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GÊNERO ALETA VALENTE HILDA HILST A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A

JOTA MOMBAÇA PAUL B. PRECIADO TR A JAL HARRELL

OUTONO 2018 GÊNERO

0 3 9 3 0 0 3 7 7 2 2 3 6

MAR/ABR/MAI 2018 EDIÇÃO 38 ANO 07 R$ 19,90

9

ISSN

WWW.SELECT.ART.BR

2 236-393 9

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4

E Se a Arte Fosse Travesti? (2016), Rosa Luz

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Artistas e curadoras convergem no interesse por ancestralidades, saberes ocultos, narrativas mitológicas e a presença, ainda tímida, mas crescente, da espiritualidade no cotidiano das sociedades urbanas contemporâneas. Exposição propõe reflexões que partem de conhecimentos ancestrais para caminhar por problemas sociais, políticos e históricos centrados na Bolívia, América Latina e suas relações com a cidade de São Paulo.

Até 6 de maio de 2018

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42

48

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82

94

FOGO CRUZADO

CURADORIA

PROJETO

REPORTAGEM

LITERATURA

ASSÉDIO NO MEIO DAS ARTES

MEXA Literatura

LUGAR DE FALA

HILDA HILST

Profissionais

SE NÃO PUDER SER LIVRE, SÊ UM MISTÉRIO!

para promover

Podem os artistas

O desconforto de

relatam os

Artistas trans, curadora

encontro

tratar de temas que

pensar a escritora

abusos sofridos

trans, arte trans

da diversidade

não lhes pertencem?

sob a ótica do gênero

56 ENSAIO

LIXO E GÊNERO P re c i a d o d e sv e n d a a a rq u i t e t u ra d o s b a n h e i ro s p ú b l i c o s

Fabíola Dumont, Centro de Esportes Radicais, São Paulo. Terminal 10 mg, Mexa. Setembro 2017

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SEÇÕES

8 14 16 40 46 76 100 110

Editorial Comentários / seLecT Expandida Da Hora Acervos Itaú Cultural Mundo Codificado Arte e Educação Críticas

64

Em Construção: Virginia de Medeiros

PORTFÓLIO

ALETA VALENTE Suburbana, mãe solteira, feminista, artista visual

86

34

ENTREVISTA

DA HORA/PROJETO

SANDRA IZSADORE

JOSELY CARVALHO

A música e ativista

Uma intervenção

que transformou a

olfativa da série

vida de Fela Kuti

Diários de Cheiros

60

72

90

PERFIL

PERFIL

ENTREVISTA

TRAJAL HARRELL

CASAIS FORA DE SÉRIE

LOLA ARIAS

O coreógrafo que

Duos artísticos

Seu nome foi usado

introduziu questões

refletem sobre

à revelia no filme

de gênero na dança

questões de gênero

The Square

FOTOS: DUDU QUINTANILLA/ CORTESIA DA ARTISTA/ CORTESIA DO ARTISTA/ DIVULGAÇÃO/ EVA & ADELE, VG BILD-KUNST, BONN 2018

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E D I TO R I A L

8

NÃO SE NASCE MULHER, TORNA-SE*

A autora da imagem de capa da seLecT #38 é Rosa Luz, mulher trans, negra, pobre, performer, estudante de História da Arte e Youtuber, apresentadora do canal Barraco da Rosa. A obra fez parte da exposição Não Podemos Construir o que Não Podemos Imaginar Primeiro, curada por Jota Mombaça e Thiago de Paula Souza para o Paço das Artes, que ficou em cartaz no MIS-SP entre novembro de 2017 e janeiro de 2018.

Desde que abordamos os feminismos contemporâneos, na

de Foucault, Derrida, Butler e Sedwigk, Preciado é biblio-

edição #28, em 2016, os debates sobre representação e iden-

grafia de referência na área. No Brasil, desponta Jota Mom-

tidade de gênero se radicalizam. A edição #38 surge em meio

baça, escritora e performer trans, com sua “desobediência

a uma intensa movimentação social de desmontagem da ló-

de gênero” e envolvimento em estudos Cuir (queer). Autora

gica binária que classifica as pessoas como homens ou mu-

da Curadoria desta edição, Mombaça reúne cinco artistas

lheres, sem dar vez a outras singularidades, subjetividades e

trans em torno de um “programa político dissidente”, em

histórias. Atenção, atenção! O futuro do feminismo passa por

prol da subjetividade e do mistério.

questões de raça, classe e diversidade de gênero.

Casos de abuso – confidenciados no Fogo Cruzado e na entre-

“Tecnologia sofisticada que fabrica corpos sexuais”, segundo

vista de Lola Arias, que acusa o diretor de The Square de auto-

o filósofo Paul B. Preciado (Manifesto Contrassexual, 2002),

ritarismo, machismo e colonialismo – alternam-se com casos

gênero – ou sua divisão entre masculino e feminino – funciona

de amor – os duos artísticos Zackary e Rhys, Gilbert & George

como um conjunto de papéis e práticas sexuais que acabam

e EVA & ADELE, entrevistados pela repórter Luana Fortes. A

por assegurar a exploração material de um sexo sobre o outro.

edição conta ainda com projetos especiais do coletivo Mexa e

“Gênero é um conjunto de normas sociais que vão garantir ao

da artista Josely Carvalho, que realiza uma intervenção olfativa

macho a subserviência da fêmea”, diz a artista Aleta Valente a

sobre fotografia. Tudo isso (e mais Virginia de Medeiros, Trajal

Márion Strecker, redatora-chefe de seLecT, no Portfólio.

Harrell, Hilda Hilst, Sandra Izsadore etc.) faz desta seLecT uma

É no sentido de desorientar, desobedecer e desestabilizar

experiência para todos os sentidos. E todos os corpos.

esse estado das coisas que atuam os artistas, coletivos, curadores, críticos, filósofos, pesquisadores, jornalistas, performers, ativistas transgênero, queer e feministas aqui reunidos. Corpos que desafiam o entendimento de gênero ramificam-se por estas páginas de forma rizomática. A

Paula Alzugaray

começar por Preciado, autor do ensaio que atribui aos ba-

Diretora de Redação

nheiros públicos a mais discreta e efetiva das “tecnologias de gênero”, especialmente traduzido para seLecT. Ao lado

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*Simone de Beauvoir, 1946

MAR/ABR/MAI 2018

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Paolo Ventura • Behind the Walls 2011

Representamos Paolo Ventura com exclusividade no Brasil

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EXPEDIENTE

FUNDADOR: DOMINGO ALZUGARAY (1932-2017) EDITORA: CÁTIA ALZUGARAY PRESIDENTE-EXECUTIVO: CARLOS ALZUGARAY

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EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY

DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN REDATORA-CHEFE: MÁRION STRECKER REPORTAGEM: LUANA FORTES

COLABORADORES

Ana Lima Cecilio, Bianca Dias, Carlos Guilherme Hünninghausen, Gaudêncio Fidelis, Grupo Mexa, Guilherme Altmayer, Josely Carvalho, Jota Mombaça, Mariana Marinho, Paul Beatriz Preciado, Ramiro Zwetsch e Ulisses Carrilho

PROJETO GRÁFICO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO

CONTATO

PUBLICIDADE

Ricardo van Steen e Cassio Leitão Roseli Romagnoli Hassan Ayoub

faleconosco@select.art.br

DIRETOR NACIONAL: Maurício Arbex DIRETORA: Ana Diniz DIRETORA DE MARKETING E PROJETOS: Isabel Povineli GERENTES-EXECUTIVOS DE PUBLICIDADE: Batista Foloni Neto, João Fernandes e Tania Macena GERENTE: Regiane Valente SECRETÁRIA DIRETORIA PUBLICIDADE: Regina Oliveira EXECUTIVA DE PUBLICIDADE: Andréa Pezzuto ASSISTENTE ADM. DE PUBLICIDADE: Ederson do Amaral COORDENADORES: Gilberto Di Santo Filho CONTATO: publicidade@editora3.com.br RIO DE JANEIRO-RJ: COORDENADORA DE PUBLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.: (21) 2107-6667 / Fax (21)2107-6669 BRASÍLIADF: Gerente: Marcelo Strufaldi. Tel.: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 ARACAJU-SE: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962. BELÉM-PA: Glícia Diocesano - Dandara Representações - Tel.: (91) 3242-3367 / 8125-2751. BELO HORIZONTE - MG: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 / 99831783. CURITIBA-PR: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 / 9962-9554. FLORIANÓPOLIS-SC: Anuar Pedro Junior e Paulo Velloso - Comtato Negócios; Tel./Fax: (48) 9986-7640 / 9989-3346. FORTALEZA-CE: Leonardo Holanda - Nordeste MKT Empresarial - Tel.: (85) 9724-4912 / 88322367 / 3038-2038. GOIÂNIA-GO: Paula Centini de Faria – Centini Comunicação - Tel. (62) 3624-5570 / 9221-5575. PORTO ALEGRE -RS: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel./Fax: (51) 3388-7712 / 9985-5564 / 8157-4747. RECIFE-PE: André Niceas e Eduardo Nicéas - Nova Representações Ltda - Tel./Fax: (81) 3227-3433 / 9164-1043 / 9164-8231. BA/SALVADOR: André Curvello - AC Comunicação - Tel./ Fax: (71) 3341-0857 / 8166-5958. VILA VELHA-ES: Didimo Effgen-Dicape Representações e Serviços Ltda. - Tel./Fax (27)3229-1986 / 8846-4493 Internacional Sales: Gilmar de Souza Faria - GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062. MARKETING PUBLICITÁRIO GERENTE: Maria Bernadete Machado ASSISTENTES: Marília Gambaro. REDATOR: Bruno Modulo. DIR. DE ARTE: Pedro Roberto de Oliveira.

ASSINATURAS E OPERAÇÕES

CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

Três Comércio de Publicações Ltda. Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP

(11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES) ASSINE www.assine3.com.br EXEMPLAR AVULSO www.shopping3.com.br

SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661-7320 COMERCIALIZAÇÃO: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA EM BANCAS PARA TODO O BRASIL: FC Comercial e Distribuidora S.A., WWW.SELECT.ART.BR

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PAT R O C Í N I O :

PAT R O C Í N I O :

REALIZAÇÃO:

MINISTÉRIO DA CULTURA

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11 3882 7120 | R. CACONDE, 152. JARDIM PAULISTA. SÃO PAULO – SP.

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COLABORADORES

12

ANA LIMA CECILIO

RAMIRO ZWETSCH

Formada em filosofia pela USP, trabalha no mercado editorial há 12 anos. Foi editora do selo Biblioteca Azul, da Globo Livros, onde editou a obra da Hilda Hilst, entre outros grandes nomes da literatura. Atualmente, escreve a biografia de Hilda Hilst para a Companhia das Letras. - literatura P 94

Jornalista, DJ residente da festa Entrópica, criador do site Radiola Urbana e um dos donos da Patuá Discos. Trabalhou na TV Cultura, onde foi editor-chefe d os programas Metrópolis e Manos e Minas. FOTO: RENATO NASCIMENTO

- entrevista P 86

PAUL BEATRIZ PRECIADO Escritor, curador e ativista transgênero. Conhecido anteriormente como Beatriz Preciado, desde 2016 assina como Paul Beatriz. Autor dos livros Manifesto Contrassexual, Testo Yonqui, Pornotopía e Terror Anal, Preciado é um dos mais influentes pensadores contemporâneos sobre política corporal, gênero e sexualidade. FOTO: LEO FREEMANN

- ensaio P 56

ULISSES CARRILHO

JOTA MOMBAÇA

Curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage e cofundador do Solar dos Abacaxis. Professor do Istituto Europeo di Design, especialista em Economia da Cultura pelo Programa de Pós-Graduaçäo em Economia da UFRGS. - arte e educação P 76

Bicha não binária, nascida e criada no Nordeste brasileiro, escritora e performer. Realiza estudos acadêmicos sobre relações entre monstruosidade e humanidade, estudos Cuir, justiça anticolonial e redistribuição de violência, entre outros. Fez residência artística com o Capacete na Documenta de Kassel, em Atenas. FOTO: ANTHEA SCHAAP

- curadoria P 48

MEXA O grupo utiliza táticas artísticas, como escritura e performance, para defender e promover o encontro da diversidade da população em situação de rua e vulnerabilidade. O grupo formou-se em 2015 e tem composição mutante. - projeto P 80

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CARLOS GUILHERME HÜNNINGHAUSEN Pesquisador, historiador da arte e doutor em Literaturas em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atua como educador, crítico e curador independente em São Paulo, Florianópolis e Porto Alegre. - crítica P 100

GUILHERME ALTMAYER Pesquisador e doutorando em design na linha de comunicação, cultura e artes pela PUC-Rio. Foi um dos curadores da mostra Os Corpos São as Obras, em 2017, dentro do ciclo de arte e ativismo promovido pelo espaço Despina, no Rio de Janeiro. - coluna móvel P 36

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Esse Obscuro Objeto do Desejo Curadoria de Philip Larratt-Smith Miroslaw Balka, Tacita Dean, Iran do Espírito Santo, Félix González-Torres, Douglas Gordon, Roni Horn, Rivane Neuenschwander, Wolfgang Tillmans Galeria (São Paulo) + Carpintaria (Rio de Janeiro)

Criterion/Photofest

17 Março – 28 Abril, 2018

Fortes D’Aloia & Gabriel www.fdag.com.br | info@fdag.com.br

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COMENTÁRIOS

14

REGINA VATER DIDI-HUBERMAN CRÍTICA INSTITUCIONAL AUTOCRÍTICAS MÁRIO PEDROSA

A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A

VERÃO 2018

"Parabéns pela qualidade sempre acima da média dos textos críticos e da editoria da revista. Um oásis" Luiz Camillo Osório, crítico e curador

CRÍTICA O Olhar dos Críticos de Arte I (1978), objeto de Paulo Bruscky

WWW.SELECT.ART.BR

“Vi semana passada a edição da seLecT. Ficou lindo o projeto A História da _rte na revista; obrigado pelo apoio, por acreditar. Aliás, parabéns pelo conteúdo da edição: só discussões importantes. Deu gosto de ler. Vida longa à seLecT”

VERÃO 2018 ANO 05

EDIÇÃO 37 R$ 19,90

ESPECIAL 6ª EDIÇÃO DE ARTISTA FERNANDA CHIECO

EXEMPLAR DE ASSINANTE VENDA PROIBIDA

37

Bruno Moreschi, artista, via e-mail

“Adorei a capa da nova edição, muito boa a obra do Bruscky” Escreva-nos

Gustavo Nóbrega, sócio da Galeria Superfície, via e-mail

Rua Itaquera, 423, Pacaembu, São Paulo - SP CEP 01246-030

“Ficou linda a revista. Parabéns!”

www.select.art.br

Bernardo Mosqueira, curador e fundador do Solar dos Abacaxis (RJ), via e-mail

facebook.com/selectrevista instagram.com/revistaselect twitter.com/revistaselect youtube.com/selectartbr

S E L E C T E X PA N D I D A O N L I N E

plus.google.com/+SelectArtBr

ERRAMOS

POEMA DE HILDA HILST

O poema Dez Chamamentos ao Amigo (in Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão), de Hilda Hilst. bit.ly/poema-hilda

História da crítica O povo Tupinambá não foi extinto, ao contrário do que foi publicado no texto “Dos Tupinambá aos Huni Kuin: arte contemporânea brasileira em risco”, na edição #37.

Fogo cruzado Os créditos das fotos da seção Fogo Cruzado na edição #37 saíram errados. O correto

BIBLIOGRAFIA CUIR/QUEER

VÍDEOS DE ANAÍSA FRANCO

Conheça uma bibliografia básica sobre o Cuir/Queer como território em expansão, com sugestões de leitura compiladas por Guilherme Altmayer.

Assista aos vídeos que compõem os trabalhos Devenir (2013) e Homens Grávidos (2017), da artista Anaísa Franco.

bit.ly/bibliografia-cuir-queer

bit.ly/anaisa-franco

é Vicente de Melo (foto de Luisa Duarte), Patrícia Araujo (foto de Paulo Myiada) e Cortesia Instituto Figueiredo Ferraz/Luiz Cervi (foto de Mirtes Marins de Oliveira).

Edição de artista A obra de Fernanda Chieco foi erroneamente encartada entre as págs. 66 e 67. O correto

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seria entre as págs. 82 e 83.

FOTOS: GUILHERME ALTMAYER/ ACERVO INSTITUTO HILDA HILST/ CORTESIA DA ARTISTA

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S Ã O PA U LO

Mundos Possíveis, de

Suécia. Um dos pontos altos da exposição é a série As Dez

HILMA AF KLINT

3/3 a 16/7, Pinacoteca de

Maiores (1907) (imagem), considerada uma das primeiras

São Paulo, Praça da Luz, 2

e maiores obras de arte abstrata do mundo ocidental. O

| www.pinacoteca.org.br

trabalho antecedeu composições não figurativas de artistas como Kandinsky, Mondrian e Malevich. Mas a produção de Af Klint demorou a ser aceita como “arte verdadeira”, devido ao

Em 2016, seLecT produziu um portfólio sobre a obra da artista

seu caráter espiritual. A artista foi bastante influenciada por

sueca Hilma af Klint (1862-1944), pouco conhecida no Brasil.

movimentos filosóficos místicos, como a Ordem Rosa-cruz,

Dois anos depois, a Pinacoteca de São Paulo apresenta pela

a Teosofia e a Antroposofia. Agora, no entanto, tornou-se

primeira vez na América Latina uma exposição individual

impossível falar sobre a história da abstração sem envolver

da pintora. A mostra inaugura o calendário de 2018 do

sua obra. Como disseram ironicamente as Guerrilla

museu e conta com 130 obras que revelam o pioneirismo

Girls, em As Vantagens de Ser Uma Artista Mulher, Af

de Af Klint na arte abstrata. A curadoria é assinada pelo

Klint teve o privilégio de ser incluída em versões revistas

diretor da instituição, Jochen Volz, em parceria com Daniel

da história da arte. Enfim, a América Latina tem a

Birnbaum, diretor do Moderna Museet, de Estocolmo, na

oportunidade de conhecer o seu trabalho pioneiro. LF

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S Ã O PA U LO

ESTREIA 18

COM

LOIO-PÉRSIO

Galeria Mapa, de 11 a 15/4, SP-Arte/2018, Pavilhão da Bienal, Parque do Ibirapuera, Av. Pedro Álvares Cabral, s/n Com estande duplo no setor Repertório, a Galeria Mapa estreia na SP-Arte/2018 com um solo show de Loio-Pérsio que tira do isolamento um precursor da arte abstrata no Brasil. Loio-Pérsio Navarro Viera de Magalhães (1927-2004) iniciou sua trajetória artística em Curitiba, no fim da década de 1940, com uma pintura baseada em ampla liberdade dos meios de expressão, o que rapidamente a

identificou

com

o

abstracionismo

informal então nascente no Brasil. O artista manteve-se fiel ao informalismo até a fase em que predominam os grafismos e os aspectos quase geométricos. Segundo o crítico Agnaldo Farias em texto de 1999, “note-se que não se trata de pintura confeccionada com linhas retas, traçadas com o auxílio de um instrumento, nem, tampouco, de planos homogêneos de cores industriais”. A alternância entre razão e intuição, os altos timbres de vibração cromática e a presença rítmica que os volumes atingem na tela são aspectos marcantes da última fase (1984-2004), exposta na SP-Arte. “Vizinhos da música”, segundo Farias, esses trabalhos (acima, Reis Magos, 1991) definitivamente iluminam um período da história da arte brasileira e ressoam com força, diante de seus pares expostos no prédio vizinho à Bienal, na mostra Oito Décadas de Abstração Informal (MAM-SP). PA

S Ã O PA U LO

SP-ARTE/2018

De 11/4 a 15/4, Pavilhão da Bienal, Parque do Ibirapuera, Portão 3 | www.sp-arte.com

A SP-Arte chega à 14ª edição estimulando atividades que extrapolam características típicas de feiras de arte. O evento busca promover a formação de público e oferece visitas guiadas, lançamentos de livros e ciclos de debates. O setor Repertório, que tem como foco trabalhos de arte produzidos até 1980, segue com curadoria de Jacopo Crivelli e destaca trabalhos de artistas como o francês Christian Boltanski, o chinês Chen Zhen e os brasileiros Iole Saldanha e Victor Gerhard. Já o setor Solo, pela terceira vez curado por Luiza Teixeira de Freitas, traz artistas contemporâneos, como o russo Ilya Fedotov-Fedorov (à dir. Tipos de Criaturas, 2017) e a brasileira Marina Weffort. Além disso, em um ambiente concebido para performances, serão apresentados cinco trabalhos de longa duração, selecionados por Paula Garcia. A novidade do ano fica por conta da área dedicada ao Design. Em 2018, o evento conta com um espaço reservado para promover trabalhos independentes de novos designers, que ainda não produzem em larga escala. Nos dias que antecedem a feira, 9 e 10 de abril, o público já pode começar a entrar no clima com o circuito de galerias Gallery Night, organizado pela SP-Arte. LF

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FOTOS: CORTESIA FUNDAÇÃO HILMA AF KLINT, ALBIN DAHLSTROM, MODERNA MUSEET/ CORTESIA FRAGMENT GALLERY/ DIVULGAÇÃO

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N OVA YO R K

INVENTING MODERN ART IN BRAZIL

20

Tarsila do Amaral, até 3/6/18, Mu-

O movimento antropofágico brasileiro foi duas vezes

seum of Modern Art (MoMA)

redescoberto entre nós: pelos tropicalistas, nos anos 1960,

11 West 53 Street, NY , www.moma.org

e pela curadoria da 24ª Bienal de São Paulo, encabeçada por Paulo Herkenhoff, nos anos 1990. Agora é a América que descobre a capacidade brasileira de devorar a cultura internacional dominante e vomitar de volta a paisagem e a cor vernacular. Tarsila do Amaral: Inventing

Modern Art in Brazil, no MoMA-NY, confere a Tarsila o pioneirismo não apenas do modernismo brasileiro, mas da história da arte moderna na América Latina. Embora a historiografia brasileira seja consensual na atribuição da invenção do modernismo a Anita Malfatti – com O Homem Amarelo (1915-1916) –, Luis Pérez-Oramas, curador da mostra, afirma não se pautar na cronologia para defender o pioneirismo de Tarsila. “Não considero Tarsila a única figura fundacional do modernismo brasileiro, mas,

certamente,

uma

das

principais

figuras

que o moldaram”, diz Pérez-Oramas à seLecT. “Tarsila, além de ser uma grande pintora e uma extraordinária desenhista, como Anita, é – adicionalmente – uma figura emblemática, o que Luckacs chamaria de ‘figura-tipo’ da modernidade brasileira. Sem dizer que Tarsila continua a alimentar a imaginação de nomes contemporâneos como poucos artistas ativos durante a década de 1920”, diz Oramas. Entre os destaques da exposição está a reunião de suas três mais emblemáticas pinturas: A Negra (1923), Abaporu (1928) e Antropofagia (1928). Integra também a curadoria a primeira obra de Tarsila a ser adquirida para o acervo do MoMA, Estudo de Composição (Figura só) III (1930) (acima). “Esse estudo foi feito após a traumática separação de Oswald de Andrade. Podemos sentir a solidão naquele momento de sua vida”, diz Tarsilinha, sobrinha-neta e administradora do espólio da artista. PA

N OVA YO R K

PROJETO COLABORATIVO EM TriBeCa

Luciana Brito NY Project, 186 Franklin Street, Manhattan, www.lucianabritogaleria.com.br

As colaborações entre Luciana Brito e Carlos Junqueira começaram nas feiras de arte contemporânea que a galerista realiza nos EUA. Na última Miami Art Basel, a Espasso, galeria especializada em arquitetura e design brasileiros estabelecida em NY, Los Angeles e Londres, mobiliou o estande da Luciana Brito Galeria com poltronas de Lina Bo Bardi e de Sergio Rodrigues, e uma coffee table de Giuseppe Scapinelli. O modelo de parceria deu certo e ganhou terreno em um espaço de 400 metros quadrados em TriBeCa, bairro de design e gastronomia em downtown Manhattan. Luciana Brito NY Project abriu em setembro de 2017 com uma exposição do Grupo Ruptura. Ao todo, 50 trabalhos de Geraldo de Barros, Lothar Charoux e Waldemar Cordeiro, entre outros, foram colocados em diálogo com peças de mobiliário de Joaquim Tenreiro e Oscar Niemeyer. Em 6/3, a dupla abre uma coletiva com artistas e designers dos elencos das duas galerias em diálogo com artistas de Nova York. O NY Project tem previsão de acontecer até setembro de 2018 e endossa a ênfase que a Luciana Brito Galeria tem dado à arquitetura, desde que transferiu sua sede paulistana para a casa projetada por Rino Levi nos anos 1950. PA

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FOTOS: TARSILA DO AMARAL LICENCIAMENTOS/ ELISEU CAVALCANTI

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Tuagência

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Doma 11/04 - 26/05 Terça a sexta 10h - 19h Sábado 10h - 17h detalhe |

participação na SP-ARTE/2018

Rua Cardoso de Almeida, 1285 | Perdizes | São Paulo | SP +55 113868 0050 | oi@adelinagaleria.com.br adelinagaleria.com.br

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S Ã O PA U LO

Vania Toledo, até 5/5/18, Museu da Diver-

TARJA PRETA

sidade Sexual, estação República do metrô, Rua do Arouche, 24 | www.mds.org.br

A fotógrafa brasileira Vania Toledo, reconhecida sobretudo por retratos P&B, apresenta recorte de sua produção na exposição Tarja Preta. Com curadoria de Diógenes Moura, a mostra revela a efervescência cultural brasileira do fim do século 20, tocando em assuntos como gênero e sexualidade. Toledo fotografou pessoas singulares da noite LGBT, além de personalidades da cultura pop nacional, como o cantor Ney Matogrosso e o estilista Clodovil. Coerentemente, a mostra é abrigada pelo Museu da Diversidade Sexual (MDS), que busca preservar, pesquisar, registrar e divulgar o patrimônio cultural da comunidade LGBT. O museu foi criado em 2012 pelo governo do estado de São Paulo e tem como sede uma sala no mezanino da estação República do metrô. “Existe um marco também nessa região”, conta à seLecT Luis Sobral, diretor da Organização Social que administra o MDS. “Foi na Praça da República que o adestrador de cães Edson Neris foi assassinado por skinheads no ano 2000, sendo este o primeiro crime atribuído à homofobia pela mídia”, continua. A fotógrafa fez alguns retratos especialmente para a exposição, entre eles da cartunista Laerte, da rapper Luana Hansen e de integrantes da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. LF

S Ã O PA U LO

Vida cotidiana, pintura

MARIA AUXILIADORA

e resistência, de 10/3 a 10/6/18, Masp, Av. Paulista, 1.578 | www.masp.org.br

Dando início à programação de 2018, dedicada a histórias afro-atlânticas, o Masp recebe grande exposição da artista autodidata Maria Auxiliadora. Na contracorrente do que normalmente se afirma sobre a sua produção, a mostra pretende desviar de rótulos como arte popular, primitiva, naïf ou afro-brasileira. Os curadores Adriano Pedrosa e Fernando Oliva optaram por dividir as obras de acordo com os temas mais habituais de Auxiliadora, que incluem manifestações populares e candomblé, umbanda e orixás. Entre os 82 trabalhos expostos (à dir. Sem Título [Ogum], 1973), destaca-se o protagonismo do negro, a renúncia pelo uso tradicional da perspectiva e o efeito de alto-relevo. A artista misturava tinta a óleo e massa plástica com mechas do próprio cabelo. Além da exposição, o Masp organiza um catálogo com ensaios inéditos, textos históricos e uma nota biográfica. A publicação é o mais completo livro já lançado sobre Maria Auxiliadora. LF

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FOTOS: VANIA TOLEDO/ JORGE BASTOS

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VALÉRIA WEBER 06 a 23 Março PAULA CLERMAN 04 a 27 Abril SP ARTE 12 a 15 Abril HACHEM MARINA H 08 a 25 Maio EVANDRO SOARES 05 a 29 Junho

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Rua Cônego Eugênio Leite, 240 - Jardim América/SP (11) 3063-4630

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artehall

www.artehall.com.br

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RIO DE JANEIRO

DEZ ANOS DE CARNAVAL-ARTE

24

Baile do Sarongue comemora com festa regada a cinco instalações artísticas

Um happening coletivo, jogo artístico com acesso cifrado como um tesouro. A chave deve ser adquirida em cantos insuspeitos da cidade do Rio, como um quiosque de chaveiro, em uma esquina do bairro de Botafogo. A divulgação é boca a boca e quem desenha o mapa do tesouro é Marcus Wagner, o fundador do Baile do Sarongue, festa itinerante que acontece toda quinta-feira pré-Carnaval, desde 2008. Os temas dos últimos três anos refletiram o momento do País. “O Carnaval revela e potencializa essa experiência. O reinado momesco inverte e sublima as tensões cotidianas em sonhos e fantasias”, diz Marcus Wagner. Abissal foi o tema de 2016, ano do impeachment; depois veio o “turbilhão”, com a convulsão social. Por sua vez, 2018 é o ano do xamã. “É o momento de ligar o espírito à natureza”, diz Wagner. De destilar as frustrações e expurgar os traumas de uma cidade

C

e de um país castigados pela picardia de seus representantes.

M

Cinco artistas foram convidados para criar as alegorias

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xamânicas deste momento de virada: Janaina Tschäpe, Maria

CM

Nepomuceno, Siri, João Modé e Márcio Arqueiro. A dupla de

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arquitetos Pedro Évora e Israel Nunes assinam o happening da fila de entrada do baile: o Desfila.Outra novidade é o ateliê

CY

Saturnália – bazar, música e concurso de fantasias no esquenta,

CMY

duas semanas antes da festa. Laura Lima (à esq.) participou do

K

concurso. O intuito de Marcus Wagner com tudo isso é religar a tradição do baile carnavalesco de salão com a experimentação artística contemporânea. Ao modo de eventos históricos, como o baile que Lasar Segall promoveu em 1924, explorado em um livro que o autor de Rio Cultura da Noite (Casa da Palavra, 2014) está escrevendo. “O baile é a realização total da arte”, anuncia. PA

qu ma

S Ã O PA U LO

ENTRE AMANHÃ E ONTEM, OU OS CAMINHOS DO DESVIO

Nicolás Paris, de 3/4 a 26/5/18, Galeria Luisa Strina, Rua Padre João Manuel, 755 | www.galerialuisastrina.com.br

Após deixar sua marca em setores educativos de grandes museus do mundo, o colombiano Nicolás Paris apresenta individual na Galeria Luisa Strina. O artista enxerga espaços expositivos como ferramentas para a interação entre pessoas e objetos. Seus trabalhos normalmente pressupõem a participação do público (à

dir. detalhe da instalação Petricor II, 2016). Por isso, a exposição busca reunir conteúdos diversos na tentativa de configurar uma pedagogia da produção de Paris. A individual ainda contará com workshops voltados para equipes educativas de museus paulistanos. LF

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FOTOS: DIVULGAÇÃO/ CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA ELBA BENÍTEZ, MADRID, LUISA STRINA, SÃO PAULO

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GALERIA EDUARDO FERNANDES

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“O vôo das aves numa mesma direção é mais uma representação dos ciclos naturais que se repetem, tema recorrente no meu trabalho. Como o ciclo das estações, do movimento das marés, o ciclo da agua, através das árvores, o processo da fotossíntese... É esse movimeto contínuo que faz a vida existir e que interliga todas os seres.”

Exposição

CLAUDIA MELLI

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S Ã O PA U LO 26

REVOLTA LILITH

Martha Kiss Perrone, de 15/3 a 25/3/18, Casa do Povo, Rua Três Rios, 252 www.casadopovo.org.br

Mulheres desobedientes, criminosas, bruxas, secundaristas, normalmente retiradas de grandes narrativas, agora protagonizam a peça Revolta Lilith, de Martha Kiss Perrone. O espetáculo trata do mito de Lilith, a primeira mulher de Adão, que se recusou a ser submissa e fugiu do Paraíso, partindo para o deserto. A peça é dividida entre os atos Fuga do Paraíso, Exílio e Revolta. Uma câmera acompanha as atrizes em cena, enquanto as imagens são projetadas ao vivo. O coletivo Fronte Violeta é encarregado da música, também ao vivo. A equipe por trás da obra é inteiramente composta de mulheres. LF

S Ã O PA U LO

FILHXS DO FIM

Daniel Lie, até 24/3, Casa Triângulo, Rua Estados Unidos, 1.324 www.casatriangulo.com

Ao longo de 2018, a Casa Triângulo apresenta intensa programação para comemorar seus 30 anos de atividades. Estão previstas exposições de Rodolpho Parigi, Manuela Ribadeneira, AVAF, Ivan Grilo, Lucas Simões, Albano Afonso, Alex Cerveny, Daniel Acosta e Daniel Lie, que inaugura a agenda com individual. Lie também celebra 30 anos de idade em 2018. Sua mostra acontece durante a quaresma, período que antecede a celebração da ressurreição de Cristo, e é construída como uma espécie de altar para a morte. Diferente de como o fim da vida é entendido pela concepção ocidental, Lie trata-o como uma expansão da experiência do sentir. “A morte é energia e tem uma relação intrínseca com a vida”, diz o artista à seLecT. Filhxs do Fim é tanto o título da exposição quanto o da grande instalação que a compõe. Ocupando a sala principal da galeria, o trabalho traz uma combinação de elementos naturais, como flores, sementes e fungos, que exaltam a impermanência das coisas. Enquanto alguns desses elementos caminham na direção da morte, outros brotam ou proliferam. O público é convidado a vivenciar esse ambiente e refletir sobre o fim como um novo nascimento (à esq. outra ver-

são do trabalho, com título Centro de Morte para os Vivos, 2017). Entre as referências de Lie, simbologias de rituais africanos e asiáticos são recorrentes. “Meu interesse e meu respeito por ambas vêm da busca por uma ancestralidade mais próxima”, conta. LF

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FOTOS: DIVULGAÇÃO/ DANIEL LIE

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MADRI

CHUS MARTÍNEZ E O FUTURO

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Curadoria na ARCOmadrid 2018 quer mostrar como o conceito de futuro ajuda a lidar com temas tão atuais quanto gênero, natureza e tecnologia

Quando a seLecT #38 chegar às mãos dos leitores, a ARCOmadrid 2018 já terá acontecido de 21 a 25/2. No entanto, quando este texto foi escrito, a feira madrilena ainda era um evento futuro. Com a escolha do Futuro como conceito central desta 37ª edição e tema de exposição curada por Chus Martínez (abaixo) [curadora da dOCUMENTA (13) e atual diretora artística da FHNW Academy of Arts and Design, Basel], tornouse inevitável recorrer ao passado. Há mais de cem anos, o movimento artístico Futurismo posicionava-se em relação à velocidade do mundo industrial. Quais seriam as ansiedades que movem hoje a ideia de futuro? “Relacionar o futuro com o Futurismo nesse contexto é um Brasil Nativo - Brasil Alienígena (1977), cartãopostal de Anna Bella Geiger

movimento muito eloquente. Normalmente, esse termo é interpretado em seu sentido ‘temporário’, pensando que ele possui a capacidade de revelar características de um devir”, diz Chus Martínez à seLecT. “O desafio hoje é pensar sobre o futuro sem assumir que essa noção

ANNA BELLA GEIGER

tenha qualquer capacidade de predição. Dizer ‘futuro‘ é nomear uma questão filosófica, nossa relação com o presente em uma chave que

Geografia Física e Humana, a partir de 9/3,

transcende os fatos, nomeia nosso desejo, mas também a maneira

MUNTREF, Buenos Aires | untref.edu.ar/muntref

histórica pela qual nos colocamos em relação ao passado. Sua forma

Aqui É o Centro, de 23/3 a 8/4/18, Wallach Art

simples: pensar que o futuro é amanhã e que alguns indivíduos são

Gallery, Nova York | wallach.columbia.edu

capazes de dar-lhe um aspecto que pode ser vislumbrado hoje, é uma

Paisagem Humana, a partir de 15/3, Mendes

ideia tão bonita quanto romântica. Existem outras formas de futuro.

Wood DM, Bruxelas | mendeswooddm.com

O futuro pode ser considerado quantum, como uma simultaneidade

Videoarte Agora Videoarte, a partir de 31/3,

de realidades que coabitam, que não necessariamente participam da

A Gentil Carioca, Rio de Janeiro | agentilcarioca.com.br

lógica desenvolvimental e maximalista, que não aceleram qualquer característica do presente, mas multiplicam milhares de conhecimentos

Além de uma ampla participação em

que existiram sempre. Essa multiplicação não tem características

exposições coletivas do festival de arte latino-

definidoras únicas, mas abre-se a problemas antigos. É esse segundo

americana Pacific Standard Time: LA/LA,

significado da ideia do futuro que considero a arte ativa.” PA

Anna Bella Geiger marca presença em mais quatro mostras durante 2018. Sua individual Geografia Física e Humana, que estava em cartaz até fevereiro no centro cultural La Casa Encendida, em Madri, chega a Buenos Aires em março, no Museo de la Universidad Nacional de Tres de Febrero (MUNTREF). No mesmo mês, a artista inaugura individuais em Nova York, com curadoria de Olivia Casa, e em Bruxelas, na Mendes Wood DM, com curadoria de Carolyn Drake. Para completar, Geiger uniu-se a Fernando Cocchiarale para organizar uma coletiva de videoarte na Galeria A Gentil Carioca, no Rio. LF

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FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA/ NICI JOST

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RIO DE JANEIRO

VADIOS E BEATOS Até 17/4, Galeria da Gávea, Av. 30

Marquês de São Vicente, 432 | www.galeriadagavea.com.br Nos próximos três anos, a Galeria da Gávea organizará anualmente exposições relacionadas ao Carnaval brasileiro, cada uma com curadoria distinta. Quem inaugura o projeto é Marcelo Campos com a coletiva Vadios e Beatos. O curador partiu do parecer sobre arte brasileira de um dos primeiros teóricos nacionais da área, Gonzaga Duque. No fim do século 19, Duque acreditava que não havia futuro para a produção artística no País, especialmente levando em conta a população carioca, considerada por ele paradoxalmente vadia e beata. Mas é diante dessa mistura intensa que é possível enxergar características particulares do Brasil, exacerbadas em festividades como o Carnaval. Campos, então, selecionou trabalhos que lidam com ritos identitários desse tipo. Entre os artistas estão Bruno Veiga (acima, Noite dos Tambores Silenciosos, 2010), Carlos Vergara, Claudio Edinger e Bina Fonyat. LF

I TA PA R I C A

MARÉ Maurício Adinolfi, Instituto Sacatar | www.sacatar.com.br Durante residência artística no Instituto Sacatar, na Ilha de Itaparica, Bahia, Maurício Adinolfi realizou a instalação site-specific Maré (á dir.), com um antigo barco de madeira encontrado no mangue. Içou o barco com cabos marítimos e pendurou-o em uma árvore Amendoeira, com a intenção de devolver o objeto feito pelo homem à sua matéria-prima. O trabalho ainda se relaciona diretamente com as marés. Com uma bomba d’água, um motor é acionado quando o mar está cheio, deixando a água escorrer pelo barco, e o movimento é interrompido quando a maré fica vazante. LF

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FOTOS: BRUNO VEIGA/ CORTESIA DO ARTISTA

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Lisboa 17 20 Maio

Feira Internacional de Arte Contemporânea International Contemporary Art Fair arcolisboa.com

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VIA E-M@IL, ENCONTRO COM ARTISTAS BRASILEIROS 32

de Claudius Portugal, P55 Edição, 288 págs., R$ 100 Edição bilíngue ilustrada reúne entrevistas curtas

SERGIO RODRIGUES / DESIGNER

com 43 artistas que

de Fernando Mendes

Galeria, de Salvador, ao

e Baba Vacaro (org.), Bei

longo dos anos. Entre os

POEMA/PROCESSO: UMA VANGUARDA SEMIOLÓGICA

Editora, 240 págs., R$ 120

artistas estão Mestre Didi,

de Gustavo Nóbrega (org.), Editora WMF Martins Fontes, 320

Com base em farta docu-

Tunga e Amilcar de Castro.

págs., R$ 120

mentação do Instituto Sergio

Resultado de dois anos de uma pesquisa de fôlego do galerista

Rodrigues, o livro mostra a

Gustavo Nóbrega, o livro traz panorama histórico da poesia visu-

gênese de ícones do mobiliá-

al no Brasil. A publicação apresenta as principais ações e obras

rio brasileiro, como a poltrona

do grupo Poema/Processo, fundado em 1967 por Wlademir Dias

Mole e o banco Mocho. Rica-

Pino, Alvaro de Sá, Neide Sá e Moacy Circe, entre outros.

mente ilustrado com fotos e

expuseram na Paulo Darzé

croquis do arquiteto. Artigos de Afonso Luz, Claudia Morei-

ARQUITETURA DO CENTRO DE SÃO PAULO

3NÓS3 INTERVENÇÕES URBANAS 1979-1982

de Fernando Serapião, Edi-

de Mario Ramiro (org.), Ubu

tora Monolito, 304 págs., R$ 192

Editora, 240 págs., R$ 76

O livro analisa o boom

O livro, fartamente ilustrado,

imobiliário ocorrido no

é organizado por um dos

MACUNAÍMA, O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER

centro de São Paulo entre

integrantes do grupo 3Nós3.

de Mário de Andrade, Ubu

a Segunda Guerra Mundial

O grupo, formado também

Editora, 272 págs., R$ 69,90

e a construção de Brasília.

pelos artistas Rafael França

Edição primorosa, com

Destaca 15 dos principais

e Hudinilson Jr., atuou por

texto estabelecido por

projetos arquitetônicos, sendo

apenas três anos, quando

Telê Ancona Lopez e

o mais recente o Sesc 24 de

realizou intervenções

Tatiana Longo Figueiredo,

Maio. Traz ainda mapa, fotos

urbanas memoráveis em

de Leonardo Finotti e artigos

São Paulo e na mídia. O

de autores como Joana Mello de Carvalho e Silva.

ra Salles e dos organizadores.

prefácios inéditos dos anos 1920 e glossário

projeto foi contemplado pelo

MÓVEL MODERNO BRASILEIRO

Rumos Itaú Cultural.

de Alberto Vicente

Ilustrada por monotipias

e Marcelo Vasconcellos

de Luiz Zerbini.

de Diléa Zanotto Manfio.

(org.), Editora Olhares, 484 págs., R$ 340 O volume classifica o trabalho de 15 designers do mobiliário brasileiro entre os anos 1940 e 1970, como Lina Bo Bardi, Joaquim Tenreiro, José Zanine Caldas e Jorge Zalszupin. Com perfis biográficos e textos de Maria Cecilia Loschiavo e Tatiana Sakurai.

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A Step Away from Them, excerpt from Lunch Poems by Frank O’Hara. Used by permission of City Lights Books. Photography: Clément Pascal.

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S Ã O PA U LO

DIÁRIOS DE CHEIROS: TETO DE VIDRO Josely Carvalho, de 3/3 a 6/5/18, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Av. Pedro Álvares Cabral, 1.301/ www.mac.usp.br A intervenção olfativa que Josely Carvalho criou especialmente para a seLecT (à dir.) integra o projeto Diários de Cheiros: Teto de Vidro, em exposição no MAC-USP até maio. A obra é um projeto especial da revista, que abriga em suas páginas novos formatos de criação artística. O trabalho contém um “cheiro de estilhaço” incorporado à fotografia impressa e produzido pela artista após quase dez anos de pesquisas. Desde o ano 2000, Josely Carvalho coleciona taças de vinho quebradas ao acaso. “No estilhaço do vidro me encontro com o cheiro do momento que a taça se rompeu – cheiro de um sonho de amor perdido, uma celebração quase esquecida, um ritual interrompido, uma raiva violenta, uma saudade dolorosa”, diz à seLecT. Das memórias derivaram 12 cheiros, elaborados pela artista com o apoio da Givaudan do Brasil e aplicados em nanocápsulas com o apoio da Ananse. Eles compõem duas instalações interativas, “resultado da necessidade de encapsular a fragilidade de um momento numa fotografia e de preservar sua memória em um cheiro”. Inspirada nos estilhaços de vitrines quebradas nas manifestações de rua que ocorreram no Rio de Janeiro em 2013, a instalação Resiliência exala os aromas pimenta, lacrimae, anóxia, barricada, poeira e dama-da-noite. Composta da coleção de taças quebradas, a instalação Estilhaços tem cheiro de prazer, ilusão, persistência, vazio, ausência e afeto. Os mitos, padrões e convicções metaforicamente rompidos pela artista na exposição do MAC-USP refletem o caráter disruptivo de sua poética desde os anos 1970. Diários de Imagens e Diários de Cheiros são projetos que operam na desconstrução dos formatos sociais de regulação do corpo, na quebra de “barreiras não visíveis e intangíveis” e de “preconceitos que excluem o outro por diferenças de cor, sexo, religião e opinião política”. Radicada entre o Rio de Janeiro e Nova York, Josely Carvalho é uma das 120 mulheres latino-americanas radicais reunidas na mostra que ocupou o Hammer Museum, em Los Angeles, em 2017, e que ocupará a Pinacoteca do Estado de São Paulo a partir de agosto. PA

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À dir.,Teto de Vidro: dos Estilhaços à Resiliência (2015-2018), projeto olfativo especialmente produzido para seLecT

FOTOS: JOSELY CARVALHO (ACIMA) / CORRADO SERRA (À DIR.)

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Teoria e prática em temporada de outono

Jacqueline Moraes Teixeira

antropóloga

Sexualidade e gênero em perspectiva

Introdução a Michel Foucault e Judith Butler 26/3, 2/4, 9/4, 16/4, 30/4, 7/5 Segundas, das 20 às 23h00

Lia Chaia, artista Quem tem medo do corpo?

A representação do corpo na arte contemporânea e na arte performática 28/3, 4/4, 11/4, 18/4 Quartas, das 20 às 22h00

Felipe Martinez, economista e historiador Arte e mercado

5/4, 12/4, 19/4, 26/4 Quintas, das 20 às 22h00

Gênero, sexualidade, corpo e performance, documentário e narrativas transmídia, mercado, linguagem escultórica, aquarela e tecnologia em cursos e oficinas

Artur Lescher, artista Poéticas da escultura

Exercícios práticos de linguagem e de materiais 27/3, 3/4, 10/4, 17/4 Terças, às 16h00

Ricardo van Steen, artista Pensar em camadas

Práticas de aquarela Módulos 1 e 2 4/4, 11/4, 18/4, 25/4 Quartas, das 17 às 19h30

Daniela Bousso, curadora, e Lucia Santaella, pesquisadora A condição disruptiva da arte contemporânea

3/4, 5/4, 10/4, 12/4 Terças e quintas, das 17 às 19h30

Marcia Mansur, documentarista, e Marina Thomé, pesquisadora Narrativas transmídia & patrimônio cultural

Ateliê prático de formatação de projetos audiovisuais multiplataformas 19/4, 20/4, 21/4, 22/4 Segunda a quinta, das 19h30 às 22h30

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COM A PALAVRA, O ARTISTA FORMADOR Nova edição de Prêmio acontece em agosto de 2018 Artistas e formadores empenhados em fortalecer os laços entre arte e educação podem se preparar para o 2º Prêmio seLecT de Arte e Educação, criado para reconhecer e incentivar escolas, instituições, espaços de ensino, grupos de estudo, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras. A nova edição, patrocinada pela Galeria Almeida e Dale, acontece a partir de agosto de 2018. Serão concedidos dois prêmios em dinheiro para as categorias ARTISTA e FORMADOR, para projetos realizados em todo o Brasil no biênio 2017/2018. As inscrições abrem em abril.

PARA LER O REGULAMENTO E ACOMPANHAR NOTÍCIAS QUENTES SOBRE O PRÊMIO, ACESSE O SITE WWW.PREMIO-SELECT.COM.BR

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CO LU N A M Ó V E L

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APONTAMENTOS PARA UMA CARTOGRAFIA: O CUIR/QUEER COMO TERRITÓRIO EM EXPANSÃO

G U I L H E R M E A LT M AY E R

SELECT.ART.BR

EM TEMPOS EM QUE O TERMO QUEER GANHA MAIOR VISIBILIDADE, este breve texto se aproxima de algumas

vertentes de práticas políticas cuir/queer a partir de enunciados de autores do Norte e do Sul globais, provendo o leitor de alguns subsídios para aprofundamento nas leituras e práticas cuir/queer. No fim da década de 1980, sapatões, bichas, travestis e feministas, acadêmicas e ativistas, provenientes de movimentos tais como o ACT UP, de luta por políticas públicas diante da epidemia de Aids, descontentes com as políticas identitárias normativas então em curso, dedicaram-se a expandir um campo que veio a ser chamado, por teóricos estadunidenses, de estudos queer. Um campo pensado para a crítica e desconstrução de mecanismos discursivos identitários e binários, propagados por dispositivos cisheteronormativos; e como lugar possível onde múltiplos corpos desclassificados e historicamente marginalizados produzam saberes a partir de suas próprias práticas e existências. Trata-se, portanto, do engendramento de estratégias de contraconduta e de enfrentamento à sistemática dos discursos de promoção de um sujeito “normal”, heterocapitalista, estruturante da hierarquização socioeconômica, a partir de binarismos de gênero e sexo indissociáveis de práticas que perpetuam também violentas desigualdades sociais e raciais. Podemos entender os estudos queer como um campo estético, político e teórico de rompimento com lógicas de dominação, invisibilizadoras de corpos, sexo e gênero dissidentes: a categoria de gênero, segundo Judith Butler, trata-se de um constructo histórico e social – performativo – que deve, portanto, questionar seus enunciados de coerência entre sexo, gênero e desejo. Guacira Lopes Louro, uma das precursoras dos estudos queer no Brasil (aportados aqui no início deste século via Academia), defende que, em vez de buscar uma nova identidade, as práticas queer pretendem afirmar-se na diferença. Por meio da resignificação de injúrias, como bicha, sapatão e travesti, configuram-se estratégias de resistência e sobrevivência, como se deu com o próprio termo queer, de origem anglo-saxã, igualmente de cunho depreciativo. Uma empreitada transdisciplinar impregnada por aportes oriundos do Norte, tais como a desconstrução de verdades por Jacques Derrida, a história da sexualidade de Michel Foucault, a performatividade de gênero em Judith Butler, a epistemologia do armário por Eve Sedwigk e a contrassexualidade de Paul B. Preciado; mas não só, também atravessada pelo pensamento pós-colonial em Stuart Hall e Gayatri Spivak, críticas ao queer coloniza-

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de sustentação de um sistema de sexualidades que, segundo Guy Hocquenghem, seria um motor central de produção de subjetivações capitalistas centrado no falo (público). Refletir a partir de práticas anais seria, para Paul B. Preciado, uma forma de dissolver a oposição entre hétero e homossexual, entre ativos e passivos, deslocando a sexualidade a partir do pênis que penetra o cu receptor, como forma de borrar as linhas que segregam gênero, sexo e sexualidades, que expõe as fragiBandeira BAFO 1, 2015, de Tertuliana Lustosa, na mostra Os Corpos São as Obras, curada por Guilherme lidades constitutivas do sujeito Altmayer e Pablo León de La Barra no espaço de arte Despina, no Rio de Janeiro, em 2017 tradicional heteronormativo. Levando-se em conta que o Brasil lidera o extermínio sistemático das populações LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e dor de Hija de Perra, investigação de territórios margiIntersexuais) no mundo, é mais do que urgente pôr nais de Nestor Perlongher, devassos no paraíso de João foco sobre esse debate, porém, com o intuito de articular Silvério Trevisan, proposição transviada de Berenice Benestratégias de fato eficazes para a sobrevivência de uma to, inflexões decoloniais de corpos de Viviane Vergueiro multiplicidade de corpos dissidentes. Sendo assim, não e redistribuição desobediente da violência de gênero de basta se apropriar do termo queer, muito menos por meio de Jota Mombaça, entre muitos outros. alegorizações distanciadas dxs sujeitxs transviadxs. Cuir, escrito com “c”, é uma tradução de como se lê queer Pessoas estas fetichizadas por uma intelectualidade coloniem castelhano, propositalmente mal-acabada, descomprozadora, capitalizadas pelo sistema operativo das artes e obmissada com sua forma original nos trabalhos de autorxs jetificadas pelo shopping queer: processo de gentrificação de latino-americanxs dedicadxs ao tema, que buscam maior comportamentos e desejos que se apropria das subjetividaproximidade com as realidades do Sul global, e de sua farta des desses corpos, usurpando seus lugares de fala e ocupando produção acadêmica e estético-política, algumas das quais seus espaços de autorrepresentação. mencionadas no parágrafo anterior. É preciso entender cuir/queer não como uma identidade fixa, Cuir, quando lido em português, também remete ao cu, como mas como um campo de articulação política de alteridades acesso àquilo que é mantido escondido. É nesse sentido que e de práticas de descolonização do próprio corpo, sobretudo Larissa Pelúcio sugere tratar os estudos queer como estudos em tempos de violentos processos de normatização de comcu, em uma tradução provocadora, pouco palatável, para que portamentos em uma sociedade de controle – com evidente o campo se abra para novas possibilidades de contestação. viés classista, racista, patriarcal, machista, homolesbobitransAo ser reiteradamente tornado abjeto, um lugar intocáfóbico, autoproclamada neoliberal e neopentecostal – que invel para muitos, o cu (privado) se tornaria uma das bases siste em controlar nossos afetos, bucetas e cus.

se L ec T expandida :

Conheça

bibliografia sobre o cuir / queer como território em expansão em bit . ly / bibliografia - cuir - queer FOTO: GUILHERME ALTMAYER

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A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L

ARTE + SEXUALIDADE

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Verbetes e projetos do Itaú Cultural mostram como reflexões sobre gênero e sexualidade têm envolvido a produção artística brasileira nas últimas décadas VERBETES

MARCIA X Márcia Pinheiro de Oliveira (Rio de Janeiro, 1959-2005). Artista visual. No início dos anos 1980, frequenta a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Em 1987, realiza, em parceria com Alex Hamburger (1949), uma intervenção na peça Winter Music, de John Cage (1912-1992), no Rio de Janeiro, invadindo o palco com dois velocípedes. A proposição de situações como essa busca questionar o papel da arte por meio do humor e do estranhamento, características de suas obras. A partir dos anos 1990, produz obras com objetos industrializados, apropriando-se de seus aspectos simbólicos. Seus trabalhos abordam, de forma direta e provocativa, temas como sexualidade, erotismo, consumo, valores sociais e religiosos, discutindo não só questões estéticas, mas também éticas e políticas. A partir de 2000, dedica-se com maior ênfase aos trabalhos de performances, associadas também ao vídeo e à Instalação.

HUDINILSON JR. Hudinilson Urbano Júnior (São Paulo, 1957-2013). Artista multimídia. Inicia seu aprendizado artístico nas sessões de filmes sobre arte exibidos no Museu Lasar Segall, no início dos anos 1970. Entre 1975 e 1977, cursa artes plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Produz arte postal, grafite e integra, com Alex Vallauri (1949-1987), um grupo de grafiteiros. De 1979 a 1982, compõe o grupo 3Nós3, com os artistas Mário Ramiro (1957) e Rafael França (1957-1991), que realiza intervenções na cidade de São Paulo. No mesmo período, faz experiências em xerografia. Ao ser convidado pela Pinacoteca do Estado de São Paulo a ministrar oficinas de xerografia, participa de cursos técnicos na fabricante de fotocopiadoras Xerox do Brasil. Em Narcisse/Estudo para Autorretrato (1984), dialogando com o mito de Narciso, produz e investiga sua própria identidade visual. Em seus últimos cadernos de colagens, a figura de Narciso desdobra-se com a exposição obsessiva e analítica do nu masculino. Para o crítico Jean-Claude Bernardet (1936), a fragmentação do corpo pela xerox converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem. Em sua performance com a máquina copiadora, Hudinilson Jr. utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.

+

Links em bit.ly/colecoes-itau-arte-sexualidade

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PROJETOS

TODOS OS GÊNEROS

RUMOS 2015-2016: FABIANA

Programação especial é dedicada à

O documentário Fabiana desenrola-se na estrada, como um

sexualidade e suas representações por

típico filme do gênero road movie, e descortina os basti-

meio da produção de artistas da dança,

dores da vida de uma caminhoneira transgênero. Antes de

música, cinema, teatro e performan-

se aposentar, após 30 anos trabalhando na área, Fabiana

ce. Em 2017, chegou à sua 4a edição e

aceita o convite da diretora Brunna Laboissière e deixa sua

teve como destaque uma performance

última viagem ser registrada. As duas se conheceram quando

cênica musical de Linn da Quebrada

Brunna pediu uma carona de São Paulo até Brasília. Surpre-

chamada Bixaria Bocket Show. O público

endeu-se que o motorista do caminhão não era um homem

foi convidado a participar numa cabine

e ficou admirada ao se deparar com a resiliência de Fabiana

de depoimentos. Ao fim das atividades,

diante de um universo dominado pelo sexo masculino e pelo

esses depoimentos ficaram como regis-

machismo. Durante o percurso registrado no documentário

tros do projeto e trazem uma gama de

passam-se 11 mil quilômetros de muitos imprevistos.

reflexões sobre gênero.

RUMOS 2015-2016: QUARTO CAMARIM Dirigido por Fabricio Ramos e Camele Queiroz, Quarto Camarim mostra a reaproximação entre Camele e sua tia transgênero Luma, que não via há 27 anos, quando a tia ainda era homem. Com abordagem documental, o longa-metragem é construído pelas tensões da relação entre Camele e Luma, a todo momento mediada pela câmera cinematográfica.

FOTOS: VICENTE DE MELLO/ CORTESIA JAQUELINE MARTINS/ GUILHERME CASTOLDI/ BRUNNA LABOISSIÈRE/ FABRICIO RAMOS

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FOGO CRUZADO

ANNA BELLA GEIGER ARTISTA VISUAL

VOCÊ JÁ SOFREU ASSÉDIO?

Sim. Apesar do desprazer que sinto ao me lembrar dessa convivência no ambiente de trabalho, no MAM-RJ, nos anos 1970-1980, acho da maior importância que uma revista de arte levante esse assunto do assédio sexual junto a artistas mulheres principalmente. Praticamente, todos os itens mencionados pela Organização Internacional do Trabalho me afetaram de algum modo, por anos a fio, sendo utilizados por alguns críticos de arte da época e algum galerista. Não sei como outras artistas contornaram esse constrangimento, mas acompanhando as suas carreiras pude tirar minhas próprias conclusões. E houve inclusive tragédias. Isso me levou a frequentar pouco a cena artística e a ser pouco citada no jornal, mesmo atuando bastante enquanto artista plástica. Por me negar sistematicamente a me submeter a esse constrangimento, e sem ter a quem recorrer, o medo foi se instaurando. E ainda havia a ditadura.

Inúmeros relatos de assédio sexual vieram à tona no último ano. Será que no meio artístico, ambiente que se considera avançado, a situação é diferente? Pelo longo e detalhado ensaio publicado em novembro pela artista, acadêmica e escritora cubanoamericana Coco Fusco no site Hyperallergic, intitulado “Como o mundo artístico e as escolas de arte estão propícios para abusos sexuais”, não é mesmo. A partir da definição de assédio da Organização Internacional do Trabalho, seLecT fez a pergunta a artistas visuais e outros profissionais do circuito. SELECT.ART.BR

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MARCOS FELINTO DOS SANTOS EDUCADOR, PRODUTOR, MASSAGISTA

Já sofri muitos assédios no meio artístico, sempre de homens em situação de trabalho. Alguns foram grosseiros, como ser tocado, cutucado, alisado, ter os cabelos puxados ou mesmo ouvir uma chamada mal direcionada: “Venha aqui menino, vou cortar esse seu cabelo!”, com teor erótico impresso nos olhos. Outros contatos foram sutis, como olhares persecutórios e dissimulados durante vernissages ou reuniões. Em outros casos, os assédios vieram como ameaças despropositadas, retaliação decorrente de recusas, e expressavam algum tipo de vontade de poder desses artistas. Têm em comum todas as situações e o fato de eu nunca ter aberto qualquer premissa para que tais interesses surgissem. Para lidar com as situações e garantir minha posição, por vezes apaguei da memória, tanto que hoje forço para recobrar certos episódios. Também minimizei a gravidade da sujeição, sem notar que a maior implicação negativa disso tudo recaía ainda sobre mim. Se for uma moda – como acenam artistas conservadores privilegiados pela graça da mediocridade – apontar, pautar e questionar assédios sexuais, racismo, sexismo e toda a sorte de opressões em meio à blindada classe artística, acolho a tardia tendência como um movimento coerente da parte de ativistas, da mídia e da sociedade civil, que nutrem cada vez mais interesses em abordar o custo humano alocado na base de produções artísticas. Produções que, por si, já não são mais capazes de sustentar a integridade de pensadores, produtores e artistas que, sistematicamente, respaldados em suas posições de poder e prestígio, oprimem a quem se vê posto descompensadamente na balança da correlação de forças. É no mínimo estranho, mas factível, que a opressão seja presente e denunciada em setores artísticos progressistas e tradicionalmente alinhados com ideais

igualitários. O debate sobre padrões comportamentais nocivos e a exposição pública de abusadores crônicos são, por hora, as melhores ferramentas para estimular e efetivar posturas e políticas compensatórias em favor de pessoas ou grupos que gozam, estruturalmente, de menos recursos protetivos institucionalizados. Políticas criadas no campo de tangência entre gênero, classe e raça nos oferecem novos níveis de corresponsabilidade, troca, empregabilidade e proteção! O artista e sua produção, o mercado galerista e as instituições museais se veem implicados a contribuírem, ao menos no plano ético, com os debates levantados pelos movimentos civis minoritários, o que causa um choque real em um filão de artistas, curadores e marchands habituados aos privilégios e poderes abusivos que já tiveram em outras épocas. Ainda assim é comum ouvir relatos de jovens estudantes de curadoria, designers, fotógrafos e educadores apontando exploração abusiva do trabalho e abusos de tratamento de seus chefes em galerias de arte e agências de publicidade. Se pararmos para ouvir faxineiras e copeiras, a situação piora mais ainda. Hoje, entende-se que a obra de um artista agrega também as constelações de relações em torno das quais ele gravita. Como nunca antes, temos acesso aos bastidores de estúdios, ateliês, produtoras e instituições culturais revelados por aqueles da base, que dão suporte diário para que as produções surjam e celebridades brilhem, comodamente albergadas por bons trabalhos artísticos que possuem, em igual proporção, o apuro técnico, o rigor estético de profissionais especializados e, em certos casos, a falta de ética de seus diretores e produtores. Com as muitas ferramentas epistemológicas emprestadas de feministas, negras sobretudo, mais os dispositivos de comunicação dos quais dispomos, temos uma potente rede de comunicação em prol dos que deixam de calar vivências traumáticas, em nome de reformas urgentes no que tange ao debate público sobre as masculinidades. Tal exposição não é capaz de fragilizar ainda mais os grupos ativistas do que já se encontram internamente fragilizados por suas contradições internas. Esse é o lugar para o qual apontam as recentes denúncias surgidas nas mídias.

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FOTOS: DIANA TAMANE/ FERNANDA CESAR

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ANITTA BOA VIDA ARTISTA VISUAL O depoimento que tenho para dar não vai necessariamente ao encontro das definições da Organização Internacional do Trabalho ou se deu apenas em ambiente artístico ou acadêmico. O que tenho para falar é sobre minha experiência e vivência neste corpo de mulher e como este corpo é entendido pelo mundo. Sobre quantas vezes fui tocada sem autorização ou ouvi barbaridades sobre meu corpo/roupa/gestos durante uma aula, uma festa, ou aguardando o ônibus chegar. Não existe vida tranquila. É uma constante vigilância de gestos e olhares apenas para existir sem ser assediada.

SANTAROSA BARRETO ARTISTA VISUAL “Os seus seios é que são uma obra de arte”, ouvi de um homem sobre a minha versão de Self-Portrait as a Fountain. No autorretrato estou nua e cuspindo água, como Bruce Nauman fez nos anos 1960. “É seu corpo ali? É um autorretrato? Você depila tudo?”, também ouvi, em tom de piada, quando me apropriei e alterei digitalmente a imagem da pintura L’Origine du Monde, de Gustave Courbet, para produzir uma instalação intitulada Rasée. “Quero conhecer seu ateliê, posso?”, me disse outro homem, na abertura de outra exposição, enquanto ele apertava minha cintura e lançava sua saliva sobre o meu pescoço. “Não conheço os seus trabalhos. Me mostra? Aposto que são tão lindos quanto você”, ouvi outra vez ao ser apresentada a um sujeito na abertura de uma exposição. Vivi essas quatro situações e eu poderia citar inúmeras outras. A lista seria grande e, certamente, atualizada a cada exposição, ateliê aberto, evento, abertura, reunião, aula, encontro. Num ambiente ainda predominantemente tomado por homens é o que vive uma mulher artista. Muitas vezes o interesse pelo trabalho é, na verdade, o interesse pelo corpo da artista, seja o corpo dela matéria para suas obras ou não. E digo SELECT.ART.BR

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isso sendo uma mulher branca e cisgênero. Para mulheres negras e mulheres trans, pessoas historicamente ainda mais excluídas do meio das artes visuais, o cenário é bem pior. “Mas era só um elogio! Mas era só um convite inocente! Eu só queria dar uma oportunidade a ela!”, eles se defendem. “Como ela é exagerada! Ela é louca! Ela está mentindo! Não confiem nela, não trabalhem com ela! Não convidem ela! O trabalho dela é ruim, ela é uma farsa!”, continuam.

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RODOLPHO PARIGI ARTISTA VISUAL Eu já sofri cantadas e algumas propostas, mas teve uma ocasião que achei vulgar demais. A pessoa ficou me perseguindo com mensagens e propostas. Meio que eu ficava fugindo. Como não preciso ficar quieto por medo ou por qualquer outro motivo, dei risada e fiz uma cara de paisagem. A pessoa continuou enchendo meu saco e eu continuei sempre rindo e não reagindo. Aí ele se tocou, eu acho. Se a pessoa souber fazer e for interessante, não teria sido um constrangimento para mim na ocasião, mas fiquei no início meio sem saber como lidar. Mas uma cantada boa de alguém bacana não é um problema para mim, e nunca será. Acho que faz parte das relações humanas. Mas abuso de poder, sim, pega bem mal e é muito constrangedor para quem passa por isso. A pessoa tem de ser denunciada, principalmente homens héteros que abusam de mulheres. Tem gente sacana em toda esquina, mas tem muita alma boa também. apresentadas por artistas.

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JUP DO BAIRRO PERFORMER, RAPPER, DJ Infelizmente, eu acho difícil uma pessoa marcada pelo signo feminino, independentemente de que corpo habita, não ter presenciado algum tipo de assédio e/ou ofensa no meio artístico. O poder ainda é majoritariamente másculo e machista de forma tóxica. Precisamos sempre lembrar que os nossos avanços não são favores.

SHEILA LEIRNER CRÍTICA E CURADORA Jamais fui assediada em ambiente de estudo ou profissional, apesar de ter sido convidada a posar como modelo fotográfico, participar de filmes e ter iniciado a minha carreira como jornalista e crítica aos 25 anos. Desde cedo senti-me extremamente respeitada e, às vezes, até mesmo temida. Por outro lado, sofri tentativas de assédio em minha vida pessoal, sem nenhuma das características estabelecidas pela OIT, de forma não menos abjeta. A minha explicação é de que – afetada por uma difícil situação familiar – talvez eu não tivesse, do ponto de vista emocional, a mesma solidez e autoridade que desenvolvi no cumprimento de meus deveres de ofício. É possível, portanto, que certos indivíduos “predadores”, por uma espécie de atavismo de dominação, só ataquem suas “presas” quando pressentem uma possível fragilidade. O que me leva a concluir que a solução para o assédio sexual não é a denúncia ou a punição. É a educação e o preparo de mulheres e homens, desde a mais tenra idade. FOTOS: ACERVO PESSOAL/ CORTESIA DA ARTISTA/ ACERVO PESSOAL/ CORTESIA DA ARTISTA/ MARIE ANNE WORMS

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MUNDO CODIFICADO

A pergunta formulada pelo coletivo Guerrilla Girls ao Metropolitan Museum de Nova York e

AS MULHERES PRECISAM 46

instituições museológicas brasileiras acerca

ESTAR NUAS PARA

da participação feminina no acervo. Será que

ENTRAR NOS MUSEUS?

INSTITUIÇÃO | COLEÇÃO

ao Masp instigou seLecT a indagar às principais

os resultados surpreendem?

NUS

NUS FEMININOS

% DE NUS FEMININOS

MAR

89

75

84%

MAM-BA

92

64

70%

MAC-NITERÓI

22

15

68%

COLEÇÃO DE ARTE DA CIDADE DE SP

117

79

68%

não divulgado

não divulgado

60%

TOTAL DE ARTISTAS

MULHERES

PARTICIPAÇÃO FEMININA

MASP

1.529

298

19%

MAR

966

205

21%

PINACOTECA DE SÃO PAULO

1.845

407

22%

MAC-Niterói

310

76

25%

MAM-RIO* informou apenas dados dos artistas brasileiros

950

250

26%

COLEÇÃO DE ARTE DA CIDADE DE SP

1.250

341

27%

MAM-SP

1.126

325

29%

MAM-BA

467

135

29%

INHOTIM

38

12

32%

MARGS

1.031

389

38%

MAMAM

178

89

50%

MASP

INSTITUIÇÃO | COLEÇÃO

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MUSEU DE ARTE

MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO

MODERNA DE SÃO

ASSIS CHATEAUBRIAND (MASP)

PAULO (MAM-SP)

Autorretrato Leonor de Almeida Portugal

Paisagem (1948)

de Lorena e Lencastre (1787-1790)

Tarsila do Amaral (1886-

Alcipe (Portugal, 1750 - Portugal, 1839).

1973). Óleo sobre tela

Óleo sobre tela colada sobre painel

colada sobre papelão de

Doação realizada em 1949 pelo

lote doado por Carlo

jornalista Vasco Lima.

Tamagni em 1967.

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO Saudades de Nápoles (1895)

As pioneiras das coleções

Berthe Worms (França, 1868 - Brasil, 1937) Óleo sobre tela. Compra do governo do estado de São Paulo para a coleção do Museu Paulista em 1895, transferida para a Pinacoteca em 1905.

COLEÇÃO DE ARTE DA CIDADE DE SÃO PAULO

MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO

Part of the town of Rio de Janeiro view from the edge of the mud fort

DE JANEIRO (MAM-RIO)

of Bairra Vermelha (1825), Rio de Janeiro (1825)

O Impossível (1945)

Maria Graham (Inglaterra, 1785 – Inglaterra, 1842)

Maria Martins (Brasil, 1900-1973)

Grafite sobre papel

Bronze

São as obras mais antigas feitas por uma mulher da coleção.

Doada pela própria artista em

A coordenação da coleção tem indícios de que foram as primeiras

1952 para a Coleção Museu de Arte

obras de uma artista mulher a entrar no acervo.

Moderna do Rio.

MUSEU DE ARTE

MUSEU DE ARTE DO RIO (MAR)

CONTEMPORÂNEA DE

Sem Título (1975)

NITERÓI (MAC-NITERÓI)

Mira Schendel (Suíça, 1919 - Brasil, 1988)

Sem Título (1993)

Metal/Calcografia (água-forte) s/ papel

Iole de Freitas (Brasil, 1945)

Após participar de uma das exposições

Aço, inox, cobre

inaugurais do MAR em 2013, foi

Primeira obra de uma mulher

adquirida pelo Fundo Z para compor a

a ser doada à coleção do MAC,

Coleção MAR.

em 1999, após ser exibida na Galeria Anna Maria Niemeyer.

MUSEU DE ARTE DO RIO

MUSEU DE ARTE MODERNA

GRANDE DO SUL (MARGS)

ALOISIO MAGALHÃES

MUSEU DE ARTE

Menina em Cor-de-Rosa (s.d.)

(MAMAM)

MODERNA DA BAHIA

Caterina Baratelli (Itália,

Ex-votos (1978)

(MAM-BA)

1905-1988)

Celina Cezário de Melo (Brasil,

Construção Vegetal X (s.d.)

Óleo sobre tela

1926)

Yara Tupinambá (Brasil, 1932)

Compra articulada com o

Óleo sobre aglomerado

INHOTIM

Xilografia adquirida pelo

governo do estado do Rio

Pelo inventário do MAMAM, a

Em 2008, Adriana Varejão e

museu em 1959, ano de

Grande do Sul em 1955. Fez

pintura de Celina foi a primeira

Doris Salcedo ganham galerias

sua fundação e início da

parte do lote que deu início

obra de uma mulher a entrar no

permanentes no Inhotim.

formação de seu acervo.

ao acervo do museu.

acervo da instituição.

FOTOS: ROMULO FIALDINI/ PAULINHO MUNIZ/ JOÃO MUSA/ ISABELLA MATHEUS/ JAIME ACIOLI, MAM-RIO/ THALES LEITE

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CURADORIA

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SE NÃO PUDER SER LIVRE, SÊ UM MISTÉRIO! Este é um ensaio visual voltado à produção de artistas trans, feito por uma pessoa trans, com formas de acesso ao mundo que caracterizam as diversas posições trans J O TA M O M B A Ç A

Acima, registro Gordura Trans #16 durante Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba, 2017). Frames fotográficos (2017-2018), Miro Spinelli

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“Porque nascemos para morrer, mas não morremos” Kerollayne Rodrigues1

A FRASE-TÍTULO VEM DO POEMA CANARY, DO LIVRO GRACE NOTES, DE RITA DOVE (1989). Aqui, ela tem o sentido de desenhar dois movimentos conceituais

distintos, porém contingentes um ao outro: o primeiro é um diagnóstico do mundo – leitura dinâmica do mapa de intensidades que enseja e conjura, quer a memória, quer o futuro da guerra micropolítica em curso; o segundo (sê um mistério!) encena uma posição inteiramente outra, e ainda assim predicada no primeiro movimento. Tornar-se um mistério aparece aqui como programa político dissidente, isto é, como forma de insubmissão às formas sociais de não ser livre. Este é um ensaio visual voltado à produção de artistas trans, feito por uma pessoa trans, como afirmação de uma posicionalidade situada e de uma perspectiva dinamizada pelas formas particulares de socialidade e acesso ao mundo que caracterizam as diversas posições trans. Isso tem como efeito primeiro uma recusa à lógica de objetificação que dá sentido a muitas das produções acadêmicas, artísticas e midiáticas sobre transgeneridade; e tem, portanto, um efeito resistente à tematização desimplicada de nossas vidas. O diagnóstico que aqui se desenha, nesse sentido, inverte a lógica do diagnóstico médico que determina a relação dos corpos trans com o aparato científico patologizador. Produzido desde a posição de uma bicha trans não binária, em constelação

(1) Esta frase foi escrita por Kerollayne Rodrigues numa troca de mensagens na seção de comentários do post do Facebook em que relata a agressão gratuita que sofreu por parte de um homem cisgênero num bar da cidade de Santos (SP).

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA

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com outras cinco pessoas trans artistas – Miro Spinelli (BR), Ana Giselle (BR), Lia Garcia (MEX), Pêdra Costa (BR) e Odete (PT) –, o tema deste ensaio não é a transgeneridade, mas o mundo que a inscreve como subalternidade. Assim, ao enunciar a frase “se não puder ser livre”, quero tornar evidente que “as formas de não ser livre”, embora afetem direta e arbitrariamente as vidas trans, não são propriedades delas, mas do mundo. Incluindo, neste mapa, os sistemas de arte e seus modos de reproduzir e desviar das gramáticas sociais normativas. O primeiro trabalho que aparece aqui desdobra-se do processo iniciado pelo artista Miro Spinelli, Gordura Trans. Trata-se de um registro da penúltima edição dessa performance, no marco da Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba-SP, 2017). Na ocasião, o artista convidou três outros performers situados na interseção entre gordura e desobediência de gênero para o que teria sido a maior instância de seu trabalho, com quase 1 tonelada de gordura, 12 horas de performance e quatro corpos em ação simultânea. Ocorre que, com o desenrolar da performance, o cheiro da gordura tornou-se um problema sensorial para parte dos visitantes e funcionários da instituição, a ponto de o trabalho ter de ser encerrado a meio caminho, no segundo dia da ação que estava prevista para durar três dias, e permanecer ainda, na materialidade dos resíduos de gordura, ao longo de toda a exposição. As imagens que aparecem aqui como registro exibem o processo de limpeza, e dão a ver, em vez da performance dos artistas (cuja imagem tem sido explorada de diversas formas), a performance da instituição. Em seguida aparece a contribuição de Pêdra Costa, artista brasileira radicada em Viena, que traz aqui registros de seu processo de investigação atual denominado de_colon_isation. Tendo trabalhado as políticas do cu ao longo de quase toda sua carreira, a série em questão propõe um deslocamento do cu ao “cólon”. Tal trajetória, auxiliada por uma câmera-dildo, articula poeticamente a relação entre colonização e entranha, e ao mesmo tempo, graças à inscrição de um trecho do seu manifesto O Cu do Sul, estuda os limites da tradição antropofágica da produção de subjetividade à brasileira.

Auxiliada por uma câmera-dildo, Pêdra Costa articula poeticamente a relação entre colonização e entranha e estuda os limites da tradição antropofágica da produção de subjetividade à brasileira

À dir., colagem digital (2018) feita a partir do arquivo do processo de investigação de_colon_isation. Pêdra Costa.

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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA

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À esq., arquivo do processo imersivo de La Sirena (2015) junto à comunidade de Xochimilco, México, de Lia Garcia

No intestino, Pêdra busca os resíduos digestivos resultantes da devoração de um mau banquete, e produz, de quebra, uma imagem do próprio corpo que desafia as expectativas de inteligibilidade e transparência impostas pelo regime óptico do fundamentalismo cisgênero.

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OUTRAS CORPORALIDADES

A obra de Pêdra marca a transição entre o movimento diagnóstico e o movimento fugitivo, na medida em que parte de uma investigação do poder colonial para construir uma imagem abstrata do próprio corpo em luta contra as formas de não ser livre que definem a relação entre corpo e colonialidade. A seguir, Lia Garcia aparece através dos desenhos e relatos de dois sujeitos com que interage em sua pesquisa acerca das lendas da sereia de Xochimilco, distrito da Cidade do México. A sereia é uma das figuras do feminino em torno das quais o trabalho de Lia se move, e enseja uma mística própria, a partir dos múltiplos contextos nos quais emerge como entidade e força imaginativa. Em sua investigação, a artista visita Xochimilco, interage com os homens que navegam nas balsas típicas do local, pedindo-lhes que escrevam e desenhem a lenda da sereia, enquanto nada nas águas com sua calda e permite que seu corpo integre o arcabouço fantástico das lendas da região. Se a fantasia é uma forma de mistério, e o trabalho de Lia Garcia abre espaço no imaginário popular mexicano para a existência de outras corporalidades não limitadas aos códigos do fundamentalismo cisgênero, também o que Ana Giselle chama de “close dje anônima”, por apostar na produção de um corpo opaco, que resiste à captura dos olhares normativos na medida em que desaparece pelos escuros para depois reaparecer em sua luminosidade negra, se configura como uma estratégia fugitiva, um passo fora do domínio do inteligível em favor da liberdade de brilhar outras formas de presença. O anonimato, aqui, não deve ser lido na chave reativa de um “retorno ao armário”, dado o caráter confrontacional das performances e movimentos de vida de Ana; é, isto sim, uma forma de esconder-se sob a luz dos holofotes e de preservar a própria força e singularidade, em face do consumo intensivo de sua imagem pelos circuitos por que passa. Por fim, Odete – artista convidada a encerrar este breve recorte curatorial. Misturando técnicas digitais de colagem e distorção com desenhos feitos à mão, esta obra articula momentos de textualidade literal (“deixe o medo fora da sua vida”) com modos de composição abstratos, em que disformidades, símbolos e manchas interagem num só exercício de autoarticulação. Como um corpo desbordante de qualquer formação que repita a obra deste mundo, embora ainda marcado pela interação

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À esq., Sem Título (2016), fotografia de Ana Giselle feita em parceria com Renato Filho. À dir., TROFEUPT1 (2018), colagem digital de Odete

sempre já policiada pelo mundo como o conhecemos. A rave no quartel a zero euros está na ponta do movimento bifurcado deste ensaio, como política do mistério e convite a falar em línguas criptografadas contra a tradução controladora da norma. Este projeto curatorial, à sua maneira, mesmo quando parece explicar – e talvez aí especialmente –, intenta também fugir pelo mistério e confundir ao poder o mapa das rotas, projetando a mancha como política de visibilidade. O mistério como plano de composição das forças e de decomposição do mundo como nos foi dado conhecer. Se não pudermos ser livres, mergulharemos no abstrato e fecundaremos os chãos mais improváveis com nossas mitopoéticas. Seremos mistério! E produziremos nossas próprias facas com que cortar o horizonte para abrir nele uma fenda por onde possam passar todas as entidades, corpos, seres, vidas e forças que, como Kerollayne Rodrigues profetizou recentemente, “nascem para morrer, mas não morrem”.

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ENSAIO

LIXO E GÊNERO MIJAR/CAGAR Silenciosamente, a arquitetura opera como a mais discreta e efetiva das “tecnologias de gênero” B E AT R I Z P R E C I A D O

DENTRO DAS FRONTEIRAS NACIONAIS, MILHARES DE FRONTEIRAS DE GÊNERO, DIFUSAS E TENTACULARES, SEGMENTAM CADA METRO QUADRADO DO ESPAÇO AO NOSSO REDOR.

Lá onde a arquitetura parece simplesmente se colocar a serviço das necessidades naturais mais básicas (dormir, comer, cagar, mijar…), as portas e janelas, os muros e aberturas, regulando o acesso e o olhar, operam silenciosamente como a mais discreta e efetiva das “tecnologias de gênero”. (1) Os banheiros públicos, por exemplo, instituições burguesas espalhadas pelas cidades europeias a partir do século 19, foram inicialmente pensados como espaços de gestão do lixo corporal nas cidades (2) e converteram-se, progressivamente, em locais de policiamento de gênero. Não é por acaso que a nova disciplina fecal imposta pela emergente burguesia no fim do século 19 seja contemporânea do estabelecimento de novos códigos conjugais e domésticos que exigem a redefinição espacial dos gêneros e que serão cúmplices da normalização da heterossexualidade e da patologização da homossexualidade. No século 20, os banheiros viraram autênticas cédulas públicas de inspeção, nas quais se avalia a adequação de cada corpo com os códigos vigentes de masculinidade e feminidade. Na porta de cada banheiro há um único sinal, uma interpelação de gênero: masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, chapéu masculino ou chapéu feminino, bigode ou florzinha, como se a ação de entrar no banheiro fosse mais para refazer o SELECT.ART.BR

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MASCULINO/FEMININO gênero do que para se desfazer da urina e da merda. Ninguém nos pergunta se vamos cagar ou mijar, se temos ou não diarreia, ninguém se interessa pela cor nem pelo tamanho da merda. O único que importa é o GÊNERO. Analisemos, por exemplo, os banheiros do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, esgoto de dejetos orgânicos internacionais no meio de um circuito de fluxos de globalização do capital. Entremos no banheiro feminino. Uma lei não escrita autoriza as visitantes casuais do banheiro a inspecionar o gênero de cada novo corpo que escolhe cruzar essa fronteira. Uma pequena multidão de mulheres, que geralmente compartilham um ou vários espelhos e pias, atua como inspetora anônima do gênero feminino, controlando o acesso dos novos visitantes aos compartimentos privados, onde se esconde, entre o decoro e a imundícia, uma privada. Aqui, o controle público da feminidade heterossexual é exercido em primeiro lugar pelo olhar e, só em caso de dúvida, por meio da palavra. Qualquer ambiguidade de gênero (cabelo muito curto, falta de maquiagem, uma penugem que aparece em forma de bigode, passo demasiado afirmativo…) exigirá um interrogatório do potencial usuário, que estará obrigado a justificar a coerência da sua escolha de banheiro: “Psiu, você! Você errou o banheiro, o masculino está à direita.” Um acúmulo de signos do gênero do outro banheiro exige irremediavelmente o abandono do espaço monogênero sob pena de sanção verbal ou física. Por fim, sempre é possível avisar à autoFabíola Dumont, Centro de Esportes Radicais, São Paulo. Terminal 10 mg, Mexa. Setembro 2017. ridade pública (geralmente, uma representação masculina do Estado) para desalojar o corpo transmutado (pouco importa que se trate de um homem ou de uma mulher masculina). Se, superando esse exame de gênero, conseguirmos ingressar em uma das cabines, nos encontraremos em uma sala de 1 x 1,50 metro quadrado que tenta reproduzir em miniatura a privacidade de um banheiro doméstico. A feminidade produz-se precisamente pela subtração de toda função fisiológica diante do olhar público. Contudo, a cabine proporciona uma privacidade unicamente visual. É assim que a domesticidade estende seus tentáculos e penetra no espaço público. Como destaca Judith Halberstam, “o banheiro é uma representação, ou uma paródia, da ordem doméstica fora do lar, no mundo exterior”. (3) FOTOS 35MM: DUDU QUINTANILHA

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Cada corpo preso em uma cápsula evacuatória de paredes opacas Enquanto o banheiro que o protegem de mostrar seu corpo nu, de expor à vista pública a forma e a cor das suas excreções, compartilha, porém, o som dos feminino opera jatos de chuva dourada e o cheiro das merdas que escorregam nos sanitários contíguos. Livre. Ocupado. Uma vez fechada a porta, uma como um mini panprivada branca, entre 40 e 50 centímetros de altura, como se fosóptico, no qual as se um banquinho de cerâmica perfurado que conecta o nosso corpo defecante a uma invisível cloaca universal (na qual se misturam os mulheres vigiam resíduos de mulheres e homens), nos convida a sentar tanto para cagar quanto para mijar. O vaso sanitário feminino reúne assim duas coletivamente seu funções diferenciadas tanto pela sua consistência (sólido/líquido), como pelo seu ponto anatômico de evacuação (duto urinário/ânus), grau de feminidade sob uma mesma postura e um mesmo gesto: feminino=sentado. Ao sair da cabine reservada à excreção, o espelho, reverberação do olhar heterossexual e no público, convida ao retoque da imagem feminina sob o olhar regulador de outras mulheres. Atravessemos o corredor para nos dirigir qual toda aproximação agora ao banheiro masculino. Fixados na parede, a uma altura entre 80 e 90 centímetros do chão, um ou vários mictórios agrupam-se em sexual resulta numa um espaço, geralmente também destinado às pias, acessível ao olhar público. Dentro desse espaço, uma peça fechada, separada categoriagressão masculina, camente do olhar público por uma porta com fechadura, permite o o banheiro masculino acesso a uma privada similar à que mobilia os banheiros femininos. A partir do início do século 20, a única lei arquitetônica comum a toda aparece como um construção de banheiros masculinos é essa separação de funções: mijar-de-pé-mictório/cagar-sentado-privada. Em outras palavras, a terreno propício para produção eficaz da masculinidade heterossexual depende da imperativa separação da genitalidade e da analidade. Poderíamos pensar a experimentação que a arquitetura constrói barreiras quase naturais, respondendo a uma diferença essencial de funções entre homens e mulheres. Na sexual verdade, a arquitetura funciona como uma verdadeira prótese de gênero que produz e fixa as diferenças entre as mencionadas funções biológicas. O mictório, como uma protuberância arquitetônica que cresce desde a parede e se ajusta ao corpo, atua como uma prótese da masculinidade, facilitando a postura vertical para mijar sem respingar. Mijar de pé publicamente é uma das performances constitutivas da masculinidade heterossexual moderna. Dessa forma, o discreto mictório não é somente um instrumento de higiene, mas uma tecnologia de gênero que participa na produção da masculinidade no espaço público. Por isso, os mictórios não estão trancados em cabines opacas, mas em espaços abertos ao olhar coletivo, sendo mijar-de-pé-entre-homens uma atividade cultural que gera vínculos de sociabilidade compartilhados por todos aqueles que, ao fazer isso publicamente, são reconhecidos como homens. Duas lógicas opostas dominam os banheiros feminino e masculino. Enquanto o feminino é a reprodução de um espaço doméstico no meio do espaço público, o banheiro masculino é um adendo do espaço público, no qual se intensificam as leis de visibilidade e posição ereta, que tradicionalmente definiam o espaço público como espaço de masculinidade. Enquanto o banheiro feminino opera como um mini pan-óptico, no qual as mulheres vigiam coletivamente seu grau de feminidade heterossexual e no qual toda aproximação sexual resulta numa agressão masculina, o banheiro masculino aparece como um terreno propício para a experimentação sexual. Na nossa paisagem urbana, o banheiro masculino, vestígio quase arqueológico de uma época de masculinismo mítico, na qual o espaço público era privilégio dos homens, é, juntamente com os clubes automobilísticos, deportivos ou de caça, e alguns prostíbulos, um dos redutos públicos em que os homens SELECT.ART.BR

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podem se permitir jogos de cumplicidade sexual sob a aparência de rituais de masculinidade. Mas, precisamente porque os banheiros são cenários normativos de produção da masculinidade, eles podem funcionar também como um teatro de ansiedade heterossexual. Nesse contexto, a divisão espacial de funções genitais e anais protege contra uma possível tentação homossexual, ou melhor, condena-a ao âmbito da privacidade. Diferentemente do mictório, nos banheiros masculinos, a privada, símbolo de feminidade abjeta/sentada, preserva os momentos de defecação de sólidos (momentos de abertura anal) do olhar público. Como Lee Edelman (4) sugere, o ânus masculino, orifício potencialmente aberto à penetração, deve abrir-se somente em espaços fechados e protegidos do olhar de outros homens, porque, caso contrário, poderia suscitar um convite homossexual. Nós não vamos aos banheiros para evacuar, mas sim para fazer nossas necessidades de gênero. Não vamos para mijar, mas sim para reafirmar os códigos da masculinidade e da feminidade no espaço público. Por isso escapar do regime de gênero dos banheiros públicos é desafiar a segregação sexual que a moderna arquitetura urinária impõe há ao menos dois séculos: público/ privado, visível/invisível, decente/obsceno, homem/mulher, pênis/vagina, de-pé/ sentado, ocupado/livre… Uma arquitetura que fabrica os gêneros, enquanto, sob o pretexto de higiene pública, diz-se ocupar simplesmente da gestão de nossos lixos orgânicos. LIXO>GÊNERO. Infalível economia produtiva que transforma o lixo em gênero. Não nos deixemos enganar: na máquina capital-heterossexual nada é desperdiçado. Pelo contrário, cada momento de expulsão de um dejeto orgânico serve como ocasião para reproduzir o gênero. As inofensivas máquinas que comem nossa merda são em realidade próteses normativas de gênero. Tradução de Ana Abril do texto original em castelhano publicado no blog Parole de Queer, em setembro de 2013. Veja a biografia de Preciado na página de colaboradores desta edição.

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Utilizo aqui a expressão de Teresa de Laurentis para definir o conjunto de instituições e técnicas, desde o cinema até o direito, passando pelos banheiros públicos, que produzem a verdade da masculinidade e da feminidade. Ver: Teresa de Laurentis, Technologies of Gender, Bloomington, Indiana University Press, 1989. (2) Ver: Dominique Laporte, Histoire de la Merde, Christian Bourgois Éditeur, Paris, 1978; e Alain Corbin, Le Miasme et la Jonquille, Flammarion, Paris, 1982. (3) Judith Halberstam, Techno-homo: on bathrooms, butches, and sex with furniture, in Jenifer Terry and Melodie Calvert Eds., Processed Lives. Gender and Technology in the Everyday Life, Routledge, London and New York, 1997, p.185. (4) . Ver: Lee Edelman, Men’s Room em Joel Sanders, Ed. Stud. Architectures of Masculinity, New York, Princeton Architectural Press, 1996, pp.152-161. (1)

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P E R F I L / TRAJAL HARRELL

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DA POÉTICA DO ENCONTRO

Coreógrafo introduz na dança contemporânea questões de gênero e performatividade exploradas na cultura underground das comunidades afroamericana, latina, gay e transgênero de Nova York

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UMA MARCA DE PASSARELA NO CHÃO E SEIS CADEIRAS COMPÕEM O CENÁRIO. APOIADAS SOBRE AS CADEIRAS, PEÇAS DE ROUPAS. O DANÇARINO ENTRA EM CENA USANDO CALÇA E CAMISETA PRETAS E, DE COSTAS PARA A PLATEIA, VESTE PALETÓ, gravata e óculos. Dirige-se ao

público, esboça um movimento hesitante, mas volta às cadeiras e muda de figurino. Em 50 minutos de performance, o artista monta 20 diferentes looks e apresenta-se ao público em gestos que alternam poses, saltos, corridas, caminhadas lânguidas, passos de dança. A trilha sonora vai do silêncio à música pop, passando por funk, rythm’n blues, ruídos de passos e de eletrodomésticos em uso. A performance S é uma das sete versões de Twenty Looks or Paris Is Burning at the Judson Church (2009-2017), do coreógrafo norte-americano Trajal Harrell. Cada peça tem um título equivalente a um tamanho: Small (S), Extra small (ES), Medium (M), Antigone junior, Antigone senior, Made-to-Measure (M2M) e uma publicação Extra large (XL). Há diversas variações entre elas – na duração, na composição do elenco, na estrutura de cena. Mas todas compartilham uma só proposição e buscam responder à mesma pergunta: o que aconteceria, em 1963, se alguém da dança Voguing, do Harlem, descesse downtown, ao Greenwich Village, para performar na Judson Church. Ou vice-versa. O projeto que deu projeção a Trajal Harrell examina criticamente dois cenários extremos da Nova York dos anos 1960: a dança pós-moderna, formalista e minimalista do Judson Dance Theather, e o Voguing, competição de caráter performativo, que se apropria do vocabulário fashion. O Judson Theather, a saber, foi um coletivo de dançarinos, compositores e artistas visuais que ocupou a Judson Church, na Washington Square, entre 1962 e 1966, e hoje configura capítulo decisivo na história da dança norteamericana. Reuniu jovens artistas como Trisha Brown e Robert Rauschenberg. Em seu No Manifesto (Não Manifesto) a coreógrafa Yvonne Rainer, do Judson Theather, postulou os preceitos da dança pós-moderna, estabelecendo a negação de qualquer concessão à técnica, ao espetáculo, ao virtuosismo, à excentricidade, ao glamour e, logicamente, à dança moderna. Sem passar pelo caminho clássico das aulas de balé para se tornar um dançarino e coreógrafo, Trajal Harrell já nasceu pós-moderno. Natural de Douglas, no estado da Geórgia, descobriu a dança pela via interdisciplinar da história da arte, de estudos culturais e estudos feministas, cursando Estudos Americanos com foco em Processos Criativos, na Yale University. “Nas ideias centrais do pós-modernismo, qualquer movimento podia ser dança, eles estavam interessados em democratizar a dança. Correr, parar, sentar, todas essas coisas eram consideradas movimentos válidos. Isso virou uma espécie de template, um tipo de manifesto, que os conceitualistas franceses retomaram nos anos 1990”, diz Trajal Harrell à seLecT.

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FOTO: FILIPE BRAGA, FUNDAÇÃO DE SERRALVES, PORTO

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Trajal continuou sua formação na França, onde assumiu como cartilha o não manifesto de Yvonne Rainer. “Naquele momento eu estava muito engajado no pós-modernismo e no minimalismo. Mas, como muitos, eu não sabia onde isso ia dar. As peças que eu fazia lidavam com coisas muito simples, muito ortodoxas, como sentar, levantar, fazer movimentos de pedestres”, conta. “Quando cheguei em Nova York, em 1998, encontrei uma cena contemporânea em que as pessoas nem se movimentavam mais.” Foi nesse contexto que o artista começou a se interessar justamente por tudo o que era mais execrado pelos discípulos do Judson Theather: a luxúria, a idolatria à moda, a extravagância e o exibicionismo envolvidos nos bailes Voguing.

York, os dois tentam lembrar quem levou quem ao Voguing: “Quando me mudei para Nova York, perguntei ao nosso amigo em comum Karim (Aïnouz) se ele conhecia alguém que sabia se eles ainda existiam, e ele me falou de você”, disse Eli Sudbrack. “Eu me lembro que perguntei pra ele, e ele me falou de você. Pensei que você era quem conhecia. Pensei que eu é que tinha te contatado”, responde Trajal Harrell. O fato é que, quando chegou lá, Trajal descobriu a América. “Quando fui ao meu primeiro baile Voguing, fiquei chocado. Aquilo era incrivelmente pós-moderno! Pensei: é pra lá que a dança deve ir”, conta à seLecT. Se os primeiros pós-modernos estabeleceram que qualquer movimento poderia ser dança, então Trajal Harrell definiu um novo repertório de signos. E ele incluía tudo aquilo que se DRAG MINIMALISMO via nos duelos drag: camiAlgumas décadas antes de nhar, parar, posar, olhar. ganhar o mainstream com o “O engraçado é que, quanvideoclipe Vogue (1990), de do toda essa nova inforMadonna, e exposição cult mação chegou até mim, eu com o documentário Paris Is fui convidado para realizar Burning (Jennie Livingston, uma performance na Judson 1990) – grande prêmio do júri Church. Eu tinha de me preparar pra isso, ninguém do Sundance Film Festival me conhecia em NY”, 1991 –, o Voguing surgiu nos conta. “Estava trabalhando anos 1960 como um duelo no meu estúdio e pensei: de dança e estilo praticado e se eu fizer uma peça em bailes da comunidade LGBT afro-americana, no Voguing superminimal?” “Eu estava ciente de que o que era Twenty Looks é um olhar Harlem, em Nova York. proposto pelo Voguing era negado para o Voguing pela lente Inspirado originalmente nas do minimalismo. Coloca em poses de modelos da revista pela dança pós-moderna, que estava diálogo duas cenas que se Vogue e na movimentação desenvolveram ao mesmo típica dos desfiles de moda tentando neutralizar a ideia de que tempo, em partes diferen– com referências também o gênero pode ser performado” tes da cidade – no Harlem e às poses de estrelas de no Village – e nunca haviam Hollywood e das show girls se comunicado. O projeto de Las Vegas – o Voguing foi um sucesso total. Não espalhou-se por clubs de apenas entre o público da cidades de todo o mundo, meca da dança conceitual nova-iorquina, mas de crítica. especialmente Paris e Nova York. Trajal garante que até Em 2012, depois de ter feito uma residência no Guggenheim mesmo o Rio e SP têm uma cena Voguing de respeito. Fellowship, de ter criado a peça M2M – a primeira coreEm uma das matérias de XL (2017), publicação literalmente ografia comissionada pelo MoMA PS1, e ter sido indicado extra-large de 320 páginas diagramada com o design da revisao Bessie Awards (The New York Dance and Performance ta Vogue – e última peça do projeto Twenty Looks –, o coreóAwards), Trajal Harrell chegou a ser chamado de “the next grafo conta um episódio de sua pesquisa para chegar aos leMartha Graham”, por transformar a arte da dança como gendários bailes do Harlem. Em uma conversa com o artista Graham fez no século 20. brasileiro Eli Sudbrack, que também era residente em Nova SELECT.ART.BR

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Na página anterior, Judson Church is Ringing in Harlem (Made-to-Measure), apresentada em 2015 no Museu Serralves, no Porto; na página à esquerda, capa da publicação XL; acima Twenty Looks or Paris is Burning at Judson Church (S), apresentada no New Museum, em Nova York, em 2011

PERFORMAR O GÊNERO

“Eu estava ciente de que o que era proposto pelo Voguing era negado pela dança pós-moderna, que estava tentando neutralizar a ideia de que o gênero pode ser performado”, continua Trajal. “Enquanto os pós-modernos tentavam atingir um corpo neutro e imprimir ao movimento um certo formalismo – embora não admitam isso –, o Voguing estava dizendo que nenhum de nós é neutro, estamos sempre performando algum tipo de corpo, algum tipo de gênero.” Ao entrar em cena vestindo figurinos neutros, de cor preta, e aos poucos ir montando os “20 looks” com cores e acessórios, os dançarinos desconstroem qualquer traço de neutralidade: de sexo, gênero, estilo, personalidade. A tensão que o coreógrafo cria entre as duas tradições é aquela entre as classes e regiões da cidade, entre neutralidade e artifício, entre contenção e liberdade, entre o prosaico e o barroco. “O Voguing está tentando, de alguma maneira, democratizar uma questão: para que possamos ser parte dessa democracia, e nos beneficiarmos dela, em

que tipo de performance devemos participar?”, indaga. Os encontros improváveis estão no cerne da pesquisa de Trajal Harrell. Estabelecer encontros tornou-se, de certa forma, seu método de trabalho. Antes de visitar São Paulo, em dezembro de 2017, para uma viagem de pesquisa a convite do colecionador Pedro Barbosa, ele participou da documenta 14, em Atenas, onde reside, e acabava de concluir uma residência no MoMA NY, na qual trabalhou sobre o encontro entre duas lendas da dança: Tatsumi Hijikata, fundador do butô, e Dominique Bagouet, líder da Nouvelle Danse francesa. A pesquisa resultou na peça The Ghost of Montpellier Meets the Samurai. Trata-se de um estudo do orientalismo pela ótica da dança moderna norte-americana. “O encontro tornou-se uma prática natural que funciona para mim como uma maneira de produzir a diferença. Penso que, ao colocar duas coisas juntas – coisas que nem sempre são opostas –, eu posso criar uma terceira. E sair desse modelo de oposição binária”, conclui. FOTOS: MIANA JUN/ CORTESIA TRAJAL HARRELL

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PORTFÓLIO

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ALETA VALENTE SUBURBANA, MÃE SOLTEIRA, FEMINISTA, ARTISTA Mais conhecida pelo personagem Ex Miss Febem, que performou em redes sociais, a artista de Bangu surpreende, provoca, desafia estereótipos, questiona novas correntes de pensamento e recebe enxurradas de ataques vindos da direita e da esquerda

MÁRION STRECKER

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Acima, Ilha do Sol Photo Studio, Venha Se Despir de Suas Vergonhas (2016), trabalho de Aleta Valente para o projeto Permanências e Destruições, no antigo refúgio naturista em ilha na Baía de Guanabara, onde Luz del Fuego viveu FOTO: CORTESIA DA ARTISTA

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Acima, Comendo Grama, selfie de Ex Miss Febem (2015-2017), personagem incorporado em redes sociais pela artista e ativista Aleta Valente

ALETA VALENTE É UMA ARTISTA QUE AFRONTA ESTEREÓTIPOS. ATIVISTA, USA A INTERNET, O HUMOR E AS CÂMERAS DE CELULAR HÁ ANOS, EXPLORANDO PROFUNDAMENTE A DINÂMICA E A INTERATIVIDADE DAS REDES SOCIAIS, ONDE CAUSA FUROR E ATRAI TANTO ÓDIO QUANTO SEGUIDORES.

Seu trabalho mais conhecido é o avatar Ex Miss Febem, personagem que encarna em fotos e textos curtos em redes sociais desde janeiro de 2015, e que saiu do ar em janeiro de 2017 por ter recebido grande número de denúncias de outros usuários dessas redes, com suas regras de uso extremamente pudicas sobre a exposição do corpo humano. O nome Ex Miss Febem foi tirado do refrão da música Kátia Flávia, de Fausto Fawcett. A moça bonita e gostosa aparece em selfies nas mais diversas poses, muitas delas supostamente sensuais, só que em cenários nada glamourosos, muito pelo contrário. Ela pode lamber a axila não depilada num vagão de trem, mostrar absorventes ínti-

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”Meu trabalho é confrontar as formas de representação mainstream do corpo da mulher, um corpo sempre asséptico, depilado e passivo”

que fez papéis de empregada e prostituta. “Foram os papéis que me couberam”, diz. “Nunca me senti confortável como atriz. Entendi que não era isso que eu queria: ficar de marionete de homem, emprestando meu corpo, porque é arte e ele está pensando através do seu corpo”, argumenta. Aleta Valente foi aluna da UFRJ em duas temporadas, sem ter conseguido se formar. Era uma adolescente grávida quando prestou vestibular pela primeira vez. Queria fazer cinema, mas achou que tinha mais chances de entrar em Educação Artística, habilitação Artes Plásticas. “Desenho nunca foi meu forte, mas eu gostava de estudar a teoria da coisa. A dificuldade é que era curso integral.” Jubilada, fez vestibular de novo para História da Arte, mas nunca se formou. “Se você é mãe, se trabalha, você não tem tempo para mais nada. É carcerário o modelo. Minha vida tem altos e baixos. Tem uns anos que passei dormindo, não sei bem o que aconteceu”, conta, mencionando o histórico de doenças psiquiátricas na família. Ela também estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e fez residência no Museu Bispo do Rosário e no Capacete, onde conta ter aprendido a falar inglês. Em 2015, criou uma residência artística em sua própria casa, em Bangu, na qual já recebeu artistas em duas temporadas de duas semanas cada.

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SUBÚRBIO

mos ensanguentados ou vestir como abadá uma camiseta com a marca Cytotec, o remédio com efeito abortivo que no Brasil só os hospitais têm direito de comprar. Antes de se considerar uma artista visual, Aleta fez cinema. Foi personagem do documentário de Eduardo Coutinho intitulado Jogo de Cena (2007), em que mulheres contam suas histórias de vida e atrizes interpretam a seu modo essas histórias, borrando as linhas que separam ficção de realidade. Aleta entrou com seu depoimento e também foi interpretada por Fernanda Torres. “Todo o desdobramento, de ver as pessoas na première rindo ou fazendo comentários, foi muito brutal. Tudo do que eu queria me distanciar estava explícito ali: vulnerabilidade, pobreza, desespero, medo da loucura... Mas isso me abriu para entender também como eu represento a mim mesma”, disse Aleta à seLecT. Depois foi atriz em dois filmes de Domingos de Oliveira, em

Bangu é um dos bairros mais populosos do Rio, o mais distante do mar e o mais quente. O ícone histórico do bairro é a Fábrica de Tecidos Bangu, maior e mais moderna unidade industrial do Rio, orgulho nacional e onde trabalhou como operária uma avó de Aleta Valente. A Fábrica, conhecida pelos tecidos de alta qualidade, funcionou ali de 1889 a 2005, sendo responsável por transformar uma área rural em espaço urbano. Desde o ano passado, seu prédio abriga o Shopping Bangu. Em 1987, foi criado no bairro o complexo penitenciário que já hospedou bandidos de todos os quilates, entre eles os ex-governadores do Rio Sérgio Cabral e Anthony Garotinho. Não adiantou o decreto de 2004 desmembrando de Bangu a área do presídio e do lixão. As unidades do hoje Complexo Penitenciário de Gericinó, no novo bairro de Gericinó, continuam sendo chamadas de Bangu 1, Bangu 2, Bangu 3A, Bangu 3B e até Bangu 10. Daí as piadinhas que Aleta Valente tem de aturar. “Cresci em Bangu, circulando pela cidade, e a galera sempre perguntando se em Bangu eu estava na condicional, se o meu regime era semi-aberto, gatinho perguntando se podia fazer visita íntima, o caralho!”, disse Aleta em

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uma de suas primeiras histórias no Instagram este ano. “Artistinha da zona sul performando pobreza, presa para sempre dentro de sua própria performance”, disse, dando a impressão de estar lendo mais um comentário acusatório escrito sobre ela na internet. “Uma época, eu namorava um boy e o comentário era que eu pegava um boy de zona sul para ter onde dormir. E agora eu sou zona sul fantasiada de suburbana. Vocês têm que se decidir”, diz ela, convidando o ouvinte a pegar trem, ônibus, metrô e Kombi para fazer as acusações cara a cara em Bangu, em vez de se esconder no conforto da internet. “Tô fazendo piada assim, mas não está tranquilo, não está leve pra mim. Ano passado foi muito escroto”, desabafou. “Meio que tá liberado no Rio de Janeiro a pessoa entrar, pichar meu trabalho numa exposição e sair aplaudido. O nome disso é bullying mesmo, é hate mob”, disse. “Não é a coisa mais agradável do mundo ter uma galera te chamando de racista dentro do próprio cir-

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Acima, Breastfeeding All Over the World, foto do Instagram da Ex Miss Febem, personagem que Aleta Valente incorpora na internet desde 2015. À dir., Barbara (2016), trabalho de Aleta Valente que faz referência à história verídica de uma presidiária que deu à luz dentro de uma cela de Bangu)

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cuito da arte. A evidência seria que usei turbante, que usei trança”, disse ela, filha de uma família multirracial. “Já fui acusada de fetichizar a marginalidade, porque não existe Miss na Febem. Soa engraçado as pessoas se perguntarem se existe vida inteligente numa periferia. E a pessoa, quando se referiu a mim, me citou como ‘artista periférica’ com muitas aspas!” ABORTO E FALSIFICAÇÃO

Como a Organização das Nações Unidas, que equiparou a proibição do aborto à prática de tortura contra mulheres, Aleta Valente é pró-aborto. Em exposição coletiva no Instituto Tomie Ohtake, no ano passado, Aleta pôs na parede um grande cartaz, onde se lia: “Vamos falar sobre o aborto”, seguido de um número telefônico que atendeu por 24 horas. Mãe solteira na adolescência, Aleta não teve o aborto como opção e escondeu o quanto pôde a gravidez, até ser

obrigada a enfrentar uma vida de privações e repreensões. Hoje, com o punho recém-operado depois de um acidente quando ensinava a filha adolescente a andar de skate, ela diz que virou “doula de aborto”. É trabalho voluntário, que consiste em dar informação e apoio psicológico a meninas e mulheres que querem abortar e não têm os R$ 8 mil que cobram em clínicas clandestinas. Maternidade, marginalidade e o horror a que as mulheres estão expostas num sistema que não respeita especificidades também aparecem em Barbara, trabalho de 2016. Aleta interpreta uma presa que saiu do isolamento com o bebê no colo e o cordão umbilical ainda no útero, conforme aparece em um relatório da prisão de Bangu de 2015. Antes de se reconhecer como artista, Aleta foi montadora, monitora e assistente de artista. Os registros mais antigos da sua obra são de 2013, como o site specific que criou para uma bienal ocorrida enquanto estudava na UFRJ. Sua

FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA

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performance consistia em falsificar diplomas de graduação em Belas Artes, com carimbo e direito a fotos registrando a entrega do canudo aos alunos paramentados. Da mesma época é MoMAcumba, trabalho em que Aleta emula um Ebó com galinha congelada, pacote de cigarros light, maçãs, farofa, velas, cachaça e fotos da fachada do Museu de Arte Moderna de Nova York, com o desejo expresso de entrar no templo em que se transformou o museu. Um projeto de 2016 foi chamado de Venha Se Despir de Suas Vergonhas, dentro do projeto Permanências e Destruições, com curadoria de João Paulo Quintella. O local foi a Ilha do Sol, na Baía de Guanabara, que já foi um refúgio naturista até ser abandonado depois do assassinato brutal de sua fundadora, Dora Vivacqua, mais conhecida como Luz del Fuego, famosa por fazer performances nua com cobras. Ali Aleta criou um estúdio fotográfico e por dois dias realizou e estimulou performances registradas em Pollaroid, que eram distribuídas aos participantes. CONSTRUCTO MISÓGINO

Gênero e raça para ela são construções sociais. “Hoje, eu sei que minha mãe é negra e meu pai é branco, só que não foi assim que eu vi a vida inteira, apesar de meu pai ser mais claro e minha mãe ser dois tons de pele acima do meu e ter aquele cabelo mais crespo. Alisei cabelo a vida inteira – fazia touquinha –, que loucura. Parei dois anos atrás. Eu tenho como me disfarçar de branca, sei que estou nesse lugar”, diz ela. Quanto a gênero, “é um conjunto de normas sociais que vão garantir ao macho a subserviência da fêmea. Quando a gente nasce e furam a nossa orelha, isso se chama um marcador social, você já é marcada como pária, você vai ser tratada de forma diferente desde o seu nascimento. Meninas morrem muito mais sufocando, aspirando coisa, porque a cultura diz que você tem de enfeitar a menina. Tem fetocídio de fêmea. Tem um bando de mutilação digital. Aqui é o mercado da cirurgia plástica, que é mutilatório e cai sobre o corpo da mulher brutalmente. O Brasil é campeão de vaginoplastia, ninfoplastia, correção dos lábios. É uma demanda criada por pornografia mainstream, essa infantilização dos corpos da fêmea. A gente sofre essa influência dos corpos midiáticos. A gente se mede por esses outros corpos. Um constructo completamente misógino, masculinista. Gênero é isso”, diz ela. Nos últimos anos, Aleta foi chamada para participar de encontros sobre questões de gênero. Ao falar de sua carreira no cinema e na arte, foi hostilizada. “Tentei falar de maternidade como marginalidade e

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Abadá do Cytotoxic, selfie de Ex Miss Febem, personagem incorporado em redes sociais por Aleta Valente, que defende o direito de aborto

me disseram que maternidade era privilégio cis. Que não concluí a faculdade porque não quis”, desabafa. “Meu trabalho é confrontar as formas de representação mainstream do corpo da mulher, um corpo sempre asséptico, depilado e passivo. Esse lance de pudica é foda. Mas pornografia não tem pudor e nem por isso é feminista. Acho que, quando cai nessa coisa de vadia ou

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moça de família, em ambos os lados há uma desumanização da mulher. De um lado, ela é um bem privado. Do outro, é uma propriedade pública. Eu falo porque não tenho amarra com instituição, não tenho amarra de trabalho, trabalho amassando limão na noite. Posso falar de assédio extensivamente. Já sofri abuso dentro do circuito da arte e continuo sofrendo.”

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PERFIL

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AMOR E ARTE EM TEMPOS PÓS-MODERNOS Duos artísticos, envolvidos tanto amorosamente quanto profissionalmente, trazem à tona reflexões sobre gênero e extinguem as linhas que separam arte e vida

ENQUANTO A HOMOSSEXUALIDADE ERA DESCRIMINALIZADA NA INGLATERRA EM 1967, O ITALIANO GILBERT PROESCH CONHECIA O INGLÊS GEORGE PASSMORE, COM QUEM DECIDIU PASSAR O RESTO DE SUA VIDA. Os dois

eram estudantes da escola de artes St. Martins e não tardariam a perceber que sua produção artística deveria ser feita em dupla. Gilbert & George, como ficaram conhecidos, são um dos mais emblemáticos duos que a arte contemporânea já viu. Trabalham e vivem juntos há 50 anos e conseguiram provocar reações críticas diversas vezes, seja pelas suas obras, seja por suas declarações polêmicas. “Nós queremos que a nossa arte traga o intolerante de dentro do liberal e, inversamente, o liberal do intolerante”, disseram em 2014. Com esse mote, seus trabalhos e opiniões enfrentam desde os mais puritanos até os moderninhos de plantão. Em sua mais recente série, denominada THE BEARD PICTURES (em maiúsculas, como fazem questão), a imagem sempre presente da dupla aparece em contextos absurdos, colorida e, simbolicamente, barbada. Com um mundo endoidecido na retaguarda, Gilbert & George aparecem nas montagens fotográficas com extensas barbas, cada vez revestidas por uma textura diferente – espuma de cerveja, folhas e flores, entre outras. A barba faz referência a esteSELECT.ART.BR

LUA N A F O RT ES

reótipos religiosos ou mesmo à juventude hipster/cool que não abdica dos cabelos faciais em favor da moda –, algo que jamais admitiriam. Fora isso, outro elemento também frequente na série é o arame farpado. O duo surpreende-se com o quanto se gasta atualmente em mecanismos de segurança. O arame, que antes enxergavam apenas em cercas de fazendas, agora tomou conta das cidades, impedindo pessoas de entrar ou sair de ambientes exclusivos. Gilbert & George não costumam visitar exposições de arte – deixaram de frequentar a cena artística em 1979. Eles acham importante confrontar-se com o mundo, não com a arte. Não vão ao cinema ou ao teatro com frequência – apenas abriram uma exceção para a ópera sobre eles mesmos, The Naked Shit Songs (2017). Mas assistem ao jornal. E, como afirmam, nas notícias só enxergam arame farpado e pessoas

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BEARDOUT (2016), da série THE BEARD PICTURES, de Gilbert & George

barbadas. Na série THE BEARD PICTURES (2015-2016), assim como em toda a sua obra, a dupla responde àquilo que vivencia. Começaram como esculturas vivas e borraram os limites que separam arte e vida. E, atualmente, mesmo em montagens fotográficas, seguem borrando fronteiras, apesar de mergulhados em cenários absurdos. GÊMEAS HERMAFRODITAS DO FUTURO

Se Gilbert & George se abstêm da cena artística, o absoluto contrário acontece com EVA & ADELE (também elas fazem questão do uso de letras maiúsculas). Quem compareceu às principais aberturas de grandes exposições ou feiras de arte dos últimos 20 anos com certeza encontrou duas pessoas bastante singulares que roubaram a atenção. Oficialmente participando, ou não, elas não saem despercebidas de eventos.

EVA & ADELE afirmam haver se conhecido no futuro. Elas encontraram-se em uma máquina do tempo, quando viajavam para a Grécia Antiga em busca de hermafroditas na origem da cultura europeia. Aterrissaram sua espaçonave em Berlim, logo antes de o Muro ser derrubado, em 1989. E, desde então, aparecem em público vestidas com a mesma roupa e maquiagem. Ambas são carecas e estão sempre com um sorriso no rosto. EVA, considerada legalmente mulher desde 2011, nasceu em corpo masculino. “É muito importante mostrar a felicidade da autoidentidade de gênero e mostrar nossa própria invenFOTO: GILBERT & GEORGE, CORTESIA WHITE CUBE

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“É muito importante mostrar a felicidade da autoidentidade de gênero e mostrar

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nossa própria invenção e nossa própria ficção”, dizem EVA & ADELE

Acima, MEDIAPLASTIC N o 9 HÖRZU (1992), de EVA & ADELE, pintura realizada com referência à capa da revista alemã Hörzu . Na pág. ao lado, fotografias da série Relationship (2008-2013), de Zackary Drucker e Rhys Ernst

ção e nossa própria ficção”, disseram à seLecT. “Nosso sorriso é uma obra de arte” é uma de suas frases de efeito, junto de “Onde estamos é um museu”. A performance Hochzeit Metropolis (1991), em que se apresentaram como duas noivas, marca o início da produção do duo austro-germânico EVA & ADELE. Daí em diante, as “gêmeas” nunca mais foram vistas fora de suas personas. “Nunca deixamos de estar em uma performance artística, nem em nossos sonhos”, contam. O trabalho do duo é perpétuo e vitalício, informam. Como desdobramento de suas aparições, deixam-se fotografar e depois coletam os resultados divulgados na mídia e nas redes sociais. Realizaram uma série de pinturas, intitulada MEDIAPLASTIC, que tem como referência capas de veículos de notícias em que apareceram. “Induzidas pela enorme disseminação da nossa imagem na mídia ou em espaços privados, e da aparição de nossos sorrisos, nós exibimos ‘ser diferente’ como uma história de sucesso!”, afirmam à seLecT. É dessa forma que contribuem para debates sobre sexualidade e gênero. Não se encaixam em caixinhas reconhecíveis e isso lhes confere satisfação. A mensagem que resigna no público é de que delimitações SELECT.ART.BR

apenas servem para controlar e limitar, como a própria palavra delimitação indica. EVA & ADELE nunca estiveram no Brasil, mas afirmaram com entusiasmo que aguardam convites e propostas para que isso mude. Alguém se habilita? UMA HISTÓRIA DE AMOR

Outro duo que extinguiu as linhas entre arte e vida, assim como desafiou entendimentos sobre gênero, foi Zackary Drucker e Rhys Ernst. Enquanto representações de pessoas trans normalmente vêm carregadas de drama e espetáculo, a obra Relationship (2008-2014), exibida pela primeira vez na Bienal do Whitney em 2014, traz fotos banais de uma vida a dois. Esse é o diferencial do trabalho.

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Em 2008, Zackary e Rhys estavam ambos no começo de suas respectivas transições de gênero. Zackary, que nasceu homem, identificou-se com o gênero feminino, enquanto Rhys, que nasceu mulher, viu-se no masculino. Faziam, portanto, um processo inverso do outro. Eles se conheceram logo quando passaram a tomar hormônios e desataram em um romance. O registro fotográfico era despretensioso e espontâneo. Como um diário visual, a dupla se fotografava mutuamente, registrando seu processo de transição. Não publicavam as imagens em redes sociais – na época, o Facebook e o Instagram ainda não haviam atingido seus auges. Apenas por acaso, mostraram as fotografias para Stuart Corner, um dos curadores da Bienal do Whit-

ney da época e, sem querer querendo, imagens pessoais tornaram-se obras de arte. Dois anos depois, inclusive, o diário ganhou forma de publicação pela editora Prestel. Mas a atenção que a série ganhou nas mídias focava na questão trans, enquanto o título do trabalho indicava algo distinto. Relationship – em português, relacionamento – acompanha o cotidiano de duas pessoas apaixonadas que, somente por acaso, estavam no meio do processo de transição de gênero. E coisas como uma injeção de hormônio nos glúteos fazia parte do dia a dia de Zackary e Rhys. Era inevitável que isso aparecesse nas imagens. De qualquer modo, o trabalho abriu portas para diálogos sobre transexualidade e sobre o amor nos tempos pós-modernos. Com seus trabalhos, Zackary Drucker e Rhys Ernst, EVA & ADELE e Gilbert & George provocam discussões necessárias. Trabalham para borrar limites, complicar significados e adicionar camadas a circunstâncias que não são simples. Como afirmaram Zackary e Rhys, em entrevista para Hugh Ryan, diretor-fundador do Museu Pop-Up de História Queer, “nós não facilitamos, porque de outra forma não seria interessante”. FOTOS: CORTESIA NICOLE GNESA GALERIE, MUNICH/ CORTESIA DOS ARTISTAS, LUIS DE JESUS LOS ANGELES

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ARTE E EDUCAÇÃO

Assunto permanente da história da arte, o estudo de observação do corpo humano guardou e sempre guardará enigmas a serem decifrados. Desenha-se o que se vê? Um corpo estritamente biológico ou uma identidade subjetiva?

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DISSIDÊNCIAS SEXUAIS E PEDAGOGIAS

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ULISSES CARRILHO

“UMA OFENSA À NATUREZA, ÀS TRADIÇÕES, À DECÊNCIA. SÃO ABOMINÁVEIS”, lia-se na revista nova-iorquina The

Architectural Record sobre Les Demoiselles D’Avignon, pintura de Pablo Picasso terminada em 1907 em seu ateliê no bairro de Montmartre, em Paris. O título do trabalho, dado anos mais tarde, referia-se à Carrer Avinyó, rua de um bairro mal-afamado de Barcelona. Perante o quadro, Georges Braque, cofundador do movimento cubista, afirmou que “alguém tinha bebido petróleo para cuspir fogo”. O artista rompeu com as leis da perspectiva, negou a concepção clássica da beleza e esqueceu intencionalmente o equilíbrio realista entre as proporções e a pretensa integridade do corpo humano, apresentando distorções angulosas de figuras e remetendo-nos, em duas das imagens representadas, para ângulos análogos àqueles das máscaras africanas que admirava, acessando o imaginário dos museus etnográficos e a própria geometria. Assunto permanente da história da arte, o estudo de observação do corpo humano guardou e sempre guardará enigmas a serem decifrados. Desenha-se o que se vê? Um corpo estritamente biológico ou uma identidade subjetiva? Da anatomia às várias fisionomias do desejo, que contornos imaginamos quando o corpo que está posando contesta noções binárias? Se o corpo que posa também performa, reside o gesto do artista apenas naquele que empunha o lápis? Para fazer escola é preciso confiar na por vezes desconfortável fricção, na dúvida. As respostas que não temos são como possibilidades de reinvenção cotidiana de sentido e realização dos nossos desejos. No dia 10 de março de 2017, para a aula pública Modelo Vivo, Modelo Trans foram reunidos Indianara Siqueira, prostituta

Aula pública Modelo Vivo, Modelo Trans, conduzida pelo professor Gianguido Bonfanti, com modelos cis e trans, à beira da piscina do palacete-sede da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 10 de março de 2017 FOTOS: RENAN LIMA

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Aula pública Modelo Vivo, Modelo Trans, conduzida pelo professor Gianguido

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e coordenadora da ONG TransRevolução, Virginia de Medeiros e Luiz Roque, artistas convidados, e Gianguido Bonfanti, o mais antigo professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, que leciona desenho com modelos vivos desde 1978, para uma mesa de debates, mediada por Lisette Lagnado e por mim. O debate foi seguido de uma aula pública e gratuita de desenho de observação no pátio da piscina da EAV Parque Lage, com quatro modelos cis e trans. A performatividade do gênero é tema recorrente nas investigações artísticas de Virginia de Medeiros e Luiz Roque, cujas obras articulam registros do documentário e da ficção científica. Em Studio Butterfly, projeto que Virginia apresentou na 27ª Bienal de São Paulo, Como Viver Junto (2006), funcionou durante, aproximadamente, um ano e meio, pensado como um ponto de encontro com as travestis numa pequena sala de um edifício comercial do centro de Salvador. No trabalho de Luiz Roque, percebemos as relações de corpo e gênero, bem como a própria ideia de coreografia, articuladas ao legado escultórico moderno. Em Modern (2014) parte da observação de Recumbant Figure (1938), de Henry Moore, e estabelece um diálogo formal com Leigh Bowery, artista e figura da vida noturna de Londres na década de 1980 até meados da década seguinte. No filme contrapõem-se noções binárias: alternam-se imobilidade e dança, o erudito e o popular, a história e o futuro. Indianara Siqueira é militante da causa trans e idealizou o projeto PreparaNem, curso preparatório para travestis e transexuais em busca de uma cadeira em uma universidade pública. Em 2016, ela foi também a primeira transgênero a disputar eleições municipais na cidade do Rio de Janeiro. Junto a Indianara pediu-se a outros artistas que performassem o modelo que lhes conviesse, rebeldes ou estáticos: Carol Azevedo, Elie Landreau, a própria Indianara Siqueira, que não compareceu, e Naomi Savage. Para Bonfanti, a observação demorada e repetida interessa, pois a mirada “desafia o arquivo visual que temos, saturado de imagens do nosso corpo, que censura o nosso olhar, tentando impor seus conceitos e seus princípios”. AGITE ANTES DE USAR

Uma ideia aventada pelo Coletivo Universitário de Dissidências Sexuais, de Santiago do Chile, no livro Agítese Antes de Usar – Desplazamientos educativos, sociales y artisticos en America Latina, organizado por Miguel e Renata Cervetto, apresenta um possível caminho. O coletivo aborda como para sua prática foi importante perder o respeito pelas normas – e, principalmente, pela heteronorma, perder o respeito pelas categorias e pelas disciplinas. Indicam, inclusive, que, para além de uma transdisciplinaridade, o que lhes interessa, ao fim e ao cabo, é uma produção de sentido que parta da indisciplina. Se não é possível – e nem queremos – ter um entendimento totalizante das performatividades de gênero e das SELECT.ART.BR

várias fisionomias do desejo, é possível e urgente refletir acerca dessas questões. É preciso levar em conta os corpos como campos criativos de potencialidade radical, de gozo e de prazer, de experimentação e de erro, com espaço para corpos dissidentes e desejos ainda desmensurados. O pesquisador Helder Thiago Maia olha para a crítica literária latino-americana em seu livro Devir Darkroom, refletindo acerca da privatização dos prazeres dissidentes. Cita o fechamento de parques, praças, banheiros e outros espaços públicos, enxergando o espaço das luzes apagadas como o lugar dos gozos perversos, onde tateamos os sussurros das línguas menores e enxergamos com a pele. Território de resistência onde os corpos dançam na escuridão e compõem campos de imanência do desejo. O autor aponta como um método possível aspirar, tragar, tatear, chupar, ouvir, lamber, enxergar, experienciar, delirar. Oferecer-se ao devir, ao contágio aberrante. Enxergar no escuro, ouvir no silêncio. O darkroom, como a escola, pode ser um lugar onde habitam os desejos. Dito isso, voltamos à pergunta que ressoa: o que é uma escola livre? Perguntando-se, não acerta. Por vezes, erra. Deambula em meio às várias respostas. Essa aula aberta não deve ser entendida como um movimento apartado, excepcional, nem mesmo inédito. Prefiro entendê-la como um esforço manifesto de aproximação. Na ocasião dos 40 anos da Escola, que outrora ganhou as frases “Espaço de emergência, espaço de resistência”, o curador Miguel López,

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À direita, parte do cartaz que divulgou a aula pública de desenho de observação com modelos trans na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em março de 2017

do Centro de Investigação e Pesquisa TEOR/éTica, em San José, na Costa Rica, propôs uma resposta que muito me agrada. Nesse sentido, gostaria de colocar aqui algumas das frases enviadas por ele. Essa resposta me agrada não pelo que ela define sobre uma escola livre. Muito antes, pelo contrário. Pelo horizonte generoso para onde ela aponta e, principalmente, pelos erros que ela revela: “Uma escola de arte livre é uma escola onde podemos mudar os nossos nomes e onde o conhecimento se produz a partir de usos do corpo. Uma escola de arte livre tem a urgência de romper com o lugar privilegiado que a subjetividade masculina e patriarcal manteve na construção das narrativas. Nessa escola todas nós falamos usando o pronome feminino. Essa escola funciona basicamente por meio dos movimentos do desejo, porque seu papel principal é redefinir radicalmente os nossos horizontes de ação e compromisso. Uma escola de arte livre é um projeto de uma vida compartilhada, uma política do afeto, da coletivização dos recursos de imaginação coletiva. Essa escola é sempre um projeto feminista, cuja ética nos ajuda a sonhar com histórias diferentes: relações sociais sem hierarquias, corpos sem rótulos, novas coreografias amorosas, modelos alternativos de família, um contrato social mais igualitário de espécies, uma nova economia do cuidado. Uma escola de arte livre é uma rede de colaboração de corpos frágeis”. Um desafio para uma escola de arte é articular como se cruzam e se confrontam as disciplinas que ordenam o

campo do conhecimento, que desafiam as formas de fazer, pensar e atuar a partir da arte. A afirmação em si do ato de educar gera, hoje em dia, certa controvérsia pela sua associação direta com um tipo de aprendizagem rígido e vertical. É compromisso de uma escola de arte, hoje, borrar os limites geográficos, corporais, as certezas. Interpelar o conhecimento, o certo e o conhecido assumem-se como um compromisso diário. Nesse entrecruzamento selvagem de referências e imagens artísticas proponho que lembremos de uma performance do coletivo Yeguas del Apocalipsis, que propunha refundar uma instituição de ensino no Chile. Em linhas gerais, a performance Refundação da Universidade do Chile (1988) consiste na entrada de Pedro Lemebel e Francisco Casas na Escola de Belas Artes da Universidade do Chile, nus e montados em uma égua com o slogan da refundação da instituição. Esse gesto está inscrito numa complexa teia de resistência e propõe um vínculo entre arte, sexualidade e política. Tratava-se da irrupção de um corpo e um discurso dissidente que se materializou no espaço público, revelando o invisível e o inaudível. Em ambos os casos interessa considerar a performance como um dispositivo que revela um conjunto de tensões em torno da construção social, estética e ideológica, de uma perspectiva militante e de gênero que busca subverter e refazer os códigos da língua patriarcal e autoritária por meio do incentivo à experimentação estética e dos corpos transviados. FOTO: DIVULGAÇÃO

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Um mapa é um conjunto de pontos, como uma reta, um texto, uma pessoa, qualquer desenho, uma representação de um espaço que precisa caber em outro espaço, um mapa é sempre uma mentira, uma forma de te convencer que o mundo pode caber dentro da sua sala, que é possível conhecer as ruas da cidade, que você conseguiria andar em todas elas, que você de fato conhece o espaço em que está, que ele cabe numa bola, numa tela de celular, e que, por ser também um conjunto de pontos, você está ali dentro. Enquanto este texto para revista é escrito, uma de nós desapareceu. O nosso problema com mapas é esse, eles não servem para nada quando uma de nós desaparece. Ele não cabe no celular e não faz sentido uma representação em tamanho menor de um espaço que a gente nem sabe direito qual é, onde está, para onde vai. O nosso problema com prazos também é esse. O que é maior: um mapa, um texto ou a Yasmin, perdida na cidade? Ela ainda não apareceu. O texto continua parado. O mapa serve para cada vez menos coisas, no máximo uma check list de bairros nos quais ainda não pensamos. Uma foto dela é maior do que um mapa. A Yasmin não precisa de foto, todo mundo sabe quem ela é, ainda que não saiba dizer onde ela está. E se ninguém acha que ela morreu,

E SE CARLOS MONROY SUMISSE

P R OJ E TO

estar DISPONÍVEL em caminhos na rua l e m b r a r c o m o A RT I C U L A R c a m i n h o s p a r a e s t a r d i s p o n í v e l n a r u a SUMIR, mas tentar aparecer para que te encontrem disponível na rua e lembrar


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então ela tá viva, a gente se convence disso, porque a Yasmin morrer é grande demais pra caber neste texto. Podia ser outra. O texto continua sem final. Como terminar quando a gente não sabe quem ainda tá vivo? Para quê articular tantos pontos invisíveis se a gente não consegue de antemão saber que desenho eles vão construir? A Yasmin ainda não está morta. A Anita me atendeu. A Dani tá muito preocupada, a Lu tá viajando, o Dudu tá fora do Brasil, o João tá doente, o Roberto não tá mais na foto do celular da Anita, a Tati mandou feliz ano-novo, mas depois não mandou nada, a Luizah apareceu numa foto de Facebook, a Fabíola não tá conseguindo pagar o gás, a Sabelly mudou de casa, a Ivana ninguém sabe onde está, mas tá viva, a Suzy postou ontem no Facebook uma foto com a tia, a Bruna achou um absurdo a nova ação que vão fazer na cracolândia, a Camila explicou como vai ser essa ação, a Patrícia se ofereceu pra ir com a Dani na craco buscar a Yasmin, e a Anne, tá bem? o Alê não tem celular, um monte de gente que a gente não sabe se mudou de telefone tá em silêncio. Este é o mapa do que fizemos ontem por escrito. A Dani agora mandou uma imagem. E l a e Ya s m i n s o r r i n d o . A Ya s m i n t á v i v a . Este mapa então conta uma história feliz, mas não deixa de ser também um conjunto de pontos que não levam a lugar nenhum, porque este mapa é uma história e não um espaço, porque a cidade é história, mas é também silêncio e porque a g e n t e não a c a b a a q u i . E s e a g e n t e c o n t i n u a , s e m p r e e x i s t e o r i s c o d e a c a b a r, d e u m a h o r a p r a o u t r a , s e m t e r a l c a n ç a d o u m ponto de chegada.

está. E se ninguém acha que ela morreu,

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R E P O R TA G E M

LUGAR DE FALA

Em debate, a legitimidade de artistas para tratar de temas e assuntos que nĂŁo

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lhes pertencem

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PODEMOS FALAR SOBRE TUDO OU SOMENTE SOBRE O QUE NOS É PERMITIDO FALAR? ESTA É UMA DAS PERGUNTAS QUE A PESQUISADORA DJAMILA RIBEIRO FAZ EM SEU LIVRO O QUE É LUGAR DE FALA?, lançado pela Editora Letramento no

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fim de 2017. Derivada de discussões feministas, a expressão “lugar de fala” busca questionar a legitimidade que é conferida a grupos localizados no poder e romper com o regime de autorizações vigentes. O questionamento faz-se necessário, pois não existe equilíbrio entre a autoridade atribuída, por exemplo, a homens brancos cis e mulheres transexuais negras. Indagar se um homem pode falar sobre feminismo causa dissenso. Alguns dizem que o importante é defender o feminismo, independentemente de quem o defende. Outros (e outras) acham que nenhum homem está em boa posição para discorrer sobre o tema. Ele pode teorizar sobre o assunto, mas não representará a mulher. “Há pessoas que dizem que o importante é a causa, ou uma possível ‘voz de ninguém’ como se não fôssemos corporificados, marcados ou deslegitimados pela norma colonizadora. Mas, comumente, só fala na voz de ninguém quem sempre teve voz e nunca precisou reivindicar sua humanidade”, escreve Ribeiro. Trazendo o debate para a esfera da arte, pode um artista falar sobre tudo? A resposta talvez esteja em metodologias. Para efeito de transparência, é necessário deixar claro o lugar de onde se fala. Um artigo jornalístico também não deve ser poupado da discussão, por isso esclareço de onde falo eu. Sou mulher, branca, cis, lésbica, formada em universidade particular, embora essa intersecionalidade não determine inteiramente meu lugar de fala. Quando uma pessoa fala sobre um contexto ao qual não pertence, ela escapa de seu lugar de fala.

A produção de Miguel Rio Branco é terreno fértil para a reflexão. O artista, filho de diplomata brasileiro, nascido na Espanha, apontou sua câmera para o bairro Maciel, em Salvador, no fim dos anos 1970, e registrou o dia a dia de prostitutas da região durante seis meses. O trabalho tem sido exibido com frequência. Além de estar exposto permanentemente na galeria do artista em Inhotim, foi revisitado na mostra Nada Levarei Qundo Morrer, no Masp, em 2017. “Acho que o trabalho é meio atemporal. Você pode encontrar lugares no mundo com situações parecidas até hoje”, diz Rio Branco à seLecT. O artista posiciona-se criticamente diante de situações que julga “decadentes” e muitas vezes registra pessoas em contextos diferentes do seu. No entanto, a partir de mecanismos de edição, fusão e justaposição de imagens, seus trabalhos mixam lugares específicos para aterrissar em situações gerais de um mundo globalizado. “O trabalho do Miguel não atua na esfera da denúncia no sentido clássico da fotografia documental humanista, que tende a denunciar a violência ou a precariedade de um endereço específico”, afirma para a seLecT Paulo Miyada, curador de recente individual do artista no Oi Futuro, no Rio de Janeiro. No caso de Maciel, houve uma negociação entre o artista e as pessoas retratadas. AGENCIAR A SI MESMO

Na pág. ao lado, fotografia da série Maldicidade, (1970-2010) de Miguel Rio Branco

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Elas permitiam que fossem ouvidas, filmadas e fotografadas, e recebiam retratos fotográficos em troca. O trabalho deixa claro que não é possível desconsiderar a capacidade de elas falarem por si mesmas. Enquanto na série existem diversos signos de destruição e morte, a contraposição é sempre feita pela presença vívida de suas personagens. “O que tem de vivo no trabalho dele são sempre as pessoas. De um jeito meio bruto, meio incontrolado. Às vezes violento, às vezes ameaçador, às vezes chocante”, diz Miyada.

A dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca foi acusada de não ser transparente com as pessoas que participam do filme Terremoto Santo (2017), exibido pela primeira vez na exposição Corpo a Corpo, na abertura do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, e logo após no festival Janela Internacional de Cinema do Recife. O trabalho mostra cantores de música gospel da Zona da Mata de Pernambuco que encenam suas próprias composições em (quase) videoclipes. A obra trata de artistas da igreja evangélica pentecostal Assembleia de Deus. Muitos enxergaram uma chacota aos Levitas (como se denominam os fiéis). No entanto, a intenção dos artistas estava longe de ser essa. “A gente trabalha com outros, sim. Mas é um outro que queremos conhecer de perto. E a nossa forma de conhecê-lo é entender que ele é artista também”, diz Bárbara Wagner à seLecT. “Ele tem uma expressão estética e política que trata do lugar de onde ele fala e que constrói sua própria representação muito bem”, continua. Por isso, por trás dos trabalhos da dupla existe sempre uma grande equipe de coautores, que faz com que cada filme seja construído com outras pessoas e não sobre elas. “Essas pessoas são sujeito. Elas não são objeto de análise”, ressalta a artista. Em uma discussão pelo Facebook, os participantes do filme foram convidados para se pronunciar sobre esse assunto. Não houve um comentário que contrariasse o discurso dos artistas. “Em nenhum momento Bárbara TRABALHANDO COM OUTROS

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Na pág. ao lado, still do vídeo Terremoto Santo (2017) da dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Acima, o trabalho Homens Grávidos (2017), de Anaísa Franco

mandou fazermos algo que aos nossos olhos estivesse errado. Muito pelo contrário. Ela me respeitou com diferentes maneiras de ser e ganhou meu respeito e carinho”, escreveu Joalysson Anderson, um dos participantes.

No trabalho da artista mineira Anaísa Franco, a voz do outro é parte constituinte de suas obras. Anaísa já realizou dois trabalhos que tratam de gênero, abrigando a história de outras pessoas. O primeiro, Devenir (2013), foi realizado durante residência artística na Cité des Arts, em Paris. Lá, a artista entrou em contato com centenas de pessoas transgênero e convidou-as para gravar depoimentos em um estúdio. Em Devenir, esses relatos vêm acompanhados de um pequeno espelho interativo que modifica a feição da pessoa que o estiver fitando, deixando-a mais “masculina” ou mais “feminina”. Mais recentemente, Anaísa Franco decidiu abordar histórias de homens transexuais que mantiveram o útero e engravidaram. O projeto Homens Grávidos (2017) consiste em uma escultura feita de madeira que reproduz o corpo de um homem em gestação. Em sua barriga, um vídeo mistura referências da ciência com depoimentos gravados por 12 homens em gestação de diferentes países. A artista entrou em contato com eles pela internet e pediu permissão para usar os vídeos que muitas vezes eles mesmos haviam gravado, diante do ímpeto de contar suas histórias ainda pouco comuns. O que ela fez, portanto, foi escutar e compartilhar esses relatos. O trabalho foi exibido na mostra Homeostase @ The Wrong, no Centro Cultural São Paulo, até o começo deste ano. Dois seguranças do espaço perguntaram curiosos: “Homem grávido? Como assim?! Nos explique”. A artista achou a reação engraçada e conversou com os dois. “Se você não estuda, se você não pesquisa sobre o assunto, se você não quer saber, você não sabe que existe”, diz à seLecT. Trabalhos como esse encurtam as distâncias entre pessoas de diferentes contextos. Não é pouco num mundo gerido por redes sociais em que iguais têm conversado cada vez mais apenas com seus iguais. HOMENS GRÁVIDOS

se L ec T expandida : assista aos vídeos de anaísa franco em bit . ly / anaisa - franco

FOTOS: DIVULGAÇÃO/ CORTESIA DA ARTISTA

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E N T R E V I S TA / S A N D R A I Z S A D O R E

BEM À FRENTE DE UM GRANDE HOMEM HAVIA UMA GRANDE MULHER. Quando Sandra Izsadore conheceu Fela Kuti em Los Ange-

UMA PANTERA NEGRA À FRENTE DA CRIAÇÃO DO AFROBEAT RAMIRO ZWETSCH

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les, em 1969, ela já era ativista do movimento negro desde 1965 e se indignou com a inocência do nigeriano – seu desinteresse por política e pela história da África – e o bombardeou com broncas e livros. Essa influência foi crucial para o músico, que mais tarde se tornaria um dos artistas africanos mais contestadores da história. Em 1976, em sua segunda visita à Nigéria, ela o encontrou completamente transformado. Ele já tinha mais de 15 discos lançados, inúmeros confrontos com a polícia local e já havia declarado a sua residência um território independente do país – a República Kalakuta, onde vivia com suas 27 mulheres, além de familiares e músicos de sua banda. Àquela altura, sua obra já o consagrava como o criador do gênero afrobeat e seu inconformismo pulsava nas letras de suas músicas. Sandra estava lá para gravar o álbum Up Side Down, com produção de Fela. A experiência, no entanto, foi muito além e ela também teve de lidar com a poligamia do namorado nigeriano. O ápice da tensão entre o músico e o governo nigeriano deu-se em 1977, quando o exército invadiu a Kalakuta com mais de mil homens e incendiou a casa. Na ocasião, mulheres foram estupradas e presas e a mãe de Fela Kuti, Funmilayo Kuti, foi arremessada de uma janela – e viria a morrer alguns meses depois em decorrência da agressão. Sandra Izsadore esteve no Brasil, em novembro de 2017, para uma série de shows, encontros e palestras no mês da Consciência Negra em Brasília, Salvador e São Paulo. Em seu show na capital paulista, ao lado da banda brasileira Èkó Afrobeat, ela despediu-se do público com a frase: “Mulheres, vocês têm o poder”. É o seu mantra: tanto na palestra que deu no Centro de Formação e Pesquisa do Sesc como na entrevista concedida à seLecT, ela usou as mesmas palavras para festejar a movimentação feminina nos Estados Unidos na denúncia aos assédios do empresário de Hollywood Harvey Weinstein e para explicar sua influência decisiva sobre Fela Kuti (1938-1997): “Na maioria das vezes, nós mulheres temos razão”. seLecT: Na sua palestra, você disse que sua participação nos Panteras Negras foi como estudante, não como líder. O que você aprendeu com eles? Sandra Izsadore: A primeira coisa que aprendi foi sobre seu programa social e sobre o que a organização era. E era sobre proteger a comunidade. Também me ensinou sobre as injustiças que estavam ocorrendo contra os negros, o que me fez aprender sobre mim mesma e sobre a importância de o nosso povo se juntar e se proteger das mentiras diárias. Eu era jovem, uma criança. Quando você está aprendendo, você não interrompe o professor. Você simplesmente sente e aprende.

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Ativista do movimento negro

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desde 1965, a cantora e compositora Sandra Izsadore fala sobre responsabilidade racial e política

Capa do álbum Up Side Down, Sandra Sings With Fela & Africa 70

Sabemos que as mulheres negras sofrem muitos tipos de opressão. Havia algum tipo de sexismo nos Panteras Negras? Nunca senti sexismo, eu sempre me senti igual. Na verdade, eu ainda nem estava ciente do sexismo, assim como ainda não tinha consciência do racismo. Não havia opressão na minha casa, havia igualdade entre meus pais. Quando cresci e fui ao mundo, descobri que havia um desequilíbrio entre homens e mulheres. As mulheres negras sofreram opressões de muitas maneiras desde a escravidão. Você sofreu algum tipo de repressão policial quando estava com os Panteras Negras? Não, mas eu tive meus próprios problemas com a polícia. Fui presa duas vezes. Na primeira situação, acredito que o FBI estava envolvido, pois havia um homem tirando fotos e, na época, eles estavam reunindo informações sobre os ativistas negros. Eu chutei o homem e essa imagem apareceu na primeira página do jornal, eu chutando a bunda desse homem. Na outra situação, fui defender um negro que estava em uma cadeira de rodas e estava sendo atacado pela polícia durante uma manifestação. Durante quanto tempo você foi uma Pantera Negra? Eu ainda me considero uma. É como a minha cor de pele, não é algo FOTOS: DIVULGAÇÃO

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que vai embora. Os encontros ainda acontecem em todo segundo domingo do mês, eles ainda se reúnem. Há um novo grupo com integrantes mais jovens. Não acompanho e não sei exatamente o que estão fazendo, mas já doei dinheiro para essa organização. Angela Davis veio recentemente ao Brasil e fez um discurso muito emocionante em Salvador. Você a conheceu pessoalmente? Não a conheci pessoalmente, mas tenho muita estima e muito respeito por ela, pois é uma das nossas principais lutadoras. Na minha adolescência, eu tinha um altar com todas as pessoas que me iluminaram: Angela Davis, Queen Asantewaa, Marcus Garvey, Huey P. Newton, Stokely Carmichael e Nina Simone. Todos eles estavam na parede do meu quarto, eu dormia com eles. Você foi uma pessoa fundamental para a formação intelectual de Fela Kuti. Como aconteceu o primeiro encontro entre vocês? Mulheres... Nós temos poder, sabe? Eu estava aprendendo sobre a nossa história, participando de várias reuniões. Quando conheci Fela, acreditava que tinha muito a aprender com um homem africano. Eu esperava que ele fosse um professor para mim, sem saber que era eu quem tinha algo para ensinar a ele. Ele cantava em ioruba e eu queria entender suas letras. Ele me disse que era entretenimento. Eu disse: “Você tem de mudar isso, você precisa conscientizar as pessoas e fazê-las crescer”. Depois, em outro momento, ele fez um comentário que me chocou. Nós sempre conversávamos à noite e durante uma discussão ele disse: “Os homens africanos são estúpidos”. Ouvir aquilo de um homem africano, que eu esperava que me ensinasse sobre a cultura africana... Eu gritei com ele. Expliquei que a África foi o berço da civilização. “Antes de abrir sua maldita boca novamente, leia este livro”, eu disse. E dei-lhe a biografia de Malcom X. Foi assim que tudo começou. Depois fiz ele ler Before The Mayflower – A History Of Black America (Lerone Bennett Jr.), Nikki Giovanni, Stolen Legacy (George G. M. James)... Como esse homem que foi filho de Funmilayo Kuti (pioneira do feminismo na Nigéria) poderia não ser politizado e não ter interesse no pan-africanismo? Você deve se lembrar que Fela foi criado em uma casa cristã. Isso era algo que nós tínhamos em comum. Ele era um patife, que gostava da sua vida de músico, das festas. Mesmo vindo de uma família de pensadores e educadores... Sua família o mandou para a Inglaterra para estudar medicina, mas, enquanto ele estava lá, seu interesse era todo em torno da música. Quando vocês se encontraram de novo? O homem que você reencontrou já estava transformado? De cima para baixo, Angela Davis, Nina Simone e Marcus Garvey, personagens que decoraram as paredes do quarto de Sandra Izsadore na adolescência

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Quando fui para a Nigéria, em 1969, vi uma continuidade do processo que tinha iniciado no começo do ano, em Los Angeles. A música já estava começando a mudar. Mas, em 1976, sim, eu vi a explosão, era um Fela diferente. No Brasil é muito difícil en-

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tender a poligamia, não temos essa cultura aqui e hoje temos várias discussões em torno do feminismo. Muita gente entende que Fela Kuti era machista. Pfff... Eu não acho que ele era machista. Não sei como é aqui, mas na África a poligamia é normal. Nos Estados Unidos, a monogamia é a norma. São duas culturas, dois pensamentos. Eu aprendi isso em Kalakuta, vivendo na casa com todas as mulheres de Fela, foi uma experiência maravilhosa para mim. Eu gostava de conviver com as mulheres. Nós cozinhávamos e nos divertíamos juntas.

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A poligamia feminina, no entanto, não era aceita, não é?

Desenho que retrata Fela Kuti

“Fela Kuti transformou sua mentalidade colonial para se tornar um verdadeiro homem negro, que transpira e passa sua mensagem adiante. E fui eu quem mostrou isso a ele. Se fiz isso, qualquer mulher pode fazer o mesmo. Temos de reconhecer nossa força e nosso poder como fêmeas”

Poligamia feminina não é aceita em lugar nenhum. O que sei é que muitas mulheres têm múltiplos parceiros secretamente. Notei que isso era comum dentro de Kalakuta. Havia três mulheres que causavam problemas, que queriam toda atenção só para elas. Uma delas se chamava Funmilayo, a outra era Najite e havia uma terceira que não morava em Kalakuta – ela estava sempre chorando porque não aceitava o fato de Fela ter várias mulheres. Era difícil para mim também. Meu papel na vida de Fela foi o de uma irmã. Tínhamos uma relação, mas eu não sou o tipo de mulher que aceita dividir o homem com várias outras. Algumas mulheres não se importam de dividir o homem, outras querem direitos exclusivos. Eu gosto da exclusividade, certas coisas eu não aceito compartilhar. Pode me chamar de egoísta. Eu digo que as mulheres são mestres, especialmente se você está envolvida em uma relação heterossexual. Eu entendo que foi o poder da vagina que fez a mãe de Fela provocar a revolta contra o rei em Abekouta (Funmilayo Kuti liderou uma revolta na cidade nigeriana de Abekouta, que reuniu milhares de mulheres no fim dos anos 1940. Elas protestavam contra a cobrança de impostos às trabalhadoras do mercado municipal. Essa manifestação culminou na criação da Associação de Mulheres Nigerianas). Fela transformou sua mentalidade colonial para se tornar um verdadeiro homem negro, que transpira e passa sua mensagem adiante. E fui eu quem mostrou isso a ele. Se fiz isso, qualquer mulher pode fazer o mesmo. Temos de reconhecer nossa força e nosso poder como fêmeas. Na maioria das vezes, nós temos razão. Viver em Kalakuta com Fela Kuti era uma forma de resistência para aquelas mulheres?

As mulheres de Fela não eram submissas. Elas tinham liberdade e viviam lá por escolha, muitas delas estavam se protegendo de situações horríveis. Algumas me falaram que estavam lá como refugiadas, pois nas ruas corriam o risco de ter seus clítoris mutilados. Havia graves violações aos direitos humanos na Nigéria e Fela acolheu essas mulheres em sua casa. Elas estavam lá por livre e espontânea vontade e podiam ir embora na hora que bem entendessem. Então, qual é a opressão? Onde está o machismo? Lá elas sabiam que teriam comida, um teto e que poderiam dormir em segurança. Se você opta por dormir com esse homem sabendo que ele tem outras mulheres, o que há de sexista nisso?

FOTOS: YURIY IVANOV/ CORTESIA RE-EMERGING FILMS/ REPRODUÇÃO

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ENTREVISTA / LOLA ARIAS

ZONA NEBULOSA

MARIANA MARINHO

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A escritora, diretora teatral e performer argentina Lola Arias embaralha os limites entre ficção e realidade e torna-se, à sua revelia, personagem do filme The

Square, vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 2017

projeto que implicava uma colaboração artística, mas sem querer convencer os ingleses de que as Malvinas são argentinas, e os argentinos de que as Malvinas são inglesas”, conta a diretora, que já apresentou no Brasil Melancolia y Manifestaciones (2015), Mi Vida Después (2013) e Chácara Paraíso (2008). Há cerca de 15 anos trafegando por barreiras e interseções entre a ficção e a realidade, como neste projeto, a artista viu-se forçada a lidar com questões desse terreno de outra forma, ao ter seu nome utilizado no filme The Square. Sem ter autorizado, Lola Arias é citada como a suposta autora da obra que dá título ao longa do cineasta sueco Ruben Östlund, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2017. A trama aborda aspectos da arte contemporânea, de seu circuito restrito e das contradições de suas instituições, entre outros temas. Em entrevista à seLecT, Lola Arias fala sobre o processo criativo da performance Campo Minado, a respeito de The Square e dos limites da arte.

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seLecT: Como iniciou a criação de Campo Minado? Lola Arias: Teve início em 2013 como uma videoinstalação

AS FRONTEIRAS ENTRE O FICCIONAL E O REAL SÃO CRUZADAS E BORRADAS NOS ESPETÁCULOS E PERFORMANCES DA ARGENTINA LOLA ARIAS. PESSOAS DA VIDA REAL VÃO PARA A CENA e suas narrativas são contadas

em um palco que preza pelo intercâmbio de linguagens artísticas, vindas não apenas do teatro, mas das artes visuais, da música e da dança. Em seu trabalho mais recente, Campo Minado (2016), três argentinos e três ingleses que participaram da Guerra das Malvinas (1982) investigam o que permaneceu em suas mentes após 36 anos do conflito armado entre a Argentina e o Reino Unido. É uma espécie de conferência performática. A peça, que surgiu de uma videoinstalação criada pela escritora, diretora teatral e performer, chega à capital paulista em março (1º a 4/3, no Teatro do Sesi-SP) como parte das atrações da 5ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Nesse período, Arias também dá um workshop no qual os participantes são convidados a propor e organizar trajetórias em torno de documentos materiais e simbólicos. “O que mais me interessa em Campo Minado é trabalhar com pessoas em desacordo. Ou seja, desenvolver um

sobre as recordações de veteranos argentinos da Guerra das Malvinas. Ela consistia em cinco vídeos, nos quais cada um deles reconstruía uma história do conflito armado nos lugares onde vivem e trabalham hoje. Porque 70% dos homens que foram à Guerra das Malvinas, em 1982, não eram profissionais militares. Ou seja, foram para a guerra com 18 anos e depois seguiram suas vidas. Me interessava ver como eles reconstruíram suas histórias. Então fui, por exemplo, com um psiquiatra ao local onde ele atende e com um cantor de ópera ao teatro. E aí me surgiu a pergunta: como viveram os ingleses com os efeitos da guerra? Foi quando tive a ideia de fazer uma obra na qual argentinos e ingleses, juntos, reconstruiriam suas memórias da guerra. Comecei, então, um grande processo de investigação e de audições em Buenos Aires e Londres. Após a seleção, vieram os ensaios e, paralelamente, comecei a gravar tudo para fazer um filme, que estreia em fevereiro. Você costuma trabalhar com não atores em suas performances. Mas como foi lidar com pessoas com visões tão diferentes sobre um assunto histórico?

Essa é uma das coisas que mais me interessam: como trabalhar e conviver no dissenso e no desacordo e como criar laços que permitam refletir sobre um determinado tema. No caso de Campo Minado, havia questões culturais, como o idioma, e o desafio de criar uma ponte entre eles (ingleses e argentiFOTO: CATALINA BARTOLOMÉ

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“Creio que, quando alguém decide usar algo de outro (sua história, seu nome, sua obra) 92

sem pedir a autorização, é um ato de autoritarismo. E, nesse caso, de machismo e colonialismo. Decidir usar algo de uma artista mulher latino-americana Acima, a obra The Square, que dá título ao filme de Ruben Östlund. Na pág. ao lado, cena da peça Campo Minado, sobre a Guerra das Malvinas, derivada de uma videoinstalação da também diretora Lola Arias

nos). Os conflitos mais fortes durante toda a criação da obra tiveram relação com a responsabilidade que cada um sentia com os mortos (na guerra). Os ingleses tinham medo de ser uma obra argentina, no sentido de não falar do sentimento e da perda dos ingleses, e os argentinos tinham medo que fosse uma obra conciliadora, o que significaria abrir mão da reivindicação pelas Ilhas Malvinas. E para mim foi interessante ver que nenhuma dessas visões estava no centro do projeto: o que eu queria era compartilhar e discutir todas essas questões. E, claro, durante os ensaios houve momentos de perplexidade, de angústia. Foi um processo muito intenso. E, para muitos deles, funcionou como ponto de virada, como forma de aprender a ver suas próprias histórias com distância e de poder escutar o outro sem ódio, rancor e medo. O que mais te interessava nos depoimentos deles?

Todos viveram histórias muito radicais. O mais interessante foi como encontrar uma forma de contá-las sem que fosse algo doloroso e traumático. Isso foi o mais desafiador. DuSELECT.ART.BR

pensando que não vai ter consequências”

rante o processo, eles acabaram formando uma banda – tanto que tocam ao vivo em cena – e fizeram juntos uma canção que relaciona o que eles queriam dizer. Assim como em outros trabalhos, Campo Minado transita entre ficção e realidade. Recentemente, você se viu envolvida em uma situação com o filme The Square, que lida com esses limites. Como foi isso?

Fui convidada para atuar no filme, mas para interpretar a personagem Natalia, que era a autora da obra The Square. Depois o diretor mudou de ideia e decidiu que eu apareceria no filme por meio de uma conversa via Skype, mas sempre como Natalia. Nós gravamos, mas ele não utilizou as cenas, algo que ele tem todo direito como diretor. Mas o que ele não poderia fazer era utilizar meu nome sem me falar. Porque isso nunca tinha sido parte do acordo. Basicamente, temos um problema legal, porque ele foi contra meus direitos pessoais e de copyright. Ele não pode, deliberadamente, me atribuir a realização de uma obra que não existe sem pedir minha autorização.

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O filme, entre outros temas, justamente aborda os limites da arte. Para você há limites?

O diretor de The Square faz comigo o mesmo que o protagonista do filme faz com o garoto. No sentido de que, assim como o menino é acusado do roubo de um celular que não cometeu, a mim atribuem uma obra que não fiz. E nunca me pediram desculpas. Enquanto artistas, creio que temos de pensar a respeito da responsabilidade sobre os outros. Eu, que trabalho há quase 15 anos no terreno documental, sei que cada vez que lido com uma pessoa, com seu nome, com sua biografia, com sua história e com seu corpo, há uma responsabilidade muito grande sobre isso. E que cada decisão que se toma sobre algo que tem a ver com a vida, com o nome dessa pessoa, tem de ser criado em colaboração com ela ou com ela estando de acordo. Essa é a parte mais difícil, pois implica um monte de discussões até chegar a um consenso sobre como contar a vida real. Creio que, quando alguém decide usar algo de outro (sua história, seu nome, sua obra) sem pedir a autorização e sem consultar a opinião do outro, é um ato de au-

toritarismo. E, nesse caso, de machismo e colonialismo. Decidir usar algo de uma artista mulher latino-americana pensando que não vai ter consequências. Então como trabalhar com ficção e realidade dentro de limites tão borrados? Por exemplo, fake news foi nomeada a “palavra do ano”, em 2017, pelo dicionário da editora britânica Collins.

Estamos expostos a um enorme fluxo de informação que não nos permite tomar uma distância crítica sobre algo. Acho que o desafio de quem faz um trabalho artístico é criar um espaço de reflexão. Usar, por exemplo, o teatro como esse espaço de reunião e de encontro, não apenas entre os ingleses e os argentinos, mas também entre a sociedade e o tema. Poder criar um espaço onde um coletivo se junta para pensar sobre algo. Isso é também a função da arte: produzir essa espécie de espaço vazio de internet e de sobreinformação para gerar uma espécie de calma que nos permita pensar, compartilhar e poder estar disponíveis no sentido de ter empatia. FOTOS: DIVULGAÇÃO/ FOTOS: NONONONONONO SOFIA MEDICI

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L I T E R AT U R A

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HILDA HILST E A FEMINILIDADE ACABRUNHANTE

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ANA LIMA CECILIO

Quando pensamos em Hilda por uma ótica de gênero e literatura, buscando o lugar que ela ocupa como mulher, encontramos tamanha incerteza que somos jogados num lugar de desconforto

“Ó, AS MULHERES! QUE SENSÍVEIS E DOCES, QUE LÚDICAS LADINAS IMAGINOSAS E TORPES! MULHERES!” Hilda Hilst, Contos d’escárnio

FOTO: ACERVO INSTITUTO HILDA HILST

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Hilda Hilst passou a vida queixando-se da falta de leitores. Nos diários e em entrevistas, a queixa comum, depois de lançar um livro ou estrear uma peça, era: “Não aconteceu nada”. E, de repente, acontece tudo: com o anúncio da Flip de que seria Hilda a homenageada da sua 16ª edição foi possível acompanhar nas redes sociais as comemorações do público, que não foram vistas tão calorosas, por exemplo, com a homenagem à também poeta Ana Cristina Cesar, ou com Lima Barreto, outro chamado de “injustiçado” na história da literatura, para ficarmos apenas nas edições mais recentes. O público, é fácil notar, é de jovens, principalmente jovens mulheres, que demonstram voracidade em conhecer mais a obra. Assim, talvez o que 2018 possa oferecer a Hilda de mais importante é esse estranho ser que ela buscou a vida toda: leitores. Hilda Hilst é autora de obra vasta e consistente, que lançou seus braços em diversos gêneros. Entretanto, possivelmente Hilda seja mais conhecida hoje pela personagem que criou. Ainda jovem, transitava nos bares mais badalados de São Paulo elegantíssima em vestidos do estilista Denner. De uma viagem longa à Europa resta um relato um tanto enfeitado de um encontro com Marlon Brando, um breve namoro com Dean Martin e um semiflerte com o milionário Howard Hughes. Ganhou elogios de Cecília Meireles e todo um poema de Carlos Drummond de Andrade. Aos 36 anos, entediada com a frenética vida social e, também, em busca de espiritualidade para sua criação, constrói para si a Casa do Sol, em Campinas, e passa a viver lá, vestindo uma personagem bastante diferente: a escritora excêntrica retirada, que recusa o burburinho para se dedicar à literatura. Quando pensamos em Hilda por uma ótica de gênero e literatura, buscando o lugar que ela ocupa como mulher, encontramos tamanha incerteza que somos jogados num lugar de desconforto. Sim, Hilda foi transgressora, e disso não há dúvida. Construiu para si um caminho autônomo de liberdade absolutamente inédito para uma mulher da sua geração. Em plena maré alta de uma nova onda do feminismo, é natural buscarmos as causas do atual interesse por ela – e, claro, por

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Em Júbilo, Memória

e Noviciato da Paixão, belíssima reunião de poemas amorosos, Hilda busca o amado como Dante buscou Beatriz. Não é simplesmente dar voz à musa, mas cantar um muso, homem do mundo, num universo que poucas vezes viu tal inversão

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sua obra – no fato de Hilda, simplesmente, ser mulher. Movimentos de leitores como Leia Mulheres, e grandes fenômenos editoriais, como a tetralogia A Amiga Genial, da italiana Elena Ferrante, ou do livro de poemas Outros Modos de Usar a Boca, da canadense Rupi Kaur, apontam muito claramente uma geração de jovens que está em busca de narradoras femininas, na tentativa de encontrar reconhecimento e identidade. Pensando assim, Hilda, espécie de veterana, cairia como luva, não? Não. Nascida em 1930, Hilda foi criada por uma mãe extremamente libertária e independente para que trilhasse o mesmo caminho. A mãe deu a melhor educação, para que a filha “nunca precisasse de homem” e, mesmo tendo recusado seguir adiante com o diploma de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco, Hilda pôde caminhar com certo conforto com o mapa que a mãe traçou – mesmo sendo poeta, e poeta, se não obscura, sempre relativamente circunscrita num círculo de iniciados. Mas o mais importante é notar que Hilda sempre fez o que quis, como quis, com quem quis. E essa trilha de liberdade de uma mulher escritora talvez seja o que há de mais feminista em sua trajetória. É bastante óbvio olhar Hilda como uma mulher surpreendente para uma geração que ainda não havia rompido as amarras que a década de 1970 romperia, e que bancou uma trajetória individual com paixão inaudita. Já a presença da mulher na obra de Hilda, entretanto, obedece a um movimento curioso. Nos poemas, é sempre a mulher que fala. É de imaginar que essa mulher recusa o lugar de donzela, e que faz, por si mesma, em versos afrontosos, a busca do amor. Em Júbilo, Memória e Noviciato da Paixão (1974), por exemplo, belíssima reunião de poemas amorosos, é marcante o eu lírico feminino, que mergulha na conquista do amado e não mede esforços para chamar sua atenção: “Ama-me. Embora eu te pareça/ Demasiado intensa. E de aspereza./ E transitória se tu me repensas”. Invertendo os papéis de gênero da relação amorosa clássica, Hilda busca o amado como Dante buscou Beatriz. E a busca é legitimamente feminina, com todas as armas de que dispõe, fazendo-se mulher imensa, mágica e misteriosa. Não é simplesmente dar voz à musa, mas cantar um muso, homem do mundo, num universo que poucas vezes viu tal inversão. Já na prosa, se a maior parte dos seus narradores são homens, e tratam as mulheres com muito pouca paciência, relegandoas a uma posição tradicional, e deixando bem claro que, quando elas não são extremamente fracas, são aborrecidas. Quase mal-humorada, sem pendor algum para a solidariedade

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FOTOS: ACERVO INSTITUTO HILDA HILST

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Lygia Fagundes Telles, Olga Bilenky, Hilda Hilst e José Luis Mora Fuentes

feminina, Hilda bota na boca de seu personagem narrador de Estar Sendo. Ter Sido frases como: “O que eu podia fazer com as mulheres além de foder? Quando eram cultas, simplesmente me enojavam. Não sei se alguns de vocês já foderam com mulher culta ou coisa que o valha. Olhares misteriosos, pequenas citações a cada instante, afagos desprezíveis de mãozinhas sabidas, intempestivos discursos sobre a transitoriedade dos prazeres, mas como adoram o dinheiro as cadelonas!” Assim, a mulher, em grande parte da prosa de Hilda, veste a roupa clássica do ser delicado, cheio de firulas, que exige demais do homem, fazendo-o perder-se de sua busca legítima do absoluto por miudezas fúteis. Ainda em Estar Sendo. Ter Sido, essa visão pouco cortês vem inteira: “Pra quê você quer essa mulher de volta? São raras as mulheres engraçadas, a maior parte das vezes você pega sempre uma Jocasta, umas lamuriosas meio falsas...”. Apesar disso, a narradora de maior destaque de Hilda é Hillé, do monumental A Obscena Senhora D, que surge imensa e forte, madura e sábia, como se a personagem se gabasse da qualidade de mulher mais cara à criadora: a sensatez, a lucidez, a inteligência. Muito há que se investigar sobre a presença da mulher na obra de Hilda Hilst, e talvez para o feminismo de hoje – urgente, vigoroso, atravessado por uma necessidade de certeza que não admite vacilos (masculinos ou femininos) – a posição da autora de Qadós, de Contos de Escárnio, de Rútilo Nada (todas ficções cujos protagonistas são homens) apresente um feminismo contemporaneamente capenga, porque simplesmente nunca esteve em seu horizonte a consagração da mulher, ou

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Hilda sempre fez o que quis, como quis, com quem quis. E essa trilha de liberdade de uma mulher escritora talvez seja o que há de mais feminista em sua trajetória

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Luciana Domschke interpreta Hilda Hilst, no filme de Gabriela Greeb

TRANSCENDÊNCIA DE GÊNEROS NO CINEMA O projeto Hilda Hilst Pede Contato, de Gabriela Greeb, atravessa tantas fronteiras quantos gêneros literários foram transpostos pela obra de Hilst. É documentário, ficção, filme de arte, instalação e livro. Com previsão de estreia em festivais nacionais e internacionais em 2018, propõe um viés original e insuspeito de leitura da prosa, da poesia e da vida de Hilst, a partir do fascínio que a escritora nutria pela morte. “Hilda não só transgride gêneros como também transcende a própria vida”, diz Greeb à seLecT. A voz de Hilda Hilst em gravações realizadas entre 1974 e 1979, em busca de contato com o além, é o fio condutor do projeto, que acaba por se oferecer como

nem mesmo sequer uma criação que buscasse a identificação do leitor consigo enquanto mulher. Aliás, Hilda nunca levantou bandeiras, nunca participou de movimentos sociais, não expôs de forma alguma reivindicações. Se é verdade que ela era adepta de uma espécie de humanismo essencial, e sentia como que na própria carne as injustiças globais, a fome das crianças, a Guerra do Vietnã, por personalidade e uma contravenção essencial, nunca foi capaz de se filiar a movimento nenhum. Entretanto, sua conduta disruptiva, que afirmava no dia a dia das suas relações uma forma de ser, é, em si, uma bandeira. Descompasso entre discurso e ação? Talvez, se olharmos com nossos olhos de século 21. Mas a força desse binômio vida/obra em Hilda Hilst é inegável: no seu feminismo torto, ela não reivindicava exatamente um lugar para as mulheres, mas exigia com muita veemência um lugar para ela, Hilda, entre os espaços tradicionalmente masculinos. Hilda Hilst não é “representante de uma geração”, do mesmo modo como não pode ser considerada matriz de nenhum movimento poético ou literário. Se sua literatura ganha cada vez mais espaço, e é importante discuti-la, é interessante lêla como indissociável da vida, e havemos de buscar em sua obra pistas não exatamente para “desvendar um enigma”, mas para lê-la, compreendê-la e dar-lhe os leitores que ela buscou durante toda a vida.

um canal de comunicação, tão almejado pela escritora. PA

seLecT expandida: leia o poema dez chamamentos ao amigo em bit.ly/poema-hilda

FOTOS: ACERVO INSTITUTO HILDA HILST / DIVULGAÇÃO

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À esq., Butcher IV, da série Mestres Açougueiros e seus Aprendizes (2007), de Odires Mlaszho; à dir., Et Verbum (2011), de Antonio Obá; embaixo, à dir., A Morte do Homem Brasileiro (2017), de Marcelo Amorim

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CRÍTICA

PORTO ALEGRE

QUEERMUSEU: FALTARAM ARTISTAS, OBRAS E HISTÓRIAS APAGADAS CARLOS GUILHERME HÜNNINGHAUSEN

Diante da violência com que foi fechada, os méritos e as deficiências dessa mostra passaram para o segundo plano. O título foi um chamariz, já que se refaziam percursos previstos (Volpi, Lygia Clark e outros), atribuindo-lhes algum diálogo com o termo queer Hoje é senso comum afirmar que não existe nem certo nem errado em arte. Toda arte é um desafio: surpreende e confunde até mesmo os mais acostumados a ela. Nos confunde em relação à sua própria natureza, pois nesse estado, entre a surpresa e a confusão, torna-se instável. Qualquer palavra gruda na obra de arte porque, para ser arte, podem SELECT.ART.BR

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não haver paralelos. E, assim, criam-se abismos. Arte é comunicação sem a redundância necessária à própria comunicação. Queermuseu, a exposição realizada em 2017 pelo Santander Cultural em Porto Alegre, ficou conhecida porque foi fechada à força e, assim, tornou-se um desses abismos. Tivesse a exposição – cujo título complementar é Cartografias da Diferença na Arte Brasileira – prescindido do termo Queermuseu, teria esta evitado seu destino? Ou esse destino teria sido intencional? Discursos propagam-se na internet como fogo no espaço. Em vez da investigação, o veredicto. De preferência, com uma hashtag. Queer é termo que passa por um processo de mapeamento bastante complexo já desde meados dos anos 1990. É carregado, frequentemente mal interpretado e de aplicação específica. Sua utilização (em teoria) fundamenta a construção de identidades não binárias que antes dele (e de Foucault) eram tratadas criminalmente, tidas como patologias ou simplesmente barradas (tenha-se em mente aqui a violência médica endereçada aos corpos hermafroditas, hoje intersex). Leva tempo e mais que uma palavra revelar processos de inviabilização, porque os elementos apagados são em maior número que os arquivados (Paul B. Preciado). O perigo do abismo é a gritaria de má-fé com que discursos hegemônicos silenciam vozes discordantes, não normativas. É necessário cuidado e compreensão ao se resgatarem e se reconstruírem as histórias esfaceladas pela normatização sexual binária. A propriedade maior da linguagem é ocupar espaços: lembrar é esquecer. Ouviu-se de tudo nesse episódio, mas pouco a demonstração da compreensão. Exemplos são a obra de Rodolpho Parigi ter sido exposta de cabeça para baixo (!); ou a mídia ter silenciado sobre a manifestação da ONG SOMOS dentro da exposição, crítica justamente vinda de militantes do movimento LGBT de Porto Alegre.

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Queermuseu, nos termos em que foi usado, pode ter sido excesso de marketing em vez de zelo. Sua utilização foi um chamariz, já que se refaziam percursos previstos (Volpi, Lygia Clark e outros), atribuindo-lhes algum diálogo com o termo queer, em vez de se viabilizarem artistas, obras e histórias apagadas, como requer o termo. Diante da violência com a qual foi fechada, os méritos e as deficiências dessa mostra passaram todos para o segundo plano. Já para o Santander Cultural, se podemos crer nos relatos do fechamento precoce da exposição, ficou a vergonha de se curvar da maneira com que se curvou à gritaria conservadora, desrespeitando todos os envolvidos no projeto (e, possivelmente, mais preocupado com o valor do seguro das obras). Prova de que esse modelo de exposição (264 obras amontoadas em espaço exíguo) caducou (não precocemente) e precisa ser urgentemente revisto. Se a arte começa com uma visão, que esta seja pública. Esqueçamos da arte imobilizada nesses espaços especiais, dedicados, dispostas para nossa aprovação (ou espanto). Pensemos na arte como interação com o público e seus espaços comunitários, de maneira a revitalizar e a educar. FOTOS: DIVULGAÇÃO

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AU TO C R Í T I CA / Q U E E R M U S E U

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O DEBATE PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO GAUDÊNCIO FIDELIS

Queermuseu foi criada como plataforma transmuseológica de debate acerca de questões de expressão e identidade de gênero, incluindo também a diversidade da forma artística e sua impenetrabilidade no cânone da história da arte

O autoritário fechamento da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira pelo Banco Santander, seu patrocinador, promotor e realizador, depois de uma campanha difamatória de criminalização da arte iniciada pelo Movimento Brasil Livre (MBL), colocou-nos um extraordinário dilema: como falar, debater ou dialogar sobre uma exposição a que apenas um número restrito de pessoas teve acesso, cujo catálogo não está disponível em larga escala, pois se esgotou rapidamente, e nem sequer imagens da exposição existem em circulação para ser analisadas? Como, ainda, discutir uma exposição dessa grandiosidade, com 263 obras de 85 artistas, que foi censurada, criando impossibilidade de acesso, considerando-se que a Constituição brasileira caracteriza censura como o impedimento por quaisquer meios ao conhecimento, o que sabemos que a arte em essência produz? Além disso, como lidar com esse precedente que se abriu diante da nossa jovem democracia, em que um conjunto de ações colocadas em movimento por grupos e organizações obscurantistas tomou de assalto a arte e a cultura brasileiras, da mesma forma que já estavam fazendo com a educação, por meio de ataques promovidos pelos movimentos e SELECT.ART.BR

ações como a Escola sem Partido, em curso desde 2004? Ainda hoje muitos pensam que os incidentes e ataques são localizados, mas eles estão acontecendo em todas as esferas da vida brasileira, corroendo ao poucos os direitos, a democracia e a possibilidade de um futuro melhor para o País. Há muito caracterizei a censura da Queermuseu como um crime contra o patrimônio artístico, porque, se já não vemos agora, teremos certeza em pouco tempo de que os efeitos pervasivos para a cultura serão sentidos por todos. Não é difícil imaginar que a censura da Queermuseu não foi exatamente o que ocasionou sua repercussão mundial. Se fosse, o debate teria arrefecido em algumas semanas. Embora não tenhamos precedente de uma exposição dessa escala sendo fechada, o “fenômeno” de repercussão mundial que se sucedeu não se justifica somente pelo seu encerramento. O que, em essência, de fato diferencia Queermuseu da maioria das outras exposições - e que talvez tenha feito com que ela ganhasse uma plataforma internacional de debate, quando tantas outras, realizadas em grandes centros, com muito mais investimento de mídia, e organizadas por curadores cuja rede profissional se mostra muito mais extensa e de maior penetração? A resposta a esta pergunta talvez esteja na combinação de diversos fatores que são possíveis de constatar, mas que, quando colocados em conjunto, produziram uma confluência de forças capazes de impulsionar a plataforma curatorial da Queermuseu, não só em direção a um alcance global, mas que fizeram com que um debate duradouro na arena pública ainda persista, já passados agora três meses do trágico incidente que foi o seu fechamento. Queermuseu foi criada como uma plataforma transmuseológica de debate e diálogo acerca de questões de expressão e identidade de gênero, diversidade e diferença, incluindo também a diversidade da forma artística e sua impenetrabilidade no cânone da história da arte. Ela partiu do pressuposto de que a história da arte − e, por consequência, o cânone artístico que ela produz juntamente com o museu − é excludente e discricionária. Essa confluência entre questões de gênero e as irredutíveis prerrogativas do cânone geraram ramificações cuja capilaridade é imensa. Além disso, Queermuseu, como poucas, constrói sua

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Vista panorâmica da exposição Queermuseu, que foi realizada em 2017 no Santander Cultural, em Porto Alegre, com 263 obras de 85 artistas e curadoria de Gaudêncio Fidelis

existência em um campo de justaposição de obras que só pode ser entendido na averiguação da presença visível de uma engenharia conceitual (com encontros transversais, perpendiculares, verticais e horizontais) de obras justapostas. A tentativa frustrante de tentar reconstituir esse quebra-cabeça visual, um “choque de imagens”, como eu chamei, não é possível, visto que a exposição foi fechada e instaurou-se sobre ela um imenso volume de especulações sobre seu conteúdo, suas intenções e seu mérito artístico, o que agora será possível talvez com sua reabertura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e um exame detalhado das fotografias da exposição montada. Junte-se a isso o fato de que há um persistente hábito de avaliar exposições sob uma ótica formalista de que delas participam artistas com determinado número de obras e que estas podem, se olhadas em isolado, representar ou prover uma ideia do que a exposição seria. Como se exposições fossem somente um amontoado de obras sem conexões e, mais ainda, sem relação espacial umas com as outras, cujo impacto é sempre transformacional. Exposições só existem no espaço e no redimensionamento físico que as abriga. Especialmente considerando o fato

de que, como outras exposições que tenho realizado, esta, mais do que todas, é uma exposição realizada a partir de obras, e não de uma lista de artistas previamente concebida. Algumas vezes, durante esse processo, perguntaram-me se eu previa o que iria acontecer. Minha resposta é que eu tinha plena consciência de que esta era uma plataforma que, por sua própria constituição, qualquer movimento a ela direcionado seria sentido com precisão sísmica, justamente pela densidade artística que possuía em confluência com seus outros fatores, como sua natureza conceitual, engenharia espacial, multidirecionalidade (através de disciplinas) e potencial social para o debate político. Grande parte disso, porém, dependeu da condução do debate, não só por mim, que fui transformado inadvertidamente em um protagonista por força das circunstâncias, mas também porque o Santander se eximiu de se pronunciar à exceção da nota infeliz que condenou moralmente as obras. Outros agentes se juntaram a esse processo de discussão pública. Alguns, surpreendentemente, se furtaram com medo e incompreensão de seu significado ou desinteresse. Mas não resta dúvida de que este vai continuar, porque ele é de interesse da maioria dos que acreditam que a censura jamais poderia ser uma opção. FOTO: F. ZAGO/STUDIO Z

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Still de The Present Moment (in D) (2014), obra de Anri Sala apresentada pela 1 a vez no Brasil

SÃO PAULO

ESTRAÇALHAR AS CERTEZAS PARA ENCONTRAR O PRESENTE BIANCA DIAS

Dimensão brumosa, opaca, ruidosa e silenciosa atravessa o trabalho de Anri Sala, sem resvalar em um jogo cômodo do que seria a dimensão política na arte Após passar pelo IMS Rio em 2016, a exposição do artista albanês Anri Sala ocupa duas galerias no IMS Paulista. Numa montagem diferente e em versão ampliada, o som é o ponto de partida que permite que reviremos as imagens por dentro. Na primeira galeria, instalações musicais e uma série de fotografias em preto e branco tensionam as noções de tempo através de abordagens do som como fenômeno físico que impacta a sensibilidade e a subjetividade, criando no espaço um acontecimento ao mesmo tempo audível e visível. O que parece interessar ao artista são os efeitos éticos de ressonância do som, bem como a dimensão que a trama simbólica real-imaginária musical põe em cena. Nas ondas propagadas por alguns instrumentos, não é o instrumento que vemos, mas a mão em coreografia ou um pedaço de corpo – como um cotovelo – que, em presença enigmática, convoca um despertar para ruídos e silêncios do aqui e agora que, muitas SELECT.ART.BR

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Anri Sala: O Momento Presente Até 25/3. Instituto Moreira Salles Paulista, Avenida Paulista, 2.424, www.ims.com.br

vezes, permanecem inauditos ou na penumbra. Na segunda galeria, em uma videoinstalação com três telas, também em ambiente escuro, garotos repetem palavras em uólofe, idioma da África Ocidental. As palavras condensam uma ideia de escuridão e claridade num jogo que salta da língua para a pele, apontando a colonização dos corpos pela linguagem e para a radicalidade dos termos em uólofe, no acesso àquilo que há de intraduzível numa cultura. Toda palavra porta uma opacidade. A partir desse ponto, Anri Sala traduz os lábios mudos da mãe, imagem que aparece na obra Answer me. Com ajuda de professores de uma escola para surdos, ele vasculha arquivos do Congresso da Juventude Comunista da Albânia, ocorrido há 20 anos. As imagens que encontra em visita à cidade natal não têm som e, com seu trabalho, ele persegue obstinadamente esse vazio que faz ouvir mais além. Em Long Sorrow, um saxofonista faz uma improvisação de jazz, pendurado do lado de fora do 18º andar de um prédio de Berlim – um conjunto habitacional chamado pelos moradores de Langer Jammer, o mesmo que long sorrow (sofrimento longo, em inglês). Essa dimensão brumosa, opaca, ruidosa e silenciosa atravessa todo o trabalho como ética, fazendo com que o artista não resvale em um jogo cômodo do que seria a dimensão política na arte. Ao contrário, busca no abismo das coisas essa densa camada da história, o tremor vivo que divide e nos lança ao confronto, questionando, como propõe Jacques Rancière, “os próprios critérios do reconhecimento do comum” ou acentuando a potência que há em assumirmos as rachaduras do mundo e nossa fundante fragilidade.

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NOVA YORK

OUTROS FUTUROS PAULA ALZUGARAY

A rejeição a rótulos e a recusa de categorizações diferenciam as abordagens de mostras sobre noções de gênero na arte contemporânea, no Brasil e nos EUA No texto curatorial de Trigger: Gender as a Tool and a Weapon, Johanna Burton dispara: por que uma exposição sobre gênero? Por que pensar em gênero como arma ou instrumento? Depois de percorrer quatro andares do New Museum (NY), com obras de cerca de 40 artistas e coletivos que abordam questões de gênero de formas oblíquas, diretas, subjetivas ou em interseção com questões relativas a raça, classe, sexualidade ou geopolítica... a resposta é simples: porque precisamos aprender e reaprender a lidar com a diferença. Então, cabe a pergunta: por que é importante retomar Trigger, mesmo que a exposição já esteja encerrada e o leitor desta resenha não possa mais visitá-la? Porque ela aconteceu concomitantemente a grandes exposições, aqui no Brasil, que também investigavam o lugar do gênero e da sexualidade na arte. E suas proposições podem, por exemplo, ajudar a pensar aspectos de Queermuseu – que teve campanha de crowdfunding lançada em fevereiro para reabertura no Rio de Janeiro. Há uma diferença flagrante a ser considerada entre Trigger e Queermuseu: a recusa da mostra do New Museum em se colocar como uma exposição queer ou trans, mostrandose mais interessada em se afirmar como um impulso (gatilho, trigger) para a fluidez de gêneros e para a variedade de vocabulários emergentes, do que em demarcar territórios. Em vez de afirmar categorias, prefere indagar

My Model/ My Self: My Barbie Coloring Book (2014), de Justin Vivian Bond

Trigger: Gender as a Tool and a Weapon Até 21/1/2018, encerrada, New Museum, 235 Bowery, NY, www. newmuseum.org

sobre a dúvida de como seriam “outros futuros”. Outra distinção é o fato de todas as obras do New Museum abordarem gênero – de modo explícito ou implícito, mas ativo – em seu discurso artístico. No caso da mostra censurada em Porto Alegre, entra em jogo uma leitura curatorial desde o ponto de vista queer. Trigger foca em trabalhos produzidos nos últimos dez anos por artistas de diversas gerações. Mas a curadoria também favorece diálogos com práticas artísticas bem anteriores. Caso de Kruger (2017), de Leidy Churchman, citação da obra feminista de Barbara Kruger dos anos 1980. A amplitude das abordagens de gênero e sexo é visível em trabalhos como Mano de Obra (2016), do californiano residente no México Ektor Garcia, composto de objetos de tortura feitos de couro cru, que remetem tanto ao sadomasoquismo quanto ao passado escravocrata das Américas.

FOTOS: CORTESIA GALERIE CHANTAL CROUSEL, PARIS, MARIAN GOODMAN GALLERY, HAUSER & WIRTH/ RICARDO VAN STEEN

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CRÍTICA

Pintura Untitled (Bicyclist) (1984), de Jean-Michel Basquiat

SÃO PAULO

GRATUITA E ITINERANTE LUANA FORTES

Recorte generoso e de grande qualidade da obra de Jean-Michel Basquiat, pertencente a uma coleção privada, passa por quatro cidades brasileiras A retrospectiva de Jean-Michel Basquiat foi notícia antes mesmo de ser aberta. Em 2017, tanto o Centro Cultural Banco do Brasil quanto o Masp planejavam uma individual do artista. O Masp, que iria reunir obras de diferentes museus, acabou desistindo do projeto. Nos bastidores, ouviu-se que o investimento do CCBB seria seis vezes maior. Com cerca de R$ 14 milhões captados por meio da Lei Rouanet até fevereiro deste ano, a mostra de Basquiat foi inaugurada. E o resultado SELECT.ART.BR

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Jean-Michel Basquiat: Obras da Coleção Mugrabi CCBB São Paulo, até 7/4/18

é satisfatório, apesar de mostrar trabalhos de uma só coleção particular, a da família Mugrabi. O fato é que a coleção é enorme e ótima. Com curadoria de Pieter Tjabbes, a exposição abriga 80 trabalhos do artista, entre pinturas, desenhos e gravuras, e compreende diferentes fases de sua carreira. É possível ter contato com o início da trajetória de Basquiat, em que ele escrevia frases com seu amigo Al Diaz pelas paredes de Manhattan, sob o codinome SAMO – abreviatura da expressão Same Old Shit, A Mesma Merda de Sempre. Também se pode conhecer trabalhos realizados ao lado de Andy Warhol, ou ver a influência do livro de anatomia Gray’s Anatomy sobre suas imagens. Fora alguns painéis de legendas exageradamente grandes e atividades de mediação muito infantis, a retrospectiva faz o que deveria fazer. Apresenta Basquiat ao público e de forma gratuita. A vantagem de acontecer no CCBB é que vai itinerar para seus quatro braços. Depois de São Paulo, a exposição passa por Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

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SÃO PAULO

CULTURA É PROTEÇÃO MÁRION STRECKER

A Mulher Jiboia Encantada, de artistas Huni Kuin, chega a galeria comercial em São Paulo A história dessa exposição remonta ao encontro da editora carioca Anna Dantes com o pajé Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru (1944-2011) alguns meses antes de ele morrer. O pajé queria ver no papel o conhecimento do povo Huni Kuin, que habita as florestas do Acre ao Peru desde tempos imemoriais. “Cultura é proteção”, dizia Ïka Muru. O desejo do pajé chegou primeiro ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que sugeriu o nome de Anna para o projeto. Anna foi à floresta pela primeira vez em setembro de 2011. Em dezembro, voltou para uma oficina de pajés, base do primeiro livro que editou com eles: Una Isi Kayawa: Livro da Cura. Enquanto o pajé a considerava uma “técnica em edição”, Anna considerava os Huni Kuin “editores e seus próprios antropólogos”. “Seis dias depois do encontro de pajés, Agostinho fez a passagem”, relembra Anna. Em 2013, Anna convidou o artista Ernesto Neto para acompanhá-la à floresta, quando ela foi mostrar aos Huni Kuin o trabalho desenvolvido. “Nessa época, a gente deixou cadernos em várias aldeias. Quando esses cadernos chegaram de volta, houve esse entendimento de que eles são os próprios pesquisadores, que era o que o pajé Agostinho já falava”, lembra Anna. Com os cadernos surgiu o segundo livro, Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva, sobre o saber medicinal. “A gente fez um livro para distribuição na floresta e construiu-se uma escola na aldeia, uma escola de pajés”, conta ela. O projeto incluiu uma exposição no Itaú Cultural

Yube Baü Dauti (2017), pintura de Edilene Yaka

Yube Nawa Aibu – A Mulher Jiboia Encantada foi realizada de 1º a 24/2/18, na Galeria Estação, em SP. www.galeriaestacao.com.br

sobre fauna, flora, métodos de cura e cerimônias espirituais, com artefatos, desenhos e pinturas, além de documentário, paisagem sonora, encontros, oficina e um livreto com 13 mitos. “Então, o Neto fez essa ponte linda com a Vilma Eid (proprietária da Galeria Estação), pensando em encontrar essa sustentabilidade de artistas que vivem na floresta. Conhecemos mitos gregos, egípcios… A jiboia faz parte do imaginário brasileiro!”, diz Anna. Veio a São Paulo com o grupo o cacique da aldeia São Joaquim, Centro de Memória do Rio Jordão, no Acre, também pajé Tadeu Siã, filho do pajé Ïka Muru. Rita Dani, Yaka, Sebastião Paulino Mana e Menegildo Isaka são os artistas da exposição. A pintura dos quatro é muito colorida e figurativa, exceto a de Rita Dani, que é mais geométrica. Rita (nome branco) Dani (nome original) explica seu trabalho: “Essa é a geometria Huni Kuin. A geometria aqui de dentro se chama espinho-de-espera-aí, porque esse espinho engancha na roupa da gente. Aqui é o jacaré que serve de ponte para a travessia, e essa ao redor é a jiboia”. Rita tem 23 anos e pinta há quatro. Aprendeu com o pai e por conta própria. “Trazemos essa floresta dentro de nós”, disse Yaka na abertura, que incluiu dança e canto Huni Kuin. As pinturas estiveram à venda em São Paulo por preços entre R$ 2 mil e R$ 15 mil. FOTOS: THE ESTATE OF JEAN-MICHEL BASQUIAT/ DIVULGAÇÃO GALERIA ESTAÇÃO

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Cena de Deseos (2015), filme dirigido por Carlos Motta

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SÃO PAULO

CONFIDÊNCIAS FEMININAS QUEER NO SÉCULO 19 MÁRION STRECKER

Um filme delicado feito de segredos trocados por carta 200 anos atrás entre uma hermafrodita na Colômbia e uma lésbica em Beirute Com base em pesquisa histórica transnacional e interdisciplinar, o artista Carlos Motta, colombiano radicado em Nova York, criou um filme de 32 minutos muito poético e sensível sobre a vida de uma lésbica e uma hermafrodita. A história se passa, no começo do século 19, no Líbano e na Colômbia. O filme é construído a partir da correspondência fictícia entre as duas personagens, uma vivendo em Santa Fé, cuja voz ouvimos falar em castelhano, e outra que mora em Beirute e ouvimos falar em árabe. As personagens principais são Martina, uma hermafrodita que sempre se considerou mulher, mas é presa depois de ser acusaSELECT.ART.BR

Deseos (2015), filme dirigido por Carlos Motta, escrito por Maya Mikdashi e Carlos Motta. Exibido no Brasil pela Galeria Vermelho de 3/1 a 24/2/2018. Disponível no Vimeo, com legendas em inglês: carlosmotta.com/ project/2015-deseos

da por sua própria amante de ter um corpo “antinatural”. Ela vive na Colômbia no fim do período colonial. A outra é Nour, uma lésbica que é forçada pela família a se casar com o irmão de sua namorada, depois de ser flagrada com ela em cena libidinosa. Ela vive no Líbano no fim do Império Otomano. As cenas são filmadas nos dois países. O filme mescla imagens de obras de arte com paisagens, arquitetura e cenas em que uma ou outra das mulheres aparece, às vezes, com roupas de hoje. Pelas cartas que ouvimos, percebemos como a tradição cultural, a religião, a medicina e a lei interferem na vida das personagens, afetando sua liberdade, seus amores e sua sexualidade. Quando é transferida da prisão à Corte, para julgamento, Martina conta que, mesmo que seja libertada, já perdeu tudo: Juana Maria (a amante), o trabalho e um lugar onde viver. Ela também narra como se sente ao ser examinada e ao ouvir médicos, advogados e o juiz falarem sobre ela, seu corpo e seu comportamento, como se ela não estivesse presente no recinto. Nour conta a expectativa e a realidade do casamento com o irmão de sua amante. À noite, quando pertence ao marido, às vezes acredita que se relaciona com o corpo da namorada, tamanha a semelhança física entre os dois.

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EM CONSTRUÇÃO

VIRGINIA DE MEDEIROS ALMA DE BRONZE Artista divide com seLecT o processo de criação de seu novo projeto, desenvolvido com mulheres da frente de luta por moradia do MSTC

PA U L A A L Z U G A R AY

VIRGINIA DE MEDEIROS ESTÁ ENTRE OS CINCO ARTISTAS QUE FIZERAM PARTE DO PROGRAMA DE RESIDÊNCIA ARTÍSTICA CAMBRIDGE. De novembro de 2016

a janeiro de 2017, ela ocupou um apartamento no 15º andar do antigo Hotel Cambridge, em São Paulo. Conviveu com os residentes locais – imigrantes, refugiados e trabalhadores de baixa renda, filiados a movimentos sociais ali instalados desde 2012 – e estreitou laços com oito mulheres da frente de luta por moradia do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro). O trabalho continua em processo e será apresentado este ano dentro do edifício da Ocupação 9 de Julho.

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“Quero que as pessoas possam viver um pouco do que experimentei lá. Provocar o encontro. Estar dentro desse território é entender de verdade o que é aquilo”, diz Virginia de Medeiros à seLecT. “Esse trabalho não é só o registro de uma alteridade, não é só uma questão de escuta, de tirar aquelas pessoas da obscuridade. Isso existe, mas é muito mais que isso. É uma ativação mútua de mundos.” Alma de Bronze (2018) dá continuidade a uma sequência de trabalhos que desconstroem representações sociais excludentes, que já abordaram prostitutas, travestis, moradores de rua, sadomasoquistas, e agora se volta a mulheres trabalhadoras domésticas, que dividem suas vidas privadas – afazeres do lar, filhos e empregos – com a luta pela habitação. O intuito é investigar a força individual e coletiva que emerge do movimento. Vermelho é a cor do feminino, da luta e da bandeira das mulheres do MTSC. Mas o bronze, que surgiu em uma conversa com a líder do movimento, Carmen da Silva Ferreira, foi o elemento escolhido para nomear o trabalho. “Carmen me disse que foi tomada por uma alma de bronze, assim como o poeta é tomado pela poesia”, diz Virginia. O brilho do metal que fabricou muitas armaduras ao longo da história vai ao encontro do que a artista descobriu nessas mulheres – o espírito guerreiro – e do modo que escolheu traduzir sua experiência com elas – uma “estética épica”. “Vamos realizar um encontro para discutir coletivamente como cada uma traduziria em imagem a ideia da heroína”, conta. No processo de construção dessa estética épica, a artista quer promover aulas de canto para o grupo, a fim de montar um coral de vozes femininas e de crianças, com o grito de luta: “Quem não luta tá morto”. A exposição será composta de uma videoinstalação de viés documental com depoimentos de oito moradoras da ocupação Cambridge, um ensaio fotográfico de viés ficcional, com a estética épica das guerrilheiras contemporâneas, e um filme sobre a líder do movimento. “Todas as mulheres falam de Carmen. Ela está dentro de todas as narrativas e descobriu que é capaz de mostrar o movimento pelo viés do sensível. Quero conversar com ela sobre a arte, esse extrato que entrou na vida dela”, diz Virginia.

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O material já captado do projeto Alma de Bronze inclui retratos e entrevistas com mulheres da frente de luta do MSTC, residentes da Ocupação Cambridge; além de imagens das fachadas de edifícios do Centro de São Paulo, ocupados por movimentos sociais

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Alma de Bronze, assim como Studio Butterfly (2006), gerado ao longo de um ano e meio em uma sala no centro comercial de Salvador, que funcionava como ponto de encontro entre a artista e travestis, ativa uma inquietação contemporânea: o lugar de fala. Se, no século 20, a antropologia atualizou a abordagem da alteridade, abrindo-se à escuta de identidades e coletividades silenciadas, o século 21 inaugura a urgência do lugar de fala, isto é, a autonomia da expressão que prescinde da mediação do antropólogo, do artista ou do documentarista. Isso coloca em xeque o “artista enquanto etnógrafo”, estudado pelo crítico Hal Foster nos anos 1990. Os trabalhos de Virginia de Medeiros situam-se em um lugar intermediário, que ela reconhece como “lugar de encontro”. “Como artista me sinto uma performer. Não me sinto uma mediadora, mas uma catalisadora, porque tenho de ser atravessada por aqueles com quem trabalho”, diz. (Esse lugar) “não é o meu mundo, nem o mundo da outra pessoa. É um terceiro lugar, ponto de intercessão. Não tem sujeito, não tem objeto. São dois corpos performando, se inventando. Porque, quando você liga uma câmera, você liga um lugar de invenção, de ficção.” As trocas funcionam, para a artista, como lugar de autoconhecimento e transformação, de suscetibilidade e de fragilidade. “Não tenho nenhum domínio do sadomasoquismo, do mundo das travestis ou das boates de prostituição. Mas, quando chego lá, desmonto meus estigmas, meus estereótipos. Não chego com verdades nem com um projeto a priori. Ser um artista sem um projeto é um lugar de fragilidade também.” Seus trabalhos ativam “uma força que lhe foi tirada”, pelo contexto familiar ou pela formação rígida que teve, estudando em escola de freiras. Em Fábula do Olhar (2012-2013), ela trabalhou com moradores de rua de Fortaleza e entrou em contato com um desejo antigo, do tempo em que sentia que tinha vocação para freira. “No refeitório, onde os moradores de rua comiam, comecei a distribuir pão. Entrei nessa viagem sacra.” Mostrar Alma de Bronze em uma galeria ou instituição de arte apenas reforçaria o paradigma do artista etnógrafo, que se apropria de um contexto para transportá-lo a outro. Ao contrário, Virginia de Medeiros diz querer tornar-se um braço do movimento e trabalhar para ele. “Foi especial para mim estar nesse lugar, nesse momento. Estava destruída emocionalmente, passando por uma separação. A vida me deu a chance de estar com mulheres que tinham vivido histórias de destruição. Comecei a acessar um lugar de força que eu não tinha, como mulher”, diz. Em troca, ela oferece para essas heroínas contemporâneas a experiência da arte.

LUGAR DE ESCUTA E LUGAR DE FALA

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APRECIE COM MODERAÇÃO

EM CONSTRUÇÃO


APRECIE COM MODERAÇÃO

A MARCA

Nas planícies subequatoriais da África, as árvores de

A NOVA GARRAFA

O formato da nova garrafa é uma

Marula crescem livres e produzem frutos só uma vez por ano. Os elefantes

homenagem aos elefantes, com suas majestosas presas de marfim

africanos atravessam quilômetros para se deliciarem com as Marulas

esculpidas no vidro. O nome desta nova garrafa é ‘Jabulani’, que na língua

amadurecidas pelo sol. É lá que os encontramos e, juntos, colhemos a fruta

nativa Zulu significa ‘muito feliz’. Com tudo isso, a marca levanta uma

com mãos e trombas. Dessa fruta é feito o líquido que nós fermentamos,

importante bandeira na luta contra a extinção destes animais maravilhosos

destilamos e amadurecemos em barris de carvalho francês por 2 anos, para

- tanto no ponto de venda como na casa de cada um de nossos

então misturar com nosso creme aveludado. Amarula é 100% produzida na

consumidores.

África do Sul e hoje está presente em mais de 150 países. A marca pertence ao grupo internacional Distell e está associada a projetos de desenvolvimento econômico e social, com um programa específico para a proteção dos elefantes.

Eleita por diversas vezes como o melhor licor cremoso do mundo em renomadas competições internacionais. ‘‘The International Wine & Spirit Competition” 2015, 2014, 2012, 2007

“The New York International Spirits “ 2015, 2014, 2012

www.amarula.com

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/amarulaoficial

@amarula_brasil

World Branding awards “Brand of the Year” 2017

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Onde tem riqueza cultural, tem o apoio do Banco Safra. O Banco Safra tem a tradição de apoiar projetos que carregam a maior riqueza de um país: a cultura. Seja musical ou artística, para ser resgatada, preservada e compartilhada com todos os brasileiros, ela conta sempre com o apoio do Banco Safra.

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Babel-Azza

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SAC: 0800 772 5755 (24 horas por dia, 7 dias por semana). Ouvidoria: 0800 770 1236 (dias úteis, das 9h às 18h).

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