DOMINIQUE GONZALEZ-FOERSTER FABIO MIGUEZ GUIMAR ÃES ROSA NUNO R AMOS EDUARDO K AC
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As relações amorosas, possessivas, conturbadas, enigmáticas e irônicas que os artistas visuais desenvolvem com as palavras e a literatura
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ISSN 2 236-393 9 exemplar de assinante venda proibida
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a r t e E C U LT U RA C O N TE M P O R â n e A
JUN/JUL 2015 fev/mar 2015 ANO ANO0505 EDIÇÃo EDIÇÃo2422 R$R$16,90 16,90
O Amante, 2015, de Fabio Morais
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Pablo Ruiz Picasso – Mulher sentada apoiada sobre os cotovelos 1939 Coleção do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri – © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2015.
Exposição
PICASSO
E A MODERNIDADE ESPANHOLA OBRAS DA COLEÇÃO DO MUSEO NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA SOFIA
CCBB São Paulo
Rua Álvares Penteado, 112 – Centro São Paulo – SP Até 8 de junho de 2015
CCBB Rio de Janeiro
Rua Primeiro de Março, 66 – Centro Rio de Janeiro – RJ 24 de junho a 7 de setembro de 2015 Essa exposição foi organizada e realizada em colaboração com o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía e a Fundación Mapfre. Exposição realizada inicialmente na Fondazione Palazzo Strozzi, Florença, Itália.
Entrada franca
Índex
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50 Curadoria
Outros sentidos Em obras de artistas visuais, as palavras que não nomeiam, mas atritam e inferem contrassensos
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76
84
Coluna móvel
Fogo Cruzado
Portfólio
Literatura
Arte digital
Esses jogos perigosos
estado da crítica
Escritura performática
Nonada O neologismo inventado
Cultura codificada
Lisette Lagnado fala sobre
Agentes dos sistemas
Fabio Morais e sua
pelo escritor mineiro
O artista Eduardo Kac
os jogos de palavras e a
artístico e editorial opinam
obra farta em citações,
Guimarães Rosa
e o designer Guto
multidão de referências na
se a crítica de arte é
armadilhas e revelações
contém um universo
Requena dão formas
obra de Leonilson
praticada hoje no Brasil
sobre a língua e as palavras
dentro de si
à vida secreta dos códigos
SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
seções
12 18 32 36 48 98 100 122
Editorial Selects / Agenda Arte e Educação Selects / Especial Livros Mundo Codificado Crítica
70
Reviews
Diálogos
Em Construção
As palavras e as coisas O poeta João Bandeira escreve sobre a obra do artista Fabio Miguez
90
94
Mídia
Vernissage
Poesia em movimento
Christian Rosa
Revista Código , vitrine da
A narrativa pictórica e
poesia concreta, ganha
a escrita automática na
reedição on-line em projeto
obra do artista brasileiro
do Rumos Itaú Cultural
residente em Los Angeles
80
66
Entrevista
Ensaio
Encontro entre Eros e Tanatos
Personagem de ficção
O escritor Ronaldo Bressane
Foerster é protagonista do
entrevista o artista Nuno
novo romance do escritor
Ramos sobre seu novo livro
catalão Enrique Vila-Matas
Dominique Gonzalez-
fotoS: no sentido horário, ricardo van steen, Jon Cartwright e ludovic carème. na página ao lado: paula alzugaray
editorial
12
A palavra como centro gravitacional das artes visuais Nesta edição dedicada à Palavra, seLecT
de caráter experimental e interdisciplinar
reafirma seu projeto de conectar as
que possam contribuir para a formação
diversas linguagens culturais por meio das
cultural e artística brasileira. Na matéria
artes visuais. O leitor encontrará aqui o
inaugural, enfocamos o projeto de suporte
uso das palavras como matéria-prima do
à alfabetização escolar realizado pela Flip,
trabalho artístico de Fabio Morais, Fabio
a Feira Literária Internacional de Paraty, que
Miguez, Dominique Gonzalez-Foerster, Luis
tem por objetivo a ampliação dos índices de
Camnitzer, ou do jovem artista do grafite e
leitura em uma das cidades mais carentes e
poeta marginal Thiago Cervan. Encontrará
violentas do estado do Rio de Janeiro.
o texto como rota intelectual de artistas
Nas páginas de resenhas – a seção Reviews
visuais como Nuno Ramos e José Rufino,
–, ratificamos a existência da crítica de
que acabam de publicar novos trabalhos. E
arte na grande imprensa, publicando este
se defrontará, também, com o pensamento
mês o comentário de Cristiana Tejo sobre a
sobre arte.
56a Bienal de Veneza. A seção Coluna
No Fogo Cruzado desta edição, ouvimos
Móvel, que também é um espaço talhado
críticos e jornalistas culturais que atribuem
para ensaios críticos, traz o texto de
a decadência da crítica de arte à crise
Lisette Lagnado sobre os embates éticos
estrutural enfrentada pela grande imprensa
envolvidos na abertura dos diários de um
no Brasil. Mas, além desse diagnóstico, e
artista, colocando a questão: em que
antes que ele se cristalize como um ponto
medida esta palavra tornada pública
pacífico irreversível, detectamos vozes
ilumina o trabalho de um artista como
que procuram saídas possíveis. Como a de
Leonilson? Além disso, em todo o farto
Rodrigo Moura, diretor artístico do Inhotim,
corpo editorial da revista está presente
que aponta para a necessidade de se
nosso comprometimento não com o fato,
criarem mecanismos de estímulo à crítica,
mas com o pensamento artístico.
“exigindo que as pessoas do meio da arte
Estamos aqui para mostrar que, mesmo que
leiam mais”.
a imprensa e o jornalismo cultural estejam
Aqui entra mais uma vez seLecT, que,
ameaçados no Brasil, é possível reinventar
contra vento, tempestade e escassez
espaços onde a palavra possa vibrar.
de estímulos, se mantém firme em seu projeto de oferecer à sociedade e ao meio especializado da arte um espaço para as
Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é
Paula Alzugaray
Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é
Ricardo van Steen
ode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. quer amor já é um pouquinho de
Giselle Beiguelman
perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de
Márion Strecker
se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho
Luciana Pareja Norbiato
conhecer outra pessoa, sem perigo se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Gustavo Fioratti
conhecer outra pessoa, sem perigo se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Hassan Ayoub
viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho
Luciana Fernandes
perigo de ódio, se a gente tem amor. quer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. canso na loucura.
Roseli Romagnoli
Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é
Guilherme Kujawski
ideias e a reflexão. Com isso, temos a satisfação de inaugurar nesta edição de número 24 uma seção dedicada à educação pela arte. Nela
Paula Alzugaray
abordaremos novos modelos e projetos
Diretora de Redação
SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
Ilustrações: Ricardo van Steen, a partir do aplicativo face your mangá
Christian Rosa, Flat n depressed, 2015
Christian Rosa Abertura Sábado, 27 de junho 2015, 14 h — 17h Exposição 30 de junho — 22 de agosto 2015
White Cube São Paulo Rua Agostinho Rodrigues Filho 550 + 55 (11) 4329 4474 whitecube.com/saopaulo De terça à sexta, das 11 h às 19h Sábados, das 11 h às 17h
Anselm Kiefer Paintings Exposição Até 20 de junho 2015
Bermondsey London
Hong Kong
Mason’s Yard London
São Paulo
expediente
EDITOR E DIRETOR RESPONSÁVEL: Domingo Alzugaray EDITORA: Cátia Alzugaray PRESIDENTE-executivo: Carlos Alzugaray
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diretora De redação: Paula Alzugaray direção de arte: ricardo van steen EDITOR Mídias digitais: GUILHERME KUJAwSKI editora de arte: luciana fernandes reportagem: LUCIANA PAREJA norbiato e Gustavo Fioratti conselho editorial: Giselle beiguelman e MáRION Strecker COLABORADORES
Angélica De Moraes, Celso Longo, Cristiana Tejo , Fernanda Lopes, Lisette Lagnado, Ludovic Carème, Luisa Duarte, Ronaldo Bressane, João Bandeira
projeto gráfico
Ricardo van Steen e Cassio Leitão
secretária de redacão copy-desk e revisão pré-impressão
contato Serviços Gráficos mercado leitor assinaturas
Roseli Romagnoli Hassan Ayoub High Pass
faleconosco@select.art.br Gerente Industrial: Fernando Rodrigues diretor: Edgardo A. Zabala Diretor de Vendas Pessoais: Wanderlei Quirino Diretor de Telemarketing: Anderson Lima GERENTE-ADMINISTRATIVA de Vendas: Rosana Paal Gerente de Atendimento ao Assinante: Elaine Basílio Gerente de ASSINATURAS (Sudeste): Marcus Fedulo Gerente de ASSINATURAS (SUL): Jefferson Rande Gerente-Geral de Planejamento e Operações: Reginaldo Marques Gerente de Operações e Assinaturas: Carlos Eduardo Panhoni GERENTE ONLINE e PARCERIAS: Solange Chiarioni Gerente de Telemarketing: Renata Andrea Gerente de Call Center: Ana Cristina Teen GERENTE DE PROMOÇÕES E EVENTOS: Alexandre Ramos Central de Atendimento ao Assinante: (11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 Outras Capitais: 4002.7334 Demais localidades: 0800-888 2111 (Exceto ligações de celulares) assine www.assine3.com.br EXEMPLAR AVULSO www.shopping3.com.br
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Gerente: Luciano Sinhorini Coordenadores: Alexander Cruz e Jorge Burgatti ANALISTA: Juliana Pelizzon CONSULTORES DE VAREJO: Alessandra Silva e Caio Novaes PROMOTORES: Fagner Garcia, Patrícia Leon e Tiago Morais ASSISTENTE: Samantha Dimiciano
operaçÕES
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marketing
Diretor: Rui Miguel Gerente: Wanderley Klinger REDATOR: Marcelo Almeida Diretor de Arte: Gustavo Borghetti
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SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da EDITORA BRASIL 21 LTDA., Rua William Speers, 1.000, conj. 120, São Paulo - SP, CEP: 05067-900, Tel.: (11) 3618-4200 / Fax: (11) 3618-4100. Comercialização: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; Distribuição Exclusiva em bancas para todo o Brasil: FC Comercial e Distribuidora S.A., www.select.art.br
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Pat roc í n i o :
SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
colaboradores
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cristiana tejo
Curadora independente, doutoranda em Sociologia (Ufpe) e cofundadora do Espaço Fonte – Centro de Investigação em Arte. Foi diretora do Mamam, no Recife, e curadora de artes visuais da Fundaj - crítica P 98
ronaldo bressane
Escritor e jornalista, é autor de Mnemomáquina (Demônio Negro) e Sandiliche (Cosac Naify), entre outros - entrevista P 80
fernanda lopes
lisette lagnado
angélica de moraes
joão bandeira
Crítica de arte e curadora, doutoranda em História e Crítica de Arte na EBA-UFRJ. Atualmente vive e trabalha em Nova York - reviews P121
Crítica de arte e doutora em Filosofia pela USP, foi curadora da 27a Bienal de São Paulo (Como Viver Junto, 2006). Diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) - coluna móvel P 30
Crítica de artes visuais e curadora independente, é coautora do livro O Valor da Obra de Arte (Ed. Metalivros) - reviews P 101
Escritor e coordenador de artes visuais do Centro Maria Antonia (SP). Curou recentemente a exposição Lina Gráfica, no Sesc-Pompeia - diálogos P 70
celso longo
Formado pela FAU-USP, trabalha com design gráfico. É membro da Alliance Graphique Internationale e autor do livro Design Total (Cosac Naify) - select expandida P 35 SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
ludovic carème
luisa duarte
Fotógrafo francês radicado no Brasil, publica regularmente em jornais e revistas como Libération, New York Times, Guardian e Rolling Stone. – entrevista p 80
Crítica e curadora independente. Mestre em Filosofia pela PUC-SP, membro do conselho consultivo do MAM-SP e crítica de arte do jornal O Globo - vernissage P 94
agenda
18
S ã o Pa u lo
DUAS VEZES CONCRETA Judith Lauand: Os Anos 50 e a Construção da Geometria, até 25/7, Instituto de Arte Contemporânea – IAC (Rua Dr. Álvaro Alvim, 90, 1º andar) e Museu Belas Artes de São Paulo – Muba (Rua Dr. Álvaro Alvim, 76) www.belasartes.br Na curadoria de Celso Fioravante, a dama do concretismo ocupa os dois espaços da Vila Mariana com cerca de cem obras. As técnicas variam entre pinturas, desenhos, guaches, tapeçarias, xilogravuras, matrizes e estudos em papel, além do segmento documental, que inclui fotografias, cadernos de anotações e catálogos. Pelo conjunto é possível observar as evoluções estilísticas pelas quais a obra de Judith Lauand (abaixo, Do Círculo ao Oval, 1958) passou durante os anos 1950, quando decolou da figuração para a linguagem concreta.
S ã o Pa u lo e C u r i t i b a
JOVENS VETERANOS Casa 7, 13/6 a 29/8, Pivô, Edifício Copan – Av. Ipiranga 200, Bloco A, loja 54, São Paulo | www.pivo.org.br Geração 80, 18/6 a 1º/8, Simões de Assis Galeria, Alameda Dom Pedro II, 155, Curitiba Duas exposições em capitais brasileiras lançam olhares sobre a produção dos anos 1980, que revelou promessas hoje consolidadas na cena contemporânea. No espaço Pivô, o projeto Fora da Caixa busca trazer de volta à cena obras fora de circulação. Na estreia tem como foco o grupo Casa 7, formado por Nuno Ramos, Fabio Miguez, Rodrigo Andrade, Carlito Carvalhosa e Paulo Monteiro, com curadoria de Eduardo Ortega. Na mostra Geração 80, a atenção volta-se a nomes como Leda Catunda, Daniel Senise e Gonçalo Ivo (acima, Fuga - Prelúdio), entre outros, na seleção de Marcus Lontra.
Rio de Janeiro
DADOS ARTÍSTICOS Códigos Primordiais, 15/6 a 16/8, Oi Futuro Flamengo, Rua 2 de Dezembro, 63 Há cerca de 40 anos, artemídia era uma extravagância restrita a um número mínimo de artistas. Uma exposição trazendo os primórdios da arte geracional leva à capital fluminense os precursores internacionais Paul Brown, Harold Cohen, Ernest Edmond (ao lado, Other, 1982) e Frieder Nake, que já nos idos dos anos 1960 usavam o computador como ferramenta de criação artística. A curadoria de Caroline Menezes e Fabrizio Poltronieri traz documentos, gravuras, desenhos, pinturas e instalações interativas, além de um debate com os artistas na semana de abertura. SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
FOTOS: DIVULGAÇÃO
agenda
20
S ã o Pa u lo
SOLOS NO APÊ Mastur Bar – Fabiana Faleiros, 20/6 a 1º/8, Solo Shows, Rua Major Sertório, 557, aptº. 3A (visitas agendadas pelo tel. 11.94506-7667) Radicado na capital paulista, o curador alemão Tobi Maier é gente que faz. Decidido a abrir seu espaço expositivo, dispôs o próprio apartamento para projetos experimentais. Intitulado Solo Shows, o espaço apresenta, a partir de fim de junho, Mastur Bar, de Fabiana Faleiros (abaixo, obra em néon Mastur Bar). A jovem artista, que discute questões de comportamento com uma pegada bem-humorada, desta vez chama atenção para a automatização das ações manuais como maneira de impedir a masturbação feminina. O bar de nome sugestivo oferece, além de drinques, “coisas para se fazer com as mãos”.
Curitiba
SURREALISMO LATINO Wifredo Lam, 2/6 a 13/9, Museu Oscar Niemeyer, Rua Marechal Hermes, 999 www.museuoscarniemeyer.org.br Apropriando-se do imaginário místico e tropical do Caribe, o cubano Wifredo Lam (1902-1982; acima Anima, 1954) carrega consigo a identidade de seu continente transfigurada nos elementos surreais, primitivos e cubistas de sua pintura. Foi por meio dela que se tornou um dos grandes nomes da arte latino-americana no século 20, conquistando fama na Europa e nos EUA. Suas obras, que figuram nas mais prestigiosas instituições internacionais de arte, como o Guggenheim, ganham agora retrospectiva na capital paranaense.
RIO D E J A N E IRO
BEM NA FOTO FotoRio 2015, 7/6 a 18/7 www.fotorio.fot.br e World Press Photo, até 21/7, Caixa Cultural Rio de Janeiro, Av. Almirante Barroso, 25 www.caixa.gov.br/caixacultural Até 21 de julho, o RJ recebe duas grandes programações dedicadas à fotografia. Na mostra World Press Photo, uma seleção de 145 trabalhos representa uma coleção do que de melhor foi produzido pelo fotojornalismo no mundo. Já A FotoRio (à direita, foto de Walter Carvalho) tem por tema a própria capital fluminense e chega à oitava edição ocupando museus e centros culturais espalhados por toda a cidade. SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
fotoS: de cima para baixo, cortesia mon, fabiana faleiros e walter carvalho
José Bezerra | Esculturas curadoria Tiago Mesquita jun-ago
rua Ferreira de Araújo 625 Pinheiros SP 05428001 fone 11 3813 7253 galeriaestacao.com.br
agenda
Pa r at y
Festa julina no Espaço seLecT
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Fabio Morais, Espaço seLecT, R. Marechal Deodoro 312, de 1º a 5/7 Em julho, Paraty terá uma novidade especial, somada à extraordinária seleção de autores reunidos na 13a Flip. É o Espaço seLecT, que oferece ao público da cidade uma experiência de integração entre arte e literatura. Instalado na Galeria Belvedere, no coração do centro histórico, o espaço apresenta uma exposição individual de Fabio Morais, cuja obra Os Amantes é a capa da edição. Entre as obras expostas, Artoday, trabalho em que o livro de Edward Lucie-Smith foi usado para confeccionar 108 bandeirinhas. A obra também sintetiza o encontro entre a arte contemporânea internacional e as cores de uma cidade em festa.
S Ã O PA U LO
POLICROMIA BRITÂNICA Ian Davenport, até 27/6, Dan Galeria, R. Estados Unidos, 1.638 www.dangaleria.com.br É com direito a obra inédita que Ian Davenport, um dos nomes da Young British Artists, faz sua estreia individual em solo brasileiro. Sua exposição em SP tem trabalhos produzidos de 1992 até este ano, como o Colourade: Buzz (2015, à esquerda), feito para a mostra. No conjunto de linhas que se empastelam ao pé do suporte, Davenport evidencia a pesquisa cromática, em que a geometria tem papel estrutural. O britânico integrou a turma que nos anos 1980 deu novo fôlego às artes na terra da rainha, ao lado de nomes como Damien Hirst e Gary Hume.
S Ã O PA U LO
EM UMA DÉCADA Otto Berchem, 9/6 a 18/8, Galeria Pilar, R. Barão de Tatuí, 389, Santa Cecília | www.galeriapilar.com Nascido nos EUA, residente em Bogotá e estimado por coleções particulares e públicas, sobretudo holandesas, Otto Berchem (ao lado, Black Wave) ganha exposição em São Paulo em que são apresentados perto de 15 trabalhos. O conjunto percorre os últimos dez anos de carreira do artista, que tem uma produção variada e se dedicou desde estudos sobre pinturas geométricas até intervenções cromáticas em trabalhos fotográficos.
SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
fotos: divulgação
agenda
24
S ã o Pa u lo
MANUFATURA DE LUXO Festival des Métiers Hermès, até 7/6, Museu de Arte Brasileira da Faap, Rua Alagoas, 903 | www.faap.br Como funciona a oficina de manufatura de uma grife de luxo? É essa a resposta que o público encontra na mostra itinerante da tradicional marca francesa Hermès. Num cenário contemporâneo concebido pela designer milanesa Paola Navone, os artesãos da Hermès trabalham de verdade dentro do museu da Faap. Na mira está a produção manual de diversos acessórios, como os famosos carrés e as disputadíssimas bolsas (abaixo, processo de montagem), como a Birkin, que tem fila de espera para a compra. Chapéus, carteiras e malas também têm sua técnica de produção aberta à visitação.
S ã o Pa u lo
MATÉRIA BRUTA José Bezerra – Esculturas, 16/6 a agosto, Galeria Estação, Rua Ferreira Araújo, 625 www.galeriaestacao.com.br Interferências em pedaços de madeira bruta dão a tônica do trabalho do escultor pernambucano José Bezerra (Sem Título, 2008), nascido e criado na região sertaneja do Vale do Catimbau. Aproveitando as conformações naturais de sua matéria-prima por excelência, ele cria figuras zoomórficas que surpreendem com o primitivismo contraposto a uma refinada capacidade sintética. A curadoria de Tiago Mesquita apresenta cerca de 40 obras da produção recente do artista.
S ã o Pa u lo
Do museu ao teatro São Paulo Companhia de Dança, Temporada Junho/2015, Teatro Sérgio Cardoso, Rua Rui Barbosa, 153 | www.spcd.com.br Depois da temporada da São Paulo Companhia de Dança na exposição Museu Dançante, no MAM-SP, duas estreias internacionais marcam a programação do mês de junho. Indigo Rose, terceira peça do coreógrafo tcheco Jirí Kylián a integrar o repertório do grupo paulista; e Litoral (à dir.), coreografia concebida para a SPCD pelo argentino Mauricio Wainrot. Completa o programa La Sylphide, balé romântico do também argentino Mario Galizzi, além das outras duas peças de Kylián (Petite Mort e Sechs Tänze); Mamihlapinatapai, de Jomar Mesquita, com colaboração de Rodrigo de Castro; e GEN, de Cassi Abranches. SELECT.ART.BR
jun/jul 2015
fotos: de cima para baixo, Divulgação, Lucie&simon, Wiliam Aguiar
agenda
ri o d e j a n e ir o
A NATUREZA E O CONCRETO 26
Alvaro Seixas, 17/6 a 18/7, Mercedes Viegas Arte Contemporânea, R. João Borges, 86 www.mercedesviegas.com.br Em sua segunda individual na galeria Mercedes Viegas, Alvaro Seixas (abaixo, obra Sem Título, 2014) apresenta instalação com pinturas de técnicas variadas. Em sua investigação formal, há fortes influências concretas e neoconcretas. Uma novidade nesta mostra é o uso de desenhos técnicos para a elaboração de figurações em fotografias e gravuras. A pesquisa vale-se também de um diálogo entre imagens da natureza, da arquitetura e de ambientes urbanos.
CURITIBA
APROXIMAÇÃO CIENTÍFICA Carbono 14, SIM Galeria, a partir de 18/6, Al. Presidente Taunay, 130 A | www.simgaleria.com Na individual, Marcelo Moscheta mostra duas séries de paisagens decalcadas em uma abordagem que remete a linguagens científicas. A exposição reúne fotos, desenhos e instalações. Entre elas, Linnaeus (2011, acima), cujo nome faz referência ao botânico e zoólogo Carolus Linnaeus, surgiu de uma parceria do artista com seu pai, na Amazônia, onde catalogaram espécies vegetais. Já a série Carbono 14 traz desenhos de árvores em papel-carbono.
S Ã O PA U LO
VOCABULÁRIO DE COR Desordem alfabética – Federico Herrero, 2/6 a 25/7, Galeria Luisa Strina, R. Padre João Manuel, 755 | www.galerialuisastrina.com Se as cores fossem letras, os trabalhos de Federico Herrero (acima, Pan de Azucar, 2011) seriam palavras de traços evidentes, embora titubeantes. Os campos de cores vivas destacam-se entre si, mas não possuem rigor formal que os organize. Essa iconografia versa entre a identidade cartográfica e a liberdade da pintura gestual. Em sua primeira individual pela Galeria Luisa Strina, o costa-riquenho exibe sua produção recente em pinturas, um objeto e uma instalação site-specific que transformou o chão do espaço expositivo em uma grande tela. SELECT.ART.BR
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fotos: de cima para baixo, divulgação e edouard fraipoint/luisa strina
agenda
RIO DE JANEIRO 28
NATUREZA INDUSTRIAL Afluentes, a partir de 11/6, Galeria Nara Roesler, R. Redentor, 241 www.nararoesler.com.br Na série de nove trabalhos, Artur Lescher apropria-se de materiais e procedimentos industriais para compor uma nova relação entre esculturas e a ocupação do espaço expositivo. A tensão entre imagem e material evidencia um jogo sobre a impossibilidade de tradução da natureza pelo código cultural. Na obra Afluentes (abaixo, 2015), rolos de alumínio e papel ganham coloração por processo industrial em tons de vermelho, azul e preto.
S Ã O PA U LO
NEBULOSIDADES Manoel Veiga, 16/6 a 11/7, Galeria Mezanino, R. Cunha Gago, 208 galeriamezanino.com Em individual com curadoria de Agnaldo Farias, o artista Manoel Veiga apresenta trabalhos que elaboram conexões entre arte e ciência, tema que se fez presente desde a primeira exposição do artista há quase 15 anos. Na série Hubble (acima, #27, 2013), por exemplo, o ponto de partida de pinturas é a apropriação de imagens em alta resolução de nebulosas e galáxias realizadas pelo famoso telescópio de mesmo nome.
LONDRES
QUESTÃO DE ESCALA Mármore, Lisson Gallery London, até 4/7, 27 e 52 Bell Street www.lissongallery.com A mostra de Sergio Camargo (à dir., n. 473, 1964-78) em Londres reúne peças de mármore de pequenas e grandes dimensões, esculpidas segundo técnicas artesanais da França e da Itália. As peças traçam caminhos entre o geométrico e o orgânico. Simultaneamente, a galeria exibe Smell of First Snow, do iraniano Shirazeh Houshiary. A série é composta de esculturas, desenhos e pinturas que investigam pontos em comum entre universos micro e macroscópicos. SELECT.ART.BR
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fotos: de cima para baixo, cortesia galeria mezanino, cortesia galeria nara roesler e cortesia lisson gallery london.
co lu n a m ó v e l
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esses jogos perigosos
L i s e t t e L ag n a d o
da chamada “coerência moderna”, a obra de Leonilson é assombrada de índices que obrigam seu interlocutor a acompanhar a riqueza de suas viagens e visitas a exposimaio de 1993, data de seu falecimento aos 36 anos, José ções internacionais. Leonilson produziu os desenhos e bordados que lhe gaEva Hesse (1936-1970) ocupa um lugar particular nas rantiram seu lugar de proa na arte brasileira contempoafinidades de Leonilson. Uma linha transversal os une rânea. Frequentador assíduo da mídia e do circuito da por meio de três pontos: a alegoria da doença (a artista arte, era contudo dono de uma obra ainda refém de uma morreu em decorrência de um câncer); uma identidade interpretação pouco elaborada, restrita às telas coloridas sexual socialmente construída; e o diário pessoal. Hesse e sem chassi da Geração 80. representa para a crítica feminista de Nova York o que Aos poucos vieram as publicações monográficas, a priLeonilson encarna para os estudos queer no Brasil. É posmeira delas de minha autoria, São Tantas as Verdades sível colocar em plano de equivalência o testemunho de (1995), baseada no seu repertório de inscrições que se marginalidade de uma artista mulher nos anos 1960 e o tornariam lendárias, tais como “Leo não consegue muambiente vivido por Leonilson. Machismo e homofobia dar o mundo”, “esses jogos perigosos”, “para quem compartilham a mesma origem de poder. prou a verdade”. A edição da longa entrevista, realizada Ao se aventurar na escultura, Hesse estava adentrando nos últimos meses de vida do artista, deu mais trabaum território masculino. A diretora lho do que o ensaio analítico. Qual Marcie Begleiter teve acesso aos esLeonilson mostrar ao público nacritos de Hesse para fazer o primeiquele momento? No calor ainda da ro documentário sobre a artista, 45 perda, dezenas de horas de gravação anos após a sua morte. E sua quesforam abandonadas para honrar a pertão foi similar: como fazer um filme gunta de Foucault: What is an author? que olhasse simultaneamente para Curiosamente, Leonilson já foi tema a obra e o narrador? de dois filmes a partir dos diários Todas as vezes que um artista conta que deixou na forma de fitas graintimidades de sua vida pensando vadas. Em 1997, Karen Harley reaestar explicando seu trabalho, uma lizou o hoje mítico Com o Oceano frase de Deleuze, extraída de Crítica Inteiro para Nadar (1997), vencedor e Clínica (1993), tem um efeito dede inúmeros prêmios. A Paixão de vastador: “Não se escreve com suas J.L., do diretor Carlos Nader, acaba neuroses”. Como na literatura, a de levar o prêmio de melhor longaarte é expressão de uma saúde. Vei-metragem brasileiro no 20º Festival cula pathos, muito amor e afeto; poInternacional de Documentários É rém, não deve expor filigranas dos Tudo Verdade. conflitos autobiográficos, sob o risMuito resta a revelar mesmo que a co de asfixiar a potência poética das obra em si se caracterize como “camil ressonâncias de uma palavra ao derno de anotações, um diário”. Um longo das gerações. Quando o “penovo filme poderia investigar a mulqueno eu” invade as telas, perde-se tidão de referências que denotam a a linha divisória que rechaçava arcuriosidade delirante da “paixão” de tistas sem qualidades e fica mais dium artista, que abraça Broodthaers, fícil defender que a arte não admite Kavafis e os Shakers, Arthur BisPeça da instalação de Leonilson para a Capela do Morumbi sentimentalismos. po do Rosario e Frank Gehry. Livre (1993), em que o artista bordou a palavra Lázaro
Entre agosto de 1991, quando recebe o resultado do exame que lhe revela que é soropositivo, e 28 de
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Foto: eduardo brandão/projeto leonilson
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Arte e educação
EDUCAR PELAS LETRAS Quem vai à Flip costuma pensar que o evento circunscreve-se a cinco dias por ano. Mas a feira
literária tem um programa de cultura e educação durante o ano inteiro, desenvolvido pela Associação Casa Azul. Batizados de Flipinha, para crianças, e FlipZona, para jovens, esses desdobramentos para o público local, principalmente os cerca de 13 mil alunos das escolas de Paraty, oferecem iniciativas cuja missão primordial é estimular o hábito de leitura nas novas gerações e, com isso, desenvolver outra visão de mundo. Acima workshop na Flipinha, 13 a Festa Literária Internacional de Paraty, 1º a 5/7 flip.org.br SELECT.ART.BR
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Paraty é uma das cidades mais carentes e violentas do estado do Rio de Janeiro, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) abaixo da média nacional. “As ações permanentes da Casa Azul têm possibilitado às crianças e jovens da região vislumbrar um novo horizonte por meio da educação, da arte e da literatura, ao terem a oportunidade de descobrir e conviver com um universo lúdico, construindo a partir daí novos caminhos que não tenham a ver com o tráfico e a violência”, diz Belita Cermelli, diretora do Programa Cultura e Educação. Além de disponibilizar 12 mil livros para os moradores de Ilha das Cobras, um dos bairros da periferia, a Biblioteca Casa Azul funciona como centro de atividades. A programação inclui apoio à alfabetização escolar, especialização e instrumental para professores, encontros com escritores, que chegam a ir de barco a escolas mais distantes, formação de mediadores de leitura, capacitação de professores, oficinas de artes e, para os adolescentes, de escrita jornalística, que se desdobra na cobertura da Flip pelo flipzona.wordpress.com. Como prova a feira, literatura e educação andam de mãos dadas. LPN Foto: André azevedo
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EspEcial educação
O Mapa da educação no Brasil
Práticas adotadas no Estado de São Paulo, como a valorização do professor e a escola em tempo integral, indicam o caminho para os maiores desafios do ensino no país
TODA VEZ QUE OLHAMOS PARA ESTATÍSTICAS, QUEREMOS VER UMA CRIANÇA VIVENDO MELHOR.
EspEcial educação
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Educação, saúde e proteção. Não é tão complicado melhorar a vida de uma criança. Mas é preciso querer. É preciso lutar por isso. Provocar a reação da sociedade, conscientizar e mobilizar. É isso que a Fundação Abrinq tem feito nos últimos 25 anos. Porque só com respeito e oportunidades vamos mudar a história das próximas gerações.
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Darren Baker/Shutterstock
Percentual de crianças de 0 a 3 anos fora das creches. A taxa de cobertura em creche no Brasil (%) é a razão entre o número de crianças em idade escolar (de 0 a 3 anos) e o número de matrículas nessa etapa de ensino. O gráfico refere-se à diferença da taxa de cobertura em creche em relação à população de 0 a 3 anos.*
2000 *Fonte: IBGE/PNAD 2013
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2013
s e l e c t e x pa n d i d a
# pa l av r a s u r b a n a s Uma obra-conceito do designer Celso Longo, elaborada a partir de uma chamada de fotos da seLecT no Instagram e um poema sobre a deriva
As fotos selecionadas são de autoria de Edgar Oliveira (oliveira_edgar), Gil Maciel (gilmaciel), Gabriel Catte (gcatte) e Laura Peres (lauraperes) SELECT.ART.BR
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e n t r e v i sta
As duas vidas de Mário de Andrade Nova biografia revela perfis múltiplos do escritor modernista que se sentiu importante quando jovem e subestimado na maturidade
Figura central no modernismo brasileiro, Mário de Andrade (1893-1945) também viveu a frustração de ter se sentido subvalorizado como intelectual na maturidade. Essa é uma das conclusões a que chega Eduardo Jardim, autor da biografia Eu Sou Trezentos – Mário de Andrade, Vida e Obra, lançada agora pela Edições de Janeiro (256 págs., R$ 49,90). Ao mesmo tempo que expõe o êxito do artista e o consagra como pensador fundamental do século 20, o livro narra questões pessoais mal resolvidas e a frustração de não ter materializado, por completo, um projeto que traçava pontes entre a arte e a política. O livro chega às livrarias nos 70 anos da morte do escritor, que será homenageado, entre os dias 1o e 5 de julho, pela Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). À seLecT, Jardim falou sobre sobre seu perfil múltiplo. GF
Como foi a pesquisa para o livro e que importância as correspondências tiveram? Meu interesse é antigo, pelo modernismo e pelo Mário de Andrade. Li toda a obra dele, que está em sua maior parte publicada, a bibliografia que existe e as correspondências. Mário escreveu carta para caramba. Mais de 1.500, muita coisa já publicada. Ele tinha o hábito de falar sobre seu íntimo, seus sentimentos? Com amigos ele é mais afetivo. Algumas cartas são de trabalho, outras adotam um tom professoral. Ele tinha um tom de mestre com os mais jovens, mesmo com Drummond, falava de professor para aluno. Com Manuel Bandeira, grande amigo, era o mais íntimo possível. Mas há uma coisa engraçada, a intimidade só parecia ocorrer em cartas. Quando estavam juntos, Manuel estranhava, achava Mário reservado. Dentro de casa e nas rodas de conversas, era expansivo, mas dizia-se dotado de “bivitalidade”, considerava uma vida de cima e outra de baixo. A de cima, intelectual. A de baixo, impulsiva, erótica.
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Há algum detalhe na obra que exemplifique essa personalidade? Tem o verso de um poema que diz “eu sou trezentos”, muito significativo. Do ponto de vista da literatura, ele não era só um escritor, tinha atuação pública. Há o fato de que a vida dele teve um momento de máxima realização, mas, a partir de um 1938, houve uma frustração. No final da vida, Mário vive um drama, como se fosse um fracasso. Em uma conferencia de 1942, ele diz: “Meu passado não é meu companheiro”. Há este desencontro de momentos na vida dele.
E os antigos amigos? Não sei se o evitaram, mas os velhos amigos não ficaram por perto. No Rio, ao mesmo tempo, descobre o samba, faz planos de escrever um livro com Vinicius [de Moraes]. Teve um lado de boemia que deve ter sido legal. Depois dos 40, volta a São Paulo, mas fica mal até a morte. É quase um suicídio. Ele tem doenças típicas de quem se deprime. Morre aos 51 anos, mas com uma aparência de ser muito mais velho.
Na página ao lado, o escritor Mário de Andrade (1893-1945); acima, seu biógrafo Eduardo Jardim
Ele se deixa abater apenas por questões profissionais? Tem uma atuação de escritor e intelectual nos anos 1920, depois tem o período em que escreve Macunaíma, em que faz o retrato do Brasil e levanta a discussão de que a arte deveria ter uma dimensão social. Tinha o propósito de concretizar esse projeto como uma ação política, como se sua vocação intelectual se justificasse ali. Isso tem a ver com a geração modernista, mas acho que Mário levou mais a sério. No momento em que não toma mais nenhum lugar importante, quando vem para o Rio, onde vai ser professor em uma universidade que acaba fechada, ele sente que seu lado intelectual foi posto em xeque. Mas há um contextos desfavorável também, ele estava ligado com pessoas que foram perseguidas, ficou muito mal com a invasão dos alemães em Paris, que era uma referência cultural. No Rio, ficou isolado da mãe, figura importante para ele.
É importante saber que ele era homossexual para compreender sua obra? Não pelo fato de ele ser homossexual, mas pelo fato de que havia um lance sexual. Dizia-se dotado de pansexualidade. Ao mesmo tempo, era um cara que se censurava, muito autocrítico. Ele leva o tema da homossexualidade para a obra, há o conto Frederico Paciência, por exemplo, em que dois rapazes desenvolvem algo amoroso mas não conseguem assumir a história. Dá para pegar a questão pela obra, mas não há documento falando exatamente sobre a vida pessoal. Acho que os amigos, as pessoas que tomavam conta da obra do Mário, criaram um certo tabu em torno da questão. Os jornalistas começaram a ficar excitados, militantes criaram uma pressão que reforçou o próprio tabu. Deveríamos tratar a questão de forma mais natural. Ele teve algum grande amor então? Não sei quem, mas que ele amou, ele amou. Uma coisa curiosa. Eu estava falando um dia aqui na UFRJ e o antropólogo Peter Fry fez o seguinte comentário: “Eu percebia a coisa da homossexualidade do Mário porque ele tinha uma concepção de cultura e de arte que leva em conta a ligação da produção erudita com a popular”. Fry achou que a experiência dos gays no período tinha a ver com a coisa de um homem de uma erudição buscar um cara popular, e isso era parte da experiência homossexual da geração. Não é curioso?
fOTOS: À esq. ©crisreis 2015 e À dir. Arquivo IEB/DIVULGAÇÃO
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PARA SEMPRE ALICE Caixa Alice + Alice (Alice no País das Maravilhas, Luiz Zerbini, 168 págs.; Alice Através do Espelho e o Que Ela Encontrou Lá, Rosângela Rennó, 208 págs.), Cosac Naify, R$ 139,90. Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Yayoi Kusama, Editora Globo, 184 págs., R$ 59,90. Alice no País de Peticov, Antonio Peticov, até 3/6, Deco ArtClub, Rua Canário, 1.318, São Paulo . The Alice Look, até 1º/11, Victoria & Albert Museum of Childhood, Cambridge Heath Road, E2 9PA, Londres
Desde o lançamento de sua primeira edição, há 150 anos, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, vem ganhando releituras ao redor do mundo. Elas incluem edições ilustradas por criadores de peso, como a versão da Random House com capa da estilista Vivienne Westwood (acima à esquerda, à venda
na Amazon.com), além de filmes de Hollywood e desenhos animados. Em seu sesquicentenário, a menina que se enreda em situações absurdas ao seguir um coelho de cartola também inspira as artes visuais. O volume de Alice no País das Maravilhas ilustrado por Luiz Zerbini acaba de ser relançado pela Cosac Naify em box que traz também a novíssima criação visual de Rosângela Rennó (detalhe à esquerda) para as páginas do segundo título, Alice Através do Espelho. E a psicodelia da artista japonesa Yayoi Kusama (acima à direita) dá o tom do novo lançamento da Editora Globo. Se, no início de 2007, a personagem era a porta para um universo hardcore criado por instalação de Dora Longo Bahia na Galeria Luisa Strina, é em versão mais comportada e literal que Alice inaugurou no mês passado um novo espaço expositivo em São Paulo, nas telas de Antonio Peticov. No Reino Unido, berço de Carroll, uma exposição no Victoria and Albert Museum de Londres apresenta figurinos, croquis, fotos e edições raras para provar que a menina literária gostava de moda e lançou tendências. LPN SELECT.ART.BR
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A escala Brasil Histórias Mestiças (catálogo), de Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz, Instituto Tomie Ohtake e Editora Cobogó, 2015, 384 págs., R$ 80
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Histórias Mestiças, apresentada entre agosto e outubro de 2014 no Instituto Tomie Ohtake, em SP, é um caso especial de exposição que gerou uma produção de conteúdo teórico à altura de seu consistente projeto expositivo. O catálogo, com ensaios dos curadores Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz, pode ser lido como um livro de história. Pedrosa abre o volume argumentando que este trabalho consiste em negar a história da arte que tem sido contada desde um ponto de vista eurocêntrico e que se estrutura sobre enfoques ameríndios e africanos. Na sequência, Schwarcz disserta sobre as origens da ideia de mistura e mestiçagem no Brasil. Os ensaios preparam o terreno para a fruição de 400 obras – da cerâmica marajoara e da arte indígena e africana à arte contemporânea – que, agrupadas em sete capítulos, indicam rotas, trilhos e caminhos nunca antes explorados. A edição é ainda inteiramente pontuada por fragmentos de textos clássicos, escolhidos pelos curadores/autores como a base bibliográfica dessa história mestiça. Os mesmos haviam sido publicados na íntegra ou em cortes maiores, na edição de Antologia de Textos, infelizmente esgotada. PA
Álbum subjetivo Afagos, de José Rufino, Cosac Naify, 208 págs., R$ 29,90 Para mergulhar na primeira incursão ficcional de José Rufino, seria desnecessário dizer que o autor é um artista que desenvolveu sua trajetória criativa a partir da poesia, passando para a poesia-visual e a arte postal, antes de chegar a um trabalho plástico com objetos e documentos. Mas é importante pontuar que subjetividade, memória e esquecimento são polos estruturais de sua criação. Em Afagos, composto de 102 “microcontos” ou “histórias incompletas”– como define Luiz Ruffato na orelha –, o autor parece imbuído de um ímpeto: de observação e o comprometimento com o outro. Os contos se oferecem assim como uma coleção de retratos subjetivos de vidas tão prosaicas quanto extraordinárias. PA
Díptico Labirinto, Alex Cerveny e Beatriz Di Giorgi, Editora Laranja Original e Neotropica, 2014, 96 págs, R$ 35 A colaboração entre o artista Alex Cerveny e a poeta Beatriz Di Giorgi é o título inaugural da Editora Laranja Original, que tem como projeto não publicar autores consagrados (embora não tenha o ineditismo como imperativo). Com organização de Beto Furquim, Labirinto propõe-se como resultado do diálogo entre duas linguagens: o poema e o desenho. Não se trata, porém, de uma obra a quatro mãos. “Nenhum dos desenhos aqui presentes foi feito a partir de um poema, nem o contrário”, escreve o organizador no texto de apresentação. Furquim é o curador responsável pela aproximação destas obras independentes. O resultado é o encontro fortuito e poético de duas trajetórias. Quase um díptico, palavra que dá título a um dos poemas de Beatriz. PA fotos: divulgação
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Curvas históricas 40
Sobre a Arte Brasileira – Da Pré-História aos Anos 1960, Fabiana Werneck Barcinski (org.), WMF Martins Fontes e Edições Sesc São Paulo, 2015, 368 págs., R$ 128 Este projeto nasceu da percepção do editor Alexandre Martins Fontes sobre a lacuna de uma bibliografia atualizada sobre a história da arte brasileira. O presente volume trata, portanto, da formação da expressão artística no Brasil até as portas da arte contemporânea: a década de 1960, que, segundo a crítica Paula Braga, “parece ter durado muito mais de dez anos para a arte brasileira”. Mas, como “a arte não é uma linha”, e sim uma “simultaneidade de veios”, como escrevera Hélio Oiticica em O Q Eu Faço É Música (1979), o livro acerta ao escrever a história a partir da diversidade de olhares de 11 autores. Prova de que linearidade e cronologia não são estruturais à organização da crítica Fabiana Werneck Barcinski, é a inclusão de um tema atemporal, Arte Popular, vista sob a ótica do antropólogo Ricardo Gomes Lima, que discorre sobre a formação do conceito e a dicotomia entre popular e erudito. PA
PARADOXO COLOSSAL O Paradoxo do Olhar, Claudio Edinger, Editora Madalena/Terceiro Nome, 2015, 196 págs., R$ 200 Só de bater o olho no novo livro do fotógrafo carioca Claudio Edinger podemos chamá-lo de colossal. Literalmente, com 29,5 cm de largura por 37,5 de altura, é bem grande, muito além dos padrões até dos livros de arte. Mas o que poderia parecer arroubo do projeto, com coordenação editorial da também fotógrafa Claudia Jaguaribe e textos de Agnaldo Farias e Guilherme Ghisoni, é seu trunfo. A sutileza das distorções e nitidez conseguidas por Edinger em cada imagem, pelo uso do recurso de foco seletivo, exibe-se sem vergonha, permitindo leituras não óbvias das cenas captadas no Rio de Janeiro, São Paulo, interior da Bahia, Amazônia e Santa Catarina, além de Paris, Veneza, Los Angeles e o Oriente Médio. No jogo entre o que se vê com clareza e o que se esconde na indefinição, iconografias tão distintas testemunham as relações entre os indivíduos e as cidades. LPN
Campos da arte fotográfica Geraldo de Barros e a Fotografia, Heloisa Espada (org.), Edições Sesc São Paulo e Instituto Moreira Salles, 2015, 300 págs., R$ 160 Dividido em três fases, o livro resgata a trajetória de um artista pioneiro na defesa da fotografia como campo de expressão subjetivo. Além de fotografar, Geraldo de Barros (1923-1998) cortava, riscava e desenhava sobre negativos e também compunha imagens pictóricas sobre placas de vidro usando, no lugar de tinta, fragmentos de filmes, negativos e fotografias. O primeiro núcleo do livro percorre o momento em que ele compreende as possibilidades artísticas da foto, o que ocorre especialmente a partir de 1951, ano marcado por sua primeira exposição, Fotoformas, no Masp. A segunda fase retrata a expansão formal proposta pelo artista em diálogos com a pintura. E a terceira e última revê a série Sobras, produzida durante seus dois últimos anos de vida, nos quais ele passa a se apropriar de imagens de arquivo de sua própria família. GF SELECT.ART.BR
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Quando o Rio era francês J. Gire – A Construção do Rio de Janeiro Moderno, de Jean-Louis Cohen, Roberto Cabot e Jean Gire, Leya / Casa da Palavra, 2015, 192 págs., R$ 130 O texto introdutório do artista plástico Roberto Cabot situa este livro como uma “navegação no esquecimento” que procura restaurar a memória de um tempo arquitetônico relegado pelas historiografias do Brasil e da França: as primeiras duas décadas do século 20, pós românticas e pré-modernas. O resgate dáse a partir da obra do arquiteto francês J. Gire, bisavô de Cabot, que, como ressalta Jean-Louis Cohen, historiador da arquitetura e professor da NYU, faz parte de uma geração de arquitetos formados em Paris, que usavam técnicas de composição da École des Beaux-Arts em projetos de magnitude muito maior dos que os realizados na Europa. No Rio, Gire projetou marcos da cidade, como o Hotel Copacabana Palace e o Hotel Glória – no tempo em que a cidade voltava-se para a costa litorânea – e, no momento em que floresciam por aqui os primeiros impérios das comunicações, o Edifício A Noite, sede da redação do jornal, primeiro arranha-céu da cidade, inaugurando a tecnologia da construção em concreto armado que dominaria a arquitetura moderna. PA
Olhares subjetivos sobre o real Outras Fotografias na Arte Brasileira Séc. 21, Isabel Diegues (org.), Editora Cobogó, 2015, 288 págs., R$ 168 Neste quarto volume lançado pela Cobogó para compor um panorama da fotografia contemporânea no País estão impressas obras de 24 artistas que se dedicaram a construir caminhos entre o registro do real e a expressão de questões subjetivas. Claudia Andujar, Rosângela Rennó, Miguel Rio Branco, Paulo Nazareth e Alice Miceli estão entre os nomes que compõem o cenário retratado, onde há ênfase, por exemplo, nos trabalhos políticos, nas representações de situações e indivíduos à margem do sistema, na utilização do corpo como meio para atualizar potências. O texto de apresentação de Isabel Diegues aborda ainda temas como a democratização do acesso às ferramentas tecnológicas e a multiplicação dos modos de circulação e produção. GF
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PRESERVAÇÃO EM DEBATE Arte Contemporânea: Preservar o Quê?, Cristina Freire (org.), Edição USP/Capes/ Fapesp/GEACC/MAC, 2015, 196 págs., distribuição gratuita para instituições Quando as inúmeras possibilidades da arte contemporânea se convertem em problema? Certamente, na hora de fazer sua conservação e manutenção em reservas técnicas e acervos de museus, que são cada vez mais desafiados por questões teóricas, metodológicas e práticas. Resultado de um seminário internacional organizado pela pesquisadora Cristina Freire, em outubro de 2014, no MAC-USP Ibirapuera, o livro traz textos de diversos profissionais de museus que participaram do evento. Estudos de casos narrados por especialistas de instituições como Pinacoteca do Estado de São Paulo, MAC-USP, Itaú Cultural, Instituto Rubens Gerchman, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo acrescentam empirismo à edição. LPN
Manifesto pela paz Outros Pensam /Otros Piensam, de Alfredo Jaar, Ikrek Edições, 2015, 40 págs, R$ 60 Other People Think é a reflexão de um jovem escritor e estudante da Los Angeles High School sobre as conflituosas relações entre os EUA e a América Latina no início do século 20. Escrito em 1927 e vencedor do concurso de oratória do sul da Califórnia daquele ano, é um dos mais antigos textos do compositor, escritor e artista John Cage. Publicado pelo artista chileno Alfredo Jaar, em 2012, na ocasião do centenário de Cage, o texto vem não apenas iluminar um conflito historicamente malresolvido, levantando a bandeira em prol de uma consciência pan-americana, como, no contexto atual da “guerra ao terror”, mostrar ressonância na discussão sobre a problemática política intervencionista dos EUA no Oriente Médio. O pensamento visionário de John Cage ganha agora edição bilíngue em português e espanhol pela Ikrek Edições. PA Fotos: divulgação
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ENTRE O VERBO E A IMAGEM Quem Quando Queira – João Bandeira, Cosac Naify, preço a definir Disse Arnaldo Antunes que “entre os múltiplos caminhos das formas poéticas no Brasil, hoje, Bandeira atua tanto na especificidade do verbal como nas suas virtualidades em direção a outros códigos; entre a música e o desenho das palavras, sondando seus limites e possibilidades materiais”. O Bandeira em questão atende pelo primeiro nome de João, artista-poeta que transita com igual desenvoltura pelo verbo e pela imagem, cujo novo livro tem previsão de lançamento para agosto. João Bandeira tem laissez-faire graças à consciência do fracasso prévio de sua missão: transpor pela palavra e/ou pelo impacto visual o abismo entre os indivíduos e seus raciocínios. É na própria falha que reside o mérito de seus trabalhos. Seja na dificuldade de leitura de um poema diagramado em bug, nas fotografias de sobras de letras que surgem entre grossas camadas de anúncios de outdoor (foto acima), passando por quase haicais. Sabendo da inexatidão que permeia o longo caminho entre emissor e receptor, Bandeira assimila a imprecisão desse jogo, no convite ao leitor, para também criar sentidos. Assim, ao assumir o erro comunicacional como mérito, o artista convida o público à possibilidade de perceber o mundo por outros canais. LPN
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foto: cortesia joão bandeira
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fogo cruzado
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Existe crí t i c a d e a r t e hoje no Br a s il ? Fala-se muito na efemeridade das publicações especializadas em arte e na evasão do espaço dedicado à crítica nos periódicos de grande circulação no Brasil. Há motivos para o alarme? Agentes dos sistemas artístico e editorial brasileiros discutem o estado da crítica de arte hoje no País.
RODRIGO MOURA Diretor artístico do Instituto Inhotim
Não haver crítica de arte no Brasil seria um desastre, na hipótese de que seja verdade. A crítica é um componente fundamental do sistema das artes tal como o conhecemos e, portanto, me parece que sua contribuição será sempre da maior importância. Ela é o que garante que o sistema seja criticado de dentro e que as ideias circulem também para além das trocas. Se há decadência na crítica militante, ela pode ser atribuída parcialmente à falência dos projetos editoriais da grande imprensa. Para reparar isso, seria necessário criar mecanismos de estímulo à crítica, por exemplo, exigindo que as pessoas do meio de arte leiam mais. Será que isso é pedir demais? SELECT.ART.BR
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Marcos Augusto Gonçalves Jornalista, editor do caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo
A crítica de arte certamente não acabou, mas tem passado por transformações. No Brasil, onde as instituições e as condições gerais são mais precárias, vê-se que são crescentes as dificuldades para um crítico exercer sua atividade de maneira digna e independente – o que requer meios materiais condizentes. Os jornais, como se sabe, enfrentam uma crise estrutural. Muitos desapareceram e os que permanecem dedicam pouco espaço à crítica de mais fôlego. O próprio leitor, em meio à dispersão midiática, tende a impor uma demanda por informações mais rápidas e pragmáticas, voltadas para a orientação do consumo, do tipo “vale a pena ou não eu sair de casa para ver isso?”. Em países mais ricos, como os EUA, ainda subsiste uma crítica importante na imprensa, que pode ser considerada ruim ou boa, mas exerce uma função. Os grandes jornais, como The New York Times e Los Angeles Times, publicam textos críticos sobre os principais eventos do circuito, e há revistas e blogs especializados. Outro espaço tradicional da crítica é o meio universitário. Aqui, de certa forma, o ambiente é mais propício do que o da imprensa, mas há outros problemas. A universidade tende a ser refratária ao que identifica como cultura de “mercado” e parte da produção acadêmica é cifrada e voltada para o público interno. Não circula como poderia e acaba em muitos casos sendo estéril. Uma tendência que se consolidou nos últimos anos e ganhou força no Brasil foi a transformação do crítico em curador. A curadoria não deixa de ser uma forma de crítica ao propor uma seleção, um recorte, uma reflexão. Mas, apesar dessa afinidade, não é uma instância crítica propriamente – nem tem o distanciamento necessário para isso.
Jochen Volz Curador da 32ª Bienal de São Paulo
Celso Fioravante Crítico e editor do Mapa das Artes
A crítica de arte deixou de existir no Brasil há algumas décadas, desde que o mercado começou a assumir o lugar dos museus, das universidades, dos jornais... A crítica de arte pode até voltar a existir, desde que caiba em 140 toques ou possa ser resumida em uma carinha amarela com um sorriso.
Existe, mas a questão é onde e de que forma ela ocupa um lugar. Os jornais brasileiros priorizam matérias sobre restaurantes e viagens em vez de resenhas sobre artes visuais, literatura, teatro e dança. A crítica costumava ser reconhecida como uma forma literária autônoma, introduzindo análises regulares como um pilar da cultura, para um vasto círculo de leitores. A crítica séria ocupa hoje um espaço dedicado a circuitos específicos e mais exclusivos. Isso não é bom, porque a arte não pode se distanciar da sociedade, e a crítica também não pode se separar da educação geral.
Fotos: No sentido horário, Flávio Augusto Silva, Sofia Colucci/Fundação Bienal de São Paulo e tiago santos. na página ao lado: daniela paoliello
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Patricia Canetti Artista e editora do site Canal Contemporâneo 46
É comum ouvirmos a afirmação de que não existe espaço editorial para a crítica de arte no Brasil. Entretanto, percebemos que o jornalismo independente criou seu espaço na internet brasileira, assim como ocorre com a crítica de cinema. Mas o mesmo não ocorreu com a crítica de arte. O atual curador do Instituto Tomie Ohtake, Philip Larratt-Smith, afirmou em matéria na Folha que “não existe nenhum artista fora do mercado, hoje”. Seria então possível afirmar que não existe nenhum crítico de arte fora do mercado, hoje? E, se assim for, qual seria o espaço de ação e a relevância para a crítica de arte atualmente?
Charles Cosac Fundador da editora Cosac Naify
Naturalmente, eu e a editora já tivemos inúmeras experiências de trabalhar com vários críticos de arte brasileiros de grande envergadura aqui e no mundo, tais quais Rodrigo Naves, Ferreira Gullar, Paulo Venâncio Filho, Angélica de Moraes, Lorenzo Mammì e Luiz Camillo Osorio, entre outros. Também trabalhei com críticos estrangeiros íntimos da cultura visual do Brasil – esses foram Guy Brett e Carlos Basualdo. Na última década, os canais digitais e físicos aumentaram enormemente o espaço para a crítica, outrora restrito às insuficientes colunas dos jornais diários. Periódicos e afins, no passado, poucos e de circulação limitada, atualmente podem ser encontrados ou até mesmo lidos por toda parte. Saliento também os inúmeros cursos de história e teoria das artes visuais que nascem em diversos departamentos de universidades, e mesmo independentes dessas (como o curso de História da Arte de Rodrigo Naves, por exemplo), que não só refletem o aumento de leitores como também o de futuros autores/críticos de arte. Vejo que, no Brasil, a crítica de arte vem se especializando e se proliferando, assim como o próprio interesse do brasileiro pela nossa arte e pela arte em geral. O momento não poderia ser mais propício. SELECT.ART.BR
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Anna Maria Maiolino Artista visual
Eu me indago o que motivou essa pergunta. Como me questionava quando me era perguntado nos anos 1960: a pintura acabou? E eu não tinha respostas absolutas, como falar de arte de forma categórica? Quando, justamente, é nesse território que o homem pode usufruir da sua máxima potência como criador e colocar nele suas diferenças. Um crítico sincero é também um artista, portanto, ele também goza desse privilégio. Por outro lado, o pensamento filosófico é vivo no Brasil e, quando ele se expande para a crítica de arte, torna esses os melhores momentos. Como em todas as disciplinas, temos altos e baixos.
Fotos: No sentido horário,divulgaçÃo, oriol tarridas e bob wolfenson
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Curadoria
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L u c i a n a Pa r e j a N o r b i at o
Pa l av r a s ó Quando palavras não nomeiam, mas são antítese, contradição ou comentário do objeto ao qual se relacionam SELECT.ART.BR
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Se pela palavra o homem se distingue do animal,
é com intervenções na natureza que deixa seu rastro e busca torná-la um hábitat possível. Com a técnica, doma as intempéries e submete o relevo à sua vontade. Com as palavras, unidades significantes articuláveis entre si, elabora sua história e desfaz a linha que o separa do mundo natural. Mas o artista que subverte o instrumentalismo da escrita nega que a palavra se comporte como signo, como substituto de outra coisa. Quando trabalha com uma só palavra, não quer nomear coisas. Confere-lhe atrito e devolve-lhe a qualidade de imagem, elo perdido entre humano e natural.
Lenor a de Barros
C on t r a M ão
(19 96)
A paulistana Lenora de Barros tem uma vasta incursão em pesquisas com poemas visuais. Chegou até a assinar, nos anos 1990, uma coluna semanal dedicada a elas no Jornal da Tarde. Nessa vertente de sua produção, as possibilidades da palavra são elevadas ao infinito pelo flerte com o pop e a poesia concreta. Na obra Contra Mão (1996), o que seriam duas palavras aglutinam-se na inscrição feita sobre a pele. Ao contato imaginário das duas palmas, uma contra a outra, tornariam fato o que a fotografia apenas sugere: a unidade do vocábulo. Foto: cortesia galeria millan Fotos:
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Cesare Pergol a
Fa n ta sm a Rupe s t re
( 2 014 )
Em performance, fotografia ou instalação, a obra de Cesare Pergola, constrói-se na invenção de arquiteturas da luz e da sombra. Na série recente Fantasma Rupestre, o artista italiano radicado em Paraty e em São Paulo, utiliza palavras como memórias de acontecimentos passados, futuros ou imaginários. Projetadas sobre a paisagem da Mata Atlântica brasileira, ganham existência de corpos performáticos, simulando fenômenos naturais e instintos libertários em estado de devir.
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Maurício Ianê s
W ordl e s s
(2007)
Na sobreposição de suas duas metades, Wordless, palavra-título da obra de 2007, torna-se imagem expressa de seu(s) sentido(s). É pela anulação das palavras que a constituem – “word”, ou “palavra”, e “less”, literalmente “menos” ou, pela junção com a primeira, “sem” – que a obra de Maurício Ianês multiplica suas possibilidades de leitura: sem palavras, pelo empastelamento das próprias palavras. Menos palavras, pela anulação de uma palavra pela outra, ou sobre a outra.
Carmel a Gross
Auror a
(2007)
Aurora já passou pelo Paço Imperial (RJ, 2003), pela Galeria Olido (SP, 2004) e até itinerou por paragens insuspeitas como a longínqua Moscou, em sua Bienal de 2007. Mas foi em 2012 que a instalação de néons róseos, alusão explícita à luminosidade do sol nascente, ganhou ressignificação mais do que oportuna ao ocupar um dos andares do Pivô, espaço artístico localizado no Copan, prédio histórico do Centro de São Paulo. Em que outro lugar faria mais sentido uma alvorada com aparência de letreiro publicitário e luz fria? Carmela Gross empresta ironia pop a um dos momentos do dia mais evocados pelos poetas.
Fotos: de cima para baixo, cortesia galeria vermelho, cortesia pivô. na página ao lado, cortesia cesare pergola Fotos:
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Luis Camnitzer
Ob je to s A rbi t r á rio s (19 7 0 –2 015) E TR ATA DO S OBRE A PA IS AGEM (19 96) Com sutil evocação a garrafas jogadas ao mar, contendo em seu interior cartas de náufragos com uma derradeira narrativa, o artista alemão radicado no Uruguai Luis Camnitzer criou a instalação Tratado Sobre a Paisagem, 1996. Na série de vasilhames que trazem metáforas de elementos naturais, a palavra recobra função classificatória, remetendo também a vidros de amostras dos antigos laboratórios. Já em Objetos Arbitrários, breves frases e palavras conectam-se a fragmentos ou pequenas coisas, permitindo ao público uma infinidade de combinações de sentidos, ainda que desconexos e contingentes. SELECT.ART.BR
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Fotos: de cima para baixo, paula alzugaray, mario grisolli/casa daros. na página ao lado, de cima para baixo, cortesia Alexander Gray Associates NY/© 2015 Luis Camnitzer/Artist Rights Society NY, paula alzugaray Fotos:
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Ma r i l á Da r d o t
A Origem da Obr a de A r t e
(2002)
A letra está para a palavra assim como a palavra está para o vocabulário. Tanto uma quanto a outra funcionam como as unidades que produzem o código e abrem possibilidades. De combinação ou de sentido, não importa. Neste jardim em potencial criado pela mineira Marilá Dardot para o Inhotim, vasos de plantas que podem ser cultivados pelo público têm formas de letras, amontoadas a esmo ou combinadas em palavras. Ali, a palavra não é uma certeza, como a própria lacuna entre emissor e receptor de uma mensagem
Armando Queiroz
Fel- Mel
(19 9 5 -2 0 0 5 )
Armando Queiroz é um artífice da imagem. O artista de Belém do Pará constrói cenas inusitadas, pela apropriação de elementos cotidianos deslocados de seu contexto usual. Ao inserir palavras em suas fotografias, faz do cruzamento de sentidos um dado de ironia e humor. Quem lê o sachê Fel-Mel (1995-2005) sem cuidado pode não perceber que o formato corriqueiro da embalagem usualmente melíflua é virado do avesso pelo título amargo que recebe. É a antítese entre palavra e objeto. SELECT.ART.BR
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T h i a g o C e r va n
P on t e
(s.d.)
Poeta marginal e artista do grafite, o paulista de São Bernardo do Campo gosta de fazer intervenções gráficas nas palavras que imprime nos muros, potencializando sentidos. Seu ódio vem entre algemas, que fazem as vezes da letra “o”. Seu Mar tem as letras formadas pelo recorte em estêncil em três pedaços de papel, simulando estar à deriva num grande espaço azul. Em Ponte, esse elemento arquitetônico ganha tradução pelo alongamento exagerado da perna da letra “n”, estabelecendo a conexão entre as duas extremidades da palavra. Fotos: laura aidar. na página ao lado, de cima para baixo: daniella paoliello/instituto inhotim e cortesia galeria virgilio Fotos:
Portfólio
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Fabio Morais, Escritor de artes visuais Com uma obra farta em humor, citações, referências, armadilhas e revelações, Fabio Morais, definitivamente, não é um escritor e ponto. Assim como não é um artista plástico e ponto Agenda (2012), corte e colagem sobre o Márion Strecker
Este portfólio não apresenta um artista plástico que também escreve livros. Não apresenta exatamente um escritor que atua
em paralelo no campo das artes visuais. Não é tampouco sobre um poeta que organiza seus poemas de forma gráfica ou visual. Dizer que ele é mais um artista que se apropria de palavras em sua obra plástica também não parece suficiente. Esqueça o arquétipo binário literatura/artes, embora espaço, gênero e identidade sejam questões suscitadas pela obra do artista Fabio Morais (São Paulo, 1975). Não que seja incorreto dizer que Fabio Morais é um escritor e é um artista plástico. Mas ele, definitivamente, não é um escritor e ponto. Assim como não é um artista plástico e ponto. As atividades artísticas e literárias se dão para ele de forma tão imiscuída que parece justo aceitar o título que ele prefere: um escritor de artes visuais. O produto pode ser um objeto, uma instalação, uma descrição de performance imaginária ou mesmo uma publicação. O que têm em comum são o fato de serem obras de arte conceituais, em que os objetos físicos nunca serão tão importantes quanto as ideias que os motivam e habitam. SELECT.ART.BR
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livro Marcel Duchamp, de Paulo Venâncio Filho
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Foto: cortesia do artista
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Confetes para Te Deixar Mais Feliz, Ruy (2008), livro com toda a obra do poeta português Ruy Belo (1933-1978) picotado em formato de confetes, acondicionado numa caixa SELECT.ART.BR
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Não vamos aqui voltar aos caligramas árabes nem aos poemas visuais do período helenístico para navegar na obra de Fabio Morais. Mas vamos reler o que ele nos oferece de epígrafes à sua obra-tese-de-mestrado, como Suicide, de 1920, do poeta francês Louis Aragon (1897-1982).
SUICIDE Abcdef ghijkl mnopqr stuvw xyz
Vamos reler também Z A [Elementar], de 1922, do artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948), de onde salta aos olhos menos a inversão da ordem do abecedário do que a falta de um jota: ZA [elementar] Z Y X W V U T S R Q P O N M L K I H G F E D C B A Na sequência, Fabio Morais inicia sua tese com um breve capítulo que funciona como comentário sobre a linearidade do espaço expositivo.
ESPAÇO EXPOSITIVO
a b cde f g h i j k l m n op q r s t uv w xy z “Cada obra (re)define em si o(s) gênero(s) a que pertence”, registra o artista.
Foto: cortesia do artista
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Acima, um texto de O Performer (2005), personagem fictício para o qual Fabio Morais escreveu 21 performances, todas elas odes à falta de talento. À direta, Artoday (2008), trabalho em que o livro Artoday, de Edward Lucie-Smith, foi usado para confeccionar 108 bandeirinhas, que também podem ser instaladas “para alegrar o ambiente”, como descreve o artista
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Fotos: cortesia do artista
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“A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais”, escreve Fabio Morais em depoimento imaginário quando velho, em sua obra-tese de mestrado Site Specific, um Romance (2013)
À esquerda, Cumbica (2013), impressão tipográfica em baixo-relevo sobre papel holler; acima, O Amante (2015), porta-guardanapo de metal esmaltado com todas as páginas do livro homônimo de Marguerite Duras
Fabio Morais vive e trabalha em Perdizes, ao lado do campus principal da PUC-SP, epicentro dos estudos semióticos no País e bairro de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, expoentes da poesia concreta, movimento que nos anos 1950 estruturou o texto poético a partir do espaço do seu suporte. Mas formou-se em artes plásticas na Faap e foi na Universidade Estadual de Santa Catarina que escolheu fazer seu mestrado, concluído em 2013. O tema: literartura. O resultado veio em forma de uma publicação pela Par(ent)esis. Misto de pesquisa e criação, a experimentação chama-se Site Specific, um Romance. No seu livro-tese-obra há um capítulo chamado Velatura. O termo denomina uma técnica de pintura de consiste em sobrepor camadas de tinta jogando com a transparência. No texto, Fabio Morais narra uma entrevista com ele mesmo velho, sobre a própria tese que escreve, em que as referências artísticas se desdobram e surgem afirmações como a seguinte: “A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais”. Sua obra é farta em citações, referências, armadilhas, revelações e humor. Romances, dicionários, mapas, álbuns, dedicatórias e caligrafias surgem em apropriações ou diálogos de sua literartura. Fabio Morais é ainda autor de hilários textos críticos sobre si mesmo e a própria obra. O crítico e o artista brigam diariamente, escreve. “Só não mencionei que ainda há, nessa relação entre o artista Fabio Morais e o crítico Fabio Morais, o cidadão médio, de médio para pequeno, o Sr. Fabio Morais. Mas esse triângulo jamais será abordado assim publicamente.”
Fotos: cortesia do artista
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Ensaio
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O título deste artigo reproduz o de uma tela pintada por Joan Miró em 1976. A obra está atual-
mente no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em exposição que procura enfocar o processo de formação da linguagem de signos do artista catalão e sua experimentação com a matéria. Entre 1930 e 1970, Miró baseou-se em um exercício constante de redução da imagem até chegar a um vocabulário de conceitos universais composto pelas figuras da mulher, do pássaro, da estrela, da lua, e de um amplo, vago e moldável “personagem”. Combinados e conjugados em frases pictóricas, esses elementos também são chaves de leitura para os jogos poéticos travados com escritores catalães, franceses e o brasileiro João Cabral de Melo Neto, com quem Miró estabeleceu uma de suas colaborações mais estreitas. Elaborou para ele ilustrações, ganhou um ensaio e tornou-se personagem de dois de seus poemas, numa relação simbiótica parecida à que hoje acontece entre Dominique Gonzalez-Foerster e o escritor Enrique Vila-Matas, que fez da artista francesa protagonista de seu mais novo romance, Marienbad Électrique, a ser lançado em setembro, em Paris.
Constelações
Dado o interesse de Joan Miró pelos movimentos do céu e da terra, frequentemente atribui-se ao espaço pictórico de suas composições a qualidade de cosmogonia. Nela, os elementos plásticos conectam-se caligraficamente sobre superfícies neutras e os títulos das obras formam frases concisas, espécie de haicais, em que os elementos do céu e da terra são conectados: O Diamante Sorri ao Crepúsculo ou Dois Personagens Caçados por um Pássaro. “Todas as fontes culturais ligadas às mitologias mediterrâneas fazem referência à mulher, como símbolo da vida e da fertilidade; aos astros, que marcam o transcorrer do tempo e o ciclo da vida; e aos seres alados, a meio caminho entre a essência terrena e a divina”, aponta Rosa Maria Malet, diretora da Fundació Joan Miró, que recebeu seLecT, juntamente com um grupo de cinco jornalistas brasileiros, para uma imersão no universo do artista. O personagem (personatge), presente nos títulos desde os anos 1930 – quando o artista se muda para Palma de Maiorca –, é um elemento menos evidente e mais aberto a interpretações. “Na obra de Miró, SELECT.ART.BR
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Dois personagens caçados por um pássaro
Pa u l a A l z u g a r ay
De que forma artistas como Dominique Gonzalez-Foerster e Joan Miró tornam-se personagens senão da própria obra, de textos de escritores com quem têm o hábito de dialogar
Detalhe da instalação TH.2058 (2008), de Dominique Gonzalez-Foerster, na Tate Modern, em que a artista dispôs livros para leitura do público. Na imagem, leitora do romance O Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas Foto: Jon Cartwright
LegendaEquatest, omnimus id esequidenis ditio et ipsunt exceaquis et, occulpa consedist, ventis sincipsam ilitae volorib usdae. Ipitat fugit et dita quam im conserferum quuntemo et Foto::
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É na conexão em rede dos elementos de suas composições pictóricas que o artista Joan Miró vem a estabelecer um elo com procedimentos de GonzalezFoerster, que constrói sua obra como uma teia de apropriações e citações
Público interage com TH. 2058, instalação de Gonzalez-Foerster SELECT.ART.BR
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a figura feminina é um elemento central, gerador de vida. O ‘personagem’ é o princípio masculino, mas ele ocupa um segundo plano”, opina Jordi Clavero, responsável pelo departamento educativo da Fundació Miró de Barcelona. A pintura Homem e Mulher Diante de uma Pilha de Excrementos (1935), considerada uma das obras mais preciosas do acervo da Fundação, é uma das poucas em que o artista se refere diretamente ao homem. É importante porque pertence à série das “pinturas selvagens”, realizadas um ano antes da eclosão da Guerra Civil Espanhola, e considerada premonitória. Mas também chama atenção pela ênfase que dá ao excremento. Nela estaria delineada sua prática de limpeza da imagem, extraindo o supérfluo da matéria, até chegar ao conceito essencial. O lixo remete à operação de redução, tão fundamental e constitutiva da poética do artista, desde que ele entrou em contato com os surrealistas, em Paris, nos anos 1920. Sobre sua opção pela síntese, deixando os elementos à solta em suas composições, foi comparado pelo etnógrafo e escritor Michel Leiris à prática mística tibetana de “compreender o vazio”. “A partir da eliminação do supérfluo, ele chega a uma composição aparentemente simples. Mas o que quer é uma obra próxima da poesia: motivar o espectador com o mínimo, assim como os escritores fazem só com a sonoridade das consoantes”, diz Rosa Maria Malet. Por meio do recurso da redução ao essencial, assistimos ao fenômeno “da migração para a pintura de características típicas da poesia”, segundo define o escritor português Valter Hugo Mãe, em texto escrito para o catálogo da exposição “Joan Miró, a Força da Matéria”. Teias
Embora a livre gravitação das figuras no espaço pictórico seja uma característica marcante das composições de Miró, na série Constelações ele chega à expressão máxima de sua linguagem, conectando os conceitos de sua cartografia simbólica do mundo em uma só rede, desenhada por uma linha fina e sinuosa que guarda relação visual com a teia da aranha. É nessa trama de conexões que Miró vem a estabelecer um elo com procedimentos da arte contemporânea, mais especificamente com a obra de Dominique Gonzalez-Foerster, que constrói sua obra como uma teia de apropriações e citações de obras de outros artistas e de
No alto, capa do livro Joan Miró, de João Cabral de Melo Neto, realizado a quatro mãos entre poeta e artista; acima, a tela Dois Personagens Caçados por um Pássaro, de Miró
textos literários. A lista de autores cujas vozes foram assimiladas pelas instalações de Gonzalez-Foerster pode ser longa demais para reproduzir aqui, mas a artista ressalta que, entre os mais importantes, estão JG Ballard, Philip K Dick, Roberto Bolaño, G.W. Sebald, Virginia Woolf, Vladimir Nabokov, Walter Benjamin e Enrique Vila-Matas. Além do intuito de alinhar o mundo em rede, existe nas apropriações de artista, segundo Ana Pato, autora do ensaio Literatura Expandida – O Arquivo e a Citação na Obra de Dominique Gonzalez-Foerster (Edições Sesc, 2014), uma lógica arquivista que estabelece “um novo fluxo de relações”. Com Enrique Vila-Matas a colaboração é ainda mais intensa. Em 2011, Dominique Gonzalez-Foerster mandou-lhe um e-mail convidando-o a escrever um ensaio para o catálogo da instalação TH.2058, montada na Turbine Hall da Tate Modern, em Londres. A partir do recebimento da mensagem, a artista automaticamente entrou para as páginas de Dublinesca, romance sobre o qual o escritor catalão trabalhava naquele momento. Quase um exercício de criação literária, TH.2058 imaginava o museu londrino em um futuro não muito longínquo, transformado em abrigo da população durante um dilúvio. As grandes obras da arte, do cinema e da literatura mundial também ganhavam a guarda do museu. O espaço instalativo na Turbine Hall era, assim, inteiramente varrido por beliches, réplicas de esculturas e livros, entre eles O Mal de Montano (2002), de Vila-Matas. Embora tenha se apropriado do nome do escritor no título da instalação Tapis de Lecture (Enrique Vila-Matas) (2000-2007) e assimilado seus livros em instalações, Gonzalez-Foerster nega que ele tenha sido em algum momento encarado como personagem de sua obra. “Mas eu sou certamente um de seus personagens”, afirma por e-mail a seLecT. Agora ela volta às páginas de um livro de Vila-Matas como uma fabricação fictícia: é a protagonista de Marienbad Électrique, que será lançado concomitantemente à exposição que inaugura no Centre Pompidou, em Paris, em setembro próximo. O livro sucede a Impressions de Kassel (2014, ainda inédito no Brasil), nas incursões de Vila-Matas ao universo da arte contemporânea. Em seus exercícios de liberdade, Joan Miró também entrou no território da poesia não apenas como agente criador, mas como criatura. Dominique e Miró são, afinal, dois personagens caçados por um mesmo pássaro: o escritor. Fotos: Cortesia Successio Miró 2015. na página ao lado: paula alzugaray
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D i á lo g o s
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DANDO UM TEMPO João Bandeira
Na pintura de Fabio Miguez, é do relativo isolamento das palavras, e só em seguida das relações entre elas, que secretam significações
Meu tio Joel recomendava que eu abrisse
o dicionário todos os dias e aprendesse cinco palavras novas. Não consegui me aplicar nisso com a devida disciplina. Mas, talvez por conta das tentativas intermitentes que fiz em homenagem a esse primeiro mentor, desenvolvi um gosto por me demorar em palavras isoladas de um texto, ouvindo de novo e de novo seus sons e prestando atenção em como cada uma delas era escrita. Da mesma maneira com que – imagino agora – um arquiteto pode se esquecer um pouco do tempo diante de uma construção, reparando no desenho de uma porta, na inclinação de uma determinada água do telhado, no encontro de materiais diferentes em um canto do piso ou na proporção de uma parede. Pensei em meu tio e naquele hábito, que deve ter me ajudado a chegar até esta página, já na primeira vez em que pude ver as pinturas que Fabio Miguez vem fazendo nos últimos anos, onde, aqui e ali, há palavras. Parece que, no começo, pensou nas placas de estrada. Os quadros verticais, principalmente, têm quase o mesmo formato e a tipografia semelhante; só que, ele disse, seriam “placas poéticas”. Às vezes até chegam muito perto disso, como naquela pintura em SELECT.ART.BR
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que se sucedem, em intervalos mais ou menos regulares, alinhadas de cima a baixo e na mesma fonte, as palavras “outrora”, “apenas“, “talvez”, e ao lado, também alinhadas e dessa vez em caixa alta, “UM SEGUNDO”, “UMA NATUREZA”, “UM SENTIDO”. A distribuição geral, as cores e as tarjas em que estão contidas permitem várias alternativas de leitura. Por exemplo, esta frase: Um segundo, uma natureza, outrora apenas; talvez um sentido. Ou esta: Um segundo outrora, uma natureza apenas, um sentido talvez. Tentar logo essas frases provavelmente deve-se à nossa cada vez mais crônica ansiedade por conexões (rápidas, de preferência), mas, de qualquer modo, comum ao mais simples ato de leitura: a expectativa de que, juntando tudo, na certa haverá um sentido – ao menos um. Nessas pinturas pode ser diferente. Temos tempo. As palavras se oferecem, a princípio, cada uma por si. Discretas ali no seu âmbito, algumas delas, quem sabe, quase dão-se por satisfeitas assim. E quando há duas, três ou mais numa tela, ao contrário do que ocorre na vida comum das palavras, é do relativo isolamento (fugaz, diante da nossa impaciência), e só em seguida das relações entre elas, que secretam significações.
Um Segundo Uma Natureza Um Sentido (2012), óleo e cera sobre linho Foto: Sergio Guerini
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Valise Dominó (2013), óleo e cera sobre madeira e vidro
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FotoS: RICARDO VAN STEEN
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Para olhos excessivamente adestrados de leitor, as coisas lembram itens de um dicionário de elementos construtivos: assoalhos, paredes, janelas, coberturas, quase-elevações
As palavras e as coisas
Céu Tecido Vento (2014), óleo e cera sobre linho
Acontece que elas dividem o quadro com outras formas representativas, além das que recortam suas letras, e com áreas planas de cores raramente fortes, por seu turno, indecisas entre serem planos alternados, fundos ou formas já reconhecíveis como as primeiras – sendo, de uma vez, coisas. Que coisas? Bem, para olhos excessivamente adestrados de leitor, em grande parte lembram itens de um dicionário de elementos construtivos – assoalhos, paredes, janelas, coberturas, quase-plantas, quase-elevações, quase-croquis. É como se na pouca profundidade indicada em cada prancha convivessem pelo menos dois códigos. E, como sempre, as palavras e as coisas não demoram a se procurar, tendo em vista graus de similaridade ou de oposição dentro de seus próprios universos. Em um deles: “gesso / avesso” (mesma sonoridade); “céu / vento” (mesmo campo semântico); “manhã / revelar / véspera” (quase uma frase); “deserto / fonte” (contrários); “tijolo / sono” (discrepantes). Ou em outro universo: formas básicas que mais ou menos se repetem; um telhado de frente e outro de lado; uma janela acima de uma parede de tijolos: esta que se mede com um muro em blocos de pedra; dois ângulos vizinhos que não batem. E às anteriores somam-se relações entre o universo linguístico e o das puras imagens: “dia” e um céu azul acima daqueles telhados;
“claro” próximo de um tom claro; “cimento” ou “pedra” acenando para os elementos construtivos. No entanto, na maioria das vezes, são relações abertas: a qual ou a quais formas corresponde a sequência “manhã /revelar /véspera”, ou só uma dessas palavras? De mais a mais, as faixas de texto pintado – além ou aquém de fazer sentido – dançam um ritmo visual próprio, mas sintonizado ao do restante das imagens na tela. (Ritmos sensivelmente diferentes transcorrem se você abre uma das valises de uma série aparentada, em que placas e outras peças articuladas com palavras vão desdobrando a pintura.) Por sua vez, texturas, tons e esquemas visuais chamam os velhos mestres, mestres modernos e alguns mais próximos de nós – aqui dizem Piero, ali Matisse, Johns, Volpi – e abrem-se até, pelas bordas do quadro, aos espaços de fora. Nesse mundo de pintura, de modo geral, são muitas as ligações possíveis. Porém, nem tantas que tudo acabe se dispersando. O bastante para fazer com que as palavras e coisas e formas quase sem nome estejam dispostas para se dispor ao contato. Em outras palavras, mudando um pouco o ângulo, Fabio Miguez faz diagramas de uma festa na piscina (com música baixa), em que todos estivessem se vendo pela primeira vez. Tudo assim mais ou menos tranquilo. O fundo é raso e, qualquer dúvida, dá para sair pelos quatro lados. Foto: Everton Ballardin
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L i t e r at u r a
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Não é por nada, não... ...que a palavra NONADA, aquela que abre o romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, virou nome de pousadas, tatuagem, tema de teses acadêmicas e acabou, por fim, tirando o sono de um tradutor alemão
G U S TAVO F I O R AT T I
Acima e nas páginas seguintes, Nonada, Deus É Traiçoeiro, O Diabo Não Há e Diadorim II, gravuras do mineiro Arlindo Daibert (1952-1993); pertencentes à série Gravuras do Grande Sertão, as obras foram inspiradas no livro Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa SELECT.ART.BR
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“Nonada”. Essa palavra enigmática
está tirando o sono do tradutor Berthold Zilly, que há mais de dois anos dedica-se a transpor para o alemão o romance Grande Sertão: Veredas (1956), obra-prima de João Guimarães Rosa (1908-1967), cuja narrativa em primeira pessoa resgata valores da tradição oral brasileira para criar, repleta de neologismos e sonoridades, a trajetória do personagem Riobaldo entre bandos de jagunços do sertão. Não é por nada, não. É que com esse jeitinho mineiro de quem não quer muita coisa, “nonada” acabou se tornando vocábulo mítico: revirou a cabeça dos linguistas, tornou-se nome de revista literária (Nonada, Letras em Revista, Editora Uniritter), mais recentemente de um site (nonada.com.br), de um blog (da escritora Juliana Cunha, julianacunha.com/nonada), de pousadas em Minas, e quem der um Google vai encontrar até tatuagem reproduzindo a palavra que conjuga “non” (“não”, no latim) ao pronome/ advérbio/substantivo “nada”, resultando no que poderia ser uma negativa dupla ou seu contrário, o essencial. Pode parecer nonsense propor, como este texto faz, uma matéria que se dedique inteiramente a uma única palavra de três sílabas, mas esse acidente vocabular, cujo significado se multiplicou nas mãos de Guimarães Rosa, parece conter um universo dentro de si, assim como uma obra (a palavra) dentro de outra (o texto ou a língua). Por essa razão, ocupou, como tema, capítulos e capítulos de teses acadêmicas dedicadas ao autor. Não é por outro motivo que Zilly anda tão preocupado. “Tentei várias soluções e por ora digo que vou ficar com a mais simples de todas”, contou em entrevista à seLecT. “Vou manter a palavra em português mesmo, como um elemento que pode espantar o leitor alemão.” Ele pretende, enfim, com notas de rodapé, colocar seus leitores a par dessa enorme encrenca em que se meteu. E considera ainda que muita gente em seu país tem conhecimento suficiente de espanhol para compreender do que “nonada” se trata.
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A decisão de Zilly carrega em si uma contradição, contudo, porque a palavra “nonada” já é dicionarizada e, diz a versão on-line do Michaelis, trata-se de um substantivo feminino que significa “coisa de pouca monta e valia; bagatela, insignificância, ninharia”. No livro O Léxico de Guimarães Rosa, em que Nilce Sant’Anna Martins reúne 8 mil palavras criadas ou resgatadas do arcaísmo pelo autor mineiro, “nonada” também aparece como resultante de “non” mais “nada”, significando “não é nada” dito de forma rápida. À seLecT, Evandro Silva Martins, doutor em linguística, contou que as palavras cujos significados são retrabalhados também podem ser consideradas neologismos, o que possibilita colocar “nonada” entre outras criações rosianas, como “embriagatinhar” (mistura de “embriagado” com “engatinhar”) e “circuntristeza” (uma tristeza que ronda). No alemão, diz Zilly, não existe, porém, neologismo capaz de sintetizar a mesma ideia. Uma tradução rigorosa exigiria decompor “nonada” em uma sentença mais longa, o que já foi feito anteriormente por Curt Meyer-Clason, que recriou a palavra com a frase “Hat nichts auf sich”, algo como “nada tem em si”. Em inglês, exemplar assinado por James L. Taylor e Harriet de Onís, houve a mesma simplificação: optou-se por “it’s nothing”. FOTOS: REPRODUÇÃo
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Legenda Loreiumquod quas volora velenia perro vellibea inis atur, seque velique quaspedi corersped ea
“O léxico de Guimarães vai abrindo enigmas em seus textos, de forma que o leitor regride à origem da palavra em seu sentido pleno, o que também nos aproxima de uma espécie de silêncio abissal”, diz Regina da Costa Silveira, editora da revista Nonada e pesquisadora de Guimarães Rosa
Uma palavra, uma cena
Zilly recusa a solução dada por seus antecessores porque acha que ela desperdiça tanto a capacidade de síntese de Guimarães Rosa quanto os períodos marcados por seu laconismo. A essa crítica o tradutor acrescenta um exemplo vizinho a “nonada”: localizado logo nas primeiras páginas do livro, há um pequeno trecho em referência à morte de SELECT.ART.BR
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um bezerro. “Mataram”. Simples assim, com apenas uma palavra, Guimarães monta uma cena. O problema é que a tradução para o alemão requereu do tradutor um sujeito (quem matou) e um objeto (quem morreu). “E então o resultado proposto por Meyer-Clason foi algo como: ‘Aí, de repente, eles o espancaram até matar’, o que é ruim, porque no original não dá para saber sequer se o bezerro foi espancado de fato, isso é uma invenção do tradutor. Na minha opinião, Clason não gosta do laconismo de Guimarães”, criticou Zilly.
Outra dificuldade que ele menciona sobre a palavra “nonada” é que os significados do termo vão variando nas seis vezes em que o leitor o encontra pelo romance. A ocorrência mais conhecida – aquela que abre a obra – funciona como uma interjeição enigmática “que vai ganhando” o sentido apontado em dicionários (ninharia, quase nada) conforme o leitor progride na leitura, diz a pesquisadora Regina da Costa Silveira, editora da revista Nonada, pesquisadora de Guimarães. Para ilustrar, eis a abertura: “— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego”. Muito próximo de encerrar a obra, há pistas de um desdobramento para tal significado: “Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”. E nesse caso, pela colocação da palavra na oração, “nonada” poderia estar em oposição à referida “travessia”, como um chiste, tão comuns são eles na obra do autor mineiro. Antagônico ao homem humano lançado em travessia “está o ‘homem dos avessos, homem arruinado’”, diz Ana Maria Gonçalves Lysandro de Albernaz, em sua tese de doutorado Vertência do Viver no Grande Sertão: Veredas, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.
Esta não foi a única situação que o colocou diante do referido vocábulo. A pesquisadora Suzi Frankl Sperber fala sobre ocorrências da palavra em um livro que pertence ao espólio do autor, assinado por Santa Teresa de Ávila, e que tem como um de seus temas centrais a dualidade existente entre Deus e o Diabo. “¡Oh, válgame Dios, y qué nonada son nuestros deseos para llegar a vuestras grandezas, Señor! ¡Qué bajos quedaríamos, si conforme a nuestro pedir fuese vuestro dar!”, imprime trecho do livro. Silveira conta ainda que Guimarães Rosa era um estudioso compulsivo de línguas, especialmente de arcaísmos, do latim e do alemão. “Ele acordava cedo, tomava um banho gelado e estudava pela manhã”, conta. Para a pesquisadora, o léxico de Guimarães vai abrindo enigmas em seus textos, de forma que o leitor regride “à origem da palavra em seu sentido pleno”, o que também nos aproxima de uma espécie de silêncio abissal. Para o autor, a ideia do vazio parece ser uma constante, e é no silêncio que se dá a comunicação, “muito mais do que na presença do verbo”, diz Silveira. Note bem, não é exatamente “nonada” que abre Grande Sertão: Veredas. É um travessão.
Dualidades e arcaísmos
É essa ampliação de sentidos que confere à palavra “nonada” seu possível caráter neológico, pois, a bem da verdade, ela não foi criada por Guimarães Rosa, faz parte do vocabulário do sertanejo mineiro, que o autor assimilou durante suas viagens e pesquisas realizadas em maio de 1952. Acompanhado de oito vaqueiros, com uma caderneta amarrada ao pescoço, por dez dias ele tocou 300 cabeças de gado, tendo percorrido os 240 quilômetros que separam Três Marias e Araçaí, em Minas. FOTOS: REPRODUÇÃo
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En qu a n to fa lo c o m N u no R am o s , formigas passeiam por seu rosto.
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Isso não tem nada a ver com a suposta doçura do artista, que, embora de trato afável, é dono de uma obra bastante acre. Estou em Paraty, cidade cuja atmosfera cachaceira faz com que formigas habitem qualquer centímetro quadrado – farejam o açúcar até mesmo na tela do meu laptop, que apresenta via Skype um estranho enquadramento desse paulistano de 55 anos. Os minúsculos seres saem do nariz do poeta e entram pelos olhos do artista plástico, voltando através das orelhas do filósofo para, em seguida, se enfiarem na boca do narrador, ensaísta, letrista de música. A obra do multiartista é conhecida pela dissolução de linguagens, de um material em outro; assim, de certa maneira, o passeio das formigas pela representação pixelizada de Nuno Ramos o tornava mais real, mais físico. Dissolução que se aproxima da dissoluta voz a percorrer seus Sermões (Editora Iluminuras, 216 págs., R$ 48), primeiro livro que publica após Ó e Junco, ambos vencedores do Prêmio Portugal Telecom. Trata-se de um longo poema narrativo ou ficção em versos narrada por um velho professor de filosofia em permanente paudurescência – um sujeito que quer dissolver seu sexo em pleno mundo. O romance aproxima violentamente o desejo da vida da pulsão de morte ao acompanhar a rarefeita rota do professor. Ele sai de Ouro Preto, onde faz sexo em uma igreja, sobre um tapete onde se vê a imagem de um tigresa atacando ovelhas, e vai participar de um congresso em Londres; lembra-se da mãe morrendo; muda-se para o Centro de São Paulo; desce a uma praia, onde faz sermões tal como um deslocado e aloucado Antônio Vieira; volta a Ouro Preto até ser expulso de uma igreja; rememora filmes como Stalker, de Tarkovski, e A Palavra, de Dreyer; e, afinal, encontra-se com a professora de ioga, uma Mestra, divina e hermafrodita, que não precisa dele. É um percurso entre Eros e Tanatos, em que a impossibilidade de ligação com o mundo faz nascer o discurso ao mesmo tempo que mata o seu falante; no meio do caminho temos as belíssimas imagens dos sermões na praia, e várias epifanias na igreja, no aeroporto e na sessão de ioga. SELECT.ART.BR
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E n t r e v i s ta / N U N O R A M O S
No novo livro Sermões, a escrita de Nuno Ramos apropria-se do sexo para fugir da morte. Mas, como em sua obra plástica, a materialidade nunca é rígida. Em seu texto, Eros e Tanatos se dissolvem
RONALDO BRESSANE F OTO L U D OV I C C A R È M E
“Usei muitas vezes pedra-sabão na minha obra, e fui muito para Ouro Preto para isso, ficava talhando, fazendo esculturas”, contou Ramos a seLecT sobre a inspiração para o personagem. “A pedra-sabão parece um óleo, escorrega, você talha com uma faca, é mais suave que madeira. Tudo o que faço tem uma materialidade meio intermediária, entre o duro e o líquido, coisas não prontas, não formadas. Às vezes pego uma coisa pronta e a regrido, às vezes pego uma coisa formada e a deformo: busco esse lugar em que as coisas se dissolvem, essa fronteira, esse contorno. Algo precário, entre um estado e outro. Gosto da hora em que o sol se põe. O lusco-fusco”, diz.
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Nuno Ramos conversou com seLecT no intervalo do trabalho para a próxima exposição, em agosto na Estação Pinacoteca. A entrevista não teve um final: o Skype fragmentou sua face e o discurso até que sumisse em algum lugar da internet. Sobraram de seu contorno as formigas. Seu texto mais conhecido é Suspeito, a primeira menção que vem junto ao seu nome no Google. A esta altura do campeonato, você ainda suspeita que estamos fodidos ou já tem certeza?
É, sou um suspeito, na verdade (risos). Acho que estamos muito fodidos, sim, na falta de perspectiva de desejo de país. Que configuração do possível, de escolha, queremos? Isso regrediu loucamente. Mesmo em momentos piores do País, que vivi quando jovem, havia muito mais pontos de fuga. Isso encruou: não há nenhuma força externa que aponte para algum lugar. O PT e o PSDB estão cada vez mais parecidos e ocupam qualquer espaço político. Aquilo que poderia ser o reconhecimento de um projeto comum, o Real, a Bolsa-Família – evidentemente houve conquistas – hoje é um retorno do mesmo, infindável. É como se a gente estivesse naquela frase do elevador, que eu adoro... uma frase incompreensível, lacaniana: “Ao
“Alias, tenho alguma técnica como escritor, mas muito pouca como
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entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no andar”. O mesmo tomou conta do Brasil. Estamos muito fodidos, mas o problema não é tanto econômico. Acho que a Dilma teve coragem de fa- zer o que está fazendo: poderíamos ir para uma argentinização, ela poderia ter chamado sei lá, o Belluzzo, seria pior ainda; teve coragem de chamar o Levy. Mas ela não tem projeto nenhum para o País. Não tem pauta nova, não fala de ecologia... A Marina sumiu, parece uma aristocrata. Passa-se a vida falando mal do País, só que você é imediatamente captado por um discurso ou a favor do PT ou contra o PT: há um emburrecimento, uma falta de humor, uma paranoia – estamos todos paranoicos no Brasil. A imprensa persegue, o PT persegue, o PSDB persegue. Vivemos a crise do modelo modesto de país que o PT e o PSDB fizeram, com elementos legais – mas esse modelo implodiu e a gente não consegue sair dele. No mesmo texto, você fala sobre a degradação das cidades. Esse tema está presente em quase tudo que você faz: a passagem do amorfo para o disforme, com breve escala em alguma espécie de construção. Essa ideia também está presente nos Sermões?
Sim. Acho que no Suspeito falo no contexto da violência. É o grande tema brasileiro, antes mesmo da distribuição de renda, SELECT.ART.BR
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da desigualdade social, racial; é o primeiro dos temas. Temos 57 mil assassinatos por ano, números intragáveis. Essa violência inclui o urbanismo: tímidas conquistas são imediatamente postas abaixo. A violência é nosso veículo e pensamos pouco nisso. Na minha obra, essa característica é usada em uma espécie de reversão. Peço um pouco de violência nos seres para desestruturar o que está muito fixo. É um tema forte para mim. Nos Sermões, que é um texto mais desinibido – muito mais que o Junco, que reescrevi durante 15 anos –, muito associativo nas várias vozes que vão entrando, há um fluxo que guarda relação com essa minha coisa com os materiais: fazer o duro parecer mole, o mole parecer duro, o artificial parecer natural, o natural ser mais plástico. Me sinto muito exposto, como poucas vezes me senti. Foi necessária uma violência aí.
artista plástico. Não sei desenhar, não sei pintar, não sei fazer nada”
Sua obra está marcada pela dualidade existente entre a forma e o disforme, entre criação e destruição. Parece que em tudo o que você faz existe a onipresença da morte e a resistência da memória – me refiro tanto a obras como Morte das Casas quanto a poemas do Junco, em que você brinca com A Máquina do Mundo do Drummond. Neste Sermões, o texto é uma máquina a serviço do pau. O sexo é a única saída para o esgotamento?
O Drummond escreveu também muitos poemas eróticos e explícitos. Essa coisa da fusão está nele, a pedra-sabão está nele. Até mesmo a poesia familiar, política, o agora da polis, são temas drummondianos, e neles, em vez de procurar o contraste, ele busca a fusão; ele não quer que uma coisa exclua a outra. No Cabral, a gente vê os elementos mais separados, em desaceleração. Já Drummond é acelerado, tenta aproximar violentamente os opostos. Desde muito jovem eu o li. A transcrição do sexo para a palavra já é tão falha que... você ter uma experiência amorosa e tentar escrevê-la é um desafio muito grande, o fracasso está sempre próximo. Nos sinônimos para falar do sexo, é muito diferente falar “pau” ou “caralho”; ao contrário de, sei lá, escolher entre “luz” ou “claridade” para falar da cor branca, que são termos mais próximos. Há uma exigência muito grande ao escolher os palavrões. Por exemplo, fiquei na dúvida sobre usar “cona” ou “buceta”... “Buceta” é uma palavra que ocupa a sala toda, muito forte; preferi “cona”, mais neutra. A tradução de Sexus, do Henry Miller, que reli 200 vezes, usava “cona”, talvez por isso a usei. Mas, voltando à história do esgotamento, no livro eu falo desse sexo que está acabando, o sexo de um sujeito que está morrendo, e que vai acabar em uma deusa que está sendo comida, uma deusa hermafrodita, que tem um pau dentro dela que se mexe. A deusa sexual é inacessível, pois é autopenetrada, a Mestra. É uma falência da vida, uma perda de contato que acaba liberando o lado discursivo do personagem. O sermão vem na falência do Eros. É o percurso de alguém que
está perdendo esse acesso ao sexo. Ele vai caminhando para a morte como se houvesse um abraço inevitável do qual não se consegue fugir. Queria que você falasse um pouco do começo da carreira. Sei que você estudou no Equipe, onde tinha um curso de redação famoso, do Gilson Rampazzo. Essa formação foi importante para a sua escrita? Quando você se imaginou artista e quando pensou que poderia ser escritor? Como uma coisa vai parar na outra?
Comecei a escrever antes mesmo do Equipe, aos 12 anos. Meu pai dava aula de literatura na USP, ele era português e me mostrava Fernando Pessoa, só que morreu muito novo – eu tinha 14 –, então fiquei nesse lugar da literatura muito sozinho. E sempre me vi como um escritor, não um artista plástico. Quando fui estudar filosofia, pensei em fazer algo que meu pai não era. Leio muito mais do que eu entendo, tenho uma reflexão muito fraca. Alguma coisa aconteceu na minha ligação com o texto que me deixou meio em crise, porque escrevia sobre coisas que não sabia do que estava tratando, daí parti para as artes plásticas. Artistas como Herberto Helder, Jorge de Lima, Murilo Mendes, têm uma sabedoria do sentido do tempo muito mais rigorosa, e eu tenho um pouco de medo disso. Como sempre gostei da matéria – que não mente: ela cai –, busco o real. Então essa coisa muito abstrata, feita de vento, que a palavra tem, nunca me atraiu: eu busco a materialidade, a coisa física – por pior que seja o resultado. Sempre gostei disso em artes plásticas, o corpo da tinta. Comecei tarde nas artes plásticas, aos 22 anos, muito mais tarde do que na literatura. Aliás, eu tenho alguma técnica como escritor, mas muito pouca como artista plástico. Não sei desenhar, não sei pintar, não sei fazer nada. Alguns museus têm impedido que os frequentadores façam selfies. O que acha disso? Como você interpretaria as pessoas se fotografando em frente às suas obras?
Bater uma foto da Mona Lisa já é uma selfie: é um registro de que você esteve lá. Acho que a gente perdeu muito a naturalidade quando se usufrui cultura. A segunda vez que fui a Alhambra era uma excursão, você tem dez segundos para cada sala, as pessoas vão te empurrando. Gosto de ir ao Louvre para ver o barroco espanhol, por exemplo, porque ninguém vai lá. É legal essa coisa da vagabundagem na arte. Uma vez fui ver o Manet em Nova York e requeria um exercício militar, todo mundo em fila, agora olha, agora não olha. É difícil. A selfie está nesse contexto de massificação de tudo. Talvez a gente se habitue a isso. Mas que atrapalha a fruição da arte, ah, isso atrapalha. Agora, se fizerem isso comigo, não tenho como evitar. É um enigma como a arte chega no espectador. Temos de lutar pra não perder a aura, a potência, a espontaneidade. Então, de repente, o cara fazendo selfie pode até ter uma leitura melhor da minha arte do que alguém que ficou duas horas dando voltas ao redor de uma obra minha. Ué, pode ser, como vou saber?
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A R T E D I G I TA L
E s t é t i c a s d o c ó d i g o m at e r i a l i z a d o r
Este objeto acima é um banquinho e pertence à série Samba, de Guto Requena. Moldado em mármore de Carrara, é parametrizado com informações decodificadas das ondas sonoras de A Pastatorinha e O Samba de Ossanha SELECT.ART.BR
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O código computacional está para as linguagens de programação assim como a palavra está para a comunicação verbal. Artistas como Eduardo Kac e designers como Guto Requena exploram em suas obras as poéticas da cultura codificada pelos processos de digitalização
Sem códigos não há possibilidade de cultura .
Esse é um raciocínio caro ao filósofo Vilém Flusser, para quem os códigos são o instrumento mais poderoso criado pelo homem para superar, por meio da tecnologia, nossas limitações em relação ao mundo natural. O crescimento intelectual do homem, do ponto de vista de Flusser, está diretamente relacionado à capacidade de transgredir a natureza, criando estratégias de abstração de seu próprio corpo animal e demandando mais e mais educação e preparo crítico. São eles, afinal, que permitiram, por meio da escrita e das imagens, que se elaborassem os registros e as interpretações da história e que se expandissem as fronteiras do imaginário por meio da arte e da ciência. Apesar de o fenômeno ter uma história de dezenas de milhares de anos, torna-se mais relevante no século 21, com o aumento da presença da computação no cotidiano.
Giselle Beiguelman
Não seria exagero dizer que o código computacional está para as linguagens de programação assim como a palavra está para a comunicação verbal. É a matéria-prima dos sistemas culturais da nossa época. Infiltra-se em praticamente todas as atividades como uma espécie de legenda alfanumérica de tudo que nos cerca e operamos. Contudo, diferentemente das palavras, que apenas transmitem informações sobre as coisas – descrevendo ações ou nomeando o que nos cerca –, os códigos computacionais são também executáveis, desempenhando as ações que descrevem. Isso nos insere em um contexto cultural emergente, em que as formas são resultantes de processos de codificação, em vez de ser fruto da modelagem imediata. Os impactos desses processos se desdobram desde o design dos objetos que usamos até a própria compreensão do que é a biologia. Foto: Kourosh Stoodeh
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No nível mais imediato de nossa experiência social, os processos de codificação digital conectam-se às relações afetivas, em redes sociais cujos algoritmos respondem às hashtags que usamos, e organizam, sem que tenhamos controle, as hierarquias de nossos relacionamentos e interesses que aparecem nas nossas timelines. Criadores como o artista Eduardo Kac e o designer Guto Requena exploram os limites da cultura codificada pelos processos de digitalização. Em suas obras investigam o imaginário das novas poéticas da vida e dos afetos mediados pelas linguagens de programação. Gatos atacam Gattaca
Não é de hoje que Eduardo Kac explora as fronteiras do código genético no campo da arte. Dedicado à reflexão sobre
À esquerda, o poema Cypher, de Eduardo Kac feito com a tradução do inglês para código genético. Abaixo, o artista trabalhando em um laboratório de sequenciamento de DNA
arte e biotecnologia desde 1997, quando apresentou A Positivo (Positive A), em Chicago, incorporou a engenharia genética ao seu trabalho em 1999, tendo o início do projeto Gênesis como marco de sua incursão no que chama de arte transgênica. Nessa obra partiu da tradução de uma frase bíblica em Código Morse que, ao ser retraduzida na estrutura de DNA, dava vida a um gene artificial, o qual foi injetado em uma bactéria. A frase original vinha do próprio livro bíblico do Gênesis e dizia: “Que o homem domine os peixes do mar e o voo no ar e sobre todos os seres que vivem na Terra”. Pela internet, os espectadores podiam modificá-la, controlando a iluminação ultravioleta do espaço e, com isso, causando mutações no código genético da bactéria. Kac introduzia aí novos elementos à discussão sobre poder e tecnologia, ética e estética, chamando a atenção para o peso da tradição religiosa nas crenças científicas e questionando todo tipo de heranças imutáveis. Depois da realização de obras que se tornaram marco na história da arte contemporânea, como GFP Bunny (2002), o artista voltou a essa mesma metodologia de trabalho metalinguístico sobre o código genético, porém de forma compartilhada com o público. Por meio de um livro-objeto, em Cypher – Um Kit Transgênico DIY (2009), oferece um laboratório portátil que contém uma bactéria sintética. Seu DNA sintetizado em laboratório traz codificado um verso do artista: “A tagged cat atacked Gattaca”. Cabe ao leitor dar vida à bactéria-poema ou não. A frase poética, que repercute a incidência das letras que representam as quatro bases do código genético (A, C, G e T, correspondentes a Adenina, Citosina, Guanino e Timino), foi traduzida para esse código, associando às vogais valores triplicados das letras do código, como I = AAA, e duplicados às consoantes que não aparecem nas bases (L = TT), por exemplo. Com o objetivo de diminuir a ambiguidade das sequências no código e para mantê-lo o mais curto possível (para melhorar a eficiência molecular), atribuiu às quatro consoantes da frase que não pertencem ao código genético (D, K, W e L) letras que representam duplas dos ácidos nucleicos (TT, por exemplo). Às duas outras vogais da frase (E e I) foram associadas letras triplas que também representam os ácidos nucleicos. O poema faz uma referência clara ao filme Gattaca, ficção científica sobre como as tecnologias reprodutivas Fotos: cortesia do artista
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Eduardo Kac e Guto Requena utilizam em suas obras processos de tradução que interrogam as tecnologias de produção de sua materialidade No projeto Love, o designer Guto Requena, na foto ao lado, implanta sensores para monitorar batimentos cardíacos e as ondas cerebrais do público que conta suas histórias de amor. As informações são convertidas em parâmetro para uma impressora 3D que fabrica digitalmente mandalas personalizadas
controladas geneticamente podem apontar para um mundo eugênico. E, nesse contexto, não é fortuita a ambivalência da ideia de um tagged cat que aparece no verso de Kac. Ela remete tanto à ideia de um gato marcado na carne (como gado) como à de uma gato sinalizado por hashtags, como um metadado das redes sociais. Nesse contexto, Cypher torna-se, segundo Kac, “uma declaração contra uma sociedade com uma crença determinista na influência totalmente determinante dos genes, uma declaração contra a crença determinista na biologia e na vida”. Como diz Karen Verschooren, curadora da mostra Alter Nature: We Can (2010), “ao empacotar o trabalho artístico em um kit DIY, Kac convida o público a tomar suas próprias decisões sobre a tecnologia”. Afinal, para ele, “somos todos analfabetos e devemos dominar um novo idioma, a fim de evitar que ele seja usado para nos controlar”. O processo de tradução utilizado por Kac, remete àquilo que a crítica norte-americana Katherine Hayles SELECT.ART.BR
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denomina, em Writing Machines, “tecnotexto”, o texto que interroga a tecnologia de inscrição que a produz, mobilizando loops reflexivos entre seu mundo imaginário e o aparato material que o incorporou como presença física. Um exercício que parece estar no centro da prática projetual do arquiteto e designer Guto Requena, que transforma histórias de amor em mandalas e sambas em banquinhos de mármore de Carrara.
Objetos sensíveis
Munido de sensores para captar batimentos cardíacos, modulações de voz e ondas cerebrais, Requena recolhe histórias de amor, narradas oralmente. As variações no ritmo dos depoimentos são gravadas e depois padronizadas por um programa. Transformadas em dados, as narrativas são então enviadas para uma impressora 3D, que as processa como objetos físicos.
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Posteriormente a esse projeto – Love Project (2014) –, o designer deu início à série de bancos de mármore, Samba. Outra vez, os processos de tradução entre linguagens ocupam o centro da atividade criativa. Nesse caso, gravações de dois sambas clássicos – As Pastorinhas, de Noel Rosa, e Canto de Ossanha, de Vinicius de Moraes, foram usadas como inputs. “De ambas foram extraídos parâmetros como vocais, graves, agudos e médios. A partir desses dados foram obtidas frequências e informações. Ao final, curvas foram geradas, crescendo em tempo real, de acordo com a música”, explica Requena. Essas curvas extraídas das informações parametrizadas pelo programa de decodificação das vozes de Chico Buarque e Vinicius de Moraes cantando os sambas funcionam assim como uma espécie de visualização dos dados contidos nas canções. No fim, são enviadas ao um torno computadorizado (uma máquina CNC – Computer Numeric Control)
que esculpe em mármore de Carrara a palavra cantada que se transformou em arquivo digital. Ao consolidar-se como objeto, no fim do percurso, é impossível não notar um rastro de vida que parece derreter suavemente a superfície da pedra branca. O paradoxal atrito entre mineral e orgânico aqui é na verdade a resultante de um processo de hibridação. Ele funde as palavras e as coisas no contexto de uma nova cultura “materializadora”, como queria Flusser. “Antigamente (desde Platão ou mesmo antes dele), o que importava era configurar a matéria existente para torná-la visível, mas agora o que está em jogo é preencher com matéria uma torrente de forma que brota a partir de uma perspectiva teórica e de nossos equipamentos técnicos, com a finalidade de ‘materializar’ essas formas. (...) Isso é o que se entende por ‘cultura imaterial’, mas deveria na verdade se chamar ‘cultura materializadora’”, escreveu Vilém Flusser em O Mundo Codificado (2007). Fotos: divulgação
Mídia
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LegendaEquatest, omnimus id esequidenis ditio et ipsunt exceaquis et, occulpa consedist, ventis sincipsam ilitae volorib usdae. Ipitat fugit et dita quam im conserferum quuntemo et
Quarta capa da edição nº 4 da revista Código , com ilustração do artista espanhol Julio Plaza, colaborador contumaz SELECT.ART.BR
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CÓDIGO: BEM-VINDA À ERA DIGITAL Revista-vitrine de poesia concreta no Brasil ganha reinterpretação em site, projeto contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2013-2014
L u c i a n a Pa r e j a N o r b i at o
Se a poesia concreta dos anos 1960-70 fosse feita hoje, num am-
biente digital, que cara teria? Uma resposta possível para essa pergunta vem sendo construída por Ariane Stolfi, Bruno Schiavo, Daniel Scandurra, Gabriel Kerhart e João Reynaldo de Paiva Costa, contemplados pelo Rumos Itaú Cultural 2013-2014 para fazer a transposição em site da revista Código, dedicada à vertente. Editada erraticamente entre 1974 e 1990, a revista foi uma das mais duradouras entre as pós-Noigandres (1952-62), publicação inaugural de poesia concreta. Os 12 números da soteropolitana Código só viraram fato pelo esforço pessoal do mineiro Erthos Albino de Souza, que cedeu seus rendimentos de funcionário público para bancar o projeto. De tiragem limitada e circulação restrita a intelectuais, nunca deu lucro.
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De revista a site
Trazendo em suas páginas nomes como Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, mesclados a então jovens colaboradores (Waly Salomão, Lenora de Barros), artistas visuais (Julio Plaza, Regina Silveira) e traduções de obras de grandes nomes estrangeiros, caso de Ezra Pound, a Código aprofundava as questões da poesia concreta até então. “Ela já estava inserida em um contexto de teoria da informação, teoria da comunicação. O nome Código carrega isso. Tem poemas com chave léxica, probabilísticos, e o próprio Erthos Albino, que era o editor, já usava o computador no começo dos anos 1970 em suas obras”, diz Bruno Schiavo à seLecT. Essa característica, que permite unir novas camadas ao conteúdo original, foi o que motivou a turma a escolher a Código para fazer uma versão em site. “É como se a digitalização de uma revista dos anos 1920-30 só precisasse de um caráter arquivístico para que as pessoas pudessem ver. A Código já propõe uma interface, uma interação.” Não é de hoje que o grupo começou a pesquisar o tema. Dos cinco participantes, com idades entre 25 e 37 anos, três faziam parte da Gemiótica, turma de alunos de arquitetura da FAU-USP e da PUC em meados de 2007 que pesquisava semiótica e derivações. Ariane e Bruno vinham da FAU; Gabriel Kerhart, da PUC. Na Balada Literária de 2010, juntaram-se ao trio Daniel Scandurra, que trabalha a relação entre semiótica e linguagens artísticas; e João Reynaldo, cuja formação tem um pé fincado na literatura e outro nas artes em geral. Os materiais levantados em visitas a nomes como Augusto de Campos fomentavam a vontade de trabalhar a questão arquivística em plataforma digital, na recuperação de iniciativas históricas e seu posicionamento transversal com a atualidade. Em 2013, escolheram a Código como matéria-prima.
Foto: Cortesia projeto código revista
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No sentido horário, trabalho de Décio Pignatari ( esquerda ), da edição 6; Beijo-poema para Augusto, de Lygia de Azeredo Campos, da edição 8; ilustração para a tradução de poema sem título de William Blake por Caetano Veloso e Antonio Risério; e trabalho de Regina Silveira, ambos presentes na edição 2
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Para tornar a ideia real, o grupo, com idades entre 25 e 37 anos, está em
brainstorm constante. Todos os passos da transposição dos poemas para o site, além de propostas de novas interações, estão sendo descobertos organicamente
Mal tinham esboçado um projeto, o Rumos Itaú Cultural abriu inscrições para uma edição interdisciplinar. “Pensamos ‘nossa, tem tudo a ver’, principalmente porque é um paradigma que voltou nessa proposta”, diz Schiavo. Tanto tinha que foram um dos cerca de cem projetos selecionados entre 15 mil inscritos. Institucionalização
Para tornar a ideia real, o grupo está em brainstorm constante. Por seu ineditismo, todos os passos da transposição dos poemas para o site, além de propostas de novas interações, estão sendo descobertos organicamente. “É a criação de uma estrutura para que as pessoas que entrem no site possam recriar os poemas e fazer versões próprias”, diz Bruno Schiavo. O resultado final ainda está por vir, mas tem como base a ideia de um banco de dados que permitirá a ampla articulação de todas a informações sobre cada poema. Esses documentos vão desde entrevistas com seus criadores até o cruzamento do material com acervos de bibliotecas públicas, por exemplo. O projeto contempla essa parte histórica e outra mais interativa, com propostas de intervenções ao público e trânsito mais dinâmico de dados. A premiação viabilizou financeiramente o projeto, mas também teve implicações imprevistas, como a questão dos direitos autorais. “Institucionalizamos a revista, colocando-a para ser feita dentro do Itaú Cultural, porque queremos que circule mais. Mas temos de responder a essa parte (...) que envolve pedir os direitos. Tivemos de contratar advogado, aprofundar quais modalidades estariam disponíveis para ser atribuídas a cada poema, se daria para ter uma flexibilidade”, diz Schiavo. Na época da Código, as traduções de grandes nomes eram feitas sem pedido algum. Com tudo isso, o projeto Código Revista injeta novo fôlego à poesia concreta, trazendo-a para o interior do debate digital contemporâneo. Ela deixa a imobilidade para chegar ao século 21 com potencialidades ampliadas. “É como se o caráter visionário estivesse se realizando agora”, diz Schiavo. Mais especificamente, a partir de outubro, quando o site deve ser lançado. Fotos: cortesia projeto código revista
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V E R N I SSAG E
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G es to e s i l ê n c i o Christian Rosa, em exposição na White Cube São Paulo, apresenta um vocabulário visual marcado pela repetição e um fluxo de criação típico da escrita automática que configura uma espécie de sistema de erros
Lu i sa Dua rt e
Nascido no Rio de Janeiro, Christian Rosa é um artista que cresceu e se formou entre Viena e Los
Angeles, cuja trajetória teve início em meados dos anos 2000. Os elos com a cultura e a arte brasileiras são distantes. Sua pintura, em um primeiro contato, evoca uma série de referências, tanto europeias quanto norte-americanas, nomes como o do alemão Albert Oehlen e o do americano Cy Twombly (1928-2011) são igualmente importantes para sua formação.
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A presente exposição de uma nova série do artista na White Cube, em São Paulo, surge como prolongamento de Put Your Eye in Your Mouth, individual realizada por ele em março deste ano na sede da galeria em Londres. Aqui, serão exibidos novos trabalhos, produzidos especialmente para a mostra. Perceber como criações forjadas por um brasileiro em terras estrangeiras irão se relacionar com o contexto nacional é, portanto, uma das perguntas colocadas desde já para uma primeira exposição em seu país de origem.
Foto: cortesia white cube / Prudence Cuming Associates Ltd
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Black Cloud on my Head, 2015, tinta e bastão a óleo, carvão e spray
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A pintura de Rosa traz ao primeiro plano questões relativas ao desenho e ao traço. Seu processo de criação implica o acaso, o risco. A aparência de algo sem polimento guarda, nos trabalhos dele, o frescor de obras ainda em movimento. Esse modo de fazer, que não teme revelar seu mecanismo, é edificado por meio de um vocabulário visual marcado pela
Wholewheat or White, 2015, tinta e bastão a óleo e carvão. Na página ao lado, Kappo or Kippi, 2015, tinta a óleo, carvão, lápis, resina e azeite de oliva SELECT.ART.BR
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repetição, configurando uma espécie de sistema de erros. Há um espaço onde o desvio é o método. Quadrados, retângulos, manchas de cor, são ligados a fios orgânicos e emaranhados de maneira tortuosa, nada linear, mas, sim, repleta de tropeços. Suas telas, num equilíbrio tênue e delicado, parecem evocar um pensamento no qual gestos
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firmes e precários convivem de maneira insuspeitada. Para o artista, o momento da falha torna-se traço constituinte da identidade claudicante da obra. O que parece estar em jogo é uma tensão entre cálculo e acaso. É daí que surge a associação entre sua pintura e o fluxo de criação típico da escrita dadaísta, automática, que se alia
ao ato de criar sem revisões, dando valor ao que surge de maneira não planejada. Suas telas negociam, por fim, com o não dito. Aquilo que ganha forma possui o mesmo peso de espaços vazios, e o silêncio guarda sentidos. Desta equação deriva uma delicada aproximação com o desenho e sua forma de estar no mundo.
pat r o c í n i o
A seção Vernissage é um projeto realizado em parceria com galerias de arte que prevê a publicação de um texto sobre a obra de um artista que estará em exposição durante os meses de circulação da edição. fotos: cortesia white cube / Prudence Cuming Associates Ltd
CR í t i c a
Busca-se frescor Cristiana Tejo
Com curadoria de Okwui Enwezor, a 56a Bienal de Veneza é uma versão esmaecida de uma das melhores Documentas de Kassel, orquestrada pelo mesmo curador Impossível chegar à 56a Bienal de Veneza sem ter em mente os milhares de pessoas que têm cruzado ou tentado cruzar o Mediterrâneo em direção à Itália, vindas do mesmo continente de origem do curador Okwui Enwezor, agente SELECT.ART.BR
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Still do vídeo Inzilo (2013), de Mohau Modisakeng, artista que está na representação sulafricana da mostra
que contribuiu para os olhos do mundo da arte se voltarem para a África. Se, por um lado, é importante destacar e celebrar a maior presença de artistas africanos (14%) e a participação do primeiro curador negro na mais antiga e tradicional bienal de arte do mundo (tendo em vista a ainda baixa participação de profissionais não europeus nas mais prestigiadas instituições de arte contemporânea), por outro, há que se perceber a expansão do interesse do mercado de arte em áreas geográficas longe demais das capitais. A presença de artistas fora do eixo já virou obrigatória para os curadores de visão menos eurocêntrica, e isso pode ser notado em mostras nos
últimos anos. Entretanto, um olhar mais atento nos leva a observar que a grande maioria dos artistas oriundos de regiões não hegemônicas que estão agora circulando nas grandes mostras é representada por galerias de prestígio, situadas em larga medida justamente na Europa e nos EUA. Nada contra o mercado e o reconhecimento que artistas incríveis estão começando a receber, muito pelo contrário. A questão que se coloca é a centralidade que o mercado de arte está assumindo nas negociações simbólicas do nosso campo, tornando ainda mais crucial para a visibilidade de um artista a sua inclusão numa galeria que circule bastante. É nesse contexto que encontramos uma bienal cheia de grandes nomes, com expografia elegante e discussões políticas importantes, mas calculadas na medida para não causar demasiadas polêmicas, uma versão muito esmaecida de uma das melhores Documentas de Kassel, orquestrada justamente pelo mesmo curador. Sente-se falta da vivacidade, do frescor, da potência e da imprevisibilidade que a Documenta 11 imprimiu. Foi Okwui Enwezor que se tornou mais conservador ou foi o mundo da arte que ficou tão previsível? Durante os dias de preview corriam os boatos das negociatas de grandes galerias para garantir a presença de seus artistas diante da falta de orçamento da própria bienal para bancar projetos, o que favorece a presença de artistas, mesmo jovens, representados por galerias mais robustas. A entrevista do diretor do Whitney Museum publicada pelo site Hyperallergic também ecoava pelas ruelas de Veneza. Ao falar sobre a nova sede do museu, Adam D. Weinberg afirmou que, além de mostrar arte dos EUA, eles desejam destacar “o trabalho dos galeristas americanos que são os verdadeiros artistas”. Depois do curador como artista, estaríamos entrando na era dos galeristas como curadores/artistas? Quais consequências esse câmbio trará para o campo da arte nos próximos anos? Parece que o poeta português Herberto Helder estava certo: “O mundo não está para futuros”.
António Ole, autor da obra Cenário Urbano (2015, à direita), integra pavilhão angolano. Abaixo, estudo da artista norteamericana Kara Walker para sua versão da ópera Norma, projeto especial comissionado pela Biennale e pelo Teatro La Fenice
56a Bienal de Veneza – All The World’s Futures. Até 22/11, Gardini – Arsenale, Veneza, Itália www.labiennale.org
fotos: antónio ole e cortesia la Biennale di Venezia. na página ao lado: cortesia Brundyn + .
reviews
Legenda
Cinema
Demasiadamente humano Paula Alzugaray
Cineasta pernambucano Lírio Ferreira arma-se de suavidade e virilidade para contar, sem sobressaltos, mito do pecado original “O cinema nasceu no circo”, diz Kaleb, o ilusionista dono do Circo Netuno, personagem de Paulo César Pereio em Sangue Azul, novo longa-metragem de Lírio Ferreira. Ao encenar a “Lenda do Pecado”, que fabula a origem das pedras do arquipélago de Fernando de Noronha, o diretor pernambucano impõe-se
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Daniel de Oliveira como o homem-bala Pedro, em cena do longa-metragem premiado no Festival do Rio e em Paulínia
grandes desafios: enfrenta dramas ancestrais da humanidade, tocando os temas do amor proibido, do medo e da morte, e ainda homenageia o cinema com uma série de citações – mais ou menos sutis – de alguns de seus momentos altos. A primeira cena do filme funciona como um ritual de passagem em que o espectador é pego pelo estômago e lançado ao mar. Com a ótica da câmera subjetiva desde o barco, é transportado juntamente com a trupe do circo, que chega à ilha para uma temporada. No balanço agressivo das ondas, insinuam-se as primeiras citações: às câmeras etílicas de Glauber Rocha e da cinematografia do Dogma dinamarquês. Em terra, homens do circo e da aldeia juntam forças na tarefa de içar a tenda, em luta contra o vento. Editada em preto e branco e foto: divulgação
potencializada pela bela direção de fotografia assinada por Mauro Pinheiro, a sequência valoriza a virilidade masculina, remetendo a um épico da cinematografia do mar, It’s All True. O projeto de Orson Welles de filmar a travessia dos jangadeiros cearenses até o Rio de Janeiro para reclamar seus direitos previdenciários ao presidente Getúlio Vargas ficou inacabado, mas deixou as fotografias de still de Chico Albuquerque, que depois se aprofundaria no tema do jangadeiro na série Mucuripe. É no protagonista Pedro (vivido por Daniel de Oliveira), nativo da ilha que volta como homem-bala, que o mito masculino da lenda local se agiganta. Mas a virilidade, mastro evidente do filme, é evocada ainda pela personagem de Pereio, que reúne em si as origens mágicas do cinema – Meliès – com Marlon Brando e subsequentes gerações de selvagens da motocicleta. Sintomática a relação que o ilusionista estabelece entre a impetuosidade das gangues de motoqueiros e dos artistas de circo: ambos invadem a cidade, virando seus ânimos, alterando seus ciclos. A lenda do pecado original é contada por Mumbebo, pescador vivido pelo cineasta Ruy Guerra. Cego de um olho, é o mago local. O mito completa-se com o panteão das personagens femininas, formado pela mãe de Pedro; a dançarina sensual de nome Teorema – o filme de Pier Paolo Pasolini de 1968 –; e a suave e silenciosa Raquel, irmã e amada de Pedro e, possivelmente, a sereia de sangue azul que o título do filme reverencia. Sem sobressaltos, ao som de Pupillo, baterista do Nação Zumbi, que assina a ótima trilha sonora, o filme se faz em ritmo lento, pausado – efeitos da ilha? Passa a sensação de preferir a via da fantasia à realidade. Mas lembra que, se os deuses vivem no Olimpo, suspensos a alguns palmos do chão, as mitologias nos falam de dramas demasiadamente humanos.
MILão
Milão entra na rota Angélica de Moraes
Sangue Azul, de Lírio Ferreira, nos cinemas a partir de 4/6
Fondazione Prada inaugura em Milão com inteligente arquitetura de Rem Koolhaas e sete mostras, entre as quais uma refinada reflexão sobre o conceito de seriação e cópia O conjunto de prédios recortados com nitidez contra o azul do céu lembra as paisagens surreais de Giorgio de Chirico e o italianíssimo convívio de tradição e contemporaneidade. Por trás da fachada de uma destilaria da primeira década do século passado existente no distrito industrial de Largo Isarco, em Milão, o arquiteto holandês Rem Koolhaas e seu time de colaboradores do OMA (Office for Metropolitan Architecture) criaram um dos mais belos espaços expositivos da atualidade. São 12 mil metros quadrados de construções em uma área de 19 mil metros quadrados, articulados por trás de uma antiga fachada industrial branca e estabelecendo um diálogo de formas em que se destacam dois volumes retangulares: um revestido de granito cinza-chumbo e outro revestido de dourado. Não, não fica excessivo. Koolhaas sabe usar o luxo com elegância. A nova instituição cultural milanesa reúne a coleção de arte de Miuccia Prada, proprietária de uma famosa marca do mundo da moda. No comando da programação de artes visuais da instituição cultural está o curador Germano Celant, um dos teóricos da Arte Povera, que recolocou a Itália na ponta de lança das artes visuais no mundo. Celant lidera um grupo de curadores que, para a realização da programação inaugural do espaço, contou também com o historiador Salvatore Settis. Ele assina a exposição Serial Classics, que acontece tanto em um dos espaços da instituição em Milão quanto na totalidade das
reviews salas da Fondazione Prada em Veneza, sob o título Portable Classic. Trata-se de refinada reflexão sobre o conceito de seriação e cópia, tendo como base as esculturas do período clássico, de tradição greco-romana. Não é uma exposição boring. Ao contrário, traz surpresas e descobertas sobre a prática comum, desde o século 14, de se fazerem cópias de esculturas dos mestres da Antiguidade. Ao copiar, muitos escultores fizeram sutis alterações de formas ou, mesmo, troca de materiais e dimensões. A peça que parece mais antiga, um Hércules Farnese de mais de 2 metros de altura, na verdade é a peça mais recente, fundida em 2001 em resina acrílica e pó de mármore. A cópia mais antiga desse Hércules é um pequenino bronze dourado realizado em 1572 e que parece novíssimo em sua impecável superfície polida. A Fondazione Prada reuniu sete mostras para sua inauguração em Milão. Com exceção da mostra de Settis, todas as demais são sobre arte contemporânea. An Introduction exibe 70 obras que vão dos novos dadaístas dos anos 1970 à arte
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Vista de pátio interno que conduz a espaços expositivos: fusão de clássico e contemporâneo assinada pelo escritório OMA
Serial Classics até 13/8, Fondazione Prada Milão, Largo Isarco, 2, Milão fondazioneprada.org Portable Classic até 13/8, Fondazione Prada Veneza, Cá Corner della Regina, Santa Croce, Veneza fondazioneprada.org
minimal e ao star system do século 21, com obras de Walter De Maria, Yves Klein, Donald Judd, Barnett Newman, Jeff Koons e Gerhard Richter. In Part frisa a predominância dos artistas italianos na coleção Prada, como Lucio Fontana e Pistoletto, ao lado de obras vindas de coleções públicas como as de Bruce Nauman e Richard Serra. Em Trittico, há Eva Hesse, Damien Hirst e Pino Pascali. A programação explora de modo exemplar a inteligente arquitetura de Koolhaas, que cria paredes móveis e uma grande variedade de possibilidades de espaços, trazendo para o centro do conceito construtivo as demandas expositivas da obra de arte. Algo a anos-luz da arquitetura egodescontrol do Museu MaXXI (Roma), de Zaha Hadid. Koolhaas e sua equipe traçaram um novo roteiro de viagem para todos os que já se deslocaram ou ainda vão se deslocar para a 56ª Bienal de Veneza. Agora é obrigatória uma parada em Milão, para fruir um dos espaços de arte contemporânea mais importantes da Itália e do circuito europeu.
São Paulo
CANÇÃO DO EXÍLIO
Memória Descritiva #2 (2013), fotografia da série homônima da portuguesa Catarina Botelho
Luciana Pareja Norbiato
Produção artística de países de língua portuguesa colocase como roteiro para discussão sobre memória e identidade Acomodada na sala sucinta do Sesc-Pinheiros, a mostra curada por Agnaldo Farias realiza o prodígio de transmitir sensações de degredo e distância por meio da economia de obras de artistas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Portugal. Não à toa, a exposição coloca-se como um ensaio que busca articular a produção artística dos países lusófonos. Mas sua limpeza, quase construtiva, desdobra-se numa profusão de sentidos, remontando ao passado para lançar um olhar desencantado sobre a atualidade. Nesse contexto, não só os olhos trabalham para produzir nexos. Nas instalações de O Grivo e Chelpa Ferro, a impressão de deslocamento do imigrante dá-se tanto pelo rearticular de sonoridades banais quanto pela remodulação do som ambiente. Há também o estranhamento físico do confronto com grandes dimensões em Pororoca, de Guto
As Margens dos Mares, até 2/8, Sesc-Pinheiros, Rua Paes Leme, 195, SP
Lacaz, uma imensa escultura de contornos concretistas com grandes aros articulados e entrecruzados. É a matriz europeia da colonização portuguesa que se insere como dado organizacional nas obras de apelo geométrico, em contraponto a uma ou outra reminiscência orgânica que insiste em permanecer. Caso da obra da moçambicana Ângela Ferreira, que sobrepõe horizontalmente duas fachadas de prédios, uma modernista e a outra ultracontemporânea. Os confrontos entre tempos, entre Europa e as terras novas nos remetem à pluralidade identitária intrínseca ao imigrante – em sua permanente dúvida entre agarrar a memória do que já não conserva ou arremeter à incerteza do futuro desconhecido. Paradigmaticamente, é uma artista portuguesa quem funciona como baliza da exposição. As fotografias de Catarina Botelho registram objetos de limpeza, como rodos e esfregões, meticulosamente posicionados em salões de mármore. O atrito entre esses elementos e a ausência humana nas imagens denuncia a perpetuação de um preconceito racial que começa com a dizimação dos nativos americanos e com a mercantilização do negro para servir ao homem branco. Dentre todas as fronteiras flagradas pelos trabalhos, essa, que se constitui no próprio observador, é a que mais necessita ser rompida.
fotos: Catarina botelho. Na página ao lado: bas princen/cortesia fondazione prada
r e vi e w s teatro
Duas décadas de teatro GUSTAVO FIORATTI
Com críticas e artigos de Sábato Magaldi, livro apresenta amplo panorama do teatro entre 1966 e 1989 Se houve mais mudanças no cenário teatral brasileiro entre 1966 e 1989 do que pode imaginar nossa vã filosofia, o crítico teatral Sábato Magaldi tornou-se uma das principais testemunhas oculares desses anos em ebulição, tendo publicado, no período, nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, uma quantia de textos que ultrapassa a casa dos 2,5 mil. Reunidos no livro Amor ao Teatro (Edições Sesc), com organização da escritora Edla van Steen, sua mulher, centenas de críticas e artigos pescados do conjunto compõem uma memória singular das artes cênicas brasileiras, com foco no Rio, em São Paulo e na empolgante aproximação do fim do século 20. Com 1.224 páginas, o livro, naturalmente, retrata ainda um momento político sob a ótica das artes, apontando reflexos do contexto em temas e linguagens cujas questões ainda reverberam como pontos-chave para a compreensão da nossa história. Há menções diversas à censura e ao regime militar, iniciado em 1964 e sepultado na Constituição de 1986, e também às questões estéticas sobreviventes ao solapamento da ditadura, dentre as quais destaca-se a ascensão de diretores ao centro dos holofotes. À peça Macunaíma (1978), marco da contemporaneidade no Brasil assinado pelo diretor Antunes Filho, por exemplo, Magaldi dedica um de seus textos mais longos (no livro, entre as páginas 572 e 576). Há ali um acréscimo sobre essa tomada de poder dos encenadores revelando a admiração do crítico pela figura SELECT.ART.BR
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Amor ao Teatro Edições Sesc, 1.224 págs., R$ 154
do intérprete. “Depois de numerosas voltas, ora com a hegemonia do dramaturgo, ora do diretor, o teatro redescobriu uma verdade elementar. Sua especificidade se define pela presença física do ator”, escreveu. Não é esse o único comentário que procura estabelecer protagonismos. Em outubro de 1971, Magaldi publicou um texto (no livro Atrizes Brasileiras), no qual defende a posição da mulher no teatro. “Atrizes brasileiras são as verdadeiras líderes da nossa vida teatral”, afirma, citando Bibi Ferreira, Maria Della Costa, Tônia Carrero e Marília Pêra. Dercy Gonçalves destacou-se, ali, pelo despudor, “ela abole a Censura e exprime sem restrições o que lhe passa na cabeça”, disse o crítico sobre a peça Tudo na Cama (1973). Sábato Magaldi também apresentou com cuidado e sabedoria o cenário fomentado pelas companhias brasileiras, apontando o Teatro Oficina como figura central, “disposto a cada criação a dar um mergulho de cabeça que poderia simplesmente espatifá-la”, como bem define em um texto de 1970. Por fim, com eruditismo, urdiu seu estilo sem economizar palavras sinceras, a exemplo de uma crítica ao espetáculo Rock and Roll (1983), com texto de José Vicente, cuja montagem de Antonio Abujamra teria liquidado “inapelavelmente”. Foto: divulgação:
reviews Minneapolis
O mundo é Pop? Fernanda Lopes
Mostra apresenta a Arte Pop como um impulso nômade, contagioso, que se espalhou não só pela Inglaterra e os EUA, mas também por Japão e América Latina “Sobre o que exatamente estamos falando quando falamos de Arte Pop?” Essa parece ser a pergunta mote para International Pop, em cartaz no Walker Art Center (Minneapolis, EUA). A mostra, com curadoria de Darsie Alexander e Bartholomew Ryan, é resultado de cinco anos de pesquisa e se apresenta como uma das mais ambiciosas exposições históricas realizadas pelo museu. O desconforto diante da quase impossibilidade de uma resposta satisfatória a uma pergunta que beira a retórica poderia ser o grande problema da exposição, mas acaba rendendo alguns de seus melhores momentos. Para além do clichê da história oficial – que situa a Arte Pop como o momento entre o fim dos anos 1950 e princípios dos anos 1960, inicialmente identificado na Inglaterra e rapidamente assimilado e repotencializado nos Estados Unidos, quando jovens artistas deixaram de lado o abstracionismo para retomar a figura, interessados em conceitos como o kitsch, o consumo, a sociedade de massa e o cotidiano – a curadoria busca apresentar a Pop como um impulso nômade, contagioso, que se espalhou não só pela Inglaterra e EUA, mas também por Japão, América Latina e o restante da Europa, onde foi celebrada, rejeitada, transformada e ressignificada a partir de outros contextos sociais, políticos e econômicos. Essa pluralidade de caminhos e possibilidades se traduz em números: International Pop
International Pop até 29/9, Walker Art Center, 1750 Hennepin Ave, Minneapolis, EUA www.walkerart.org
reúne cerca de 125 obras de mais de cem artistas de mais de dez países. A possibilidade de reexaminar um dos momentos fundadores da arte contemporânea provavelmente foi o grande motivador para que artistas que nunca se consideraram herdeiros da “tradição Pop” autorizassem a participação de seus trabalhos. O conjunto de obras brasileiras, um dos maiores da exposição, reúne produções tão diferentes (misturadas a outras matrizes e referências), e ao mesmo tempo tão próximas (no que se refere ao interesse pelo uso de novos procedimentos no campo da arte, além do posicionamento político), quanto a de nomes como Waldemar Cordeiro, Nelson Leirner, Antonio Manuel, Antonio Dias, Anna Maria Maiolino, Raymundo Colares, Rubens Gerchman, Claudio Tozzi e Antônio Henrique Amaral. A mostra ganha contornos mais potentes no catálogo, com textos inéditos, escritos por pesquisadores de diferentes partes do mundo. Em setembro, essa discussão ganha novo desdobramento quando a Tate Modern inaugura, em Londres, a mostra The World Goes Pop, sobre o mesmo tema.
À direita, Homenagem séc. XX/XXI (1967), de Antônio Henrique Amaral, que integra mostra do Walker Art Center (Minneapolis, EUA) fotos: © 2014 Artists Rights Society (ARS), New York/AUTVIS, Sao Paulo
em construção
W e s e ly : u lt r a l o n g a e x p o s i ç ã o MÁRION STRECKER 106
F OTO R ic a r d o va n S teen
A nova sede do Instituto Moreira Salles em São Paulo está sendo erguida na Avenida Paulista, entre as ruas Bela Cintra e Consolação. O projeto é do escritório Andrade Morettin Arquitetos e inclui espaço expositivo, biblioteca e auditório. A obra teve início em dezembro de 2013, mas foram necessários muitos meses de negociações para que, um ano depois, o fotógrafo alemão Michael Wesely, comissionado pelo IMS, pudesse começar a instalar nas vizinhanças as câmeras fotográficas que vão registrar artisticamente a construção. Não será um registro convencional. Desde 1988, Wesely faz fotos de longuíssima exposição, cujo tempo de captura da imagem pode estender-se por anos a fio. Ele fez um trabalho similar para o MoMA de Nova York, entre 2001 e 2004, que entrou para o acervo do museu e virou livro. Desta vez, ele preparou quatro câmeras analógicas e duas digitais. “Tempo de exposição é uma ferramenta que uso para perturbar a imagem. Quase apago aquilo que você deveria ver, e quase vê. É o inverso do momento representativo”, diz Wesely, cujas fotos devem ficar prontas em 2017.
Casa de L’Ardiaca, Barcelona, 2015