada por seu lugar de produção tanto como a relevância do lugar sendo determinada pela arte que se produz ali. Existem tantas formas de arte quantas é possível produzir.
O r a m a s Marta Traba tinha razão em muitos de seus diagnósticos gerais e frequentemente errou em muitas escolhas artísticas. Não há história da arte que não seja topológica, migrante. A imposição da arte contemporânea como estilo internacional é mercadológica, no gosto das elites culturais. Ignora a realidade dos contextos locais. Uma das tentativas frustradas da ideologia moderna consistiu no estabelecimento de uma só temporalidade, exclusivamente moderna. Daí deriva o terror do anacronismo, tabu intelectual que mortifica tanto historiador, crítico e diretor de museu. Esse terror produziu desvinculação entre práticas de arte contemporânea e artes populares. A temporalidade não é una nem única. Se a arte está convocada a ser contemporânea, ou seja, prática que se estabelece com seu tempo, é inconcebível que se manifeste como forma única e estilo internacional.
A IDENTIDADE É IDEIA EM XEQUE. AS FRONTEIRAS SEMPRE COBRAM SEU TRIBUTO EM SANGUE. AS IDENTIDADES TAMBÉM.
Existe uma arte latino-americana? Qual é a especificidade dela?
F u s c o Há muita produção artística na América Latina e muitas propostas sobre o que seria latinoamericano na arte. Propostas artísticas que enfocam o resgate e a reinterpretação das tradições précolombianas, a reivindicação do popular, a investigação narrativa da vida dos pobres e o realismo mágico, entre outras. Também há pesquisas da modernidade, da pós-modernidade e até da desmodernidade latinoamericana na arte e na literatura. Enfim, há muitas maneiras de abordar o tema. Te i x e i r a C o e l h o A especificidade é de
Te i x e i r a C o e l h o
mero indicador de algo acidental. “Latino-americano” virou ícone de uma essência, o que é tragicômico. CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL
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O r a m a s A existência de relações de ignorância e dominação, exclusão e obstrução entre formas culturais centrais em sociedades do Atlântico Norte e formas culturais de sociedades europeias, mediterrâneas e balcânicas, por exemplo, relativiza esta ideia simplista de Norte e Sul. Nas narrativas canônicas da arte moderna, a modernidade grega ou romana é tão ignorada ou talvez até mais do que a modernidade brasileira ou venezuelana. Há constelações culturais extremamente complexas ao Norte e ao Sul e a Leste e Oeste do planeta. As produções artísticas são relevantes localmente e só chegam a ser universalmente significativas por extensão, seja por apropriação, assimilação, disseminação ou deslocamento. É responsabilidade dos cenários locais produzir modelos de explicação histórica para elas. É responsabilidade das cenas dominantes integrar essas narrativas, como filtros de seus próprios relatos, particularmente se têm pretensões de universalidade.
Luis Pérez-Oramas
Por que, a exemplo da União EuropEia, não conseguimos emplacar na América Latina nenhum modelo de transnacionalidade (Alalc, Aladi, Mercosul)?
F u s c o Para mim, a transculturação é um processo e não um modelo. Existem muitos processos de transculturação na América Latina.
Te i x e i r a C o e l h o Primeiro, porque
contexto latino-americano, há muitos governos que utilizam a cultura para fazer relações internacionais e para reforçar, dentro do próprio território, a ideia da identidade nacional. Essa utilização instrumentalista da cultura não só depende de muitos estereótipos como cria vários deles.
aqui não existem estadistas mas, quase apenas, figuras públicas minúsculas ou grotescas movidas a poder ou dinheiro. As ideias maiores, mais generosas e amplas, ainda não têm vez aqui. Alguns dirão que não estamos no ponto econômico e político para isso. O fato é que vetores ideológicos primários e carcomidos são periodicamente ressuscitados para produzir apenas divisão e animosidade. A ideia de construção não vigora na área, o motor da política por aqui ainda é a destruição. A região ainda é apenas reativa, reacionariamente reativa, como descrevia Nietzsche, e não propositiva.
Te i x e i r a C o e l h o O Sul contribuiu para isso ao longo do século 20,
O r a m a s A pergunta não pode ser respondida
entre os anos 1910 e 1970. Foi quase um reivindicar-se periferia. Havia algo de masoquismo nessa atitude e, como quase sempre nesses casos, muita arrogância, muita soberba: éramos diferentes e especiais. O Centro exigia esse exotismo e muitos por aqui, sobretudo entre os intelectuais, entregavam a mercadoria pedida.
exclusivamente no âmbito da arte. Obviamente somos vítimas das ideologias nacionais e pós-nacionais. Muitas delas deram lugar na América Latina a projetos relativamente falidos.
Os estereótipos de leitura da produção latina são de responsabilidade exclusiva das platEias do Norte? Em que medida o Sul contribui para reforçar ou combater essas reduções de percepção?
F u s c o Os estereótipos de leitura surgem de todas as partes! Dentro do
cRédito: fundação bienal de são paulo
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J u l i a n a M o n ac h e s i
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Desvalorização do dólar? Liquidez das obras? Maior circulação da informação? Há ene motivos para explicar o crescimento do colecionismo de arte latino-americana no Brasil. O fato é que os latinos estão em alta no mundo
El libro de oro (2010), I n sta l a ç ã o d e Se b a st i á n G o r d í n foto: divulgação
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O crescimento demográfico nos EUA resulta na maior presença de latinos nos conselhos dos grandes museus e, como essa minoria quer se ver culturalmente representada, aumentam também as exposições de artistas da AL
n o a lto, à e s q u e r da , E n e l A d e m á n d e C o n d u c i r N u b e s ( 2 0 1 0) , F oto g r a f i a d e A n a n k é A s s e ff ; ac i m a , c o l ag e m Da s é r i e O b r a s I r r e p r o d u c i b l e s ( 1 9 74 ) , de felipe ehrenberg; a b a i xo, S e m T í t u lo ( 2 0 0 8 ) , d e Da r i o E s c o b a r ; à d i r e i ta , m ag r i t t e (2008 ), de Lil i a na Po rt e r
fotos: divulgação
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ao l a do, N i col a Al a da , i nsp i ra do e m Baco n (201 0), foto g ra fi a de N i co l a Costa nt i no ; à di r e i ta , Pi nt u ras da s é r i e HS S P (201 1 ), de H e r ná n Sal a m a nco
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“Os EUA defendem o seu território, não defendem? De que forma o mercado pode ser orientado para não continuarmos a ser colonizados em nossos gostos e olhares?”, pergunta o galerista Oscar Cruz
Latino-americanos em sP LiLiana Porter / até 22 de outubro Com mais de 40 trabalhos, a mostra The Enemy e Outros Olhares Oblíquos é a primeira retrospectiva da artista argentina no Brasil. Galeria Luciana Brito, Rua Gomes de Carvalho, 842 Tel. 0/xx/11/3842-0634
Hernán saLamanCo / De 8 de outubro a 12 de novembro Segunda individual do artista argentino na galeria, desta vez com pinturas de cores fortes que flertam com a abstração ou retratam cenas de interiores. Galeria oscar Cruz, Rua Clodomiro Amazonas, 526 Tel. 0/xx/11/3167-0833
Los CarPinteros / até 12 de novembro A dupla cubana apresenta aquarelas e duas grandes instalações, uma em que um trailer feito de alvenaria desafia a ideia de mobilidade, e outro, um avião coberto de flechas, que subverte o imaginário da colonização. Galpão Fortes Vilaça, Rua James Holland, 71 Tel. 0/xx/11/3392-3942
ÉriCa BoHm, niCoLa Costantino, PatriCk HamiLton, riCarDo aLCaiDe De 1º de outubro a 5 de novembro As duas artistas argentinas, o belga radicado no Chile e o jovem venezuelano participam da mostra coletiva de fotografia contemporânea Álbum, que reúne 19 nomes. Galeria Baró, Rua Barra Funda, 216 Tel. 0/xx/11/3666-6489
aDrian ViLLar rojas / De 1º de novembro a 13 de dezembro Depois de apresentar esculturas monumentais na Bienal de Veneza, o argentino faz residência em São Paulo para desenvolver obras para uma individual. Galeria Luisa strina, Rua Padre João Manuel, 755 Tel. 0/ xx/11/3088-2471 juLio Le ParC / De 24 de novembro a 28 de janeiro Importante nome da arte geométrica e cinética mundial, o argentino realiza sua terceira exposição individual em São Paulo. Galeria nara roesler, Avenida Europa, 655 Tel. 0/xx/11/3063-2344 fotos: divulgação
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reviews Exposição
Torres García: La escuela del Sur JULIANA MONACHESI A vasta produção teórica do artista uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949) salta aos olhos na retrospectiva organizada na Fundação Iberê Camargo pelos curadores Alejandro Diaz e Jimena Perera, bisnetos do artista e diretores do museu que leva o seu nome em Montevidéu. Entre as 146 obras reunidas em Porto Alegre, há livros publicados e inéditos, desenhos, revistas e inúmeros manuscritos. Apresentados em vitrines em paralelo às telas, dão a medida do compromisso do artista com a reflexão sobre a arte moderna e com a sistematização de um pensamento universalista sobre a arte construtiva. Títulos como El Descubrimiento de Sí Mismo (1917), Nova York: Impresiones de un Artista (1921) e Raison et Nature (1932), Metafísica de la Prehistoria Indoamericana (1939), além de exemplares das revistas que editou ao longo de sua trajetória, evidenciam como texto e imagem são indissociáveis em sua obra. É em uma dessas vitrines que está exposto o pequeno nanquim sobre papel intitulado América Invertida (1936), o canônico mapa de ponta cabeça que aposta na radicalização de um movimento de arte construtiva que, com base na tradição universal, pudesse ser expressão de uma arte própria do novo continente. As salas expositivas dos dois andares da fundação reservados à exposição propiciam um percurso cronológico que vai da “arte mediterrânea” dos anos 1910 ao “universalismo construtivo” das décadas de 1930 e 1940. Nascido em Montevidéu, Torres García cresceu em Barcelona, onde realizou sua formação, longe da rigidez acadêmica e próximo de outros jovens intelectuais catalães, que frequentavam o cabaré artístico Els Quatre Gats. Colaborou com Antonio Gaudí nas obras do templo da Sagrada Família e cedo começou a trabalhar no que denominou “arte mediterrânea”, revisitando os fundamentos da arte ocidental inspirado pela cultura greco-romana. Na primeira sala da mostra, pinturas dessa fase
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Joaquín Torres García: Geometria, Criação, Proporção, até 20 de novembro – Fundação Iberê Camargo. Av. Padre Cacique, 2.000, Porto Alegre www.iberecamargo.org.br
América Invertida (1936): radicalização de um movimento de arte construtiva
mostram como a geometria já estava no cerne de interesses do artista, que representava figuras clássicas enquadradas por frontões e outras estruturas arquitetônicas. Seguem-se salas em que a cidade se torna protagonista de suas telas, feitas em Nova York e Paris, onde viveu nas décadas de 1920 e 1930. Em seguida, as obras de tendência construtiva, em que opera uma dissociação entre desenho e cor, construindo estruturas com linhas negras sobre planos de cor, retomando o grafismo que havia surgido em Nova York. Representações esquemáticas dão lugar, nas obras posteriores, a símbolos, marca registrada do uruguaio.
L i te r at u r a
Nova safra hispânica cai na real Angélica de Moraes A jovem literatura em espanhol substituiu o viés político e fantástico por narrativas confessionais e realistas
Granta 7: Os Melhores Jovens Escritores em Espanhol, Ed. Alfaguara, 372 págs R$ 45, até 27 de novembro, Veneza, Itália
O recorte é um pouco generoso demais e alguns autores ainda estão no estágio da promessa. Talvez fosse melhor publicá-los quando cumprissem algumas delas. De qualquer modo, Os Melhores Jovens Escritores em Espanhol é coletânea prazerosa e indispensável a quem acompanha a cena literária contemporânea. O critério adotado para reunir os 22 nomes é relevante: autores nascidos a partir de 1975, quando a longa ditadura de Francisco Franco termina na Espa-
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reviews nha e, ao mesmo tempo, diversas ditaduras latinoamericanas atingem o auge da repressão e provocam a diáspora dos exilados. Os filhos do exílio ou da retomada da democracia encaram esse contexto como página virada, base sobre a qual tratam de erguer percepção própria, bastante voltada para as narrativas confessionais e realistas. Não por coincidência, viés que também predomina nos roteiros do atual cinema argentino. A Argentina tem o maior número de representantes na publicação e alguns dos inegáveis talentos, como o excelente Oliverio Coelho. Mas também é de lá um dos maiores enganos, Pola Oloixarac, celebridade midiática de enorme indigência de recursos estilísticos. A revista Granta, famosa por suas coletâneas literárias, organiza para julho de 2012 edição especial com Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros.
arte
Fazer e ver. Um jogo eterno Maria Iovino, de Bogotá O centro ao redor do qual se organiza a proposta de Nicolás Paris é a direção do olhar e sua possibilidade de reinventar o mundo continuamente. Poucas vezes entende-se que essa possibilidade esteja relacionada com o que pode ser captado e entendido pela percepção. Daí a importância de se fazerem inteligíveis as sinalizações de um artista.
54a Bienal de Veneza 2011, até 27 de novembro, Veneza, Itália 11º Biennale de Lyon, até 31 de dezembro, Lyon, França Projeto de Nicolás Paris na 54a Bienal de Veneza pede participação de estudantes
Desde essa perspectiva, o contexto e a experiência de quem o vive são percebidos como assunto completamente instável e maleável, ou como problema suscetível de ser moldado em, cada sensibilidade envolvida. As ferramentas que Nicolás Paris assume em cada trabalho nos fazem compreender que todo código ou preceito está sujeito a interpretações e reestruturações. As emoções têm, portanto, um papel definitivo nos rostos que se configuram progressiva e circunstancialmente entre múltiplos sistemas de interpretação. Essa é a razão pela qual o artista recorre a elas sem descanso em seus jogos com a imagem. Não é gratuito que o impulso criativo desse artista tenha tomado forma no trabalho educativo e isso se dá, num primeiro momento, com estudantes de regiões carentes. Nessas condições, o desenho, por seu despojamento, por sua realidade estrutural e sua amizade com a escritura (e também pela formação de Paris como arquiteto), converteu-se naturalmente no aliado que mais riquezas trouxe à consolidação de sua proposta. Talvez, entre as mostras nas quais o artista participa atualmente, a 54ª Bienal de Veneza seja onde em maior medida se possam ler essas ideias, já que, ao convite feito pelo programa educativo do evento, o artista respondeu com um compêndio de exercícios, dirigidos a estudantes, professores e ao público. Eles reúnem abstrações e conclusões formadas desde que iniciou seu trabalho como arte educador.
Isso traz à tona a questão da responsabilidade não só do artista que sinaliza, mas também de quem se proponha a dirigir uma coletividade, a partir de concepções sobre o real. A realidade, como se faz entender no trabalho de Nicolás Paris, não é algo estabelecido, e descritível, mas uma impressão variável que depende de sua captura pelos sentidos. É por esse motivo que os traços predominantes do imaginário e da poética do artista se fazem no próprio processo de arquitetar ideias em formas. Entender e dar a entender esses parâmetros é, ao mesmo tempo, seu método de trabalho e de observação. À esquerda, divulgação; À direita, cortesia galeria luisa strina
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JULIANA MONACHESI de porto alegre
Geopolítica das artes Oitava edição da Bienal do Mercosul faz foco certeiro na discussão de territórios e nacionalidades
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Bandeiras, mapas, documentos, hinos, discursos oficiais e outros símbolos associados à identidade de uma nação estão por toda parte desta oitava edição da Bienal. Isso levou muita gente a considerá-la redundante, em comentários que se repetiram pelo Cais do Porto na abertura e nos primeiros textos publicados na imprensa. Para além do consenso da “bienal das bandeiras”, esta exposição aguarda, entretanto, uma leitura mais concentrada e comprometida com o contexto onde se realiza. Dividida em sete componentes (Geopoéticas, Cadernos de Viagem, Além Fronteiras, Eugenio Dittborn, Cidade Não Vista, Continentes e Casa M), a Bienal do Mercosul apresenta no Cais do Porto sua carta de intenções: a mostra Geopoéticas. Ela reúne obras de 59 artistas (latino-americanos, em sua maioria) e explora a volatilidade dos limites geográficos, as sobredeterminações econômicas e as novas configurações políticas do mundo atual. Eduardo Aragón registrou, em 13 pontos fronteiriços
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do município mexicano de Ocotlán de Morelos, músicos executando uma marcha fúnebre. Cada um deles está de pé sobre um marco da fronteira (pedras chamadas mojoneras), o que resulta em um concerto desencontrado pela sobreposição do som de instrumentos tocados a quilômetros de distância entre si. O vídeo Inércia, de Iván Candeo, mostra um ciclista pedalando sobre uma esteira, sem nunca sair do lugar, diante de um mural de cerâmica do venezuelano Winston Salas, que retrata Simón Bolívar e outros códigos nacionais latino-americanos. Na instalação Não Notamos Distúrbios, Todos Estão Felizes e São Amigáveis, Kajsa Dahlberg expõe uma coleção de 500 cartões-postais. Enviados de Jerusalém para a Suécia ao longo de oito décadas com mensagens que dão conta do conflito com a Palestina. Paulo Climachauska apresenta bandeira, cartografia e passaporte do Complexo do Alemão, território autônomo até as recentes ações do Estado do Rio de Janeiro para retomar o controle sobre o conjunto de 13 favelas na cidade carioca. Voluspa Jarpa edita em dois volumes arquivos desclassificados (que perderam o estatuto de secretos) da CIA sobre a América Latina que revelam, à maneira de um WikiLeaks analógico, como não há fronteiras para os serviços de inteligência dos EUA. Enquanto as fronteiras se dissolvem e se reafirmam diante dos nossos olhos, algumas reflexões sobre o mundo da arte se impõem: de que adiantou extinguir as representações nacionais na Bienal de São Paulo se a relevância de toda bienal continua sendo medida pela representatividade de diferentes nacionalidades? Qual o sentido de associar um país de origem ao nome de cada artista em um contexto de fluxos migratórios e hibridação sem precedente histórico? Coco Fusco responde com o vídeo Os Ceifadores, convocando atores e atrizes de Barcelona para interpretar canções catalãs tradicionais, como o hino (que dá título à obra), e entrevistando-os sobre estereótipos em torno da identidade. Sim, há uma certa redundância no excesso de obras com bandeiras e hinos na 8ª Bienal do Mercosul. Mas, conforme afirmou o antropólogo argentino radicado no México, Nestór García Canclini, no simpósio que integrou o evento, uma ética descritiva é fundamental em um mundo desorganizado como o nosso. Vivemos tempos tão confusos que uma bienal talvez não possa se dar ao luxo de sutilezas e nuances demais.
8a Bienal do Mercosul: Ensaios de Geopoéticas, até 15 de novembro Cais do Porto (Avenida Mauá,1.050) e outros seis locais, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
à esquerda , de tal h e da v i deo i n stal aç ã o fotog rafi as , de e duar do arag ó n ; no a lto, o b ra de pau lo c l i m ac h au s ka; acima , i n stal aç ã o de vo lu s pa jar pa
www.bienalmercosul.art.br
fotos: divulgação e, acima, juliana monachesi/estúdio select
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colunas móveis / mídia
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Progresso onde, minha querida avó? Todo
domingo levamos minha avó para almoçar .
vizinhos e o restaurante , também.
Felizes
Somos
e contentes
caminhamos com a velhota até o restaurante da esquina , comemos, rimos e voltamos, um ritual de prazeres singelos que rende sempre uma foto gostosa , flagrada com o meu celular .
Neste domingo mostrei a última foto na tela do meu smartphone e a velhinha (97!), inconformada com as modernidades, me disse solenemente: “Você acompanha o progresso do mundo”. Touché. A vovó continua sagaz, mas por sorte não percebe o quanto essa história de progresso me intriga. Vejam se o meu raciocínio faz algum sentido: para mim, tecnologia não faz sentido. Quem faz e dá sentido é gente, e gente (minha segunda tese neoantropofágica) adota a tecnologia à sua imagem e semelhança. Vou mais longe (ou mais para trás, ou mais para dentro, nem sei): nosso retrato mais fiel é a cara que damos à tecnologia. Quanto mais eu vejo o encanto brasileiro com a social media mais eu penso: reinventamos Dorian Gray. Para dar um pouco de lastro às minhas inquietações, vale dizer que estou nessa área interativa faz 15 anos e sempre no mesmo lugar: no front. E, curiosamente, o front
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são justamente os bastidores, o lado B da internet, um mundo bem mais complicado do que a internet cor-derosa com a qual sonhamos tanto. E eu me pergunto por que sonhamos uma internet cor-de-rosa? Por que teses e artigos e palestras me lembram Pero Vaz de Caminha, que, numa fase pré-Conar, alardeou um paraíso que, em se plantando, tudo dava? Por que encontro um Antônio Conselheiro em cada palco, convidando a todos para uma utopia anticapitalista? Eu juro: já vi evento digital em que o mestre de cerimônias conclamava a plateia comovida a se abraçar. Olhei pro marmanjo ao meu lado e disse: “Nem pense”. Quem diria que um evento sobre tecnologia digital lembraria uma celebração religiosa, onde fiéis, encantados com um ministro iluminado, fortalecem sua fé num mundo que não existe? Progresso onde, minha querida avó? Voltemos à minha pseudotese, indo para a Turquia. O Orkut se chama Orkut porque foi criado por um cara chamado Orkut, turco. Ele criou o Orkut sozinho, sem briefing nenhum. Criou da cachola dele, que, por acaso, é uma cachola turca. Sintoma disso é a página pessoal de cada um: em vez do perfil americano típico (eu fiz, eu estudei, I have, I can, I do, iPhone, iPad... tudo eu), um habitante do Orkut se define pelos grupos a que pertence, pela opinião alheia (laudatória sempre) e por fotos encantadoras, tudo muito natural numa cultura na qual, desconfio, o grupal vale mais que o individual. Uma plataforma dessas cai no colo brasileiro e pronto, tudo a ver: somos também uma cultura do pertencimento e da conformidade e saímos nadando de braçada nessa terra incógnita, mas tão familiar. Voltemos à nossa personagem quase centenária. Olhando seu close-up, ela diz: “No espelho não sou assim tão velha”. Qual sua foto mais fiel, então? Ela me mostrou outro dia: seu RG de 50 anos atrás. Aquela, sim, se parece com o espelho. O tal progresso do mundo talvez não seja assim tão estranho para a minha avó: com iPads na mão continuamos acacianos, sebastianistas e messiânicos, driblando olimpicamente os bodes pretos no meio da sala coberta de lama arcaica.
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colunas móveis / cultura
jorge caldeira 123
Brasildependência A espécie de portunhol que já está construída na América do Sul me espanta por um motivo: tem muito pouco a ver com as imagens da cultura. Neste caso, a integração material foi imensa nos últimos 20 anos, enquanto as ideias brasileiras sobre o assunto continuam nos anos 60. Por aqui ainda tem muita gente pensando nos termos de Veias Abertas na América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano, como se a região tivesse povos comuns, mas dispersos e divididos pela exploração imperialista.
Feira do Canindé, em são paulo: bolivianos fazem a festa
Acontece que a realidade criada no continente é aquela das estradas abertas na América Latina, pelas quais corre um novo portunhol de capitais e pessoas. Os capitais fluem principalmente do Brasil. As empresas brasileiras são as maiores investidoras na Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai, Venezuela – e têm participação forte no Peru, Equador e nas antigas Guianas, além de interesses crescentes na Colômbia. Claro, o contrário existe: capitais chilenos dominam a aviação brasileira e os mexicanos têm fatia relevante da telefonia. Já as pessoas fluem na direção inversa. Todo domingo, no Canindé, em São Paulo, dezenas de milhares de bolivianos fazem a festa da colônia. Argentinos e uruguaios vindos nos tempos das ditaduras ainda estão por aqui. Uma empresa de ônibus peruana acaba de inaugurar uma linha São Paulo-Lima, atendendo a um novo polo de imigração. O desenho do conjunto é claro: o Brasil está ficando no centro de um mundo em portunhol – que pode incluir a Espanha, caso a crise ali continue do modo como está. E, se for assim, isso vai acontecer depois que o universo da língua portuguesa (além do torrão europeu, partes da África e Ásia incluídas) começou a gravitar em torno de uma ortografia unificada que tem muito mais de brasileira do que da original da terrinha. As pessoas das elites de todos os países ao redor com as quais tive oportunidade de conversar gostam dessa unificação – mas se preocupam com aquilo que chamam de “Brasildependência”. E se preocupam especialmente porque é como se o Brasil ignorasse o poder que exerce e as modificações que impõe com a integração. Tocam num ponto cego de nossa cultura. A produção brasileira é muito forte para integrar novidades de fora e fraca para se perceber como fabricante de novidades para fora. Já estamos esbarrando com força em nossos vizinhos. Para muitos deles, somos um modelo de sucesso – por causa de democracia e capacidade empresarial, não de música nem de cinema. Precisamos colocar na cultura essa nova espécie de portunhol, o lado da globalização onde o Brasil avança na realidade, mas patina na imaginação. À esquerda, lucas rampazzo; À direita, adriano vanni
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colunas móveis / cinema
Jorge La Ferla, de Buenos Aires 124
O ambíguo novo cinema argentino O cinema argentino renova, há quase três décadas, sua presença de destaque nos âmbitos nacional, regional e internacional. Os longa-metragens são tantos que não conseguem ser todos exibidos, mesmo que as estréias superem um filme por semana durante todo o ano. Esta produção ganha visibilidade com o que vem acontecendo no glamuroso mundo dos festivais internacionais de cinema.
n o a lto, c en a d o curta m e t rage m m uta , d e lucrecia ma rtel . a ba ixo, a brir l as p ue rtas y ve n tan as , de m ilagros m um enth aler
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O fato de ter obtido o segundo Oscar da academia de Hollywood, em 2010, para o Segredo de Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos), de Juan José Campanella, a Câmera de Ouro do Festival de Cannes deste ano para Las Acacias, de Pablo Giorgelli, e o grande Leopardo de Ouro do Festival de Locarno para Abrir las Puertas y Ventanas, de Milagros Mumenthaler, fomentam o habitual ufanismo argentino. Trata-se de uma história recente ligada ao fim da ditadura militar, às políticas públicas de incentivo à produção e exibição, afetada, porém, pela paulatina redução das salas e pela substituição do equipamento analógico por digital. Esses são fatores determinantes para garantir a existência de um cinema argentino que já não é economicamente rentável. Dentro do ideal de um cinema considerado independente e de uma indústria inexistente, encontra-se a ambígua categoria do Novo Cinema Argentino. Vaga e relativa, essa denominação não responde a nenhum conceito específico. Mas é Lucrecia Martel que surge como grande protagonista, a partir de seus três longas-metragens, em que se expressa a ética de uma criadora sutil. Martel ainda acaba de realizar alguns curtas experimentais, entre eles Muta, para a grife Miu Miu. (http:// www.youtube.com/watch?v=iO4o3UbOYmY) Buenos Aires é uma das cidades do mundo que concentram, proporcionalmente, uma das maiores quantidades de escolas e diretores de cinema. Completando duas décadas este ano, a Fundación Universidad del Cine (FUC) exerce um papel de destaque na formação de realizadores. Lisandro Alonso, María Paz Encina, Daniela Goggi, Mariano Llinás e Pablo Trapero integram uma longa lista de diretores de carreira já estabelecida. Outros ex-alunos, como Sebastián Díaz Morales e Andrés Denegri, estão posicionados no âmbito da arte contemporânea, com obras em videoarte, cinema experimental e instalação. Atente-se ainda para a considerável presença de estudantes brasileiros. O desenvolvimento contínuo do cinema, do teatro e da ópera nos fala de um projeto cultural argentino passadista, em consonância com um país que retoma seu destino histórico exportador de matérias-primas. Distanciado, porém, da tendência brasileira, industrial, futurista, onde prevalecem o ciberentusiasmo e o fomento de uma práxis que integra arte, ciência e novas tecnologias. Esses são dois projetos, de ideologias diversas, que integrados poderiam sinalizar uma colaboração dinâmica para a região.
9/23/11 6:48 PM
colunas móveis / gastronomia
Carla PernambuCo 125
Colombo não desCobriu a amériCa Foram os astecas, os maias e os incas que mudaram a culinária do Planeta, muito antes de os euroPeus desembarcarem no novo mundo, existia nas américas o esPlendor das civilizações asteca, maia e inca. Historiadores atuais aFirmam que os cHineses, Por volta de 1421, já Haviam entrado em contato com esses Povos nativos, de quem levaram Par P a a ásia Frutos e legumes desconHecidos. os europeus insistem que colombo foi o primeiro estranho a pisar por aqui, em 1492. o fato é que os espanhóis esmagaram três culturas originais, sofisticadas e, em muitos aspectos, superiores aos toscos princípios ibéricos. destruíram milhões de pessoas em nome do cristianismo, em episódios sangrentos. aqui vamos nos deter apenas no imenso legado gastronômico daqueles povos que cultuavam o sol e que desenvolveram soluções agrícolas espantosamente modernas. Por habitarem trechos da américa central com climas adversos, os astecas e maias exploraram aspectos botânicos que beneficiaram toda a humanidade. na américa do sul, os incas desenvolveram, em regiões de altitude, uma agricultura de sabores e aromas. a essas civilizações devemos o chocolate e especiarias como a baunilha, frutas como o abacate e o abacaxi, sementes como o feijão e o amendoim, cereais como o milho e a quinoa, legumes como a abóbora e o tomate, raízes como a mandioca e tubérculos como a batata. dá para entender que, sem os incas, maias e astecas, a comida do mundo seria muito sem graça? Pelo somatório de delícias que mudaram a dieta do planeta, a europa pensava estar conquistando o paraíso. existem muitos estudos sobre essas descobertas e sobre a dieta daqueles povos pré-colombianos. as etnias brasileiras absorveram suas influências pelas bordas. Permanece definitivo o livro As Primeiras Cozinhas da América, da antropóloga sophie d. coe. Partindo de suas observações, escolhemos cinco exemplos para comentar aqui: milho, tomate, mandioca, batata e abacaxi. astecas e incas acreditavam ser o milho a seiva da vida. os conquistadores nunca haviam visto uma espiga e a classificaram como um tipo de trigo. carboidrato de grande importância, era alimento básico e cultuado nos templos. de sua farinha, produziam pães, mingaus e broas. estima-se que, apenas no Peru, ainda existam mais de cem variedades de milho, em diversas cores, formatos e sabores. o tomate, hoje, é um fruto de consumo universal. o termo tomatl vem dos astecas e significava “coisa gorda com umbigo”. na verdade, eles chamavam pelo mesmo nome vários outros frutos, tornando esse estudo de arqueologia culinária amplo e complicado. a mandioca é a raiz que moveu as américas e o caribe, tornando-a obrigatória em todas as etnias nativas. arbusto que cresce com facilidade, sem uso de sementes, é alimento adaptável a receitas como tortilhas, tapiocas, bolos, farinhas, infusões e À esquerda,divulgação; á direita, ilustração de daniel manzini
caldos. Para explicar a grandeza da batata seria preciso um livro. escavações arqueológicas apontam que o tubérculo surgiu nos altiplanos peruanos. existem vestígios que datam de 8 mil anos. são mais de 3 mil variedades de batatas. basta visitar algum mercado no Peru ou na bolívia para descobrir batatas de todos os tamanhos, cores e consistências. devemos aos incas a disseminação de um dos pilares da dieta universal. sobre o abacaxi, seu primeiro registro vem da chegada de colombo, em 1493, à ilha de guadalupe, no caribe. as populações ameríndias usavam o fruto para se refrescar no calor. essa planta perene se tornaria um alimento muito difundido. no século 18, foi usado até como objeto decorativo. tivemos acima um rápido panorama da importância das primeiras cozinhas das américas. e isso sem entrar na parte das receitas e dos rituais! Precisamos ser muito gratos aos astecas, maias e incas. esse trio elétrico fez a cultura culinária deste planeta ganhar mais sabor, graça e escolhas.
selects / filosofia política
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Ana Valdés Mente pós-colonial
Ho m i B h a bh a
Ed wa rd Sa i d
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C r ít ico lite r á r io e p rofes sor de H a r va rd , é um dos te ór icos f und a m e nt a is d o pós colonia lis m o, d ev id o a o se u conce ito de h i b r i d i za ç ã o, q u e se to r n o u ce n t ra l pa ra o d e ba te d es se te m a .
Crítico literário palestino nascido em Jerusalém (1935) e falecido em Nova York, em 2003, onde era professor da Universidade Columbia. Sua principal obra, Orientalismo, é uma das obras de referência do século 21.
Amardeep S ing h
Gaya t r i Spi va k
Wa lter M i gnolo
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Professo r d e l i terat u ra i n g les a d a Un i versida d e d e Leh i g h ( Pen s i lvân i a, EUA) é u m d os m ai s i m p o rt an tes estudi osos d as o b ras d e Ed ward S ai d e Ho mi Bh a b h a.
Indiana, professora da Universidade Columbia (NY) e autora de livros importantes para o discurso pós-colonial. Seu ensaio Can the Subaltern Speak? atualiza o pensamento do cientista político italiano Antonio Gramsci (1891-1937).
Semioticista argentino educado na França, leciona atualmente na Universidade de Duke (Carolina do Norte, EUA). Trabalhou com os temas do colonialismo e do póscolonialismo com o filósofo Enrique Dussel.
Chantal Mouffe e E rnesto La cla u
Pa u lo Frei re
Au gu sto B oa l
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Os fi l ó sofos Ch an t al Mo u ffe, fran ces a, e Ern esto L ac lau , argen t i n o, co lab o rara m em vári os l i vros e p u b l i caç õ es , d i s cu tin do o m u n d o p ó s -co lo n i al a part i r de u ma pe rs p ect i va n eo m arx i st a.
O e d u ca d o r b ra s i le i ro d i sc u t i u a p e d a gog i a d o o p r i m i d o co m o a r m a pa ra a libe r t a çã o d o pe ns a m e nto coloniza do.
O d ra m a t urgo b rasile iro re p rese n ta, co m Pa u lo Freire e Darcy Ribeiro, uma d a s te ndê nc ias mais in te ressan tes d o p e n s a m e nto artístico e político da A m é r ica La t in a p ó s-co lo n ial.
Oswald de A nd ra d e
Europe and the Rest
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http://bit.ly/oBgzIV
O Ma n ifesto An t ro p ofág i co é um dos tex tos m ai s rad i cai s d o pen sa mento p ó s -co lo n i al .
Etienne Balibar (professor das universidades Paris 10 e California, Irvine) e Zygmunt Bauman (Universidade de Leeds) discutem a Europa em um mundo globalizado.
Uma seleção de pensadores contemporâneos fundamentais para compreender e discutir as marcas deixadas pelo passado colonial na história moderna e contemporânea.
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Ana Valdés Uruguaia radicada na Suécia, é antropóloga, escritora e curadora. Trabalha atualmente em um projeto de cartografias cidadãs e geografias insubmissas.
selects / música
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Rodrigo Macieira
J u a n Stewa r t , 3
Fra n ny Gla ss, Los Desconocidos
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h ttp : / / b i t .ly/pldNif
Ritmos latinos revisitados pela música contemporãnea independiente latino-americana.
Feito com três notas de piano em loop. É das coisas mais lindas que a Argentina contemporânea entregou.
Com vídeo do uruguaio Gonzalo D e n i z , o c l i p e é pa ra d a o b r i ga t ó r i a da nova canción latino-americana.
Lucrecia Da lt + F.S. Blum m , Q uiz á s, Perhaps, Q uiz á s
Pa blo M a la u r i e, Ca r m en c i ta
B a l ú n , C a to rce
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h ttp : / / b i t .ly/n fxLt9
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Fruto da união de uma colombiana e um alemão que se juntaram para criar uma versão Morr Music do clássico bolero cubano de Osvaldo Farrés. Buenísimo.
O a rge nt ino Pa b lo M a la ur ie fe z o d isco m a is b onito d a A m é r ica La t ina e m 2 01 0.
Tr ip hop, pura me lan co lia, d o m e l h o r n ome da música ind e pe nde nte p o r to -r iq u e n h a.
MKRNI, Hu m e d a
Los A n i m a les Su p er fo r ros, C h a ka b i t
J ó ven es y Sexys, Mitad
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h ttp : / / b i t .ly/r2Yom P
h ttp : / / b i t .ly/pRY 39A
Os chilenos do MKRNI (ou Makaroni) balançam a pista com batidas calientes e humedad tropical. Disco, cumbia e pop oitenteiro.
G rava ra m es s a v inhet a pa ra a M T V, m escla nd o s intet iza dores , p it a d a s d e ca lipso e dive rsos sons a ndinos . F ino!
Os venezuelanos fizeram uma das versões mais bonitas de Não Moro Mais em Mim, disco com versões latino-americanas para músicas da Adriana Calcanhotto.
Juan Cirerol, Toq ue y Rol
C a rava n a , Si gu e Su s O j os
Rodri go Mac i ei ra
Mistura caliente
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h ttp : / / b i t .ly/n 8pswM
Folk’n’roll rega d o a te q u i la , p o es i a to rta e irreverên c i a s ão o seg red o de u m dos n o m es m ai s i n teres sa n tes da m ú s i ca q u e c h ega d o M éxico a t u al m en te.
C a rava na , d o C hile, la nçou o pr im e iro disco e m 2 01 1 e d e ca ra incluiu es se t re m e nd o dueto m e z zo folk , m e z zo ind ie pop no re pe r t ór io.
Fã da música e da literatura feita pelos nossos hermanos. Desde 2007, mantém o coletivo www.sinopuedobailar.com, focado em música, artes visuais, literatura e cultura latino-americana.
obituário
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Escrita cursiva (séc. 1º a.C.–séc. 21 d.C.) Fruto da longa história das técnicas de registro e da comunicação humanas, a escrita cursiva floresceu no Império Romano. Alongada e ligeiramente inclinada, era agregadora: nas suas linhas, as letras viviam ligadas umas às outras. Com vocação popular, era a preferida da forma cotidiana de escrever. Aos poucos, ela desbancou suas avós, mãe, irmãs e primas, escritas trabalhadas e luxuosas que habitavam os livros e monumentos e só sabiam se fazer ouvir em maiúsculas. Ganhou a Europa, a partir da Idade Média, e sofreu, ao longo dos séculos, diversas simplificações e adequações locais, respondendo à necessidade de agilizar a transmissão e documentação de informações, à emergência de novos centros de poder e ao paulatino alargamento dos horizontes de acesso ao saber. Já não era musa de pedagogos desde os anos 1920. Professores alertavam que os alunos, por serem alfabetizados com livros, deveriam aprender a escrever em letras bastão (de forma), tendência que se consolidou depois da Segunda Guerra Mundial. Apunhalada de frente no estado de Indiana, nos EUA, em 2011, foi ali mesmo desenganada pelos especialistas do Departamento de Educação, que liberaram seus pupilos da necessidade de conhecê-la. Com mais de 2 mil anos nas costas, ela, que trazia a velocidade inscrita no seu próprio nome (cursiva vem do latim cursus, movimento rápido), tornara-se lenta e elitista diante da digitação. Deixa viúvo o talão de cheques e órfãos inúmeros pesquisadores dos ganhos cognitivos que trouxe. GB
ilustração: bruno pugens
delete
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Cristo recrucificado Monumento urbano que já foi assunto de concurso público com critérios técnicos passou a ser negócio de ocasião AngélicA de MorAes
Há breguice atávica no entendimento das chamadas autoridades municipais, estaduais ou federais sobre o que é arte urbana. Isso na melhor das hipóteses. Há quem veja curiosidades contábeis nesses monstrengos oficiais. Como em 1995, quando o então prefeito paulistano Paulo Maluf resolveu homenagear Ayrton Senna com uma barafunda de bronze semelhante a uma rolha de vinho esbagaçada. O equívoco foi colocado na entrada do túnel de igual nome, que Maluf mandou fazer sob o Parque do Ibirapuera. Era para ser a imagem do imbatível campeão mundial de Fórmula 1 dentro de seu carro. Confiada a alguém com talento escultórico nulo, a homenagem virou xingamento. Cálculos independentes estabeleceram que, com o valor pago pela coisa assim obrada, dava para comprar três grandes esculturas em aço corten de Amilcar de
Castro, um dos maiores escultores brasileiros. A rolha esbagaçada continua lá, na entrada do túnel que teria custado o dobro do Eurotúnel, sob o Canal da Mancha. Afinal, na lógica da administração pública nacional, a contabilidade obedece a critérios peculiares. Em junho passado, o presidente do Peru, Alán García, inaugurou uma atarracada cópia, em fibra de vidro, do Cristo Redentor carioca, no trecho peruano da rodovia Transpacífica, que liga o Brasil ao litoral oeste do continente. Novamente usou-se improvisação kitsch em arte pública. Aperto o botão delete para essa estátua, doada pela construtora Odebrecht, multinacional brasileira responsável por extensos trechos dessa rodovia. O Cristo Redentor original, maior obra art déco do mundo, foi desenhado pelo artista brasileiro Carlos Oswald. O escultor francês Paul Landowski esculpiu o rosto e as mãos da imagem, construída pelo engenheiro Heitor Costa. Tudo isso após concurso público realizado em 1923, com critérios técnicos. Um século depois, as coisas involuíram. Monumentos públicos, agora, são negócios de ocasião.
o c r i sto r e de n to r pe ruan o é m mai ai s u m m o n st r e n go o fi c i al
Foto: AFP PHoto/ANDINA
reinvente
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Faveleds reprogramam a iluminação Coletivo paulistano utiliza materiais urbanos em propostas criativas de reciclagem Não foi a Goma Oficina, coletivo de arte, arquitetura e design, que criou os Faveleds, painéis luminosos feitos com copinhos descartáveis de café e luzinhas de Natal chinesas. “Os Faveleds criaram a Goma”, explica Caio Rodrigues, 25 anos, um dos integrantes, ao lado de João Felipe Wallig, Thomas Frenk, Fabrizio Lenci e Rodrigo Oliveira, todos de 24 anos, e mais Luis Fernando Truyts, de 22. A primeira montagem foi feita há três anos em uma festa da Escola da Cidade, onde todos estudam, para anunciar o preço das cervejas em uma festa. “É possível tirar partido do sistema de programação dos circuitos dessas luzes de natal e criar desenhos incríveis. E é isso que fizemos. Foi um sucesso e começamos a ser chamados para fazer cenografias, participar de eventos multimídia e de ações urbanas”, conta Caio. E assim, os Faveleds, baseados em copinhos de café, aumentaram de escala, incorporando baldes de plástico e luzes incandescentes ligadas a uma mesa de luz. Novos materiais também foram testados, como tampas de plástico, e até intervenções urbanas com jogos de sombra, papel vegetal e luzes coloridas foram desenvolvidas. “Por isso, hoje chamamos os primeiros Faveleds de clássicos”, diz. Hoje, o coletivo atua em seis frentes: intervenção urbana, arquitetura, cenografia, objetos, artes gráficas e projetos multimídia. A escala e as ações foram ampliadas e diversificadas, mas a proposta do coletivo se mantém. Expandir o raio de atuação do arquiteto, trabalhando com uma linguagem cujo efeito é high tech, mas totalmente baseado em materiais de baixo custo para propor novas estratégias de reciclagem. Ta mpa leds, va ria ção de faveleds feiTa co m Ta mpas de pro duTos de belez a
Goma Oficina www.facebook.com/gomaoficina www.gomaoficina.com
GB
Foto: Goma + curva + baque cidade
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