KILUANJI KIA HENDA MARIL Á DARDOT ACHILLE MBEMBE NÁDIA TAQUARY A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A
E D IÇ Ã O D E A N I VE RSÁ R I O 6 A N OS
56ª BIENAL DE VENEZ A
PORTUGUÊS
SET/OUT/NOV 2017 ANO 05
EDIÇÃO 36 R$ 19,90
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ISSN
2 236-393 9
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Detalhe de Atlântico (2016), Arjan Martins
DE 3 DE OUTUBRO DE 2017 A 14 DE JANEIRO DE 2018
20º FESTIVAL DE ARTE CONTEMPORÂNEA SESC_VIDEOBRASIL
ALIA FARID — ALYONA LARIONOVA — ANA ELISA EGREJA — ANA MAZZEI — ANA VAZ — ANDRÉS PADILLA DOMENE — BÁRBARA WAGNER E BENJAMIN DE BURCA — CRISTIANO LENHARDT — DANIEL MONROY CUEVAS — DÉBORA MAZLOUM — ELIZABETH VÁSQUEZ ARBULÚ — ELVIS ALMEIDA — EMO DE MEDEIROS — ENGEL LEONARDO — FELIPE ESPARZA PÉREZ — FILIPA CÉSAR — GRAZIELA KUNSCH — HAIG AIVAZIAN — HELLEN ASCOLI — ÍCARO LIRA — JAIME LAURIANO — JIWON CHOI — KARO AKPOKIERE — KAVICH NEANG — KÖKEN ERGUN — LA DECANATURA — LOUISE BOTKAY — MABE BETHÔNICO — MANUELA DE LABORDE — MARIANA PORTELA ECHEVERRI — MARIANA RODRÍGUEZ — MIGUEL PENHA — MONA VATAMANU & FLORIN TUDOR — MONIRA AL QADIRI — NATASHA MENDONCA — PAKUI HARDWARE — PEDRO BARATEIRO — QUY MINH TRUONG — RAFAEL PAGATINI — RODRIGO HERNÁNDEZ — ROY DIB — SAMMY BALOJI — SASHA LITVINTSEVA — SEYDOU CISSÉ — TATEWAKI NIO — THANDO MAMA — THIAGO MARTINS DE MELO — VIKTORIJA RYBAKOVA — VON CALHAU! — XIMENA GARRIDO-LECCA CURADORA-CHEFE SOLANGE FARKAS CURADORES CONVIDADOS ANA PATO, BEATRIZ LEMOS, DIEGO MATOS E JOÃO LAIA
SESC POMPEIA, SÃO PAULO - BRASIL FESTIVALSESCVIDEOBRASIL.ORG.BR
REALIZAÇÃO
ÍNDEX
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74
90
94
98
COLEÇÕES
ENTREVISTA
MÚSICA
VERNISSAGE
VERNISSAGE
LEGADO CONCEITUAL
JOANA GORJÃO HENRIQUES
O LOCAL E O GLOBAL
JOÃO CASTILHO
SERGIO LUCENA
Marta Mestre apresenta
Jornalista portuguesa
Repertório harmônico e
Em individual na Zipper
Pinturas feitas com rigor e
a arte latino-americana
publica pesquisa sobre
rítmico de Cabo Verde
Galeria, artista mineiro
leveza compõem primeira
que pertence a coleções
o racismo em seu
nasce da fusão de gêneros
articula realismo
individual do artista
portuguesas
país e nas sociedades
locais e internacionais
e ilusionismo
paraibano na Galeria
africanas pós-coloniais
Eduardo Fernandes
58
SEÇÕES
10 16 36 38 42 48 50 106 112 122
52
64
PORTFÓLIO
DIÁLOGOS
PERFIL
Editorial Da Hora
Conversa com Artista
em favor da arte contemporânea angolana na base da
Coluna Móvel
poética da artista portuguesa
Acervos Itaú Cultural Mundo Codificado Crítica Reviews Em Construção
SAUDAÇÃO À CABEÇA
A r t i s t a a n g o l a n o f a z a b o rd a g e m c r í t i c a d o i m a g i n á r i o d a s ex p e d i ç õ e s c o l o n i a i s
a escultura de matriz cabocla da artista baiana
SET/OUT/NOV 2017
O ativismo cultural
Arte e Educação/ CCBB
KILUANJI KIA HENDA
SELECT.ART.BR
RITA GT
Ayrson Heráclito conversa com Nádia Taquary sobre
42
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MÚSICA
DIÁLOGOS
O LOCAL E O GLOBAL
SAUDAÇÃO À CABEÇA
Repertório harmônico e
Ayrson Heráclito conversa
rítmico de Cabo Verde
com Nádia Taquary sobre
nasce de fusão de gêneros
a escultura de matriz
locais e internacionais
cabocla da artista baiana
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ENTREVISTA
REPORTAGEM
PEDRO GADANHO
OCA DO FUTURO
Diretor do MAAT
Indígenas fazem
fala do museu como
curadoria para
catalizador urbano
exposição no MAR
113 REVIEWS
RODRIGO OLIVEIRA Obra do artista português explora pensamento “periférico” da arte brasileira e princípios formais e simbólicos da arquitetura modernista
FOTOS: CORTESIA GALERIA FILOMENA SOARES/ CORTESIA RITA GT/ SERGIO BENUTTI
E D I TO R I A L
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EM NOME DO PAI
Como presente pelo aniversário de seLecT, o leitor ganha duas capas desta edição #36
Em troca de e-mails com Christine van Assche, confirmei a ela que, sim, meu pai havia completado sua participação neste mundo. E que agora cabia a mim continuar a realizar tudo aquilo que ele me ensinou. Ela me respondeu: “My dear Paula, you already accomplish a lot with your wonderful seLecT and your way of defending Brazilian artists”. A mensagem de Van Assche foi o melhor presente que eu poderia ter recebido neste aniversário de 6 anos da seLecT. No último mês de elaboração desta edição em que comemoramos as batalhas vencidas, o outro grande presente que recebi foi conhecer a Afirmativa, a primeira e única revista de inclusão e empoderamento afroétnico do Brasil, feita por negros e de propriedade de negros. O presente veio das mãos de seu editor e idealizador, o professor José Vicente, que se aproximou de minha família para nos oferecer a sua solidariedade e demonstrar sua gratidão pela amizade que teve com meu pai por 17 anos – desde que buscava sensibilizar apoiadores e colaboradores para fundar a primeira universidade negra do País. O hoje reitor e fundador da Universidade Zumbi dos Palmares me contou que, quando procurou Domingo Alzugaray no ano 2000, foi gentilmente recebido em um almoço na sala de reuniões do prédio da Lapa de Baixo, e ouvido atentamente por uma plateia de profissionais da Editora Três – entre os quais, lamentavelmente, havia apenas um negro, o jornalista Rosenildo Ferreira. Ouviu, então, de meu pai: “Para você fazer uma universidade, precisa trazer uma série de pessoas em torno da ideia. Vocês precisam de um veículo para fortalecer, publicizar e trazer adesões para essa ideia, que enfrentará todo tipo de resistência. Vocês têm de estar fortalecidos. Palavras dele”, me disse Vicente. Ali nasceu a revista Afirmativa, hoje com 15 anos de existência, cujos dez primeiros números foram doados pela Editora Três. “Fazia-se lá, imprimia-se lá e a gente distribuía”, conta Vicente. Além disso, o futuro reitor levou da Lapa de Baixo a promessa de que as revistas da Três abordariam com mais frequência e intensidade as discussões sobre a causa negra, “para compensar o fato de não termos SELECT.ART.BR
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mais jornalistas negros nesta mesa”, disse Domingo. “A IstoÉ foi a primeira revista a se posicionar a favor das cotas raciais, quando começou a discussão”, continua Vicente. “No final, com o apoio dele, com a generosidade dele, com a sensibilidade dele, nós conseguimos modestamente, se não mudar, acrescentar um dado a essa trajetória histórica do negro no Brasil: a universidade. Ainda hoje, não sei se como uma expressão de ceticismo ou de otimismo, essa ainda é a maior construção que os negros conseguiram no Brasil. Foram 350 anos de escravidão, são 129 anos de abolição da escravatura e tudo o que se conseguiu constituir de uma maneira sólida, clara e definitiva sobre esse tema no brasil é a Zumbi dos Palmares. Não temos mais nada.” A Universidade Zumbi dos Palmares existe desde 2003. É a única faculdade brasileira com maioria negra: 90% de seus alunos se declaram negros – pelo regulamento da instituição, a cota reservada ao grupo é de 50%, pelo menos. Entre o corpo docente, a ascendência africana também é predominante. Dos 78 professores, 55% são negros. Após 15 anos do início da implantação da política de cotas raciais e sociais – que acaba de ganhar a adesão da USP –, entre o 1,1 milhão de brasileiros que estudam em universidades federais, 430 mil tiveram apoio das cotas. É um bom começo. Conhecer a batalha de José Vicente e da pró-reitora Francisca Rodrigues contra as adversidades do Brasil, no momento em que começávamos o fechamento desta edição de seLecT que discute a atualidade das relações entre Brasil, África e Portugal, foi, no mínimo, auspicioso. De um lado, lamentei não ter tido tempo de convidá-los a colaborar na revista, trazendo seu pensamento de ponta. Por outro, me alegro em ter a oportunidade de parabenizá-los neste editorial por seu pioneirismo e suas vitórias. Nesta edição sobre o mundo da arte que fala português, quero, sobretudo, brindar a vida de Domingo Alzugaray, que trocou o castelhano pelo português e teve a grandeza de não apenas lutar por suas ambições, mas de ser solidário. Ter tido a extrema generosidade de dividir sua luz e seu poder de realização tanto com aqueles que amava quanto com aqueles cujo valor aprendeu a reconhecer e admirar. E, com isso, deixar sua contribuição para, quem sabe um dia, conseguirmos curar as dores da história do Brasil.
Paula Alzugaray Diretora de Redação
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EXPEDIENTE
EDITOR E DIRETOR RESPONSÁVEL: DOMINGO ALZUGARAY EDITORA: CÁTIA ALZUGARAY PRESIDENTE-EXECUTIVO: CARLOS ALZUGARAY
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EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN REPORTAGEM: LUANA FORTES REPORTAGEM DIGITAL: ANA ABRIL CONSELHO EDITORIAL: GISELLE BEIGUELMAN E MÁRION STRECKER Agnaldo Farias, Ana Avelar, Ayrson Heráclito, Daniela Bousso, Julia Lima, Marta Mestre, Nabor Jr., Tobi Maier, Ramiro Zwetsch, Renata Bueno, Tadeu Chiarelli COLABORADORES
Ricardo van Steen e Cassio Leitão
PROJETO GRÁFICO
Roseli Romagnoli
SECRETÁRIA DE REDACÃO
Hassan Ayoub
COPY-DESK E REVISÃO
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DIRETOR: Rui Miguel ASSISTENTE: Andreia Silva MARKETING
DIRETOR NACIONAL: Maurício Arbex DIRETORA: Ana Diniz GERENTES-EXECUTIVOS DE PUBLICIDADE: Batista Foloni Neto, João Fernandes e Tania Macena SECRETÁRIA DIRETORIA PUBLICIDADE: Regina PUBLICIDADE
Oliveira EXECUTIVA DE PUBLICIDADE: Andréa Pezzuto ASSISTENTE ADM. DE PUBLICIDADE: Ederson do Amaral COORDENADORES: Gilberto Di Santo Filho CONTATO: publicidade@editora3.com.br RIO DE JANEIRO-RJ: COORDENADORA DE PUBLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.: (21) 2107-6667 / Fax (21)2107-6669 BRASÍLIA-DF: Gerente: Marcelo Strufaldi. Tel.: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 ARACAJU-SE: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962. BELÉM-PA: Glícia Diocesano - Dandara Representações - Tel.: (91) 3242-3367 / 8125-2751. BELO HORIZONTE - MG: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 / 99831783. CAMPINAS-SP: Wagner Medeiros - Parlare Comunicação Integrada - Tel.: (19) 8238-8808 / 3579-8808. CURITIBA-PR: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 / 9962-9554. FLORIANÓPOLIS-SC: Anuar Pedro Junior e Paulo Velloso - Comtato Negócios; Tel./Fax: (48) 9986-7640 / 9989-3346. FORTALEZA-CE: Leonardo Holanda - Nordeste MKT Empresarial - Tel.: (85) 9724-4912 / 88322367 / 3038-2038. GOIÂNIA-GO: Paula Centini de Faria – Centini Comunicação - Tel. (62) 3624-5570 / 9221-5575. PORTO ALEGRE -RS: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel./Fax: (51) 3388-7712 / 9985-5564 / 8157-4747. RECIFE-PE: André Niceas e Eduardo Nicéas - Nova Representações Ltda - Tel./Fax: (81) 3227-3433 / 9164-1043 / 9164-8231. SP/RIBEIRÃO PRETO: Andréa Gebin - Parlare Comunicação Integrada; Tel.s: (16) 3236-0016 / 8144-1155. BA/SALVADOR: André Curvello - AC Comunicação - Tel./ Fax: (71) 3341-0857 / 8166-5958. VILA VELHA-ES: Didimo Effgen-Dicape Representações e Serviços Ltda. - Tel./Fax (27)3229-1986 / 8846-4493 Internacional Sales: Gilmar de Souza Faria - GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062. MARKETING PUBLICITÁRIO - DIRETORA: Isabel Povineli GERENTE: Maria Bernadete Machado ASSISTENTES: Marília Trindade e Marília Gambaro. REDATOR: Bruno Módulo. DIR. DE ARTE: Victor S. Forjaz.
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SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661-7320 COMERCIALIZAÇÃO: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA EM BANCAS PARA TODO O BRASIL: FC Comercial e Distribuidora S.A., WWW.SELECT.ART.BR
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PAT R O C Í N I O :
PAT R O C Í N I O :
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MINISTÉRIO DA CULTURA
SELECT.ART.BR
SET/OUT/NOV 2017
agnaldo farias
ayrson heráclito
Professor da FAU-USP, foi curador-geral do Instituto Tomie Ohtake (20002012) e do MAM-Rio (1998-2000). Curador-geral da 29a Bienal de São Paulo (2010) e do Pavilhão Brasileiro da 54a Bienal de Veneza (2011) - reviews P 124
Artista, professor e curador. Participou da 57a Bienal de Veneza (2017) e da Trienal de Luanda (2010). Foi premiado pelo 17º Festival de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil (2011) - diálogos P 64
daniela bousso
Historiadora, crítica e curadora. Foi diretora e diretora-executiva da organização social gestora do Paço das Artes (1997-2011) e diretora do MIS-SP (2007-2011) - crítica P 106
tadeu chiarelli marta mestre
Curadora portuguesa, vive no Brasil há seis anos. Foi curadora assistente do MAM-Rio (2010-2015) e curadora do Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais (2016-2017) - coleções P 70
ana avelar
Crítica, curadora e professora de Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília (UnB) - vernissage P 94
Historiador, professor, crítico e curador. Foi chefe do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP (20072010), diretor da Pinacoteca de São Paulo (20152017), diretor do MAC-USP (2010-2014) e curadorchefe do MAM-SP (1996-2000). Venceu o Prêmio Mário de Andrade (2017) da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) - coluna móvel P 42
julia lima
COLABORADORES nabor jr. tobi maier
Crítico, curador, docente e editor. Foi curador do Frankfurter Kunstverein (2006-2008), na Alemanha, do Ludlow 38, em NY (2008-2011) e curador associado da 30a Bienal de São Paulo (2012). É cofundador do espaço SOLO SHOWS, em São Paulo, onde vive - reviews P 114
Jornalista, fotógrafo e fundador da revista O Menelick 2° Ato. Atualmente trabalha no Núcleo de Comunicação do Museu Afro Brasil. - coluna móvel P 46
Curadora independente, pesquisadora e professora. Atuou como educadora na Fundação Bienal de São Paulo (2011) e integrou o Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake (2013-2016) - vernissage P 98
RICARDO
VILLA ramiro zwetsch
Jornalista, DJ residente da festa Entrópica, criador do site Radiola Urbana e um dos donos da Patuá Discos. Trabalhou na TV Cultura, onde foi editor-chefe do Metrópolis e do Manos e Minas - música P 90 renata bueno
Artista, ilustradora, escritora e arquiteta. Participou de coletivas e individuais em espaços como a Pinacoteca de São Paulo, a FunarteSP, o Sesc Santos, o Sesc São Carlos e a Fontenay-sous-Bois, na França - ensaio visual P 86 SELECT.ART.BR
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Até começar a parecer ordem Texto: Jacopo Crivelli Visconti 31/08 > 30/09/2017
MAURO PIVA [projetos especiais] 31/08 > 30/09/2017 ARTRIO - BOOTH D9 14/09 > 17/09/2017 EXPOSIÇÃO COLETIVA, curadoria Luisa Duarte 22/11 > 22/12/2017
Rua Barão de Jaguaripe, 387 - Ipanema, RJ | www.lucianacaravello.com.br
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Acima, Biblioteca Maldita (2017), composta de 15 livros proibidos, com marcadores vermelhos; na página ao lado, Dito (2017)
LISBOA
TORRE DE PAPEL Marilá Dardot realiza série de trabalhos sobre livros de autoras mulheres que ficaram proibidos por 40 anos em Portugal INTERDITO - MARILÁ DARDOT, a partir de 28/9, Galeria Filomena Soares, Lisboa A palavra é nuclear na poética da artista mineira Marilá Dardot.
SELECT.ART.BR
SET/OUT/NOV 2017
Seu tradicional suporte, o papel, também é sua matéria-prima
torres de papel picado, prensado e embalado. No corpo das torres
frequente. Sua estratégia, o corte e a seleção. Esses elementos se
ficam esmagados os livros originais. A presença enigmática des-
combinam em Interdito, sua primeira exposição individual em Lis-
ses totens funciona como um texto interditado, cujo conteúdo
boa, que ocupa a totalidade da Galeria Filomena Soares e é inteira
jamais será decifrado.
elaborada em papel.
Na segunda sala, os textos referentes aos livros proibidos apare-
Os trabalhos foram criados a partir da leitura de 15 livros de au-
cem de forma velada ou indireta – por exemplo, em Leitor (2017),
toras mulheres, proibidos em Portugal durante o regime ditatorial
que são os relatórios dos censores datilografados sobre papel
do Estado Novo, entre 1933 e 1974. Entre eles, Amanhecer, de Joan
azul (a cor da censura, em Portugal), usando tinta vermelha para
Baez, e Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Na-
destacar palavras apresentadas como censuráveis. A força das
tália Correa. “Sintomaticamente, no Brasil isso também acontece,
palavras também é o cerne de Dito (2017), coleção de 12 arqui-
a maioria dos livros de mulheres foi proibida por questões morais.
vos criados a partir de 12 palavras selecionadas pela artista como
Tem autoras políticas, como Rosa Luxemburgo, mas a maioria é
“subversivas”: alegria, amor, canto, corpo, desejo, liberdade, mu-
considerada obscena e pornográfica”, diz Dardot à seLecT.
lher, orgasmo, palavra, poeta, silêncio e minorias (arquivo gené-
A exposição é composta de cinco trabalhos dispostos nas duas
rico com as palavras homossexual, lésbica, puta, negro, travesti,
grandes salas da bela nave industrial, no bairro de Xabregas. Na
mexicanos etc.). A exposição integra o evento Passado e Presente
sala principal, a instalação Interdito (2017) é composta de três
– Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura. PA FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
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Bruno Novelli, Cipó 2017, acrílica sobre tela, 185 x 305 cm. RIO DE JANEIRO
MUSEU À BEIRA DO OCEANO Intervenção artística evoca memória e invenção em ruínas de cassino A Invenção da Praia: Cassino, 9 a 16/9, Antigo Cassino da Urca, Istituto Europeo di Design, Rua João Luís Alves, 13, Urca, RJ Quando um decreto-lei fechou os cassinos em 1946, estima-se que tenha deixado 55 mil brasileiros desempregados. Considerando que o Brasil tinha então 41 milhões de habitantes, tratava-se de nada menos que 10% da população do País. Foi uma devassa em nome da moral, dos bons costumes e de uma boa dose de motivos escusos, como tudo o que vem sendo feito na administração pública nacional. Os cassinos deram lugar a novos hábitos e vícios. Mas sua noite vertiginosa, interrompida no ápice do giro das roletas e das vedetes, permanece em suspensão – ou sutil vibração – no interior escuro de edifícios abandonados. Portas e janelas lacradas ao longo de quase quatro décadas, as ruínas do antigo Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, recebem em setembro um projeto de arte, memória, ficção e arqueologia. Com curadoria de Paula Alzugaray, editora de seLecT, e participação de 11 artistas brasileiros, A Invenção da Praia: Cassino projeta lances de iluminação tênue sobre histórias do local. Histórias de encontros entre passado e futuro (Laercio Redondo), de luz e sombra (Laura Lima), de pedra e areia (Caio Reisewitz, fotografia acima), de som e sereias (Chiara Banfi), de fantasmagoria (Nino Cais), de memória e afetos (Giselle Beiguelman), de ausência (Maria Laet), de mar (Katia Maciel), de pescadores (Mauricio Adinolfi), de violência (Lula Buarque de Hollanda), de exílio (Sonia Guggisberg). Construído sobre as areias da Praia da Urca para abrigar um hotel balneário, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna de 22, o edifício abre-se por primeira vez a uma intervenção artística e abriga a lembrança de outro episódio moderno: o Museu à Beira do Oceano, projeto não realizado de Lina Bo Bardi para a Praia de São Vicente (SP), aqui evocado como um ícone máximo da invenção. Sa que rem esciaepra diciis im fugiaep ellabo. Nam, SELECT.ART.BR SELECT.ART.BR SET/OUT/NOV FEV/MAR 2017 2016
FOTO: CAIO REISEWITZ
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RIO/ SP
ÁFRICAS UTÓPICAS
conflitos, consequência de sua também recente independência. Isso afeta a infraestrutura do país e a consolidação de um circuito de artes – o que, diga-se, Portugal, enquanto colonizador, se preo-
Com curadoria de seLecT, mostra de vídeos na ArtRio ilumina a cultura afro-brasileira no acervo Videobrasil. Enquanto isso, o 20º Festival admite Portugal no mapa do Sul geopolítico
cupou menos que outros países em estimular. A segunda questão nos diz respeito diretamente e é o fato de o Festival não ter chegado a acessar todas as cenas locais que gostaríamos e estar continuamente ampliando sua rede de interlocutores.”
No acervo da Associação Cultural Videobrasil, os conteúdos remis-
Num esforço de elaboração do passado colonial que nos é co-
sivos à cultura afro-brasileira são majoritariamente documentais.
mum, o VB intensifica um movimento de autorreflexão que resulta
Há ótimos docs como Quilombos Urbanos (1994), de Monica Si-
em ações concretas – como a inclusão da autodeclaração étnica
mões, mas quem efetivamente começa a trabalhar a questão da
nas fichas dos artistas do acervo. Outro exemplo é a inserção de
democracia racial desde um ponto de vista da criação artística é o
Portugal no mapa do Sul geopolítico do 20º Festival de Arte Con-
coletivo Frente 3 de Fevereiro, com a performance Futebol, no 15º
temporânea Sesc_Videobrasil, que acontece em outubro, em São
Festival VB (2005). Esse trabalho integra a curadoria Áfricas Utó-
Paulo. “O Sul geopolítico é, como todo mapa político, passível de
picas, que seLecT realiza no Espaço Transversal da ArtRio 2017, um
ajustes, que acompanham as mudanças da distribuição de poder
recorte de obras da coleção VB que se posicionam política e cria-
no mundo. Portugal sempre esteve simbolicamente à margem da
tivamente em questões relativas à identidade africana. Integram a
Europa, digamos, na borda, e, como outros países do continente,
mostra cinco trabalhos de quatro autores brasileiros – Ayrson He-
passou por uma espécie de downgrade simbólico e social durante
ráclito (acima, still de As Mãos do Epô, 2007), Flavio Lopes e Louise
a crise econômica, também como consequência das medidas de
Botkay – e um cabo-verdiano, Irineu Rocha da Cruz.
austeridade impostas”, diz Farkas. A diretora do VB foi convidada
O acervo VB reflete a interlocução da instituição com a produção
a dar continuidade a essa reflexão nas Conversas ArtRio 2017. PA
audiovisual do Sul geopolítico do mundo (América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio). Mas chama atenção que a única coleção brasileira dedicada a esse segmento só apresente um artista natural da África portuguesa, Irineu Rocha da Cruz.
s e L e c T e x pa n d i d a :
“Acredito que isso se deve a duas questões. Primeiro, à história social e econômica das ex-colônias portuguesas”, diz Solange Farkas, diretora do VB. “Alguns desses países têm uma história recente de SELECT.ART.BR
SET/OUT/NOV 2017
Confira
Solange Farkas b i t . ly / s o l a n g e - fa r k a s
a í n t e g r a d a e n t r e v i s ta d e em
FOTO:CORTESIA DO ARTISTA
Pintura Atlântico (2016), de Arjan Martins
COLEÇÕES
AUTOCRÍTICA INSTITUCIONAL
noel Araujo, a África e seus descendentes apareciam mais como representados do que como sujeitos da história. “É claro que há, nesta nova geração, a necessidade de imprimir
Ao ampliar seu acervo afro-brasileiro com obras de artistas comprometidos com uma agenda de identidade, Itaú Cultural contribui para a reavaliação crítica da história brasileira
outro ritmo à reescritura da história”, diz Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural, à seLecT. “Esta nova geração exigiu reescrever um passado de opressão e posicionou-se de maneira radicalizada. Nós decidimos estabelecer com eles um diálogo
Entre os frutos da exposição Modos de Ver o Brasil: 30 Anos Itaú
empático.”
Cultural está a aquisição de 48 obras para o acervo de 15 mil pe-
O olhar do instituto sobre a arte de matriz afro começou há dois
ças do Itaú Unibanco – a maior coleção corporativa da América
anos, quando foi acusado de racismo em uma grande manifes-
Latina. O mais notável, no entanto, é que 17 delas vêm fortalecer
tação nas redes sociais. O repúdio ocorreu em face da acolhida
o núcleo afro-brasileiro da coleção, organizado no segundo an-
de uma peça de teatro que usava o blackface – recurso circense
dar da Oca até 13/8. Intitulado Uma Invenção Simbólica do Bra-
do século 19 que remonta às origens do pensamento racial eu-
sil: África e Barroco, esse segmento da mostra teve curadoria de
ropeu e às máscaras usadas para encobrir a raça com um manto
Paulo Herkenhoff e propôs uma reescritura do Barroco brasileiro
de invisibilidade – para representar personagens negras. “Eu não
a partir do ponto de vista do artista negro.
tinha consciência de que aquilo era um ato de racismo, mas a
Em contraponto à escultura barroca, Herkenhoff articulou obras de
partir daquela denúncia muita coisa aconteceu. Nos abrimos a
Arjan Martins, Jaime Lauriano, Ayrson Heráclito, Manuel Messias,
esse debate com mais energia e ganhamos consciência de que
Rosana Paulino e Sidney Amaral, entre outros artistas contempo-
mesmo o campo das artes tem uma face racista”, diz Saron. Em
râneos comprometidos com uma agenda de identidade e com
um exercício de autoanálise, a instituição detectou em seu pró-
a reavaliação crítica da história brasileira. Herkenhoff, que na 24a
prio histórico “uma narrativa construída com vícios racistas”.
Bienal de São Paulo, em 1998, pensou a mudança de paradigma
O cancelamento da peça e o debate com ativistas no mesmo
da arte brasileira à luz da antropofagia, desta vez propôs uma re-
horário em que ela seria encenada foi o começo da mudança de
tomada do barroco colonial como padrão para a arte do século 21.
postura. Entre as ações, desde então, aponta-se a elaboração
O resultado expositivo refletiu bem os dois estágios do núcleo
de uma revista Observatorium inteiramente composta de textos
afro-brasileiro da coleção Itaú Unibanco. Antes de Modos de Ver
de intelectuais do ativismo negro. “Quando Paulo Herkenhoff
o Brasil, a presença africana dava-se sob o olhar do colonizador
chegou, começamos a debater com ele a necessidade de um
branco – seja em Di Cavalcanti, Djanira, Livio Abramo ou Renina
acervo que compreenda o artista negro”, diz Saron. Foi assim
Katz. Apesar da presença no acervo de artistas negros pioneiros
que começou essa história repleta de boas surpresas, escrita no
como Heitor dos Prazeres, Mestre Didi, Rubem Valentim e Ema-
segundo andar da Oca. PA
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FOTO: IARA VENANZI
Steve McCurry • Flower Vendor on Dal Lake. Kashmir, 1999.
Representamos Steve McCurry com exclusividade no Brasil Vila Modernista • Alameda Lorena 1257 casa 2 Jardim Paulista • São Paulo - SP + 55 11 3825 0507 instagram.com/galeria_de_babel facebook.com/galeriadebabel galeriadebabel.com
GALERIA EDUARDO FERNANDES CONVIDA PARA EXPOSIÇÃO:
SANTIAGO, CHILE
OUTUBRO CHILENO Feria Ch.ACO, de 11 a 15/10, Santiago Em sua nona edição, a Feria Ch.ACO tratará de colecionismo e internacionalização. Entre as 41 galerias participantes, há duas brasileiras: Galeria Marilia Razuk e Vermelho. O evento comercial, que já chegou a reunir 50 mil visitantes ao longo dos cinco dias de duração, é só uma das iniciativas realizadas pela Chile Arte Contemporáneo (Ch.ACO), instituição focada no desenvolvimento e internalização das artes visuais no Chile e na América Latina. A diretora geral, Elodie Fulton (à esq.), conta o porquê de o mês de outubro ser chave para o mundo das artes chileno. Como a Ch.ACO tem influído no panorama artístico chileno? Desde o início, propusemos uma reflexão constante sobre o colecionismo e o situamos como a melhor forma de gerar patrimônio contemporâneo para as futuras gerações. Além disso, analisamos a situação da arte local e de cada um dos atores, incentivando o mecenato das empresas privadas. Outro foco é mostrar projetos mais jovens e contemporâneos do circuito da América Latina para o público já estabelecido. De que forma a feira amplia o público da arte? Existe a Fundação FAVA (Fundação Artes Visuais Associados), criada pela Ch.ACO, em 2013. Durante a feira, e graças a um patrocínio da Fundação, são adquiridos trabalhos para a Coleção FAVA, com curadoria de Pablo León de la Barra. Além disso, existe o Fava Va!, um museu itinerante que percorre escolas chilenas e incentiva as interpretações artísticas dos alunos. O Mês das Artes 2017, com programação expandida por diferentes pontos de Santiago, acontece em outubro e tem Arte e Cidade como tema. Com ele pretendemos impactar mais de 500 mil pessoas. Também estamos realizando um projeto de arte pública e urbanismo na comunidade de Vitacura. O objetivo é gerar uma coleção contemporânea a céu aberto.
LISBOA
UMA CIDADE ENTRE DOIS CONTINENTES Passado e Presente, Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura/ 2017, 40 instituições culturais, até janeiro de 2018 A curadoria de António Pinto Ribeiro para o evento Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura tem muitos pontos em comum com o projeto editorial desta edição de seLecT. A começar pela revisão histórica das questões indígena e afrodescendente no contexto de Portugal e da América Latina. No projeto de Ribeiro, desenrolado ao longo de todo o ano de 2017, 40 instituições culturais de Lisboa assimilam uma programação dividida em quatro eixos: a questão indígena, a questão afrodescendente, as migrações e a criação contemporânea. “As relações de Portugal e Espanha com o universo latino-americano são
SERGIO LUCENA
baseadas num contato histórico que tem muitos clichês, muitos lugarescomuns. Estamos trabalhando essa relação do passado entre colonizadores e
S I L E N T E
colonizados em seminários, conferências e exposições”, diz Ribeiro, que conhece desde dentro a África que fala português, pois viveu em Luanda, e o Rio de Janeiro, onde tem uma casa. “Nós tivemos também autores chilenos e mexicanos fazendo uma revisão da história a partir de novas formas de estudos de cultura, e novas antropologias”, diz. Entre os destaques até dezembro, a mostra Atlântico Vermelho, da brasileira Rosana Paulino (à dir. Bastidores, 1997), no Padrão dos Descobrimentos; e Como se
abertura 11/10 às 19hs
Pronuncia Design em Português: Brasil Hoje, no MuDE – Museu do Design e da Moda. PA
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SET/OUT/NOV 2017
FOTO: LECLIC/ REPRODUÇÃO
WWW.GALERIAEF.COM | RUA HARMONIA, 145 - SP | ATENDIMENTO@GALERIAEF.COM | +55 11 38123894
LO S A N G E L E S / N OVA YO R K
ARTE LATINA, FEMINISTA E RADICAL Radical Women: Latin American Art, 1960-1985, de 15/9 a 31/12, Hammer Museum, Wilshire Blvd, 10899 | www.hammer.ucla.edu Radical Women: Latin American Art, 1960–1985, de 13/4/2018 a 29/7/2018, Brooklyn Museum, Eastern Pkwy, 200 | www.brooklynmuseum.org A arte experimental latino-americana realizada por mulheres ganha destaque em Radical Women: Latin American Art, 1960-1885, que pretende preencher um grande vazio na história da arte. A exposição, que, após passar pelo Hammer Museum, se dirige ao Brooklyn Museum, reúne 260 trabalhos de 116 artistas e integra o Pacific Standard Time: LA/LA, evento dedicado à complexidade da arte latina que acontece no sul da Califórnia. Dessa forma, 15 países ganham representação nessa mostra dedicada a mulheres latino-americanas e norte-americanas com herança latina. Do Brasil, encontram-se Lygia Clark, Martha Araujo (à esq. Para Um Corpo Nas Suas Impossibilidades, 1985), Anna Bella Geiger e a pioneira em videoarte Leticia Parente, que se unem a outras figuras internacionais como as cubanas Ana Mendieta e Zilia Sánchez, a escultora colombiana Feliza Bursztyn e a argentina Liliana Porter. AA
PA R I S
ÁFRICA NO CENTRO DO MUNDO Also Known As Africa, 10/11 a 12/11, Le Carreau du Temple, Rue Eugéne Spuller, 4 | www.akaafair.com Após o sucesso de sua estreia em 2016, que contou com a visita de 15 mil pessoas, a feira internacional de arte Also Known As Africa chega à sua segunda edição, entre 10 e 20/11. Com o objetivo de divulgar a produção artística africana e trabalhos inspirados por esse importante continente (abaixo, The Art of Survival, de Patrick Willocq), a feira apresenta 32 galerias de 18 países. Para fomentar o diálogo, o evento conta com propostas especiais: o subsolo do Carreau du Temple será usado pela primeira vez com o novo projeto AKAA UNDERGROUND, que propõe um espaço social para conversas e um laboratório de arte com a participação da artista sul-africana Lady Skolie. Além disso, a feira também organiza, com curadoria de Salimata Diop, o programa cultural Les rencontres AKAA, convidando o público a dialogar com importantes figuras inseridas nesse contexto. O tema desta iniciativa é, este ano, Healing the World. LF
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SET/OUT/NOV 2017
S Ã O PA U LO
DO EDIFÍCIO PARA A SALA EXPOSITIVA São Paulo Não É Uma Cidade - Invenções do Centro, até 28/1/18, Sesc 24 de Maio, Rua 24 de Maio, 109 | www.sescsp.org.br Logo em sua primeira exposição, o Sesc 24 de Maio aproveita para dar continuidade ao debate que sua arquitetura incita. Reunidos pelo curador Paulo Herkenhoff e o cocurador Leno Veras, 400 trabalhos versam sobre o Centro de São Paulo e sua efervescência cultural na recém-inaugurada unidade. Com projeto de ninguém menos que Paulo Mendes da Rocha, em parceria com o escritório MMBB Arquitetos, o espaço inaugurou no coração da cidade em 19/8, repleto de janelas de vidro que não deixam ninguém escapar da vista para o Centro paulistano. No embalo da abertura, também está prevista a reinauguração do Sesc Avenida Paulista para o primeiro semestre de 2018. LF
FOTOS: CORTESIA JAQUELINE MARTINS/ CORTESIA VISION QUEST/ MATHEUS JOS MARIA
PORTO, PORTUGAL
CONEXÃO ATLÂNTICA Incerteza viva: Uma exposição a partir da 32a Bienal de São Paulo, até 1º/10, Fundação Serralves, Rua Dom João de Castro, 210 | www.serralves.pt O projeto itinerante da Bienal, que começou em 2011, expande-se a passos agigantados: cruza o Atlântico e chega à nação irmã, Portugal. O ambiente único da Fundação Serralves – que abriga Parque, Casa e Museu –, no Porto, reúne projetos de 14 artistas e coletivos, dos quase 90 que expuseram em São Paulo. Trabalhos de Lais Myrrha, Leon Hirszman, Grada Kilomba e Vídeo nas Aldeias ocupam o museu, enquanto as PANCS (plantas comestíveis não convencionais) da portuguesa Carla Filipe integram um trabalho no Parque. A iniciativa concebida a partir de um diálogo entre o curador Jochen Volz e João Ribas, diretor-adjunto do Museu de Serralves, também estimula a nova arquitetura portuguesa, uma vez que foram encomendados cinco pavilhões, que hospedam obras, para jovens arquitetos locais, um deles para o trabalho de Jonathas de Andrade (à esq.). AA
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RIO DE JANEIRO
DUETO Paula Rego e Adriana Varejão, de 2/9 até 4/11, Carpintaria, Rua Jardim Botânico, 971 | fdag.com.br/carpintaria Chega na Carpintaria um estimulante encontro. A produção da artista portuguesa Paula Rego é colocada em diálogo com a da brasileira Adriana Varejão, de onde surgem sintonias e disparidades. A exposição evidencia a relação de ambas as poéticas com a história, a ficção e a literatura. Paula Rego, pela primeira vez no Rio de Janeiro, apresenta quatro pinturas (acima, à esq. The Mermaids, 2017) e um móbile, em referência aos textos Primo Basílio, de Eça de Queirós, e Bastardia, de Hélia Correia. Adriana Varejão, por sua vez, traz ao diálogo seis trabalhos (acima, à dir. Alegoria da América, 2015) sobre o universo feminino e a cerâmica, aludindo ao trabalho do português Bordalo Pinheiro. A iniciativa é de Márcia Fortes, diretora da Fortes D’Aloia & Gabriel, que teve a ideia quando a Pinacoteca de São Paulo montou retrospectiva de Paula Rego, em 2011. Para ela, trata-se de um diálogo corporificado e explosivo. “Em vários momentos as duas parecem duelar com o mundo”, diz Fortes. LF SELECT.ART.BR
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
RIO DE JANEIRO
IMPERMANÊNCIA José Bechara – Fluxo Bruto, até 5/11, MAM-Rio, Av. Infante Dom Henrique, 85 | www. mamrio.org.br Celebrando 60 anos de José Bechara, a mostra Fluxo Bruto reúne pinturas e trabalhos tridimensionais em grande escala (à esq. vista da exposição). Alguns deles derivam de novas interferências feitas em antigas obras, trazendo a impermanência como assunto de sua pesquisa. A maior parte das peças foi construída no próprio espaço expositivo do MAM-Rio. Beate Reifenscheid, curadora e diretora do Ludwig Museum, na Alemanha, é quem assina a curadoria, após montar a individual do artista Squares and Patterns em 2015. Na época, escreveu para o catálogo da mostra: “José Bechara nos traz em sua arte – somado às referências da cor e do construtivismo – o tempo, elemento que manifesta de forma inevitável a submissão ao processo de mudança”. LF
S Ã O PA U LO
ACERCA DE DI No Subúrbio da Modernidade – Di Cavalcanti 120 anos, de 2/9 a 22/1/2018, Pinacoteca de São Paulo, Praça da Luz, 2 | pinacoteca.org.br A exposição No Subúrbio da Modernidade não só resgata a produção de um dos principais nomes do modernismo brasileiro, como também apresenta facetas improváveis de Di Cavalcanti. Montada no mês em que se comemoram os 120 anos do nascimento do artista, a mostra tem curadoria de José Augusto Ribeiro e conta com mais de 200 trabalhos (à dir. a pintura Bordel, 1930). Além de pinturas, linguagem pela qual Di era mais celebrado, o público pode ter contato com ilustrações, charges, livros e capas de discos, divididos entre sete salas da Pinacoteca. Para o curador, a exposição revela uma percepção de atraso do Brasil do começo do século 20, em comparação à Europa. Por isso, o País estaria no subúrbio da modernidade, como indica o título. LF
S A LVA D O R
PINTURA DESDE OS ANOS 1980 Fragmentos de Um Discurso Pictórico, até 30/9, Roberto Alban Galeria, Rua Senta Pua, 53 | www. robertoalbangaleria.com.br Diversidade é uma palavra-chave para a exposição Fragmentos de Um Discurso Pictórico, com curadoria de Mario Gioia. A exposição, que acontece na capital baiana, traz um recorte sobre a pintura brasileira a partir de trabalhos de 13 artistas de diferentes gerações. Fábio Miguez (à esq. Esquina Azul, 2016) e Sérgio Sister trazem os emblemáticos anos 1980 na bagagem. Ricardo van Steen, Lara Viana e Ana Elisa Egreja mostram a persistência da pintura em suas trajetórias. E novatos como Giulia Bianchi e João GG enriquecem a proposta com suas recentes entradas no universo das artes. Para Gioia, “a exposição não pretende ser um panorama que esgote discussões sobre determinadas características da linguagem, mas que funcione como um encontro entre produções de artistas que não comumente estejam relacionadas”. LF
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FOTOS: WALTER CLEMENTE/ ISABELLA MATHEUS/ DIVULGAÇÃO
www.facegabinetedearte.com facegabinetedearte facegabinetedearte
Rua Cunha Gago, 208 Pinheiros São Paulo, SP 05421-000 f. 3813.7330
S Ã O PA U LO
O HAITI É AQUI 32
AGORA SOMOS TODXS NEGRXS?, até 16/12, Galpão VB, Av. Imperatriz Leopoldina, 1.150 | site.videobrasil.org.br Contrariamente aos movimentos de independência das Américas, a Revolução Haitiana foi resultante de uma insurreição de escravos. A partir dela, surge, em 1805, uma das mais radicais e igualitárias constituições do Novo Mundo, que não apenas abole a escravatura, instaura a liberdade de cultos africanos e interdita a nobreza, como determina que, daquele momento em diante, “todos os cidadãos serão conhecidos pela denominação genérica de negros”. O artigo 14 da Constituição do Haiti é a inspiração para AGORA SOMOS TODXS NEGRXS?, com curadoria de Daniel Lima (abaixo, Não Vamos Obedecer, 2016) no Galpão Videobrasil. Com mais de 20 obras de 15 artistas nascidos nas últimas décadas do século 20, a mostra funciona como um grande fórum a serviço do amadurecimenro do debate sobre a negritude no Brasil. Nos trabalhos de novos nomes da cena contemporânea, como Ana Lira, Dalton Paula, Jota Moçamba, Moisés Patricio e Zózimo Bulbul, os cruzamentos entre questões raciais e de gênero apontam para o crescente protagonismo do feminismo negro e transfeminismo. Uma grande contribuição à elaboração de novas militâncias poéticas e políticas. PA
BRASIL
O PRIMEIRO CONTEMPORÂNEO Catálogo Raisonné Leonilson | www.projetoleonilson.com.br O cearense Leonilson (acima) debuta como o primeiro artista contemporâneo a ganhar um catálogo raisonné. A publicação, composta de 3.400 registros, dividese em três volumes compilados em uma caixa. Foram necessários dois anos de pesquisa do Projeto Leonilson para identificar todos os trabalhos produzidos pelo artista, inclusive os realizados no exterior. A tiragem do catálogo é de 2 mil cópias e pode ser adquirido no site www.projetoleonilson.com.br. Em seu esforço por expandir e fomentar a arte brasileira, a Fundação Edson Queiroz patrocinou a publicação e também apresenta, até 7/10, a exposição Um Século de Arte Brasileira na Coleção Fundação Edson Queiroz, em Sobral, interior do Ceará. AA
S Ã O PA U LO
INTERATIVIDADE URBANA 7a Mostra 3M de Arte Digital, de 3/11 a 3/12, Largo da Batata, Av. Brigadeiro Faria Lima, S/N Cinco projetos artísticos interativos ocupam o Largo da Batata e aproximam-se dos transeuntes com o objetivo de fazer da rua um espaço de convivência. Os artistas participantes da Mostra 3M, que tem curadoria da ELO3 e de Fernanda Del Guerra, são Guto Lacaz, Gisela Motta e Leandro Lima, Giselle Beiguelman, Maurizio Zelada e Alexis Anastasiou. Esse último apresenta Encontros com a Cidade, Humanos e Batatas, que projetará palavras nos prédios próximos à praça. A instalação fará com que essas palavras possam ser vistas de longe, aumentando o alcance de comunicação da mostra em até 280 mil metros quadrados. Também é parte da 3M uma ação especial, batizada de container.mov, que apresentará trabalhos em videoarte de novos artistas. Seguindo a linha da interatividade, da virtualidade e da tecnologia, a mostra terá um catálogo digital que poderá ser acessado via celular. AA SELECT.ART.BR
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FOTOS: DANIEL LIMA/ RONALDO MIRANDA
Ministério da Cultura, Porto Seguro e Rico Lins +Studio apresentam
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VIAGEM
SETE DIAS NO CENTRO DO MUNDO DA ARTE casa seLecT e Stella Barros Turismo organizam viagens de imersão artística a Veneza, Istambul, Lisboa e Los Angeles A temporada de primavera da casa seLecT traz uma novidade especial aos amantes da arte e da viagem. O projeto Art Trips nasce com quatro roteiros de sete dias nas cidades mais quentes de 2017, com aulas e visitas guiadas por críticos e especialistas. Em outubro, vamos visitar a 15a Bienal de Istambul, a 57a Bienal de Veneza e importantes mostras paralelas, como Treasures From The Wreck of The Unbelievable, o mais ambicioso projeto do artista britânico Damien Hirst desde o “tubarão de US$ 12 milhões”. Em novembro, o destino é Lisboa, a nova capital cultural da Europa, onde passado e futuro se entrelaçam em uma cena fascinante, repleta de novos museus, galerias de arte e coleções como o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT). Em dezembro, a comunidade artística latino-americana muda-se para Los Angeles, que recebe o grande evento Pacific Standard Time: LA/LA. A cidade recebe nada menos que 90 exposições de artistas contemporâneos da América Latina. seLecT escolherá as melhores em um roteiro de sete dias. Entre elas, o lançamento mundial da videoinstalação Transbarroco, de Adriana Varejão, na Galeria Gagosian. Imperdível. INFORMAÇÕES E RESERVAS atendimento@stellabarros.com.br/ 11-21662250
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PATROCÍNIO
IDEALIZAÇÃO
REALIZAÇÃO
AVCB No 261287, ALAVARÁ DE FUNCIONAMENTO 2017/11465-00, VALIDADE 20/06/2018
_horário de funcionamento terça a sábado, das 10h às 19h domingos e feriados, das 10h às 17h
Visitante da Bienal de Veneza experimenta obra Turned Upside Down, It’s a Forest (2017), de Takahiro Iwasaki, no Pavilhão do Japão. Acima, identidade visual da mostra
Alameda Barão de Piracicaba, 610 Campos Elíseos - São Paulo/SP 11 3226.7361 FOTOS: DIVULGAÇÃO
_estacionamento Alameda Barão de Piracicaba, 634 Campos Elíseos - São Paulo/SP _vans gratuitas estação luz - espaço cultural espaço cultural - estação luz
_agendamento via
ou na bilheteria no local espacoculturalportoseguro espacoculturalportoseguro.com.br
ARTE E EDUCAÇÃO/ CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL
XX
Exposições — e também pesquisa e produção em arte.
Espaço criado para a ação educativa Ao Encontro da Poesia
ACESSIBILIDADE ESTÉTICA A equipe de mediação do CCBB propõe uma experiência sensorial Ao Encontro da Poesia para a mostra Cícero Dias - Um Percurso Poético
tablet – gravações da declamação de Liberté. Pode-se deitar sob um teto que imita o céu, de onde caem fitas azuis e na parede é possível escrever sua própria definição de liberdade. Há algum tempo, o educativo da instituição vem mudando de estratégia quando o assunto é acessibilidade. “A partir dos conteúdos apresentados pela exposição, nossa equipe constrói um ambiente que possibilita ao visitante uma experiência, antes resu-
Após passar pelas unidades de Brasília e São Paulo, a exposição
mida à visualidade, em que o corpo inteiro desperta para outras
Cícero Dias - Um Percurso Poético termina sua itinerância no
e novas percepções”, diz Daniela Chindler, coordenadora-geral da
CCBB Rio, em setembro. A mostra apresentou, com curadoria de
Sapoti Projetos Culturais, responsável pelo programa educativo
Denise Mattar, cerca de 125 trabalhos do artista pernambucano,
do CCBB, à seLecT. Se antes o foco era a figura e como repre-
e evidenciou seu contato com importantes intelectuais nacionais
sentá-la de formas diferentes, agora o objetivo é proporcionar
e internacionais. Ao visitá-la, uma história específica chama bas-
ao público uma experiência sensorial. “Nós estamos tentando im-
tante atenção. Durante a Segunda Guerra, Cícero Dias foi o res-
pactar as pessoas usando mais de um de seus sentidos e mediar o
ponsável por lançar diversas impressões do poema Liberté, de
conteúdo da exposição de uma forma mais abrangente”, completa.
seu amigo Paul Éluard, a respeito de Paris, que estava ocupada
A equipe está trabalhando com o conceito de acessibilidade es-
pelo exército alemão. Essa poesia, ou melhor, esse acontecimen-
tética, presente na pesquisa de mestrado de Camila Alves, coor-
to serviu como raiz para a ação educativa Ao Encontro da Poesia.
denadora pedagógica da Sapoti no CCBB Rio. “Faz-se necessário
A equipe de mediação CCBB abordou o conceito de liberdade
que a acessibilidade não seja concebida como um conjunto de
poética em sua programação, pensando em Cícero Dias como
ações que têm como meta proporcionar o alcance a um conheci-
alguém que se relacionou com diversos movimentos artísticos e
mento ou informação a priori, mas como a criação de condições
conheça a programação:
que não se limitava a uma só linguagem. Criou-se um espaço ce-
para a produção de múltiplos sentidos na experiência com a arte”,
nográfico em que o visitante é convidado a escutar – ou ver num
diz a coordenadora do projeto. LF
espacoculturalportoseguro espacoculturalportoseguro.com.br
SELECT.ART.BR
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FOTO: KAREN MONTIJA
Trama desenhada no computador e cortada a laser sobre matriz de madeira no PortoFabLab.
Estampa impressa manualmente em prensa de xilogravura no Ateliê Experimental.
_endereço Alameda Barão de Piracicaba, 610 Campos Elíseos - São Paulo/SP
_estacionamento Alameda Barão de Piracicaba, 634 Campos Elíseos - São Paulo/SP
_horários terça a sábado, das 10h às 19h domingos e feriados, das 10h às 17h
_vans gratuitas estação luz - espaço cultural espaço cultural - estação luz
_telefone: 11 3226.7361
CONVERSA COM ARTISTA
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LIVRO ABERTO DE UMA OBRA LUA N A F O RT ES
Em junho, seLecT inaugurou um projeto de conversas públicas gravadas em espaços de arte. Na Arte Hall Galeria, a artista Ana Nitzan foi entrevistada pelo crítico Mario Gioia. O arquivo audiovisual resultante está disponível para consulta online. Aqui, um relato do evento
Mario Gioia, crítico, conversa com a artista Ana Nitzan
AO CAMINHAR PELOS CAMPOS DA ANTIGA FAZENDA, ONDE OS BISAVÔS CULTIVAVAM CAFÉ, ANA NITZAN ENCONTRA AS RAÍZES QUE DÃO FORMA E FORÇA AOS SEUS TRABALHOS. Em
Avaré, a natureza é seu objeto e meio de trabalho. “Hoje não há mais café, mas é lá que faço as minhas caminhadas, onde está a terra que dá sustentação para a minha produção”, disse ela a Mario Gioia, na primeira edição do projeto Conversa com Artista, realizado em 22/6, na Arte Hall Galeria, em São Paulo. Antes da entrevista gravada, artista e crítico passearam pela galeria, onde foi apresentada
uma panorâmica da obra de Ana Nitzan, com trabalhos realizados entre 2001 e 2017. O percurso finalizou diante da instalação Despida de Tudo, Menos de Seus Ornamentos (2016). Nessa obra, a mais recente do conjunto, as páginas de um caderno elaborado com folhas de madeira repousam sobre uma mesa sustentada por esculturas de bronze, em forma de galhos. Sob a mesa agrupam-se reproduções de sementes em terracota. O som emitido pelos objetos ao serem manipulados pela artista estimulou o crítico Mario Gioia a questionar a respeito de um possível desdobramento do trabalho, na forma de performance. Artista e crítico conversaram, então, sobre o olhar fotográfico predominante na exposição. Nitzan, que já experimentou linguagens diversas, recentemente sentiu a necessidade de agregar volume às suas fotografias. “A exposição mostra um dado bem forte na obra da Ana Nitzan, que é esse trânsito por linguagens”, disse Mario Gioia. “Acho que ela é fundamentalmente uma artista que trabalha o olhar fotográfico, mas não só da foto pendurada na parede. Isso foi se adensando, contaminando e crescendo para outros tipos de linguagem. Aqui a gente pode falar de fotografia expandida, que é uma mistura de objeto e fotografia.” O diálogo entre a imagem fotográfica e a publicação (livro) é o fio condutor da série Sublimação, iniciada em 2012 e organizada em uma publicação por Eder Chiodetto. O livro foi finalista do Prêmio Jabuti 2015, na categoria capa e projeto gráfico. A conversa ressaltou, portanto, a importância que a fotografia e a natureza assumem no corpo da obra. Ao ser o papel – natureza processada – o suporte tradicional da fotografia, entra em pauta a dimensão política e ecológica do trabalho. “A política está o tempo todo em nosso dia a dia e também no olhar do espectador do meu trabalho. Ele está aberto a isso”, disse ela. O mesmo pode ser pensado a respeito da série de aquarelas Terra Líquida Horizonte (2016), realizada com barro, na mesma época em que ocorreu o acidente em Mariana (MG), o maior desastre ambiental do Brasil.
não está claro até que a noite caia juliana stein | museu oscar niemeyer | curitiba curadoria agnaldo farias | abertura 30 setembro 2017 apoio:
incentivo:
Projeto aprovado no Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura | PROFICE da Secretaria de Estado da Cultura | Governo do Estado do Paraná
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FOTO: LUANA FORTES
parceria:
CONVERSA COM ARTISTA
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SÃO PAULO SOB 0 OLHAR FORASTEIRO ANA ABRIL
Com o novo projeto, seLecT reforça seu papel de mediação e criação de espaços para o pensamento da arte. Na Adelina Galeria, o duo Lecuona y Hernández foi entrevistado pela crítica Paola Fabres
Beatriz Lecuona, à esq., e Óscar Hernandez conversam com a crítica Paola Fabres
NO PISO DA ADELINA GALERIA, UM BURACO RETANGULAR DAVA AS BOAS-VINDAS AOS VISITANTES. Entre todos os trabalhos da dupla
espanhola Beatriz Lecuona e Óscar Hernández, o site-specific Encontro (2017) foi o que promoveu o grande debate da Conversa com Artista #2, realizada em 24/6 com mediação da pesquisadora, crítica e curadora Paola Fabres. Muitos reagiram com estranhamento à perfuração, cuja iniciativa só vem confirmar a identidade da nova galeria paulistana como SELECT.ART.BR
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um “espaço de acontecimentos”. A obra Encontro é um símbolo da necessidade dos artistas em dialogar com a arquitetura local e com a cidade. Ela sintetiza o conceito que permeou toda a exposição Falso Histórico, que ficou em cartaz até 22/7. O buraco, identificado por muitos visitantes como uma cova, é a forma que os artistas encontraram de revelar a terra que guarda a memória do local, mas, ao mesmo tempo, de representar sua relação física com o solo e os calçamentos da cidade de São Paulo. Essa procura por camadas internas com o poder de ressignificar a aparência superficial do mundo é uma constante na pesquisa de Lecuona y Hernández. Os espanhóis vieram ao Brasil para uma residência artística de dois meses a convite da Adelina. Eles contaram que, ao chegar, foi inevitável redefinir os conceitos que carregavam relativos à terra tupiniquim. Os estereótipos brasileiros protagonizaram boa parte da conversa, gerando curiosidade e interesse por parte do público. Instigados por Fabres, os artistas contaram que o que mais lhes causou surpresa em São Paulo foi a invasão da esfera privada sobre a pública – condição que se materializa em fatos prosaicos, como, por exemplo, na atribuição que cada morador da cidade tem de cuidar de sua própria parcela de calçada, que deveria ser cuidada como um espaço público. Na exposição, o comportamento higienista da cidade converteu-se na matéria-prima dos trabalhos Border (2017) e Canto Diferenciado (2017). O primeiro consiste em um estandarte feito com um tapete de estilo aristocrático pintado de preto e que faz referência à expressão “colocar a sujeira embaixo do tapete”. Já Canto Diferenciado, um escoamento realizado em um metal asséptico e localizado em uma quina da galeria, é baseado nas salas sem cantos usadas em procedimentos de autópsia, para que os fluídos não sujem as paredes. Lecuona y Hernández também relacionam esse trabalho a uma embarcação, refletindo seu interesse na história das navegações e dos trânsitos entre a Europa e as Américas. FOTO: LUANA FORTES
hertzogart.com.br acesse, navegue e sinta.
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ARTE CONTEMPORÂNEA AFRODESCENDENTE
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Linguagem (2015), de Bruno Baptistelli, novo trabalho do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
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DURANTE MINHA GESTÃO COMO DIRETOR-GERAL DA PINACOTECA DE SÃO PAULO (2015-2017), A ENTRADA DE OBRAS DE ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS AFRODESCENDENTES PARA O ACERVO TEVE, DE INÍCIO, DUAS JUSTIFICATIVAS QUE SE COMPLEMENTAVAM. Por um lado, o interesse de – no âm-
bito das comemorações dos 110 anos da Pina – prestar uma homenagem a Emanoel Araujo (primeiro diretor negro da instituição). Em suas atividades como diretor da Pinacoteca, Emanoel enfatizou bastante o crescimento da coleção de artistas afrodescendentes dentro do acervo e queríamos enaltecer esse seu feito. Por outro lado, sempre tive um interesse grande pela produção de artistas contemporâneos afrodescendentes, que acompanho há décadas, porque penso ser, no mínimo, hipócrita qualquer reflexão sobre arte contemporânea no Brasil sem levar em conta essa produção. (Só para lembrar: primeira exposição mais significativa que Rosana Paulino participou foi A Fotografia Contaminada, no Centro Cultural São Paulo, em 1994, a meu convite; fui o primeiro a escrever sobre a produção de Sidney Amaral no início de sua carreira; quando diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), entre 2010 e 2014, entraram para o acervo daquele museu obras de Rommulo SELECT.ART.BR
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Vieira Conceição e Flávio Cerqueira.) Da confluência desses dois interesses surgiu a ideia da mostra Territórios – Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca, ocorrida na Pina Estação em 2015, sob minha responsabilidade. Naquela ocasião entraram para o acervo do Museu obras de Sidney Amaral, Flávio Cerqueira, Rommulo Vieira Conceição, Jaime Lauriano e Rosana Paulino. Territórios, mesmo circunscrita a um interesse fundamentalmente institucional, foi a primeira mostra que reuniu um núcleo significativo de artistas contemporâneos afrodescendentes num museu mainstream paulistano, em muitos anos (é claro que excetuo aqui o Museu AfroBrasil). Fora do âmbito de Territórios, entraram para o acervo da Pina, mais recentemente, obras de Bruno Baptistelli e Sidney Amaral, recém-falecido. As pinturas e os objetos de Amaral, por sua vez, integram a mostra Metrópole: Experiência Paulistana (em cartaz na Pina Estação até setembro), em que as obras de artistas afrodescendentes, como as dele e as de Renata Felinto, Jaime Lauriano, Flávio Cerqueira e Moisés Patrício, são dispostas em diálogos com produções de artistas de outras origens. É dessa maneira, na verdade, que gosto de ver essas produções, embora nunca descarte a possibilidade de refletir especificamente sobre elas, como foi o caso de Territórios. FOTO: GUI GOMES
K
“O QUE EU
CO LU N A M Ó V E L / P I P I CO LO N I A L
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PODERIA
ENTRE GÊNERO E COLONIALIDADE O Pipi Colonial (Ana Cristina Cachola, Daniela Agostinho e Joana Mayer) é um colectivo formado em 2016 que se expressa através da curadoria, da programação e da produção de pensamento crítico. O nome Pipi Colonial evoca a afinidade com outros coletivos feministas que operam no meio artístico (Pussy Riot, Pussy Galore, Fierce Pussy, COUNTess), em que questões de gênero continuam por discutir de forma consistente e informada. O objectivo do Pipi Colonial é problematizar a teia de relações entre gênero e colonialidade a partir de uma perspectiva feminista, sistêmica e interseccional. Quer isso dizer que o coletivo não se furta à complexidade de abordar essas questões a partir da posição do sujeito feminino, branco e europeu, reconhecendo assim a “dupla articulação” do colonial de que fala Homi Bhabha, isto é, uma condição que é partilhada entre colonizadores e colonizados, mas que tem legados e efeitos díspares para cada um. Inspirado pela teoria feminista, pós-colonial e descolonial, o coletivo investiga o imaginário histórico resultante dessa dupla articulação, indagando de que forma esses imaginários se encontram por via quer da tensão quer da convivialidade. O Pipi Colonial procura criar espaços de confluência solidária de agendas, aspirações e receios que reconhecem a multiplicidade de experiências de vários sujeitos, multiplicidade essa que é encarada como desejável e produtiva. O coletivo reflete assim sobre as linhas de continuidade entre formações coloniais, sobre o legado do passado colonial na contemporaneidade, nomeadamente as novas configurações de colonialidade capitalista e belicista, e sobre a forma como estas condicionam e se articulam através de categorias de gênero. Por fim, a atuação do Pipi Colonial explora a potencialidade epistêmica do curatorial, entendido como prática de produção de conhecimento para além do expositivo e do programático.
FA ZER S EM O ABSURDO Ana Cristina Cachola, Daniela Agostinho e Joana Mayer, investigadoras do coletivo Pipi Colonial
que continuam a se perfilar no presente, da escravatura às novas formas de colonialidade capitalista, e, por outro, da energia subversiva das micro e macrorresistências (estéticas, políticas, éticas) que reconfiguram a matriz violenta do mundo.
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EFÊMERO”
ESTUDOS NOTURNOS
No âmbito da exposição Curated Curators II, organizada pela dupla de artistas Sara & André na Galeria Zaratan, em Lisboa, o Pipi Colonial forneceu um conjunto de fotografias, tiradas em contexto noturno, a Rita Ferreira, a partir das quais a artista produziu um álbum pictórico de Estudos Noturnos. Os Night Studies constituem um campo de produção de conhecimento cunhado pelo Pipi Colonial, campo que pretende resgatar o potencial da noturnidade, destacando as suas valências boêmias, de convivialidade, mas também a sua potência epistemológica. O Pipi Colonial acredita que sair à noite (da academia, da galeria ou do museu) permite que o conhecimento circule fora de espartilhos institucionais, expandindo as possibilidades epistêmicas do contemporâneo.
A COISA ESTÁ PRETA
A primeira programação pública do Pipi, intitulada A Coisa Está Preta, foi concebida para o Bregas, espaço de programação independente fundado pelos artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira em Xabregas, Lisboa. O programa era composto de uma exposição, projeção de filmes, um Peep Show Teórico – uma série de palestras em que foi dada “carta branca” aos convidados para falarem sobre o “preto” – e um DJset. Em A Coisa Está Preta explorou-se a tensão entre o festivo e o sombrio, em que a produtividade conceptual do preto surgia como signo, por um lado, da sombra dos traumas históricos
E O
herton roitman pinturas e assemblages
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AGENDA PIPI COLONIAL
Temos dois projetos agendados para novembro de 2017. Pipi Antro – feminismo e antropoceno, programa de conferências no âmbito do Fórum do Futuro (Câmara Municipal do Porto) com Denise Ferreira da Silva e Sophia Al-Maria, em torno do tema “Terra Eléctrica”, no Porto. E Efeito-suruba, programa curatorial, festivo e reflexivo sobre a promiscuidade da mídia e os media da promiscuidade na produção artística contemporânea, no espaço de programação sob direção artística do Teatro Praga, em Lisboa. FOTO: JOÃO PEDRO VALE, NUNO ALEXANDRE FERREIRA
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CO LU N A M Ó V E L / N A B O R J R.
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SIDNEY AMARAL
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E A CELEBRAÇÃO DA FRUSTRAÇÃO
“CELEBRAR O ARTISTA NEGRO E OS SEUS FEITOS, DESDE OS TEMPOS TERRÍVEIS DA ESCRAVIDÃO ATÉ OS DIAS NÃO MENOS SEVEROS DE HOJE, SERÁ SEMPRE UM ATO DE FRUSTRAÇÃO.” Proferida por Emanoel Araujo no tex-
to de abertura do catálogo A Nova Mão Afro-Brasileira (2013), a sentença se vale do persistente quadro de exclusão e violência que vivemos desde o início do tráfico atlântico dos negros. A sensação de incapacidade diante de desgostos sofridos ou da inépcia diante de obstáculos intransponíveis, a qual chamamos de frustração, quando ressignificada, mesmo que de maneira antagônica a sua “função” literal pode atuar como uma emoção disparadora de processos artísticos. Artista de múltiplos recursos, pintor, escultor e desenhista, Sidney Amaral (1973-2017), simultaneamente homem, marido, pai e professor da rede pública de ensino, assim o fez, com esse sentimento cotidiano inerente à condição humana. Aliás, foi justamente a partir das fragilidades existenciais observadas no trivial cotidiano do homem negro comum, inserido numa sociedade sempre disposta a esquecer os valores destinados a todos, sem exceção, é que surge o substancioso conjunto de autorretratos do artista. A celebração da frustração em Sidney Amaral está no modo sofisticado em que arquiteta a poética do tema, ou dos temas, que apresenta nos seus bidimensionais em aquarela e acrílica. Majoritariamente são trabalhos acompanhados de reflexões raciais e sociais, flertando com as angústias existenciais do artista, e igualmente de sublime construção técnica. Obras como Incômodo e História do Sanitarismo no Brasil (O Trono do Rei), são bons exemplos desse pensamento que celebra as fragilidades humanas. Sem que isso, contudo, implique uma narrativa que anule a proatividade do receptor que entra em contato com a sua obra. “Essa frustação aparece em meus autorretratos como na tela Bem Me Quer, que chamo de relações delicadas, na qual me represento na maioria das vezes em cinza (como disse Klimt, ‘não sou particularmente interessante’), onde procuro mostrar, através da relação do meu personagem com os objetos apresentados, como a comunicação entre as pessoas é difícil mesmo entre aqueles que se amam (o vestido de noiva e as luvas de boxe, por exemplo), a condição de ser pai hoje (eu e a criança em uma cadeira-abismo), enfim, são questões que estão mais ligadas ao espaço íntimo do lar (...)”, afirmou o artista em entrevista concedida ao crítico e pesquisador de artes Alexandre Araújo Bispo, no início de 2012. Protagonista de suas próprias frustrações, e também ator principal dos desencantos com a sociedade em que vivemos, o virtuoso Sidney Amaral, que ainda jovem constituiu-se como referência entre os artistas negros SELECT.ART.BR
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O Atleta ou O Sonho de Kichute (2013), de Sidney Amaral
brasileiros contemporâneos, produziu, especialmente a partir do início da segunda década do século 21, autorretratos icônicos, fundamentais para compreendermos a produção dos artistas negros brasileiros de hoje e suas inquietações. Mãe Preta (A Fúria de Iansã), Gargalheira (Quem Falará Por Nós?) e Imolação refletem a força da narrativa desse artista que no auge de sua carreira nos deixou. Frustração é saber que não mais teremos novas ressignificações de objetos convencionais e cotidianos subvertidos em sua materialidade. Frustração é ter a consciência de que não mais contemplaremos a subversão que o artista fazia da natureza das coisas e sua capacidade sutil de ironizar o status quo e a relação entre público e obra. Não mais veremos a excelência no trato com o mármore, bronze e suas esculturas de realismo fantástico. Celebremos a frustração de Sidney Amaral, sua competência, virtuosismo e, acima de tudo, a sua obra, ad aeternum. FOTO: JOÃO LIBERATO
Filhas da Lica, Cantagalo, 2016, pigmento sobre papel de algodão, 100x100cm
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A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L
VERBETES MESTRE DIDI Deoscóredes Maximiliano dos Santos (Bahia, Brasil 1917 – Bahia, Brasil 2013). Escultor e escritor. Executa objetos
MATRIZ AFRO-BRASILEIRA
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rituais desde a infância; aprende a manipular materiais, formas e objetos com os mais antigos do culto orixá Obaluaiyê. Entre 1946 e 1989, publica livros sobre a cultura afro-brasileira, alguns com ilustrações de Caribé. Em 1966, viaja
O olhar do instituto para questões relativas à identidade
para a África Ocidental e realiza pesquisas comparativas
cultural e ao combate ao racismo estrutural reflete-se em
de 1960 a 1990, participa como membro de institutos de
projetos e verbetes
congressos com a mesma temática, no Brasil e no exterior.
entre Brasil e África, contratado pela Unesco. Nas décadas estudos africanos e afro-brasileiros e como conselheiro em Em 1980, funda e preside a Sociedade Cultural e Religiosa Ilê Asipá do culto aos ancestrais Egun, em Salvador. Foi coordenador do Conselho Religioso do Instituto Nacional da
PROJETOS
Tradição e Cultura Afro-Brasileira, que representa no País a
SUELI CARNEIRO
Conferência Internacional da Tradição dos Orixás e Cultura.
Filósofa, escritora e ativista, é uma das vencedoras do Prêmio Itaú Cultural 30 Anos, na categoria Mobilizar, por sua atuação na luta contra as desigualdades racial e de gênero no Brasil. Fundou, em 1988, o Geledés – Instituto da Mulher Negra, por meio do qual criou programas como o S.O.S Racismo – serviço de atendimento jurídico e psicológico a vítimas de discriminação – e o Projeto Rappers, voltado para a juventude negra. Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), participou da audiência pública que o Supremo Tribunal Federal realizou em 2010 para discutir a constitucionalidade das cotas raciais nas universidades brasileiras – e sua defesa foi decisiva para a manutenção da medida.
RUMOS 2015-2016: ACERVO AGUDÁS – OS “BRASILEIROS” DO BENIM
EUSTÁQUIO NEVES José Eustáquio Neves de Paula (Minas Gerais, Brasil 1955). Fotógrafo. Autodidata. Abandona o curso de química industrial, para se dedicar exclusivamente à paixão pela fotografia de caráter étnico-cultural. Firma-se nessa última década como um dos talentos desse setor, com uma linguagem ousada e criativa que renova os temas que focaliza. Recebeu o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Fundação Nacional de Arte, em 1994.
O antropólogo Milton Guran foi selecionado pelo programa Rumos 2015-2016 para organizar seu acervo de mais de 20 anos de pesquisa sobre as tradições dos Agudás, os brasileiros do Benim. O estudo começou com seu interesse por ex-escravos que decidiram retornar à sua terra de origem, como aqueles que voltaram ao longo do século 19 ao Benim, Togo e Nigéria, na África. Quando lá chegaram, tiveram de lidar com o estigma da escravidão e acabaram ganhando o nome de Agudás, corruptela da palavra ajuda. A solução que encontraram para recomeçar suas vidas foi assumir uma identidade brasileira, até mesmo adotando o português como idioma. Acabaram, mais tarde, exercendo grande influência política, cultural e econômica na região, ao levar a cultura ocidental para a África, antes da colonização francesa. A pesquisa de Guran está disponível online até dezembro de 2017.
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RUBEM VALENTIM Rubem Valentim (Bahia, Brasil 1922 – São Paulo, Brasil 1991). Escultor, pintor, gravador, professor. Inicia-se nas artes visuais na década de 1940, como pintor autodidata. Entre 1946 e 1947, participa do movimento de renovação das artes plásticas na Bahia, com Mario Cravo Júnior (1923), Carlos Bastos (1925) e outros artistas. (...) Em 1979, Valentim realiza escultura de concreto aparente, instalada na Praça da Sé, em São Paulo, definindo-a como o Marco Sincrético da Cultura Afro-Brasileira. (...) Desde o início de sua produção, nota-se um forte interesse pelas tradições populares do Nordeste, como, por exemplo, pela cerâmica do Recôncavo Baiano. A partir da década de 1950, o artista tem como referência o universo religioso, principalmente aquele relacionado ao
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candomblé ou à umbanda (...).
FOTOS: ANDRÉ SEITI/ MILTON GURAN/ DIVULGAÇÃO/ MIGUEL AUN/ CORTESIA MUSEU AFRO BRASIL
MUNDO CODIFICADO
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O TRIÂNGULO DA IN V ENÇÃO Em diversas ocasiões, Emanoel Araujo, diretor-curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, estimulou a reflexão sobre as relações sociais, culturais e políticas entre Brasil, Portugal e países africanos de língua portuguesa, com a curadoria de importantes exposições. “A iniciativa de exibir manifestações criativas nascidas no triângulo da invenção – eixo geográfico que envolve Portugal, África e Brasil – busca estimular a reflexão sobre esses territórios e comunidades densamente marcados pela alma portuguesa, marcados pelos percalços da colonização, às vezes perversa, dominadora, criadora de sincretismos. Por muitas razões os países formadores dessa lusofonia estão associados e unidos. Somos muito mais que afilhados de uma mesma língua. A língua, a história, as conquistas, a memória, a ancestralidade, esse desejo incomensurável de liberdade poderiam ser a razão mais direta dessa união e, por consequência, dessas exposições”, diz Emanoel Araujo à seLecT.
1. BARROCO ARDENTE E SINCRÉTICO - LUSO-AFRO-BRASILEIRO 3/8 - 3/12 Atualmente em cartaz, esta exposição com 400 obras passeia pelas múltiplas manifestações do barroco em Portugal e no Brasil. Com referências às manifestações eruditas e populares do movimento artístico do século 17, a mostra presta homenagem ao Jubileu de 300 anos de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Encontram-se nos espaços do Museu Afro Brasil artistas anônimos e celebrados pela historia da arte, como Aleijadinho e Mestre Valentim.
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2. PORTUGAL PORTUGUESES – ARTE CONTEMPORÂNEA - 8/9/16 - 8/1/17 Esta exposição foi a segunda parte de uma trilogia desenvolvida em homenagem às raízes africanas, portuguesas e indígenas do Brasil. Com o passado colonial e escravocrata redesenhado na perspectiva contemporânea, a exposição traçou um panorama das influências interculturais de Portugal, África e Brasil, com mais de 40 artistas, entre eles Ana Vieira, Artur Barrio, Antonio Manuel, Francisco Vidal, Joana Vasconcelos, José Pedro Croft, Rui Calçada Bastos, Maria Helena Vieira da Silva e Yonamine.
3. JOSÉ DE GUIMARÃES - O RITUAL DA SERPENTE: 10 GUACHES INSPIRADOS NA OBRA DE ABY WARBURG 6/9/14 - 31/12/14 Individual de José de Guimarães, bastante conhecido pelo uso de cores saturadas, que criou para a comemoração dos dez anos do Museu Afro Brasil uma série de guaches em interpretação da obra do historiador Aby Warburg, explorando a iconografia da serpente.
1. Entalhe de Mestre Valentim, realizado no Séc. XVII. 2. Feijoeiro (2004), de João Pedro Vale & Nuno Alexandre 3. Guache da série Ritual da Serpente (2014), de José de Guimarães. 4. Fotografia da série Reis, de Manuel Correia. 5. Xilogravura O Devorador de Estrelas (1999), de Gilvan Samico. 6.Fotografia da série Sangue e Água, de Manuel Correia. 7. Vista da exposição Elos da Lusofonia.
6. TÍTULO: SANGUE E ÁGUA – PERCURSOS NO BOM JESUS DE BRAGA - 12/10/12 - 31/12/12 Trinta fotografias do português Manuel Correia retratando a cidade de Braga, centro de devoção popular em Portugal. As imagens apresentam vestígios da presença do Império Romano e a arquitetura religiosa. O livro da série foi lançado pelo artista um ano antes, em Portugal.
4. O PODER TRADICIONAL – REIS E SOBAS EM ANGOLA - 8/9/16 - 9/7/17 Individual do pernambucano Manuel Correia, primeiramente exibida dentro da mostra Portugal Portugueses, mas prorrogada por seis meses. O trabalho é formado por uma série de fotografias realizadas em viagens por Angola, enfocando as figuras responsáveis pela proteção e liderança de suas comunidades, denominadas “sobas”.
7. ELOS DA LUSOFONIA - 15/4/11 - 29/5/11 A produção de arte de países que falam português foi o foco de Elos da Lusofonia, que colocou em comunicação trabalhos de Angola, Brasil, Portugal, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe. Também foi abordada a ligação dessas nações com a arte ancestral de povos como os Bijagós, de Guiné-Bissau, os Makonde, de Moçambique, e os Quioco, de Angola. Participaram António Olé, Fernando Lemos, Francisco Brennand, Matias Ntundu e Rubem Valentim, entre outros. 5. A SERPENTE NO IMAGINÁRIO ARTÍSTICO - 6/9/14 - 31/12/14 Simultaneamente à individual de José de Guimarães, o MAB também montou a exposição coletiva A Serpente no Imaginário Artístico, tendo em vista a riqueza de leituras simbólicas e arquetípicas do animal. Entre os artistas, Carybé, Francisco Graciano, Gilvan Samico, Kifouli Dossou e Mestre Didi.
FOTOS:JAILTON LEAL/ SIMON SHAPUT/ DIVULGAÇÃO/ MANUEL CORREIA/ HENRIQUE LUZ/ MANUEL CORREIA/ JOÃO LIBERATO
PORTFÓLIO
KILUANJI KIA HENDA
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ENTRE O PARAÍSO E AS TREVAS
Em série fotográfica, artista angolano explora o imaginário das expedições coloniais a fim de compor sua versão da história LUA N A F O RT ES Nos Dias de um Safári Sombrio #5
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FOTO: CORTESIA GALERIA FILOMENA SOARES
FALAR SOBRE A OBRA DE KILUANJI KIA HENDA REQUER PENSAR O CONTEXTO EM QUE ELE NASCEU E CRESCEU.
O artista chegou ao mundo quando Angola acabava de ter sua independência declarada. Como em qualquer processo de emancipação, o esforço para chegar lá não foi pequeno. Em 1961, três frentes começaram a lutar contra a colonização portuguesa, apoiadas por países com distintos ideais. Em plena Guerra Fria, o jogo de forças em Angola chegou a abalar a passividade do contexto internacional. Mas com a declaração da independência, em 1975, após 13 anos de conflitos da chamada Luta Armada de Libertação Nacional, não cessaram os debates. Este não foi o início da paz, mas sim de uma guerra aberta. A Guerra Civil Angolana começou no ano de nascimento de Kiluanji e só foi terminar em 2002. Quem cresceu nesse cenário participou ativamente da construção da identidade de uma nova Angola. “Sinto-me muito mais recompensado e desafiado em trabalhar num contexto em que existe uma necessidade de se
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“Existe uma necessidade urgente de reflexão sobre os períodos turbulentos que vivemos, legitimando novas narrativas”, diz Kiluanji Kia Henda
Acima, Nos Dias de um Safári Sombrio #7. Na página ao lado, A Última Viagem do Ditador Mussunda N’Zombo Antes da Grande Extinção (Ato III)
resgatar ou, ainda, de inventar uma história, dada a falta de acesso do que foi registado no passado, desde um olhar estrangeiro”, diz Kiluanji à seLecT ao ser questionado sobre a importância de viver e trabalhar em Angola, hoje. Sua atuação como artista coincide com o aparecimento de uma cena artística contemporânea no país, nos últimos dez anos. Mesmo sem infraestrutura – o artista afirma não existir até hoje um museu de arte em Angola –, a Trienal de Luanda representou, para sua geração, a plataforma de acesso à cena internacional. “Existe a necessidade urgente de um questionamento sobre os períodos turbulentos que vivemos, legitimando novas narrativas. A arte pode ser um veículo excelente para exorcizar um passado extremamente trágico, mas também para projetar um futuro, ainda que fantasioso”, diz. Na nova série In The Days of a Dark Safari (Em Dias de Um Sáfari Sombrio – 2017), Kiluanji explora visões paradoxais de uma África pré-colonial. O projeto é composto de foto-
grafias realizadas no Museu Nacional de História Natural, em Luanda, construído no período colonial. O cenário da narrativa fantasiada por Kiluanji é o diorama do museu, que interpreta a fauna e flora do país, com a presença de animais empalhados. Uma das maiores atrações do local é a Palanca Negra Gigante, espécie rara de antílope de Angola, que nas fotografias de In the Days… é coberta e descoberta por um tecido preto. Se o diorama representa a visão oficial da história e da paisagem de Angola, o artista optou por evidenciar sua artificialidade. Assim, problematiza também a criação de um Museu de História Natural como lugar de narrativas forjadas e, portanto, hostis. PARAÍSOS PERDIDOS E REINOS DA CORRUPÇÃO
Quem é o observador e quem é o observado? O trabalho instiga uma mudança de perspectiva. Os papéis invertem-se quando os olhos daquele que deveria ser passivo – o exemplar
FOTOS: CORTESIA GALERIA FILOMENA SOARES
da espécie rara – estão encobertos. O espectador pode até passar a ser considerado a presa, quando o animal está protegido de seu olhar. Esse tipo de ambivalência caracteriza a produção de Kiluanji Kia Henda, que elabora indagações e respostas aos julgamentos – internos e externos – a respeito do continente africano. In The Days of a Dark Safari estrutura-se sobre duas leituras do passado africano: “A leitura é feita a partir de um imaginário das expedições coloniais, que considerava um continente das trevas, como se pode ler no livro de Joseph Conrad, um dos maiores clássicos da literatura inglesa, ou pela interpretação de um discurso populista africano, em que a África pré-colonial era um paraíso”, explica. Em Heart of Darkness (1899), a África era vista como algo monstruoso e demasiado livre, um lugar obscuro e desconhecido que deveria ser dominado e controlado. No outro extremo está a visão populista do passado como um paraíso imaculado, que deve ser resgatado. “Um dos motivos para a miséria que se vive no continente, usado com muita frequência no discurso de muitos políticos africanos (principalmente onde se vive sob ditadura), é resultante da presença europeia. Não posso dizer que esse discurso seja completamente falso, mas tem sido amplamente utilizado por meia dúzia de pessoas no poder para encobrir a sua má gestão ou a corrupção sem limites”, reflete. Essa reflexão deu origem a uma subnarrativa, dentro da série In The Days of a Dark Safari. As imagens de The Last Journey of the Dictator Mussunda N’zombo Before the Great Extinction (A Última Viagem do Ditador Mussunda N’Zombo Antes da Grande Extinção – 2017) apresentam o artista angolano Miguel Prince interpretando o arquétipo de um ditador em sua última viagem ao paraíso imaculado. A personagem representada teve como referência e inspiração o ditador Mobutu Sese Seko, governante do Congo entre 1965 e 1997. Ela aparece apreciando as paisagens artificiais e os animais empalhados, até um desenlace trágico. A série, composta de 13 fotografias e um vídeo – quatro delas reproduzidas neste Portfólio –, constitui uma versão da história e uma construção de futuro, apontando para o fim das ditaduras. “Vivemos uma espécie de atropelamento histórico, entre a necessidade imperiosa de pertencer à modernidade e problemas da era da pedra por resolver”, diz. Certo de que as novas gerações de Angola jamais aceitarão ser governadas por um ditador, Kiluanji trabalha pela invenção de novas identidades africanas.
Abaixo, A Última Viagem do Ditador Mussunda N’Zombo Antes da Grande Extinção (Ato V).
s e L e c T e x pa n d i d a :
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Confira
a í n t e g r a d a e n t r e v i s ta d e
K i lu a n j i K i a H e n d a
e m b i t . ly / k i lu a n j i
FOTO: CORTESIA GALERIA FILOMENA SOARES
PERFIL
RITA GT, UMA PORTUGUESA EM ANGOLA A artista, ativista e agente cultural faz de sua obra ato de militância pela arte contemporânea angolana PA U L A A L Z U G A R AY
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QUEM INVENTOU A HISTÓRIA DA ARTE? Movida
por esta indagação, Rita GT graduou-se em artes na cidade natal do Porto, arrumou as malas e foi para Berlim, em busca da raiz do pensamento eurocêntrico. “Aqui sinto mais forte o que é ser formada por um pensamento eurocentrado. Gosto de sentir o peso da arte europeia”, escreveu em seu blog, em setembro de 2008. A resposta foi sendo aos poucos elaborada por ela mesma, então autêntica artista europeia, em trabalhos de performance documentados em vídeo ou fotografia, como Performance in Eurocentric Museum (2009). Dessas imagens, em que literalmente navega diante de clássicos da pintura renascentista, até a série Fall, Action nº 1 (2013), realizada em Luanda, e até que Rita GT viesse a se tornar a produtora do Pavilhão de Angola na Bienal de Veneza (2015), passaram-se poucos anos, mas muitas páginas de histórias tiveram de ser rasuradas e reescritas. Continuando sua formação na Suécia e enveredando em estudos pós-coloniais, ela não demorou a compreender que a invenção da história da arte remonta à invenção da instituição museu, no século 19.
FOTOS: CORTESIA RITA GT
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“Tempos em que colonizadores enviavam etnógrafos a países colonizados em missão de trazerem para o Ocidente todos os tipos de peças de arte exótica. Foi a partir da etnografia clássica que a cultura ocidental adquiriu a ideia de arcaico, cerimônias e rituais de outras sociedades, sendo reconstruída a ideia vaga de até então, sobre o ‘outro’”, anotou ela no texto que hoje funciona como um statement de sua prática artística. Autodefinindo-se como ativista feminista e militante cultural em prol da arte contemporânea africana e da diáspora, Rita GT viveu os últimos cinco anos em Luanda, capital de Angola. “Ser mulher, branca e portuguesa, em Luanda, não é propriamente o melhor currículo”, ri. Mas sua experiência local foi melhor que a encomenda. Lá coordenou o E-studio Luanda, projeto colaborativo com quatro artistas contemporâneos locais, entre eles António Ole, Nelo Teixeira e Francisco Vidal. “O objetivo era uma tomada de consciência da importância do trabalho
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colaborativo, de que existe um movimento de arte contemporânea angolana e a promoção de exposições, workshops e serviço educativo em Angola”, diz RitaGT à seLecT. Com Francisco Vidal (português, filho de angolano e cabo-verdiana), ela teve um filho, e realizou trabalhos vibrantes, como a série The New Way to Wear Black (2012), uma associação entre seu trabalho performático e a prática pictórica de Vidal. No mesmo ano, começou a frequentar as recém-surgidas feiras especializadas, como a 1:54 Contemporary African Art Fair, em Londres, e AKA – Also Know as Africa, em Paris. “Me interessa questionar as fronteiras do que seja uma prática artística. Considero tudo o que faço – produção ou curadoria – como meu trabalho artístico”, diz. Foi com esse pensamento que Rita GT trabalhou como voluntária no primeiro pavilhão de Angola que foi montado em uma Bienal de Veneza. Isso foi em 2013, com seus amigos, a curadora Paula Nascimento e o artista Edson Chagas.
Na dupla anterior, a série Fall. Action n o 1. Luanda (2013), de Rita GT. Na página ao lado, Performance in Eurocentric Museums (2009). Acima, The New Way to Wear Black (2012), espécie de releitura de Rita GT para Les Demoiselles D’Avignon, de Picasso. Abaixo, a mesma obra com intervenção pictórica de Francisco Vidal
FOTOS: CORTESIA RITA GT
YONAMINE Artista-viajante, viveu em Angola, no Zaire, no Brasil e na Grã-Bretanha. Hoje mora em Berlim, onde expande seu trabalho de cunho altamente político, que cruza referências territoriais e culturais em um novo ativismo black power.
ANA SILVA
NELO TEIXEIRA
O tecido, a linha, a agulha, o papel de parede, a estamparia. Elementos que são ordinariamente associados ao universo feminino são manipulados por Ana Silva para a desconstrução da ideia de conforto e delicadeza.
O lixo é a fina flor da iconografia urbana nas mãos de Nelo Teixeira, artesão contemporâneo, hábil nas práticas da escultura e da pintura, com objetos encontrados nas ruas de Luanda.
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THÓ SIMÕES
DÉLIO JASSE
Com atuação artística na fronteira do ativismo social e da educação, Thó Simões desenvolve uma linguagem próxima ao grafite e à intervenção urbana, apropriando-se do imaginário tribal de Angola.
Definindo-se como um artista-colecionador, Délio Jasse arquiva caixas e caixas de fotografias, manifestos e documentação da cultura ocidental, para reprocessálas sob a ótica africana.
“Voluntariei para ir ajudar, fazer qualquer coisa, nem que fosse limpar copos, mas queria estar com eles porque sabia que esse seria um momento muito importante para Angola. E aconteceu uma coisa histórica: o Pavilhão de Angola ganhou o Leão de Ouro. Então deu-se um boom da arte contemporânea africana. Na edição seguinte da feira 1:54 vieram diretores do MoMA, da Tate, compraram imensas obras. Foi uma revolução”, conta. Na 56ª Bienal de Veneza, em 2015, dirigida pelo nigeriano Okwui Enwezor, a expectativa sobre a presença do continente africano aumentou. E Rita GT voltou à Itália como produtora-geral do pavilhão de Angola, que teve curadoria do artista António Ole e participação do também artista Nelo Teixeira. Na atual edição, em cartaz até 26/11, ela voltou como visitante. “Este ano eles conseguiram fazer uma coisa muito bem produzida e profissional, bons artistas, boas peças, fiquei muito orgulhosa. Costa do Marfim, Tunísia, Egito, Quênia e Zimbábue também tinham pavilhões ótimos. Então, de repente, existe aqui um circuito. E tentamos
trabalhar juntos, como uma network”, diz ela. Atualmente, Rita GT voltou para o Porto e vive em trânsito entre Lisboa, Londres e Luanda. Mas só Angola não cabe mais em seu coração africano. “Estou hoje investigando as relações da Nigéria e da cultura iorubá com Portugal e o Brasil. Há a cidade do Benin (não o país), na Nigéria, em que as pessoas têm nomes portugueses, porque foram escravos levados para o Brasil e depois voltaram. E essa cultura iorubá é igual ao candomblé”, conta ela, que conheceu a religião afro-brasileira no Rio durante residência de um ano no Capacete, entre 2008 e 2009. Em Lisboa, onde é representada pela Galeria Belo-Galsterer, Rita é também diretora criativa da coleção ACCA (Angola’s Collection of Contemporary Art), do arquiteto Alexandre Falcão Costa Lopes, que reúne em Lisboa peças de 27 artistas angolanos. É dessa coleção que ela selecionou cinco artistas com quem gentilmente dividiu estas páginas de seLecT: Ana Silva, Délio Jasse, Nelo Teixeira, Thó Simões e Yonamine. FOTOS: CORTESIA ACCA
D I Á LO G O S
FILHO DE ODÉ E FILHA DE YEMANJÁ
Ayrson Heráclito conversa com Nádia Taquary sobre os signos culturais e sagrados de matriz indígena e afro-brasileira enredados na escultura da artista baiana
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Da série Oriki, Saudação à Cabeça (2014), de Nádia Taquary
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FOTO: SERGIO BENUTTI, DIVULGAÇÃO
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AS POÉTICAS DE NÁDIA TAQUARY E DE AYRSON HERÁCLITO ENCONTRAM-SE NO PASSADO COLONIAL DO BRASIL –
Obras da série Oriki, Saudação à Cabeça (2014), uma homenagem às cabeças que na religião afro-brasileira fazem a conexão entre dois mundos: àiyê e orun
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no que nele existiu de sofrimento e riqueza. Em seus trabalhos, ambos abordam a negritude e a história do escravagismo. Heráclito escava o passado para refletir sobre as condições sociais do presente. Taquary tem na base de seu trabalho plástico a pesquisa de adornos corporais de povos africanos e peças da joalheria luso-afro-brasileira, feitos e usados pela população negra no Brasil do século 18, como símbolos de poder e magia. Baianos, residentes em Salvador, eles se encontram em trânsitos atlânticos. Heráclito, que atualmente apresenta na 57ª Bienal de Veneza a série Sacudimentos – baseada em rituais de limpeza do candomblé, com o sentido simbólico de exorcizar a dor do passado colonial em dois monumentos arquitetônicos da Bahia e do Senegal (leia review na página 112) –, foi o curador da primeira individual de Nádia Taquary. Nela, a artista explorou o balangandã, que era utilizado como pecúlio por negras alforriadas. Elas guardavam nos quadris o dinheiro de seu ganho na forma de amuletos e talismãs. Com a penca de balangandãs, quando farta, compravam a alforria de um parente. Por isso, esse era um símbolo de superação e liberdade. O deslumbramento “como tática para a conquista da liberdade” é, segundo o artista e curador, o conceito-chave da obra de Nádia Taquary. Nesta conversa, que aconteceu ao longo de duas visitas que eles fizeram um ao outro, Heráclito, generosamente, apresenta a artista para seLecT.
Ayrson Heráclito: Sua obra lança um olhar para a “joia de crioula” e para a história dos processos coloniais no Brasil. Poderia explicar como isso surgiu? Nádia Taquary: A joalheria afro-brasileira, acredito que entrou em minha vida por uma questão de memória afetiva. Quando criança, meu pai me presenteava com cordões, pulseiras e pingentes. Já adulta, estudando a joalheria luso-afro-brasileira, entro em contato com a coleção do Museu Carlos Costa Pinto, o maior acervo de “joia crioula” do Brasil. Lá, me deparo com as “pulseiras de placa” de minha infância, as cruzes em filigrana, os cordões de “elo português”, pingentes de coco e ouro... Isso me tocou profundamente, começando aí a minha pesquisa sobre essa temática. Desde sua saída da Costa do Ouro, trazida por Portugal, até a sua chegada e disseminação na Bahia. Diante disso, foi imediata a criação de uma poética artística. O entendimento da joalheria como um produto que reúne de forma nítida o variado leque das misturas que serão responsáveis pela formação do povo brasileiro, estava nela explícito. Sendo um fenômeno mestiço, que promove um encadeamento de técnicas portuguesas, mas com a estética africana. A mão é afro-brasileira! Temos de lembrar que esses artífices eram ourives africanos, com seus fazeres e saberes, que aqui foram escravizados para aprender as técnicas portuguesas, como a filigrana e outras. Contudo, ao burlar o controle lusitano, na hora de produzir para si, esta nova produção incorporava a intensidade, o tamanho, um conjunto de características da sua origem africana, sua etnicidade e sua ancestralidade. Quando olho para a “joia de crioula”, eu busco ressituá-la e reatualizá-la como um objeto que traduz muito do que somos, seu caráter de resistência, superação e empoderamento.
FOTOS: SÉRGIO FOTOS: BENUTTI, NONONONONONO DIVULGAÇÃO
Dinka Orixá - Oxum (2017). Na página ao lado, Mundo (2016), instalação que reflete o mito da divisão do mundo em natureza (àiyê) e mundo invisível (orun)
“Nas minhas esculturas existe a presença de fios que se remetem às contas sagradas do candomblé
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AH: Como você começou a estabelecer uma relação entre a tradição dessas peças com a produção de uma poética contemporânea? NT: Bem, esse processo de reatualização deu-se a partir do momento em que, fazendo a pesquisa, procurei ver o que há dessa joalharia ainda hoje. Me deparei com um contexto comercial reducionista, ou seja, um pobre eco do que essa arte foi. Essa artesania, atualmente tratada como folclórica, passa a ser um mero souvenir: uma lembrança turística da Bahia. Muitas vezes tosca, distanciando-se do cuidado, do seu fazer apurado da ourivesaria de outrora. Nesse momento me lanço em métodos de produção que reconstroem universos de signos culturais que se referem às questões históricas e suas lutas de resistência negra no Brasil. Tento articular uma aproximação do objeto, trazendo seu sentido e sua estética primordial como referência, mas não o reproduzindo formalmente. Sendo assim, proponho outra construção por meio de uma tradução contemporânea. É isso que chamo de reatualização. Busco a fala do objeto e a possibilidade de contar uma história que passa por ele, mas não se encerra nele. Porque eu acredito que esse objeto de joalheria é fruto de toda complexidade que é a nossa história. Nossas incessantes tensões raciais, negociações, dores, dissimulações e intrincadas mestiçagens entre indígenas, portugueses e africanos. Tudo se reflete nesse adereço. Eu acredito. Nas minhas esculturas existe a presença de fios, que se remetem aos fios de contas sagrados do candomblé e das culturas indígenas, aos trançados de cabelos africanos, às bolas confeitadas portuguesas... todos esses elementos intimamente relacionados e indissociáveis. As tensões de ordens físicas e conceituais estão presentes nesses adereços escultóricos que se amplificam, se agigantam. Eles renascem em um mundo contemporâneo para contar outra possível história que não se encerra exclusivamente neles. Esse é o meu processo de criação, que se encaminha pela emoção e pelo contexto histórico e identitário. AH: Como você já nos falou, os elementos da religião afro-brasileira são presentes em seus trabalhos. Fale um pouco mais sobre o sagrado em sua obra. NT: Meu trabalho está diretamente ligado à chamada “arte tradicional africana” e indubitavelmente relacionado com o universo do sagrado. Sua estética é formada por uma diversidade de valores que agem sobre a vida do grupo que a produz. Muitos desses objetos são utilizados em rituais religiosos. Eles são objetos de crença, propiciatórios, ou que agem na proteção e na rea-
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e das culturas indígenas, aos trançados de cabelos africanos, às bolas confeitadas portuguesas... elementos intimamente relacionados e indissociáveis”, diz Taquary
lização de desejos dos seus adeptos. Diferente de uma concepção europeia, ocidental, de arte, onde existe um valor meramente contemplativo. Evocar e traduzir essa linguagem me fascina. Sendo a minha maior referência estética e cultural, ela compreende uma dimensão filosófica que não separa o aiyê de orum (terra e céu – homem e espírito). Essas duas dimensões caminham juntas e a arte é o elemento que as liga. Quando construo uma peça em que enfio contas vermelhas, é impossível não referenciar a deusa Iansã. O mesmo com os longos fios de contas dourados, onde saúdo Oxum, turquesa, Oxóssi, e branco, Oxalá. Eu estou cotidianamente lidando com essas energias que advêm dos deuses afro-brasileiros. AH: Como o sistema de arte brasileira tem recebido seus trabalhos? E fale um pouco de suas referências artísticas.
NT: O mercado está se abrindo muito para a diversidade da produção brasileira, especialmente para a de matriz indígena e afro-brasileira. Meu trabalho vem encontrando aceitação generosa no circuito artístico nacional. Sou representada por uma importante galeria do Nordeste e tenho participado de feiras de artes. Além disso, respeitáveis críticos e curadores estão conhecendo e promovendo meus trabalhos. Relevantes coleções públicas e privadas estão adquirindo as peças, não só no Brasil. Trabalhei com uma galeria em Paris que realizou minha primeira individual na Europa. Atualmente, estou me preparando para uma experiência nos Estados Unidos, em um importante projeto, este ano, em Los Angeles, no Fowler Museum, intitulada Axé Bahia: The Power of Art in an Afro-Brazilian Metropolis. Os temas e os materiais das esculturas que faço despertam um fascínio atávico no público. Você mesmo, Ayrson, já escreveu sobre isso quando realizou a curadoria para a minha exposição Balangandã, Uma Poética da Esperança, no Museu de Arte da Bahia, em 2012. Lá, você destacava o deslumbramento como tática para a conquista da liberdade. Tenho aprendido muito com o seu trabalho artístico e suas formas de transmutações pela arte. Acho também que tem uma certa magia e encantamento de Oxum (risos). Tenho grande admiração pela escultura de Mestre Didi, na qual presencio o encontro entre a arte e a religião. O grande artista J. Cunha e todos os ensinamentos que sua obra articula, os mestres Ruben Valentim, Agnaldo Santos e Mário Cravo Jr. E, me desculpe Ayrson, mas não posso deixar de citá-lo como importante referência nesta cena. As mulheres artistas negras que a Bahia tão bem nos legou, como Yêdamaria, Edsoleda Santos e a genial Emma Valle. Enfim, toda essa comunidade de sentidos e de artistas que constituem a nossa Roma Negra.
FOTOS: SERGIO BENUTTI/ ANDREW KEMP
COLEÇÕES
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PONTOS DE CONTATO M A R TA M E S T R E
Artigas (2014), da artista portuguesa Leonor Antunes, da Coleção Fundação de Serralves. Na página ao lado, representação do livro-obra Artur Barrio: SITUAÇÃO T/T, 1 (2 a parte) (1970). Coleção P.O.P.
Resultado de ampla pesquisa sobre a arte latino-americana presente em coleções públicas e privadas portuguesas, exposição encerra com chave de ouro o programa Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura – 2017
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EM 1978, POUCO ANTES DE VIAJAR DE PARIS, ONDE MORAVA, PARA O RIO DE JANEIRO, ARTUR BARRIO LEU NO JORNAL LE MONDE QUE O MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO, UM DOS MAIS IMPORTANTES DA AMÉRICA LATINA, HAVIA SOFRIDO UM GRANDE INCÊNDIO. O acontecimento histórico devastava a quase totalidade
dos acervos e interrompia o programa Área Experimental, que, desde 1975, mobilizava uma geração de artistas que abraçava “qualquer proposta que investisse no risco conceptual, na invenção, na precariedade produtiva e no desafio aos espaços instituídos”. Dias depois, já no Rio de Janeiro, Artur Barrio, artista selecionado para expor naquele ano na Área Experimental, recusa postergar sua exposição para um momento em que o museu tivesse superado o evento traumático e escreve um pequeno texto, no qual a considera realizada, mesmo que o projeto não tenha saído do papel. Esse episódio é o ponto de partida para Potência e Adversidade – Arte da América Latina nas Coleções em Portugal, exposição que apresenta extensivamente o universo da arte “latino-americana” presente nas coleções públicas e privadas em Portugal, e encerra o programa Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura – 2017, organizado pela Câmara Municipal de Lisboa.
FOTO: CORTESIA P.O.P./ NICK ASH
Acima, Installation II (1981), de Lydia Okumura, da Coleção Rita Freitas, na 4 a Bienal de Medellin, Colômbia. À esquerda, Ilha I (1995), de Carmela Gross, pertencente à Coleção Caixa Geral de Depósitos. Na página ao lado, à esquerda, Subterrâneo Branco (2007), de André Komatsu, da Coleção Teixeira de Freitas. À direita, Corpus Delicti (1993), de Jac Leirner, da Coleção Caixa Geral de Depósitos
Com uma seleção de 40 artistas, a exposição ressalta os desdobramentos do “legado conceitual” no atual contexto da crise do neoliberalismo e de uma realidade social e política marcada pela alternância de governos repressivos e de desigualdade
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Partindo de um núcleo de artistas históricos que atuaram em diversas geografias latino-americanas nos anos 1970, a exposição ocupa o Pavilhão Branco e o Pavilhão Preto, em Lisboa, de 11 de novembro até fevereiro de 2018, e ressalta, através de uma seleção de 40 artistas e mais de 80 obras, a multiplicidade de enunciados criativos e originais que os artistas têm vindo a formular, em especial os desdobramentos do “legado conceitual”, no atual contexto da crise do neoliberalismo e de uma realidade social e política marcada pela alternância de governos repressivos e de desigualdade. Anos “quentes” de lutas sociais e de reivindicação dos processos descolonizadores, contra as ditaduras e a repressão no mundo, na década de 1970 despontaram importantes processos revolucionários que foram derrotados em várias partes do mundo. Contudo,
essa derrota não os encerrou por completo, mas os manteve encobertos durante os anos 1980 e 1990, para voltarem hoje reelaborados por vários artistas, no contexto quer do mundo globalizado, quer da retomada de poderes conservadores, em diversos países da América-Latina. O legado desses desdobramentos históricos conflui hoje para a retomada da “politização da arte”, o interesse pela micro-história a contrapelo das narrativas oficiais, a crítica ao projeto cultural do multiculturalismo, ou a ênfase na ideia de processo, e põe de lado a explicação redutora de um “Norte” que vê na arte produzida no “Sul” o resultado do embate entre força desorganizadora da natureza tropical e vontade racionalista da cultura de matriz europeia. Com o intuito de extrapolar um recorte territorial, centrado na relação entre os artistas e suas culturas de origem, e de expressar a riqueza de pontos de contato nas coleções públicas e privadas em Portugal, a exposição inclui também artistas europeus cujos trabalhos foram marcados pela relação com as culturas indígenas da América Latina e/ou por pesquisas individuais que assumem influências de algumas culturas dessa geografia.
FOTOS: CORTESIA GALERIA JAQUELINE MARTINS, DING MUSA/ CORTESIA CARMELA GROSS/ CORTESIA ANDRÉ KOMATSU/ GEORG REHSTEINER, CORTESIA JAC LEIRNER, FORTES D’ALOIA & GABRIEL
ENTREVISTA / JOANA GORJÃO HENRIQUES
A jornalista portuguesa Joana Gorjão
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ESCUTAR
Henriques
O LADO AFRICANO
perpetuação
DA HISTÓRIA
discriminatórias
PA U L A A L Z U G A R AY
investiga a de práticas em cinco países africanos que foram colônias de Portugal
NO TERCEIRO DIA DA 15ª EDIÇÃO, O PÚBLICO DA FESTA LITERÁRIA DE PARATY – QUE COMO TODO EVENTO CULTURAL NO BRASIL É COMPOSTO DE UMA MAIORIA BRANCA – FOI ATINGIDO PELA VOZ DA PROFESSORA DIVA GUIMARÃES, DE 77 ANOS, VINDA DA PLATEIA. Após a apresentação da jorna-
lista portuguesa Joana Gorjão Henriques, que veio ao Brasil lançar seu livro multimídia Racismo em Português – O Lado Esquecido do Colonialismo (Tinta-da-China, Público, FFMS, 2017), e do ator Lázaro Ramos, que lançou Na Minha Pele (Companhia das Letras, 2017), dona Diva pediu a palavra para lembrar episódios da atroz discriminação racial sofrida desde a infância. Em 2015, Joana Gorjão Henriques viajou a Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique, a fim de registrar as cicatrizes da discriminação racial implantada por seus conterrâneos. E ouvir outras versões da história. “Nós crescemos a aprender que fomos o país dos Descobrimentos e da Expansão, não o país da Escravatura e do Colonialismo”, diz. Sua pesquisa não incluiu o Brasil. Mas o depoimento de Diva Guimarães, que varreu as redes sociais de todo o mundo, vem somar-se às mais de cem entrevistas realizadas por Joana Gorjão em viagens às cinco ex-colônias portuguesas na África. Uma semana antes de chegar no Brasil, ela conversou com seLecT. SELECT.ART.BR
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Achile Mbembe escreve no prefácio de sua Crítica da Razão Negra (N-1 Edições, 2017) que vivemos um momento em que “a história e as coisas se voltam para nós, e em que a Europa deixou de ser o centro de gravidade do mundo”. Você concorda que vivemos uma inversão de valores?
Não sei se é inversão de valores ou o início da caminhada para uma ordem com maior equilíbrio. Durante séculos, e em vários pontos do globo, a ordem ocidental ditou as balizas de todas as esferas das nossas vidas, da arte à forma de nos relacionarmos uns com os outros. Digo isso sobre países como Portugal, que teve uma prepotência imperial em relação às ex-colônias, e digo isso em relação a países com tendências imperialistas, como os Estados Unidos. O que essa circunstância provocou foi um apagão de muitas identidades políticas, uma subalternização de determinados grupos, vistos como primitivos. O que se passou em Portugal, por exemplo, e que me levou à pesquisa, é que nós crescemos a aprender que fomos o país dos Descobrimentos e da Expansão, não o país da Escravatura e do Colonialismo. Por outro lado, apagamos o que nos interessa hoje, que foi o nosso papel determinante como um dos grandes criadores do racismo, construído para justificar o genocídio e a desumanização dos negros, a escravatura e o colonialismo. A minha pesquisa quis justamente fazer parte dessa caminhada e ir ao encontro do outro lado da realidade que nos é escondida, escutar o lado africano da história.
seLecT: Esta edição da seLecT homenageia a língua portuguesa e os elos simbólicos que ela cria entre Brasil, África e Portugal. Mas aprendemos em seu livro que em Angola foram seis as línguas nacionais proibidas durante o período colonial. Que estratégias de descolonização de mentes você citaria como exemplares, nos países por onde andou?
De acordo com o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, citado no livro, a capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos atribui-se à sua própria origem étnica híbrida (fruto, por exemplo, de seu longo contato com mouros e judeus na Península Ibérica). O português tem de fato uma dimensão de si mesmo como mestiço e miscigenado?
Joana Gorjão Henriques: Temo que minha pesquisa não permite responder com profundidade a essa pertinente questão. O que fiz foi tirar a temperatura da forma como as pessoas hoje olhavam para o racismo durante o período colonial e como sentiam que essa ideologia se tinha reatualizado e impactado as relações raciais nas respectivas sociedades atualmente. Há, porém, alguns exemplos que posso dar. Pensando em Angola, é um país onde o canal público de televisão tem uma parte em que se falam várias línguas locais. A língua continua ainda hoje a ser usada por Portugal como um instrumento político que visa manter sob sua influência as ex-colônias. Por alguma razão se dá a sigla de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop). O português não é a língua dominante em países como Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde. Em todas as cinco ex-colônias há milhões de pessoas que desconhecem o português. Mesmo quando não o sabem, ao não adotarem o português como a língua oficial que seus governos decretam, os cidadãos desses países estão a fazer política de resistência e de descolonização das mentalidades.
É uma questão interessante. Se nos compararmos aos brancos do Norte da Europa, muitos de nós, portugueses, estamos mais próximos do tom de pele de alguns africanos do que de alguns desses europeus. Mas o nosso racismo faz com que o inconsciente coletivo se associe mais rapidamente aos brancos do que aos negros. Se olharmos para a lei da nacionalidade portuguesa, ela reconhece judeus sefarditas que hoje podem não ter quaisquer familiares em Portugal, reconhece de imediato os descendentes de portugueses mesmo que não vivam em Portugal, mas não reconhece de imediato os cidadãos que nasçam em território nacional, muitos deles filhos de imigrantes africanos. Há aqui uma óbvia concepção sobre quem pode ou não ser português baseada na ideia de sangue e de raça. Mas sofremos de uma grande contradição em relação a esse tema. Então, por um lado, se se assumisse como miscigenado, o português escolheria ser miscigenado com outros brancos, não com negros. Mas, por outro, nas ex-colônias, o português sempre usou a ideia de miscigenação para justificar o seu papel de “bom colonizador”: era o colonizador que se misturou com as populações, foi bem FOTO: RICARDO MANEIRA / BJ
s e L e c T e x pa n d i d a : d a e n t r e v i s ta d e
Confira a íntegra J o a n a G o rj ã o e m
Em Portugal ensina-se até hoje nas escolas a “narrativa do colonizador benevolente”?
b i t . ly / j o a n a - g o rj a o
Em relação ao legado deixado pelos portugueses que viveram em Angola e Moçambique, quando províncias ultramarinas. No livro, um entrevistado de Angola, questionando a tese do “bom colonizador”, diz que o português não deixou grandes escolas ou universidades. Mas e a arquitetura? O melhor da arquitetura moderna portuguesa está em quatro cidades africanas – duas de Angola (Luanda e Lobito) e duas de Moçambique (Lourenço Marques e Beira) –, segundo o livro Moderno Tropical 1948-1975 (de Ana Magalhães e Inês Gonçalves, Tinta da China, 2010). Como avalia esse legado?
Tênis novos e usados vendidos nas ruas de Maputo, capital de Moçambique, em foto de Joana Gorjão Henriques
recebido e teve filhos com as mulheres africanas (reza esse mito). Tudo isso aparece envolto num grande embuste porque se ocultava que essa mistura se fez à custa das mulheres violadas ou de mulheres que depois foram abandonadas, porque mulher oficial havia apenas uma, a mulher branca. Basta ler os relatos da minha reportagem em São Tomé e Príncipe para perceber que essas relações tinham como custo para as mulheres negras ficarem na ilegitimidade. Você se viu em situações de tensão racial durante a pesquisas de campo, por ser mulher branca e portuguesa?
Não, nenhuma. Por isso me espanto imenso com casos de “racismo reverso” que alguns emigrantes portugueses em Angola e Moçambique relatam. A expressão acaba por ser uma forma de esconder o seu próprio racismo – porque racismo implica uma relação de poder e de dominação histórica que coloca os portugueses brancos em vantagem, uma vantagem histórica que é inegável; e quase aposto que esses relatos de “racismo reverso” foram o reflexo de uma atitude neocolonialista que esse emigrante teve e que foi confrontada. SELECT.ART.BR
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Independentemente da qualidade artística do que é retratado nesse livro, a verdade é que as grandes obras arquitetônicas sempre foram usadas como símbolos de dominação e perpetuação de poder. Por alguma razão em Luanda deu-se a destruição de algum patrimônio de arquitetura colonial, tratou-se de tentar destruir um poder e substituí-lo por outro. Ainda hoje em São Tomé e Príncipe as roças estão carregadíssimas com o peso dos horrores do trabalho forçado que durou até 1974 e por isso alguns são-tomenses temem em lá entrar – e também por isso tantas roças estão abandonadas. Nada mais simbólico, e visível imediatamente, do que o urbanismo e a arquitetura para nos lembrar que aqueles territórios foram ocupados por uma cultura que se quis impor, a portuguesa, e varrer outras, as culturas africanas locais. Devolvo a pergunta: como seria a arquitetura daqueles países – e as respectivas sociedades – se Portugal não os tivesse nunca ocupado? Você afirma também que Portugal, que traficou a maioria dos 12 milhões de escravizados da África, alimenta a arrogância de achar que é um país sem racismo. Como a cultura colonial pode ser percebida em uma cidade como Lisboa?
A classe média branca lisboeta prefere o centro da cidade e raramente sai da bolha onde circula. Mas basta apanhar o comboio para a linha da Sintra, ou ficar pela Amadora, para observar como a cidade está organizada de forma segregada. A paisagem muda, e muda imenso a população, que passa a ter uma porcentagem enorme de negros. Longe do centro de poder, a viver em áreas onde os serviços públicos não oferecem as infraestruturas que o centro tem, a classe média e trabalhadora negra percorre quilômetros e perde horas a chegar ao emprego. É também na periferia que os jovens são perseguidos pela polícia e brutalizados, que andam em escolas onde os professores não têm grandes expectativas sobre o seu percurso, condicionando-os às escolhas de baixa qualificação. Quando o dia cai, há uma linha que separa as duas zonas da cidade: a cidade dos brancos do poder e a cidade
“Recentemente, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa visitou a Ilha de Gorée, no Senegal, e enalteceu o fato de Portugal ter sido dos primeiros a abolir a escravatura. Não foi, tendo até prolongado o trabalho forçado, outra forma de escravatura, até 1974”
Costumo dizer, quando me perguntam por que razão me interesso pelas questões raciais, que nas carteiras da escola sempre ouvi a mesma versão da história do colonialismo, ensinada pelos portugueses. Era a versão do país benevolente, que foi dar mundos ao mundo e civilizar os países colonizados. Basta ir hoje a um parque temático em Coimbra que se chama Portugal dos Pequenitos e perceber como essa narrativa se mantém intacta, prolongando a fantasia de país imperial. O parque apresenta as ex-colônias como se ainda pertencessem a Portugal. Toda a narrativa oficial é voltada para o negacionismo do nosso lado violento, racista e xenófobo: o discurso das entidades públicas centra-se nos aspectos positivos e nada na autocrítica. Como exemplo, ainda recentemente o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, visitou a ilha de Gorée, no Senegal, que se mantém como símbolo do comércio de escravos, e enalteceu o fato de Portugal ter sido dos primeiros a abolir a escravatura (que não foi, tendo até prolongado o trabalho forçado, outra forma de escravatura, até 1974). Independentemente disso, o presidente referiu o “lado humanista” português, esquecendo-se das atrocidades que cometemos e continuamos a cometer. Essa incapacidade para nos olharmos ao espelho e de frente é tão forte que impede a ultrapassagem da fase da negação. Após mais de cem entrevistas realizadas, qual você diria ser a melhor maneira de confrontar o racismo?
dos negros, do suburbano, exatamente como durante o período colonial nas capitais africanas, em que havia a cidade dos brancos e a favela dos negros. Por que fato de não haver um levantamento de dados por raça hoje em Portugal – e não se ter a dimensão de quantos negros existem lá hoje – é um reflexo do racismo?
Em Portugal, é impossível saber quantos negros estão na prisão, quantos ocupam profissões precárias e quantos não têm acesso aos serviços mais básicos como a educação e a saúde. Também é impossível saber quantos negros estão em posição de destaque, quantos são professores na academia e quantos têm as melhores notas da turma. Para se ter alguma aproximação, é necessário recorrer a dados sobre imigrantes africanos – o que, portanto, obriga a fazer uma associação dos negros aos imigrantes, alimentando a ideia de que os negros são estrangeiros. Ora, essa ocultação é reflexo de várias coisas: uma é que, apesar das sucessivas demandas dos afrodescendentes portugueses, o Estado não reconhece que essa análise é necessária porque subalterniza a importância do conhecimento sobre os negros em Portugal; a outra é que o Estado tem medo das consequências da criação da identidade política negra portuguesa que essa recolha iria ajudar a perceber e a incentivar. Iria implicar dividir o poder.
Julgo que sem uma tomada de consciência política pela parte do Estado corremos o risco de ficar no debate do racismo como uma mera questão moral entre dois ou mais indivíduos – quando na verdade a grande ferida do racismo está nas instituições e nas estruturas sociais que praticam, incentivam os sujeitos que nelas trabalham a praticar e reatualizar o racismo cotidiano. Sendo o racismo um produto dos brancos, o trabalho deve ser em grande parte dentro desse grupo racial que matou e ainda mata em nome de uma imaginada hierarquia racial que tem a pretensão de liderar. Além da óbvia vantagem econômica que os brancos têm, com todo o capital cultural e social que isso trouxe, basta pensar que um branco não é barrado pela polícia porque é branco, um branco não tem o seu currículo posto de lado só porque é branco. Tem o privilégio de não ser forçado a pensar na sua cor de pele. O depoimento de Diva poderia ser agregado à sua pesquisa?
A fala de dona Diva teria de certo um grande destaque se eu fizesse o trabalho sobre o Brasil. Ela incorpora a história da discriminação racial deste pais, das heranças da escravatura à marca do racismo mais profundo, com a Igreja Católica contribuindo e compactuando com ele. Todas as privações que ela relata são puro racismo institucional e estrutural a funcionar também. Ela falou por muitos negros e negras que passam pelo mesmo há séculos. FOTO: FOTOS: ACERVO NONONONONONO DA ARTISTA
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DJA GUATA PORÃ É UMA EXPRESSÃO GUARANI, UMA DAS MAIS DE 270 LÍNGUAS FALADAS AINDA HOJE NO BRASIL SEM QUE A MAIORIA DOS BRASILEIROS SE DÊ CONTA. Significa
“caminhar junto”, “um coletivo de caminhar bem”, explica a cocuradora Sandra Benites, ela mesma guarani. A expressão deu título tanto aos encontros preliminares entre indígenas e curadores quanto à exposição que ocupa o terceiro andar do Museu de Arte do Rio (MAR), até março de 2018. O Brasil não conhece o Brasil, ainda que, dos 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro, 89 tenham pessoas que se declarem espontaneamente indígenas, segundo registro do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Tijuca, Ipanema, Jacarepaguá, Paraty, Niterói e Itatiaia são alguns exemplos dos nomes indígenas que herdamos dos nativos. Carioca é o nome de um rio que hoje passa escondido debaixo das ruas da cidade. A palavra vem da aldeia tupinambá Kariók, localizada aos pés do que depois foi chamado de Outeiro da Glória. A exposição do MAR veio para mostrar um pouco do pensamento, da arte, da vida e da história dos indígenas que residem atualmente no estado do Rio de Janeiro e resistem à violência dos que se acham donos da nação, embora pouco saibam da história pregressa do Brasil. Assim é que a breve e ainda atual história da Aldeia Maracanã aparece. A Aldeia Maracanã fica num prédio de arquitetura eclética do século 19, ao lado do Estádio do Maracanã. Esse edifício foi cedido, em 1910, ao Serviço Nacional de Proteção ao Índio (SPI) do Marechal Rondon, que lá ficou por longos anos. Em 1953, ali se instalou o Museu do Índio, do antropólogo Darcy Ribeiro, que na época trabalhava no SPI. Em 1977, o Museu do Índio mudou-se para Botafogo e o prédio do Maracanã voltou a ficar vazio e abandonado, até que, em 2006, um grupo heterogêneo de indígenas resolveu simplesmente ocupá-lo. O prédio e seu entorno foram chamados então de Aldeia Maracanã, embora o local não se pareça quase nada com a ideia que temos de aldeia. SELECT.ART.BR
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MAR INDÍGENA
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Índios fazem curadoria e criam obras comissionadas para o MAR. Encontros de guaranis, pataxós, puris e tribos urbanas com curadores do museu definiram o que é urgente mostrar
MÁRION STRECKER
Então o Brasil ambicionou sediar novamente uma Copa do Mundo de futebol, esse esporte tão brasileiro, embora seja inglês de nascença. O Maracanã e seu entorno brilharam de novo aos olhos de governantes, corruptos e corruptores, empresários da construção civil e especuladores em geral. O governo federal, que havia comprado o prédio, anunciou, em 2012, que iria demoli-lo para facilitar a saída dos torcedores do estádio, por exigência da Federação Internacional de Futebol (Fifa) – que negou ter feito tal exigência. O então governador Sérgio Cabral disse que era um deboche chamar a comunidade que se formou ali de aldeia indígena. Mas os indígenas resistiram e foram apoiados por partidos de esquerda e movimentos da sociedade civil tão diversos quanto anarco-punks, negros e LGBTs. Até que, em 2013, a tropa de choque da polícia
chegou, com sua delicadeza habitual. Os indígenas foram expulsos com bombas e parte deles acabou alocada em pequenos apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida, no Estácio. Mas como seria viver comunitariamente e fazer rituais indígenas dentro de um bloco de condomínio? Seja como for, os indígenas não só fazem seus rituais como também questionam valores que os governantes tentam impor. DESSACRALIZAR A ARTE
Uma das instalações comissionadas da exposição Dja Guata Porã é a Oca do Futuro, de Sallisa Rosa. Trata-se de um cubículo minúsculo, com paredes rebocadas como são as paredes do condomínio do Estácio, só que com uma maravilhosa rede guajajara colorida ali dentro. Quem for à exposição e se der ao trabalho de se
deitar nessa rede, poderá fechar a porta estreita e apreciar com calma um álbum de fotos da vida dos indígenas que moram no Minha Casa Minha Vida. Um dos hábitos da sociedade dominante que indígenas questionam é justamente o de sacralizar a arte, em que objetos são apartados da vida social cotidiana, tornando-se intocáveis. Na exposição, o indígena Edson Kayapó dá seu depoimento sobre a não existência de uma ideia de arte nas culturas indígenas. Parece um paradoxo fazer tal exposição num museu de arte. Afinal, o museu considera arte o que está expondo dos indígenas? “Do ponto de vista do museu, a gente não está entrando nessa discussão”, responde a curadora do MAR, Clarissa Diniz, cocuradora da exposição. “A gente não está denominando as pessoas como artistas, mas como participantes. Tirar as cul-
Oca do Futuro (2017), de Sallisa Rosa, realizada especialmente para a mostra no MAR
FOTO: DIVULGAÇÃO
Acima, vista da exposição Dja Guata Porã, que reúne 260 peças de etnias que vivem no estado do Rio de Janeiro. Na página ao lado, Kunhã´i ovy´a vaipá, que significa menina muito feliz (2017)
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turas indígenas do código da antropologia e colocá-las no código da arte seria uma troca muito ruim. Insistir nessa questão seria como fechar os olhos, os ouvidos e o coração para o que essas pessoas estão nos dizendo, que de alguma maneira é uma crítica à própria ideia de arte. Se a gente insistisse em nominar arte ou jogar sobre culturas tão radicalmente distintas o peso de uma concepção como essa, estaríamos cometendo um erro de interculturalidade”, argumenta. Entretanto, por essa exposição ocorrer dentro de um museu de arte, a curadoria pode valer-se das formas de relação que principalmente a arte contemporânea instituiu, explica Clarissa. “A arte como algo que acontece na relação entre as pessoas, entre práticas deslocadas no tempo, sem a necessidade de se materializar numa coisa. Esse tipo de prática, que é tão próxima da arte a partir dos anos 1960-1970, é o que a gente convocou para fazer um processo de concepção curatorial”, diz Clarissa Diniz. Se não importa discutir se é arte ou não o que está exposto no museu, a pergunta subsequen-
te é: o MAR vai comprar obras dessa exposição para seu acervo artístico? A resposta oficial é talvez. O museu pagou aos participantes para realizar os trabalhos, mas o comissionamento não transfere ao museu a propriedade das obras. Incorporar algumas delas ao acervo implica uma negociação à parte, a ser feita se as finanças permitirem. TEMPO DA INVASÃO E DA USURPAÇÃO
A exposição Dja Guata Porã não é fácil, embora apresente forte preocupação informativa e didática. Não é fácil a começar por sua grandeza, com cerca de 260 peças, entre depoimentos, muitos textos, vídeos, instalações, performances, maquetes, desenhos, fotografias, recortes de jornais e revistas, livros, adornos, utensílios, artefatos e mapas. Não é fácil também porque trata de muitas questões que mal conhecemos, quando não desconhecemos por completo. Uma linha do tempo perpassa as duas salas da exposição e inclui, além de muitos documentos, dimensões como o tempo da auto-
nomia, o da invasão, o da usurpação e o das retomadas, baseadas em dimensões temporais huni kuin. O tempo das malocas, o tempo das correrias, o tempo do cativeiro, o tempo dos direitos e o novo tempo são eras estabelecidas pelo povo huni kuin (nome que significa algo como “homens verdadeiros” ou “gente com costumes conhecidos”) e exigiriam mais do que este artigo para ser explicadas. Esse povo, que habita regiões do Peru e do Acre, mas que também pode ser visto eventualmente no Rio de Janeiro, também é conhecido como kaxinawá (“povo morcego”, “povo canibal” ou “povo que anda à noite”). Pataxós, puris, guaranis e indígenas em contexto urbano são os quatro núcleos da exposição. Além dos núcleos, há o que chamam de estações, que são espaços para temas específicos, como educação, comércio, mulheres e arte. Na frente do museu, na Praça Mauá, está sendo mantida uma horta indígena, considerada a estação natureza. As cinco estações foram concebidas com a colaboração de Josué Kaingang, Eliane Potiguara, Anari Pataxó, Niara do Sol e Edson Kayapó. O núcleo puri é dedicado a um povo declarado extinto no século 19, mas registrado pelo censo de 2010. “Hoje, uma puri me falou que a Funai os procurou para falar da língua, porque eles estão retomando a língua puri e a Funai quer apoiar”, conta Clarissa Diniz. Com os pataxós, foram produzidos três vídeos para a exposição: um sobre pintura corporal, outro sobre a ocupação da aldeia de Iriri e outro sobre o patxohã, a língua também considerada morta que eles insistem em falar. Um mapa da aldeia foi desenhado em pirografia sobre uma gamela. A exposição foi planejada durante um ano e custou cerca de R$ 800 mil. Ninguém trabalhou de graça. Na linha do tempo foram incluídos alguns poucos Debret originais da coleção do MAR, mas as demais obras consagradas pela história da arte ou pela história colonial aparecem em reproduções. Assim, a verba da exposição não foi consumida em empréstimos, transporte e seguros, mas sim com
a viabilização das ideias atuais dos indígenas, contribuindo, desse modo, para a economia de cada um desses povos. Nos corredores de entrada e saída da exposição estão dispostas caixas de som com gravações em diferentes línguas indígenas. Temos assim uma demonstração da dimensão linguística do Rio de Janeiro e somos lembrados que os estrangeiros aqui somos nós, imigrantes e descendentes de imigrantes de outros continentes. No corredor da saída, as vozes indígenas falam em português. “A liberdade que a gente teve para expor aquilo que gostaríamos mesmo de colocar foi a grande diferença dessa exposição. Cada um vai contar como vê o mundo, como pensa o mundo. Cada povo pensa de um jeito”, diz Sandra Benites, que trabalhou com o espanhol Pablo Lafuente e José Ribamar Bessa, além de Clarissa Diniz, da equipe do MAR. Para estimular a visitação do museu por Indígenas, debates têm sido promovidos e o MAR tornou a entrada gratuita até o ano que vem para qualquer um que se diga indígena. Inclusive você ou eu. FOTOS: DIVULGAÇÃO/ MIGUEL VERÁ-MIRIM
E N T R E V I S TA / A R A C Y A M A R A L
Paulo essa exposição”, conta Aracy Amaral à seLecT. As três artistas de tradição guarani finalmente se apresentam em São Paulo, em espaço dedicado à arte contemporânea, a Galeria Millan, até 30/9. No interesse de Aracy Amaral pelas artes das idades da pedra e do barro há uma nítida problematização da ideia de contemporaneidade. Questiona-se aqui o juízo colonialista e etnocêntrico que confere à arte erudita ocidental o privilégio do contemporâneo. Pela primeira vez em 60 anos de carreira, Aracy Amaral não foi a agente, mas sim objeto de um projeto curatorial. Até o fim de agosto, sua vida e obra foram tema da 35ª mostra da série Ocupação, do Itaú Cultural. Sobre sua trajetória ela conversou com seLecT. Em que sentido a mostra Das Mãos e do Barro, na Galeria Millan, dá continuidade à pesquisa do 34º Panorama? A arte popular me interessa e sempre me interessou. Tenho duas obras aqui da Conceição dos Bugres – que está abrindo na Galeria Estação – desde a década de 70. Mas hoje me interessa mais. Porque não vejo tanta coisa interessante na arte contemporânea. Acho que a arte contemporânea está tão paralisada, tão sem ar, sem fôlego, que às vezes uma baforada faz bem... como foi aquele meu Panorama. É um fazer ancestral. Elas aprendem com a mãe, que aprenderam com a mãe, que aprenderam com a mãe. Isso vem desde a época colonial. Você não conhece o Paraguai? Tem de conhecer, o Paraguai é muito rico. E é tão perto aqui de São Paulo, você vai de carro!
“VEJO POUCO GRITO NA ARTE BRASILEIRA” A mais respeitada e atuante crítica de arte brasileira atribui seu foco de pesquisa em estéticas ancestrais ao desencanto com a produção contemporânea
PA U L A A L Z U G A R AY
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POUCOS PROFISSIONAIS DO CAMPO DA ARTE TÊM UMA VIVÊNCIA E UM ESPECTRO DE PESQUISA TÃO AMPLOS. Aracy
Amaral se reconhece, acima de tudo, como pesquisadora, mas sua atuação amplia-se como curadora, professora, historiadora, crítica, gestora e jornalista. Talvez o lugar em que todas essas personas se encontrem seja na viagem. É irrestrito seu conhecimento do Brasil e da América Latina. Sua trajetória profissional começa nos anos 1950 e atravessa o modernismo (com teses de mestrado e doutorado sobre as artes plásticas na Semana de 22 e Tarsila do Amaral), o construtivismo e chega à arte contemporânea. Nesse campo, rompe paradigmas com a curadoria do 34º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP (2015), quando escolheu falar da paisagem artística nacional por meio de obras de seis artistas convidados a dialogar com a arte pré-histórica. Seis anos antes do Panorama, em 2009, em viagem de pesquisa ao Paraguai para a curadoria da Trienal do Chile, Aracy Amaral conheceu as ceramistas Julia Isídrez, Ediltrudis Noguera e Carolina Noguera. “Fiquei encantada com seu caráter selvagem, louco. Pensei que gostaria muito de fazer em São
Em 1972, você teve uma experiência intensa com comunicação, que foi o programa na Rádio Jovem Pan intitulado Vamos Falar de Arte?” Como foi essa experiência de “falar de arte para todo mundo entender”? A Jovem Pan queria um programa diário sobre arte, de dois minutos por dia. Eu falei: facílimo. Na primeira, segunda semana, fiz de improviso. E aí percebi que não era facílimo, porque as pessoas ouvem radio no carro, em casa, no trabalho, na rua, no supermercado... Então eu chegava em casa de noite e encontrava um casal de desconhecidos querendo falar comigo por causa do programa. Acontece o seguinte: quando você fala bem, ninguém te procura. Agora, quando você fala mal ou põe em dúvida a excelência de uma exposição (risos) as pessoas caem em cima, entende? Era um programa crítico? Não, eu falava sobre as exposições que estavam em São Paulo. Eu era opinativa. Tanto que uma vez, me lembro que o Bardi achou que falei mal de uma exposição – acho que falei mal mesmo – que ele estava apresentando no Masp, e foi para o Paulo Machado de Carvalho, que era o dono da Jovem Pan, dizer que queria a fita da minha gravação. E o Paulo foi muito legal, ele falou: o comentarista aqui tem direito de falar o que quer. Não dou a fita pra ninguém, nem para o senhor Pietro Maria Bardi. Ele defendeu a minha liberdade de expressão.
É muito interessante a performance conjunta feita com Fred Forest no programa, em que você divide com ele o papel de artista. Seria uma antecipação do “artista etc.”, de Ricardo Basbaum, em que os papéis se diluem e se contaminam? É, pode ser... não tinha pensado nisso. Mas, para mim, o curioso em cada curadoria que você faz, cada pesquisa que você empreende, é uma descoberta que você faz. Esse é o dado fascinante de fazer pesquisa e curadoria. Na medida em que você estuda um artista para uma curadoria, você vai descobrindo seu processo de trabalho, sua psicologia, a forma de ele se comunicar com o ambiente dentro do qual vive. Acho que sou uma pessoa muito inquieta nesse aspecto. Tanto que essa descoberta que fiz com a pesquisa da hispanidade em São Paulo, quando eu era professora da FAU – e não sou arquiteta, era professora de historia da arte –, e fiz uma descoberta que os historiadores da arquitetura não tinham feito. As ligações com a América hispânica da arquitetura rural paulista. Essas casas que os arquitetos chamam de “bandeirista”, eu não chamo assim. Chamo de casas rurais paulistas – que são as mesmas que existem no Paraguai, na Colômbia, no Equador, no Peru, na Venezuela... em todas as minhas férias da USP eu viajava pra esses lugares pra fotografar. Por que a ideia de uma Bienal Latino-americana não emplacou em 1980? Eu queria fazer uma Bienal fundamentalmente latino-americana, com convidados internacionais. Falei pro Luís Villares, então presidente da Bienal, que tínhamos de fazer uma consulta aos críticos da América Latina. Fiz um simpósio similar ao que tinha ocorrido em Austin, no Texas, cinco anos antes, pra ver como eles defendiam uma Bienal Latino-americana. Mas perdi. Eles votaram pela continuidade de uma Bienal internacional. Eram todos internacionalistas. Então disse ao Luís Villares que me demitia da curadoria. Eu também queria que a Bienal fosse trienal ou quadrienal. Já em 1980 eu achava que havia um excesso de bienais no mundo. Não como hoje, que existem 200 e sei lá quantas. Mas o Luís Villares falou: impossível, nunca o Conselhão – o Superconselho da Bienal, que tem 60 pessoas – vai aceitar transformar a Bienal em uma quadrienal. O que eu acho até hoje um erro. A expectativa que geraria maior espaço entre uma edição e outra seria muito maior. Muito mais possibilidade de respiro. Mesmo que decepcione há uma possibilidade maior para preparo, para tudo. Como avalia as experiências das bienais voltadas para a América Latina que surgiram depois: Mercosul e Ventosul? Hoje existe uma preocupação maior. A Bienal do Mercosul parece que está ressurgindo, não é isso? Agora, o problema financeiro é sempre muito agudo. Eu fiz uma curadoria quando o José Roca foi curador. Foi uma experiência muito interessante. Mas me dei conta também de que os jovens curadores, FOTO:ANDRÉ SEITI
E a África que fala português? A gente vê muito intercâmbio do ponto de vista literário. Muito escritor comparecendo na Flip, editoras... mesmo cantoras de Angola aparecem aqui. Mas nas artes não vejo. Uma vez estive em um Congresso do Comitê Internacional de Críticos de Arte, da AICA, há décadas, em Kinshasa, no Congo. Fui nos Anos 70, época pós-independentista de várias nações. Foi interessante ver a preocupação deles com suas raízes. A África, pra mim, ainda é um enigma. Mas fiz parte do júri do Prince Claus Fund, em Haia, no começo do século 21. Eles tem muita preocupação com a África. Mas é uma preocupação do europeu branco querendo fazer benemerências para com um continente que foi dilapidado por eles mesmos. Aquele problema de complexo de culpa, que incomoda quando a gente saca que é esse o espírito. Querer lavar esse complexo: eu te tirei isso, mas estou te dando um prêmio agora...
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No Brasil, talvez estejamos no momento de redescobrir as nossas próprias raízes, que foram também solapadas. Artistas trabalham no sentido de buscar afirmar a identidade de matriz africana. Você conhece essa nova geração? Isso é uma coisa bem recente, não é? Gosto de uma frase de uma personagem daquele filme Eu Não Sou Seu Negro. Ele diz: eu não sou negro, não sou islâmico, eu sou um homem. O que interessa é o espirito dele, o que ele tem a dizer, o seu discurso.
de 35, 40 anos – eu que sou hiperveterana, década de 50, você imaginou? –, em geral conhecem a arte contemporânea. Não conhecem a arte da década de 20, 30, 40, 50, 60, 70 nem 80. Eles conhecem de 90 em diante. Estão muito focalizados no que se passa na ultima década do século 20 e no começo do século 21. Acho isso terrível. Eles começaram a viver a partir da década de 90 e 2000, então, para eles, a arte é aquilo. Acho que você não pode entender a arte sem saber o que se passou. Tem artista muito jovem hoje que parece que está reeditando o que se passou na exposição Information, de 1970, no MoMA. Mas eles nem sabem o que foi Information, da qual participaram o Cildo Meireles, o Hélio Oiticica... Isso diz respeito ao meu ponto de vista de historiadora. Diz-se que o Brasil dá as costas para a América Latina. Mas e o outro lado? E os diálogos com a África? O Brasil está de frente para a África, mas não está dialogando. Porém, a África é um continente tão convulsionado sempre, principalmente agora que os chineses estão com um pé lá... a gente não sabe o que está acontecendo. Vi uma vez, acho que foi no Pompidou, uma grande exposição e fiquei muito impressionada com a multiplicidade de Áfricas. Tem a África branca, árabe, negra... é um continente múltiplo, não apenas de ideologias como também do ponto de vista étnico. SELECT.ART.BR
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nada a ver com o mercado. Não, mas é o que impulsiona a produção de hoje. Essa parte técnica assistida pelo artista. Estamos vivendo o desmoronamento das instituições políticas. A arte pode fazer a diferença em uma sociedade completamente desorientada? Ou esse estado de desorientação também se dá no meio da arte? Não, está todo mundo paralisado. Nós não sabemos pra onde vai o País, os valores foram todos por terra. Nós sabemos que temos aqui um governo imoral, que a gente pergunta como pode ter condições de governar um país tendo sido perdida totalmente a decência, do ponto de vista ético. Em todos os setores, em todos os partidos. No PT, no PMDB, no PSDB, mas então os únicos que escapam são aqueles de extrema esquerda. O PT, que você achava que era um partido renovador, está contaminado de tal forma que é impossível acreditar. E politicamente ninguém se posiciona, ninguém comenta. Tá tudo muito ruim, e morre o assunto. Assim como dentro da família não se conversa mais, há certas paredes que se interpuseram entre as pessoas e as gerações. Será que um dia isso vai cair? Será que quando houver eleições diretas vai cair? Esse mal-estar... é uma parede que parece ter sido colocada por decreto, por um regime de exceção... E o artista é um ser como qualquer outro.
O Brasil está de frente para a África, mas não está dialogando. A África é um continente múltiplo, não apenas de ideologias como também do ponto de vista étnico
Na página anterior, a ceramista paraguaia Carolina Noguera, que integra a mostra Das Mãos e do Barro, curadoria de Aracy Amaral. Introduzida na tradição pré-colonial pela mãe, Noguera apresentou seu trabalho da documenta 13, de Kassel
Como a artista mulher, que quer ser reconhecida simplesmente como artista. Mas aqui no Brasil acho que não temos preocupação com isso. Porque tem tanta artista mulher que nunca houve esse problema do espaço para a mulher. Nos Estados Unidos houve. Nossas grandes artistas são todas mulheres: Anita Malfatti, Tarsila, Maria Martins, Maria Leontina, Mira Schendel, Mary Vieira, nós temos uma infinidade de mulheres que marcaram. Na arte contemporânea, só de Minas Gerais, tem uma plêiade. Desde a geração de Rosangela Rennó até Rivane Neuschwander, até a Cinthia Marcelle, que é excelente.
Sobre quais questões importantes a arte brasileira se debruça hoje? No Brasil, eu vejo muito pouco. Vejo muito pouco grito na arte brasileira. Isso me incomoda e me incomoda também trabalhar nessa área. Por isso que acho a arte popular mais legítima. Eles estão ligados àquele fazer mais ancestral e visceral. O artista, hoje, ou tem o olho para fora, para o que está acontecendo lá fora, ou no mercado... Há uma pobreza muito grande. Existem as revistas de arte, mas o fato de nenhum jornal diário ter uma coluna que acompanhe o que acontece em arte, nem que seja uma resenha, como as sinopses dos filmes. Uma cidade movimentada, que tem a agitação cultural que São Paulo tem, deveria ter, pelo menos um dia por semana, resenhas do que se passa em galerias ou museus.
vens muito intenso, e agora o Ceará com outras iniciativas – o Museu da Fotografia, o Dragão do Mar, a Fundação Edson Queiroz, fortíssima, que faz grandes aquisições de obras que antes estavam em coleções de São Paulo. Fortaleza vai se tornar um polo museológico importante no Brasil. Sem falar em Belém, que tem vida própria e tem um polo fotográfico poderoso também. Você vai pra Belém e tem a impressão de estar em outro país, tal a grandiosidade do estado. Isso é um fenômeno pós-Brasília. Antigamente, tudo ficava entre Rio e São Paulo. Com Brasília há um splash.
Em conversa com Nelson Leirner, há anos, ele me disse que logo o mercado de arte engoliria toda a periferia da arte, até chegar à pichação. Foi premonitório. O mercado engoliu tudo? É nocivo que o artista jovem, iniciante, de 35, 40 anos, faça pensando no mercado. O artista que eu conheci da década de 40, 50, que ficava no seu ateliê trabalhando, desapareceu. Hoje existe o artista empresário. Ana Maria Tavares e Regina Silveira têm pessoas trabalhando com elas. Trabalhos de equipe. Não é só nos Estados Unidos que isso ocorre, aqui também. Mas é um fato contemporâneo. Quando está preparando uma exposição, a Carmela (Gross) não trabalha individualmente, ela tem assistente. Mas aí você vai dizer que isso aí não tem
Você acha que falta um esforço de sistematização da história da arte brasileira, como foi a História Geral da Arte no Brasil, organizada por Walter Zanini, em 1983? É verdade. Às veze, eu tenho a impressão de que, no Brasil, é assim: o último que escreveu foi o único que escreveu. Ninguém procura bibliografia anterior. É bom remeter à bibliografia anterior, como no caso dessa antologia organizada pelo Zanini, com ene autores. Acho que o Brasil pós-Brasília explodiu em várias direções, e isso é muito curioso é muito interessante. Por exemplo, aparece um polo importante como o Rio Grande do Sul, aparece Curitiba com suas bienais, aparece Brasília, aparece Belo Horizonte não apenas com o Inhotim, mas com um centro formador de artistas jo-
Você é uma grande viajante. Uma curadora viajante... Ah, eu gosto de viajar. Quando fiz parte do júri do Rumos do Itaú e viajamos pelo Brasil inteiro – e nesse aspecto o Itaú tem um papel muito interessante com essas viagens que eles fazem de informação –, fui pra tudo quanto é lado, Roraima, Rondônia, Rio Grande do Norte, Acre. Você descobre outros países. Agora, acontece que o Brasil é um país caríssimo pra viajar. Eu fiz há uns três anos uma viagem para Belém e fomos de barco até Santarém. Aí você descobre a Amazônia e percebe o poder do Pará. O Pará é um estado que é um pais. É muito impressionante, não apenas a arquitetura, os museus. É incrível, é um universo independente, autônomo, fortalecido por seu próprio passado. FOTO: CAROLINA NOGUERA
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J O R N A L I S TA
ENSAIO VISUAL
BRASIL NAS RUAS DE LISBOA: UM MAPA AFETIVO F OTO S R E N ATA S I Q U E I R A B U E N O
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Um total de 54 cidades, personalidades e escritores ibero-americanos nomeiam ruas e avenidas da capital portuguesa. O Brasil aparece 11 vezes nesse mapa, traçado por iniciativa do programa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura 2017. A convite de seLecT, a fotógrafa Renata Siqueira Bueno, brasileira residente em Portugal, realiza este ensaio sobre o Brasil nas ruas da cidade.
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MÚSICA
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Identidade musical e cultural nasce do encontro entre a
O SOM ESPACIAL DE CABO VERDE
tradição rítmica local e experiências com instrumentos elétricos vindos de além-mar
ANTES DE CESÁRIA HOUVE UM PARTO NATURAL. Se a voz de veludo de Miss
Évora chamou atenção do mundo para a música de Cabo Verde nos anos 1990, hoje os ouvintes ocidentais se fascinam com o mistério do som que aquele arquipélago de dez ilhas africanas produzia na década de 1970. E a gestação dessa arte se desenvolve a partir da fertilidade que surge do encontro entre a tradição rítmica local e as experiências com os então recém-descobertos instrumentos elétricos – guitarra, baixo e, principalmente, teclado. No fim dos anos 1960, a eletricidade ainda era privilégio de poucas regiões no país. Eis que, em 1968, um navio fantasma teria sido encontrado em São Nicolau (uma das ilhas cabo-verdianas) com centenas de teclados eletrônicos das marcas Hammond, Fender Rhodes, Farfisa e Moog, entre outras. Amilcar Cabral, principal líder revolucionário na luta pela independência do país – conquistada em 1975 – determina então que os instrumentos sejam distribuídos nas escolas SELECT.ART.BR
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RAMIRO ZWETSCH
onde já havia luz elétrica. Esse contato de jovens e crianças com os timbres eletrônicos teria fomentado a transformação musical de gêneros locais – como coladera, funaná, morna e batuque – para uma fusão futurista nos anos seguintes. A história é fascinante, mas não passa de ficção. O alemão Sammy Ben Redjeb confirma tê-la inventado para promover a coletânea Space Echo – The Mistery Behind The Cosmic Sound of Cabo Verde Finally Revelead, lançada em 2016 por seu selo Analog Africa, especializado em relançamentos de música africana desde 2007. “Essa história não passa de fruto da minha imaginação”, admite ele, em entrevista à seLecT. A fábula está no texto de encarte do disco e soa convincente para decifrar o segredo da mistura que os músicos cabo-verdianos inventaram nos anos 1970, ao explorar os recursos dos instrumentos elétricos – tanto que chegou a ser reproduzida como fato real por veículos confiáveis, como o site do jornal inglês The Guardian. O mesmo mar que inspirou a ficção de Sammy levou a Cabo Verde a música que era popular em outros cantos do mundo: o soul e o funk norte-americanos, o samba brasileiro, a cúmbia colombiana, a salsa cubana, o rock inglês, o reggae jamaicano e tantos outros ritmos desembarcaram no país e inspiraram os artistas a promover fusões com o repertório harmônico e rítmico local. “Com a popularidade dos sintetizadores, a música de Cabo Verde ganhou um viés eletrônico, muito por influência do jazz elétrico de Herbie Hancock e Miles Davis, do rock de Led Zeppelin e Pink Floyd e do afrobeat dos nigerianos Fela Kuti e Tony Allen”, explica o escritor Abraão Vicente, atual ministro da Cultura e Indústrias Criativas no país. “Grupos e músicos de renome e importância decisiva para a formação da identidade musical e cultural surgiram nesse período: Os Tubarões (que interpretou o período da independência como poucos) e Bulimundo (que trouxe o funaná do interior de Santiago aos grandes palcos nacionais), entre outros.”
Paulino Vieira, Toy Vieira e Leonel, integrantes do grupo A Voz de Cabo Verde, figuras de proa música caboverdiana dos anos 1970, responsáveis por desbravar fronteiras sonoras e geográficas
FOTO: CORTESIA TOY VIEIRA
Uma ficção, criada para desvendar as misturas das sonoridades de instrumentos elétricos com ritmos e melodias crioulas, ampliou a mítica acerca do arquipélago africano
À esquerda, o músico Américo Brito faz golpe de karatê, em foto do encarte da coletânea Space Echo (2016); na página ao lado, capas de álbuns clássicos da estética “eletrônica” de Cabo Verde
RESGATES DO NAUFRÁGIO
O grupo Voz de Cabo Verde é considerado um dos principais divulgadores da estética da “eletrônica” – o músico Kaku Alves refere-se assim à produção musical do país nos anos 1970. “Eles tocavam os ritmos tradicionais, mas também merengue, salsa, cúmbia, chá-chá-chá etc. E foram o primeiro grupo de Cabo Verde a fazer uma turnê internacional”, recorda o guitarrista, que integrou a banda de Cesária Évora por 15 anos. “O grupo é um dos grandes desbravadores de fronteiras da nossa música. Levou pela primeira vez, e em grande escala, a música nacional a palcos internacionais, de Lisboa à Holanda, com passagem por Paris. Composto de grandes músicos, que por si só representam marcos e figuras de proa da nossa música (Bana, Morgadinho, Djosinha, Luís Morais, Frank Cavaquim ou Chico Serra, e mais tarde Paulino Vieira e Tito Paris), acolheu influências da música latina que mesclou com a matriz da música pátria, conquistando palcos e públicos até então alheios ao ritmo e melodias crioulas”, completa Abraão. A banda foi também uma das mais requisitadas para gravações de artistas-solo. Na coletânea Space Echo, oito das 15 músicas trazem Voz de Cabo Verde como banda de apoio. Paulino Vieira, integrante a partir do fim dos anos 1970, foi uma peça-chave como arranjador e multi-instrumentista – figura onipresente em vários discos lançados do período. “Uma das coisas que mais me fascinam na música de Cabo Verde é a modernização do ritmo funaná através de teclados e sintetizadores, especialmente pelas
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mãos de Paulino Vieira e sua banda Voz de Cabo Verde”, opina Sammy. “Esse som, em seguida, influenciou uma série de várias outras bandas, que se inspiraram nas inovações dele para fazer suas próprias reinvenções da música tradicional. Para que a música africana se destaque, é preciso ter uma base tradicional.” A música cabo-verdiana inspirou o lançamento de outra coletânea em 2017. Synthesize The Soul: Astro-Atlantic Hypnotica From The Cape Verde Islands 1973–1988, do selo norte-americano Ostinato Records dá continuidade ao processo de redescoberta dessa rica produção de 40 anos atrás. Há ainda muito a se resgatar do fundo daquele mar musical, onde um navio imaginário teria naufragado em 1968.
FOTOS: DIVULGAÇÃO/ FOTOS:CORTESIA SÉRGIO FOTOS: BENUTTI, SAMMY NONONONONONO DIVULGAÇÃO BEN REDJEB
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SOBRE A VEROSSIMILHANÇA: AS REALIDADES POSSÍVEIS DE JOÃO CASTILHO A N A AV E L A R
PEGADAS DEIXADAS POR ESPÉCIES DA FAUNA BRASILEIRA, TORRES TOTÊMICAS CONSTRUÍDAS COMO EMPILHAMENTOS DE CASAS DE JOÃO-DE-BARRO, PEQUENOS FURACÕES CUJA ESTABILIDADE É INUSITADA, IMAGENS AZULADAS DE ANIMAIS QUE OUSAM O IMPENSÁVEL, DISPOSTAS EM FORMAS ASCENSIONAIS COMO OGIVAS. Esse ambiente
que parece recriar a atmosfera de um museu de paleontologia constitui a mostra de João Castilho, Chão em Chamas, que abre dia 5 de outubro, na Zipper Galeria, em São Paulo. Como se remetendo à célebre fantasia do escritor britânico George Orwell, os trabalhos, se olhados de perto, trazem um comentário do improvável, beirando aquilo que chamamos coloquialmente de uma situação “surreal”. Nesse sentido, o artista mineiro parece propor um jogo de contrários com o título da mostra: apropriado do livro homônimo do escritor mexicano Juan Rulfo. Geralmente associado ao realismo fantástico, Chão em Chamas, de Rulfo, é partidário de um realismo brutal. Em outras palavras, Castilho lança mão do humor e do próprio sentido de um realismo alargado para compor uma mostra de teor ilusionista. Passado e futuro
misturam-se nesse mundo dominado pela ação animal. Dois elementos são fundamentais para que se compreenda a mostra de Castilho. O primeiro é, sem dúvida, a conversa com a literatura e a consequente presença de narrativas possíveis sugeridas pelo encontro dos objetos apresentados – um dado recorrente na produção do artista. Há uma espécie de cenário sensível que indica a possibilidade de um tempo condensado no presente, feito das pegadas e dos fósseis banhados por um sol que queima em vez de iluminar, das imagens cianotípicas, dos diminutos redemoinhos que carregam em si a possibilidade da revolução das coisas. Talvez vestígios de uma hecatombe. Como no realismo fantástico, a verossimilhança é o elemento que garante a ilusão da história, a organização inusitada dos fatos conforma o efeito de verdade. Castilho opera nesse universo de possibilidades do real a partir da história contada a seu modo. Propõe um pacto com o espectador, um pacto semelhante ao literário – quem ouve a história deve estar aberto para aceitar que aquilo que está ouvindo é uma possibilidade de leitura de mundo. Sem isso não há ficção.
João Castilho lança mão do humor e do sentido Na página ao lado, fotoinstalação Dois Sois (2017), composta de 31 peças
de um realismo alargado para compor na Zipper Galeria uma mostra de teor ilusionista
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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
Na nova série, os animais são os autores e Castilho é o artista-cientista que as coleta, seleciona e organiza
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HUMANIDADE VENCIDA
No alto, detalhe da fotoinstalação Revanche Animal (2017) e, acima, Pequeno Furacão (2016-2017), esculturas em bronze. Na página ao lado, da esquerda para a direita, grupo de esculturas que compõem Marca Infinita (2017) e Torre (2017), feita em bronze e concreto
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O segundo elemento: a escolha da fotografia como suporte privilegiado para jogar com o efeito do real. Por sua vez, tal escolha deriva de dois fatos centrais. Primeiro, Castilho foi fotógrafo, sendo reconhecido com prêmios e bolsas na área; segundo, a fotografia sugere que existe ali um grau de verdade nas imagens apresentadas, vistas como registros ou documentos. As imagens apropriadas pelo artista para compor Revanche Animal (2017) causam espanto justamente porque operam nesse limite entre o real, o verossímil, o que quero acreditar ter acontecido no mundo como o conheço e o que me parece impossível, resultado da imaginação. Nesse sentido, a fotoinstalação com dois sóis evoca uma reconstrução dos fragmentos de um registro talvez deixado pelo passado numa cápsula do tempo. Há um clima de ficção científica à 2001 – Uma Odisseia no Espaço. As Torres (2017) poderiam estar no lugar dos estranhos monólitos que surgem depois da cena do céu envolto em luz vermelha (algo bastante próximo ao trabalho de Castilho), justamente no capítulo chamado “O alvorecer do homem”, logo no início do filme de Stanley Kubrick. Entretanto, em 2017, o artista mineiro inverte a proposta do cineasta – a humanidade foi vencida, os animais ganharam protagonismo. O artista também comenta o rastro deixado pela presença de seres vivos na Terra. Em Marca Infinita, as pegadas inscritas em bronze parecem compor ainda outro elemento
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da cápsula. Entretanto, um paralelo entre elas e o ponto de vista de um artista que provém da fotografia pode ser apontado: a marca impressa deixada pelo artista sobre um suporte foi desde sempre um procedimento comum. O gesto artístico é inscrito sobre uma superfície e, assim, garante-se uma presença na ausência – o artista esteve ali em algum momento da história. No caso de Castilho, os animais são os autores dessas “obras” e ele, o artista-cientista que as coleta, seleciona e organiza. Aliás, tais ações estão em todos os trabalhos, uma vez que o artista mineiro discorre sobre arte e ciência nessa incorporação do especialista em fósseis e indícios das atividades animais. Vemos fotos de pegadas de dinossauros feitas em um sítio na Paraíba. Estas são, como descreve Castilho, “aprisionadas” em blocos de resina semelhantes àqueles que contêm insetos e que não estão apenas presentes em coleções científicas, mas também figuram como objetos decorativos no ambiente doméstico. A crítica de arte e escritora Susan Sontag, conhecida sobretudo pelos ensaios sobre fotografia, escreve que “possuir o mundo na forma de imagens é, precisamente, reexperimentar o quão irreal e remota é a realidade”. Parece ser justamente nesse sentido a articulação de Chão em Chamas. Castilho impede o espectador de permanecer passível diante da leitura da realidade proposta. No fim das contas, por que não acreditar? FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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SERGIO LUCENA
POEIRA DE PINTURA
De vigor e leveza, mecanização e descontrole é feita a pintura do artista paraibano, em individual na Galeria Eduardo Fernandes, em São Paulo
ESCREVER SOBRE O TRABALHO DE SERGIO LUCENA E SUA PRÓXIMA EXPOSIÇÃO É FALAR EM UMA CHAVE DE ENTENDIMENTO DUPLO: como um pre-
JULIA LIMA
fácio a esse momento específico, que consolida algumas etapas recentes de sua produção, mas também como contextualização de uma pesquisa e uma prática amplas que vêm se desdobrando há mais de uma década. O artista encontra-se em um momento auspicioso – não só está preparando a primeira mostra-solo na galeria que agora o representa, a Eduardo Fernandes, como também vem produzindo trabalhos para a Feira de Chicago, a convite de Mariane Ibrahim, galerista que o representa nos Estados Unidos. Essa conjunção, associada a uma insaciável busca pelas questões (às vezes sem resposta) que o ofício de artista traz, abriu mais e maiores possibilidades de arriscar-se no campo pictórico. Nascido na Paraíba e radicado em São Paulo, Lucena tem uma trajetória que até poderia ser vista como previsível, uma vez que a passagem da figuração à abstração já foi realizada por tantos, antes e depois. Mas há aqui uma singularidade que merece ser mencionada. O imaginário folclórico nordestino e a força telúrica das tradições regionais eram evidentes nas cenas fantasiosas que criava no início de sua carreira. Uma abundância de elementos foi suplantada não por uma abstração igualmente carregada, mas por uma espécie de campo plano e profundo
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FOTOS: MÁRCIO FISCHER
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Na dupla anterior, Paisagem Onde a Cor é Puro Perfume (2016) e Suite Silente 04/04 (2017). Na página ao lado, Eden (2014-2015). Abaixo, Suite Silente 01/04 (2017)
de cor e luz que, às vezes, se dava a mostrar linhas ou círculos em contrastes matizados, e outras, insinuadas paisagens. No desenvolvimento dessa maneira diametralmente oposta de lidar com a pintura e com os desafios que surgem no diário embate no ateliê, Lucena tem experimentado com desapego ao trabalho já estabelecido. Algumas de suas obras, conta, demoram mais de um ano para ficar prontas. Outras são o resultado de uma segunda empreitada, pois o tempo impõe a necessidade não apenas de revisão, mas de completa refatura. Ele sempre conjura a imagem de uma espiral, que passa de novo e de novo sempre pelo mesmo ponto, mas nunca no mesmo lugar. A ESPIRAL METAFÓRICA
Neste novo conjunto – em parte apresentado na exposição –, a vibrante paleta que emergia perfurante na série ænigma, por exemplo, tem sido aplicada agora sob tons pastel enevoados, que criam uma espécie de véu que turva a imagem; a linha que remete a um horizonte de paisagem ou oceano, tão reiterada no passado, agora se faz presente em uma ou outra obra. Diante desses quadros se poderia quase ouvir o mar quebrando em espuma na areia, ou sentir a brisa, ou o mormaço, ou ouvir os ruídos todos. No entanto, essa sinestesia dá lugar a um silêncio profundo, um estado constantemente pesquisado e pretendido. Em frente a uma tela que era simultaneamente branca e colorida, o artista comentou com despretensão: “Aqui há poeira de pintura”, uma colocação desconcertante – são tantas as camadas de tinta sobre o tecido já esticado no chassi (muitos chegam a carregar mais de 1 quilo de matéria), que a ideia de um pó leve e ralo é o extremo oposto do que o olho vê em suas obras. E mais, assistir ao pintor agilmente agarrar um pincel e investir contra a tela, presenciar a intensidade da pincelada feita com uma trincha larga, uma fatura bruta, reforça esse estranhamento com a associação ao pó. Entretanto, é nas finas camadas delicadas se acumulando
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O esforço exigido pelas telas amplas é um mergulho de corpo inteiro. Nas menores, um arrastar-se na água nas altura dos joelhos, algo que ele chama de assentamento
que talvez resida essa percepção do resíduo, de algo rarefeito que é, ainda assim, capaz de tudo cobrir. Vê-lo pintar também permite entender a gestualidade dos trabalhos, algo que não fica muito claro ou que não se revela de imediato – é como ver uma dança. É claro que não há nada de novo em imprimir um ritmo corporal da pintura – Pollock e Tomie Ohtake são apenas dois dos incontáveis exemplos dessa relação performática-pictórica. No entanto, para Lucena, não há a coreografia livre em direção ao chão com bruscas levadas centrípetas de braço e mão, ou a repetição controlada de uma escrita que cria padrões meio geométricos, mas uma quase mecanização do gesto, que evoca não a action painting, mas o operário interpretado por Charlie Chaplin e seus movimentos repetidos incontrolavelmente. Sendo o artista um homem alto, há aí também outra relação curiosa com o corpo, que é impulsionado contra a superfície em toda a sua dimensão, em toda a sua envergadura. Mais curiosa ainda é sua insistência de que, assim, as telas de pequena dimensão são seu maior desafio. O esforço exigido pelas telas amplas é um mergulho de corpo inteiro. Nas menores, um arrastar-se na água na altura dos joelhos, algo que ele chama de assentamento, uma tentativa de resolver problemas que as pinturas grandes suscitam, mas que precisam ser depurados, destrinchados, antes de então voltar à estrutura expandida. De novo a figura metafórica da espiral surge e, quando perguntado se vê como problema o fato de voltar de novo e de novo aos mesmos impasses, Lucena responde: “O desafio é sempre o mesmo, foi antes, é hoje e será adiante, a pintura almejada jamais é alcançada, o desafio é permanente, sua qualidade é que muda”. Lidar com isso parece demandar um porto seguro para suas tentativas de explorar os entornos. “Sei onde estou, qual é o meu chão, e por isso me dou ao luxo de ‘passear’ – porque sempre tenho um lugar para voltar.”
FOTOS: MÁRCIO FISCHER
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Pedro Gadanho, diretor do Museu de Arquitetura, Arte e Tecnologia
O MUSEU ALÉM DO MUSEU
de Lisboa (MAAT), fala do papel dos museus como catalisadores urbanos, da cultura como agente
GISELLE BEIGUELMAN
de gentrificação e dos seus projetos curatoriais futuros
O PORTUGUÊS PEDRO GADANHO FOI CURADOR DE ARQUITETURA DO MUSEU DE ARTE MODERNA DE NOVA YORK DE 2012 ATÉ 2016. Nos EUA, esteve à frente de projetos marcantes,
como o Young Architects Program, que leva arquitetos em início de carreira para implantar estruturas temporárias e experimentais no PS1, em Queens. Sua primeira curadoria coincidiu com o Occupy Wall Street – 9 + 1 Ways of Being Political – e induzia arquitetos a responderem aos desafios políticos postos pelas transformações do século 21. O ciclo fechou-se com Uneven Growth (Crescimento Irregular, em tradução livre), que colocou lado a lado soluções ditadas pelo urbanismo tático em metrópoles como Mumbai, Nova York, Lagos e Rio de Janeiro. Com a implantação do MAAT, sob os auspícios da Fundação EDP (Eletricidade de Portugal), voltou ao país
natal para dirigir o museu. Sua exposição inaugural, Utopia/ Distopia, reuniu 60 projetos e obras de artistas e arquitetos dos anos 1960 aos 2000. Conceituada como a primeira de uma série de “exposições/manifestos”, fez uma reflexão sobre o presente, questionando as utopias contemporâneas do modernismo e suas ruínas até as apostas na conectividade tecnológica e a alienação do consumismo. Completou a exposição o seminário internacional , com o objetivo de fazer uma reflexão crítica sobre como as tecnologias digitais afetam a conceituação e a vida nas cidades e os modos pelos quais a arte e a arquitetura respondem a essas transformações. Durante o seminário, do qual fui uma das conferencistas, entrevistei Pedro Gadanho para seLecT.
Um milhão é muita coisa, sem dúvida. Mas a crítica que se faz é pensando no custo social de projetos que dinamizam um tipo de nova economia, mas expulsam outra economia local. A cultura pode atuar como um agente gentrificador? Há esse risco em Lisboa?
O MAAT está inserido em um projeto de renovação da orla histórica de Lisboa, que inclui o novo prédio do Museu dos Coches e onde aconteceu a feira de arte ArcoLisboa recentemente. Qual o papel da cultura nas operações urbanas?
Vou usar uma teoria norte-americana dos anos 1980/1990, que falava dos catalisadores urbanos, edifícios que, colocados numa zona que ainda está por ser ocupada, começam a dinamizar várias funções à sua volta. Esses catalisadores urbanos operam como em uma reação química, em que adicionamos um componente e, de repente, aumentamos o sinal de reação. Acredito que isso acontece com equipamentos culturais, como ocorreu com o Guggenheim Bilbao, que transformou uma cidade industrial em decadência em uma das mais visitadas da Espanha. Atrás do museu criou-se toda uma nova vida, que inclui restauração de espaços, galerias e equipamentos urbanos, como é o caso do metrô, que foi completamente renovado pelo famoso arquiteto Norman Foster para acolher mais visitantes. Hoje em dia, o Guggenheim Bilbao tem 10% de visitantes locais e 90% de visitantes de fora. É uma cidade no circuito turístico dos americanos e de outros que vão visitar a Europa. O museu criou realmente uma nova economia SELECT.ART.BR
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para a cidade. A crítica olha muitas vezes para o fato de o edifício do museu ser tomado como um ícone do ponto de vista da arquitetura, de ser só um atrativo do ponto de vista quase comercial, mas esquece que isso realmente produz uma economia na cidade e as críticas que ouvi a Bilbao, na verdade, dez anos depois, não parecem fazer muito sentido. Houve um pequeno declínio dos visitantes por volta de 2002/2003, por causa da crise econômica da Europa, mas o fato é que o Guggenheim continua a ter 1 milhão de visitantes por ano, o que era quase impossível de prever numa cidade daquela dimensão. E 1 milhão de visitantes é muita coisa.
Estamos ainda no início desse processo em Lisboa. O fato é que devemos aprender com a lição, como essa experiência já foi vivida por outras cidades, em outros momentos, em cidades como Barcelona, por exemplo, ou como a questão se coloca agora em Paris. Já há um conhecimento grande sobre esse tema e poderemos utilizar essa experiência para tentar evitar alguns erros, contrariar esse movimento de gentrificação e fazer algumas das pontuações. Ao contrário dos exemplos de gentrificações americanas nos anos 1930 e 1940, que são clássicos por fazer um displacement de populações violentas, em que se expulsa mesmo a população, ou até no caso das favelas, que são mesmo informais e que existe uma razão, uma suposta autorização do Estado para demolir, a gentrificação que acontece numa situação como Lisboa parte da vontade própria. As pessoas mudam porque querem, porque tinham uma casa no centro, passam a alugar e, com a reabilitação dessa casa, conseguem ir para outro canto. Assim, é uma economia que beneficia também as classes mais baixas e, de repente, é uma nova fonte de rendimento. Portanto, acho que aqui realmente já existe um conhecimento, uma teorização de todos esses problemas, com muitos anos, que podem ser explorados. Nesse sentido, penso que se pode olhar para as coisas de uma forma mais positiva. Outro aspecto importante é o fato de um museu, enquanto entidade, poder participar mais de um debate público de uma forma diferente da que era feita no passado. Tipicamente, o museu no passado fazia conferências e debates sobre obras de arte, sobre artistas, sobre intervenção do artista. Mas, a verdade aqui é que temos as condições de estimular a discussão e o debate cívico. O museu, portanto, pode servir ao público, pode ter intervenção. Isso é o papel fundamental do museu nesta época. O museu como ativador, o museu como ativista e o museu como agitador. Ativador no sentido de ativar as relações com a cidade, ativista no sentido de ter uma função mais política e, ainda, agitador social. FOTOS: FRANCISCO NOGUEIRA/ PEDRO GUIMARÃES
PUBLIEDITORIAL
Literatura onde o público está
Ônibus-biblioteca leva cultura para jovens das escolas públicas do Rio de Janeiro
Na verdade, o MoMA foi o exemplo dessas ações. Esse tripé foi teorizado lá. O ativador tinha muito a ver com a ligação com as comunidades e com a ação Young Arquitects Program, que organizei no PS1; o ativista com uma exposição que fiz logo que cheguei ao MoMA, chamada 9 + 1 Ways of Being Political, na época do Occupy Wall Street; e depois o museu como agitador é o caso de Uneven Growth, uma exposição que tinha o Rio de Janeiro como uma das cidades escolhidas para representar um discurso de desigualdade social. A agitação aí, no sentido de causar a perturbação do visitante que tinha acabado de ver uma exposição de Picasso e, de repente, passava disso para uma sala em que se confrontavam culturas extremas, de cidades como Lagos. Suas exposições no MoMA já trabalhavam com várias linguagens, mas aqui, no MAAT, percebi que você incorporou fortemente o audiovisual. O audiovisual é hoje um campo de pensamento da arquitetura?
O audiovisual é como uma linguagem que se aprende de forma quase inata e passa a ser uma verdadeira linguagem comum (do ponto de vista do entendimento geral). Portanto, é uma linguagem fundamental para os dias de hoje. Contudo, em termos expositivos, é uma nova questão, por SELECT.ART.BR
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causa do tempo que exige do espectador. As exposições, em vez de tomarem meia hora, passam a ter que se ver em duas horas, se quisermos realmente perceber os conteúdos de certos vídeos. No campo da arquitetura, o vídeo me parece ser um meio mais eficaz de transmitir certas ideias, porque é mais próximo da espacialidade e porque contém o discurso oral que, às vezes, transmite melhor a ideia sobre arquitetura do que o discurso por escrito. Quais são os próximos projetos, quais são as utopias que você traz do MoMA para o MAAT, ou de Nova York para Lisboa?
Tenho aqui alguns projetos muito importantes. Um é a autonomia do espaço como espaço de experimentação e internacionalização para artistas portugueses. Outro é de trazer exposições e comissionar obras internacionais, como Electronic Superhighway, que vem da Whitechapel Gallery, de Londres, sobre arte e mídia de 1966 a 2016, e uma nova intervenção da Galeria Oval do sound artist Bill Fontana. Ele vai fazer uma instalação que vai trabalhar também com imagens e informações que são coletadas do Rio Tejo e transmitidas da Ponte 25 de Abril. Estou com planejamento para quatro anos. Não é uma agenda fechada, mas são as grandes linhas gerais que traço. A partir daí, enquanto penso em artistas que fazem sentido, surgem hipóteses. Vou enchendo o calendário e, neste momento, posso dizer que chego até o ano de 2021. FOTO: EDP FOUNDATION
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Projeto da Lojas Americanas leva literatura, cultura e entretenimento para bairros do Rio de Janeiro
er é ampliar o conhecimento, desbravar lugares novos, estimular a criatividade e se divertir muito. Compartilhar livros é simples e incentiva os leitores a buscar boas histórias. Desde 2014, a Lojas Americanas patrocina o projeto Livros nas Praças, que acabou de concluir sua primeira temporada de 2017. De abril a julho, o ônibus-biblioteca circulou pelo Rio de Janeiro, passando por bairros como Leme, Madureira, Mangueira, Padre Miguel, Penha, Santa Cruz, Saúde, Tijuca, Triagem e Urca. No município de Nova Iguaçu, estacionou na Praça Imperatriz, uma das preferidas dos moradores. Em todos os locais por onde passou, alcançou seu objetivo de levar os livros para mais perto de crianças, jovens e adultos. Nessas 13 semanas, quase 8 mil pessoas participaram do projeto, cujo acervo é formado em mais de 80% por autores brasileiros, e que também oferece obras em braile, audiobooks, títulos de literatura afro-brasileira e indígena. Cadeirantes e idosos com dificuldades de locomoção dispõem de uma estrutura especial que facilita o seu acesso ao ônibus-biblioteca e às prateleiras.
Mas a grande força desse projeto é multiplicar leitores: o Livros nas Praças leva muitos jovens a incentivar seus pais a ler. Observa-se também o movimento contrário: pais estimulam seus filhos a conhecer o rico universo da literatura.
Sala de leitura dentro do ônibus-biblioteca: acessibilidade total para todos os leitores
A segunda temporada de 2017 começará em agosto e a expectativa é que ultrapasse 20 mil leitores. A iniciativa de levar cultura para perto dos brasileiros faz parte dos esforços de responsabilidade social da Lojas Americanas.
Divulgação Korporativa Marketing Cultural
Você precisou sair do MoMA, onde era curador de arquitetura, e assumir a direção do MAAT para trabalhar nessa perspectiva?
Divulgação Korporativa Marketing Cultural
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C R Í T I CA
KASSEL
A LINGUAGEM QUE NOS DEFINE DANIELA BOUSSO
A ausência de obras disruptivas na documenta 14 é fato. A ruptura era o mito das vanguardas Alguns dizem que a documenta 14 não vale a pena. Quem foi até lá em busca da essência do espetáculo – para Guy Debord, o espetáculo é o reino da visão, é exterioridade – ficou decepcionado. A mostra cria uma ontologia formal da miséria do planeta, mas é verdade que precisamos reativar o olhar perceptivo em nós e desacelerar, para embarcar em uma aventura intelectual e permear um mundo sensível. É na produção audiovisual que a documenta 14 oferece obras interessantes. Em espaços deslocados do raio que circunda a Friedrichplatz, há um número razoável de artistas e obras contemporâneas que apontam paradigmas de linguagem do século 21. Desde 1955, a cada cinco anos, a documenta de Kassel concentrou importantes obras de ruptura em suas mostras. As gerações que a visitaram nos anos 1960 e 1970 voltavam se sentindo transformadas. Nas primeiras edições, as mostras concentraram-se em exposições. A partir de 1997 – com a documenta 10, sob curadoria de Catherine David –, transformou-se em projeto, abarcando publicações, atividades e mesas de reflexões que envolveram arquitetos, antropólogos, filósofos, educadores, escritores e artistas. Com 160 artistas distribuídos entre Atenas e Kassel, a documenta 14 traz a marca dos agenciamentos, articulações e programas de fomento à arte que envolveram o circuito internacional entre os anos 1990 e os anos 2000. Em perspectiva experimental, assemelha-se mais a uma grande residência artística do que a uma exposição internacional desse porte. Ao colocar-nos diante SELECT.ART.BR
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Longa-metragem Le Fort des Fous (2017), de Narimane Mari, no Parque Ballhaus. Obra sobre expedições científicas do período colonial pode ser considerada a melhor da documenta
de um mundo desarticulado e em franca disruptura, o curador Adam Szymczyk pretendeu dar uma resposta em tempo real às crises mundiais e da Europa, e incluiu a Grécia no roteiro. Com a ideia de trazer à luz uma obscuridade relativa, Szymczyk evocou um espectro que envolveu a ativação de diferentes partes da história, desde a Grécia clássica até as passagens por Goethe e pelo criador da documenta, Arnold Bode. A construção de uma estrutura não linear intencionou “fazer justiça a coisas invisíveis”, nas palavras do curador-ativista. Entre os temas abordados estão as relações entre ecologia e capitalismo, a violência colonial e a de gênero, questões de posse e desapropriação, o poder do colonizador sobre o colonizado, “a dominação e o espetáculo como máscaras visíveis do capital, que remontam ao século 18 com o realismo e ao século 19 com as vanguardas históricas”, afirma Adam Szymczyk. Segundo ele, esses movimentos, juntamente com o mito da maquinaria moderna, teriam gerado forças artísticas progressivas, mas também insti-
tuições repressivas, como a sociedade de controle que reproduziu o medo das prisões e campos de concentração. Entre os modos de resistência a opor, Szymczyk propõe deseducar para reaprender; e escrever e publicar como ato político, daí os três volumes da revista South – que ele próprio editou –, além dos catálogos da mostra. FRUIÇÃO COMPROMETIDA
Se, de um lado, o enunciado e a reflexão proposta pela documenta 14 são dignos de nota, o que vimos em Kassel, do ponto de vista da organização de uma mostra internacional desta monta, é lamentável. Com orçamento de 37 milhões de euros, a mostra oscila entre obras sofríveis e, felizmente, obras que refletem paradigmas de linguagem da arte contemporânea. Hoje, a documenta ainda gera expectativas por ser um índice para o meio artístico e os espectadores, que se deslocam por continentes para se atualizar e refletir sobre valores e conteúdos propagados pelo evento. Os que seguem a mostra ainda nutrem a expectativa de se verem confron-
A ausência de um design expográfico que dê conta de facilitar informações sobre as obras soma-se à péssima sinalização
tados com obras mobilizadoras, mas a documenta 14 extrapola ao exaurir o público com o excesso e a repetição de um mesmo discurso, em tom monocórdico. A ausência de um design expográfico que dê conta de facilitar informações sobre as obras soma-se à péssima sinalização. Mapas que não são claros, longas distâncias e artistas distribuídos em mais de 30 espaços da cidade potencializam a decepção de nos depararmos em grande parte do tempo com obras datadas. Sacudir as instituições e “dar ao receptor a tarefa de realizar a metade do trabalho” não é exatamente “um meio de ação ou participação entre o visitante e o artista”, como quer o curador. Quando o trabalho do visitante é usar metade do seu tempo em busca de informações, a qualidade da fruição da mostra está comprometida. Sacudir instituições não é exatamente abrir mão do que a expografia contemporânea pode fazer por uma mostra, mas exibir obras que realmente toquem o coração do espectador, seja pela sua eficiência visual, seja pela intensidade de sua poética, ou seu conteúdo inovador. FOTO: EIDE FELDON
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O MELHOR DA D14
seLecT expandida:
No museu Fridericianum, ocupado pela coleção do Museu de Arte Moderna de Atenas, podemos contar nos dedos as obras de maior interesse, tais como The Raft (2004), de Bill Viola, Wall Piece (2000), de Gary Hill, exibida no espaço redondo do MIS em SP em 2010, e o vídeo I Soldier (2005), do turco Köken Ergun, radicado em Berlim e Nova York. Filmado em tempo real, I Soldier registra a comemoração anual de 19 de maio na Turquia, que remonta à guerra da independência contra os Aliados (1919). Em foco, jovens de ensino secundário treinados a integrar performances, coreografadas no maior estádio da cidade, imitando as cerimônias do realismo social da Rússia. Em dois canais, o vídeo conjuga atletismo e marcha militar em ritmo de hip-hop, exaltando a disciplina turca e o nacionalismo, colocado acima de cada ser. Um poema que exalta a pátria, lido por um soldado que o declama a plenos pulmões, constela o discurso que oscila entre a associação a crenças religiosas e sentimentos populistas, via antagonismo vida e morte. Questões de gênero transparecem no foco sobre os soldados, por meio de um corpo performático e mutante, característico da obra de Ergun. O Palais Bellevue abriga obras que abordam memória de conflitos, traumas de guerra e relações de dominação a que imigrantes são submetidos. O vídeo A Sombra (2017), da guatemalteca Regina Galindo, revela o horror promovido pelo poder da indústria armamentista e mostra a aflição de uma jovem que corre, exausta, para fugir da perseguição de um tanque de guerra. A videoinstalação do israelense Roee Rosen é a obra-prima do lugar. Em The Dust Channel (2016), as relações de dominação entre patrões e serviçais imigrantes são tratadas com humor por meio do hibridismo das linguagens da arte atual: música, performance e tratamento cromático em tons chapados dão ritmo pop ao roteiro de uma
Confira o trabalho I Soldier (2005), do turco Köken Ergun em bit.ly/soldier-ergun
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Em perspectiva experimental, a d14 assemelha-se mais a uma grande residência artística do que a uma exposição internacional
opereta, com música acurada de rara beleza. Estão em jogo as polarizações entre sensualidade e pornografia, cotidiano e poesia. A forma ficcional confere efeito ambíguo à obra, na qual corpos em ação traduzem uma sígnica emocional, de sintaxe ao mesmo tempo sensorial e ácida. No Ottoneum Museum, Khvay Samnang, nascido no Camboja, em 1982, apresenta a videoinstalação Preah Kunlong (2017), onde a linguagem da dança é central. A obra trata da comunidade Chong e da sua relação com a terra. Infiltrado na comunidade por um ano não consecutivo, o artista trabalhou com eles a resistência a políticas territoriais e o senso de pertencimento. O aprendizado a respeito das crenças e mitos do povo indígena Chong – que vive na última grande floresta no Vale Areng – baseado em experiências ancestrais e histórias orais, traz a presença espiritual de animais que habitam na floresta, por meio de máscaras e artefatos. Confeccionados com cipós da selva, estão incorporados na performance do coreógrafo e bailarino Nget Rady, que colabora com Samnang há muitos anos. No Landesmuseum Two Meetings and a Funeral (2017), de Naeem Mohaiemem, é um documentário sobre o Movimento Não Alinhados (19501990) – organizado a partir de linhas socialistas – que congregou países do Sul Global, cujo objetivo era intervir de forma independente sobre os poderes da Guerra Fria. Construída a partir de uma competente pesquisa, a obra resulta em um grande arquivo – sem interatividade, uma pena – onde personagens como Muammar Kaddafi e Fidel Castro discursam utopias, no momento em que soberania territorial e não agressão mútua permeavam as propostas da coalizão. Na Grimmwelt House, a videoinstalação Lost and Found (2017), da americana radicada em Londres Susan Hiller, apresenta a problemática de documentos e linguagens desaparecidos no mundo. A projeção não difunde imagens. Em
vez de uma narrativa roteirizada, ouvem-se vozes de pessoas mortas, coletadas de arquivos. Uma linha verde oscila cada vez que as vozes entrecortadas são interrompidas. Aqui, a tecnologia assume feições simbólicas e associativas, por devolver à vida mundos que foram extintos por culturas hegemônicas e por abrir espaço para as linguagens que esses mundos esmagados descrevem. O Parque Ballhaus aloja a melhor obra da documenta. O longa-metragem Le Fort des Fous (2017), da argelina Narimane Mari, é uma ficção que parte de gravações deixadas por franceses no Norte da África durante “expedições científicas” do período colonial. Em meio a um universo onírico e surrealizante, o filme mostra o treinamento de adolescentes que se tornarão colonizadores; em um segundo momento, um grupo de jovens nômades tenta formar uma sociedade utópica que questiona o papel do imperialismo. Desenvolvido em três atos, seu imaginário remonta ao de uma ópera. Estrutura elíptica e roteiro desconstruído propiciam uma narrativa histórica que enfatiza a dimensão poética e fantástica no convívio dos personagens. O caráter epopeico conferido à obra é intencional, desde a construção dos episódios que lembram as séries televisivas até a locação, cuja beleza e amplitude geográfica privilegiam o desenvolvimento cênico.
Acima, no Landesmuseum, o documentário Two Meetings and a Funeral (2017), de Naeem Mohaiemem
RUMOS DA ARTE
As obras comentadas representam os rumos que a arte tem tomado há mais de uma década: atuação em grupos e coletivos, alusão a questões políticas e comunitárias, valorização de culturas e documentos em desaparecimento, recusa à hegemonia cultural, ecologia versus capitalismo, reverberação do surrealismo como último estertor das vanguardas históricas, memória das guerras, negação dos rumos do mundo atual.
documenta 14 Atenas, 8/4 a 16/7 Kassel, 10/6 a 17/9 www.documenta14.de/en
No campo da linguagem, parece que meios como a pintura, a escultura, o desenho e objetos manufaturados sofrem com a pujança da performance e da dança, da sonoridade, do vídeo e do filme. Se é a linguagem que nos define, aí temos mudanças sutis: operações com narrativas desconstruídas tomam o lugar de roteiros lineares. A eliminação de um referente em cena ocorre em razão da abertura de espaços imaginários, que ativam processos de subjetivação no receptor. Hibridação dos meios e referência às séries de tevê, inclusão do gênero operístico e vozes de depoimentos aparecem como foco central dos roteiros e da atividade dramatúrgica. Em pauta a coleta de materiais de arquivos visuais e sonoros, ainda que a interatividade não seja disponibilizada ao espectador. A ausência de obras de ruptura no terreno das artes é um fato. Talvez porque agora não seja tempo de romper, mas de informar a pletora de mundos e linguagens que nos rodeiam e pelos quais passamos ao léu. Porque a ruptura era, por excelência, o mito das vanguardas e já vão longe as utopias que as impulsionaram. A linguagem do mundo ocidental está cansada; muda paulatinamente ao ritmo das commodities, mas sem romper. Aqueles que já se sentiram transformados diante de uma obra conhecem a delícia da experiência e acreditam no poder de transformação da arte. Vale indagar se isso ainda é possível hoje. A documenta de Kassel é uma lenda que constelou o mito das vanguardas, como afirmou Enrique Vila-Matas em Não Há Lugar Para a Lógica em Kassel (2015). Só não vale a melancolia. Mais vale lembrar que, no dizer de Jacques Ranciére, em The Emancipated Spectator, “a melancolia alimenta a sua própria impotência, num mundo no qual a interpretação crítica do sistema se tornou um elemento do próprio sistema”. FOTO: MICH
FOTO: MICHAEL NAST
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C R Í T I CA
Labirinto de Cruzetas (2017), de Daniel Murgel, no MuBE
SÃO PAULO
O INVASOR AGNALDO FARIAS
Daniel Murgel implanta floresta de encruzilhadas em pleno Jardim Europa, coração da elite paulistana O Museu Brasileiro de Escultura (MuBE), de Paulo Mendes da Rocha, figura entre seus trabalhos de maior força poética. O grande pórtico, uma laje longa e baixa (60 metros de comprimento de vão por 12 de profundidade e 2 de altura) atravessando o terreno, dá o que pensar: o sistema trilítico, princípio ancestral da construção, composto de três pedras (lithos), duas verticais e uma horizontal apoiada sobre elas; o estabelecimento de uma extensa área sombreada, umbral e passagem e que ainda se presta a ponto de encontro ou mesmo palco, cujas encenações podem ser observadas pelos que se acomodam na escadaria que dá para ela; a fixação de um horizonte invertido, garantindo uma referência estável ao movimento dos volumes sob ele; uma pedra flutuando, tal como a pedra ensombrecida da pintura de René Magritte (As Ideias Claras, 1955), suspensa no ar entre uma nuvem e o mar já próximo da praia, no ponto onde as ondas quebram, imagem que sempre fascinou Paulo Mendes da Rocha, como relatou em um artigo sobre sua casa de Catanduva. Foi essa pedra com feitio de “nave mágica” que animou o arquiteto a aceitar o convite para a exposição Pedra no Céu, no MuBE, que juntou obras de arte à sua arquitetura, convívio que oscilou entre a sobriedade de um segredo e a tensão. Nesse particular, o destaque foi o Labirinto de Cruzetas, de Daniel Murgel, que permanece instalado no espaço até março de 2018. A lógica precisa das coberturas dos volumes SELECT.ART.BR
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de concreto, cegos e angulados visava a constituição de “um grande jardim”, segundo o memorial do concurso, pois foi nela que Murgel engendrou seu labirinto, um conjunto hexagonal de 23 paredes em formato de cruz – cruzeta – dividido em três famílias de quantidades –14 / 8 / 1 – e alturas diferentes, 2 / 3 / 1,60 metros, respectivamente, de tal modo que os 14 esparramam-se, perfazendo as arestas do hexágono, rodeando os 8 que, por sua vez, protegem e encobrem a cruzeta menor, ilhando-a no centro. Há 23 paredes feitas de tijolos de barro estreitos e vazados, material ordinário com o qual são elevadas as construções da periferia, as casas que proliferam descontroladamente, à revelia das intenções planificadoras do urbanisFOTO: CORTESIA GALERIA SILVIA CINTRA + BOX 4
mo e da arquitetura modernos; 23 paredes parcialmente revestidas de cimento, uma primeira mão que deixa a nu a lógica do assentamento dos tijolos, pele áspera, abrutalhada, que não as encobre, garantindo ao interior do labirinto um cinza opressivo, cor muito próxima à do MuBE, apesar de tão distante. Murgel é fascinado pelas ruínas, o futuro da arquitetura, das cidades, de tudo, mas também se interessa pelas soluções construtivas nascidas da necessidade, do improviso empírico a serviço da inteligência, como essas cruzetas que se espalham pelo Brasil afora como recurso barato para a sustentação de pesos como o de caixas d’água. O labirinto proposto pelo artista lhes dá outro significado: a irrupção em pleno Jar-
Labirinto de Cruzetas, Daniel Murgel, até março de 2018, Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), Rua Alemanha, 221, https://www.mube. space/
dim Europa, no coração da elite paulistana, de uma floresta de encruzilhadas, tais como as teias produzidas pela voragem da especulação imobiliária, o colapso dos GPS. A poética de Daniel Murgel não se resume às construções toscas e enigmáticas, às casas disfuncionais, aos jardins cimentados que cingem e matam as árvores que neles deveriam vicejar, às surpreendentes gambiarras arquitetônicas que contrariam e surpreendem todas as normas construtivas. Não bastasse, o artista as vai instalando nos espaços dedicados à arte, como uma lembrança do que acontece não muito longe dali, como um aviso premonitório sobre o inevitável traspassamento entre os espaços dos ricos e os dos pobres.
Passage (2017), frame do trabalho do sul-africano Mohau Modisakeng
REVIEWS
BIENAL DE VENEZA
DOR COLONIAL MÁRION STRECKER
Diáspora africana aparece em performances e filmes de Mohau Modisakeng e Ayrson Heráclito Celebração festiva da arte, a 57ª Bienal de Veneza fez questão de afirmar que é feita “com artistas, por artistas e para artistas”, como disse sua curadora artística Christine Macel, que intitulou a exposição de Viva Arte Viva. Mas as dores do mundo não têm nada de festivo e não faltaram artistas para remexer nas feridas abertas dos crimes de toda ordem que enfrentamos, como vítimas, algozes, ou ambos. A escravidão negra é tema de excelentes trabalhos levados a Veneza este ano pelo sul-africano Mohau Modisakeng e pelo brasileiro Ayrson Heráclito. No pavilhão da África do Sul, Candice Breitz apresenta vídeos com depoimentos de pessoas de regiões e perfis variados que se viram forçadas a emigrar, enquanto na sala ao lado atores aparecem em filme reproduzindo os mesmos depoimentos. Na terceira sala do pavilhão está o trabalho Passage, do jovem Mohau Modisakeng, sobre o desmembramento da identidade africana resultante da escravidão. Mohau nasceu numa Soweto violenta em 1986, de mãe enfermeira, zulu, e pai motsuana. Soweto, SELECT.ART.BR
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O vaivém das águas inunda os barcos de Mohau Modisakeng ameaçando os passageiros involuntários e lembrando que Veneza também está sujeita a submergir
vizinha a Johannesburgo, era considerada a maior favela do mundo e ali coabitavam tribos diferentes, apartadas da sociedade branca dominante. As tribos dividiam-se em diversos partidos políticos, pró e contra Nelson Mandela, que cotidianamente se matavam nas ruas em defesa de métodos opostos que cada um pregava na luta contra o Apartheid e pela democratização da África do Sul. O cotidiano de infância de Mohau foi habitado por corpos nas ruas de pessoas recém-assassinadas. Pouco depois da soltura de Mandela, em 1990, e antes das eleições de 1994, quando o país fez sua transição para a democracia, Mahau, ainda criança, viveu o assassinato do irmão mais velho no contexto dessa luta pela libertação. A consciência do Apartheid e um programa de intercâmbio o levaram para uma temporada em Londres, onde conheceu a Tate Modern e se impressionou com a quantidade de salas repletas de obras de arte. Sem saber o que significava ser artista e sem conhecer nenhum, decidiu ser um deles. Estudou Belas Artes na Cidade do Cabo, onde mora atualmente, e para o trabalho final do curso voltou a Soweto, onde fez a família finalmente falar do assassinato do irmão. Fez então uma grande escultura a partir da imagem da faca que matou seu irmão. Em Passage, o trabalho que está na Bienal de Veneza, três filmes são projetados simultaneamente. Em cada filme, um negro (ou negra) aparece sozinho deitado de costas no fundo de
um barco pequeno. Cada um deles traz uma única posse ou vestimenta que caracteriza sua cultura. Os movimentos dos corpos, lentos, parecem às vezes de luta e outras de resignação. A água às vezes inunda o interior dos barcos, ameaçando afogar seus viajantes. Às vezes, os corpos negros submergem, mas a estranha dança continua. Em cada barco, cada um navega só, sabe-se lá para onde. Pura poesia cheia de dor. Não por acaso, o vaivém das águas, subindo e descendo, lembra a própria situação de Veneza, cidade protegida por diques, mas sempre e ainda sujeita a inundações e ameaçada de desaparecer. Outro trabalho que trata da diáspora africana é o de Ayrson Heráclito, baiano de Macaúbas, filho de um sargento da PM, negro, e de uma professora de história, branca. Em sala no edifício principal do Arsenal, Heráclito mostra dois filmes, projetados simultaneamente em paredes opostas, performances realizadas nos dois lados do Atlântico. Do lado de cá, o lugar é a Casa da Torre de Garcia D’Ávila, edificada em 1550 na Bahia, sede do maior latifúndio da história do Brasil, formado com mão de obra escrava negra e indígena. Na África, o lugar é a Casa dos Escravos de Gorée, ilha do Senegal, onde negros escravizados eram mantidos, enquanto aguardavam transferência para as colônias portuguesas no além-mar. Nas performances de Heráclito, três homens de branco fazem um ritual do candomblé, religião do artista. O objetivo não é apagar torturas e abusos extremos sofridos pelos escravos, mas sim eliminar o espírito ruim dos senhores de escravos, onde se ancora a pobreza e a desigualdade social que persistem até hoje no Brasil. Nascido em 1968, Ayrson é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e gosta de fazer a tradução do universo do sagrado para não iniciados. Aliás, é o que faz também Ernesto Neto com o trabalho Um Sagrado Lugar, com os índios Huni Kuin, do Acre, que tratam com ayahuasca a doença da civilização moderna, divorciada da natureza.
PORTO
ENSAIO SOBRE O IMPROVISO
57a Bienal de Veneza – Viva Arte Viva, até 26/11, www.labiennale.org
Them or Us! encerrada, Galeria Municipal do Porto, Portugal
O Brasil que povoa o imaginário de Rodrigo Oliveira é um jogo de montar e desmontar O português Rodrigo Oliveira afirma que o contato com a obra de Lygia Clark, quando estudante, determinou temas e procedimentos de seu trabalho. Foi uma obra da artista com caixas de fósforo, vista em uma exposição no Museu de Serralves, que despertou seu interesse para os artistas do outro lado do Atlântico e seus modos de “pensar mais periférico e descentrado”. Depois, no contato com a arquitetura moderna brasileira, seu interesse consolida-se. O encontro entre essas duas estéticas brasileiras tão contraditórias dá vazão a uma poética que se posiciona nos interstícios entre a escultura, a arquitetura, o urbanismo e a ficção científica (que Oliveira vem a herdar da literatura de José Saramago). Plataforma #1 (Modelo para uma Catedral) (2016), que esteve em exibição na coletiva Them or Us!, na Galeria Municipal do Porto, até agosto, sintetiza essas pesquisas. Em sua exploração dos princípios formais e simbólicos da arquitetura modernista, a obra parte da ideia de uma maquete. Mas é uma escultura. Com o arquétipo da banana, Oliveira revisita o tropicalismo e o exotismo, vectores que tinha trabalhado anteriormente, a fim de dissertar sobre a precariedade do cotidiano e desmitificar a noção de utopia. Com Plataforma #2 (Modelo para um Palácio de Congressos) entende-se que seu pensamento opera dentro de uma lógica construtiva modular. Com um impulso inicial baseado na racionalidade europeia e um desfecho informal que se rende à empatia com a improvisação. PA FOTO: CORTESIA TYBURN GALLERY / RODRIGO OLIVEIRA
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REVIEWS MÜNSTER
ESCULTURA EXPANDIDA TOBI MAIER
Práticas performáticas e cinemáticas são incorporadas ao Skulptur Projekte, na Alemanha. Pela primeira vez na história apresentam-se artistas radicados no Brasil A cada década, desde 1977, Kasper König junta uma equipe de curadores para organizar os Skulptur Projekte, em Münster, uma cidade média no mais populoso estado da Alemanha, Nordrhein-Westfalen. Desta vez, para a quinta edição, König colaborou com Marianne Wagner e Britta Peters, e em diálogo com uma equipe de pensadores e escritores que têm contribuído para uma série de jornais, o grupo expandiu o conceito de escultura. Essa expansão acontece em paralelo à inclusão de práticas performáticas ou cinemáticas, que surgiram nos últimos tempos como meios de expressão de escultura social ou trabalho específico ao seu contexto. Além dos 35 projetos comissionados para esta edição, o público também tem acesso a 36 obras de edições anteriores que estão sendo SELECT.ART.BR
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Acima, a videoinstalação Bye Bye Germany! A Life Melody (2017), da dupla brasileira Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Na página ao lado, Retrato de António Soares dos Reis (1881), pintado por João Marques de Oliveira
Münster Skulptur Projekte 2017, Münster, Alemanha, até 1º/10, www.skultur-projekte.de
preservadas, como, por exemplo, os círculos de concreto de Donald Judd (Sem Título 1976/77), as bolas de bilhar de concreto de Claes Oldenburg ou Less Sauvage than Others (2007), de Rosemarie Trockel, no lago. Também no lago está um pavilhão que foi construído com madeira por Jorge Pardo, em 1997. Jovens da região têm frequentado a casinha, fazendo festas e fogueiras, o que tem tido um impacto na estrutura. Agora, nas margens da cidade, num deserto industrial e perto de um rio, o artista americano Oscar Tuazon construiu uma escultura em concreto, dedicada ao churrasco e à fogueira (Burn the Formwork, 2017). Imagino as noites lá como as cenas de jovens representadas nas pinturas de Muntean e Rosemblum. Outras fogueiras encontramos na obra de Aram Bartholl, cujas esculturas são manobradas por assistentes à volta do fogo atiçado para criar a eletricidade necessária no abastecimento de celulares (5V, 2017) ou do roteador Wi-Fi (12V, 2017). A obra mais “espetacular” trata de outro elemento: concebida por Ayse Erkmen, On Water (2017) convida o público a andar sobre a água, transitando de um lado do porto de Münster ao outro. Enquanto essas esculturas se situam ao ar livre, outras obras ganham força em contextos arquitetônicos. Como o projeto de Michael E. Smith, que é um estúdio de tatuagem para pessoas com 65 anos de idade ou mais (quem
se habilita tem dezenas de desenhos de artistas internacionais disponíveis para sua escolha) e Hito Steyerl expõe a sua instalação – HellYeahWeFuckDie (2016), que já conhecemos da 32a Bienal de São Paulo – no foyer do Banco LBS. Pela primeira vez na história do Skulptur Projekte, participam artistas radicados no Brasil. Benjamin de Burca e Bárbara Wagner foram convidados a desenvolver Bye Bye Deutschland, um novo filme que introduz a folclórica canção Schlager alemã. A obra está instalada dentro de uma discoteca no estilo kitsch, no centro de Münster. É a especificidade ao lugar e contexto que destaca esta exposição em relação à documenta 14 de Kassel. O caráter histórico é trabalhado pela mostra de Michael Asher, Double Check, que exibe fotos, documentos e correspondências relativas à obra Installation Muenster (Caravan). Nas edições de 1977, 1987, 1997 e 2007, Asher estacionou um trailer nos mesmos lugares de Münster. Assim se revelaram as mudanças na cidade durante as décadas. A mostra de Asher fica no segundo andar do Landesmuseum, onde as obras de Nora Schultz, John Knight, Gregor Schneider e Cosima von Bonin/Tom Burr formalizam a continuação de um pensamento de crítica institucional. A colaboração com a cidade de Marl, 40 quilômetros de Münster, onde – entre outras obras – Dominique Gonzalez-Foerster expõe uma seleção das esculturas do seu Roman de Münster (2007), não apenas expande a geografia da exposição, mas também marca um contraponto importante a Münster, num gesto que destaca a arquitetura brutalista pós-guerra alemã de Marl. Se a Documenta 14 falha em convencer o grande público este ano, Skulptur Projekte vem sem atitudes e sem a ilusão de um tema curatorial. Numa era da proliferação das bienais em todo o mundo, Münster consegue refletir mais uma vez sobre o progresso do trabalho escultural e marca a eminência desse meio numa mostra em grande escala.
SÃO PAULO
DUAS REALIDADES E UMA BUSCA LUANA FORTES
Coleções em Diálogo: Museu Nacional de Soares dos Reis e Pinacoteca de São Paulo, até 2/10, Pinacoteca de São Paulo, Praça da Luz, 2, pinacoteca.org.br
No encontro entre as coleções da Pinacoteca e do Museu Nacional de Soares dos Reis evidencia-se a mesma a busca do Brasil e de Portugal por uma arte própria O programa de exposições Coleções em Diálogo, da Pinacoteca de São Paulo, de fato habilita seu acervo a novas leituras, como pretende. Mesmo aqueles que já o conhecem ficarão surpresos ao ver as possíveis relações pronunciadas em sua terceira proposta, que apresenta FOTOS: SKULPTUR PROJEKTE 2017, HENNING ROGGE/ DIVULGAÇÃO
um recorte da coleção do Museu Nacional de Soares dos Reis, de Portugal. A expografia é cuidadosa e eficiente. As 93 obras, produzidas no século 19, pertencentes ao acervo português, foram instaladas em salas adjacentes à exposição permanente da Pinacoteca, diferenciadas por uma suave mudança na cor de suas paredes. Branco indica Brasil. Cinza, Portugal. Mesmo assim, as conversas entre os países parecem tão intensas que é possível pensar que a pintura Baía Cabrália (1900), do carioca Antonio Parreiras, mostra neve, em vez da areia branca brasileira. A exposição tem curadoria de Elisa Soares, conservadora do Museu Nacional de Soares dos Reis, e de Fernanda Pitta, curadora da Pinacoteca. São explorados quatro eixos, que giram em torno dos gêneros da pintura e mostram a busca que ambos os países empreenderam por uma arte verdadeiramente nacional. Artistas como Artur Loureiro, Henrique Pousão e António da Silva Porto revelam suas impressões sobre a realidade portuguesa, enquanto Almeida Júnior e Pedro Américo, entre outros, aprofundam uma ideia de Brasil. Durante os séculos 19 e 20, o Brasil batalhou para constituir uma produção singular, ainda relacionada a uma tradição artística ocidental e europeia. Com Portugal não foi diferente. A despeito de sua geolocalização no centro do mundo – a Europa –, a formação de sua imagem ampara-se no exemplo dos vizinhos. Curiosamente, na origem de ambas as construções de uma arte nacional, apresenta-se a pintura italiana. Nesse sentido, exibir a coleção do Museu Nacional de Soares dos Reis, herdeiro do primeiro museu público de arte português, ao lado da produção artística brasileira do século 19 e início do século 20, é refletir sobre os outros lados de uma história em comum. SELECT.ART.BR
SET/OUT/NOV 2017
Capa do livro Lima Barreto - Triste Visionário, ilustrada com pintura de Dalton Paula LIVROS
A ÁFRICA VIVE NO BRASIL ANA ABRIL
Lima Barreto - Triste Visionário, Lilia Moritz Schwarcz, Companhia das Letras, 648 págs., 2017, R$ 69,90
Questões contemporâneas pautam uma inovadora biografia de Lima Barreto, com destaque para a questão racial O ano de 2017 reafirma a importância e atualidade de Lima Barreto (18811922). Homenageado na 15ª edição da Flip, que aconteceu entre 16 e 30/7 na cidade histórica de Paraty, o jornalista e escritor carioca também ganha biografia da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Por ser negro e pobre, foram necessárias décadas para que Lima Barreto ganhasse reconhecimento,
o que não foi suficiente para livrá-lo do racismo. A capa de Lima Barreto – Triste Visionário estampa um retrato do escritor pintado pelo artista Dalton Paula. Sob a meia sobrecapa, que cobre parcialmente o retrato, percebe-se que o escritor veste camisa branca e gravata. Ao contrário da imagem que rebenta no inconsciente brasileiro, o negro representado na capa não leva indumentária de escravo. A história do Brasil é a história da escravidão, iniciada com os indígenas e amplificada, normatizada e reiterada com os africanos. Inescapável, essa memória teve grande participação na literatura e na vida de Lima Barreto e sua família. Na busca e na revisitação de seu passado, o escritor criou personagens literários com as lembranças que possuía de sua mãe e avó, esta última escrava alforriada. De forma singular, o livro aprofunda-se na herança africana de Lima Barreto, que ele mesmo converteu em protagonista de seus escritos, considerados literatura militante. Assim como disse o historiador Alberto da Costa e Silva, a África continuou viva no Brasil. A intimidade criada entre escritor e historiadora aponta para paralelismos literários e, dela, nasce uma biografia que inova ao contar a história do que Lilian Schwarcz aprendeu com Lima Barreto. Em outros momentos, é o próprio Lima quem ganha voz e irrompe nas linhas da obra para que, como Schwarcz defende, “ele mesmo relatasse os eventos que viu, as impressões que teve, as reações que manifestou”. Na obra, a cidade do Rio de Janeiro tem o mesmo destaque que recebeu nos textos do autor, pioneiro na inclusão da dimensão da urbe na literatura brasileira, conforme destacou a pesquisadora Beatriz Resende, na Flip 2017. A pesquisa de Schwarcz também abrange, com detalhes, o cenário político, social e histórico do Brasil, deixando que trechos de jornal, dados de censos e citações históricas acrescentem à vida e à história do escritor que tirava do funcionalismo público e do jornalismo o seu sustento.
Reprodução da pintura Nobre Veneziano de Veronese, do século 19
SÃO PAULO
COLONIZAÇÃO CULTURAL
Missão Francesa André Penteado, Editora Madalena, 2017, R$ 100 Missão Francesa de André Penteado até 15/10, MNBA, mnba.gov.br
Em mostra e publicação, André Penteado persegue os vestígios da Missão Francesa no Rio de Janeiro Vistas gerais e parciais do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), do Museu D. João VI, da Casa França Brasil e da Praça XV. Retratos de alunos e professores da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Reproduções de pinturas históricas com cenas de catequização e coroamento. O nome do arquiteto Grandjean de Montigny bordado no bolso da camisa do porteiro de um edifício do Rio de Janeiro. Esses são alguns sinais da repercussão na vida e na cultura brasileira da Missão Artística Francesa, que veio fundar a primeira escola oficial de artes no Brasil em 1816. As imagens compõem o fotolivro Missão Francesa (2017), de André Penteado, lançado em julho com exposição na Zipper Galeria, em São Paulo. Segunda publicação do projeto Rastros, Traços e Vestígios, que busca investigar aspectos da história nacional, o trabalho do fotógrafo paulista foi elaborado ao longo de seis viagens ao Rio de Janeiro. A fauna de imagens captadas FOTOS: ANA ABRIL/ ANDRÉ PENTEADO, CORTESIA ZIPPER GALERIA.
constrói uma nova narrativa acerca das relações entre a cultura carioca e os ideais de sua primeira escola de artes oficial. Nessa conversa entre passado e presente, é no mínimo desconcertante notar como os alunos da UFRJ, que aparecem ora com instrumentos de modelagem, ora diante de cavaletes de pintura, remontam a tradições de técnicas da arte, já diluídas e questionadas na modernidade e na contemporaneidade. Ostentando traços indígenas, estudantes comprometem-se hoje com a representação de feições europeias, atendendo às intenções colonizadoras da Missão. A única presença de texto na publicação dá-se na reprodução de um manuscrito de Joachim Lebreton, em que o líder da Missão Francesa emite seu parecer sobre a soberania ocidental: “Tomei das escolas da Europa – sobretudo a da França, que incontestavelmente é bastante superior a todas as outras escolas em que se ensinam belas artes – o que existe de melhor no sistema de ensino”, escreveu. A mostra Missão Francesa ocupa agora o lugar que retratou e fica em cartaz no MNBA até 15/10. LF
LIVROS/ SOCIOLOGIA
O IDIOMA NEGRO
REVIEWS
PAULA ALZUGARAY
A partir da crítica do conceito de raça, ensaio de Achille Mbembe advoga pela reavaliação da contribuição africana para a história da humanidade Na acepção de poetas africanos contemporâneos, assim como de movimentos ativistas por direitos civis nos Estados Unidos dos anos 1960, negritude é idioma, linguagem por meio da qual pessoas de origem africana se expressam ao mundo. SELECT.ART.BR
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Crítica da Razão Negra, N-1 Edições, 312 págs.
Para Achille Mbembe, historiador e cientista político camaronês, referência acadêmica máxima em estudos do pós-colonialismo, Negro é um substantivo transformado em conceito: uma invenção, produção ou fantasia da imaginação europeia. Esse paradoxo da negritude sustenta a tensão narrativa do monumental Crítica da Razão Negra. Publicado originalmente em 2014 e lançado proximamente no Brasil pela N-1 Edições, o dilacerante ensaio de Mbembe é um tratado sobre a evolução do pensamento racial – desde o sistema escravagista do século 15 até os movimentos migratórios contemporâneos. Acima de tudo, é um manifesto pela descolonização mental em escala global. Com um título evocativo à Kant, é com Hegel que Mbembe inicia sua demolidora crítica do racismo, do colonialismo e do discurso iluminista europeu. Assertivo, credita a Hegel (em Fenomenologia do Espírito, 1807) a associação do Negro à “figura animal”, ou à consciência “desprovida de universalidade”. Sua massa de argumentação crítica contrapõe-se com tal eficiência às estratégias de construção do conceito de raça, que leva o leitor a reconhecê-las em sua própria experiência cotidiana. Como na coleção de capas da revista Time, reunidas em um trabalho do chileno Alfredo Jaar (From Time to Time, 2006), em que a notícia sobre a África é quase sempre associada a imagens do mundo animal. Crítica da Razão Negra afirma-se como uma obra completa. É um trabalho de revisão historiográfica definitivo ao situar o nascimento do capitalismo e da idade moderna no comércio triangular entre África, Américas e FOTOS: HEIKE HUSLAGE KOCH/ PEDRO NAPOLITANO PRATA
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Europa em torno da economia escravagista no Atlântico. É um tratado político potente ao investigar a instrumentalização do conceito de raça a serviço da legitimação do projeto de poder do hemisfério ocidental. E uma obra filosófica necessária ao afirmar que, beneficiando-se do processo de globalização, “a lógica da raça volta a irromper na consciência contemporânea”. Reconhecendo as novas variantes do racismo e da violência colonial no antissemitismo, na bestialização de grupos considerados inferiores e na atual crise de refugiados, faz-se leitura obrigatória.
SÃO PAULO
EXPERIMENTAL, CONCRETA E ATUAL Individual de E.M. de Melo e Castro mostra a potência da poesia experimental de Portugal em diálogo com a produção concreta brasileira A mostra Tempo: Ilusão Imprecisa, que esteve em cartaz até agosto em São Paulo, destacou a produção das décadas 1960 e 1970 de E.M. Melo e Castro trazendo 25 trabalhos – entre obras sobre papel, documentos, livros e vídeos – da Coleção da Fundação de Serralves, do Porto. Com curadoria de Isabella Lenzi, a mostra enfocou a experiência do artista português no campo da poesia experimental. “Na poesia é preciso reimaginar tudo e a sua leitura é um ato de criação permanente”, escreveu Melo e Castro no texto Dar a Ler (2016), disponibilizado no catálogo. Foi exatamente isso que a exposição apresentou. O objetivo desse corpo da produção poética experimental de Portugal era desafiar o sentido das palavras e valorizar a poesia como imagem, SELECT.ART.BR
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Tempo: Ilusão Imprecisa - Obras de E.M. de Melo e Castro na Coleção da Fundação Serralves, encerrada, Consulado Geral de Portugal em São Paulo, www. consuladoportugalsp. org.br
tal qual propunha a poesia concreta brasileira. A exposição evidenciou essa relação ao exibir textos e publicações aproximando esses movimentos. Mesmo sem apresentar o trabalho de outros autores, referências a eles estiveram aparentes. Mas, apesar de Isabella Lenzi e até mesmo Melo e Castro indicarem o Brasil como precursor desse pensamento, as bases da produção poética de cada país eram distintas. Enquanto os poetas brasileiros tinham como fonte a escrita egípcia hieroglífica e as escritas cuneiformes, os portugueses tinham o barroco como alicerce. O trabalho de E.M. Melo e Castro, assim, pareceria familiar para quem conhece a produção do grupo Noigandres, formado por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, em 1952. “O conhecimento do fenômeno poético de Haroldo é o de um mestre, sendo eu o discípulo. E isto é válido nos aspectos estéticos e nas referências”, revelou o artista em entrevista à curadora. Tanto no caso português quanto no brasileiro, os poetas usaram seu trabalho em resistência a governos ditatoriais. Em Portugal, diante do Estado Novo, a atuação de Melo e Castro acabou até se expandindo para outros países, em resposta à censura de António de Oliveira Salazar. Mas, além de apresentar leituras da realidade política de sua época, suas obras também se relacionam com o contexto atual. Ver a exposição Tempo: Ilusão Imprecisa é perceber a qualidade contemporânea da poesia experimental portuguesa e, portanto, da poesia concreta brasileira. LF FOTOS: HEIKE HUSLAGE KOCH/ PEDRO NAPOLITANO PRATA
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VLNGO MEMÓRIA E INVENÇÃO
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NOS ARREDORES DO INSTITUTO DOS PRETOS NOVOS
(antigo Cemitério dos Pretos Novos) e do espaço Saracvra, na zona portuária do Rio, fragmentos de réplicas de azulejos portugueses incrustados na Pedra do Sal e nas ruínas do Cais da Imperatriz confundem-se com a paisagem arqueológica do bairro do Valongo, conhecido no início do século 20 como “Pequena África”. Gustavo von Ha trabalha com ficção e desta vez o faz em torno do contexto histórico do bairro onde desembarcaram milhares de africanos sequestrados de suas vidas, colocando em questão o que seria um museu do Valongo. VLNGO, de Von Ha, foi uma exposição no Saracvra no primeiro semestre de 2016, mas permanece no local, em quase imperceptíveis intervenções urbanas. A mostra apresentava uma coleção de cerâmicas, tecidos, patuás e outros objetos ritualísticos de suposta manufatura histórica. Como o Pano de Boca, para o qual o artista usou um turbante, supostamente africano, comprado na Praça Mauá. “A base do Carnaval é a inversão de papéis. Então inverti, transformei um artigo supostamente africano, vendido para turistas, em um ‘pano de boca’ neoclássico, da realeza”, diz Von Ha à seLecT. Os objetos dispostos na mostra estão organizados como se tivessem sido achados. Depois teriam sido submetidos à leitura de aura por um especialista em radiestesia. Um vídeo, em exposição, conta essa história e o texto curatorial de Ana Avelar participa ativamente dessa (re)construção histórica. “O resultado das avaliações foi surpreendente: os objetos portam um espectro de energia significativo”, escreve Avelar. A arqueologia de Gustavo von Ha debruça-se sobre fragmentos silenciados da história brasileira. Com esse projeto, que será reeditado na Bienal do Mercosul, em abril de 2018, o artista participa de um necessário movimento de resistência aos graves apagamentos e silenciamentos da identidade negra no Brasil. “Em visita ao Instituto dos Pretos Novos pude constatar a precariedade em que se encontra por falta de verbas; querem promover mais um apagamento nessa área. Querem reeditar a história, substituindo o IPN por um novo museu da “escravidão e da liberdade’”, denuncia. PA
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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