MONteZ MaGNO GaBrIeL MaSCarO daMIeN hIrSt FUNdaÇÃO edSON QUeIrOZ a r t e e C U Lt U r a C O N t e M P O r â N e a
OCUPe eSteLIta
A Coruja (2012), Marepe
dureza, densidade, contradições, paisagem e conflitos sociais da região alimentam a obra de artistas e intelectuais
N O R D E S T E
EM tEMpo
A Select nº21 eStá nAS melhoreS bAncAS de todo pAíS. A edição completA tem 108 páginAS. Aqui você AceSSA pArte do Seu conteúdo. Folheie e deguSte. pArA ASSinAr e conSultAr AS ediçõeS AnterioreS, Feche eStA jAnelA e AceSSe oS linkS ASSine e Arquivo, no cAnto Superior dA telA. boA leiturA!
mundo codificado
MATRIZES NoRdESTINAS do PENSAMENTo bRASIlEIRo glauber rocha
c r i st i a n a t e j o
Quem são os intelectuais, artistas, movimentos e invenções que conferem ao País inteiro sua nordestinidade
clarice clarice lispector lispector
mario schenberg
manifesto regionalista
poema processo
paulo freire
físico de renome internacional, o pernambucano foi também um influente crítico de arte, tendo atuado na polêmica bienal do boicote (1969).
o manifesto foi uma reação ao manifesto modernista. para gilberto freyre, o brasil deveria conciliar a visão do futuro com as tradições regionais do país.
movimento liderado pelos poetas álvaro de sá, neide sá, moacy cirne e Wlademir diaspino, buscava o desmonte nas formas estabelecidas de criação de um poema.
o educador pernambucano influenciou a pedagogia mundial com seu método de ensino não tecnicista e alienante que contribuísse para que o educando lesse não apenas textos, mas o mundo.
manuel bandeira
nelson rodrigues
câmara cascudo
ferreira gullar
pai do cinema novo, com uma câmera na mão e muitas ideias na cabeça, mostrou que a revolução é uma “eztetyka”.
a escritora considerava-se pernambucana, pois aprendeu a ler e a escrever no recife, cidade onde viveu até os 15 anos. sempre relatava a influência que sofreu do entorno no qual cresceu.
um dos grandes nomes da literatura modernista brasileira. seu poema os sapos abriu a semana de arte moderna de 22.
o mais influente dramaturgo nasceu no recife e destacouse ainda no jornalismo e na crônica esportiva.
historiador e antropólogo potiguar, foi um grande pesquisador das manifestações culturais brasileiras, tendo legado diversas obras importantes, como o dicionário do folclore brasileiro.
autor do artigo poesia concreta: experiência fenomenológica, como resposta ao grupo concretista de são paulo. escreveu o manifesto neo-concreto e a teoria do não objeto.
gilberto freYre
aloísio magalhães
artur bispo do rosário
cícero dias
lina bo bardi
nascido em sergipe, utilizou seus conhecimentos adquiridos com as bordadeiras locais para levar adiante sua tarefa de reproduzir o mundo que seria salvo após o apocalipse.
artista modernista que se radicou em paris. a pintura eu vi o mundo, ele começava no recife evidencia seu compromisso em elevar o local ao internacional.
conhecer o nordeste impactou a obra e o pensamento de lina, que passou a investigar os objetos vernaculares produzidos pelos artesãos da região. foi a primeira diretora do mam-ba.
vicente do rego monteiro
jomard muniz de brito
mário pedrosa
pernambucano que não apenas participou da semana de arte de 22, como foi o único artista brasileiro a realmente ter reconhecimento nos ciclos modernistas de paris.
filósofo, agitador cultural, escritor e performer, foi, juntamente com celso marconi, a liderança na escrita do manifesto tropicalista, assinado por caetano veloso e gilberto gil.
considerado um dos mais influentes críticos de arte do brasil, nasceu em timbaúba (pe) e foi grande mentor de vários artistas, entre eles o grupo neoconcreto.
o sociólogo converteu a nossa mestiçagem num aspecto positivo em sua interpretação do brasil e buscou fundamentar uma ciência social a partir dos trópicos, a tropicologia.
um dos mais importantes designers gráficos brasileiros do século 20. pioneiro na introdução do design moderno no brasil, ajudou também a fundar a primeira escola do gênero no país, a esdi.
cobogó
joão cabral de melo neto
manifesto tropicalista
movimento armorial
exposição escola de paris
movimento de cultura popular
o gráfico amador
roberto burle marx
elemento construtivo vazado, idealizado por três engenheiros que trabalharam no recife no início do século 20. seu nome deriva das iniciais de seus sobrenomes: coimbra, boeckmann e góis.
poeta pernambucano, autor de o cão sem plumas (1950) e morte e vida severina (1966). da infância em engenhos de açúcar à carreira diplomática, foi um interlocutor da vida do homem do interior do brasil para o mundo.
movimento de ruptura musical que influenciou outras áreas culturais, gerado entre salvador e recife, com artistas de vários estados do nordeste.
ação que valorizava a cultura popular do nordeste, ressaltando seu aspecto erudito. um dos fundadores foi o escritor ariano suassuna, sendo gilvan samico seu representante nas artes plásticas.
em 1930, obras de picasso, vlaminck, braque, miró, gris e leger itineraram pelo brasil pela primeira vez. a mostra, trazida por vicente do rego monteiro, iniciou-se no recife e percorreu rio e sp.
ação comunitária de educação popular capitaneada por intelectuais, artistas e universitários que tinha como propósito formar uma consciência política e social nos trabalhadores. foi programa do governo miguel arraes.
editora fundada por jovens intelectuais pernambucanos que fazia tiragens limitadas com forte preocupação estética. seus experimentos estão nas origens da moderna tipografia brasileira.
o nordeste foi território de experimentação para o ainda jovem paisagista burle marx, já nos anos 1930. foram cerca de 124 projetos em cidades como recife, fortaleza, salvador e teresina.
ilustração: equipe select a partir de fragmentos da obra sem título, s.d., de emmanuel nassar
ArquiteturA
Modernismos do Nordeste brasileiro e da URSS revelam uma história da cultura que não cabe nos clichês das relações entre centro e periferia
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MargeM Leste NeNhum poNto cardeal tem a magnitude
Giselle BeiGuelman
do Leste. É lá que o Sol nasce no equinócio e é isso o que o constitui como Levante, Nascente e Oriente. Ideias de insurreição, emergência e manifestação se confundem com sua expressão geográfica e cultural. Não por acaso, a maior parte das religiões reza olhando para o Oriente. Era comum entre povos antigos a crença de que o berço da humanidade ficava nesse lado do mundo. Muitos milhares de milhões de anos foram necessários para que o Leste adquirisse outras dimensões simbólicas. Durante a Guerra Fria, que dominou o mundo dos anos 1950 ao início dos 90 por meio do confronto entre as superpotências URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e Estados Unidos, tornou-se o território difuso do Leste comunista.
Curiosamente, foi a partir da consolidação da “Cortina de Ferro”, logo após a morte de Stalin (1953), que se propagou uma das ondas criativas mais interessantes da arquitetura modernista. A “Cortina” designava o bloco de países do Leste Europeu e marcava seu isolamento político, econômico e cultural em relação ao Ocidente. Hoje, percebe-se que um dos principais frutos desse
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Retiro dos Escritores da Armênia, projeto do arquiteto Gevorg Kochar, construído entre 1965 e 1969, em cartaz até dezembro em Uma Modernidade Paralela no Centro Cultural São Paulo
FoTo: ARquivo nACionAL dA ARmêniA
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Um dos traços marcantes da arquitetura modernista do Leste Europeu é o seu flerte com o imaginário da ficção científica. Abaixo, edifício polonês dos anos 1950. Ao lado, projeto de residências móveis russas dos anos 1980
isolamento é a ignorância que temos da sua história. Entre os anos 1950 e 70, a expansão do espaço urbanizado nas antigas repúblicas soviéticas deu vazão a um modernismo que cruzava as projeções de utopias ainda não frustradas que visavam a invenção de um futuro sem precedentes históricos, enfatizando o arrebatamento técnico, a subversão estética, as grandes escalas e, dos anos 1970 em diante, a circulação massiva. É iluminando esse capítulo desconhecido para nós da história da arquitetura mundial e colocando em questão os parâmetros da historiografia europeia sobre o modernismo em particular que trabalha a exposição Uma Modernidade Paralela, em cartaz no Centro Cultural São Paulo até 21 de dezembro. Com curadoria de Georg Schöllhammer e Ruben Arevshatyan Yerevan, a mostra está na sua terceira montagem, tendo já sido apresentada em Istambul e na última Bienal de Arquitetura de Veneza (Pavilhão da Armênia). Obras como o Retiro dos Escritores da Armênia e seu incrível terraço com vista para o mar, de autoria do arquiteto Gevorg Kochar, mais próximo de um disco voador que broSELECT.ART.BR
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tou das rochas, construído entre 1965 e 1969, ou o alucinado projeto do Café Zhemchuzhina, em Baku, no Azerbaijão, uma espécie de tenda de concreto construída também nos anos 1960, dão o tom da exposição e de uma arquitetura que ignoramos. Do fim dos anos 1970 em diante, esse panorama inquietante vai sendo domesticado, em resposta ao tipo de ocidentalização promovida por Brejnev e suas políticas de industrialização. No plano urbanístico, essas políticas resultaram em projetos megalomaníacos e monótonos para 100 mil pessoas ou mais, e de criação de monumentos para preencher o espaço público com referências soviéticas. Tudo, rapidamente, distanciava-se da radicalidade de projetos como o Ministério das Estradas de George Chakhava (1975), marco do que o modernismo soviético almejou e realizou em seus momentos mais contundentes. Interessante notar que um dos nossos arquitetos mais inovadores, João Filgueiras, o Lelé, estudou no Leste Europeu e foi responsável por um visonário projeto de passarelas e sistema de bondes que marca até hoje a paisagem urbana de Salvador.
Ministério dos Transportes da Geórgia. Construído em Tbilisi nos anos 1970, é uma das últimas e mais radicais obras soviéticas, Está hoje abandonado, como outros edifícios monumentais da época FoToS: divuLgAção
cobogós e orixás
As primeiras obras modernas são implantadas no Recife nos anos 1930. Em sua maioria, dizem as pesquisadoras Sonia Marques e Guilah Naslavsky, autoras de um estudo sobre o tema, “eram obras públicas de cunho social, para atenuar as carências infra-estruturais de educação, abastecimento, saúde e lazer”. Elas destacam, entre esses projetos, o pioneirismo e a presença de Luis Nunes (1909-1939), responsável, entre muitos outros, por obras como a Usina Higienizadora de Leite (1934), o Reservatório de Água de Olinda (1936) e o Pavilhão de Verificação de Óbitos da Faculdade de Medicina (1937). Nesses projetos nota-se a capacidade de incorporação da linguagem modernista europeia em diálogo com uma sintaxe muito particular, fazendo uso da refrigeração por cobogós, invenção arquitetônica também pernambucana, lembre-se. Essa combinação entre elementos locais e internacionais não
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implica um suposto endosso de uma escola regionalista para Marques e Naslavsky. Ao contrário, aponta para a complexidade de uma revisão historiográfica que começa agora a ser feita para dar conta da compreensão de modernidades que não cabem em clichês de centro e periferia, ou de relações entre vanguarda e seguidores. Nesse contexto, tornam-se legíveis processos, como as particularidades da Bahia, por exemplo, que não se explicam pelas grandes linhas mestras genéricas de um Brasil bossa nova pré-Brasília. Ali, as contaminações entre arte, arquitetura e política educacional criaram um conjunto de obras implantadas entre os anos 1940 e 50 que se confunde com a história cultural do estado. O professor da UFBA Nivaldo Vieira de Andrade Junior, que dedicou ao tema um longo doutorado, mostrou, nesse sentido, a relevância dos projetos concebidos por O Reservatório de Água de Olinda (1936), projeto de Luis Nunes, um dos primeiros edifícios modernistas do País
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FoTo: CARLoS LEmoS/ ARquigRAFiA
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Diógenes Rebouças à frente do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (Epucs), para concretizar as escolas integradas idealizadas pelo educador Anísio Teixeira. Nesse período, entre os anos 1940 e 50, são projetadas na Bahia obras como a Escola-Parque, o Hotel Bahia (atualmente Sheraton de Salvador), a Usina de Paulo Afonso, o Teatro Castro Alves e o Estádio da Fonte Nova. Todas essas obras emulam, como assinala Andrade, uma série de princípios gerais da arquitetura modernista herdeira de Le Corbusier, como seu fascínio pelos aviões, patente nas linhas do Hotel Bahia, o uso das rampas e o desenho construtivo voltado para a continuidade espacial. Mas a interpenetração com as artes é um elemento particular, especialmente quando não adquire função decorativa ou de adorno, seja pela contun-
dência simbólica, ou pela força como uma espécie de antecipação do design contemporâneo. Dois exemplos, coincidentemente, assinados por Carybé aqui bastam. As grades em volta do Largo do Campo Grande, muito semelhantes, aliás, às do Hotel Bahia, e os painéis de madeira feitos para a sede do antigo Banco do Nordeste. Atualmente no Museu Afro-Brasileiro da UFBA (Mafro), os painéis têm 2 x 3 metros de altura e, como diz irônica e sabiamente o artista e curador Ayrson Heráclito, “são a nossa Capela Sistina!” Ainda que expostos em condições que não fazem jus à sua grandeza, são uma das chaves de leitura desse modernismo alternativo e de suas temporalidades plurais. Veja na Select iPad uma galeria de imagens dos orixás de Carybé que atualmente fazem parte do acervo do museu
Os painéis de madeira de Carybé foram criados especialmente para a sede do antigo Banco do Nordeste. Hoje no acervo do Museu Afro-Brasileiro, medem 2 x 3 metros e retratam todos os orixás SELECT.ART.BR
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FoToS: ALFREdo mASCAREnhAS
Fala RENaTO cYMBalISTa
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A exposição Uma Modernidade Paralela serviu de “canteiro” didático para o arquiteto e professor da FAU-USP, Renato Cymbalista. A partir de uma série de visitas, sua classe executou uma nova legendagem para a mostra em cartaz no Centro Cultural São Paulo. O processo valeu uma reabertura da mostra, que ganha, assim, montagem inédita. Em entrevista à seLecT, Cymbalista fala sobre as relações entre o modernismo soviético e o brasileiro.
É possível dizer que há uma certa semelhança estética e “retórica” na arquitetura exposta em Uma Modernidade Paralela, em obras como a FAU, em São Paulo, e a Escola Parque de Salvador? Por quê? Renato Cymbalista: Um dos mitos que a exposição derruba é o de a arquitetura soviética equivaler a padronização e homogeneização. Na verdade, a arquitetura soviética pós-stalinista foi muito variada e diversificada, foram possíveis experimentações de várias ordens, houve a ressignificação de linguagens tradicionais. Mas é possível, sim, identificar relações entre a versão brasileira do modernismo brutalista e algumas das vertentes da arquitetura soviética do pós-Segunda Guerra Mundial. A valorização dos elementos pré-fabricados e a busca pela industrialização da construção são dois elementos muito presentes, isso se verifica no Brasil e também na URSS. Muitos dos arquitetos modernistas brasileiros eram também comunistas ou simpatizantes. É o caso do Villanova Artigas, do Lelé (João da Gama Filgueiras) e do próprio Niemeyer. Todos esses arquitetos visitaram a União Soviética, conheciam essa arquitetura. Todos eles depositavam no Estado as expectativas de viabilização da produção arquitetônica sofisticada que eles queriam produzir, e essa é outra semelhança.
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O que há de mais parecido entre a arquitetura soviética dos anos 1950/1970 e a brasileira? Não há só uma arquitetura soviética, assim como não há só uma arquitetura brasileira nesse período. O que é interessante são interfaces entre correntes de produção arquitetônica que buscavam as mesmas coisas. A pré-fabricação era uma das obsessões de Lelé, e aparece por todos os lados na URSS como resposta à necessidade de produção massiva de habitação. A busca de continuidade dos pressupostos do modernismo europeu pré-Segunda Guerra Mundial aparece na escola paulista de arquitetura e também no trabalho de arquitetos que são nossos desconhecidos (mas são celebridades do lado de lá), como Eduard Bilski, da Ucrânia, ou Ivan Bovt, de Minsk, na Bielorrússia. O que há de mais diferente entre elas? Na URSS, entre os anos 1950 e 1990, praticamente inexiste a noção de cliente privado do arquiteto. Todos trabalham para o Estado, ou para o partido, que são os vocalizadores das demandas da sociedade para os arquitetos. Isso não significa que os consumidores finais da arquitetura foram anulados em todas as situações, mas que o Estado aparece como o grande mediador, de forma muito mais onipresente que no Brasil.
FoTo: divuLgAção
t e c n o lo g i a
Da lama à teoria Do caos
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Porto Digital, no Recife, mescla preser vação arquitetônica com fomento à criatividade tecnológica Giselle BeiGuelman
f o t o s B á r B a r a waG n e r
No iNício dos aNos 1990, o Manguebit de Chico Science, Nação Zumbi e Mundo Livre S/A marcou a cena musical, reinventando Recife na paisagem cultural brasileira. Combinando ritmos regionais com hip-hop, funk, música eletrônica e os primórdios da cultura digital, um bando de vorazes “caranguejos com cérebro” – título do manifesto assinado por um de seus pioneiros, Fred Zero Quatro – apostava na emergência como potencial inequívoco do ecossistema da cidade. Tempos mais tarde, no ano 2000, essa hipótese seria revisitada no projeto do Porto Digital. Congregando recursos públicos, privados e laços com universidades, o Porto Digital ocupa o Bairro do Recife e, desde 2011, com seu novo braço, o Porto Mídia, também o bairro de Santo Amaro. Enquanto o primeiro concentra as áreas de Tecnologia da Informação, o segundo está voltado para as indústrias criativas (como games e design). A combinação entre tecnologias de ponta e ações de recuperação de patrimônio arquitetônico é o grande diferencial do projeto. Via de regra, ações urbanísticas relacionadas à TI culminam em torres espelhadas de gosto duvidoso. Já as relacionadas ao patrimônio histórico tendem ao uso em formato de centros culturais. O resultado desse processo, ainda em curso, foi um complexo de 200 empresas, agora expandido no Porto Mídia com laboratórios de impressão 3D e pós-produção cinematográfica. Esse conjunto constitui um dos polos de criatividade mais interessantes da atualidade. Em torno dele gravita um incalculável capital humano de massa crítica, não vinculado integralmente ao Porto, mas que aponta, a partir dele ou de sua crítica, possibilidades de apropriação construtiva e coletiva das mídias e das tecnologias. seLecT conversou com alguns personagens desse caldeirão atômico que faz a alquimia da lama à teoria do caos. SELECT.ART.BR
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Acima, prédio histórico no centro do Recife, onde fica o Porto Digital. Ao lado, Silvio Meira, um dos idealizadores do projeto
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O f unda dOr S i lv i o M e i r a , e n g e n h e i r o e c i e n t i S ta d a c o M p u ta ç ã o
Eu fui um dos caras que estavam lá na concepção do que hoje é o Porto Digital, mas minha ideia inicial era a de um cluster de tecnologia ao redor da Universidade Federal de Pernambuco. Quem nos convenceu da ida para o Centro, dos desafios e oportunidades que havia para ocupar, renovar e reviver o Centro do Recife, na ilha onde a cidade foi fundada e que estava, na época, em estado de grave desmantelamento urbano foi Cláudio Marinho, secretário de Ciência e Tecnologia de Pernambuco naquele tempo. Cláudio é um pensador, humanista e um grande urbanista e já enxergava, lá atrás, coisas que nós só conseguimos ver muito tempo depois. Antes do Porto Digital, o Bairro do Recife, que foi onde começamos o esforço de “reinvadir” o Centro da cidade, à revelia do governo municipal à época, estava a caminho de se tornar algo parecido com o que se chama, pejorativamente, de “Cracolândia” paulista. Quase todas as características já estavam no lugar. Nós chegamos como uma espécie de guerrilha urbana não violenta, tentando articular todos os atores, literalmente todos, para ver se era possível retomar o Recife Antigo para a cidade, para a cidadania... e, sim, era possível. Hoje o Recife Antigo é palco das principais experiências de renovação, informatização, mudança de modelos de negócios da cidade e aponta para o futuro, em vez de ser apenas uma triste memória do passado. Eu aprendi muito com tudo o que aconteceu até aqui... Se minha ideia original tivesse ido em frente, o que hoje é o Porto Digital seriam alguns arranha-céus gigantes ao lado do campus da UFPE. Torres de aço, vidro, elevadores, heliportos... ainda bem que alguém me disse que havia uma forma muito mais urbana, bem mais humana e equilibrada de fazer quase a mesma coisa, de uma maneira muito mais dinâmica e com um potencial de impacto bem maior para a cidade. Foi aí que tecnologia se encontrou com história, arquitetura, urbanismo, arte, e se deu o enredo que hoje a gente chama de Porto Digital. Ainda bem... ainda bem.
O au tOdidata h . d . M a b u S e , d e S i g n e r d o c . e . S . a . r ( u M c e n t r o p r i va d o d e i n o va ç ã o)
Ser artista, designer, ativista e pioneiro da era do manguebit que foi parar no Porto Digital, trabalhando num de seus polos de pesquisa mais importantes – o C.E.S.A.R – sem ter nenhuma formação acadêmica, nem técnica, não é a cara do Porto Digital, mas uma característica do Recife! Em grande escala esse fenômeno acontece desde os anos 1990, mas não exclusivamente. Na nossa história temos nomes como Daniel Santiago, Aloisio Magalhães e Paulo Bruscky, entre outros, que sempre flertaram com a produção artística híbrida. Hoje, essa diversidade é o DNA do C.E.S.A.R. O mais gratificante desse processo é perceber a mudança de uma imagem da cidade e a possibilidade de com isso gerar projetos como o N.A.V.E, de ensinar cultura digital por meio da produção de games, formando jovens. E hoje eles estão trabalhando com a gente, lado a lado... Acreditava que haveria um barateamento induzido dos imóveis e um “desinvestimento” nos automóveis. Isso nunca aconteceu. Mas essa relação entre cultura de ponta (tecnologia) e história (patrimônio arquitetônico) é uma matéria-prima fantástica para escrever o futuro. SELECT.ART.BR
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n at ur a l men t e digi ta l F i l i p e c a l i g á r i o , d o u t o r a d o d o c e n t r o d e i n F o r M át i c a – u F p e
Espaços como o Porto Mídia são importantes para a formação de uma nova cultura de inovação, pois são locais de integração entre as tecnologias digitais e as teias criativas. É na interseção de onde saem as melhores ideias. Mas acredito que é preciso um certo nível de liberdade de experimentação. É preciso que o ambiente permita que aconteçam erros, ou até que encoraje os erros. É necessária uma atmosfera de geração, prototipação, maturação, combinação, transformação, descarte e desenvolvimento de ideias. A exigência de resultados imediatos talvez faça com que as ideias superficiais e lineares sejam escolhidas em primeiro lugar e ideias mais poderosas, mas que não têm uma aplicação direta no mercado, sejam deixadas de lado. Existe a necessidade de uma meiqueofagia, uma deglutição do movimento maker, inspirada na Gambiologia, que tem o intuito de criar uma identidade local, combinando (e confrontando) o certinho e o perfeito com a imperfeição, a praticidade e a estética da gambiarra. A ideia é de não esperar para fazer. É descobrir fazendo, tentando e errando.
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a 2 a ger aç ãO dO p Or tO Maria duda , coordenador a de projetoS do porto Mídia
O Porto Mídia é a área de ação mais nova do Porto Digital. Está funcionando há um ano. É uma OS (Organização Social) e todo o seu dinheiro é público (seja ele municipal, estadual ou federal). Suas bases são a capacitação técnica, o fomento aos novos negócios (por meio de uma incubadora no Porto Digital), o estímulo à experimentação (com salas de equipamentos de ponta a que as pessoas não teriam acesso) e espaço expositivo. Mas todas as atividades são fruto de políticas públicas. Ainda que estejamos definindo muitas coisas, os cursos seguem diretrizes que são dadas a partir de uma visão de políticas públicas orientadas para o melhor. Por exemplo, acabamos de trazer uma colorista superimportante, a Vanessa Taylor. Ela trabalhou no Harry Potter, no Grande Gatsby, é uma das mais destacadas da sua área, e veio dar um curso aqui por um preço que é 15% do que custaria em qualquer lugar do mundo. Enfim, é o critério do melhor, mas sempre relacionado ao fomento do mercado da economia criativa.
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portfólio
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Marepe
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FusionisMo baiano Pa u l a a l z u g a r ay
Miscigenações do Recôncavo embebem o “ismo” criado pelo próprio artista
Berço do samBa-de-roda e da capo-
eira, destino maior da diáspora africana, o Recôncavo Baiano é a fonte criativa de Marepe. Natural de Santo Antônio de Jesus, conhecida pela melhor Festa de São João da Bahia, polo de comércio e geração de serviços, Marcos Reis Peixoto obtém da terra que ainda hoje habita, do convívio com seus habitantes, vizinhos e familiares, o extrato de sua atividade artística. Do vigor comercial da cidade, Marepe talhou uma estética da feira, do mercado, da vida ambulante. Tudo o que está à venda nas lojas de Santo Antônio pode ter sua função pervertida, reorientada e virar trabalho. Assadeiras, bacias, carrinhos de obra, todo e qualquer tipo de utilitário doméstico e matéria pré-fabricada são transformados em personagens de uma iconografia pessoal, quase fantástica. À direita, Museu, da série Instituições (2014), apresentada na 3 a Bienal da Bahia, composto de display com miniaturas de obras e objetos de fontes e naturezas diversas SELECT.ART.BR
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foToS: giLLiAn viLLA
A instalação Notícias da Lagoa (2014) é uma alegoria do Brasil e ao mesmo tempo uma paisagem espacial, em homenagem a tela impressionista de Manet foToS: CoRTESiA gALERiA MAx HETzLER / gALERiA LuiSA STRinA
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Do vigor comercial de Santo Antônio de Jesus Marepe talhou sua estética. Todo e qualquer utilitário doméstico pode se tornar matéria-prima de uma iconografia fantástica
Como um escultor que extrai o excesso da matéria bruta até chegar na forma, Marepe diz que suas obras estão prontas, em cada um dos objetos apropriados do mundo, mas são invisíveis para as pessoas. “O excesso no meu trabalho é a poluição visual em que o objeto estava inserido. É preciso um olhar para recortá-lo”, diz Marepe à seLecT. Em cada objeto que escolhe recortar, ele identifica uma relação com um artista ou movimento da história da arte: a arte pop, Lygia Clark, a arte povera, conceitual, o cubismo. Exercitando, assim, seu lado curador e historiador, Marepe cria o seu próprio ismo, o “fusionismo”, embebido das miscigenações que historicamente compõem o Recôncavo. O impressionismo ganha citação em Notícias da Lagoa (2014), obra apresentada em individual na Galerie Max Hetzler, em Berlim, de setembro a outubro último. A instalação é uma releitura da pintura Impressão, Nascer do Sol (1872), de Claude Monet, obra inaugural do impressionismo, que emprestou seu título ao movimento e anunciou a reviravolta que a arte moderna produziria sobre a paisagem bucólica europeia. Traduzido por Marepe, esse momento de virada da arte ocidental torna-se uma alegoria do Brasil, em forma de paisagem artificial. A lagoa é composta de duas banheiras de fiberglass azul, encaixadas. A água – ou o caldo de cultura – é representada por
Sistema M (2013), instalação feita com mesas de passar roupa, ferros de passar e vassouras
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foTo: EdouARd fRAiponT / CoRTESiA do ARTiSTA / gALERiA LuiSA STRinA
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um tecido impresso com notícias de jornal sobre a Copa do Mundo e a economia brasileira. O pêndulo amarelo que recai sobre a banheira representa o sol. O mesmo ímpeto de agitação e desestruturação de certezas está presente em Renovação do Ar (2014), instalação produzida com exaustores e ventiladores de ar, numa reflexão do artista sobre as trocas e influências entre norte e sul, calor e frio, e em homenagem a Air de Paris (1919), de Marcel Duchamp. Duchamp é também presença indireta na série Instituições, recentemente apresentada na 3ª Bienal da Bahia. Definidas pelo artista como exercícios de montagem, as duas obras são instituições portáteis, como as malas e as caixas que circulavam com reproduções das obras de Duchamp. Compostos de estantes compactas, os displays de Marepe contêm um repertório variado – de brinquedos a miniaturas das próprias obras. São, portanto, sínteses de seu processo criativo. “Vejo nesses minidisplays uma possibilidade de ação social”, diz Marepe. “Eles podem ser montados em escolas ou em lugares com pouco espaço e funcionar como uma introdução às artes plásticas para jovens e estudantes.” Completa a série a obra A Casa do Colecionador, em processo de realização.
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No alto, A Coruja (2012), realizada com carrinhos de mão, pás e parafusos; acima, Renovação do Ar (2014), feito com exaustores e pneus, em referência à obra Air de Paris, de Duchamp
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foToS: EdouARd fRAiponT / CoRTESiA do ARTiSTA / gALERiA LuiSA STRinA
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curadoria
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Pensamento imPresso Movimentos experimentais como o Poema/Processo e a Arte Correio interligaram o Nordeste com o mundo
Cristiana tejo
A experimentAção com novos meios e
a expansão do vocabulário artístico marcaram a produção da arte do Nordeste no século 20, fortalecendo-se a partir dos anos 1960. A rizomática e transnacional rede de Arte Correio, por exemplo, teve nessa região a maior participação de artistas do Brasil. O Poema/Processo, importante movimento de poesia de vanguarda brasileira, interligou o Rio de Janeiro com o Rio Grande do Norte, redefinindo conceitualmente o poema como um fenômeno que possibilita experimentar as muitas formas de linguagens, inclusive a visual. Esses e outros movimentos experimentais eram anticomerciais e antissistema e criaram sua própria forma de circulação, não baseada na parte institucionalizada da ecologia da arte. Ao usar o papel, por exemplo, um dos suportes mais desvalorizados, esses artistas apostavam em outra maneira de fazer e de pensar a arte. SELECT.ART.BR
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Mon t e z M agno (Pe ) Montez transita entre várias linguagens, tais como a pintura, a ilustração, a poesia e a escultura, tendo como norte a experimentação formal e a expansão das questões da arte moderna. A arquitetura ocupa um lugar significativo em suas pesquisas, assim como a poesia visual.
NOTASSONS, Sonata Mobile (1976), de Montez Magno
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da iLor Va reL a (rn) A poesia stricto sensu foi a grande formação de Dailor Varela, sendo João Cabral de Melo Neto sua primeira grande influência. O Poema/Processo propiciou uma virada em suas experimentações com a linguagem, passando a radicalizar tanto os signos verbais quanto os visuais. 70
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Poema/Processo Porno-Gráfico (1969) de Dailor Varela
Unh a ndei ja r a L i sboa (Pb) Unhandeijara pode ser considerado um multiartista. Sua atuação compreende uma dinâmica participação no movimento de Arte Correio, sendo o responsável pela capa da publicação Karimbada, e na aposta da xilogravura como uma maneira de fazer convergir tradição e experimentação.
Arte Correio Eu sou um Artista (anos 1970) de Leonhard Frank Duch
L eonh a rd Fr a nk dUch ( a L eM a nh a / Pe )
Livro de Artista (1984) de Unhandeijara Lisboa SELECT.ART.BR
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Alemão, mudou-se com a família inicialmente para São Paulo e estabeleceu-se no Recife, onde se formou em jornalismo. Integrou-se à fervilhante cena cultural de Pernambuco e foi um ativo membro da rede da Arte Correio. Seus trabalhos abordavam o sistema político e o próprio estatuto da arte num mundo em transição. Voltou a morar na Alemanha em 1994.
da nieL s a n t i ago (P e ) Muito conhecido por sua atuação na Arte Correio e na dupla Bruscky & Santiago, Daniel construiu um corpo de trabalho que não se limita às contestações estéticas dos anos 1970. Foi designer gráfico e professor de arte. Sobressaem em suas obras a exploração poética do cotidiano, os questionamentos filosóficos sobre a solidão, a vida e a liberdade e a aliança com a literatura e o teatro.
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Desenho da série Educação da Mão e da Vista (1962-1967) de Daniel Santiago
Fa LV e s siLVa (Pb) Falves conectou-se muito cedo com o sentimento de vanguarda que busca romper com paradigmas e forjar torções semânticas. Para ele, o Nordeste é um território que aponta para o futuro, um lugar profícuo para novos horizontes, talvez por estar longe demais das capitais. Além de participante do Poema/Processo, Falves também foi integrante da Arte Correio.
Obra da série Mulher- Alfinete (1976) de Letícia Parente
L e t íci a Pa ren t e (b a ) Apesar de sua obra em vídeo ser a mais reconhecida, o desenho, o xerox e a Arte Correio também ocuparam papel de destaque no universo artístico de Letícia Parente. Devemos ressaltar a complexidade de seu pensamento – que perpassa ainda a química, sua área de formação, sendo autora do livro Bachelard e a Química – no ensino e na pesquisa. Costumava dizer que seu trabalho tinha uma dinâmica mais ramificada do que linear. SELECT.ART.BR
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Poema Visual Liberdade (1982) de Falves Silva foToS: divuLgAção
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Foto: Flavio Kauffmann
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A Coruja (2012), Marepe
dureza, densidade, contradições, paisagem e conflitos sociais da região alimentam a obra de artistas e intelectuais
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