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BÁRBAR A WAGNER NO MAN’S L AND L AERCIO REDONDO VIRGINIA DE MEDEIROS A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A FEV/MAR 2016 ANO 05

EDIÇÃO 28 R$ 16,90

ISSN

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EDUARDO GALE ANO

2 236-393 9

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FEV / MAR 2016 Detalhe de Vênus ao Espelho (1647-51), de Diego Velázquez, após ser atacada por militante sufragista na National Gallery de Londres. A imagem integra a obra Elementos de Beleza (2015) de Carla Zaccagnini

FEMINISMO WWW.SELECT.ART.BR

FEMINISMO

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ÍNDEX

4

32

36

40

72

88

FOGO CRUZADO

ENTREVISTA

CURADORIA

MÚSICA

REVIEWS

O FIM DO MACHISMO?

PRÁTICAS DE DISCRIMINAÇÃO

MINAS DAS QUEBRADAS

ELEMENTOS DE BELEZA

Intelectuais dão

A FALA É O INSTRUMENTOFALO

Artistas denunciam

Funkeiras, rappers e

Carla Zaccagnini pesquisa

suas respostas à

O argumento é da crítica

o assunto

MCs soltam o verbo

os ataques a obras de

pergunta de seLecT

de arte Lisette Lagnado

na militância

arte pelas suffragettes

66 INTERNACIONAL

NO MAN’S LAND Exposição na Rubell Family Collection em Miami, reúne cem obras de artistas mulheres

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FOTO: OBRA DE SARAH LUCAS, CORTESIA RUBELL FAMILY COLLECTION

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E D I TO R I A L

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AFOGANDO EM NÚMEROS Uma pesquisa realizada pela ArtNews, em

interinamente o comando do MAC-USP,

meados de 2015, concluiu que, depois de

após a renúncia do diretor Hugo Hasegawa,

décadas de teorias e ativismos feministas,

em novembro passado.

pós-colonialistas, antirracistas e queer, a

Em entrevista a Márion Strecker, a crítica

maioria esmagadora de profissionais do

Lisette Lagnado, que foi curadora-geral da

mundo da arte continua sendo “branca,

27ª Bienal de São Paulo, em 2006, afirma que

euro-americana, heterossexual, privilegiada

o evento paulistano apresenta um padrão

e, acima de tudo, masculina”.

histórico de presença de dois terços de

Segundo a publicação norte-americana,

homens ante um terço de mulheres. Estes

a discriminação sofrida por mulheres

já seriam motivos suficientes para justificar

é reincidente em todas as esferas:

uma edição de seLecT inteiramente

representação em galerias, cotações de

dedicada ao feminismo, não fossem os

preços em leilões, cobertura da imprensa,

dados acima ofuscados por atentados

inclusão em coleções, porcentagem em

ainda mais graves e intoleráveis contra a

grandes mostras coletivas, como a Bienal

integridade e os direitos da mulher brasileira.

de Veneza e a Documenta, e exposições

Dedicamos esta edição às diretoras

individuais em grandes instituições. Os

(enquanto produzíamos a edição, tivemos a

números são exatos: artistas mulheres

boa notícia de que a Tate Modern anunciou

são brindadas com menos de 30% das

a primeira mulher a assumir o mais alto

exposições individuais nos principais

cargo do importante museu britânico), às

museus dos Estados Unidos; elas são

executivas, às aprendizes. Às professoras e

apenas três em cada dez artistas

alunas. Às mães, trabalhadoras e ativistas.

representados em galerias comerciais dos

Às pioneiras. Mais que tudo, às aventureiras.

Estados Unidos.

Como Cris Carvalho, ex-atleta de elite, ex-

Um levantamento da seção Mundo

diretora-técnica do Projeto Mulher e do

Codificado desta edição de seLecT,

Núcleo Aventura, pioneira das corridas de

reunindo dados de instituições brasileiras e

aventura no Brasil.

internacionais sobre a participação feminina

Porque aventura é o que nos move.

em acervos e entre os cargos de curador e diretor, atesta que o Brasil está longe de ser pioneiro na reversão dessa tendência. Convidamos o nosso leitor a constatar no infográfico do Mundo Codificado que, nos acervos das instituições pesquisadas do Rio de Janeiro e São Paulo, a disparidade é gritante. Embora, na maioria dos casos, as mulheres se sobressaiam nos cargos executivos (55%, 58% ou 65% contra 30% em um caso), elas não ocupam o de direção. A exceção, até o fechamento desta edição,

Paula Alzugaray

era Katia Canton, que em janeiro assumiu

Diretora de Redação

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SEÇÕES

6 12 14 28 34 96

Editorial Cartas Selects / Agenda Acervos Itaú Cultural Mundo Codificado

57

5

PORTFÓLIO

BÁRBARA WAGNER A dança desafia o retrato na obra fotográfica da artista convidada para a

Em Construção

32ª Bienal

82 COMPORTAMENTO

MENINAS SUPERPODEROSAS As novas líderes feministas usam as redes sociais para articular grupos e difundir ideias igualitárias

78

49

PESQUISA

LITERATURA

MACHISMO CIENTÍFICO

MULHERES DE GALEANO

Preconceitos e vícios

O derradeiro livro

comportamentais estão

do escritor uruguaio

por trás da escassez de

celebra mulheres

mulheres cientistas

famosas e anônimas FOTOS: BÁRBARA WAGNER, CORTESIA AMPARO 60, HELENA WOLFENSON, DIVULGAÇÃO

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24 – 28/02 Arco, Madri 04 – 08/03 Independent, Nova York 24 – 26/03 Art Basel Hong Kong

20/02 – 25/03 2016 Paulo Nimer Pjota Sala Oeste Thiago Martins de Melo Salas Norte e Leste

Imagem: Paulo Nimer Pjota

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Rua da Consolação 3358 Jardins São Paulo SP 01416 – 000 Brazil + 55 11 3081 1735 www.mendeswooddm.com facebook.com/mendeswood @mendeswooddm

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EXPEDIENTE

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EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY

DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN EDITORA DE ARTE: MARIA ELISA ZAIA REPORTAGEM: LUCIANA PAREJA NORBIATO REPORTAGEM DIGITAL: CAMILA RÉGIS CONSELHO EDITORIAL: GISELLE BEIGUELMAN E MÁRION STRECKER

COLABORADORES

Ana Maria Maia, Andrea Lombardi, Flávia Ribeiro, Helena Wolfenson, Luana Saturnino Tvardovskas, Mario Gioia e Nina Gazire

PROJETO GRÁFICO

Ricardo van Steen e Cassio Leitão

SECRETÁRIA DE REDACÃO COPY-DESK E REVISÃO PRÉ-IMPRESSÃO

CONTATO

MARKETING

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Roseli Romagnoli Hassan Ayoub High Pass

faleconosco@select.art.br

DIRETOR: Rui Miguel ASSISTENTE DE MARKETING: Andreia Silva

DIRETOR NACIONAL: José Bello Souza Francisco DIRETORA: Ana Diniz GERENTES EXECUTIVOS DE PUBLICIDADE: Batista Foloni Neto, João Fernandes, Tania Macena e Rita Cintra SECRETÁRIA DIRETORIA PUBLICIDADE: Regina Oliveira EXECUTIVA DE PUBLICIDADE: Andréa Pezzuto ASSISTENTE DE PUBLICIDADE: Eyres Mesquita ASSISTENTE ADM. DE PUBLICIDADE: Ederson do Amaral COORDENADORES: Gilberto Di Santo Filho CONTATO: publicidade@editora3.com.br RIO DE JANEIRO-RJ: COORDENADORA DE PUBLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.: (21) 2107-6667 / Fax (21)2107-6669 BRASÍLIA-DF: Gerente: Marcelo Strufaldi. Tel.: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 ARACAJU-SE: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962. BELÉM-PA: Glícia Diocesano - Dandara Representações - Tel.: (91) 3242-3367 / 8125-2751. BELO HORIZONTE - MG: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 / 99831783. CAMPINAS-SP: Wagner Medeiros - Parlare Comunicação Integrada - Tel.: (19) 8238-8808 / 3579-8808. CURITIBA-PR: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 / 9962-9554. FLORIANÓPOLIS-SC: Anuar Pedro Junior e Paulo Velloso - Comtato Negócios; Tel./Fax: (48) 9986-7640 / 9989-3346. FORTALEZA-CE: Leonardo Holanda - Nordeste MKT Empresarial - Tel.: (85) 9724-4912 / 88322367 / 3038-2038. GOIÂNIA-GO: Paula Centini de Faria – Centini Comunicação - Tel. (62) 3624-5570 / 9221-5575. PORTO ALEGRE -RS: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel./Fax: (51) 3388-7712 / 9985-5564 / 8157-4747. RECIFE-PE: André Niceas e Eduardo Nicéas - Nova Representações Ltda - Tel./Fax: (81) 3227-3433 / 9164-1043 / 9164-8231. SP/RIBEIRÃO PRETO: Andréa Gebin - Parlare Comunicação Integrada; Tel.s: (16) 3236-0016 / 8144-1155. BA/SALVADOR: André Curvello - AC Comunicação - Tel./ Fax: (71) 3341-0857 / 8166-5958. VILA VELHA-ES: Didimo Effgen-Dicape Representações e Serviços Ltda. - Tel./Fax (27)3229-1986 / 8846-4493 Internacional Sales: Gilmar de Souza Faria - GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062. MARKETING PUBLICITÁRIO - DIRETORA: Isabel Povineli GERENTE: Maria Bernadete Machado ASSISTENTES: Marília Trindade e Marília Gambaro. REDATOR: Bruno Módulo. DIR. DE ARTE: Victor S. Forjaz.

ASSINATURAS E OPERAÇÕES

CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

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Três Comércio de Publicações Ltda. Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP

(11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES) ASSINE www.assine3.com.br EXEMPLAR AVULSO www.shopping3.com.br

SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661-7320 COMERCIALIZAÇÃO: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA EM BANCAS PARA TODO O BRASIL: FC Comercial e Distribuidora S.A., Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678, Sala A, Osasco - SP. Fone: (11) 3789-3000. IMPRESSÃO: Log & Print Gráfica e Logística S.A.: Rua Joana Foresto Storani, 676, Distrito Industrial, Vinhedo - SP, CEP: 13.280-000

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COLABORADORES

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ana maria maia

Jornalista e mestre em História da Arte. Foi curadora-assistente do 33º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP - portfólio P 57

helena wolfenson

Formada em Jornalismo pela PUCSP. Em 2011, estudou fotografia documental no International Center of Photography, NY - comportamento P 82

flávia ribeiro

andrea lombardi

mario gioia

Artista plástica. Sua obra contempla pesquisas no campo da escultura e tem o desenho como fundamental instrumento - especial literatura P 49

Pesquisadora e mestranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com enfoque em novas mídias em museus. Trabalha no MAM-SP - coluna móvel P 30

Graduado pela ECA-USP, coordena o projeto Zip’Up (Zipper Galeria), integra o grupo de críticos do Paço das Artes e do Programa de Exposições do CCSP - reviews P 88

nina gazire

luana saturnino tvardovskas

Professora do Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário Una de Belo Horizonte, repórter freelance, com mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP - reviews P 88

Historiadora (Unicamp) e autora do livro Dramatização dos Corpos: Arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina (Intermeios, 2015) - coluna móvel P 31

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Zoe Zapot • Blossom • série My Trees

em breve: Zoe Zapot • My Trees • 8 de Março a 30 de Abril SP-Arte • 7 a 10 de Abril Vila Modernista - Alameda Lorena 1257 - casa 2 Jardim Paulista - São Paulo - SP + 55 11 3825 0507 instagram.com/galeria_de_babel facebook.com/galeriadebabel galeriadebabel.com

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Alfredo de Stéfano Alfredo Nugent Setubal Andrea Micheli Andreas Heiniger Ara Guler Araquém Alcântara Cliff Watts Dimitri Lee Elliott Erwitt Kamil Firat Kevin Erskine Luciano Candisani Luis Gonzalez Palma Julio Landmann Mio Nakamura Pablo Boneu Paolo Ventura Simon Roberts Steve McCurry Thomas Hoepker William Miller Zak Powers Zoe Zapot

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C A R TA S

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Comprei hoje na banca! Gostei bastante da matéria (Dez Fartos Anos, seLecT 27); acho importante colocar o colecionismo dessa maneira mais prática e menos romântica, mostrando o papel do colecionador para o sistema da arte. Camilla Barella, via e-mail

Muito bom o artigo sobre colecionadores ativos. Dominique Valansi,

Há um Paul Klee no MAC-USP que esteve na exposição de Arte Degenerada, organizada pelos nazistas com obras confiscadas, que depois foram vendidas a colecionadores oportunistas ou salvadores, porque o outro destino possível era a destruição da obra. Se Chatô se aproveitou do mercado de obras confiscadas para fazer o acervo do Masp, salvou várias, mas agora tem de devolver, sim. (Comentáriosobre a matéria Ligações Perigosas, seLecT 27). Paula Braga, via Facebook

via Facebook Escreva-nos Rua Itaquera, 423,

Obrigado pelo texto na seLecT. Está realmente ótimo. Celso Fioravante,

Pacaembu, São Paulo - SP

via e-mail

www.select.art.br

CEP 01246-030

faleconosco@select.art.br

A seLecT é uma publicação que hoje se faz necessária quando se sabe que temos tão poucas referências do que se faz de bom em arte contemporânea no Brasil. Gauche Marques,

facebook.com/selectrevista twitter.com/revistaselect plus.google.com/+SelectArtBr instagram.com/revistaselect

via Facebook

S E L E C T E X PA N D I D A ONLINE FALA MARCIA

APERTE O PLAY

SÓ ELAS

Diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Marcia Barbosa fala em entrevista exclusiva à seLecT sobre os desafios de ser mulher e pesquisadora dentro do competitivo mundo das ciências exatas.

Confira no site uma playlist criada especialmente pela seLecT com músicas de rappers e funkeiras que se tornaram vozes potentes dentro da militância feminista. Faixas de Luana Hansen, MC Xuxu e MC Soffia integram a seleção.

Em cartaz em Miami, a mostra No Man's Land reúne obras de mais de 100 artistas mulheres. Parte da Rubell Family Collection, os trabalhos são de nomes como Cindy Sherman (foto), Kara Walker e Sonia Gomes. Veja no site uma galeria de imagens com o melhor da exposição.

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FOTO: CORTESIA RUBELL FAMILY COLLECTION

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AGENDA

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S Ã O PA U LO

MULHERES EM SELEÇÃO AFETIVA Tertúlia, até 27/2, Galeria Fortes Vilaça, Rua Fradique Coutinho, 1.500 | www.fortesvilaca.com.br Na mostra, 15 anos de atuação no cenário nacional das artes visuais são recontados por meio da produção de mulheres artistas que atualmente são representadas ou já estiveram ligadas à Galeria Fortes Vilaça. A seleção “afetiva”, feita pela própria equipe do espaço, mescla nomes de peso a artistas incipientes. Entre elas figuram Adriana Varejão, Agnieszka Kurant, Alejandra Icaza, Beatriz Milhazes, Erika Verzutti, Jac Leirner, Janaina Tschäpe, Leda Catunda, Lucia Laguna, Marina Rheingantz, Marine Hugonnier, Rivane Neuenschwander, Sara Ramo, Tamar Guimarães (acima, frame do vídeo Tropical Blow Up, 2009) e Valeska Soares. A escolha por gênero não se deu por acaso: aproveita o momento em que o feminismo voltou com força ao debate e, de quebra, homenageia o protagonismo feminino na história da arte, exemplificado ao longo dessa trajetória por referências como Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, Lygia Clark e Lygia Pape, Mira Schendel e Maria Martins, por exemplo. O aspecto histórico, aliás, vem contemplado na expografia, mesmo sem a distribuição cronológica das obras. Aos trabalhos selecionados, entre icônicos e atuais, mesclam-se documentos como fotos, reportagens e postais que emprestam o testemunho de época sobre exposições, premiações e fatos referentes às artistas em exibição. O título, Tertúlia, remete às antigas reuniões de literatos e artistas para debater temas de seu ofício, e indica o tom da mostra.

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LONDRES

UM NOVO OLHAR A presença massiva de homens no seleto grupo de diretorias de instituições não é uma novidade. Nos museus, não é diferente. Entretanto, a Tate Modern anunciou uma decisão que vai na contramão do monopólio masculino. Frances Morris (à dir), 57, foi escolhida para assumir a diretoria do museu britânico, um dos mais visitados do mundo. Funcionária desde 1987, Morris participou de perto da abertura da Tate Modern, em 2000. Naquele mesmo ano se tornou Chefe de Exposições e, em 2006, assumiu a Diretoria de Coleção de Arte Internacional, departamento no qual se firmou como figura chave para diversificação do acervo. Mas sua grande contribuição para o espaço foi a atenção dada a artistas mulheres, promovendo aquisições e grandes retrospectivas femininas como as de Louise Bourgeois, em 2007, Yayoi Kusama, em 2012, e Agnes Martin, em 2015. Formada em história da arte pela Universidade de Cambridge, a curadora assume o cargo em um ano crucial para instituição, que passará por uma grande reforma física, assinada pelo renomado escritório de arquitetura Herzog & de Meuron. Com inauguração prevista para 17 de junho de 2016, a sede repaginada receberá uma extensão de 20,7 mil metros quadrados, deixando a Tate Modern com um espaço expositivo 60% maior.

S Ã O PA U LO

SOM DO SILÊNCIO Notações - Chiara Banfi, até 5/3, Galeria Vermelho, Rua Minas Gerais, 350, SP Investigações sobre o som são uma constante na produção de Chiara Banfi (à esq. Confluência 5, 2015), que no início de sua carreira apareciam como desenhos, pinturas e performances. Na individual, a artista trouxe como tônica de seus trabalhos o silêncio. Entretanto, não se trata de um silêncio sem sonoridade, mas de um estudo sobre vibrações não percebidas pelo ouvido humano. Em obras como Pausa de Bach (2016), Banfi reuniu 12 livros com partituras de Johann Sebastian Bach e apagou com tinta nanquim as notações, deixando à mostra apenas símbolos de pausa. Já em Pauta (2016), turmalinas incrustadas em cristais de quartzo e organizadas em cinco linhas formam uma espécie de partitura rítmica. FOTOS: DO ALTO PARA BAIXO, TATE PHOTOGRAPHY E CORTESIA GALERIA VERMELHO. NA PÁGINA AO LADO, CORTESIA GALERIA FORTES VILAÇA

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AGENDA

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RIO DE JANEIRO

ÍCONE EM EXCURSÃO Frida Kahlo - Conexões entre Mulheres Surrealistas no México, até 27/3, Caixa Cultural RJ, Av. Almirante Barroso, 25. Depois de receber 600 mil espectadores em sua temporada no Instituto Tomie Ohtake (SP), a mostra organizada pela instituição paulistana chega ao Rio de Janeiro, ressaltando o caráter feminista e pioneiro da artista mexicana Frida Kahlo (nesta pág. Autorretrato con collar, 1933), que influenciou toda uma geração de mulheres artistas mexicanas ou radicadas naquele país. Cerca de cem trabalhos de nomes como María Izquierdo, Remedios Varo, Leonora Carrington, Rosa Rolanda, Lola Álvarez Bravo, Lucienne Bloch, Alice Rahon, Kati Horna e Bridget Tichenor dialogam com 30 obras de Frida.

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RIO DE JANEIRO

MÉTRICA MULTIMÍDIA O Princípio É o Meio - João Bandeira, até 6/3, Oi Futuro Ipanema, Rua Visconde de Pirajá, 54 Inspirada em um dos poemas de Quem Quando Queira, livro de João Bandeira (à esq., Quadros) publicado pela Cosac Naify no ano passado, a exposição explora a qualidade multimídia da produção do artista, poeta e compositor, que tem músicas em parceira com Luiz Tatit, Arnaldo Antunes e Alice Ruiz, e integrou nos anos 1980 o grupo Poemix. Fotografia, vídeo, desenho, serigrafia e elementos tridimensionais povoam duas galerias de um dos raros espaços na atualidade com um programa consistente de exibição e estudo da produção contemporânea de poesia visual.

S Ã O PA U LO

VÍDEO PRECURSOR A Terminologia na Linha - Bill Lundberg, 17/2 a 24/3, Galeria Jaqueline Martins, Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 74 As relações humanas dão a tônica do trabalho do norte-americano Bill Lundberg, atualmente radicado em um pequeno município do estado do Rio de Janeiro ao lado da mulher, a também videoartista Regina Vater. Na mostra, ele exibe trabalhos icônicos, como Morphologies (1984), tripla projeção dos artistas Antoni Muntadas, Antoni Miralda e Alison Knowles dormindo. Desenhos e aquarelas lançam luz aos esquemas de montagem por trás de ilusões de ótica presentes em suas videoinstalações, como Discord 2 (1980, à dir.).

FOTOS: DO ALTO PARA BAIXO, DIVULGAÇÃO E CORTESIA GALERIA JAQUELINE MARTINS. NA PÁGINA AO LADO, GERARDO SUTER/2015 BANCO DE MÉXICO DIEGO RIVERA & FRIDA KAHLO MUSEUMS TRUST

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AGENDA

S Ã O PA U LO

DESPEDIDA DO PAÇO Programando o Visível - Harun Farocki, até 27/3, Paço das Artes, Av. da Universidade, 1, Cidade Universitária | www.pacodasartes.org.br Com a mostra do videoartista alemão Harun Farocki, o Paço das Artes despede-se de sua sede na Cidade Universitária, ainda sem destino certo. Como o título indica, Programando o Visível incita à reflexão crítica sobre a miríade de imagens difundidas cotidianamente na atualidade, destacando a migração do uso de imagens captadas com câmeras pela computação gráfica. Além do filme Catch Phrases – Catch Images (Frases de Impacto - Imagens de impacto): Uma conversa com Vilém Flusser (1986), integram a mostra as instalações Parallel I-IV (Paralelo I-IV, 2014, frame à esq.), Interface (1995), inéditas no Brasil.

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S Ã O PA U LO

FORÇA JOVEM Arte Atual - Da Banalidade vol. 1: Ana Elisa Egreja, Cabelo e Julia Kater, 3/2 a 6/3, Instituto Tomie Ohtake, Av. Faria Lima, 201 Plataforma do Instituto Tomie Ohtake criada em 2013 para dar visibilidade a jovens artistas com edições anuais temáticas, o projeto Arte Atual inicia a temporada 2016 com trabalhos de Ana Elisa Egreja, Cabelo e Julia Kater (abaixo, frame de Breu, 2015). Em pinturas, serigrafias, instalações e vídeos, os três artistas exploram relações sobre as diversas formas de banalidade, na forma de frivolidade, futilidade, mau gosto, tolice, do que passa despercebido, do pequeno e do ordinário.

BUENOS AIRES

SALA ESPECIAL NO MALBA Programa feminino, sem duração definida, Malba, Av. Figueroa Alcorta, 3.415 | www.malba.org.ar Ao assumir a diretoria artística do Malba, Agustín Perez Rubio criou um programa especial a longo prazo para posicionar e valorizar a produção das artistas latinoamericanas que não tiveram o devido reconhecimento em sua época e na história da arte. Em 2015, a sala 3 do museu, no primeiro andar, tornou-se palco de mostras como as individuais da alemã radicada em Buenos Aires Annemarie Heinrich e da peruana Teresa Burga. No segundo ano de ocupação feminina desse espaço, é a vez da suíço-brasileira Claudia Andujar (acima, detalhe de Marcados, c. 1980) mostrar os registros da comunidade ianomâmi, além de Alicia Penalba, argentina radicada na França, ganhar sua primeira exposição em um museu argentino. SELECT.ART.BR

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FOTOS: DO ALTO PARA BAIXO, HARUN FAROCKI FILMPRODUKTION , CORTESIA GALERIA VERMELHO EFOTO: CORTESIA WILLIAM INSTITUTO GOMES/INHOTIM TOMIE OHTAKE

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AGENDA LIVRO

MÃO-BOBA O Pulso Que Cai e As Tecnologias do Toque - Fabiana Faleiros, Ikrek Edições, 96 págs., R$ 40 | www.ikrek.com.br A irreverente Fabiana Faleiros transformou em livro sua ideia inaugurada, entre junho e agosto do ano passado, em mostra no Solo Shows, espaço expositivo instalado no apartamento do curador Tobi Maier. No livro, a artista apresenta em desenhos (abaixo) e textos uma série de possibilidades gestuais contra a mecanização da mão em tarefas utilitárias. O objetivo é o resgate da flexibilidade manual feminina para que ela retome o contato com o próprio corpo e, consequentemente, reaprenda a arte do prazer solitário...

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S Ã O PA U LO

CORPO SUTIL O Útero do Mundo, 5/9 a 18/12, MAM São Paulo, Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, Parque do Ibirapuera | www.mam.org.br A curadoria de Veronica Stigger traz cerca de 170 trabalhos do acervo do MAM-SP, realizados por cerca de 90 expoentes da arte moderna e contemporânea, como Márcia Xavier (acima, sem título, 1995) e Sandra Cinto. As obras enfocam o corpo feminino “como lugar de explosão do reprimido e do recalcado, daquilo que não se conforma aos padrões gestuais e comportamentais vigentes na cultura ocidental, ou, em outras palavras, de um impulso desvairado e metamórfico; corpo este que explode, se desorganiza, se secciona, se transforma”, nas palavras da curadora.

S Ã O PA U LO

CORAÇÃO INTERATIVO Heart Dialogue - Anaisa Franco, 19/2 a 26/3, Galeria Lume, Rua Gumercindo Saraiva, 54, SP Reflexões sobre a máquina e o humano, o artificial e o orgânico, formam o fio condutor da primeira individual de Anaisa Franco (à esq., Onirical Reflections, 2013) na Lume. Com curadoria de Daniela Bousso, a exposição lança um novo olhar sobre essas oposições ligadas pela tecnologia. Ao todo são 34 trabalhos desenvolvidos em suportes como desenho, videoprojeção e animação. Entre os destaques está a escultura interativa Expanded Eye. No formato de um olho gigante e transparente, a obra utiliza uma câmera infravermelha, um projetor e um software de reconhecimento facial para multiplicar os olhos de quem a vê. SELECT.ART.BR

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FOTOS: DO ALTO PARA BAIXO, ROMULO FIALDINI/MAM-SP, CORTESIA IKREK E CORTESIA GALERIA LUME

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RIO DE JANEIRO

INÍCIO COLETIVO Entre #3, até 10/3, Galeria Portas Vilaseca, Rua Ataulfo de Paiva, 1.079, loja 109 | www.portasvilaseca.com.br Como é costume na abertura de seu calendário anual, a galeria Portas Vilaseca promove uma exposição coletiva com uma gama abrangente dos artistas que representa. Na terceira edição da mostra Entre, os artistas Ayrson Heráclito, Daniel Murgel, Iris Helena (acima, detalhe de Vizinhança, 2015), Ismael Monticelli, Jonas Aisengart, Jorge Soledar, Lin Lima, Pedro Victor Brandão e Ramonn Vieitez mostram uma compilação do que mais recente vêm produzindo. A curadoria é do galerista Jaime Portas Vilaseca.

CURITIBA

JAPÃO REVISITADO Olhar InComum, 17/3 a 7/6, Museu Oscar Niemeyer, Rua Marechal Hermes, 999 | www.museuoscarniemeyer.org.br Com trabalhos em diversos suportes – entre os quais pintura, gravura, design, fotografia, vídeo, escultura, cerâmica, poesia, caligrafia, instalação, HQ, ilustração, música e performance –, a exposição tem seleção da curadora nipo-brasileira Michiko Okano. Nela, a “nova onda nipônica” ganha tradução pelas obras de 21 artistas que têm laços de sangue com a terra do sol nascente. A tradição visual do Japão surge remodelada nas apropriações contemporâneas de nomes como Erica Kaminishi, Julia Ishida (à esq., obra sem título) e Sandra Iromoto. FOTOS: DO ALTO PARA BAIXO, CORTESIA GALERIA PORTAS VILASECA E CORTESIA MUSEU OSCAR NIEMEYER

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AGENDA

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ARTE E EDUCAÇÃO

DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO A artista nova-iorquina Joan Jonas é uma lenda viva. Pioneira da performance, da body art e da videoarte, escreveu capítulos fundamentais da história da arte contemporânea. Influenciou seus pares e as novas gerações desde os primeiros trabalhos experimentais, do fim dos anos 1960 até as aulas do Programa da Arte, Cultura e Tecnologia do MIT (Massachusetts Institute of Technology), onde leciona desde 1998. Aos 78 anos, ela está mais ativa do que nunca. Representou os EUA na 56a Bienal de Veneza, em 2015, e acaba de ser nomeada orientadora da edição 2016 do Programa Rolex de Mestres e Discípulos, que será mais um canal de vazão da sua importante atuação como educadora. Voltado para o apoio de jovens artistas de todo o mundo, o programa filantrópico internacional da marca suíça de relógios foi criado para incentivar a transmissão da experiência artística de geração em geração. A cada dois anos, sete mentores para as áreas de artes visuais, arquitetura, cinema, dança, literatura, música e teatro são indicados por um comitê internacional. Joan Jonas será mentora de um jovem artista; Philip Glass será mentor de um jovem músico; Sir David Chipperfield, de um jovem arquiteto; e Mia Couto, de um jovem escritor. Para Jonas, será mais uma oportunidade de exercitar sua habilidade de interlocução com jovens artistas e de transmissão de seu extenso conhecimento. Para o discípulo – que será escolhido também por comitê –, a chance de beber da fonte ao longo de um ano; além de um prêmio de 25 mil francos suíços e mais de 25 mil de apoio para a realização de um novo trabalho.

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De cima para baixo, Joan Jonas e o cão Ozu na instalação multimídia apresentada na 56 a Bienal de Veneza;o escritor Mia Couto, o coreógrafo Ohad Naharin e o músico Philip Glass

FOTOS: CORTESIA ROLEX

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New York

Panorama of the City of New York, Queens Museum. Photography: Spencer Lowell

Randall’s Island Park May 5–8, 2016 Preview Day Wednesday, May 4 frieze.com

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FRASES

O homem é uma fêmea imperfeita. Elizabeth Gould Davis

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FALA, MULHER A p… da b… é minha, dou pra quem eu quero.

Eu dou pra todo mundo, mas não dou pra qualquer um.

Tati Quebra Barraco

Leila Diniz

As mulheres, durante séculos, serviram de espelho aos homens por possuírem o poder mágico e delicioso de refletir uma imagem do homem duas vezes maior que o natural. Virginia Woolf

A mulher é capaz de fazer tudo que o homem faz, exceto xixi, de pé, contra um muro. Colette

Toda dominação pessoal, psicológica, social e institucionalizada nesta terra pode ser remetida a uma mesma fonte original: as identidades fálicas dos homens.

Andrea Dworkin Se Deus é macho, então o macho é Deus. O patriarca divino castra as mulheres enquanto ele for autorizado a viver na imaginação humana.

Mary Daly

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In this world, what it feels like for a girl.

Selvática, ela come a selva de fora Ela vem da selva de dentro! Selvática, ela pare a própria hora Ela vale em pensamento! E no final ideal não terás domínio sobre mulher alguma!

Madonna

Karina Buhr

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PRONTOS PARA O OURO Com a cobertura da Editora Três, você estará sempre a frente nas atualizações sobre os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Nesta edição tem uma nova matéria para você acompanhar. Acompanhe também as versões digitais e os sites das nossas revistas para não perder nenhum lance sobre a maior competição esportiva do mundo. Torne-se o mais veloz acessando as notícias da Editora Três.

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Disponível para Android e iOS

Realização:

OUT/NOV 2013

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O L I M P Í A DA C U LT U R A L

ELAS BATEM UM BOLÃO As Donas da Bola, até 3/4, Museu do Futebol, Praça Charles Miller, s/nº, Estádio do Pacaembu, São Paulo. www.museudofutebol.org.br O Futebol Delas, até 10/4, Sesc Interlagos, Avenida Manuel Alves Soares, 1100, São Paulo Desde os Jogos Olímpicos de Atlanta (EUA), em 1996, o futebol feminino passou a integrar a competição máxima do esporte mundial. E a Seleção Brasileira Feminina, encabeçada pela grande artilheira Marta, não ficou de fora de nenhuma edição. Ficou em quarto lugar na estreia, em 2000; foi prata em 2004 e 2008; e, em 2012, em Londres, acabou perdendo ainda na primeira fase para as donas da casa. A modalidade vem se fortalecendo entre as mulheres, ainda muito defasadas em termos de condições de treino e de patrocínio, em comparação com seus colegas masculinos. Duas exposições em cartaz na capital paulista mostram a trajetória do futebol feminino pela participação da

Foto de Ana Araujo integra a exposição As Donas da Bola

Seleção Brasileira em torneios como as Olimpíadas e por sua história, marcada por adversidades. Você sabia que, entre 1941 e 1979, era proibido às mulheres a prática do futebol e de outros esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”? Pois, no que depender do Museu do Futebol, a condição ainda menosprezada da atuação feminina no gramado vai mudar. A instituição está abrindo uma frente de iniciativas que visam conferir ao esporte bretão praticado pelas mulheres o respeito que merece. Uma delas é a exposição As Donas da Bola, que traz fotografias de mulheres em plena prática futebolística ao redor do País. As autoras das imagens são Ana Araújo, Ana Carolina Fernandes, Bel Pedrosa, Eliária Andrade, Evelyn Ruman, Luciana Whitaker, Luludi Melo, Marcia Zoet, Marlene Bergamo, Mônica Zarattini e Nair Benedicto. Textos, vídeos e fotografias narram visualmente a campanha olímpica da Seleção Brasileira Feminina no Sesc-Interlagos. É a mostra O Futebol Delas, com curadoria da jornalista especializada em futebol feminino Lu Castro, que assina o blog Futebol para Meninas, abrigado no site do jornal esportivo Lance. LPN

PATROCÍNIO:

FOTO: DIVULGAÇÃO

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A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L

FEMINISMO Não existe um verbete sobre “arte feminista” na Enciclopédia Itaú Cultural e o termo tampouco está categorizado na história da arte. Mas entre os artistas biografados e os projetos do instituto encontramos pioneiras que contribuem para a discussão

VERBETES NAZARETH PACHECO (São Paulo, SP, 1961). Artista visual. Desde o início de sua trajetória, volta-se ao campo tridimensional. Suas primeiras peças são realizadas em borracha e apresentam pinos pontiagudos do mesmo material. Para o historiador da arte Tadeu Chiarelli, elas já revelam uma carga de agressividade, por sua semelhança com objetos de tortura. (...) Nos anos seguintes, sua reflexão extrapola a questão pessoal e passa a considerar o corpo feminino como lugar de práticas médicas que visam adaptá-lo a “aprimoramentos estéticos”.

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ABIGAIL DE ANDRADE (Vassouras, RJ, 1864 - Paris, França ca. 1890). Pintora e desenhista. Inicia os estudos de desenho no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, em 1882, um ano após o decreto que permite a frequência feminina na escola. (...) Segundo a análise da pesquisadora Ana Paula Simioni, o reconhecimento de Abigail de Andrade como a primeira mulher a receber uma premiação na 26a Exposição Geral de Belas Artes, em 1884, representa o início de uma visibilidade institucional para as mulheres artistas no Brasil do fim do século 19. (...) Celebrada pelo crítico Gonzaga Duque como uma verdadeira profissional entre os artistas amadores, Abigail de Andrade faz, no fim do século 19, uma pintura considerada “moderna”, que valoriza as temáticas então tidas como inovadoras, cenas de gênero que envolvem o cotidiano popular.

ROSANA PAULINO (São Paulo, SP, 1967). Artista visual, pesquisadora e educadora. Desde o início de sua carreira, vem se dedicando por sua produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero. Seus trabalhos têm como foco principal a posição do negro e, principalmente, da mulher negra dentro da sociedade brasileira. Ana Paula Simioni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), chama a atenção para a capacidade da obra de Paulino de operar subversões dos sentidos tradicionalmente atrelados às “faturas femininas”, como as artes têxteis e o bordado.

PROJETOS OCUPAÇÃO É possível reconhecer em todas as artistas, escritoras, compositoras e criadoras homenageadas pelo Ocupação (projeto criado para fomentar o diálogo da nova geração de artistas com os criadores que os influenciaram) importantes contribuições para a emancipação da mulher e a discussão de temas relacionados ao feminismo. Entre elas, Hilda Hilst, defensora mordaz da igualdade das mulheres no meio literário e exemplo de quebra de paradigmas; Dona Ivone Lara, primeira compositora de samba-enredo de uma escola do primeiro grupo do Carnaval carioca; e Maria Duschenes, introdutora do método Laban no Brasil e responsável por um projeto artístico-educacional que contribuiu de maneira decisiva para o desenvolvimento da dança paulistana e brasileira. Duschenes será homenageada na Ocupação em abril de 2016.

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Links em http://bit.ly/acervos-itau-feminismo

FOTOS: REPRODUÇÃO

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CO LU N A M Ó V E L

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CHINA: FÁBRICA DE MUSEUS

OCT Design Museum, Shenzhen, criado pelo Estúdio Pei-Zhu

ENQUANTO FRANQUIAS DE MUSEUS CELEBRIDADES SÃO DISPUTADAS EM DIVERSAS PARTES DO MUNDO, a China posiciona-se como uma

grande indústria de museus. Grandes, pequenos, públicos e privados, de Pequim a Hong Kong, e até nas pequenas províncias, eles proliferam. De acordo com a State Administration of Cultural Heritage da China, os números não param. Até no fim de 2014, o país contabilizava 4.510 museus e, em 2015, cerca de 400 foram criados, sem nenhum sinal de desaceleração. A rápida e cada vez mais frequente construção de edifícios pautados pelo gigantismo e assinados por grandes grifes da arquitetura seria impensável no Ocidente – especialmente no contexto da América Latina e do Brasil, onde a maioria dos museus habita prédios que não foram construídos para esse fim. Mas a situação é rotineira na China, onde, desde 1905, o museu vem sendo construído como símbolo de civilização e instrumento cultural. Um tanto complexo, esse símbolo sempre funcionou como sinal de modernidade e desenvolvimento econômico. Ampliação, reforma e construção de novos alicerces arquitetônicos são, naquele país, acontecimentos midiáticos que contribuem para a geração de novos centros urbanos e para o aumento direto ou indireto do capital circulante. O primeiro indicativo de aceleração na construção de espaços museológicos ocorreu em 1949, quando o Partido Comunista assumiu SELECT.ART.BR

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A N D R E A LO M BA R D I

o controle. A China, então, tinha apenas 25 museus. O rápido processo de crescimento e urbanização que acompanhou o período de reforma e abertura política, após 1978, instaurou um boom, que fez muito mais do que simplesmente substituir o que foi perdido e queimado durante a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. Com o slogan “Cada município deve ter um museu e cada província uma sala de exposição”, o governo comunista criou mil museus, até o fim de 1980. Durante esse processo de edificação, em que o país experimentou a reconstrução de sua história, também veio à tona uma confusão de identidade nacional. A abertura de museus privados é outro fenômeno totalmente novo. Até o fim de 2014 são contabilizados 1,5 mil museus privados – 535 ainda não registrados oficialmente. As políticas emitidas pelos governos centrais e locais oferecem benefícios aos museus privados em uso de terra, apoio financeiro e aquisição de coleções. O último dado divulgado pelo Ministério das Finanças da China, em 2013, informa que foram destinados 100 milhões de yuans (aproximadamente, US$ 16,4 milhões) em apoio aos museus privados. Mas sem apresentar uma gestão administrativa experiente, é difícil evitar que museus privados sejam glorificados como caixas-fortes faraônicas, sem um propósito maior do que apenas ostentar o poder individual. Levando-se em conta o novo mercado de arte na China e o fato de o país ter a segunda maior economia mundial, a perspectiva de novos museus parece interminável. Como eles vão se desenvolver, ainda é uma incógnita. Este é um momento crítico para avaliar o museu e seu potencial papel na China contemporânea. A definição do que deva ser um museu não é fácil. Mas é simples definir o que ele não pode ser. Não se deve exibir a cultura como troféu, nem como mero orgulho da identidade nacional. FOTO: DIVULGAÇÃO

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CO LU N A M Ó V E L

VENTOS FEMINISTAS L U A N A S AT U R N I N O T VA R D OV S K A S O Impossível III (1945), escultura em bronze de Maria Martins

O BRASIL PRESENCIA HOJE UMA EFERVESCÊNCIA FEMINISTA em muitas áreas da cultu-

ra, indicando uma potência crítica que contagia novas gerações, nutrida por décadas de movimentos contestatórios e propositivos. Se as mulheres já adentraram inúmeros espaços políticos e sociais, confrontaram sistemas de poder, ampliaram a noção de cidadania e discutiram a multiplicidade étnica, sexual, religiosa, social e cultural existente em nosso país, esses ganhos estão longe de representar uma experiência significativa de respeito pelos corpos, subjetividades, criatividade e experiências femininos. Historicamente, muita coisa mudou e muito se avançou, mas sabemos que tais conquistas são frágeis e estão constantemente ameaçadas por uma cultura de violência física e simbólica – como percebemos nas inúmeras reações misóginas espraiadas em diferentes camadas sociais. Perante tal cenário, a capacidade das mulheres de usarem suas vozes críticas para contestar o imaginário instituidor do real merece destaque. Mulheres artistas visuais no Brasil, como Ana Miguel, Rosana Paulino, Cristina Salgado, Adriana Varejão, Rosana Palazyan, Rosangela Rennó e Fernanda Magalhães, entre outras, têm, sobretudo desde a década de 1990, discutido as representações que recaem sobre os corpos femininos, sua sexualidade, seu desejo e seus espaços de atuação no mundo público e privado. Suas obras elaboram com humor e ironia experiências compartilhadas pelas mulheres, como, por exemplo, o faz Ana Miguel em O Sentimento dos Docinhos Frente a seu Destino (1990), em que a iminência

em ser devorada expõe-se nas pequenas gravurinhas aterrorizadas de doces de festa infantil. Outras vezes, as práticas feministas dessas artistas se refletem sobre a conflituosa ligação do feminino com as relações amorosas, sobre os códigos culturais dominantes ou os padrões de beleza impostos. Corpos com torções, inchaços, fragmentação, memórias da dor, delírio e sonho são insurreições feministas no imaginário artístico contemporâneo, indicando as tensões, traumas e a difícil constituição subjetiva no mundo atual. Também atacam o preconceito racial somado à misoginia ou mesmo as narrativas clássicas da história tradicional, da literatura ou dos contos de fadas, que reproduzem modelos engessados e preconceituosos de sentir, viver e acessar o mundo. Ainda que muito pouco exploradas e investigadas pela crítica, curadoria e história da arte no Brasil, essas práticas feministas estão presentes na arte brasileira de forma contundente. Isso não indica necessariamente uma militância feminista declarada por parte das artistas ou a centralidade da questão em suas obras, mas sim um caráter político, disruptivo, questionador e desconstrutivo delineado em suas poéticas. Mais recentemente, um foco maior tem sido dado na esfera cultural às exposições de viés aglutinador, em que muitas artistas mulheres são apresentadas ao público, como recentemente vimos em Frida Kahlo: Conexões entre Mulheres Surrealistas no México (Instituto Tomie Ohtake/SP), Mulheres Artistas: As Pioneiras (1880-1930) (Pinacoteca do Estado de São Paulo) e Tarsila e as Mulheres Modernas no Rio (Museu de Arte do Rio) – enfoque também presente em outros países da América Latina. Nosso desafio é refletir, agora, sobre o enorme desconhecimento que os discursos oficiais destinaram às mulheres artistas de nosso passado e presente, sobre os mitos da genialidade artística e os projetos de curadoria que reiteram essas ausências, buscando abrir espaço para os outros mundos subjetivos e sociais criados e acenados pelas mulheres. Não se trata, evidentemente, de defender uma especificidade natural ou biológica que transbordaria nas expressões artísticas femininas, mas de compreender que a imaginação é como um sopro suave, facilmente desfeito em ambientes hostis, racistas e misóginos. Para seu florescimento, é preciso que respeitemos outras formas de conhecimento e de imaginação, primeiro passo para uma transformação da existência. FOTO: DIVULGAÇÃO / COLEÇÃO MUSEU DE ARTE MODERNA

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FOGO CRUZADO

QUANDO O MUNDO DEIXARÁ DE SER MACHISTA? Desde as primeiras batalhas feministas, em meados do século 20, muita coisa mudou para as mulheres do mundo ocidental. Direito ao voto, acesso ao mercado de trabalho, emancipação e possibilidade de constituição de uma vida independente. Mas ainda há muito por fazer. As mulheres continuam sendo menos contratadas para altos cargos e ganham menos que seus correlatos masculinos. Um estupro é cometido a cada 11 minutos no Brasil, considerando só os casos denunciados. A agressão doméstica segue uma realidade, e 50,3% dos assassinatos de mulheres no País são cometidos por familiares, dos quais 33,2% são seus companheiros ou ex. Diante desse quadro, especialistas respondem a uma questão que continua na pauta do dia

ELIANE ROBERT DE MORAES PROFESSORA DE LITERATURA BRASILEIRA NA USP, PUBLICOU DIVERSOS ENSAIOS SOBRE O IMAGINÁRIO ERÓTICO NAS ARTES E NA LITERATURA E ORGANIZOU A ANTOLOGIA DA POESIA ERÓTICA BRASILEIRA (ATELIÊ, 2015)

O mundo deixará de ser machista quando nós, mulheres, formos todas respeitadas. O mundo deixará de ser machista quando formos todas respeitadas nos espaços privados e nos espaços públicos. Todas, sem exceção: as que usam biquíni e as que usam burca. E também as que usam outras vestimentas. E ainda as que preferem não usar nada. O mundo deixará de ser machista quando as mulheres usarem biquínis ou burcas ou qualquer outra vestimenta ou mesmo nada por desejo próprio. E o mundo esquecerá que um dia terá sido machista quando o respeito dos homens e das instituições pelas mulheres for não mais uma obrigação, mas um desejo de todos. Todos, sem exceção. Vai ser festa. SELECT.ART.BR

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FOTOS: DIVULGAÇÃO E DAMIÃO A. FRANCISCO/CPFL CULTURA (MARIA RITA KEHL)

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NOEMI JAFFE

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ESCRITORA, PROFESSORA E CRÍTICA LITERÁRIA

Penso que um dos sintomas mais claros e talvez menos explorados do machismo atual – especificamente do machismo brasileiro – seja a existência tão naturalizada das empregadas domésticas. Por que elas continuam existindo e por que são todas mulheres? Por que as mantemos? Por um lado, as mulheres que assumem esse trabalho o fazem, em sua maioria, porque não tiveram acesso suficiente ao estudo e isso porque engravidaram cedo demais, foram abandonadas pelos maridos, precisaram ajudar a sustentar a família etc. E, além disso, mantêm o emprego porque precisam sustentar a casa sozinhas, não têm com quem deixar os filhos, não podem continuar ou começar os estudos. E nós, que as empregamos, também o fazemos porque não temos condições de cozinhar, limpar a casa e trabalhar, e, muitas vezes, não temos com quem deixar nossos filhos. Além do mais, muitas não têm ajuda dos companheiros para executar as tarefas domésticas. É um círculo vicioso perverso e cômodo. Penso que o Brasil e o mundo serão melhores quando essa profissão não existir mais ou, se continuar existindo, que seja altamente profissionalizada, bem paga e praticada por homens e mulheres.

MARIA RITA KEHL PSICANALISTA

1. Resposta darwiniana: quando houver muito menos mulheres que homens no mundo e cada um deles perceber que, na concorrência pela nossa atenção, os machistas não terão vez. 2. Resposta freudiana: quando os homens se curarem dos sintomas infantis da angústia de castração e entenderem que ter ou não ter pênis não confere nem mais nem menos valor a ninguém. 3. Resposta marxista-leninista: quando as mulheres enfrentarem os desrespeitos vindos dos pais, maridos, filhos e patrões, conscientes de que nada têm a perder a não ser os seus grilhões.

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MUNDO CODIFICADO

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DISPARIDADE GRITANTE NOS MUSEUS seLecT pesquisou a correlação entre homens e mulheres no conjunto de artistas representados no acervo de alguns dos principais museus. Pesquisou também o corpo deprofissionais. O resultado é que a imensa maioria dos

MUSEU NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA SOFÍA (Espanha)

70%

71%

Cargo mais alto: Chefe da área de exposições (Os cargos de diretor, subdiretor artístico e subdiretor-gerente são ocupados por homens)

Cargo mais alto: Coordenadoraexecutiva de curadoria (O diretor artístico é homem)

artistas nos museus é do sexo masculino, enquanto que entre os funcionários a situação é diferente, embora a presença feminina nos cargos mais altos seja escassa.

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MUSEU DE ARTE LATINO-AMERICANA DE BUENOS AIRES (MALBA/Argentina)

30%

21%

14% 86%

29% 79%

de um total de 4.200 artistas

de um total de 213 artistas

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MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (MAC-USP) MUSEU DE ARTE DO RIO (MAR/Rio de Janeiro)

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

65%

58%

55% Cargo mais alto: Diretora-executiva (O diretor-presidente, o diretor-administrativo e financeiro, o diretor de projetos e gestão e o diretor cultural são homens)

30%

45% 70%

Cargo mais alto: Coordenadora e curadora-chefe (O diretor-geral, o diretor-administrativo e financeiro e o diretor de relações institucionais são homens)

MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO (MAM-RIO)

21%

42% 79% de um total de 1.703 artistas

30% 30% Cargo mais alto: Coordenadora do Departamento de Museologia e Montagem

70% 70% O presidente, os diretores e o curador são homens

EXECUTIVAS EM CARGOS NO MUSEU

EXECUTIVOS EM CARGOS NO MUSEU

ARTISTAS MULHERES NOS ACERVOS

ARTISTAS HOMENS NOS ACERVOS

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de um total aproximado de 15 mil obras

Cargo mais alto: Vice em exercício, que equivale à diretoria

20% 35% 80% de um total de 1.924 artistas

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E N T R E V I S TA

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LISETTE LAGNADO

A FALA É O FALO

A crítica de arte propõe que o feminismo inclua também as lutas contra o racismo, a misoginia e a homofobia e conta que Leonilson contribuiu mais para que pensasse a condição feminina do que artistas mulheres como Ana Maria Tavares

MÁRION STRECKER

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A CRÍTICA DE ARTE E CURADORA LISETTE LAGNADO, ATUAL DIRETORA DA ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE, no Rio de Janeiro, nasceu no

Congo em uma família judia. Imigrou ao Brasil nos anos 1970, adolescente, formou-se em Jornalismo, trabalhou no jornal Folha de S.Paulo e logo optou por se dedicar inteiramente às artes visuais, como crítica, curadora, professora e escritora. Editou revistas especializadas (Arte em São Paulo, Galeria), deu aulas e coordenou cursos de pós-graduação (Faculdade Santa Marcelina), curou exposições (em museus e galerias), publicou artigos, monografias e livros (no Brasil e no exterior). Foi curadora-geral da 27ª Bienal Internacional de São Paulo. Nesta entrevista à seLecT, Lagnado fala sobre feminismo, abusos e covardia. Menciona a ex_miss_febem, personagem-artista que não conhece, assim como a Daspu, grife criada pela ONG Davida, que levou à Bienal por meio do trabalho do artista esloveno Tadej Pogacar. Conta as pressões que ouviu quando “ousou” engravidar nos anos 1980, o protagonismo das mulheres na arte brasileira do último século e por que Leonilson, muito mais que artistas mulheres como Ana Maria Tavares, a fazem pensar no feminismo, já que, sob o guarda-chuva do feminismo, ele costuma abrigar outras lutas, como o racismo, a misoginia e a homofobia. A arte, para ela, precisa estar alerta contra o intolerável. Sua fala é seu falo.

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“Ouvi de editores, artistas e galeristas que estava ‘pendurando as chuteiras’, quando engravidei nos anos 1980”

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FOTO: PAULO D’ALESSANDRO

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Você é feminista? Ninguém fica indiferente aos dados inquietantes de violência contra a mulher na sociedade brasileira. No ano passado, o assunto apareceu na redação do Enem e casos de agressão ganharam voz pública. No Brasil, onde é cada vez mais difícil identificar uma causa comum em torno de um movimento social, o feminismo foi para a rua contra os projetos de lei de autoria de Eduardo Cunha. Isto é inédito em termos de mobilização. Além do machismo, é preciso incluir a homofobia e a misoginia, porque representam outras faces ameaçadoras de um devir-mulher, de um corpo em mutação, com suas regras (leia-se autonomia de pensamento)! Será que precisa ser “feminista” para denunciar tais abusos? Claro que não. Entendo que a pergunta é um pouco mais sofisticada. Ela implica repropor a definição de mulher para além do sexo e do gênero: a fêmea-mamífero é uma formulação ultrapassada do problema. Como resumiria o feminismo em uma frase? Há muitos feminismos, das Guerrilla Girls a Malala (Yousafzai). Posso parafrasear (Eduardo) Viveiros de Castro (quando se refere ao ser índio), dizendo que todo mundo é feminista, exceto quem não é. Ou seja, transcende vagina e ovários. Ser mulher, hoje, reúne várias condições “menores”: a voz dos refugiados, por exemplo. Para mim, esse é o feminismo mais lindo que poderia surgir. Sente necessidade de atuar pelo feminismo? Atuo todo dia. Minha arma é a ironia. A fala da mulher é seu instrumento-falo. Acredito e trabalho para uma utopia do matriarcado, uma comunidade livre, onde vigora a dádiva, sem classes sociais nem hierarquia – “sem lei nem rei”, como disse Oswald (de Andrade). Tenho consciência de que trabalho o triplo de qualquer bicho homem e que ganho menos. Também não ignoro que deve ser um recalque para provar que nossas competências se equivalem. Não deixa de ser uma forma de histeria… Pela sua experiência, existe muito machismo no meio artístico? E no meio acadêmico? Sim, em ambos, mas cuidado, porque aparecem travestidos de falsa moral. Evidente que nesses meios mais intelectualizados o discurso nunca se assume. Gostaria de contar alguma história pessoal ou que presenciou acerca desse tema? Minha história é diferente, porque o machismo, sendo covarde, escolhe bater em pessoas mais fracas. E outra: mulheres também são machistas (não me refiro aqui a uma opção, mas à reprodução de discursos inconscientes). Tenho dois filhos que foram gestados nos anos 1980, quando o sistema da arte estava em plena expansão. SELECT.ART.BR

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A continuidade do meu trabalho como editora e crítica de arte foi questionada por colegas próximos, editores, artistas e galeristas. Ouvi que estava “pendurando as chuteiras”. No contexto de hoje, a maternidade não é mais sinônimo de final de carreira. Em apenas 30 anos as mudanças foram gigantes. A história da arte é justa com artistas mulheres? E os museus, o mercado de arte, a crítica e a imprensa? Não usaria a palavra “justiça” nesses campos que você cita, porque são lugares de poder. Depois, não dá para atribuir todas as injustiças do mundo ao machismo, porque há diversos valores em jogo que colocam certas produções à margem. Minha percepção é de que, pelo menos na história da arte e no mercado, os maiores nomes no Brasil são de mulheres: Tarsila do Amaral, Maria Martins, Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Maria Maiolino, Jac Leirner, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão… Mas quantas mulheres deixaram de desenvolver sua própria história para cuidar da obra de seus maridos? Muitas. Hoje sigo no Instagram os posts de uma pessoa que nem conheço, a ex_miss_febem. Às vezes me cansa, mas acompanho porque é uma plataforma que prescinde do sistema de museus, galerias, mercado, crítica e imprensa. É como se fazia antigamente um studio visit. Ao longo da sua carreira como curadora, você já organizou exposições que deram ênfase a artistas mulheres? E quanto a obras que exploram questões feministas? Só fiz uma vez uma curadoria efetivamente voltada para descascar essa questão. Era o aniversário do livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo (1949). Clio, Pátria (Caderno Sesc-Videobrasil nº 5) foi um exercício muito especial para mim, porque percebi que eu falava do Leonilson quando era convidada a falar de feminismo… Poderia citar alguns artistas e/ou obras

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Égalité (2004), instalação da artista conceitual mexicana Minerva Cuevas

que abordam essas questões e que considera bons? Para mim, Leonilson contribuiu mais para me pensar como mulher do que Ana Maria Tavares, então não sei se consigo responder. A pergunta me parece machista. O que é “bom”? Que questões? Como já disse, o feminismo não se reduz a temas (violência doméstica, aborto, estupro, salários iguais etc.). As questões formais não devem ser menosprezadas. Eva Hesse era feminista? O que importa? Na minha percepção, o feminismo é um modo de estar no mundo, de se relacionar com o outro, de lidar com problemas econômicos, de fazer partilhas, de pensar ecologia, de resolver dívidas, de brigar e botar o pau na mesa, de ser generoso e não perder a ternura, tudo isso junto e muito mais. Como é a proporção de homens e mulheres entre os estudantes da Escola de Artes Visuais do Parque Lage? E entre os professores? As proporções mudaram ao longo da história? Conforme dados da coordenadora de ensino do Parque Lage, Tania Queiroz, hoje a EAV tem entre os professores 61% de homens e 37% de mulheres, um quadro recorrente na história da escola. Mas entre os alunos a situação inverte-se historicamente. Atualmente, são 47% de homens e 53% de mulheres entre os alunos. No EAVerão 2016, voltado para o audiovisual (imagem em movimento), surgiu uma disparidade enorme e surpreendente, dessa vez contra os meninos. Tivemos uma proporção de 15 garotas contra 5 rapazes. E a Bienal de São Paulo que você curou? Saberia dizer qual a

proporção entre artistas homens e mulheres? Esse assunto em algum momento foi uma preocupação? Na 27ª Bienal de São Paulo, eu não quis prestar atenção por aversão à ideia de cotas em bienais. Quando fechei a lista, notei que estava dentro de um padrão histórico: dois terços de homens contra um terço de mulheres. Só depois, quando fiz a exposição Desvíos de la Deriva, no Museo Reina Sofía (Madri, 2010), me dei conta de que isso provinha da minha linha de pesquisa. As intervenções urbanas, o artista-arquiteto, o campo social… Até muito recentemente, a arquitetura foi um domínio reservado aos homens, assim como a filosofia. Em contrapartida, a mulher podia ser bem-sucedida como artista ou escritora. Me interesso pelo caráter transformador da arte e isso poderia ter me levado a uma produção psicologizante, mas aprendi cedo a diferenciar o drama da tragédia. No entanto, na Bienal do “Como Viver Junto”, a participação das mulheres foi muito eloquente: Ana Mendieta, Claudia Andujar, Maria Galindo, María Teresa Hincapié, Jamac, Yael Bartana, Ahlam Shibli, Monica Bonvicini, Minerva Cuevas, Laura Lima, Renata Lucas e Virginia de Medeiros, entre outras, sem contar o desfile da Daspu dentro do trabalho de Tadej Pogacar. Claro que não é a ONG Davida que considero “artística” (como a crítica machista me acusou na época), mas o dispositivo conceitual de Tadej, que lida com a colaboração de outra mão de obra que a dele, relativizando o fetiche da assinatura, do gênio etc. Foi uma turma da pesada. Não é a quantidade que fortalece o argumento do feminismo, mas as formas discursivas que emprega. Pogacar é um feminista, independentemente de seu sexo e gênero. Somos muito mais do que se calcula. Há ações afirmativas a serem tomadas em favor do feminismo no meio artístico? Dentro do guarda-chuva do feminismo coloco todas as outras lutas, como o racismo e a homofobia, além dos desastres ecológicos. O meio artístico deve sempre se manter alerta contra o intolerável. FOTO: DIVULGAÇÃO

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CURADORIA

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FEMINISMO EM CAMPO EXPANDIDO Artistas tratam da discriminacão contra singularidades e da desconstrução da noção tradicional de gênero PA U L A A L Z U G A R AY

“O PARQUE DO FLAMENGO, ÀS MARGENS DA BAÍA DE GUANABARA, NO RIO DE JANEIRO, SURGIU SOBRE UM IMENSO ATERRO. Primeiro, na década de 50,

um morro inteiro foi desmanchado e espraiado por sobre 1,2 milhão de metros quadrados de área destinada a ser espaço público. Depois, foi uma mulher, Carlota de Macedo Soares, a Lota, arquiteta e urbanista autodidata, quem teve a ideia de edificar uma natureza por sobre a que lá já existia e que era apenas o mar. Por fim, sobre o aterro, e para onde haviam sido projetadas apenas autopistas, pela vontade e empenho de Lota, surge um parque, e bem no começo de um dos períodos mais nefastos da história do Brasil, o golpe que instaura uma ditadura militar, em 1964. Com o passar do tempo, o Parque se dissociou de Lota. Seu nome foi como que apagado, soterrado na memória coletiva da cidade (...)”. No texto que integra a videoinstalação Desvios (2015), Laercio Redondo e Soraya Guimarães Hoepfner propõem a reconstrução da memória de uma personagem desaparecida do imaginário brasileiro. No filme, inseridas em black frames, frases interrompem o plano-sequência realizado no trajeto de uma hora que separa o Parque do Flamengo e a Casa SaSELECT.ART.BR

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mambaia, os dois maiores projetos e realizações de Lota de Macedo Soares (1910-1967). Nas entrelinhas da discussão proposta aqui – a tensão entre os âmbitos público e privado de uma só vida – instaura-se o questionamento sobre como, no ambiente essencialmente patriarcal de um Brasil militarizado, foram criadas as condições para a eliminação sistemática das contribuições da arquiteta à cidade e à vida pública carioca. A poética de Laercio Redondo abriga várias mulheres marcantes que passaram por longos períodos de apagamento. O seu resgate em obras como Carmen Miranda – Uma Ópera da Imagem (2010) e A Casa de Vidro (1999-2008) articulam um discurso político denunciador de práticas de discriminação operantes tanto na sociedade quanto dentro da própria disciplina da história da arte. Ainda que reconheça no fato de Lota ter sido mulher e homossexual, duas fortes razões para o seu desaparecimento, o discurso do artista não se filia a um pensamento feminista estruturado apenas sobre questões de sexo e de gênero e mostra-se mais interessado na defesa das singularidades humanas. Em direção parecida, o olhar

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Detalhe da instalação Carmen Miranda - Uma Ópera da Imagem (2010), de Larcio Redondo. A obra é composta por elementos que remetem às influências afro-brasileiras assimiladas pela cantora, na construção de sua personagem, e por espelhos, que funcionam como metáforas de um olhar multifacetado sobre a história

FOTOS: SERGIO ARAUJO

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Laercio Redondo realiza um plano-sequência do trajeto entre o MAM-RJ, no Parque do Flamengo, até a Casa da Samambaia, na serra fluminense, como estratégia de reflexão sobre a importância histórica da urbanista Lota de Macedo Soares, na instalação Desvios (2015)

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de Virginia de Medeiros está voltado para a desconstrução da noção tradicional de gênero, em seu sentido binário “homem” e “mulher”, assim como a pintura de Thiago Martins de Mello está para a liberdade arquetípica e a dissolução do sujeito oprimido – seja ele, índio, negro, imigrante, homossexual, travesti ou mulher. Aquele que não se enquadra no discurso oficial. Desde as paisagens de Redondo, Medeiros e Martins de Mello, se avistam feminismos em campos expandidos, ligados a causas políticas que atravessam gêneros, disciplinas e campos do pensamento. ÁFRICAS UTÓPICAS

Lina Bo Bardi também se insere no corpo de trabalhos de Laercio Redondo sobre apagamentos da memória coletiva. Na videoinstalação A Casa de Vidro, realizada em parceria com Laura Erber, ele chama a atenção para a convivência orgânica de duas coleções antagônicas no espaço da casa habitada por Lina Bo e Pietro Maria Bardi. O filme realizado em 1999 mostra uma casa de vidro em que pensamento mítico e cultura ocidental se entrosam de forma não hierárquica. No interesse da arquiteta italiana pela cultura popular, a arquitetura vernacular brasileira e as relações entre Brasil e África na cultura baiana, Lina desvia do racionalismo moderno no SELECT.ART.BR

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qual foi formada. Dez anos depois, o artista voltou ao local, quando a casa entrou em reforma para abrigar o Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, e documentou o processo de institucionalização do espaço íntimo. Carmen Miranda, a precursora do Tropicalismo, também é lembrada entre as mulheres que peitaram discursos dominantes. Nos elementos do grande móbile que compõe a instalação sonora – espelhos, plumas, contas –, Redondo desmembra o mito que se serviu à política internacional de Getúlio Vargas, e devolve a Carmen o protagonismo da história. O texto, sussurrado na instalação, ajuda-o nessa reconstrução, afirmando as influências afro-brasileiras na personagem exótica. “Mas, como acontece muitas vezes com a absorção do ‘exótico’ e do étnico pela cultura norte-americana, a personalidade de Carmen e seu radiante otimismo foram logo esmagados e distorcidos por Hollywood”, diz ele. Carmen foi a cantora branca que levou o samba para a zona sul carioca e para Hollywood. Lina foi a europeia que chamou a atenção da intelligentsia brasileira para a riqueza mítica de seu povo. Ambas trouxeram à luz a África que o Brasil tinha esquecido. DO CORPO MÍTICO À CENA DO CRIME

Nas séries de Silhuetas (1973-1980), iniciadas no México e continuadas

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FOTOS: SERGIO ARAUJO

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Acima, frame de Volcán (1979), filme super-8 de Ana Mendieta. À direita, O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mello

em Iowa, nos EUA, a artista cubana Ana Mendieta (1948-1985) relaciona o contorno de seu corpo – com os braços levantados como ramos de árvores – às formas de desenhos rupestres e de deusas primitivas, evocando temas como feminilidade, fertilidade, morte e renascimento. Suas intervenções na natureza e esculturas com elementos naturais – como terra e fogo – rejeitaram recorrentes comparações com Robert Smithson ou Michael Heizer e transcenderam as categorias da Land Art, promovendo muito mais a transformação de identidades do que da paisagem. Seu ativismo concretizou-se em obras que tomaram a forma de denúncia da violência contra a mulher – Mendieta integrou o coletivo feminista A.I.R Gallery até 1982 – e sua obstinação pela violência levou-a a usar sangue como matéria do processo artístico. Em Untitled, Rape Scene (1973) recria em seu apartamento, em Iowa, a cena de um caso real de estupro seguido de assassinato, noticiado pela imprensa. Em Sweating Blood (1973), é filmada enquanto sangue escorre por seu rosto. Não há sofrimento nem violência. Apenas visceralidade. Essa linha tênue entre o corpo mítico e a cena do crime aplica-se à pintura do artista maranhense Thiago Martins de Mello. Nas grossas SELECT.ART.BR

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FOTOS: CORTESIA GALERIE LELONG, NEW YORK; THE ESTATE OF ANA MENDIETA COLLECTION , LL; CORTESIA MENDES WOOD DM

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Baiacu, da série Studio Butterfly (2015), de Virginia de Medeiros, FOTOS: VIRGINIA DE MEDEIROS, CORTESIA GALERIA NARA ROESLER:

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de, que é a violência contra a liberdade de afetos. As camadas críticas de tinta se sobrepõem aqui em contextos arquetípicos complexos e triangulações que aproximam mitos do poder feminino, como Lilith, Virgem Maria, Maria Padilha e a escrava Anastácia.

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DESVIO DO GÊNERO NA CURVA DO REAL

Still do filme Super-8 Sweating Blood (1973), de Ana Mendieta

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camadas de tinta de suas telas em grandes dimensões aplicam-se densas visadas acerca dos paradoxos do Brasil e das ambivalências da condição humana. Martírio, pintura apresentada na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014, é um retrato da violência praticada contra a Amazônia, “uma paisagem da periferia do capital internacional”. Como um grande teatro sincrético, a obra apresenta Chico Mendes e outros mártires e ativistas amazônicos, como os caboclos do Vodum, religião africana com grande representatividade em São Luís, cidade natal do artista. Na pintura O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), a violência contra o índio é a violência contra o corpo feminino, que é a violência contra o negro, que é a violência contra a diversida-

Em texto escrito para o recém-lançado livro Studio Butterfly (Circuito, 2015), Lisette Lagnado observa que “o mergulho na cena homossexual é capítulo praticamente ignorado da crítica brasileira por falta de diálogo entre teoria da arte e teorias feministas e queer, demonizadas pela academia sob a escusa de um essencialismo nacional: o repúdio à importação de uma vertente norte-americana”. De fato, os desvios de gênero propostos por Virginia de Medeiros em Studio Butterfly (2003-2006) coincidem com o ponto central da crítica da filósofa norte-americana Judith Butler ao feminismo que trabalha com noções binárias de gênero – com a ideia de que as polaridades masculino e feminino são a verdade da sexualidade. Não sem condenar a “busca melancólica de constituir famílias, povos, nações” entre artistas de diferentes contextos e gerações, em seu texto sobre as mise-en-scenes fílmicas de Studio Butterfly, Lagnado lembra-se de Rrose Sèlavy, pseudônimo e persona híbrida de Marcel Duchamp, captada pela lente de Man Ray em 1921. No mergulho de Virginia de Medeiros no universo dos travestis de Salvador (BA), onde montou um estúdio de fotografia que se tornou ponto de encontros e cruzamento de histórias pessoais e coletivas, a artista faz uma imersão nas próprias fantasias e paixões. Em fotos e textos testemunhais, que denomina “Contos” – hoje reunidos na publicação –, a artista se amalgama a seus objetos de estudo e de desejo. Mais que questionar a identidade de gênero, ela a reinventa. É na liberdade de sua ação e seu discurso que ela amplia as possibilidades de existência corporal e performativa.

FOTO: CORTESIA GALERIE LELONG, NEW YORK, THE ESTATE OF ANA MENDIETA COLLECTION

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L I T E R AT U R A

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PIONEIRAS Mulheres, de Eduardo Galeano (1940-2015), recém-lançado no Brasil pela Editora L&PM, é um livro de celebraçao de artistas, cientistas, índias, guerrilheiras, prostitutas, santas e ativistas – célebres e anônimas. Aqui, seis textos do derradeiro livro do escritor uruguaio são ilustrados pela artista Flávia Ribeiro

A P O I O H E N D R I C K’S G I N FOTOS:

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DIA DOS POVOS INDÍGENAS

Rigoberta Menchú nasceu na Guatemala, quatro séculos e meio depois da conquista feita por Pedro de Alvarado e cinco anos depois da conquista feita por Dwight Eisenhower. Em 1982, quando o Exército arrasou as montanhas maias, quase toda a família de Rigoberta foi exterminada, e a aldeia onde seu umbigo tinha sido enterrado para que surgisse milho foi apagada do mapa. Dez anos mais tarde, ela recebeu o prêmio Nobel da Paz. E declarou: – Recebo esse prêmio como uma homenagem ao povo maia, embora chegue com quinhentos anos de atraso. Os maias são gente de paciência. Sobreviveram a cinco séculos de carnificina. Eles sabem que o tempo, como a aranha, tece devagar.

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LIBERTADORAS BRASILEIRAS

Hoje, 3 de março, terminou, em 1770, o reinado de Teresa de Benguela em Quariterê. Foi um dos santuários de liberdade dos escravos fugidos no Brasil. Durante vinte anos, Teresa enlouqueceu os soldados do governador de Mato Grosso. Não conseguiram apanhá-la viva. Nos esconderijos da floresta, houve umas quantas mulheres que além de cozinhar e parir foram capazes de competir e de mandar, como Zacimba Gambá, no Espírito Santo, Mariana Crioula, no interior do Rio de Janeiro, Zeferina, na Bahia, e Felipa Maria Aranha, no Tocantins. No Pará, nas margens do rio Trombetas, não havia quem discutisse as ordens de Mãe Domingas. No vasto refúgio de Palmares, em Alagoas, a princesa africana Aqualtune governou uma aldeia livre, até que foi incendiada pelas tropas coloniais em 1677. Ainda existe, e se chama Conceição das Crioulas, em Pernambuco, a comunidade que duas negras fugitivas, as irmãs Francisca e Mendecha Ferreira, fundaram em 1802. Quando as tropas escravistas andavam por perto, as escravas liberadas enchiam de sementes suas frondosas cabeleiras africanas. Como em outros lugares das Américas, transformavam suas cabeças em celeiros, para o caso de ter de sair correndo em disparada.

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A MÃE DAS JORNALISTAS

Na manhã de hoje, 14 de novembro de 1889, Nellie Bly começou sua viagem. Júlio Verne não achava que aquela mulherzinha linda conseguisse dar a volta ao mundo, ela, sozinha, em menos de oitenta dias. Mas Nellie abraçou o planeta em setenta e dois dias, enquanto ia publicando, reportagem após reportagem, o que via e vivia. Aquele não era o primeiro desafio da jovem jornalista, nem foi o último. Para escrever sobre o México, se mexicanizou tanto que o governo do México, assustado, a expulsou. Para escrever sobre as fábricas, trabalhou como operária. Para escrever sobre as prisões, se fez prender por roubo. Para escrever sobre os manicômios, simulou loucura, e atuou tão bem que os médicos a declararam louca de pedra; e assim conseguiu denunciar os tratamentos psiquiátricos que padeceu, capazes de enlouquecer qualquer um. Quando Nellie tinha vinte anos, em Pittsburgh, o jornalismo era coisa de homens. Naquela época, ela cometeu a insolência de publicar suas primeiras reportagens. Trinta anos depois publicou as últimas, desviando das balas na linha de fogo da primeira guerra mundial.

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PONTOS DE VISTA (6)

Se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano? Eva teria começado por esclarecer que não nasceu de nenhuma costela, não conheceu qualquer serpente, não ofereceu maçã a ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer “parirás com dor e teu marido te dominará”. E que, enfim, todas essas histórias são mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas.

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NOITES DE HARÉM

A escritora Fátima Mernissi viu, nos museus de Paris, as odaliscas turcas pintadas por Henri Matisse. Eram carne de harém: voluptuosas, indolentes, obedientes. Fátima olhou as datas dos quadros, comparou, comprovou: enquanto Matisse as pintava assim, nos anos 20 e 30, as mulheres turcas se tornavam cidadãs, entravam na Universidade e no Parlamento, conquistavam o divórcio e arrancavam os véus. O harém, prisão de mulheres, havia sido proibido na Turquia, mas não na imaginação europeia. Os virtuosos cavalheiros, monógamos na vigília e polígamos no sonho, tinham entrada livre naquele exótico paraíso, onde as fêmeas, bobas, mudas, ficavam felizes ao dar prazer ao macho carcereiro. Qualquer burocrata medíocre fechava os olhos e se transformava, no ato, em um poderoso califa, acariciado por uma multidão de virgens nuas que, dançando a dança do ventre, suplicavam a graça de uma noite ao lado de seu dono e senhor. Fátima tinha nascido e crescido num harém.

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A INTRUSA

Em 1951, uma foto publicada na revista Life causou um alvoroço nos círculos ilustrados de Nova York. Pela primeira vez apareciam, reunidos, os mais seletos pintores da vanguarda artística da cidade: Mark Rothko, Jackson Pollock, Willem de Kooning e outros onze mestres do expressionismo abstrato. Todos homens, mas na fila de trás uma mulher aparecia na foto, desconhecida, de sobretudo negro, chapeuzinho e uma bolsa no braço. Os fotografados não esconderam seu desgosto diante daquele presença ridícula. Alguém tentou, em vão, desculpar a infiltrada, e a elogiou dizendo: – É que ela pinta feito homem. O nome dela era Hedda Sterne.

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A ROSA INCOMUM

Janet Sheed Roberts tinha 27 anos quando o voto feminino foi instaurado na Grã-Bretanha, em 1928, após várias décadas de lutas e manifestações. Bem antes disso, ela já exercitava sua igualdade de direitos perante os homens, cursando duas universidades. Estudou em Glasgow e Edimburgo, onde, em seu tempo, era a única aluna mulher da Faculdade de Direito. Exerceu a profissão durante vários anos, até decidir se dedicar à destilaria que fora criada pelo avô, em 1886, na pequena cidade medieval de Dufftown, com a ajuda de suas duas filhas e seus nove filhos. Janet Roberts emprestou frescor e inovação à William Grant & Sons, hoje fabricante das marcas Grant’s, Glenfiddich, Balvenie e Sailor Jerry, entre outros. Com a maturidade, ela só veio a aprimorar seu talento para o pioneirismo e, aos 97 anos, contrariando a tradição da empresa, propôs a elaboração de um gim. Após um longo período de testes, um inusitado gim foi elaborado com dois pequenos e antigos destiladores da família. Em sua receita, além dos usuais ingredientes botânicos, agregou-se uma inesperada e delicada infusão de pepinos e rosas. Eles fazem referência direta a um dos hobbies preferidos de Janet: tomar o chá da tarde em seu jardim de rosas, comendo um tradicional sanduíche de rosbife e pepinos. Ao nomear sua criação, Janet decidiu homenagear seu jardineiro, Hendrick. Em 2012, do alto de sua posição de pessoa mais velha da Escócia, ela faleceu aos 110 anos. Às vésperas do 110º aniversário, foi presenteada com uma edição especial de 11 garrafas de Single Malt Glenfiddich, que rapidamente viraram itens de coleção. Meses depois do lançamento, uma delas foi leiloada por US$ 94 mil, em Nova York. Mas Janet Sheed Roberts teria preferido, talvez, um Dry Martini feito de Hendrick’s Gim, em seu jardim de rosas.

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PORTFÓLIO

BARBARA WAGNER

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A DANÇA QUE D E S A F I A O R E T R ATO ANA MARIA MAIA

Obra fotográfica de Bárbara Wagner, artista convidada para a 32ª Bienal de São Paulo, refuta estigmas e opera à revelia de preconceitos que definem limites para o corpo e os afetos

Sega, still de Cinéma Casino. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2015

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FOTOS: BARBARA WAGNER, CORTESIA SOLO-SHOWS

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FRUSTRAR REPETIDAS VEZES.

Em vez de se mover assertivo, oscilar em torno de onde se está, para os lados ou para a frente e para trás. Tanto promessa quanto tática de fuga. Assim é o movimento de “Faz Que Vai, Mas Não Vai”, um dentre as dezenas de passos do frevo, ritmo carnavalesco que surgiu nas ruas do Recife no fim do século 19, a partir de respostas do povo às marchas militares. Se na origem pressupunha contestação da norma e invenção de música e dança a partir de um laboratório espontâneo e coletivo, o frevo tornou-se cartão-postal, atração para turistas, pose e sorriso congelados por e para as autoridades. Contraditoriamente, hoje o seu imaginário oficial envolve a alegria resiliente de um certo padrão de meninos e meninas, com dotes acrobáticos e sombrinhas coloridas à mão. Antes de mais nada, contempla o equívoco de uma manifestação dita folclórica, ou seja, insensível ao tempo e às construções de classe, raça e gênero.

Dancehall, still de Cinéma Casino. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2013

FOTOS: BARBARA WAGNER, CORTESIA SOLO-SHOWS

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Em parceria com Benjamin de Búrca, Bárbara Wagner convidou quatro bailarinos profissionais de frevo para investigar nos seus corpos e em diálogo com eles os desencontros entre um cânone sedimentado e práticas em andamento, ou como a tradição assimila informações de um contexto e se reinventa. Adotaram Faz Que Vai como título, tomando emprestados os referentes de uma teimosia persistente, desde os primeiros passos de frevo e a irredutível disputa entre quem faz e quem olha, quem é retratado e quem retrata. Ryan Neves é passista no polo turístico de Olinda durante o dia e à noite se traveste de Alice para apresentar um show de “bate-cabelo” na boate MKB. Edson Vogue faz parte de um grupo de frevo de rua e dá aulas de Stiletto e Vogue, danças do universo gay disseminadas por cantoras pop como Madonna e Beyoncé. Bhrunno Henryque ensina na Academia Municipal de Frevo e faz coreografias para quadrilhas juninas e grupos de swingueira. Eduarda Lemos, a Tchanna, ensaia na mesma escola e, nos fins de semana, compete em bailes de funk e brega.

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Na série Faz que Vai, ampliando as possibilidades de gênero, os retratados dançam à revelia do machismo que define limites para o corpo e os afetos

Acima, Ryan, still de Faz que Vai, 2015. Na página ao lado, Tchanna, still de Faz que Vai. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2015

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Heráclito sempre se interessou por materiais “intermediários”,

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isto é, em estado de transformação física ou simbólica

Em encontros individuais com Bárbara e Benjamin, os quatro estabeleceram coreografias para vídeo e fotografias lenticulares, que sobrepõem diferentes imagens para gerar a impressão de movimento. A dança poderia conter elementos de frevo e dos outros ritmos praticados – swingueira, funk, brega, alguns dos mais populares nas periferias das cidades nordestinas, ou Vogue e Stiletto, comuns nas festas do público LGBT. São chamadas de “fervo”, do verbo ferver, curiosamente, assim como o frevo. Ainda segundo o método estabelecido para o trabalho, os movimentos deveriam ser feitos já para câmera e apenas com a referência das batidas sonoras de um metrônomo de marcação de tempo. A música seria atribuída pela Orquestra Popular da Bomba do Hemetério só depois das filmagens. As transições e interações entre repertórios que os bailarinos acumulam no corpo ficaram a critério de cada um. Assistindo-se no vídeo, tomaram decisões sobre os passos e negociaram suas imagens com os artistas e com o câmera, Pedro Sotero. Os figurinos variaram do torso masculino nu à “montação” de uma Drag-Queen. Os cenários recortaram

lugares triviais e anônimos da cidade em planos frontais que os tornaram janelas de representação, como costumam ser os palcos teatrais e as telas de pintura ou cinema. Filmados em plano aberto, da cabeça aos pés, foram os corpos de Ryan, Edson, Bhrunno e Tchanna que desafiaram a frontalidade desse lugar e tentaram, através da dança, revelar suas camadas, dar-lhe a tridimensionalidade que é, ao mesmo tempo, atributo e problema para os sujeitos e para a vida comum. O resultado é um espaço que acumula vocações, tanto palco quanto terreiro, tanto imagem quanto dispositivo escancarado. Nele, como no anterior da dupla, Cinema Cassino (2013), bailarino e câmera parecem duelar, cada qual querendo entregar os artifícios de ilusionismo e construção do outro. O bailarino exige o movimento da câmera. A câmera, ao final do movimento, procura estabilidade para a conclusão. Fechada em primeiro plano, persiste na busca do retrato. Em vez dele, testemunha o desmonte da fantasia pelo suor, o esgotamento que faz tremer, o olho no olho que desmitifica o personagem, seja porque o deixa acessível ou defensivo

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Sem título, da série Brasília Teimosa, 2005

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O retrato é acessado quanto cânone. Comum à história

demais, seja porque o deixa empático ou empostado demais. Vemos o intérprete, suas promessas e fugas. Vemos o retrato adiado ou uma tentativa de politizá-lo.

da arte e ao fotojornalismo,

AINDA ASSIM, O RETRATO

atividade na qual Bárbara Wagner iniciou sua carreira

Acima, Estrela Brilhante, 2008. Acima, ao lado, Cambinda Brasileira, 2009

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Recurso de documentação e legitimação de subjetividades, o retrato também é acessado enquanto cânone. Comum à história da arte e ao fotojornalismo, atividade na qual Bárbara iniciou sua carreira, pode servir para ratificar perspectivas e papéis sociais, definir o outro e, com isso, exercer poder. São inúmeras, no entanto, as viradas técnicas e estéticas que colocam em crise essa concepção. As selfies, ou autorretratos da era digital, tornaram cotidiano, autônomo e consciente o exercício do “eu” público. Em detrimento da homofobia e do conservadorismo encampado pela crescente bancada evangélica no Congresso brasileiro, as discussões sobre corpo e identidade de gênero tiveram importantes avanços com o fortalecimento de grupos LGBT, a organização

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da cartilha Escolas sem Homofobia, pelo Ministério da Educação, e a disseminação da Teoria Queer em livros como Manifesto Contrassexual, de Paul Preciado, traduzido para o português em 2014. Diante de sujeitos cada vez mais soberanos em suas construções identitárias, além de, obviamente, ainda imbuídos de refutar estigmas, estereótipos e guetos, seguir praticando retrato permite, em contraparte, corromper a ideologia do cânone. Ou seja, aproveitar-se da sua linguagem consolidada e dos seus circuitos de recepção para disseminar processos e visualidades que lhe escapam e devolvem ao terreno fértil, embora perigoso, da criação. Alguns desses fatores são a interferência declarada do fotógrafo na cena documental, em oposição ao fragrante, e o consentimento do personagem em ser fotografado, interessado que está em também dirigir sua própria imagem. Os retratos estão presentes no trabalho individual de Bárbara Wagner desde Brasília Teimosa (2007), em que

foi a campo para documentar os domingos em uma praia popular e, com o uso de flash, que desnaturaliza a luz, mas, principalmente, o ato fotográfico, registrou o modo como os banhistas ostentavam uma estética de periferia pujante, orgulhosa e desprovida de subserviência de classe. Em Estrela Brilhante (2010), acompanhou em Nazaré da Mata as sambadas de maracatu rural, quando, sem fantasia ou grandes plateias, ao lado do canavial onde muitos deles trabalham, os caboclos de lança começam a se preparar para o Carnaval. Dançam viris e são todos homens, como os que participaram de Faz Que Vai. Cada qual à sua maneira – correspondendo a uma identidade de gênero masculina em Estrela Brilhante e ampliando essas possibilidades em Faz Que Vai –, dançam à revelia do machismo que define limites para o corpo e os afetos, de uma tradição que adormece e comodifica as manifestações populares e os sujeitos que as vivenciam, de uma base rígida para se estar e se ser. Deixam sua imagem dançar, investigativa e errante. FOTOS: CORTESIA AMPARO 60

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I N T E R N AC I O N A L

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ALÉM DE EXTREMAMENTE FELIZ E BEM-HUMORADO,

o título da exposição que reúne mais de cem obras de artistas mulheres, pertencentes à Rubell Family Collection, está intimamente alinhado com os conceitos centrais do discurso feminista. A expressão no man’s land remonta à Primeira Guerra Mundial, quando o termo definia o território situado entre os fronts de armadas inimigas entrincheiradas. Essa área – de passagem proibida e altamente perigosa – é um dos elementos centrais do clássico Paths of Glory (Glória Feita de Sangue, Stanley Kubrick, 1957). Na língua inglesa, o termo também é utilizado para definir locais em que o controle foi abandonado, após ou durante um conflito armado. A tradução para o português seria ‘terra sem lei’, território que não pertence a ninguém. Uma boa dose de ironia subversiva envolve a utilização de um termo associado a territórios “masculinos” como título de uma exposição de obras de artistas mulheres. Demonstra, de entrada, a vontade de quebrar paradigmas – ou de estilhaçar vitrines, ao modo das Sufragistas inglesas do início do século 20. Mas a curadora Tami Katz-Freiman não fica por aí. Ao apontar outro clichê – a associação entre terra e feminilidade –, ela evoca um argumento do feminismo radical. “O termo no man’s land é baseado na ideia de fronteira, em outros atos relacionados a circuncisão e exclusão”, escreve ela no catálogo da exposição. “De forma significativa, a origem etimológica da palavra gênero é também relacionada a atos de partilhar, classificar, categorizar – e, portanto, em criar limites e obstáculos. (...) Essa interseção entre as noções de gênero, fronteiras e classificação levou os artistas associados à primeira onda do feminismo radical a estabelecer uma nova forma de discurso que transcendeu fronteiras baseadas em gêneros e desconstruiu estruturas da linguagem e da cultura.” O recorte da coleção está pautado por princípios que conceituam os pensamentos feministas, mas também definem o pós-modernismo: a transgressão de fronteiras entre diferentes domínios e a dissolução de hierarquias. Dessa forma, além de estilhaçar conceitos, a curadora Katz-Freiman inverte sentidos. Na exposição distribuída em toda a extensão da Rubell Family Collection, em Miami, até 28 de maio, o termo No Man’s Land tem seu sentido alterado para área livre, aberta, twillight zone. PA SELECT.ART.BR

SEM FRONTEIRAS Conceitos do pós-modernismo e do feminismo radical pautam a exposição No Man’s Land, na Rubell Family Collection, em Miami

À direita, Prière de Toucher (2000), fotografia da britânica Sarah Lucas

Not Yet Titled (2013), da norueguesa Idda Ekblad

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FOTOS: CORTESIA RUBELL FAMILY COLLECTION

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Wigs (Porf贸lio) (1994), litogravuras da norteamericana Lorna Simpson

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Schauspiele (2013), da alem達 Isa Genzken

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Jo (1993) e Justin Bond (1993), fotos da norteamericana Catherine Opie FOTOS: CORTESIA RUBELL FAMILY COLLECTION

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MÚSICA

MINAS FIRMEZA

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Conquistando visibilidade no cenário machista do hip-hop e do funk, compositoras encontram lugar para brigar por igualdade de gênero na quebrada

C A M I L A R É G I S E L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O

DESDE MEADOS DOS ANOS 1980, A PERIFERIA GANHOU VOZ COM DOIS GÊNEROS IMPORTADOS DOS EUA – mas

aclimatados pelo tempero brasileiro. Se até os anos 2000 a hegemonia masculina ofuscava as “minas da perifa”, ao longo desse tempo elas ganharam consciência de seus direitos na música e no mundo e hoje não deixam barato. Seja contra letras sexistas como Dona Gigi (Os Caçadores) e Trepadeira (Emicida), seja por mais visibilidade e participação nos palcos, elas soltam o verbo para mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser, e que elas querem os mesmos direitos, inclusive o de desejar. Nesse velho novo século, funkeiras e mulheres MCs usam tanto o papo reto quanto o deboche para protestar e são a nova cara da música da rua. SÓ BACKING VOCALS

Elas vêm ganhando território com organização e consciência. Pela realidade que as cerca, as mulheres do rap são enfáticas contra o machismo que domina a cena hip-hop. Se, no início do movimento no Brasil, em meados dos anos 1980, as “minas” tinham de se vestir como homens, com roupas largas e boné para serem respeitadas, hoje cantam versos que denunciam a opressão machista – no rap e na periferia. No Brasil, o gênero de protesto contra a desigualdade social e racial ganhou visibilidade por nomes como Racionais MCs e RZO – enquanto veteranas como Dina Di, SELECT.ART.BR

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“A mulher periférica enfrenta o machismo, o racismo, as

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barreiras de classe. É um empoderamento próprio que Sharylaine e Lady Rap seguiam na sombra. “Em 1996, aos 16 anos, eu já dançava em crews e comecei a ir a shows de rap. Me dei conta de que não havia mulheres cantando, só backing vocals. Isso me incomodava”, diz Luana Rabetti, 36, ou MC Lunna, que com a DJ Simone forma a dupla Livre Ameaça. Lunna virou militante sem se dar conta. Ao se casar, em 2002, com Mandrake, do portal Rap Nacional, pedia espaço no site para as mulheres do rap. O casamento terminou em 2004, mas a luta feminista, não. Do hotsite para a organização de um fórum nacional feminino do rap em 2010 foi um pulo. “O hip-hop é uma ferramenta de diálogo em diversas áreas, como educação. É uma linguagem da periferia e tem esse papel de ponta no feminismo da mulher negra”, explica Lunna. No fórum surgiu a demanda por uma congregação mais ampla. Nascia aí a Frente Nacional das Mulheres no Hip-Hop, que hoje tem duas publicações listando o Olimpo da cultura de rua feminina e mais de cem integrantes de todo o Brasil. Uma delas é a MC Luana Hansen, 34, que hoje grava os próprios discos no estúdio montado em casa. Ela é a prova viva de que o hip-hop salva. Com a mudança, aos 15 anos, da Bela Vista para Pirituba (SP), descobriu que podia ganhar dinheiro vendendo drogas. Só deixou de ser “avião” quando as rimas que fazia para brincar com os clientes chegaram aos ouvidos de Sandrão, do RZO – mesmo grupo que

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está além da questão se é feminismo ou não”, diz Laila, da Liga do Funk

revelou Negra Li. Foi ele quem a colocou no primeiro grupo de rap, A Força, aos 21 anos. Mas foi a amiga Tina, com quem formaria o grupo A-TAL, quem pediu ao comando do tráfico para poupar a vida da rapper. Isso não foi nada perto da decepção que sofreu quando sua sexualidade veio à tona, no trabalho como DJ na Vila Madalena (SP). “O dono do lugar ficou sabendo que eu era lésbica. Cheguei para tocar e ele me mandou embora. Ele disse que tinha a ver com minha vida pessoal e que agora entendia por que eu nunca ficava com nenhum cara”, contou à seLecT. Com a demissão e os comentários maldosos na cena, Luana não era mais convidada para cantar e entrou em depressão. Isolou-se em Mongaguá, no litoral sul de São Paulo, até que, por uma série de fatos – que vão desde a excursão de um ano como MC e DJ do pagodeiro Rodriguinho ao filme 4 Minas, que contava sua história e de mais três meninas lésbicas – entendeu que, além de ser rapper, precisava se posicionar contra o preconceito. “Não conheço nada de teoria feminista. Posso dizer que eu sou feminista porque sou uma mulher negra da periferia e que, indiferentemente da minha orientação sexual, eu já sofria preconceito. Depois que me declarei lésbica, ficou pior, porque desci para outro patamar: ‘Eu não vou te comer, então pra mim você não serve’.” Hoje, com músicas como Flor de Mulher e Ventre Livre de Fato, é ativa dentro da cena hip-hop pela visibilidade da mulher negra, seja ela hétero ou homossexual.

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A MC Luana Hansen deu a volta por cima depois de sofrer preconceito duplo na cena hip hop, por ser mulher e lĂŠsbica FOTOS:

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Flor de Mulher (trecho) Luana Hamsen (A cada duas horas uma mulher é assassinada no País) Mulher, no topo da estatística 32 Anos, uma pobre vítima Vivendo num sistema machista e patriarcal Onde se espancar uma mulher é natural A dona do lar, a dupla jornada Sempre oprimida, desvalorizada Até quando eu vou passar despercebida A cada 5 minutos uma mulher é agredida E você, pensa que isso é um absurdo A cada hora 2 mulheres sofrem abuso Sai pra trabalhar, pra quê? Pra ser encoxada por um zé feito você Que diz: “Eu não consegui me controlar Olha o tamanho da roupa que ela usa, rapá!” A culpada, em todos os lugares Violentada, por gestos, palavras e olhares Alvo do mais puro preconceito Já que tá ruim, ela que não fez direito! Objeto de satisfação do prazer Desapropriada da opção do querer Agredida em sua própria residência Julgada sempre pela aparência Numa situação histórica e permanente A sociedade que se faz indiferente Questão cultural, força corporal Visão moral, pressão mental Levanta sua voz e me diz qualé que é É embaçado ou não é... Ser mulher! Para garantir espaço para as rappers , MC Lunna criou uma frente nacional que congrega as guerreiras da cultura de rua

(Se eu sou mulher estou pronta pra lutar) (Se eu sou mulher eu vou sempre avançar) (Se eu sou mulher ninguém vai me parar Ninguém vai me parar!)

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A mineira MC Xuxu começou a carreira no rap, aos 17 anos. Depois de encarar a prostituição e a discriminação, hoje ela é uma importante voz da militância LGBT dentro do funk

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AS PREPARADAS

Em 2004, o duo de artistas Tetine, formado por Bruno Verner e Eliete Mejorado, subiu ao palco do Sónar, um conhecido festival de música eletrônica. No repertório, uma música que falava sobre posições sexuais e idas ao motel. Poucos sabiam, mas a autora da faixa era Deise Tigrona, compositora carioca que assinou uma infinidade de funks, entre eles Injeção, sampleado pela anglo-cingalesa M.I.A no hit Bucky Done Gun. Dos morros do Rio de Janeiro aos palcos de festivais frequentados pela classe média, o funk, conhecido por suas letras explícitas sobre sexo, crime e cotidiano da favela, tornou-se um poderoso espaço de militância – em especial para mulheres. Criada em 2011 pelo empresário Marcelo Galático, responsável por agenciar shows de funkeiras como Valesca Popozuda, a Liga do Funk é uma associação cultural que oferece aulas de postura de palco, canto e rima, além de realizar atividades voltadas para formação social. Mas algo ainda faltava. “Quando fui à Liga, a primeira coisa que observei foi que tinha pouca mina e existiam atitudes machistas. Percebi que tínhamos de falar de assuntos como maioridade penal, mas também sobre mulheres”, conta Laila Almeida Braga, 22, produtora cultural na Liga do Funk e estudante de Geografia da USP. A partir desse insight, a instituição passou a fazer mesas de discussões temáticas e pelo menos uma vez por mês uma mulher era convidada para falar. “Começamos a levar pessoas de movimentos sociais e deixou de ser só um evento com MCs. Chamei a Luana Hansen, a grafiteira Nenê Surreal, as Mulheres na Luta, que foram responsáveis pelo Grafitaço contra o Top 10 (uma lista divulgada na internet com um ‘ranking’ de desempenho sexual de adolescentes na periferia de São Paulo)”, diz Laila. Práticas do gênero fizeram com que o espaço ficasse cada vez mais convidativo para mulheres e pautas femininas dentro do funk se tornaram mais frequentes. Questionada sobre as figuras hipersexualizadas do funk, Laila diz não ver uma incoerência entre essa postura e o feminismo. “Temos música machista em qualquer espaço, do rap ao sertanejo. O funk fala bastante sobre liberdade sexual. A Tati Quebra Barraco foi muito importante, por exemplo, porque abriu caminhos para outras meninas”, explica. “A mulher perifé-

Laila Almeida Braga é produtora da Liga do Funk, associação dedicada à formação artística e social de funkeiros

rica é empoderada, pois ela enfrenta o machismo, o racismo, as barreiras de classe. Se você tem um filho, ele está na beira da estatística o tempo inteiro. É um empoderamento próprio que está para além da questão se é feminismo ou não.” DIVERSIDADE

A abertura para o debate dentro do funk criou nomes como MC Xuxu, funkeira transexual de 27 anos, nascida em Juiz de Fora (MG). Compositora de suas próprias músicas, Xuxu ficou conhecida pela faixa Um Beijo, atualmente com mais de 1 milhão de visualizações no YouTube. “Descobri que minha luta era muito maior, porque eu carregava o peso de ser negra, da favela e travesti. Foi quando me tornei feminista. Escrevi essa música porque queria mostrar a diversidade e falar de um jeito que chegasse a todo mundo.” Antes de virar um nome LGBT importante dentro do funk, a mineira enfrentou a prostituição dos 18 aos 20 anos, no Rio de Janeiro, e foi nesse período que entrou em contato com o ritmo musical. Ao voltar para sua cidade natal, Xuxu passou a investir na carreira de cantora e se firmou na cena funkeira. Nos últimos dois anos, participou do encerramento da Parada Gay, em São Paulo, e, entre uma batida e outra, viu ali uma oportunidade para não só expor sua música, como também para agir politicamente. “Fiquei muito feliz e orgulhosa, porque não tinha nem material direito e me ligaram dizendo que precisavam de uma trans. É muito bom saber que pude representar travestis e transexuais que morrem em todo o País.” FOTOS: ACIMA, CAMILA RÉGIS. NA PÁGINA AO LADO, DIVULGAÇÃO

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DURAS CIÊNCIAS

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Preconceitos e vícios comportamentais retardam a carreira das mulheres na área científica

CAMILA RÉGIS

Em 2005, o reitor da Universidade de Harvard, Lawrence Summers, sugeriu, durante uma conferência, que mulheres são menos aptas para as ciências exatas. Dez anos depois, em junho de 2015, Tim Hunt, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, participou da Conferência Mundial para Jornalistas de Ciências, na Coreia do Sul. Na ocasião, o professor da University College London falou que “três coisas acontecem quando há mulheres no laboratório: você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você e elas choram quando são criticadas”. Após desculpas públicas, ambos perderam seus empregos e acalorados debates ressurgiram sobre a presença feminina nas chamadas hard sciences, que englobam disciplinas como Engenharia, Matemática, Física e Química. A primeira grande questão que se impõe é: por que ainda há poucas mulheres no meio científico? Diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Marcia Barbosa, além de realizar pesquisas em fluidos complexos, desenvolve um estudo sobre a participação de mulheres na ciência brasileira. A carência de atuação feminina no campo seria uma das razões para disparidades tão gritantes quanto esta: no Brasil, mulheres ocupam apenas 5% dos altos cargos nos institutos e departamentos de Física. “Pais afastam as meninas, mas

não os meninos, de qualquer aventura juvenil que signifique perigo, agressividade ou sujeira. Ciência é risco, necessita agressividade e normalmente faz sujeira”, diz Barbosa à seLecT. “Meninas são presenteadas com brinquedos pouco dinâmicos e criativos. Na adolescência, ciência é associada com falta de feminilidade.” Outro fator que a pesquisadora aponta não é exclusividade do cenário científico. “Vivemos em uma sociedade dominada por homens, portanto, os perfis de sucesso são masculinos. Propagandas que querem mostrar pessoas poderosas e de sucesso mostram homens. Cultivamos a imagem de que eles são os que detêm o conhecimento.” Ou seja, ao aliar uma representatividade discreta à ideia de talento inato (“ciência é para homens”), a receita para a desigualdade está pronta. CLUBE DO BOLINHA

No dia 11 de setembro de 2003, durante a cerimônia de posse do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou o órgão de “Clube do Bolinha”, já que dos 24 integrantes apenas um era mulher – Wrana Maria Panizzi, ex-reitora da UFRGS. Treze anos após o evento, a fala ainda é verdadeira. Depois de analisar uma década de bolsistas do Conselho Nacional de Desenvol-

Na página à esq., a bióloga e feminista Bertha Lutz (1894-1976). Formada em Ciências Naturais pela Sorbonne, a pesquisadora foi deputada federal e participou da luta pelo voto feminino no Brasil

FOTO: DIVISÃO DE IMPRESSOS E FOTOGRAFIAS DA BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS ESTADOS UNIDOS (NPCC13397)

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Marcia Barbosa, diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na página ao lado, a historiadora Margareth Rago, professora da Unicamp

vimento Científico e Tecnológico (CNPq), nas áreas de Física e Medicina, Marcia percebeu que nada se alterou significativamente. “A ideia de que para as coisas melhorarem basta esperar é falsa. Os porcentuais de bolsistas 1A, 1B, 1C , 1D e 2 nessas duas áreas muito competitivas não mudaram. No entanto, em países onde existe uma política de ação afirmativa, o porcentual se ampliou. Se não se faz nada, nada acontece.” Na ciência institucional há ainda outro elemento que pesa contra a atividade científica feminina: a maternidade. Atualmente, bolsistas de doutorado têm o direito garantido à licença caso engravidem. Entretanto, de acordo com Marcia, que também foi presidente do Comitê Assessor de Física do CNPq, o benefício ainda não é totalmente eficiente. “O programa de pós-graduação (que tem uma gestante) é ‘punido’, pois o fato de uma bolsista demorar mais tempo para terminar o doutorado reflete negativamente na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).” A passos curtos o órgão federal aplica algumas medidas para fomentar o debate sobre a pauta, como o programa Promovendo a Igualdade de Gênero, que busca identificar barreiras e ressaltar biografias de mulheres cientistas de destaque. SEM PASSADO

Ao longo da história, a escassez de mulheres em papéis protagonistas foi um fator que permeou muitas esferas do conhecimento. Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, a historiadora Margareth Rago acredita que essa exclusão aconteceu porque a cultura como se conhece segue um pensamento moderno que surgiu no século 19. “Nem sempre foi assim, antes algumas nobres eram mulheres da sociedade, mas com a Modernidade, a ascensão da burguesia e sua definição do que é mulher, do que é homem, do que é família, do que é amor, aconteceu a remodelação da vida. É um modo de viver moderno, mas o moderno quer dizer branco, masculino e burguês.”, diz Rago à seLecT. SELECT.ART.BR

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“Propagandas que querem mostrar pessoas poderosas mostram homens. Cultivamos a imagem de que eles detêm o conhecimento”, diz Marcia Barbosa

Ela reconhece que, em perspectiva, os avanços na representatividade feminina foram exponenciais nas últimas cinco décadas. “Até os anos 1970, não tínhamos passado. Quando se pensava sobre mulheres na história, só se falava de Cleópatra, Joana D’Arc, Maria Antonieta, Princesa Isabel e as amantes”, explica. “Mas faz 50 anos que o feminismo do segundo momento ganhou muito espaço. Hoje existe uma produção enorme. Temos a história das mulheres na Revolução Francesa, na Revolução Russa, no Fascismo, no Brasil. Tanto à direita quanto à esquerda.” Esse processo de inclusão se mostrou benéfico não só para cientistas e pesquisadoras, mas para o saber em si. “Na minha área de estudo, a entrada das mulheres foi impressionante, porque não gerou só a história das mulheres. Nasceu a história do mundo privado, daquilo que na cultura era considerado natureza, como a maternidade, a sexualidade, a prostituição, o corpo, o aborto, a histeria, o discurso médico.” Tanto Margareth Rago quanto Marcia Barbosa apontam que a produção do conhecimento nem sempre é neutra e por isso mesmo deve ser guiada pela multiplicidade. Essencializar funções de acordo com o gênero, designando o que homens e mulheres podem fazer, racha ao meio as possibilidades do pensamento científico. “Se continuarmos vendo o mundo em oposições binárias, se não criticarmos essas formas de pensar, vamos continuar excluindo e pensando hierarquicamente. A questão é: como libertar o pensamento dessas categorias que congelam e excluem?”, finaliza a historiadora.

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FOTOS: NA PÁGINA AO LADO, JULIAN DUFORT PARA LÓREAL FOUNDATION E, ACIMA, CAMILA RÉGIS

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C O M P O R TA M E N T O

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MENINAS SUPERPODEROSAS

Na música, na escola ou no esporte, a nova cara do feminismo é combativa e mostra que a militância começa cedo

L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O FOTOS H E L E N A WO L F E N S O N

Elas não têm medo de briga e começam cedo a se organizar em ações de empoderamento da mulher. As meninas superpoderosas do feminismo entram na luta por igualdade turbinadas pelas redes sociais, onde articulam grupos e ideias. Na onda das grandes conquistas do século 20, como o direito ao voto, o ingresso no mercado de trabalho, o divórcio e a livre sexualidade, elas sabem que ainda há muito por fazer. Para Soffia Gomes da Rocha Gregório Correa, 11, ou só MC Soffia, como ficou famosa, a mãe e a avó (ambas mães solteiras) têm papel fundamental em sua consciência feminista e racial. Kamilah Gomes Pimentel, a mãe, a teve aos 18 anos e não quis casar com o pai da menina. “Quando ela nasceu, minha mãe já era atuante na militância. Participávamos de eventos para discutir a questão da mulher e fazer o recorte racial da mulher negra. São lutas contra muitas coisas iguais, mas (as mulheres negras) temos muitas questões nas quais precisamos avançar e que são diferentes. Então esse foi um caminho muito natural para Soffia”, diz Kamilah à seLecT. Aos 7 anos, a menina participou de oficinas de hip-hop e de MC (a voz do rap) na Livraria da Esquina, espaço cultural da Barra Funda, SP. Fez uma rima e pediu para a mãe levá-la para cantar em saraus, até chegar a participar do show no aniversário de São Paulo, no Anhangabaú (2011). Ela tinha dez minutos para se apresentar, mas o refrão, sempre o mesmo, só tinha dois minutos. “Como eu era pequena, nem nervosa fiquei, dancei mais que tudo”, lembra Soffia. Atualmente, ela compõe as próprias letras com a ajuda da mãe, que sugere rimas e acerta a métrica. “Mas as ideias são todas dela”, diz Kamilah. Todas sobre mulheres negras conscientes e felizes com sua beleza natural. “Fico muito animada, porque estou passando a ideia de empoderamento para as outras meninas, para que o mundo mude com a ajuda das minhas músicas e para que o racismo e o machismo acabem”, define. Kamilah fala sobre o futuro para a menina. “Eu a oriento para profissões como medicina, direito e engenharia, porque a população negra precisa de representantes nessas áreas.” Soffia quer ser cardiologista e pesquisa muito, graças também à sua escola-modelo, o Projeto Âncora, cuja didática sem divisão por séries tem atividades que buscam desenvolver como um todo as capacidades individuais dos alunos. EDUCAÇÃO COMO CONSCIÊNCIA

O ambiente escolar também foi o berço da conscientização do Coletivo Quaerere, formado no começo de 2015 por alunos do 3º ano do Colégio Oswald de Andrade, de SP. “Notávamos que mesmo na escola havia muita gente que não tinha consciência da questão da diferença entre gêneros, e a abordagem em palestras de assuntos como doenças sexualmente transmissíveis e gravidez era sempre técnica”, diz a estudante Ana

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A ultrajovem MC Soffia (esq.), 11 anos, ĂŠ orientada desde cedo pela mĂŁe, a militante feminista Kamilah Pimentel (dir.), a pensar em seu papel como mulher negra dentro da sociedade

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Da esq. para a dir., Anna Haddad, Giovana Camargo e Carol Patroc铆nio, que juntas formaram um f贸rum de acolhimento para mulheres na net SELECT.ART.BR

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“As meninas estão na linha de frente das manifestações. Enfrentam a polícia, são supercombativas”, diz Anna Haddad, do www.comum.vc

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Carolina Yamamoto à seLecT. Com ela, formam o coletivo Julia Meneghelli, Luiza Souza, Mariana Marques, Helena Gonçalves, Camilla Delouya, Julia Andrade, Isadora Claro Ambrósio e Catarina Sarkovas e Cesar Costa (único menino do grupo), todos com 17 anos. “Achamos que seria legal falarmos de machismo por essa lacuna de informação, mas não sabíamos muito de que forma fazer”, diz Mariana Marques. Como entrar nas classes falando de temas que não dominavam? “Todo ano, o colégio faz o Rupturas, que são debates sobre um tema diferente a cada edição. Nosso professor, Kadu Braga, sugeriu que organizássemos a edição de 2015 no lugar dos professores, e ele nos ajudou. Não imaginávamos que daria tanto trabalho”, conta Julia Meneghelli. Entre cancelamentos, imprevistos e a ansiedade da realização de um evento grande, conseguiram fazer com que os alunos aderissem maciçamente às atividades. Entre os temas propostos: o empoderamento das mulheres, a desmarginalização da transexualidade, uma sessão do filme Que Horas Ela Volta? seguida de bate-papo com a diretora Anna Muylaert, e a desconstrução do machismo – evento só para meninos –, contribuição de Cesar Costa à programação. “Minha irmã, que é seis anos mais velha, era feminista desde cedo e sempre me orientava nesse sentido. Para mim, é muito natural enxergar as mulheres de forma igual, não ter preconceitos”, diz Cesar. Com o fim do ano, o grupo também terminou o colégio e passa por uma “crise institucional”: “Ainda não sabemos como vamos continuar o coletivo, que formato vamos dar a ele. Mas, com certeza, temos vontade de prosseguir”, diz Luiza Souza. MEXEU COM UMA, MEXEU COM TODAS

Foram as companheiras do curso de Letras na USP que abriram os olhos de Aline Oliveira, 20, para a condição de desigualdade das mulheres. “Milito há cerca de três anos”, conta ela à seLecT. Mas foi o estupro de uma moça na cabine do Bilhete Único do metrô República, em abril do ano passado, que a motivou a começar, ao lado de mulheres de várias idades, o Frente contra o Assédio, movimento autônomo e sem liderança que já promoveu quatro atos públicos em lugares como estações de metrô na capital paulista e realiza rodas de conversa, muitas delas em escolas.“Passei minha vida vendo meu padrasto bater na minha mãe, mas era criança, tinha medo. Há um tempo atrás, ele foi um dia em casa pegar um documento e torceu meu braço quando eu desci no lugar da minha mãe para entregá-lo. Falei que era isso que eu estava esperando, porque agora ele seria processado por mim. Ele nunca mais apareceu”, conta Aline. Ela também ressalta a necessidade da distinção da luta da mulher negra, “mais oprimida que a mulher branca”.

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Da esq. para a dir., Mariana Marques, Julia Meneghelli, Ana Carolina Yamamoto, Cesar Costa e Luiza Souza formaram um coletivo para falar sobre a diferença de gêneros dentro do colégio SELECT.ART.BR

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O principal alvo da Frente contra o Assédio é a pouca importância dada aos casos de abuso sexual no transporte público. “Já fizemos ações de distribuição de alfinetes, por exemplo, porque estimulamos as mulheres a se protegerem mutuamente e a reagirem, seja com uma cotovelada, um empurrão, ou pedindo ajuda às outras. O nosso lema é ‘Mexeu com uma, mexeu com todas’.” Além de conscientização, a escola e a universidade propiciam articulação. Um exemplo disso foi a participação maciça das meninas nas ocupações em escolas estaduais, contra a reorganização proposta pelo governo de Geraldo Alckmin no estado de São Paulo. Outro fato relevante é a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), entidade com forte atuação nessas passeatas, ter hoje uma presidenta, Camila Lanes, 19. “Temos ouvido nas rodas de conversa nos colégios ocupados que as meninas estão na linha de frente das manifestações. Enfrentam as instituições, a polícia, são supercombativas. Até porque elas amadurecem antes dos meninos, que estão em outra dinâmica na adolescência”, diz a advogada Anna Haddad, 29, que administra há cerca de cinco meses o Comum.vc (www.comum.vc), ao lado da jornalista Carol Patrocínio, 30, e da gestora ambiental Giovana Camargo, 26. O site tem um fórum virtual, espaço de acolhimento de mulheres de todas as idades. Para as criadoras, fica clara a diferença de postura das mais jovens com relação ao feminismo. “Há uma dinâmica totalmente nova entre as meninas, graças à web e às redes sociais. O pessoal começa a compartilhar, a expor questões pessoais desde cedo, então tudo está muito às claras”, diz Giovana. Como o fórum é voltado para mulheres de todas as idades, as experiências das mais velhas ajudam a identificar apuros pelos quais passam as mais novas, e vice-versa. “As meninas descobrem caminhos únicos de lidar com as situações (machistas), com o mundo, com seu corpo, com as cobranças sociais e todas as dúvidas. A adolescência é um momento muito difícil e, se você é mulher, é três vezes mais, porque, além de todas as questões, ainda tem de ser perfeita”, diz Carol.

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ESPORTE RADICAL

Atuar em uma área não considerada “de menina” também quebra paradigmas. Que o diga a carioca Bia Sodré, 20, skatista desde os 13. “Antigamente, tinha muito preconceito, mas as meninas começaram a ganhar visibilidade e isso vem mudando”, conta Bia à seLecT. O convite para a profissionalização veio com o fim do ensino médio e uma viagem à Europa, onde participou de campeonatos que lhe garantiram bons resultados e a atenção da escolinha de skate onde começou, que passou a patrociná-la. Ela e suas amigas vão juntas às pistas, alterando a cena predominantemente masculina. Com a vitória em campeonatos de meninas no bowl (pista côncava arredondada) e mistos no vertical (o pipe alto ainda tem pouca adesão de meninas, que por isso competem com os meninos), ela abre caminho no esporte radical para as futuras gerações. “Fico muito feliz de saber que há meninas mais novas que se inspiram em mim, como eu me inspirei na Karen Jonz (skatista campeã norte-americana, de 30 anos). É importante passar a ideia de que esportes radicais não são ‘coisa de homem’, as mulheres têm a mesma habilidade.”

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FORTALEZA

O RACIONAL E O INDOMESTICÁVEL MARIO GIOIA

Exposição atesta a potência da obra de Hélio Oiticica como manancial de proposições e relações com a arte moderna e a arte contemporânea Hélio Oiticica – Estrutura Corpo Cor, exposição dedicada ao seminal artista carioca que cada vez ganha mais espaço no contemporâneo internacional, atesta com robustez como sua obra pode ter variadas configurações, pontuada por trabalhos potentes ainda não tão conhecidos e que se tornam um manancial quase inesgotável de proposições e abordagens para quem lida com arte hoje. Longe do eixo Rio-SP – na Fundação Edson Queiroz, em Fortaleza –, a mostra, com curadoria apurada de Celso Favaretto e Paula Braga, exibe cerca de 50 peças e consegue não ser prejudicada pela antologia de grande monta que chega em outubro ao Carnegie Museum of Art, em Pittsburgh, e itinera ainda por duas importantes instituições dos EUA, o Whitney, em Nova York, e o Art Institut, em Chicago. Por uma saudável coincidência, o Penetrável Macaleia (1978) recebe ainda mais atualidade por sua grade de influência “mondrianiana” (o artista holandês é foco de raro recorte com suas obras no Brasil, em cartaz agora no CCBB paulistano). Nela, o carioca novamente mescla com habilidade as referências da modernidade, por meio do uso da paleta do mestre do neoplasticismo, com os ambientes tão diversificados que criou, gerando profícuas relações entre a forma e a vivência, o erudito e o popular, o racional e o indomesticável. Tal perturbação inquieta todo o espaço expositivo, seja pelas experiências ainda SELECT.ART.BR

bidimensionais que Oiticica aplica em subversivas práticas no quadro, tanto nas geometrias escuras e mais unidas que pontuam telas feitas à época do grupo Frente (nos anos 1950) quanto na forma que já registra um movimento para além do espaço contido em Seco 27 (1957) e também nos celebrados Metaesquemas (anos 1950). “Estou possuído”, escreve ele em um dos Parangolés (o P17, Capa 13, de 1966-1979), destinado à utilização do público, que também poderá elaborar ação similar à que deu origem ao Contra Bólide Devolver a Terra à Terra, de 1979, embaralhando as noções de espaço expositivo e de jardim, dormir nos colchonetes de Cosmococa CC1 Trashiscape (1973), e disputar uma animada peleja de sinuca na instalação Apropriação – Mesa de Bilhar D’Après “O Café Noturno” de Van Gogh (1966), por exemplo. “Meu trabalho não é nem arquitetura nem escultura e nem pintura no sentido antigo”, diz Oiticica em entrevista a Vera Martins, no ano de 1961. Em Estrutu-

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ra Corpo Cor, isso fica muito claro numa peça mais silenciosa, mas que intriga a cada nova visada – o Bilateral Equali (1959). A obra testa os limites da pintura e do tridimensional e, segundo o artista, relaciona-se com a música, mas não tem a ver com “contrapontos ou eurritmia”, e sim com a essência de tal linguagem. Num dos Núcleos (o NC5, de 1960), esse borrar de suportes cada vez mais se sedimenta numa passagem leve do público no entorno da peça ou por meio de uma sorrateira corrente de ar que invade a sala. “É, na verdade, a integração dos elementos cor, tempo e espaço numa nova estrutura”, frisa o artista, morto em 1980. Já a simplicidade é pungente em alguns Bólides,

A instalação Apropriação Mesa de Bilhar D’Aprés O Café Noturno, de Van Gogh, criada por Hélio Oiticica em 1966

Hélio Oiticica Estrutura Corpo Cor, até 1º/5, Espaço Cultural Airton Queiroz, Universidade de Fortaleza (Unifor)

como o Topological Ready-Made Landscape Nº 4, feito somente de uma forma de alumínio, areia e de um fundamental quadrado em vermelho. De 1978, faz um tributo a Lygia Clark (1920-1988), outro nome incontornável da visualidade brasileira, mas também pode se relacionar a Malevich (1878-1935), um dos diversos nomes-chave da história da arte mundial, que, na mostra em Fortaleza, ganha uma reinvenção tropical. Também não se pode deixar de vislumbrar desdobramentos mais históricos – pensemos em Cildo Meireles e Antonio Manuel, entre outros – e recentes – com Paulo Nazareth e os provocativos percursos, por exemplo. FOTO:ARES SOARES/DIULGAÇÃO

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SÃO PAULO

UM JOGO DE CHÁ NUNCA É APENAS UM JOGO DE CHÁ MÁRION STRECKER

Ataques em série a obras de arte, proferidos por suffragettes em museus britânicos, são assunto de instalação e livro de artista de Carla Zaccagnini Em 9 de abril de 1914, uma mulher identificada algumas vezes como Clara Lambert, entrou no British Museum, em Londres, e atacou com uma machadinha que levava escondida diversas vitrines do salão asiático, provocando a destruição parcial de um antiquíssimo jogo de chá de porcelana chinesa. Não foi um ato isolado. Outras mulheres na mesma época atacaram e danificaram obras de arte em outros museus ingleses, destruíram vitrines de lojas, jogaram ácido em caixas de correio e cortaram fios de sistemas de comunicação, entre outros atos que no Brasil de hoje seriam chamados de puro vandalismo. Entretanto, não foram atos de puro vandalismo. Essas mulheres faziam parte de um movimento político organizado que lutou e, por fim, conquistou o direito do voto feminino. Na Inglaterra, o direito de voto foi obtido por todas as mulheres acima de 21 anos apenas em 1928. Essas mulheres eram conhecidas como suffragettes, e são tema de um filme em longa-metragem ora em cartaz, As Sufragistas (2015), de Sarah Gavron, que por sinal nem menciona os simbólicos e espetaculosos ataques a obras de arte (leia resenha à pag. 92). O movimento sufragista também ecoou no Rio de Janeiro, então capital da República, e resultou no direito ao voto feminino no Brasil em 1932. SELECT.ART.BR

Entre os artistas que tiveram obras atacadas na Inglaterra estão Giovanni Bellini, George Frederick Watts e Diego Velázquez. A pintura Vênus ao Espelho (1647-1651), de Velázquez, sofreu sete golpes de faca de açougueiro, desferidos nas costas nuas da deusa por Mary Richardson, dentro da National Gallery de Londres, em 10 de março de 1914 (a imagem da obra danificada é a capa desta edição de seLecT. “A justiça é um elemento de beleza, assim como o são a cor e o traço sobre uma tela”, disse Richardson, que definiu as marcas dos seus golpes como “hieróglifos” com o potencial de expressar alguma coisa para as gerações futuras. A Royal Academy, a Royal Scottisch Academy, a Dare Gallery, o Birmingham Museum and Art Gallery e, especialmente, a Manchester Art Gallery foram outras instituições atingidas pela fúria militante. Até uma múmia egípcia teve a vitrine atacada no British Museum. Nesse caso, nem se sabe o sexo da múmia, que ficou intacta. Talvez a múmia não fosse o alvo, mas sim o fato de estar num museu britânico. Para identificar essas mulheres e prevenir novos ataques, a Scotland Yard adquiriu sua primeira câmera fotográfica, à qual as suffragettes, fotografadas contra a vontade, reagiram com olhos fechados e bocas franzidas. Hoje, as fotos são parte do acervo da National Portrait

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Fotografias de monitoramento de militantes sufragistas detidas por atacarem museus e obras de arte. Feitas à revelia com a primeira câmera fotográfica adquirida pela Scotland Yard, em Londres, em 1914, as fotos mostram algumas militantes de olhos fechados e bocas fanzidas para dificultar sua identificação

Gallery de Londres. Um jogo de chá nunca é apenas um jogo de chá, nota a artista visual Carla Zaccagnini, autora de uma instalação que está sendo apresentada no Masp e que o museu paulista intitulou como Histórias Feministas. Em resumo, na instalação de Carla Zaccagnini, no mezanino do subsolo do museu, aparecem os contornos das obras atacadas pelas suffragettes em dimensão real, no caso de haver a informação disponível, ou apenas com numerações. Além do campo delimitado, o visitante terá acesso a 29 áudios, para ouvir em iPods fornecidos pelo museu. Com duração entre 48 segundos e 2min59s cada, num total de pouco mais de uma hora de gravação, Carla e a escritora Noemi Jaffe se revezam narrando histórias da época, os detalhes dos ataques, as prisões, os processos, os argu-

Histórias Feministas/ Elementos de Beleza: Um Jogo de Chá Nunca É Apenas um Jogo de Chá, Carla Zaccagnini, Curadoria Fernando Oliva, até 13/3, Museu de Arte de São Paulo (Masp), Av. Paulista, 1.578, SP www.masp.art.br

mentos de defesa e quem foram as mulheres que protagonizaram essas histórias, além de fornecer informações sobre a situação feminina e especular sobre as escolhas temáticas das obras atacadas. O texto e a narração são mais do que interessantes. “Eu estava estudando crimes relacionados com a arte, vandalismo, falsificação e roubo, porque me interessavam esses momentos em que a relação com a arte vai além do que a sociedade permite”, diz Zaccagnini em entrevista. “O que tem na arte que faz com que as pessoas, de repente, se incomodem tanto com uma imagem a ponto de jogarem ácido? Elas carregam uma crença na arte que me parece muito fascinante.” Entre as histórias, Zaccagnini lembra que o chá era um produto imperial da Inglaterra, colhido por mãos coloniais. Enquanto o povão seguia a regra do milk first, servindo o leite frio antes do chá quente para não rachar a louça vagabunda, os “círculos adequados” serviam o chá primeiro como símbolo de distinção, já que sua porcelana de qualidade superior resistiria. “Muitas das obras que elas atacaram representam mulheres, algumas são mulheres nuas, outras são mulheres em momento de oração, tocando um instrumento ou lendo. Mulheres em papéis sociais aceitos naquele momento, ou personagens mitológicos cuja existência é definida em função de um papel masculino. Imaginar que alguém entra num museu com uma faca escondida na manga, um cutelo, uma machadinha, e que daí chega na frente de uma pintura, deixe esse negócio escorregar até a mão e projete o corpo em relação a essa pintura, isso tudo tem um dado com relação ao corpo que é muito potente e que o livro Elements of Beauty (livro de artista, 2012) deixava de lado. Foi aí que eu pensei em fazer essa instalação, um desenho do espaço que esses objetos ocupariam se eles estivessem expostos aqui. Esse desenho dá a noção do volume que isso tinha. O alcance desse ato.” FOTOS: © NATIONAL PORTRAIT GALLERY, LONDRES

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CINEMA

FEMINISMO FORA DA CARTILHA

As atrizes Anne-Marie Duff e Carey Mulligan interpretam as operárias militantes Violet Cambrigde e Maud Watts

NINA GAZIRE

Com arco narrativo pedagógico, filme conta a história do movimento sufragista de forma monótona Existem várias maneiras de se contar histórias. Sobre o movimento feminista conta-se que este se dá por meio de ondas. Mas como saber qual foi – realmente – a primeira onda em um mar infinito? No filme As Sufragistas (Suffragettes), Maud Watts, interpretada por Carey Mulligan, é mulher, jovem, pobre, mãe, submissa ao marido. Trabalha em condições precárias em uma lavanderia e vê sua vida mudar completamente ao, acidentalmente, se envolver em uma das ações de guerrilha de uma colega de trabalho que apedrejou uma vitrine para chamar a atenção das autoridades para a causa do voto feminino. Ainda sobre o modo de se contar uma história – quiçá montar um filme – pode-se dizer que a estória de Maud Watts se enquadra no estilo conhecido como Coming of Age (estilo de narrativa cronológica). Tendo o Movimento Sufragista como pano de fundo, mobilização que lutava pelo direito ao voto feminino e que reverberou as demais lutas feministas que arrebataram o século 20, o filme centra-

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As Sufragistas, 2015, direção Sarah Gavron, com Carey Mulligan, Meryl Streep, Helena Boham-Carter. Em cartaz nos cinemas brasileiros

-se na tomada de consciência de uma jovem mulher sobre sua condição de oprimida ao seu desejo despontado para uma vida livre, adulta. A não ser pela personagem fundadora do movimento WSPU (Women’s Social and Political Union), Emmeline Panckhurst, interpretada por Meryl Streep em uma breve aparição de interpretação um tanto quanto afetada, as demais personagens são fictícias, porém não menos válidas. Há uma escolha pela fantasia como arma para revelar o real. Tal arco narrativo justifica a opção da diretora britânica Sarah Gavron por um filme de estrutura pedagógica e, por isso, monótono. Não há intenção de contar fielmente a história do movimento sufragista ou fazer um biopic (filme biografia), mas imaginar de maneira didática como o feminismo pode mudar a vida das mulheres, mais especificamente das mulheres inglesas. Cada ação do filme desemboca de maneira previsível em uma reação, não deixando espaços para surpresas ou fatos relevantes, como, por exemplo, como se deu realmente a conquista do voto para mulheres na Inglaterra. Portanto, quem espera saber um pouco mais sobre o movimento sufragista pode se decepcionar. Apesar disso, cenas violentas da prisão das personagens, com torturas, violência doméstica, pedofilia e greve de fome podem chocar aqueles que imaginavam a luta pelo voto feminino feito apenas por pacíficas mulheres em trajes vitorianos segurando cartazes com o bordão “Votes For Women!”

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ARQUITETURA DOS FORTES Valores e sentidos que orientaram a arquitetura de Lina Bo Bardi são expressos em textos reunidos em nova coleção Sem meias-palavras, Lina Bo fala de violência, força, liberdade, raiva, acusação e direito à vida, quando se refere ao povo e à cultura que a inspiraram a realizar sua arquitetura no Brasil. Esses termos se aplicam perfeitamente também a seis de seus mais potentes projetos arquitetônicos no País, reunidos em uma coleção de seis livros, editados com a organização de Marcelo Ferraz: a Casa de Vidro, construída em 1950 e onde ela viveu até sua morte, em 1992; o Solar do Unhão, na Bahia; a Igreja do Espírito Santo do Cerrado, em Minas Gerais; o Sesc Fábrica da Pompeia; o Teatro Oficina e o Museu de Arte de São Paulo, que Lina dizia ter sido feito “especificamente à massa não informada, nem intelectual, nem preparada”. Para Lina Bo, um projeto arquitetônico não era apenas um projeto técnico, mas essencialmente uma atividade de cunhos social e cultural. Esse jeito de pensar e agir da italiana radicada em São Paulo orienta também a edição dos livros, que, além de vasta iconografia de plantas e desenhos, reúne textos de naturezas distintas, que elaboram questões técnicas e programáticas. No livro dedicado ao Solar do Unhão, por exemplo, ressaltam-se desde os critérios técnicos propostos para a recuperação de um monumento do século 16 até as diretrizes conceituais da curadoria inaugural do Museu de Arte Popular do Unhão, a exposição Nordeste, que em 2016 será revisitada pela curadoria do Masp. Entre as fotografias, as aquarelas e os dese-

Lina Bo Bardi, organização Marcelo Carvalho Ferraz, Edições Sesc, Iphan, R$ 99, 2015

nhos praticados à mão livre, talvez o material mais precioso seja mesmo os textos de Lina, que expõem ao leitor os valores que orientaram sua vida e carreira: “Importante na minha vida foi minha viagem ao Nordeste e o trabalho que desenvolvi em todo o Polígono da Seca. Ali eu vi a liberdade. A não importância da beleza, da proporção, dessas coisas, mas a de outro sentido profundo que aprendi com a arquitetura, especialmente as arquiteturas dos fortes, ou primitivas, populares, em todo o Nordeste do Brasil”. PA FOTOS: DIVULGAÇÃO

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MAIORIDADE DA MULHER Exposição devolve importância histórica a artistas que, em seu tempo, foram estigmatizadas por questões de gênero e poder Na literatura de Marcel Proust, as mulheres são retratadas como manipuladoras, ardilosas e perspicazes. Por trás do verniz do recato e da domesticidade, elas foram os obstáculos que o herói teve de superar, as lições que ele teve de aprender. A perda da inocência do protagonista de Em Busca do Tempo Perdido corresponde ao que, na pós-modernidade, o filósofo francês Jean-François Lyotard chamaria de esclarecimento (Aufklärung), citando Kant: a saída da menoridade. Porém, na mesma França e nos mesmos anos em que Proust desvendava convenções de gênero e sexualidade, os pressupostos disseminados socialmente determinavam que as mulheres eram, por natureza, mais sensíveis, dóceis e detalhistas. No campo da arte, eram tachadas de “amadoras” ou estigmatizadas dentro da noção de “arte feminina”. “Acreditava-se que eram menos capacitadas para a invenção, ou seja, propensas para gêneros menores, como as naturezas-mortas, as pinturas de gênero e, especialmente, as pinturas de flores, e menos capacitadas para as grandes obras, como a pintura de história ou a escultura monumental”, afirmam as curadoras Ana Paula Simioni e Elaine Dias, que realizaram, em setembro de 2015, na Pinacoteca de São Paulo, uma exposição sobre a inserção da mulher no sistema artístico brasileiro. Agora, o catálogo de Mulheres Artistas: As SELECT.ART.BR

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Publicação traz textos de Tadeu Chiarelli, diretor da Pinacoteca de São Paulo, das curadoras Ana Paula Simioni e Elaine Dias, e da socióloga Malu Eleutério

Mulheres Artistas: As Pioneiras (1880 1930), Pinacoteca do Estado de São Paulo, R$ 50

Pioneiras vêm mostrar que, à sombra do estigma de dóceis raparigas, as mulheres da virada do século 19 para o 20 acederam às práticas de ensino, se afirmaram como profissionais e realizaram obras de importância histórica. As cerca de 50 obras selecionadas, realizadas entre 1880 e 1930, atestam isso. O catálogo documenta trabalhos de artistas até hoje excluídas da historiografia da arte, mas também de pintoras reconhecidas em seu tempo, como Abigail de Andrade, primeiro prêmio na Exposição Geral de Belas-Artes, em 1884, e as damas do Modernismo Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. “As dificuldades em obter reconhecimento eram semelhantes no Brasil e na França, mas em alguns campos, como a escultura, as brasileiras tiveram mais chance de se profissionalizar, até porque o campo aqui era menos competitivo. Julieta de França e Nicolina Vaz de Assis são exemplos disso”, afirmam as curadoras. PA FOTOS: DIVULGAÇÃO

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MONTAR O QUEBRA-CABEÇA OU DESCONSTRUIR A POSE, POR SANTAROSA BARRETO

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AO DESEMBARCAR EM PARIS, para uma residência artística na Cité Interna-

tionale des Arts, Santarosa Barreto terá como objetivo iniciar um processo de “reconstrução” da obra L’Origine du Monde (1866), de Gustave Courbet (18191877). Para levar essa tarefa a cabo nos seis meses de duração da viagem, ela levará consigo um mapa particular da cidade. Nessa planta estão sinalizadas regiões muito específicas: museus, bibliotecas, feiras livres, zonas de meretrício, casas noturnas, escolas de pintura com modelos vivos e lojas que comercializam pinturas. Nelas, a jovem artista paulistana fará uma pesquisa de campo para o aprofundamento de um estudo sobre a imagem da mulher ao longo da história da arte e da literatura. O projeto parte da premissa de que existe um elo perdido entre L’Origine du Monde e a novela Madame Edwarda (1937), de Georges Bataille (1897-1962). Para a artista, a conexão se oferece na página em que a protagonista do livro defronta seu interlocutor com um nu frontal. “Tanto em Courbet quanto em Bataille, o corpo feminino é tomado como algo que traz consigo uma espécie de divindade”, explica Santarosa. “Na obra do primeiro, a pintura e o título sugerem que o mundo nasceu do ventre feminino. Na obra de Bataille, que narra um dia na vida de uma prostituta, Madame Edwarda afirma, ao abrir as penas, que é Deus”. Entre Courbet e Bataille, os dois personagens centrais no enredo proposto por Santarosa, se coloca um terceiro, o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) que, segundo pré-pesquisa da artista, teria adquirido L’Origine du Monde a conselho do amigo Bataille. A obra teria chocado a sra. Lacan, que encomendou ao artista Andre Masson (1896-1987) uma tampa de madeira para cobri-la. Após a morte de Sylvia Lacan, em 1994, a obra foi doada ao Musée D’Orsay, onde hoje está exposta sem o tapa-sexo. O contato direto com L’Origine du Monde, sem a obstrução de caixas de madeira ou a mediação via reproduções fotográficas, assim como o acesso a manuscritos originais do texto e outras fontes primárias da pesquisa estão entre as estratégias de Santarosa Barreto para a reconstituição do cenário parisiense do fim do século 19 e início do 20 – período que abrange a realização da pintura e a redação da novela. Na deambulação que a espera em Paris, a artista deverá escapar do tête-à-tête entre o pintor e o escritor, ampliando seu cerco de relações para o psicanalista – que tinha consultório na Rue de Lille, a mesma rua do Musée D’Orsay, onde SELECT.ART.BR

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A instalação Rasée (2015), na coletiva Agosto: Em Oito Atos, Estação Satyros, SP, consituiu a fase inicial da pesquisa que Santarosa fará em Paris

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FUTURO

DE OURO 2016

O FUTURO DO RIO DE JANEIRO SERÁ DOURADO A Editora Três vai organizar com exclusividade o seminário Rio: Futuro de Ouro, para debater tudo o que a realização dos Jogos Olímpicos deixará de positivo para a cidade. Com a presença personalidades olímpicas, profissionais do mercado e atletas, os painéis vão traçar um panorama completo sobre os ganhos que já podem ser vistos na cidade e o que será colhido nos próximos anos. Dias 17 de março, em São Paulo e 29 de março no Rio de Janeiro. Acompanhe a cobertura completa na edição 962 da ISTOÉ Dinheiro, que estará nas bancas dia 2 de abril.

foto: f11photo / Shutterstock.com

Entenda porque a cidade maravilhosa ficará ainda melhor, digna de medalha de ouro, com o seminário Rio: Futuro de Ouro, da Editora Três.

Realização:

Patrocínio: FOTOS: DANIELA OMETTO

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O projeto pressupõe um elo perdido entre a tela L’Origine du Monde, de Courbet, e a novela Madame Edwarda, de Bataille

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hoje está a pintura. Ela procurará também mulheres das zonas de meretrício e das escolas de arte e agendará entrevistas com teóricos especialistas nas obras em questão, como o crítico Thierry Savatier, para quem Courbet fez uma “revolução erótica” em L’Origine du Monde. Em uma das esquinas de seu mapa erótico-pictórico de Paris, a residente poderia até mesmo redescobrir Étant Donnés: 1. La Chute D’Eau, 2. Le Gaz D’Eclairage, a última obra de Marcel Duchamp (1887-1968), finalizada em Nova York cem anos após a pintura de Courbet. Nas páginas de uma revista, talvez encontrada no fundo da caixa de um buquinista da margem do Sena, ela poderá reencontrar o desenho Morceaux Choisis D’Après Courbet, estudo para a realização do Étant Donnés; ou mesmo a capa de Le Surrealisme Même nº 1, catálogo de exposição organizada por André Breton, com capa desenhada por Duchamp, em 1956, com imagem de genitália feminina. A artista francesa Sophie Calle, outra forte referência do trabalho, com seus jogos entre realidade e ficção, será outro encontro eventual. Santarosa Barreto menciona um quebra-cabeça ao planejar sua obra. Todos os textos e ensaios visuais que serão produzidos a partir dessas convivências e associações parisienses deverão formar as peças-chave para a construção de seu projeto intitulado Edwarda. Edwarda será um assemblage. Assim como foi L’Origine du Monde, quando esteve escondida pelo tapa-sexo de Masson, e assim como é Étant Donnés – formada pela pintura de uma mulher nua deitada na relva com as pernas abertas e a face fora de quadro, visível apenas através de perfurações em uma porta de madeira. E aqui, por que não evocar também o romance História do Olho? A narrativa voyerista de Bataille, assim como as outras obras miradas pelo projeto, propõe aproximações perturbadoras sobre as questões do olhar, da pose e da representação. FOTOS: DANIELA OMETTO

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foto: f11photo / Shutterstock.com

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