SeLecT nº 10

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arte

design

C U LT U RA C O NTE M P O R â n e A

t e c n olo g i a

Sanford Biggers CAIO REISEWITZ carlos eduardo uchôa kiliaN glasner josé resende

espiritualidade e arte

Budas, orixás e outras divindades inspiram a criação artística

O SUBLIME NO SURFE

A potência simbólica do esporte em ondas gigantes havana E MIAMI

Ernesto Oroza fotografa extremos das cidades utópicas das Américas

occupy marte

Artistas, arquitetos e designers projetam a vida no planeta vermelho

Marina Abramovic´

mostra imagens e fala de seu processo criativo em viagem de pesquisa pelo Brasil Central

fev/mar 2013 ANO 03 EDIÇÃo 10 R$ 14,90

exemplar de assinante venda proibida

Marina Abramovic, ´ por Marco Anelli

exclusivo

Ideias, paisagens e miragens dos nossos

Paraísos


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index 4

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Ondas extáticas

O su r fe co mo ex p e riê ncia esté tica e sub lime

22 fogo cruzado

44 e n t r evi sta

60 portfólio

82 comportamento

92 Panorâmica

Enquete

Marina Abramovic

Arte artifício

Os paraísos de...

Casa Daros

Críticos, curadores e ativistas polemizam: para que serve o curador?

Artista compartilha fotos e experiências de sua viagem a Alto Paraíso

Caio Reisewitz desafia os limites entre imaginação e verdade

Antonio Candido, Dudu Bertholini, Leda Catunda, Céu e Zé Celso Martinez

Daros Latinamerica inaugura sede no Rio de Janeiro

foto: Ariane Middel


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index 6

32 ENSAIO

Horizonte humano

Marte é a utopia que nos resta

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moda

96 vernissage 106

Câmera obscura

Metamorfose

Exposição de Kilian Glasner na Galeria Laura Marciaj inaugura nova seção

Mágica e sobrenatural, a mulher penetra no mundo animal

52 artes visuais

Espiritualidade

Artistas unem o artístico ao sagrado

seções 09 Editorial | 10 cartas | 12 Navegação | 20 tribos | 30 mundo codificado | 100 Reviews | 28 Colunas Móveis | 114 selects | 112 Delete | 113 obituário


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expediente

EDITOR E DIRETOR RESPONSÁVEL: Domingo Alzugaray EDITORA: Cátia Alzugaray PRESIDENTE-executivo: Carlos Alzugaray

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diretora De redação: Paula Alzugaray editora-Chefe: Giselle beiguelman direção de arte : ricardo van steen editores-adjuntos: Juliana Monachesi e Marcos Diego Nogueira repórter: Nina Gazire repórter online: mariel zasso COLABORADORES

Angélica de Moraes, Daniela Labra, Ernesto Oroza, Fernanda Lopes, Flávia Couto, Guy Amado, João Paulo Quintella, Juan Estevez, Malu Andrade, Maria Clara Vergueiro, Nelson Brissac, Nicole Heiniger, Renata Correa, Ricardo Fernandes, Seb Caudron

projeto gráfico DESIGNER secretária de redacão

Cassio Leitão e Ricardo van Steen Michel Spitale Roseli Romagnoli

edição de fotografia

Leticia Palaria

copy-desk e revisão

Hassan Ayoub

pré-impressão

Retrato Falado

contato Serviços Gráficos mercado leitor assinaturas

faleconosco@select.art.br Gerente Industrial: Fernando Rodrigues CoordenadorA gráficA: Ivanete Gomes diretor: Edgardo A. Zabala Diretor de Vendas Pessoais: Wanderlei Quirino Supervisora de Vendas: Rosana Paal Diretor de Telemarketing: Anderson Lima Gerente de Atendimento ao Assinante: Elaine Basílio Gerente de Trade Marketing: Jake Neto Gerente de Planejamento e Operações: Reginaldo Marques Gerente de Operações e Assinaturas: Carlos Eduardo Panhoni Gerente de Telemarketing: Renata Andrea Gerente de Call Center: Ana Cristina Teen Gerente de VENDA AVULSA: Luciano Sinhorino

venda avulsa operaçÕES

Central de Atendimento ao Assinante: (11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 Outras Capitais: 4002.7334 Demais localidades: 0800-7750098, 0800-8882111 Coordenador:Jorge Bugatti Analistas: Pablo Barreto, Thiago Macedo, Ricardo Cruz e Fabio Rodrigo Shopping 3: Dayane Aguiar Diretor: Gregorio França Secretária Assistente: Yezenia Palma Coordenador Gráfico: Marcelo Buzzo Assistente: Luiz Massa Assistente Jr.: Paulo Sérgio Duarte Auxiliar: Aline Lima Coordenadora de Logística e Distribuição de Assinaturas: Vanessa Mira Assistentes: Denys Ferreira, Karina Pereira e Regina Maria Operações Lapa: Paulo Paulino

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Diretor: Rui Miguel Gerentes: Débora Huzian e Wanderly Klinger REDATOR: Marcelo Almeida Diretor de Arte: Thiago Parejo Assistente de Marketing: Marciana Martins e Thaisa Ribeiro Diretor Nacional: José Bello Souza Francisco GERENTE: Ana Lúcia Geraldi Secretária Diretoria Publicidade: Regina Oliveira Coordenadora Adm. de Publicidade: Maria da Silva Gerente de Coordenação: Alda Maria Reis Coordenadores: Gilberto Di Santo Filho e Rose Dias Auxiliar: Marília Gambaro Contato: publicidade@select.art.br Rio de Janeiro-RJ: Diretor de Publicidade: Expedito Grossi Gerentes Executivas: Adriana Bouchardet, Arminda Barone e Silvia Maria Costa Coordenadora de Publicidade: Dilse Dumar; Tel.s: (21) 2107-6667 / (21)2107-6669 Brasília-DF: Gerente: Marcelo Strufaldi; Tel.s: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 SP/Campinas: Mário EsTel.ita - Lugino Assessoria de Mkt e Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (19) 3579-6800 SP/Ribeirão Preto: Andréa Gebin - Parlare Comunicação Integrada; Tel.s: (16) 3236-0016 / 8144-1155 MG/Belo Horizonte: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 PR/Curitiba: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 RS/Porto Alegre: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel.: (51) 3388-7712 PE/Recife: Abérides Nicéias - Nova Representações Ltda.; Tel./Fax: (81) 3227-3433 BA/Salvador: Ipojucã Cabral - Verbo Comunicação Empresarial & Marketing Ltda.; Tel./Fax: (71) 3347-2032 SC/Florianópolis: Paulo Velloso - Comtato Negócios Ltda.; Tel./Fax: (48)3224-0044 ES/ Vila Velha: Didimo Benedito - Dicape Representações e Serviços Ltda.; Tel./Fax (27)3229-1986 SE/Aracaju: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962 Internacional Sales: GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062 - E-mail: gilmargsf@uol.com.br Marketing Publicitário - Diretora: Isabel Povineli Gerente: Maria Bernadete Machado Coordenadora: Simone F. Gadini Assistentes: Ariadne Pereira, Regiane Valente e Marília Trindade 3PRO Diretor de Arte: Victor S. Forjaz Redator: Bruno Módolo

SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da EDITORA BRASIL 21 LTDA., Rua William Speers, 1.000, conj. 120, São Paulo - SP, CEP: 05067-900, Tel.: (11) 3618-4200 / Fax: (11) 3618-4100. Comercialização: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; Distribuição Exclusiva em bancas para todo o Brasil: FC Comercial e Distribuidora S.A., Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678, Sala A, Osasco - SP. Fone: (11) 3789-3000 Impressão: Log & print Gráfica e Logística S.A.: Rua Joana Foresto Storani, 676, Distrito Industrial, Vinhedo - SP, CEP: 13.280-000

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editorial

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O Havaí seja aqui A edição 10 surge sob o signo da viagem. Não só porque no meio de seus meses de produção passamos por férias coletivas, quando cada um pôde expandir seus horizontes, mas também porque tivemos o privilégio de acompanhar o deslocamento, passo a passo, da artista Marina Abramovic´ em viagem de 45 dias de pesquisa pelo Brasil. A editora-chefe Giselle Beiguelman e o diretor de arte Ricardo van Steen viajaram para Marte. Na idolatria que compartilham pelo planeta vermelho, eles o transformaram na “última utopia” e em solo fértil para artistas, arquitetos e designers plantarem sonhos interplanetários. Diretamente do deserto marciano pousamos no pico de um rochedo, no interior da Alemanha oitocentista, para das alturas contemplar a insignificância da existência humana, dispersa em um mar de neblina a se confundir com a espuma de uma onda monumental. Na estreia do crítico de arte Guy Amado como colaborador de seLecT, mergulhamos na potência simbólica e visual do surfe como experiência-limite. E saímos molhados. Esses são alguns dos extremos paradisíacos da seLecT 10, que ainda sobrevoa os paradoxos de Miami e Havana pelas lentes de Ernesto Oroza. Para arrematar, seLecT ganha outros ares com duas novas seções, que ampliam o diálogo com sua comunidade. O Fogo Cruzado surge como novo formato de debate, em que varremos nossas agendas lançando uma pergunta lancinante e premente. Na largada queremos saber: para que serve o curador? Também inauguramos a seção Vernissage, composta do portfólio de um artista que estará em cartaz em uma galeria do Rio ou de São Paulo nos meses em que a revista estará nas bancas. A Vernissage de estreia conta com o trabalho iluminado do pernambucano Kilian Glasner, interpretado pela crítica de arte Fernanda Lopes. Que venha a grande onda!

Paula Alzugaray

Ricardo van Steen

Giselle Beiguelman

Juliana Monachesi

Nina Gazire

Hassan Ayoub

Michel Spitale

Paula Alzugaray Diretora de Redação

Roseli Romagnoli

Marcos Diego Nogueira

Ilustrações: Ricardo van Steen, a partir do aplicativo face your mangá


cartas

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Parem com isso! Vocês não fazem revista, vocês fazem um guia obrigatório sobre cultura de alto nível, um manual para entender a atualidade. Nunca vi coisa igual, os professores de faculdade deveriam dar uma aula sobre essa última seLecT.

João Camargo, diretor de televisão (TV Bandeirantes)

Curto demais esta revista e estou feliz, pois ganhei de Natal uma assinatura. Isto sim é um presente da maior qualidade. Herton Hoitman, via Facebook Genial o ensaio “Um museu de grandes movidas (velhas)”. Dá gosto ter esse tipo de inspiração chegando em casa, viu, sô! Fred Paulino, artista e gambiologista Viciada nas reportagens e artigos da seLecT. Recomendo. Marcela Guther, via Twitter

Só a seLecT para me fazer ir à banca comprar uma revista de papel. A nova edição está escandalosamente deliciosa. Luciana Moherdaui, jornalista, via Facebook Excelente reportagem de André Forastieri para a (edição 08 da) seLecT. Acho que mensagens edificantes tendem a diminuir na internet, ainda numa fase pré-mundo-cão. Sou fã. Pollyana Ferrari, via Twitter Ótima abordagem na matéria sobre a encruzilhada digital. Obrigado pelo destaque dado à Duplo Galeria e ao trabalho da Sara Não Tem Nome. Roberto Moreira S. Cruz, curador Li a edição inteira da seLecT 09 em um dia. Como sempre, vocês se superaram. Destaco ainda o ensaio de Giselle Beiguelman sobre o retorno da cultura pop ao passado. Vocês são incríveis. Eduardo do Valle, jornalista

Escreva-nos Rua Itaquera, 423, Pacaembu, São Paulo - SP CEP 01246-030

revistaselect revistaselect www.select.art.br faleconosco@select.art.br

Top 10 site seLecT DEZ/JAN O puxadão do Masp O anexo do museu será um clássico de horror da arquitetura paulistana. Por Angélica de Moraes – http://va.mu/cFPj

podem ser, na verdade, um só. Por Alexandre Matias – http://va.mu/cFPo

dos anos 60? Por Ronaldo Bressane – http:// va.mu/cFPr

Vídeos para postar no Facebook Seleção de vídeos para assistir e compartilhar a qualquer hora, sem compromisso e online. Por Hughes Sweeney – http://va.mu/cFPp

Divirta-se Na seLecT #8, Mundo-Cão: a banda podre da política, da notícia e do entretenimento. Por Paula Alzugaray – http:// va.mu/cFPx

Black is beautiful A seLecT seleciona dez artistas negros indispensáveis . Por Juliana Monachesi – http://va.mu/cFPm

Dumb ways to die Campanha de uma companhia de metrô da Austrália que virou febre na rede. Por Nina Gazire – http:// va.mu/cFPq

A nova política de privacidade do Facebook FB muda suas regras: cadê o botão gênio? Por Giselle Beiguelman – http://va.mu/cFPw

O universo paralelo de Quentin Tarantino Às vésperas do lançamento de Django Livre, todos os filmes do diretor de Pulp Fiction

Ativismo de sofá Mais radical, mais acomodada – ou a juventude nunca passou de um mito romântico criado pelas esquerdas

A feira como experiência (Art Basel Miami – parte 3) Por que uma feira como a Art Basel é o centro das atenções do mundo da arte. Por Paula Alzugaray – http://va.mu/cFPl

Para aprender em qualquer lugar Seleção de cursos abertos online para você mergulhar no universo do autodidatismo Por Mariel Zasso – http://va.mu/cFP0


colaboradores

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João Paulo Quintella Mestrando em Processos Artísticos Contemporâneos pela Uerj, atua no campo da crítica e produção artística, tendo como principal objeto de estudo as modalidades afetivas contemporâneas. – reviews P 105

Maria Clara Vergueiro

Juan Estevez

Seb Caudron

Cientista social e repórter da revista Go Outside. Foi apresentadora do canal SporTV, editora das receitas da chef Rita Lobo e fez o primeiro projeto editorial do site de boas notícias asboasnovas.com. – comportamento P 82

Fotógrafo, já publicou quatro livros autorais e colaborou em livros e revistas em mais de dez países. Escreve no caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, onde também foi editor de fotografia. – reviews P 104

Francês e diretor de efeitos visuais, trabalhou no filme Piaf, Um Hino ao Amor e em projetos publicitários de marcas como Pepsi, Chrysler, Nissan, Ray-Ban, Bradesco, Globo, Yamaha e Chevrolet. – ensaio P 32

Nicole Heiniger

Renata Correa

Fotógrafa brasileira radicada em Londres. Trabalhou com fotografia para cinema em Berlim e dedica-se à fotografia de moda na capital do Reino Unido. – moda P 68

Stylist, já fez editoriais para revistas de moda do Brasil e exterior. – moda P 68

Ricardo Fernandes

Nelson Brissac

Cria peças gráficas desde 1993 e faz direção de arte para tevê e cinema, incluindo os recentes documentários Tropicália (prêmio de melhor direção de arte no festival Unasur – Argentina) e Shoot Yourself. – mundo codificado P 30

Filósofo, trabalhando com questões relativas à arte e ao urbanismo. Coordenou o Arte/ Cidade, projeto de intervenções urbanas em São Paulo. Dedica-se a pesquisas sobre dinâmicas territoriais e às relações entre arte e indústria. – reviews P 102

Angélica de Moraes

Ernesto Oroza

Malu Andrade

Crítica de arte, jornalista e curadora. Foi editora de artes visuais da seLecT e repórter do Estadão. Escreveu livros sobre Marcantonio Vilaça e Alex Flemming, publicados pela editora Cosac & Naif. – panorâmica P 92

Cubano, vive em Aventura (FL) desde 2007. É designer e artista interdisciplinar bolsista da Fundação Guggenheim. Expôs no MoMA (Nova York) e no Laboral Centro de Arte em Gijon, Espanha, entre outros. – território P 86

Pós-graduada em Estéticas Tecnológicas pela PUC-SP. Produtora cultural e arteeducadora, participou do Festival Baixo Centro e é membro da Casa da Cultura Digital. – selects P 114

Daniela Labra

Guy Amado

Fernanda Lopes

Crítica de arte, doutoranda em História e Crítica pelo PPGAV/EBA/UFRJ. Membro do conselho curatorial do Galpão Bela Maré, RJ, e integrante do grupo de investigação Global Art Archive, ligado à Universitat de Barcelona. É professora da EAV Parque Lage. – urbanismo P 96

Crítico de arte independente. Vive entre São Paulo e Portugal, onde desenvolve doutorado em arte contemporânea na Universidade de Coimbra. – aventura P 78

Editora do site ARTINFO Brasil. Ganhadora da Bolsa de Estímulo à Produção Crítica (Minc/Funarte) em 2012, foi curadora da sala sobre o Grupo Rex na 29a Bienal de São Paulo. – vernissage P 106


notícias + tendências + transcendências

navegação Perfil

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Londres chama Jac Leirner Artista ganha representação da White Cube e faz individual no Reino Unido em novembro

A galeria londrina White Cube vem namorando o Brasil desde o início de 2012, quando participou da SP-Arte, até que finalmente oficializou a abertura de uma filial em São Paulo, em dezembro, com uma individual de Tracey Emin. No entanto, com a artista paulistana Jac Leirner, o namoro teve início muito antes. “Começou em 1993, quando não pude aceitar um convite para expor no primeiro espaço da galeria, em Londres. Estava atolada de trabalho, precisava parar”, conta ela. A partir de 2013, a White Cube passa a representar Jac Leirner na Europa e na Ásia. O casamento começa em novembro, com uma individual da artista no coração de Londres. PA fotos: romulo fialdini. à direita: raphäel zarka/divulgação


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o b r a da s é r i e P r i s m at i q u e s D r aw i n g s , d o f r a n c ê s Rap h ä e l Z a r k a

Artes visuais

Invasão gringa? Galerias paulistanas aderem ao padrão globalizado

Em fevereiro, Agnieszka Kurant, artista polonesa que participou da última Bienal de Veneza, expõe na Galeria Fortes Vilaça; o francês Raphäel Zarka abre exposição na Luciana Brito; o escultor britânico Henry Krokatsis realiza sua terceira individual na Galeria Leme, que inaugura no mesmo dia que a mostra da artista portuguesa Leonor Antunes na Luisa Strina. Coincidência? A presença crescente no Brasil de galerias pesos pesados do exterior, como White Cube e Gagosian, já vinha dando indicações de que o até pouco tempo conservador mercado brasileiro de arte estava se abrindo para a produção internacional. A reviravolta, em poucos anos, da coleção do Instituto Inhotim – uma verdadeira substituição de arte nacional por obras importadas – foi outro forte indício disso. Uma olhada na agenda 2013 de exposições em galerias comerciais termina de dirimir qualquer dúvida. Vale conferir e entender para onde o mercado está caminhando. JM

Agnieszka Kurant, de 21/2 a 23/3, Galeria Fortes Vilaça – Raphäel Zarka – Coletânea e Gramática, de 27/2 a 23/3, Luciana Brito Galeria – Henry Krokatsis, abertura dia 19/2, Galeria Leme – Leonor Antunes – Project, de 20/2 a 20/3, Galeria Luisa Strina


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Música

Canções para ver Músico Lirinha chega à reta final do projeto de transformar em videoclipe todas as músicas do seu novo álbum

“Dirigir um olhar sobre a música e transformar isso em imagens.” Assim José Paes de Lira, o Lirinha, define o projeto em que se desafiou a produzir um videoclipe para cada canção do seu primeiro disco-solo pós-Cordel do Fogo Encantado, LIRA. Lançado em 2011, o projeto vem sendo bem-sucedido – os últimos dois vídeos, de um total de 12, já estão em produção final. Gravados com iPad, celulares, câmeras digitais e analógicas, os trabalhos que têm a sua autoria ou de cineastas amigos, como Lírio Ferreira e Eryk Rocha, são postados no site pessoal do músico, josepaesdelira.net, e vêm rendendo frutos ao cantor e compositor. Foi por meio deles que o pequeno selo mexicano Intolerancia se interessou em lançá-lo por lá, bem como uma rádio alemã dedicou uma hora de sua programação para tocar o álbum todo. “As pessoas escutam muita música por meio de recursos que têm imagens, como o YouTube”, diz. “O próprio público teria se encarregado e alguém teria feito um slide de fotos da viagem com a namorada e postado lá com a minha música. Imaginei então que essas imagens pudessem ser feitas por mim, no meu cotidiano.” MDN

Música

Parte instalação, parte banda

HIVE, 21 de março, Guggenheim Museum, Nova York

Músico nova-iorquino prepara projeto conceitual para ser apresentado em museu

Multi-instrumentista do conceituado grupo nova-iorquino de música experimental Battles, Tyondai Braxton prepara HIVE, seu novo projeto multimídia com estreia marcada para 21 de março no Guggenheim Museum, em sua cidade natal. Com composições exclusivas, Braxton fará música usando sintetizadores e instrumentos acústicos, acompanhado do também polivalente Ben Vida e do trio de percussionistas formado por Yuri Yamashita, Jared Soldiviero e John Ostrowski. Os cinco se apresentarão em cima de uma plataforma desenhada e fabricada exclusivamente para o projeto, que, segundo o músico, trará “elementos visuais” à sua música e também “a possibilidade de criar diferentes ambientações”. Dentro dessa colmeia de sons e imagens, ele define sua nova aventura como “parte instalação, parte banda”. MDN


Artes visuais

Cores primárias Artista taiwanês Lin-Yi-Hsuan, que reaprendeu a desenhar com seus alunos de 8 anos, expõe na Logo em março

Lin-Yi-Hsuan, a partir de 5 de março, Galeria Logo, Rua Artur de Azevedo 401, São Paulo, www.galerialogo.com

Há dez anos, o jovem artista Lin-Yi-Hsuan, então recém-formado em belas artes, foi convidado a ensinar pintura a um grupo de crianças de 4 a 8 anos de idade, habitantes de uma pequena vila de pescadores, no litoral de Taiwan. “Não dei a eles nenhuma coordenada. Apenas dei papel e lápis de cor e eles começaram a desenhar”, diz ele. Assim, o processo de aprendizado se inverteu e Hsuan reaprendeu a desenhar com seus alunos. Desde então, Hsuan assumiu o desenho como linguagem. Papel colorido e tinta, materiais encontrados habitualmente nas salas de artes das escolas primárias, são suas ferramentas de trabalho. Em março, o artista, hoje residente em Buenos Aires, expõe na Galeria Logo, em São Paulo, os resultados de sua mais recente pesquisa com o desenho. PA

Mídia

A revolução será “internetificada” Cineastas famosos dão início a um novo momento do audiovisual com produção de série exclusiva para internet

Conhecido por filmes de sucesso como A Rede Social e Seven, o cineasta David Fincher lança mundialmente no dia 1º de fevereiro seu trabalho mais desafiador. House of Cards, série protagonizada por Kevin Spacey sobre o Congresso norte-americano que terá seu lançamento mundial não por televisão ou cinema, mas, sim, pelo serviço de transmissão online Netflix. Dividida em 13 episódios de uma hora House of Cards, cada, ela não só marca um novo momento midiático em que as séa partir de 1 de feries são produzidas para internet, mas também ao ter todos os seus vereiro, no Netflix episódios disponibilizados de uma só vez, deixa ao espectador a miswww.netflix.com.br são de montar sua grade de programação. Produtor, Fincher dirigiu dois dos primeiros episódios da série que conta com James Foley, Joel Schumacher e Alan Coulter por trás das câmeras. MDN à esquerda: reprodução e mario grisoli/divulgação. no alto: lin-yi-Hsuan/divulgação. abaixo: divulgação

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Artes visuais

Tratados de Kyoto Artista e professor mostra em livro e galerias sua experiência de um ano no Japão

O pintor e professor de pintura da ECA-USP Marco Giannotti começa 2013 a toda com duas exposições em São Paulo e o lançamento de um livro. A partir de 2 de fevereiro, na Galeria Raquel Arnaud, ele evoca o ponto de transição entre a luz e a sombra em Penumbra, reunião de 14 telas que variam de formato e foram feitas à base de esmalte (spray), têmpera e óleo, após sua estada de um ano em Kyoto, no Japão, em 2011. Paralelamente, no mesmo mês, no dia 21, ele lança, no Instituto Tomie Ohtake, Diário de Kyoto – caderno com textos, colagens e fotografias da sua experiência nipônica, quando ministrou aulas de cultura brasileira na Universidade de Estudos Estrangeiros da cidade. Na mesma data e lugar, aproveita para abrir a mostra que leva o mesmo nome do livro. MDN

vídeos

GOLES DE AMIZADE Gael Garcia Bernal e Diego Luna dirigem curtas-metragens para a Chivas Regal sobre o cotidiano entre amigos

A Canana Filmes, produtora dos atores mexicanos Gael Garcia Bernal, Diego Luna e do cineasta Pablo Cruz, firmou parceria com a marca de uísque Chivas Regal para contar a história de três amigos em dois curtas-metragens que serão disponibilizados na internet. A ideia dos enredos escritos por Alonso Ruizpalacios é transpor para as telas os momentos que envolvem o cotidiano de uma grande amizade, como foi a dos irmãos James e John Chivas, fundadores da fábrica escocesa, em 1801. Nessa empreitada, baseada na última campanha da marca intitulada Real Friends, Make Time, os amigos Luna e Bernal dividirão o trabalho, dirigindo um vídeo cada um. No Brasil, as peças poderão ser vistas no Facebook da marca (www.facebook.com/chivasregalbrasil) e no blog Chivalry (www.chivalryclub.com.br). MDN acima: marco giannotti e chris pizzello/ap photo/glow images. À DIREITA: cortesia dos artistas

Marco Giannotti, Penumbra, de 2/2 a 9/3, Galeria Raquel Arnaud; Diário de Kyoto, de 21/2 a 21/4, Instituto Tomie Ohtake. www.raquelarnaud.com, www.institutotomieohtake.org.br


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Arte e tecnologia

Desmaterialização da arquitetura Artistas ocupam fachada da Fundación Telefónica de Buenos Aires

Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti foram convidados em 2011 a desenvolver uma obra interativa para a fachada da Fundación Telefónica (FT) de Buenos Aires. A FT fica em um edifício de 1902, onde funcionava o primeiro serviço de telefonia da capital argentina. Aristóteles Onassis, o famoso magnata grego, trabalhou lá no fim dos anos 1920 como telefonista e, dizem, começou sua fortuna escutando as conversas de negócios na época. Desde o início, o convite envolvia inúmeros desafios. Não só por se tratar de um prédio antigo, ou pelo fato de sua calçada estreita fazer com que qualquer intervenção diante do prédio atrapalhe o fluxo dos pedestres. O maior desafio era chegar a um resultado que pudesse ficar exposto sob todas as intempéries por um ano. “De matar! Nem camiseta Hering resiste a um ano de uso intenso!”, comenta Rejane Cantoni.

A solução foi projetar a obra para o primeiro andar da FT, fixando-a entre 5 e 7,5 metros de altura. “Isso representou muitas vantagens para a visualização da obra, mas muitos desafios em relação à manutenção, fixação e montagem. (Veja a documentação da montagem em http://on.fb.me/REifci) Uma das prioridades do trabalho da dupla é desenvolver obras que interfiram na percepção da espacialidade. “Para expandir os sentidos, não podíamos tapar a vista ou a luz dos ocupantes da biblioteca”, comenta Cantoni. Por isso, a obra foi construída com lâminas espelhadas que se movem de acordo com a passagem de pessoas na rua. Em um momento em que se discute a emergência das cidades interativas, a obra sela o encontro do cimento com a tecnologia para celebrar a desmaterialização da arquitetura como obra coletiva. GB

Fachada, Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti, até 6 de dezembro de 2013, Fundación Telefónica, Arenales, 1.540, Buenos Aires, Argentina


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20 18

Arte digital

Três vezes remix Centro de ponta da pesquisa e produção artística em San Diego inaugura exposição

Design

Arrojo e multiplicidade Exposição evidencia a importância da família Giugiaro no design

Embalagem de chá, máquina fotográfica, carro de luxo. Independentemente do tamanho do objeto de criação, é inegável que os designers Giorgetto e Fabrizio Giugiaro tenham uma parte da responsabilidade na construção da identidade italiana do século 20. Se ainda há alguma dúvida, ela pode ser tirada a partir de 5 de fevereiro no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, na exposição Giugiaro: 45 Anos de Design Italiano. A mostra ocupa cinco salas e foca não só nos trabalhos realizados por ambos e sua empresa Italdesign Giugiaro para a indústria automobilística, como no desenho dos carros Passat, Golf, Maserati Spyder 4200 e Lamborghini Gallardo, mas também nos projetos ligados a objetos cotidianos, como máquinas de café expresso e jogos de panelas. Os visitantes acompanham ainda o processo criativo da dupla em projetos de grande sucesso, como as câmeras Nikon, o trem de alta velocidade ETR 600 Frecciargento e também em parte da Juventus Arena, estádio de futebol localizado em Turim, cidade natal da família. MDN

Giugiaro: 45 Anos de Design Italiano, de 5 de fevereiro a 31 de março, Museu da Casa Brasileira, Av. Brig. Faria Lima, 2.705, São Paulo-SP www.mcb.org.br

à esquerda: helmut newton/divulgação. à direita: ai weiwei/divulgação, paula alzugaray

Three Junctures of A mostra Three JuncRemix, de 17 de janeitures of Remix reúne ro a 15 de março, Cacinco grandes pioneiros lit2 , em San Diego CA da arte digital que aprehttp://gallery.calit2. sentam trabalhos sobre net/portal/ a questão da criação artística em três diferentes esferas do remix. Em um primeiro momento estão trabalhos que abordam a temática no contexto pré-digital e analógico; o remix dentro da cultura digital; e o futuro da prática dentro daquilo que é chamado de cultura pós-digital. Com curadoria do teórico e artista Eduardo Navas, a exposição acontece no Calit2, hub especializado no fomento de pesquisas e circulação da arte digital localizado na Universidade da Califórnia, em San Diego. Entre os artistas está a editora da seLecT Giselle Beiguelman, midiartista e professora da FAU-USP, que apresenta o aplicativo para iPad, iPhone e computador I Love Yr GIF. O projeto é baseado na primeira cultura da netart, produzida inteiramente com GIFs animados escolhidos de coleções pessoais de artistas como Jimpunk e Marisa Olson, além da manipulação de material encontrado em tumblrs da rede pela artista. Além de Beiguelman, participam da mostra o artista Mark Amerika e Chad Mossholder, o mexicano Árcangel Constantini e Elisa Kreisinger. NG


Parcerias

A feira como experiência Absolut Art Bureau inicia parceria de longo prazo com a feira Art Basel e convida artistas para criar bares

Em 2012, a Absolut Art Bureau iniciou uma parceria de longo prazo com a feira Art Basel e a Documenta de Kassel. A cada evento, o departamento de arte e cultura da marca de vodka convidará um artista contemporâneo para criar uma área que funcione como bar, espaço de convivência, performances e projetos culturais. Em dezembro de 2012, a dupla cubana Los Carpinteros criou o espaço Güiro para a Art Basel Miami Beach. “Güiro” é a gíria cubana para “festa” e, segundo o artista Dagoberto Rodriguez, a escultura teve entre suas principais inspirações um instrumento musical pré-colombiano. O espaço foi, afinal, palco de performances e concertos musicais durante os quatro dias de feira, entre 6 e 9 de dezembro. Mickalene Thomas, artista nova-iorquina representada pela galeria Lehmann Maupin, é a convidada para criar um bar na feira Art Basel, que acontece de 13 a 16 de junho na Basileia, na Suíça. “Não somos patrocinadores, somos ativadores de experiências”, afirma Vadim Grigoriam, líder do projeto Absolut Art Bureau. “Güiro não é uma escultura nem um espaço arquitetônico. É uma experiência”, completa Grigorian, apontando para a função inevitável das feiras de arte hoje: conectar. PA

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tribos do design

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Caçadores do jet set Eles deixam de lado a vida louca das cidades e partem para a aventura. Preparados para qualquer modalidade de paraíso inabitado, não perdem a elegância jamais

Specialized Triatlon Shoes Sapatilha feminina para otimizar a performance e manter a temperatura dos pés durante as pedaladas Luminor Marina Automatic O mecanismo de aço e a pulseira de couro de jacaré fazem deste relógio da Panerai uma união perfeita entre beleza e força Sapatos de neve Tubbs Feitos com aço inoxidável, são fáceis de calçar e evitam os pés molhados ao caminhar pelo gelo

Mochila Nintendo Licenciada pela fabricante do videogame, ela tem até os botões em alto-relevo e zíperes com miniaturas dos controles BMW R 1200 GS A moto-símbolo de aventura da montadora alemã foi redesenhada após uma década de sucesso e ganhou refrigeração líquida, que aumenta sua potência e velocidade

Capacete e luvas Gucci Frida Giannini, fashion designer da marca italiana, criou o capacete e as luvas para ciclistas que não perdem o ritmo das pedaladas e das tendências da moda

Novara Safári A despeito da leveza de sua estrutura, é uma das bicicletas mais fortes do mercado, desenhada especialmente para os tipos mais difíceis de terreno Fotos: divulgação


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fogo cruzado

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Para que serve o curador? Na estreia da seção Fogo cruzado, CONVIDADOS respondem uma única e premente questão, que dá título à matéria. DEZ análises lúcidas e debochadas de artistas e curadores sobre o papel desse profissional no meio de arte contemporânea J U L I A N A M O N AC H E S I i l u s t r a ç õ e s R aul Ag uiar

TADEU CHIARELLI diretor de museu, professor e curador

“Para nada”. Seria essa a resposta, se eu levasse

em conta a primeira impressão que me dá a leitura da pergunta. Ali, parece que o curador é um objeto, uma “coisa” que pode ou não ser usada; é o curador como uma mercadoria a mais do circuito de arte, do mercadão que ele se tornou. Nesse contexto, o curador não passa de um logo que chancela qualquer outra mercadoria, conferindo-lhe, quase sempre, um status não muito mais espesso do que uma nota de 1 real. Mas o curador pode ser o filtro entre a arte e o tal mercadão; o elemento que sublinha a real importância de determinados artistas, de determinadas obras. Aí, então, a resposta seria:

“Serve muito”. fotos: JUAN GUERRA, e acervo pessoal


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EDUARDO SRUR

RAFAEL CAMPOS ROCHA

artista e agitador cultural

artista e QUADRINISTA

Vejo o curador como um agente que intermedeia conceitos e negócios dentro do circuito da arte. A atual força de controle da arte nas mãos de curadores deve-se, em parte, à incapacidade de muitos artistas para construir diálogos claros e convincentes sobre seus próprios trabalhos e para negociar a produção no sistema. A minha trajetória sempre mostrou uma urgência no desenvolvimento e realização de obras visuais que se comunicam diretamente com o público e a cidade. E minhas exposições ocorrem em espaços não controlados pelo circuito artístico convencional. Dessa forma, abro uma possibilidade de caminho alternativa, em que a figura do curador não é necessária. Manter um relacionamento com os curadores é sempre bom, por serem intelectuais que ampliam o conhecimento, mas não devem ser vistos como figuras imprescindíveis no percurso de um artista e as convicções.

LISETTE LAGNADO curadora do Panorama MAM 2013

O papel do curador, depois da fase personalista dos anos 1990, tem se ­diluído em verdadeiras comissões técnicas – como as dos grandes times e seleções de futebol – capazes de abranger leques muito maiores de manifestações culturais. Essa amplidão faz-se necessária justamente pela própria diluição da arte na cultura, que pode não somente flertar, impregnar-se ou citar, mas mesmo fazer as vezes de manifestações tão díspares como o showbiz ou a ciência aplicada, a etnografia ou o vandalismo.

Achei particularmente difícil responder, devido à formulação da pergunta: “Para que serve...?” Talvez devesse ser para quem. Aí, minha resposta seria direta: para os artistas e para o público. A curadoria no Brasil dispõe de uma narrativa que começou há pouco tempo. Se, nos fóruns internacionais, o debate alcança níveis sofisticados (discute-se o curador como artista, o curador-ativista, o curador-etnógrafo), no Brasil ainda vigora a ideia de que o curador ora justapõe obras disparatadas entre elas de forma arbitrária, ora tem “mão pesada”. São argumentos que depõem contra a competência intelectual do curador, sua capacidade de pesquisa e associações criativas, sua memória histórica e seu real engajamento com questões do presente.


fogo cruzado: para que serve o curador?

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FELIPE CHAIMOVICH diretor de museu e curador

O curador de arte constrói ciclos visuais reunindo obras independentes entre si, mas que passam a formar um conjunto por ocasião da curadoria. Esses ciclos visuais representam a interpretação do curador sobre um tema. Caso o tema aborde a história contemporânea, o curador colabora com a investigação sobre valores do presente, pois a contemporaneidade é definida como um período em desenvolvimento, logo é desprovida de valores definitivos; assim, a curadoria de arte contemporânea permite testar hipóteses sobre o presente por meio da reunião de obras de arte.

NINO CAIS artista

O curador como semeador – “Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo; mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou o joio no meio do trigo e retirou-se. E, quando a erva cresceu e produziu fruto, apareceu também o joio. Então, vindo os servos do dono da casa, lhe disseram: Senhor, não semeastes boa semente no teu campo? Donde vem, pois, o joio? Ele, porém, lhes respondeu: Um inimigo fez isso. Mas os servos lhe perguntaram: Queres que vamos e arranquemos o joio? Não! Replicou ele, para que, ao separar o joio, não arranqueis também com ele o trigo. Deixai-os crescer juntos até à colheita e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro”. (Fonte: Mateus, 13) fotos: PAULO FREITAS, e acervo pessoal


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KIKA NICOLELA artista e cineasta

A palavra “curador” vem do latim curare, que significa algo como “aquele que cuida”. Por um lado, talvez o curador tenha essa função de cuidar de uma exposição ou de uma coleção institucional, ou até de cuidar das obras e dos artistas. Mas o mais importante, a meu ver, é a capacidade (dos bons curadores...) de realmente entender e apreender o que há de mais relevante num determinado contexto e num determinado momento, e de articular isso sob a forma de exposição de arte.

FERNANDO VELAZQUEZ artista e curador

Para articular conhecimentos específicos, fruto de uma pesquisa séria e aprofundada sobre um assunto qualquer. Conhecimentos que promovam, mobilizem e/ou questionem o já conhecido, em prol de novas perspectivas que expandam a nossa consciência de mundo.


fogo cruzado:

para que serve o curador?

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GUSTAVO REZENDE artista e professor

Achei particularmente difícil responder, devido à formulação da pergunta: “Para que serve...?” Talvez devesse ser para quem. Aí, minha resposta seria direta: para os artistas e para o público. A curadoria no Brasil dispõe de uma narrativa que começou há pouco tempo. Se, nos fóruns internacionais, o debate alcança níveis sofisticados (discute-se o curador como artista, o curador-ativista, o curador-etnógrafo), no Brasil ainda vigora a ideia de que o curador ora justapõe obras disparatadas entre elas de forma arbitrária, ora tem “mão pesada”. São argumentos que depõem contra a competência intelectual do curador, sua capacidade de pesquisa e associações criativas, sua memória histórica e seu real engajamento com questões do presente.

Acho que o curador atua em diversas frentes, e funciona ao mesmo tempo como um radar, ligado à produção dos artistas, possibilitando uma visibilidade para essa produção. Pode atuar junto a instituições, feiras etc., pode ter um olhar mais ou menos conservador sobre essa mesma produção, assim como abrir espaços de discussão. É lógico que, ao mesmo tempo que inclui, pode excluir. Também pode ser uma figura com um olhar especializado, ou muito imperativo, querendo ser artista ou defendendo que não há diferença entre uma coisa e outra, ou ainda um ativista. Os curadores, quanto mais diversificados e XICLET autônomos forem, melhor, porque isso democratiza; e são imporartista e diretora de galeria independente tantes dentro do sistema da arte, o que inclui o próprio mercado. fotos: acervo pessoal


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colunas móveis / gastronomia

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Carlos Alberto Dória Manjares dos deuses Trufas, ostras, abacaxis, mangas, bananas, cajus, umbus, e tudo o mais que veio ao mundo sem depender do trabalho impreciso do cozinhar, devem ser comidos de joelhos

No paraíso só se come cru. Nada de suor no rosto, de trabalhos plasmados em preparações culinárias para guardar, comer depois. Comida de homems é chamada de avati. Só aqueles expulsos do paraíso tentam reconquistar seus sabores, cozinhando incessantemente. No princípio, antes de nos tornarmos bípedes, era só cheirar as coisas antes de comê-las. E os animais, na busca do cio, toparam com as trufas. Cavoucando com as mãos, patas, ou o focinho, chegavam a essa maravilha. Porcos, cães e hominídeos procuravam, sob a terra, o cio da terra. Depois das chuvas de outono, o cheiro sexual da terra. Depois, com a postura bípede, os cheiros mais íntimos ficaram mais distantes; mas, ainda hoje, porcos e cães auxiliam o homem a encontrar as trufas. Um cheiro tão profundo, tão essencial, que milhares de anos de convivência pouco alteraram essa relação sensitiva. Afinal, a melhor forma moderna de se comer trufas é com ovo frito. Existe, na cozinha, algo mais evocativo do estado primitivo? O próprio ovo é a galinha que ainda não cozinhamos. Por conhecerem apenas o cru, escarafuncharam o mar. Maravilhas de corais, de crustáceos e conchas. E toparam com a ostra. Coisa crua, lisa, gosmenta, que parece um abismo aberto à mesa para as pessoas que entendem a cultura como uma interferência que nos liberta do mundo natural. Pois mergulhar nesse abismo, comungar o cru, o frio, a noite das profundezas, era uma maravilha do paraíso. Até hoje há resquícios disso: apenas uma gota de limão para ver o animal se contorcer, como se os últimos fios de vida lhe escapassem para pode-

rem ser comidos em paz. Na paz dos mortos. Sob o sol outra crueza: o mel. No princípio, as abelhas não tinham ferrão, pois nada temiam. E depositavam o mel em qualquer canto. Depois, armaram-se e desenvolveram favos hexagonais. Hoje, “a colmeia da abelha é absolutamente perfeita no que se refere a economizar trabalho e cera”, observou o homem que primeiro entendeu que o paraíso é efêmero. Outras, mais primitivas, aferradas ao sem-ferrão, ficaram pelo caminho. E, em protesto contra a modernidade e essa racionalidade odiosa das abelhas domésticas, continuam a dar pouco mel. Mas os mais ricos em aromas e sabores. Méis (ou meles) do paraíso... E por falar em mel, no paraíso há uma grande floresta de mangas, com mais de 70 variedades. Isso porque todos ali, sem terem de gastar tempo a cozinhar, saem todas as manhãs para chupar mangas e cada um gosta de uma variedade. Mas o bom da manga não é só o gosto, ou os 70 gostos, mas a lambuzeira, a melança que mistura homens e frutas. Mel misturado à fruta, fruta misturada aos homens, bem entendido. E foram assim, aos poucos, firmando-se os manjares dos deuses e dos homens, antes que se separassem, por conta de algum fatal episódio que muito ofendeu os deuses, que se reservaram o domínio das coisas cruas, fáceis, diretamente gostosas, condenando os homens à imprecisão dos cozimentos que nos conduzem ao bom, ao belo ou simplesmente ao desastre, obrigando a tudo fazer de novo, a recomeçar. Avati, comida de homens. Trufas, ostras, abacaxis, mangas, bananas, cajus, umbus, e tudo o mais que veio ao mundo sem depender do trabalho impreciso do cozinhar, constituem manjar de deuses. A natureza que come a si mesma, a autofagia no quase infinito processo de se suprimir produzindo o outro – assim é no paraíso. Tudo imediatamente disposto para, da mão para a boca, tornar-se êxtase. Basta prestarmos atenção ao que comemos para perceber que nada acrescentamos à roda do fogo, a não ser angústia, incerteza e uma vaga consciência de perpétua danação. Não por acaso estamos dispostos a conceder a quem cozinha bem o papel de sacerdote.


Para comer em êxtase

O st r a Pegue uma ostra. Abra-a. Olhe bem em seus olhos, como se olhos tivesse. Pingue uma gota de limão, como se colírio fosse. Conforme-se com o fato de que ela o olhará por dentro quando você mergulhar na escuridão do comê-la.

Manga Tome uma manga bem madura, das mais perfumadas, amasse bem com as mãos, pacientemente. Quando estiver bem mole dentro da casca, dê uma pequena mordida no biquinho e sorva aquele caldo de manga como se leite fosse direto da fonte. Os mais gulosos, quando o leite seca, costumam tirar a casca e chupar o caroço. Não é necessário. Apenas repita a operação, se preferir, com outra variedade, porque o que não falta no paraíso são variedades de manga. Não se preocupe com o lambuzar-se, pois ao estar satisfeito recomenda-se um banho de rio.

Ca j u Fatie um caju bem maduro em lâminas de grossura adequada. Disponha sobre cada fatia um tanto de sal e pimenta-do-reino moída. Mastigue vagarosamente cada uma, intercalando goles de cachaça para limpar a boca e recomeçar. ilustração: Peter H. Raven Library/J. Theodore Descourtilz. Fotos: vic lic e reprodução

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Tranquilizantes, estimulantes, sedativas ou alucinógenas, as drogas fazem parte da história desde os tempos bíblicos. Medicinais, ilícitas, químicas e naturais, elas compõem um panorama dos artifícios que simulam um mundo sem conflitos

Tranquilizantes NOVOS Clozaril Dogmatil Risperidona

TRADICIONAIS Melleril

Seroquel

Haldol

Ziprasidona

Vertizan

Zyprexa

Clorpromaz CDB (Cananidiol, ingrediente ativo da Cannabis)

Orap

Anfetamina Cocaína

Prozac

Estimulantes

Pesquisa: Giselle Beiguelman Infográfico: Ricardo Fernandes Fontes: http://www.quedroga.com.br/ http://informationisBeautiful.net https://cogumelosmagicos.org http://www.psicosite.com.br/ http://www.medicinanet.com.br/

Café Chá preto


Sedativos

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Álcool Barbitúricos Mandrix

Morfina Ludiomil

Éter

Ópio

Donaren Valium

Heroína

Noz de areca Nicotina

Pó de anjo

Chá de cogumelo Zyban

K (Tranquilizante para cavalos)

Cannabis

Stratera

Alucinógenos

THC

Ritalina

Ayahuasca Ecstasy Cristal

Cogumelos mágicos

LSD

Trombeta


ensaio

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imagem: nasa


Musicado, filmado, teatralizado e cantado em inúmeras páginas da ficção científica, Marte é a utopia humana que restou no século 21 De David Bowie a Rita Lee, de H.G. Wells a Ray Bradbury, passando por Arthur C. Clarke e ­Isaac Asimov, todo humano, com um mínimo de criatividade, já sonhou ter encontrado um marciano pelo caminho. Não por supostamente tudo continuar down no high society, mas porque Marte é o planeta que mais ocupou as viagens intergalácticas da imaginação do século 20. E segue ocupando. Ainda que a aterrissagem da sonda Curiosity, com suas impressionantes imagens, nos tenha frustrado um pouco, roubando-nos as visões de princesas capturadas, seres com orelhas na testa e guerreiros sanguinários e medonhos que constituíram a paisagem ficcional do século 20. Na literatura sci-fi, Marte reina soberano desde meados do século 18, quando Gulliver, o famoso personagem de Jonathan Swift, visualizou as luas do planeta vermelho, citadas, depois, por Voltaire no conto Micromegas. No cinema, o mais antigo filme dedicado aos marcianos data de 1924. Dirigido por Protazanov, Aelita, a Rainha de Marte, é um pérola da propaganda stalinista, com visual inspirado no melhor do construtivismo russo. G i s e l l e B e i g u e l m a n E R I C A R D O VAN S T EEN

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ensaio

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A genial odisseia da Curiosity mostra que, se a Lua é o satélite dos poetas, Marte é o território do nosso vir a ser

No rádio, é célebre a intervenção de Orson Welles que, ao encenar a Guerra dos Mundos (H.G. Wells, 1898) com o Mercury Theater, em 1938, levou os EUA à loucura coletiva, acreditando que um ataque marciano era iminente. Era véspera de Halloween, 30 de outubro, e os prenúncios da eclosão da Segunda Guerra Mundial criavam um cenário de tensão nada desprezível, deixando apreensivos os ouvintes. Sabe-se hoje muito mais sobre Marte do que na época de Orson Welles. Inóspito, o planeta vermelho tem uma temperatura que oscila entre -140 e 25 graus Celsius e seu “aprazível” clima é ainda marcado por tempestades de vento que provocam espessas nuvens de poeira e índices de radiação praticamente intoleráveis aos humanos. Estima-se que uma viagem tripulada a Marte demoraria mais de dois anos (750 dias), implicando o isolamento aos tripulantes que constitui um dos maiores desafios ao sonho de ver astronautas pousando nas suas míticas terras. Contudo, nenhum planeta no sistema solar é tão parecido com o nosso quanto Marte. Com rotação semelhante à da Terra, lá os dias têm pouco mais de 24h de duração e o movimento de suas calotas polares, que derretem e congelam ao longo do ano, sugere estações semelhantes às terráqueas. Isso, aliado à descoberta do

que teriam sido um dia canais de água e crendices sem fundamento sobre a existência de vida no planeta, acalenta as mais diferentes projeções acerca de sua colonização. Oficialmente, a Nasa – agência espacial dos EUA – tem planos de enviar uma missão tripulada a Marte por volta de 2030. Os cortes de orçamento não parecem desanimar os engenheiros e cientistas da agência. Apesar de grande parte da ficção encenar Marte como território de incríveis dissabores aos seus pretensos conquistadores, o planeta não sai do horizonte de visionários como Buzz Aldrin, astronauta da Apolo 11 que, juntamente com Neil ­Armstrong, pisou na Lua em 1969. Em depoimento à revista Technology Review, publicada pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), edição de novembro/dezembro, Aldrin afirma: “Dando prosseguimento ao nosso primeiro ‘pequeno passo para o homem’, com o pouso da Apolo 11, em 20 de julho de 1969, havia uma expectativa de que a humanidade estava embarcando em sua última jornada – a expansão no cosmo. Infelizmente, 43 anos depois desse acontecimento notável, pouco progredimos em relação a esse objetivo maior, exceto no que diz respeito à presença humana no nível da baixa órbita da Terra”.


A convite de seLecT, criadores de diversas áreas desenvolveram projetos para a ocupar Marte, imaginando o planeta vermelho como próxima escala de desenvolvimento da humanidade

N a p á g i n a a n t e r i o r , d e ta l h e d o t e r r e n o e m i m ag e m ca pt u r a da p e l a so n da c u r i os i t y. ac i m a , r a i o x d o so lo d e m a rt e

Sua tristeza e desapontamento ganham relevo com a frase que estampa a capa da edição: “Prometeram-me colônias em Marte, em vez disso ganhei o Facebook” (You promised me Mars, instead I got Facebook). É que, para Buzz Aldrin, Marte é o horizonte humano por excelência. No mesmo depoimento, ele conta que, ao olhar a Terra da Lua, viu-se imerso em um total estado de desconexão. “A Terra está no espaço e tudo que forma nosso planeta (...) vem do espaço. Isso posto, a questão em si, se devemos ou não ir para o espaço, parece discutível. Nós já estamos no espaço.” Em um mundo em que os esoterismos, milenarismos, messianismos e toda sorte de extremismo religioso têm fundado as mais vis guerras – e o Oriente Médio aí está para deletar qualquer dúvida sobre o tema –, Marte é a visão do que nos resta apostar como utopia humana. Fruto do engenho e da criatividade em simbiose com a emergente subjetividade maquínica, a genial odisseia da Curiosity, com seus robôs que nos expandem a dimensões nunca antes imagináveis, leva-nos a crer que, se a Lua é o satélite dos poetas, Marte é o território do nosso vir a ser. Fotos: NASA/JPL

José Resende, um dos principais nomes da arte contemporânea, responsável por intervenções urbanas antológicas feitas no projeto Arte/Cidade, em São Paulo, e com participações em mostras de renome, como a Documenta de Kassel e a Bienal de Veneza, abre o nosso Occupy Marte, transferindo Stonehenge para o espaço. Na sequência, pelo escritório Triptyque, o arquiteto Greg Bousquet, responsável por projetos no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, pensou um complexo habitacional que garante a vida confortável em Marte. Juntaram-se para criar a primeira campanha de marketing Mars Oriented, Seb Caudron, diretor de efeitos especiais que trabalhou em Piaf e de projetos publicitários para a Pepsi e a Yamaha; Seb Janiak, artista e diretor de videoclipes, fotógrafo que trabalhou com George Lucas; e João Testa, publicitário premiado em vários festivais e mentor do projeto Be See (http://ibesee.tumblr.com/). É do arquiteto Vinicius Andrade, do escritório Andrade Morettin, um plano urbanístico baseado na criação de um mecanismo regulador do ciclo das águas em Marte, que interfere no seu regime climático para torná-lo habitável. Gerson de Oliveira, artista, designer e sócio-fundador do estúdio Ovo, apontado com Luciana Martins um dos cem designers-revelação, projeta uma estrutura infinita que corta Marte, ao mesmo tempo que o expande ao infinito.

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ensaio

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JOSÉ RESENDE artista

simulação: ricardo van steen sobre imagem da cratera victoria/nasa


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GREG BOUSQUET a r q u i t e t o d a Tr y p t i q u e

desenvolvimento conceitual: Greg bousquet, carolina bueno, olivier raffaelli e guillaume sibaud. simulação: thiago bicas sobre imagem do vale oeste/nasa




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V i n í c i us A ndrade a r q u i t e t o d a A n d ra d e M o r e t t i n

simulação: Vinícius Andrade sobre imagem do cânion mamers vallis/nasa

Marte, planeta água. A proposta apoia-se em um processo hipotético, a partir do qual se transformam as condições climáticas de Marte, com o intuito de torná-lo habitável para os humanos.A ideia pressupõe a revisão do enorme know-how adquirido, de forma desastrosa, na mudança climática que fomos capazes de propiciar ao planeta Terra. Tecnicamente, a hipótese baseia-se na difusão de algas unicelulares e líquens, ambos capazes de sobreviver às condições climáticas de Marte, que atuarão transformando a atual saturação de CO2 em oxigênio abundante. A cratera estudada localiza-se em Marineris Valles, região que engloba a rede de vales de Marte. A partir da condensação da água – existente em grandes concentrações na atmosfera marciana – pretende-se reabastecer essa rede. A água é o elemento básico para estabelecer a vida em Marte. Sua presença em estado líquido é sinônimo de vida e também de humanização do território. O meio antrópico será estabelecido no interior dessas crateras, abrigado das tempestades de areia e em uma conformação espacial que favorece a criação de um microclima mais apropriado para a existência da vida. Cada cratera receberá as intervenções necessárias para sua antropização: seu interior funcionará


GERSON de oliveira designer da Ovo

Conceito gerson de oliveira e luciana martins - simulação: José Fernando sobre imagem da nasa

como um grande reservatório de água, que será, também, o mecanismo regulador do ciclo das águas no planeta vermelho. A partir da inundação dessas crateras, cria-se uma rede planetária composta de células autônomas articuladas entre si por meio dos canais hídricos. A água será o meio pelo qual as principais relações de fluxos deverão ocorrer. Juntamente com essa rede hídrica teremos também os terraços vegetais. A associação desses dois elementos constitui o sistema de suporte à vida humana. Nos platôs serão plantadas as espécies adaptadas à nova atmosfera de Marte, com o intuito simultâneo de umedecer o microclima e também produzir alimentos para a comunidade. Sobreposto a esse sistema, e abastecido por ele, será construído o território artificial que a humanidade habitará. As construções dentro dessas células serão flutuantes, para permitir a variação do nível da água. A ideia do desconhecido, somada às enormes dificuldades a ser enfrentadas, deverá conduzir inevitavelmente a uma maior interdependência entre os indivíduos. Portanto, a concepção dessas estruturas deverá considerar a criação de uma organização espacial que propicie e valorize a coesão da comunidade. A ideia de um bem comum deverá pautar as decisões urbanísticas.

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entrevista

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Marina Abramovic´

“ Tenho uma má notícia para você: não existe paraíso” t e x to PA U L A A L Z U G A R AY F oto s M ar c o a n e ll i

Marina Abramovi planejou passar o último dia do calendário maia em Alto Paraíso, Goiás. Seria o nono dia de uma viagem de um mês e meio que ela realizou por quatro estados brasileiros, pesquisando métodos tradicionais de cura e purificação. Aos 66 anos, ela começou seu roteiro na pequena cidade de Abadiânia, encrustada no antigo caminho do ouro do Planalto Central, e atual morada de João de Deus, cirurgião espiritual de renome internacional. Planejava estar em Alto Paraíso, considerado o lugar mais seguro do planeta, no dia 21. “Mas acabei ficando com João de Deus, porque ele sugeriu assim. Aceitei o destino. Foi bom, porque tive uma conversa muito interessante com vários médiuns, falando sobre a mudança de estrutura de nosso planeta. Eu estava no lugar certo, na hora certa”, conta ela. O desvio de rota veio a calhar. Não fosse a sugestão de João de Deus para que Abramovi continuasse suas meditações mediúnicas, inclusive assistindo-o em cirurgias, a artista seria mais uma entre os 10 mil turistas que se acotovelaram em Alto Paraíso no dia em que o mundo não acabou. A viagem fluiu então com muitos banhos de cachoeira, visitas a xamãs e espíritos das florestas e vivências de diversas qualidades de rituais. Durante todo o tempo, a artista iugoslava esteve acompanhada de uma equipe de nove pessoas, com as quais realizou fotografias e um documentário do processo de pesquisa da viagem. Entre elas estava a artista brasileira Paula Garcia, colaboradora de Abramovi desde o fim de 2011. No 23º dia de viagem, quando chegou em Salvador para conhecer os rituais do candomblé, Marina Abramovi conversou com seLecT pelo Skype, compartilhando generosamente suas primeiras descobertas.


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entrevista

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Você já visitou o Brasil várias vezes. Qual a importância do País em seu trabalho? O que está aprendendo nesta viagem? Minha relação com o Brasil tem muito tempo. A primeira viagem foi para aquele grande simpósio ecológico no Rio. Naquela ocasião, 12 artistas foram convidados a viajar para a Amazônia para realizar pesquisas. Eu tinha um interesse em minerais e cristais, que surgiu depois de um trabalho na Muralha da China, quando percebi que meu estado mental mudava ao andar sobre diferentes solos, com cobre, ferro ou cristal. Foi muito duro me separar de Ulay, então eu não quis ficar na China para pesquisar minerais. Fui fazer essa busca em outro lugar. Esse lugar foi o Brasil, onde descobri diversas fontes de minerais e onde fiz tantos trabalhos em diferentes períodos da minha carreira. Depois da performance The Artist is Present, no MoMA, voltei a pensar nos minerais. Então, estou de volta a esta viagem, que chamo hoje de pesquisa. Ela começou há 23 dias e tem dois propósitos: um deles é procurar diferentes ideias sobre meu trabalho e o segundo é uma pesquisa pessoal. Em seu Manifesto Sobre a Vida do Artista, você declara que “o artista deve reservar para si longos períodos de solidão”. Você associa a viagem a essa necessidade de solidão? Aqui estou acompanhada. Mas depois da viagem vou ter um tempo só para mim, para processar o que aprendi. Estou assimilando muita informação e minha cabeça está cheia de ideias. Para processá-las, definitivamente, preciso de solidão. Outra coisa importante para mim é ser nômade. Não tenho sempre uma família específica ao meu redor. Sou livre. As ideias simplesmente vêm e me carregam para qualquer lugar. Amo a sensação que chamo de “espaço entre”. É quando você deixa sua casa, seus hábitos, uma situação de segurança, mas ainda não chegou a um novo lugar, onde vai construir novos hábitos. O “espaço entre” é a viagem, quando você está completamente aberto ao destino, às novas ideias. Esse é um dos mais criativos espaços para os artistas estarem. E que estratégias você está criando para atingir esse “espaço entre” durante esta viagem? Você caminha, medita?

Não gosto de me comportar como turista, gosto de me colocar no meio das situações. Então, não estou fazendo meus rituais, mas aceito os rituais que me são propostos. Com João de Deus passei a maior parte do tempo na Sala da Corrente, realizando a cirurgia espiritual em meu próprio corpo, aceitando suas disciplinas e conselhos. Foi uma entrega completa às mais diversas situações, buscando aprender com elas, para depois poder usá-las em meu próprio trabalho. E, como meu instituto no norte do estado de Nova York ficará pronto em dois anos, estou também procurando ideias e métodos de diferentes culturas. Atualmente, temos um título de trabalho para tudo, “a corrente”. Refere-se à corrente de energia que estamos experimentando aqui, na natureza, com as pessoas. Nós realmente estamos tentando seguir a corrente, porque temos algumas ideias soltas sobre o que fazer todos os dias, mas ao mesmo tempo surgem coisas que não esperávamos abraçar. Então é uma pesquisa para abrir antenas. Você já afirmou que lê todo tipo de mitologia. De que forma a mitologia maia influenciou sua viagem? Que símbolos relativos à morte e à transformação estiveram envolvidos no trajeto? Em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que você pode ler muita literatura, escritos de filósofos, poetas e viajantes, mas isso definitivamente

“Não gosto de me comportar como turista, gosto de me colocar no meio das situações. Então, aceito os rituais que me são propostos”

N a p á g i n a a n t e r i o r , a a rt i sta e m A lto pa r a í s o, G o i á s , e m d e z e m b r o d e 2 1 0 2 , e m f oto g r a f i a da s é r i e lu g a r e s d e f o r ç a


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r e t r ato com jesus, n o Va l e d o amanhecer, n o D i st r i to federal, em 31 de dezembro de 2012: “Eu n u n c a h av i a tido uma ligação com jesus antesâ€?


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marina A b r a m ov i c´ se submete a uma limpeza do corpo com pombo b r a n c o, n a feira de São j oaq u i m , na Bahia. À d i r e i ta , reflexões n a cac h o e i r a a r ca n j o, em goiás, f oto g r a f i a da s é r i e Lu g a r e s de força

“Dizem que Alto Paraíso é o lugar mais seguro do planeta, porque seu solo brilhante de cristais pode ser visto da Lua” não o modifica. Você lê o livro, fecha o livro e é exatamente o mesmo. O interessante para mim é tirar do livro algumas diretrizes para lidar com essas coisas. Passei um ano inteiro com os aborígenes da Austrália Central, em lugares onde mesmo os australianos não vão, porque são extremamente desconfortáveis, cheios de moscas, sujos, quentes, são simplesmente o inferno. Também passei anos com os tibetanos. É importante extrair norteadores dos livros, mas o que realmente importa é sua própria experiência. Li sobre o calendário maia por muito tempo e uma das ideias envolvidas é que o Brasil Central é o lugar mais seguro para se conectar com essa ideia do fim do calendário, que não é, na verdade, o fim do mundo, é apenas a mudança da dimensão de nosso planeta. A passagem da terceira dimensão para a quar-

ta. Dizem que Alto Paraíso é o mais seguro lugar do planeta, porque seu solo brilhante de cristais pode ser visto da Lua. Por isso planejei estar lá no dia 21. Mas acabei ficando com João de Deus por mais uma semana, porque ele sugeriu assim. Aceitei o destino e passei o dia 21 em Abadiânia. Foi bom porque tive uma conversa muito interessante com vários médiuns, falando sobre a mudança de estrutura do nosso planeta e de como a consciência está mudando. Acredito nesse tipo de coisa, então, eu estava no lugar certo e na hora certa. E o mundo simplesmente não acabou como em Melancolia, o filme de Lars von Triers. O que você faz para contribuir com a mudança do planeta? Cada pessoa neste planeta faz o seu trabalho, com as possibilidades que ela tem. O padeiro tem o trabalho de fazer o melhor pão possível; o jardineiro tem de cultivar as mais fortes plantas, há o arquiteto que projeta o edifício mais especial. Como artista estou ocupada com o meu legado, que será um instituto para trabalhos de arte de longa duração. Quero elevar a consciência das pessoas ao dar tempo para elas. Temos de criar um espaço onde as pessoas podem ter tempo para experimentar a si mesmas. Estamos vivendo nas cidades, com o estresse, vivemos uma vida sem tempo. E mais a cultura materialista. Então, nós temos de dar uma consciência diferente. Para dar uma consciência diferente, as pessoas têm de ter tempo para entender isso. Qual é sua ideia de paraíso? Tenho uma má notícia para você: não há paraíso (risos). Paraíso é um conceito errado. Desejar o paraíso é pedir para sofrer, porque desejamos ser tocados pela felicidade. Mas a felicidade é um conceito falso. O que temos de realmente abraçar é uma filosofia de vida em que levamos as coisas ruins e coisas boas juntas, sem fazer distinção entre elas. O sofrimento é muito importante. Não a depressão, a depressão é uma doença e deve ser curada. O sofrimento é essencial, muito mais importante do que o desejo e o paraíso. É no sofrimento que você aprende e realmente entende o que está acontecendo com você em um plano mental, espiritual e físico.


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E x p e r i ê n c i a s da v i ag e m , da e s q. pa r a a d i r . : M a r i n a A b r a m ov i c´ a s s i st e a J o ã o d e D e u s e m u m a c i r u r g i a n o o l h o, e m A b a d i â n i a , G o i á s ; a a r t i sta c o m a s e rva s m e d i c i n a i s da c u r a n d e i r a d o n a f lo r , e m m o i n h o, G o i á s ; e o u v i n d o c o n s e l h o s d e m ã e f i l h i n h a , d e 1 0 9 a n o s , e m Cac h o e i r a , n a b a h i a

E como você lida com o êxtase? Êxtases são momentos na vida. Eles acontecem a partir de muito sofrimento, até que você atinge o momento em que tudo ganha luminosidade e clareza. E aí você tem essa sensação de alegria extática. São momentos muito especiais e alguns artistas, escritores e monges falam sobre o êxtase. O problema é que você não pode manter um êxtase por muito tempo. Portanto, a ideia é encontrar um equilíbrio entre o sofrimento e a felicidade. Qual é o papel do documentário em seu processo, especialmente após a experiência de The ­Artist is Present? Esta é uma boa pergunta. O documentário The Artist is Present exigiu de mim a difícil decisão de ter de aceitar microfones abertos por um ano, e perder toda a privacidade. Mas foi extremamente importante, porque faço esse trabalho há 40 anos e a performance sempre foi uma forma alternativa de arte, nunca foi mainstream. E eu já estava farta disso, queria descobrir se um documentário poderia levar o público em geral – que nunca ouviu falar de performance, que nunca soube o que é performance, ou que não a respeita como categoria artística – a entender o que ela é, que energia ela envolve, mental ou fisicamente. A performance pode ser, quando é boa, uma mudança na vida. Então, para mim, o documentário tornou-se um tipo de ferramenta, através da qual posso chegar

ao público. Nesta viagem realmente muito profunda, o documentário será muito diferente de The Artist is Present, porque aqui nós estamos falando de Marina como pessoa e de Marina como artista, e colocá-las em conjunto para encontrar um caminho. Aqui estamos pesquisando, ainda não estamos produzindo trabalho. Em The Artist is Present, a obra já estava acontecendo. Aqui, é realmente o processo de como o trabalho é feito, como estamos cozinhando e o que estamos cozinhando, o que de fato é preciso para dar à luz uma obra de arte. Certa vez, você falou que sua função como artista é passar adiante seu conhecimento. O que seu instituto tem a ver com isso? Tudo, porque a uma certa idade você tem de dar incondicionalmente o seu conhecimento para jovens artistas. Dar a sua experiência e, em troca, eles

A arte não pode mudar a vida. Mas a arte tem de ser perturbadora, tem de prever o futuro, tem de conectar as pessoas e elevar o espírito humano


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A a r t i sta at r av e s sa p o n t e e m A lto pa r a í s o, e m f oto g r a f i a da s é r i e Lu g a r e s d e f o r ç a

podem te dar o sentido do tempo em que vivem. Então, é uma troca, realmente. Se eu chegar à minha vernissage e encontrar só pessoas da minha geração, sei que algo está muito errado com o meu trabalho. Mas, se eu encontrar jovens, meu trabalho está vivo. Sou muito feliz de ter um público superjovem, a partir de 15 anos. Eu realmente quero dar espaço para os jovens e dar-lhes oportunidade de entender esse tipo de trabalho, e de ver por eles mesmos como podem se beneficiar com isso. O instituto é também muito centrado na aprendizagem do público em relação aos trabalhos de longa duração. Porque tudo o que fazemos agora é como

uma propaganda de 30 segundos da Coca-Cola. Nós estamos fazendo chamadas de telefone ao mesmo tempo que enviamos mensagens em Blackberries, de modo que nunca temos tempo. Ao chegar ao instituto, só o fato de você ter de assinar um contrato para passar seis horas sem computador nem relógio, e ter tempo para experimentar algo... Se não me der esse tempo, você não vive a experiência. É uma troca muito justa: dar-me o tempo para a experiência e ver se isso realmente pode fazer mudanças na sua consciência. Nós temos de dar os primeiros passos. Há artistas que afirmam que a arte pode mudar a vida. Eu acho que não. Mas acho que a arte tem de ser perturbadora, a arte tem de gerar um estado de bem-estar, a arte tem de prever o futuro, a arte tem de conectar as pessoas entre si e elevar a consciência. A arte tem de elevar o espírito humano. Quando o instituto puder fazer isso em uma dimensão mínima, então minha função estará completa.


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Arlene Shechet, Sanford Biggers, Carlos Eduardo Uchôa, Luiz Hermano e Ronald Duarte unem o artístico ao sagrado em obras que resvalam no insondável

Circo do vodu cósmico e outras transcendências J U L I A N A M O N AC H E S I E N I N A G A Z I R E

Foto: cortesia da artista


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“Eu poderia citar Tunga, Anish Kapoor ou Bill Viola como exemplos de artistas lidando profundamente com a espiritualidade em seus trabalhos, mas um nome que pode surpreender nesse contexto e que eu citaria também é Damien Hirst.” A afirmação vem de ninguém menos que Carlos Eduardo Uchôa, artista, professor de filosofia e historiador da arte que vem a ser, também, monge professo solene da Ordem de São Bento. Segundo dom Carlos Uchôa, ao visitar – não sem alguma prevenção – a retrospectiva do artista britânico na Tate Modern, em 2012, a obra de Hirst não apenas se humanizou a seus olhos como se mostrou particularmente transcendente no que tange ao tema da finitude humana. Em longa entrevista a seLecT em dezembro, Uchôa defendeu uma ideia de espiritualidade não confessional, uma noção válida para todas as pessoas. E foi com essa inclinação em mente que buscamos obras e artistas que representassem um contato singular com a experiência espiritual no contexto contemporâneo. O resultado é uma mistura de afrofuturismo, mantras escultóricos, montanhas que se tornam budas, rituais de descarrego estético e Cracolândia sob luz beuronense (referente a uma escola de arte alemã do fim do século 19 criada por monges). Mergulhe a seguir no paraíso da arte sincreticamente espiritualizada. Bem-vindo ao circo do vodu cósmico!


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A i r T i m e ( 2 0 0 7 ) , e s c u lt u r a e m a r g i l a f u n d i da e m b r o n z e e a ç o, e S w o o n ( 2 0 0 6 ) , e s c u lt u r a e m a r g i l a , g e s s o, c o n c r e to e a ç o, d e a r l e n e s h e c h e t; Na s p á g i n a s a n t e r i o r e s , i n t e r i o r d o e st ú d i o da a rt i sta e m 1 9 9 7

A escultora norte-americana de ascendência judaica Arlene Shechet conta que o budismo sempre fez parte do tecido de sua vida, mas que a figura de Buda surgiu em seu trabalho de maneira casual. “Foi por volta de 2000 que o universo do budismo passou a figurar na minha obra. Na época, eu estava trabalhando predominantemente com gesso, sem utilizar armação, minhas peças eram uma espécie de coisa desleixada. Não havia, portanto, nenhuma intenção de figurar algo nas esculturas, eu estava mesmo focada na transformação de algo úmido em algo sólido. E me interessava, acima de tudo, estar completamente presente – e que esse aspecto transparecesse na obra. Aliás, é disso que trata também a meditação: meditar não é ficar parado em silêncio, mas estar absolutamente presente”, afirma Shechet em entrevista a seLecT. No processo de criar esculturas modelando o gesso surgiram os budas. “A imagem apareceu naturalmente em meio a essa prática de trabalhar em estado meditativo”, explica. Quando a figura do Buda se impôs, Shechet fez uma série deles, mas em seguida julgou importante expandir o vocabulário para que a

leitura de seu trabalho não fosse reduzida a isso. Budas e estupas – elemento comum nos templos budistas para representar arquitetonicamente o cosmo – convivem, portanto, na obra da artista com formas orgânicas mais abstratizantes, apesar de ela também não fazer distinção entre figuração e abstração. Shechet defende uma temporalidade diferente como forma de trabalhar, tanto porque seu processo requer paciência – atualmente ela lida, sobretudo, com cerâmica – como por buscar propiciar ao espectador uma pausa. “Espiritualidade e religião são coisas diferentes que às vezes se sobrepõem. A escultura não precisa ser reconhecível enquanto forma icônica para ter interesse ou para comunicar uma espécie de sentimento essencial. Eu cerquei o pensamento e o sentimento da espiritualidade de maneiras diferentes ao longo da minha trajetória. Há uma experiência essencial que atravessa todo o trabalho. Isso tem relação com o tempo que devoto à criação e com o tipo de atenção com que faço as obras.” O interesse pela cerâmica surgiu no início dos anos 2000, conta a artista, “porque é um material que me permite trabalhar com o


corpo todo e que estabelece um tipo de comunicação que é como o de um desenho tridimensional. As peças que faço em argila são sempre vazadas, e me interessa pesquisar esse vazio, o ar como estrutura, já que as esculturas são cercadas e também preenchidas de ar”. Ela também vê práticas como a cerâmica e a arte têxtil em contraposição à voracidade da comunicação nos dias atuais. “Cinco ou sete anos atrás, ninguém se interessava por isso no contexto da arte contemporânea nem queria mostrar obras nesse suporte. A ideia de trabalhar com um material que era marginalizado me interessou. E, assim como o têxtil, que também está em voga hoje em dia, a cerâmica é uma prática arcaica, com muita história. Isso me pareceu igualmente instigante”, afirma. Universo apartado da rapidez da internet, essas artes recuperam uma das principais funções de uma obra de arte, segundo Shechet, que é ser uma pausa, criar outro espaço. “O espectador é convidado a pausar para vivenciar o tempo e a atenção do artista contidos na obra.”

A mandala encontra o breakbeat

Em meio a um vocabulário plástico que se vale de todos os meios à mão para concretizar visões contundentes sobre arte e vida, chamam a atenção na produção do norte-americano Sanford Biggers os tapetes feitos de areia colorida (Prayer Rug, 2005) – como aqueles que os monges budistas passam vários

“Espiritualidade e religião são coisas diferentes que às vezes se sobrepõem. Eu cerquei o pensamento e o sentimento de espiritualidade de maneiras diferentes ao longo da minha trajetória”, diz Arlene Shechet Ma n da l a o f t h e B - B o d h i satt va II ( 2 0 0 2 ) , d e Sa n fo r d B i g g e rs co m Dav i d E l l i s , p i sta d e B r e a k da n c e f e i ta co m l a d r i l h os d e b o r r ac h a co lo r i d os e ta l h a d os à m ã o

Fotos: Cortesia dos artistas

dias desenhando para desfazer tão logo a mandala fica pronta – assim como outros tapetes em formato de mandala, estes de piso emborrachado, que têm por finalidade uma batalha de dança. A instalação Mandala of the B-Bodhisattva II (2002), de Biggers com David Ellis, foi feita a partir de serigrafia sobre azulejos de borracha coloridos talhada à mão em base de fórmica. É uma pista de dança desenhada a partir de uma mandala e foi criada para receber a Battle of the Boroughs Breakdance Competition. “Me interesso pelas ideias do budismo, por mandalas, divindades e rituais africanos, padrões e motivos circulares ou geométricos utilizados para reverenciar Alá. Não sou um homem religioso, ainda que na infância eu fosse à igreja todo domingo. Mas acredito que a necessidade por fé seja uma questão universal, e isso me permite tomar emprestado de diferentes religiões certas formas e códigos, já que a questão que me interessa permeia todas elas. Pesquisei numa época, por exemplo, algumas situações em que os monges dançam para criar as mandalas e isso me levou a criar os Dance Floors (1999-2000), em que desenhos com areia no chão são desfeitos por dançarinos de break. O último projeto que fiz foi em Salvador, Bahia, onde se encontram, de forma quase intacta, antigos rituais africanos”, conta Biggers em entrevista a seLecT. O vídeo, intitulado Shake (2011) – que foi apresentado na exposição individual do artista Cosmic Voodoo Circus, no Sculpture

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Center, em Long Island (NY), no fim do mesmo ano – mostra o percurso de um homem da favela ao mar, trajeto que ele inicia em trajes comuns e termina tendo assumido uma identidade andrógina. Esse vídeo é a segunda parte de uma trilogia à la Odisseia. Aborda a formação e a dissolução de identidades e mescla a estética do P-Funk à busca interior da mitologia grega. “É nesse tipo de espiritualidade híbrida e sincrética que minha pesquisa está focada”, completa o artista. Sobre suas pistas de break, a jovem crítica e curadora baseada no Brooklyn Diana McClure escreveu tratar-se de um novo clássico: “Os parâmetros desse clássico em particular são o entrelaçamento supremo da natureza espiritual do breakdancing com a mandala, um diagrama que serve como ponto de coleta para as forças universais. O círculo sagrado, onde a comunidade se reúne e os indivíduos se fundem com a unidade divina e com o momento eterno, mais uma vez se amalgama à dança do hip-hop, que, posteriormente, tornou-se um fenômeno global conhecido como breakdancing”, afirma. “O que Biggers tão eloquentemente apresenta, em forma de vídeo, é uma manifestação cultural contemporânea de uma tradição global de séculos. O vídeo não é apenas uma ode sublime à perspectiva transcultural, ele também destaca a relação simbiótica entre o indivíduo, o grupo e o cosmo – seja você um b-boy, b-girl, budista ou o que for”, continua ela. E como anda sua fé na arte, Sanford Biggers? “Acredito que a arte tem a ver em parte com alquimia, em parte com ficção, às vezes é simplesmente sobre fazer coisas bonitas – ou feias. Mas em geral também serve para oferecer às pessoas outras opções e desafios. Não acho que a arte deva dar resposta a nada. Sua função é fazer perguntas melhores.”

à e s q u e r da , Lot u s II ( 2 0 0 7 ) , o b r a d e sa n f o r d b i g g e r s i n sta l a da e m u m a e s c o l a p ú b l i c a n o b r o n x , N Y; ac i m a , O c e a n o s I ( 2 0 0 3 ) , p i n t u r a d e ca r lo s e d u a r d o u c h ô a

“Me interesso pelas ideias do budismo, por mandalas, divindades e rituais africanos, padrões e motivos circulares ou geométricos utilizados para reverenciar Alá”, diz Sanford Biggers


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À capela

Curador do projeto Arte e Espiritualidade, que foi patrocinado pelo edital de Arte e Patrimônio do MinC em 2010, Carlos Uchôa realizou o imponderável: preencheu os aposentos do Mosteiro de São Bento – muitos dos quais nunca tinham estado abertos à visitação pública – com pinturas, esculturas e instalações de três artistas contemporâneos. Marco Giannotti, José Spaniol e o próprio Uchôa desenvolveram boa parte das obras especialmente para a ocasião, criando um percurso por 17 salas que começava no térreo e terminava na torre a que se tem acesso pelo terceiro andar, onde fica a capela do Colégio São Bento. Ali, Uchôa instalou um vídeo que realizou em um fim de tarde, quando percorreu as regiões da Cracolândia, da Consolação e da Paulista. “Era um dia chuvoso e a decoração de Natal das ruas borrava a luz de uma maneira interessante, que remete às cores e aos efeitos dos vitrais em estilo beuronense da capela”, conta. A ocupação do Mosteiro de São Bento foi visitada por 40 mil pessoas em apenas 22 dias de funcionamento e recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor exposição do ano de 2010. Para Uchôa, a arte carrega nela uma noção, mesmo que não declarada, de transcendência. “Toda arte pressupõe um salto no vazio, uma aposta no insondável. Ela é um ir além que se pode chamar de transcendência. E há artistas que tomam isso a peito para levar adiante. É importante relembrar que a arte moderna foi criada por artistas de profunda influência religiosa; a abstração surge como possibilidade de representar o irrepresentável. Mas isso não se diz o suficiente por razões ideológicas. Porque a arte deve ser transgressora e não pode ser conformista. A religião, enFotos: Cortesia dos artistas

quanto instituição, era vista pelas vanguardas como contrária à mudança, de modo que a bibliografia esconde o fato de que os artistas eram religiosos.” Em seu percurso como artista, Uchôa explica que sempre teve clareza de que arte é uma coisa e experiência espiritual outra, mas identifica a espiritualidade como um dos motores para sua obra. No fim dos anos 1990, por exemplo, suas pinturas eram carregadas de um elemento contemplativo, de êxtase e de infinito, afirma. Já na mostra Oceano, na Galeria Brito Cimino, em 2003, as telas estavam tomadas pela corporalidade, a tinta era mais presente e a pintura pensada como uma dimensão que engole o observador. “Vejo que aquele período das guerras do Iraque e do Afeganistão me levou de volta à dramaticidade, à cor carregada, mas agora estou começando a fazer obras de caráter mais contemplativo outra vez”, diz.

Arte como religião

A contemplação e a meditação comparecem na obra de Luiz Hermano, cearense radicado em São Paulo, de forma bastante clara: os objetos feitos de pequeníssimas peças cerzidas uma à outra, num processo repetitivo e muito demorado, trazem à mente a ideia de um mantra. Esculturas como mantra, que carregam o tempo de sua feitura e instauram, como na obra de Shechet, outro tempo também para quem contempla a obra. Curioso sobre tudo que seja da ordem do incompreensível, Hermano advoga que, ao criar outro mundo, é como se cada artista brincasse um pouco de Deus. Em sua exposição individual realizada, em 2008, na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, Hermano apresentou esculturas que


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“Toda arte pressupõe um salto no vazio, uma aposta no insondável. Ela é um ir além que se pode chamar de transcendência”, diz Uchôa ACIM A , T e m p lo d o C o r p o ( 2 0 0 8 ) , e s c u lt u r a s d e lu i z h e r m a n o e x p o sta s n a p i n ac ot e ca ; à d i r e i ta , r e g i st r o d e u m a da s a ç õ e s d e r o n a l d d u a rt e

faziam referência direta às figuras hinduístas de Sadhu, místicos andarilhos que se despojavam de todos os bens materiais, de Ganesha, símbolo das soluções lógicas, e também às múmias egípcias, que simbolizam a busca da eternidade. O artista empreende viagens aos quatro cantos do mundo – dos templos budistas de Angkor, no Camboja, à ilha de Bali e à casa onde teria vivido a Virgem Maria, em Izmir, na Turquia –, em busca de experiências que radicalizem sua prática artística, mas explica que não se filia a qualquer credo. “Minha religião é meu trabalho, ele funciona como uma meditação, porque, enquanto trabalho, eu medito sobre o mundo e sobre o inenarrável. É uma espécie de mantra que me preenche.” Portanto, quando viaja em busca de experiências

diferentes, Hermano internaliza formas, materiais e o impacto de uma geometria desconstruída, ruínas ou vitrais que ressurgem em seus objetos de maneira mais ou menos abstrata. O candomblé e a devoção aos orixás têm sido o tema de trabalho do carioca Ronald Duarte por mais de dez anos. Filho de mãe beata, o artista vem realizando uma série de performances que fazem alusões a certos rituais da religião afro-brasileira. O Que Rola VCV, o primeiro trabalho da série – iniciada em 2001 com o título Guerra É Guerra –, foi realizado no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, com um ritual em homenagem a Xangô – o orixá dos raios e do fogo –, lavando as ruas do local com sangue, em referência à violência urbana da cidade.


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Em 2003, deu continuidade aos trabalhos relacionados a este orixá em Fogo Cruzado, quando ateou fogo em mais de 1.500 metros nos trilhos do tradicional bondinho de Santa Teresa. “O cerne do meu trabalho está na urgência urbana, nessa violência social que vivemos no dia a dia. A religião não é necessariamente o centro da pesquisa, mas por se tratar de uma situação de transcendência não há como separar a situação social da espiritual. Em Fogo Cruzado eu pedia a Xangô para

Fotos: cortesia dos artistas

abrir e iluminar os caminhos do Rio de Janeiro, que vivia uma situação de violência cotidiana”, explica o artista. Mas é Nimbo Oxalá, a quarta performance da série – que até o momento possui dez trabalhos realizados –, a mais conhecida do artista. Realizada em mais de cinco países diferentes desde 2004, a obra reúne um grupo de 20 pessoas vestidas de branco e munidas de extintores de incêndio, que liberam simultaneamente uma nuvem artificial. Na definição da crítica Marisa Flórido Cesar, ao descrever a obra na ocasião de seu acontecimento no Palácio Gustavo Capanema, em 2004, a nuvem artificial “nos envia à irrupção do sagrado e à designação do infinito na tradição pictórica”. A cor branca da fumaça, segundo o artista, se relaciona com a divindade e com a pureza ligadas a Oxalá, o orixá supremo e responsável pela criação do mundo e da espécie humana. “Oxalá guarda as portas do paraíso, da paz e é sincretizado com Jesus Cristo. Em Nimbo Oxalá, fazemos um pedido pela paz e pela volta à natureza e aos valores elementais, que é o que temos deixado de lado no mundo contemporâneo”, reflete Duarte. Em 2013, o artista pretende completar a série com mais duas performances. “A ideia é fecharmos a série com 12 trabalhos que seriam os 12 trabalhos de Ronald Duarte”, brinca.


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Em fotomontagens criadas especialmente para esta edição, artista sobrevoa a periferia paulistana e expõe uma realidade sem retoques J u l i a n a M o n ac h e s i

portfólio

Caio Reisewitz e o Cantinho do céu


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Fotos:


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n a p á g i n a a n t e r i o r , a s p i c u e lta ( 2 0 1 2 ) , I M PRESS Ã O e m i n k j e t; ac i m a , a lta m i r a ( 2 0 1 3 ) , I M PRESS Ã O e m i n k j e t; à d i r e i ta , i g ua ç u X X ( 2 0 1 2 ) , c- p r i n t m o n ta d o e m d i a s e c

Nomes paradisíacos enfeitando cotidianos sombrios ou realidades sórdidas estão no radar do artista Caio Reisewitz há mais de dez anos. Em 2001, na exposição que comemorou os 50 anos da Bienal de São Paulo, Reisewitz expôs a instalação Conquista, um panorama fotográfico em preto e branco que mostrava a Serra da Cantareira, diante do qual havia ampliações fotográficas de ilustrações retiradas de folhetos divulgando lançamentos imobiliários, daqueles distribuídos nos semáforos de São Paulo. O contraste, por si só evidente, ganhava contundência na plotagem em pilastras, vidros e chão, com letras garrafais, dos nomes de alguns dos empreendimentos em questão: château

isso, maison aquilo, não-sei-o-quê park, e assim por diante. Na série inédita apresentada em nossa seção Portfólio, que teve parte das fotos desenvolvida especialmente para seLecT, o artista sobrevoa a periferia paulistana à caça de alguns bairros com nomes inusitados, como Cantinho do Céu, Jardim Shangrilá, Eldorado ou Vila Califórnia. O que os une, além da denominação idílica, são as condições precárias de moradia e infraestrutura urbana, dado que surgiram no traçado da cidade como ocupações irregulares em áreas de preservação ambiental, como às margens das represas Billings e Guarapiranga, ou em áreas de risco, como as cabeceiras das pistas do Aeroporto de Cumbica.


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n a s p á g i n a s a n t e r i o r e s , m a i r i p o r ã III ( 2 0 1 3 ) , I M PRESS Ã O e m i n k j e t ( f oto d e p á g i n a d u p l a ) ; ac i m a , n at i n g u i ( 2 0 1 2 ) , I M PRESS Ã O e m i n k j e t; à d i r e i ta , b o r ac e i a ( 2 0 1 2 ) , I M PRESS Ã O e m i n k j e t

Assim como na instalação de 2001, as fotografias e fotomontagens da presente série escancaram os contrastes socioambientais e de ordem intersubjetiva associada à linguagem arquitetônica e urbanística de determinada região e/ou grupo social. Em 2001, o alvo era o mau gosto das edificações neoclássicas e a indissociável voracidade da especulação imobiliária em São Paulo, que paulatinamente elimina do nosso horizonte paisagens como a da Cantareira. Em 2013, Reisewitz flagra as contradições dos modos de vida urbanos: enquanto num bairro miserável os moradores estão cercados por densa vegetação, nas áreas cujo metro quadrado está entre os mais proibitivos

da cidade, vive-se ilhado por concreto, efeito estufa e poluição. Mas o complexo jogo imagético de Caio Reisewitz não se resume aos contextos conflitantes que ele retrata. Porque o interesse maior do artista – como a seleção de fotografias estampadas em seLecT evidencia – reside no paradoxo de fotografias sem qualquer retoque parecerem manipuladas, enquanto outras, em que ele intervém radicalmente, se assemelharem à mais cristalina das realidades. Eis o maior contraste que o artista coloca diante de nossos olhos: nos dias de hoje, perdemos a capacidade de diferenciar o real do ficcional. Por inquietante que pareça, o real está mais construído e a ficção, mais autêntica do que na era pré-digital. Fotos: cortesia do artista


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n i moda

natura f oto s N i c o l e H e i n i g e r s t y l i n g R e n ata c o r r e a

Enredada em peles, plumas, sedas e metais, a mulher invade o territรณrio da fรกbula e se metamorfoseia em ave, bicho e outras entidades mรกgicas da fauna e da flora


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V e st i d o D o r ot h ĂŠ e B i s , n a T r a s h C h i c , R $ 1 .4 9 9


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To p c o m p e p lu m S p o r t M a x , R $ 3 .4 8 0 ; S a i a B a l m a i n , n a N K Sto r e , R $ 3 4 .9 9 0 à e sq u e r da : To p d e p e l e d e co e l h o Ta l i e N k , R $ 3 .6 2 0 ; V e st i d o d e t u l e Da s lu , R $ 2 . 3 9 0 ; E sto l a d e p e l e S p o rt M a x , R $ 2 . 3 5 0 ; Lu vas ac e rvo O u r i ç o d e m e ta l Ca i o V i n i c i u s ac e rvo

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C o l e t e D e n m a r k , n a G i l da M i da n i , R $ 7 0 2 S a i a d e ta f e t ĂĄ S o n i a M a r i a P i n to , R $ 3 . 1 5 0 C o r oa C a i o V i n i c i u s ac e rvo Ă d i r e i ta , C a s ac o d e p e l e d e r a p o s a Y v e s S a i n t L au r e n t , n a T r a s h C h i c , R $ 4 .9 9 9 ; C o l a r d e p e n a s O p to , R $ 1 8 9


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C o l e t e d e p e l e Da s lu , R $ 1 4 .0 0 0 ; Ca l ç a d e r e n da G i ova n n a Pa r i z i , R $ 57 6 à d i r e i ta , Ca b e ç a E d ua r d o L au r i n o , R $ 3 5 8 ; To p Da s l u , R $ 14 0 ; Pa r k a S h o u l d e r , R $ 4 9 8 ; Sa i a d e s e da J o s e p h , n a T r a s h C h i c , R $ 2 9 9 ; Sa i a S h o p 1 2 6 , R $ 2 3 9 ; V e st i d o u s a d o c o m o s a i a L a n ç a Pe r f u m e , R $ 8 9 0 ; Esto l a d e p e l e M a x M a r a , R $ 2 .4 2 0


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B lu sa g o l a a lta d e p e lo C e l i n e , n a TrashChic R$1499; Brinco de chifre C a i o V i n i c i u s ac e r vo à d i r e i ta , V e st i d o Hermés, na Trash C h i c , R $ 2 .9 9 9 ; Ac e s s ó r i o d e c h i f r e C a i o V i n i c i u s ac e r vo


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Modelos: K at i a S e l i n g e r e T h a i s S c a lo (WAY Model) Beleza: C e c i l i a M ac e d o Tratamento: F oto F u s ã o Produção Executiva: J u l i a S m i dt ( S . DC & P ) Assistentes de foto: F e r n a n d o Q u e i r oz , Ca i o P o rto e B ru n a Lu c e n a Coordenação de Moda: M a r c e l l M a i a Produção de Moda: L e a n d r o P o r to Assistente de beleza: Pat r i c k P o n t e s


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Êxtase sublime No surfe de ondas gigantes há uma potência simbólica e visual que engolfa qualquer observador da mesma forma que uma obra de arte poderosa: um sentimento arrebatador, misto de encantamento e puro terror

A f i g u r a a p e q u e n a da d o s u r f i sta e m r e l a ç ã o à o n da m o n u m e n ta l da p r a i a d e j aw s e q u i va l e à p ot ê n c i a da n at u r e z a r e p r e s e n ta da n a p i n t u r a r o m â n t i ca p o r c a s pa r dav i d F r i e d r i c h , e m 1 8 1 8 ( à e s q u e r da )


Há quase 50 anos, Endless Summer surgia como o primeiro filme-documentário de grande circuito totalmente voltado para o universo – então incipiente – do surfe. A premissa idílica ali enunciada era a de que seria possível “estar sempre no verão”, deslocando-se de um ponto a outro do planeta, seguindo a trilha do sol. A ideia de fundo era que o paraíso do surfista estava em qualquer lugar do mundo onde houvesse boas ondas e calor, havendo disposição e meios para tal. Passadas mais de quatro décadas, o mundo mudou um bocado, e o surfe acompanhou a seu modo essas transformações. Tornou-se um negócio de peso, movimentando bilhões de dólares anualmente. E, nesse processo, a escala do que era entendido como limites e desafios na cartilha do surfe também foi alterada. Corte para 8 de novembro de 2011, Praia da Nazaré, Portugal. O havaiano Garrett McNamara bate recordes e faz história ao surfar uma onda de 80 pés, ou 25 metros de altura: tratava-se, sem mais nem menos, da maior vaga jamais surfada e devidamente registrada no ato. Uma singular conformação geomorfológica submarina colabora para essa condição especial de onda, gerando o chamado “canhão da Nazaré”. Vinte e cinco metros. Algo assim como despencar do oitavo andar de um prédio líquido que, por sua vez, passa a despencar em cima de você à medida em que avança. McNamara faz parte de um grupo seleto de surfistas havaianos conhecidos como watermen: homens experientes em toda matéria ligada ao mar e com pleno domínio de diversas atividades aquáticas, tendo o surfe como base. Nomes como Darrick Doerner, Ken Bradshaw, Buzzy Kerbox e Laird Hamilton são referências nessa elite. Sujeitos diferenciados que, no afã de buscar novos limites para o esporte que se confunde com suas vidas, acabaram por desenvolver o foto: Ariane Middel

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aventura

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No afã de novos limites para o esporte, surgiu o surfe de ondas gigantes. O surf foi reinventado e transformado em experiência-limite

surfe de ondas gigantes. E estamos falando de formações aquáticas grandes (e rápidas) demais para serem apanhadas “no braço”, como no modo convencional, exigindo táticas como o reboque por jet skis. O surfe tal como se conhecia é reinventado e transformado em uma experiência-limite. Quando se está sobre um desses monstros, é quase como se não fosse mais água, mas uma massa apenas tecnicamente líquida, com a potência de dezenas de toneladas por metro cúbico. Um lapso de equilíbrio, um simples erro de cálculo, e isso pode acarretar consequências drásticas. Se não pelo impacto em si, na água ou nos corais que com frequência aguardam pouco abaixo, pelo risco de afogamento e/ou hipotermia – fora tubarões brancos, eventualmente. Nos últimos dez anos, pelo menos três experientes surfistas – Sion Milosky, Peter Davi e o legendário Mark foto: Ariane Middel

Foo – perderam a vida em vagalhões desse calibre no Havaí e na Califórnia. As ondulações mais famosas do gênero se espalham mundo afora desde o litoral da Califórnia (Cortez Banks, Oceânica, Ghost Trees e Mavericks) e do Havaí (a famigerada Jaws) à França (Belharra), África do Sul (Dungeons) e Tasmânia (Shipstern’s Bluff), além de inúmeros outros spots que seguem sendo descobertos. O brasileiro Aldemir Calunga engrossou recentemente a lista dos seriamente acidentados. Uma modalidade para poucos, enfim, embora venha se popularizando bastante. Já existem, inclusive, premiações patrocinadas, específicas para esse tipo de surfe, em iniciativas que se distanciam das motivações iniciais da modalidade. À parte a fisicalidade envolvida nessa atividade, é possível identificar também um componente estético ali presente. Pense-

s u r f i sta q u e d o m a o n da s g i g a n t e s d o h ava í : e x p e r i ê n c i a e st é t i ca p r ó x i m a d e e p i fa n i a


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mos na figura apequenada do surfista traçando linhas incertas sobre a monumental superfície aquosa que a todo momento parece prestes a engoli-lo, a magnitude do jogo de escalas e as leis da natureza ali tensionadas: há uma potência simbólica e visual que absorve qualquer observador da mesma forma que uma obra de arte poderosa pode fazê-lo. Somos tomados por um sentimento arrebatador, da ordem do sublime, misto de encantamento e puro terror. Algo que podemos aqui relacionar ao desejo de captura da intensidade da vida, a pulsão adrenalinizada que move esses watermen, e que é sintetizada na imagem e no ato aterrador de domar uma onda gigante. Articulando pelo sublime, pensado como experiência estética próxima a uma epifania, pode-se chegar a uma ideia de essencialidade que, por sua vez, vai ao encontro da noção de paraíso. E para um big rider, o paraíso é fluido e está sempre em sua mente, no anseio pela próxima massa líquida que ele – ou ela (O big surf é tradicionalmente território masculino, até pela condição física extrema que exige. Uma exceção louvável é a brasileira Maya Gabeira, que já se destaca nesse circuito. Carlos Burle, Eraldo Gueiros e Danilo Couto são outros brasucas muito respeitados nesse meio) – for capaz de domar, onde quer que essa onda esteja, e sobreviver à experiência. Pelo menos até a próxima, ainda maior, mais intensa, mais impossível.


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território

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t e x to e f oto s E r n e s t o O r o z a

Miami e Havana: em busca do “Para-ISO” Utopias do progresso e constrangimento à criatividade são comuns às duas cidades


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I m ag e n s d o p r oj e to a r q u i t e t u r a da n e c e s s i da d e , d e E r n e sto o r oz a , H ava n a ( 2 0 1 2 )

É difícil ver Miami e Havana como modelos utópicos relacionados entre si. É PREFERÍVEL contornar as respostas óbvias e ASSUMIR outra direção. Miami e Havana compartilham um ideal de “progresso”. Em sua constituição como ideal de qualidade, a ISO (International Organization for standardization) modelou nos dois territórios o mesmo paradigma utópico.


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Para o turista, as ruínas são nostálgicas e seu pó, histórico. Para o cubano, é matéria-prima para a construção de sua morada


Em 1962, Che Guevara, na qualidade de ministro da Indústria em Cuba, enviou à ISO a solicitação para ingresso da ilha como membro e criou a Dirección de Normas y Metrología do Ministério da Indústria. Não há dúvidas de que Guevara compreendeu muito cedo a fatalidade e unidirecionalidade capitalista do “desenvolvimento”. Desse momento em diante, somente dois anos depois do triunfo da revolução, Havana e Miami passavam a compartilhar um ideário utópico global que poderíamos chamar de “Para-ISO”. Ficou evidente, a partir daí, a impossibilidade de articular, desde o isolamento, outra noção de progresso. Em 2007, foi publicado em Cuba um documento oficial com finalidades pedagógicas sob o título Cultura por la Calidad (Cultura pela Qualidade), que não pode deixar de ser entendido como um manifesto capitalista.

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Ruínas e monstros plásticos

Entre algumas das constantes na relação de amor/ódio entre Cuba e Estados Unidos está a empatia do cubano com a cultura da american invention e a noção de desenvolvimento que essa cultura fomenta. Uma anedota do imaginário popular cubano dá conta da estranha relação entre Havana e Miami. José Martí, apóstolo da independência cubana, escreveu um dia antes de sua morte uma frase fortemente anti-imperialista, depois de viver alguns anos nos Estados Unidos: “Viví en el monstruo, y le conozco las entrañas” (Vivi no monstro e conheço suas entranhas). Alguns cubanos parafraseiam essa citação apoiados em uma quase homofonia: “Viví en el monstruo, y como lo extraño” (Vivi no monstro, e como sinto saudades dele). O modelo de Havana como ruína é distópico. Palacetes carcomidos e carros velhos são úteis aos dois lados da ideologia. Os turistas que visitam a ilha, os nostálgicos de Miami, os arquitetos cubanos vinculados à preservação da cidade histórica e o governo comunista promovem o detrito de um edifício derrubado como pó de ruína. Agitado por sopros retóricos, esse pó engrossa tanto a atmosfera nostálgica quanto a nebulosa romântica revolucionária. Mas, para o cidadão comum, o pó da demolição é uma matéria-prima que pode ser

A r q u i t e u r a da n e c e s s i da d e é u m p r oj e to d e o r oz a e m c u rs o d e s d e 1 9 9 7


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Miami é uma cidade que estigmatiza a necessidade e a vê como fraqueza misturada com cimento para adaptar e ampliar sua vivenda deteriorada e limitada. Ali, onde os “ruinólogos” veem um capitel neoclássico destruído que remete ao passado glorioso da Nação e fazem dinheiro com sua imagem, os cubanos, vivendo sob a urgência, notam unicamente as qualidades físicas da coluna como um ponto de apoio onde começar uma escada ou apoiar uma caixa d’água para o novo banheiro.

Arquitetura Genérica e da Necessidade

Miami é uma Cidade Genérica e sua arquitetura foi regulamentada e estandardizada progressivamente. É uma arquitetura que parece desenhada e produzida unicamente para ser inspecionada pelos agentes de seguros e gerada de acordo com as normas e processos de normatização do comércio internacional. A matéria genérica que toma forma em Miami é transnacional e por isso evacua rapidamente qualquer sedimento de identidade. Escrevi recentemente um texto, com Gean Moreno, sobre o universo produtivo e simbólico do souvenir, visto como um âmbito com potencialidade especulativa em relação à cidade. Nesse texto, falamos sobre uma hipotética invasão de uma massa cerâmica esmaltada genérica, que representa a si mesma e que chega como um souvenir em barcos provenientes da China. A “massa maléfica”, como a denominamos, invade os postos de vendas para turistas, empurra e cobre flamingos-termômetros e patas de crocodilos-chaveiros. No seu encontro com o sol da Flórida, a massa maléfica emite um fulgor tão intenso que cega e apaga toda a cidade. Miami é uma cidade do futuro e está se convertendo, a não ser que o mar a cubra, em um protótipo da cidade genérica como a que foi definida pelos

ac i m a , L i t t l e H a i t i , m i a m i ( 2 0 1 0 ) . N a p á g i n a s e g u i n t e , E s c u lt u r a s s e r i a da s d e c o n c r e to pa r a p á t i o s e j a r d i n s , n o a b a sta d o b a i r r o k e n da ll , e d e p ó s i to d e lo u ç a sa n i t á r i a e m li t t l e h a i t i ( 2 0 0 8 e 2 0 0 9 )


arquitetos radicais do Archizoom e do Superstudio. Mas a cidade genérica como uma superfície contínua é autista, é indiferente ao campo social imediato, pois em seu interior existem zonas não resolvidas onde abundam os grupos humanos desfavorecidos, que se valem temporariamente da Arquitetura da Necessidade. O termo Arquitetura da Necessidade é usado aqui como metáfora. Por um lado, pode ser lido como um termo descritivo, quase óbvio, austero até, em seu valor retórico. Por outro lado, o enuncia uma arquitetura que é a autodiagramática, e essa imagem torna-se estrutural e programática. A arquitetura deve ser isso. A casa deve ser uma estrutura de acordos. Uma conexão factual entre as necessidades, materiais, tecnologias, regulamentos urbanos e condições sociais. Na arquitetura popular, o movimento incontrolável de materiais produz uma grelha de linhas e buracos, uma sobreposição de camadas e estruturas que, tal como no processo natural de sedimentação, são suportados um sobre o outro. Esse movimento fluido responde a uma força tão poderosa e inevitável como a gravidade, a força da necessidade.

Desesperança

Olhando para Havana a partir de Miami, onde vivo, percebo que, desde que morava lá, a cidade é um lugar onde a criatividade foi estigmatizada e onde se restringiu – e até se criminalizou – a iniciativa individual. A inventividade que se reconhece no povo cubano esteve marcada, muitas vezes, pela ilegalidade. É paradoxal, mas os cubanos, incitados pela frase guevariana “Obrero construye tu maquinaria” (Operário, constrói o teu maquinário), acabaram usando sua criatividade para sobreviver à ineficiência do regime comunista que o mesmo Guevara ajudou a instaurar. Miami não acrescentou nada a essa percepção. De Havana, eu via Miami como vejo agora. Um lugar, como ocorre em quase todas as cidades burguesas, onde se estigmatizou a necessidade. Um lugar onde o necessitado é ratificado como fraco e ordinário, se expressa suas carências. Havana acrescenta a essa percepção certa desesperança, como se todos os sistemas constrangessem a criatividade.

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panorâmica

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Casa aberta ao diálogo A coleção suíça Daros Latinamerica inaugura sede no Rio de Janeiro com coletiva de artistas colombianos, para assinalar o início de um intercâmbio cultural focado na voz do artista e na educação cidadã do público Angélica de Moraes


Lembra da última tentativa de uma grande instituição internacional de arte contemporânea fincar raízes no Brasil? Lembra da polêmica sobre a sede brasileira do Museu Guggenheim? Pois esqueça. O modelo argentário de franquia de marca e aluguel de peças blockbusters de acervo é fantasma do passado. Começa a funcionar no Brasil algo que é seu absoluto oposto e que estabelece um novo patamar de critérios para a área. Entra em cena um projeto de intercâmbio cultural baseado no diálogo com os artistas e na educação do público para o entendimento e fruição da arte latino-americana. A Casa Daros abre suas portas em março, no Rio de Janeiro, em prédio centenário tombado pelo patrimônio histórico e cuidadosamente restaurado durante sete anos.

“Trata-se de um projeto privado que se realiza na dimensão pública”, frisa a diretora da instituição, Isabella Rosado Nunes, em entrevista a seLecT. A Coleção Daros Latinamerica, localizada em Zurique (Suíça), é uma das mais extensas e importantes coleções de arte contemporânea da América Latina, em constante crescimento e circulação, seja em mostras específicas, seja para empréstimo de peças para outras instituições. Reúne mais de 1.100 obras de 116 artistas, produzidas em vários meios e técnicas, da década de 1960 até a atualidade, e onde não faltam exemplares significativos da arte do Brasil. “Essa coleção já nasceu para ser mostrada fora da Suíça, é um acervo que funciona para divulgar a arte latino-americana e também como ferramenta de educação e cidadania”, diz Isabella Rosado. Ela destaca que “o princípio conceitual da Casa Daros não é quantitativo nem visa lucro. Nosso foco não é o público consumidor. Nosso objetivo é a responsabilidade social e a formação de massa crítica. Não nos passa pela cabeça bater recordes de visitação, e sim estabelecer um diálogo o mais afinado possível com todos os públicos, em especial com a comunidade artística e com as escolas e instituições culturais da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno básico, mas também articulando intercâmbio cultural entre o Brasil e os demais países do continente e do mundo”.

Onze salas de exposição

C h ac m o o l ( 1 9 9 8 ) e b a r r i g u da ( 2 0 0 1 ) , e s c u lt u r a s em pedra e cerâmica d o a r t i sta c o lo m b i a n o nadín Ospina, simulam peças a r q u e o l ó g i ca s ; n a p á g i n a ao l a d o, A r e c e p ç ã o da c a s a da r o s , n o rio de janeiro

à esquerda: jaqueline felix. acima: franziska bodmer e fernando gallese

O alemão Hans-Michael Herzog, diretor-artístico e curador-geral da Coleção Daros Latinamerica, organizou a coletiva inaugural da instituição suíça no Rio. A mostra, denominada Cantos Cuentos Colombianos, é uma panorâmica da vertente mais vigorosa da arte contemporânea da Colômbia. Um conjunto de 11 amplas salas de exposição da Casa Daros reúne trabalhos de forte conotação política dos artistas Doris Salcedo, Fernando Arias, José Alejandro Restrepo, Juan Manuel Echavarría, Maria Fernanda Cardoso, Miguel Ángel Rojas, Nadín Ospina, Oscar Muñoz, Oswaldo Macià e Rosemberg Sandov. É uma coletiva que no seu subtexto trata dos pontos de contato entre a realidade social da Colômbia e do Brasil. Em entrevista por telefone a seLecT, de Zurique, Herzog admite que pensou nas similaridades socioculturais entre os dois países ao escolher a mostra para a inauguração. “Certamente, não há no Brasil a violenta guerra civil promovida na Colômbia pelo narcotráfico, mas também há muita violência, há graves problemas de desigualdade social. Mesmo assim, os artistas conseguem produzir trabalhos de primeira qualidade. As artes colombiana e brasileira têm um frescor e uma virulência que têm a ver com a situação social e política onde são feitas.” Responsável pela conceituação das características formadoras da coleção e da escolha das peças que a constituem – um pro-

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panorâmica

“Na Europa, ninguém realmente conhece muito sobre a produção artística contemporânea da América Latina. Da Colômbia, por exemplo, quando sabem alguma coisa, são os clichês de sempre: Fernando Botero, a cantora Shakira ou o piloto de corridas de Fórmula 1 Juan Pablo Montoya”, diz Hans-Michael Herzog

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cesso iniciado em 2000 que envolveu muitas viagens à América Latina e o contato direto com cada um dos artistas da coleção –, Herzog destaca que “a Casa Daros será o primeiro centro latino-americano para os latino-americanos e para o resto do mundo, uma plataforma de intercâmbio e serviços para colocar as pessoas em contato, para os artistas encontrarem seus colegas e o público encontrar os artistas”. Herzog admite que sua ambição é “colocar a arte latino-americana no mapa”. Sim, ele já visitou várias edições da Bienal do Mercosul e da Bienal de São Paulo. Visita com regularidade todas as grandes mostras internacionais. Continua, porém, achando que falta colocar a arte latino-americana no mapa. “Ela ainda não está lá”, frisa. Pelo menos com o protagonismo que esse obstinado alemão deseja. “Na Europa, ninguém realmente conhece muito sobre a produção artística contemporânea da América Latina. Da Colômbia, por exemplo, quando sabem alguma coisa, são os clichês de sempre: Fernando Botero, a cantora Shakira ou o piloto de corridas de Fórmula 1 Juan Pablo Montoya.” Foi para começar a ampliar o repertório do público europeu que Herzog organizou a exposição Cantos Cuentos Colombianos,

em duas mostras sucessivas, exibidas em Zurique, de outubro de 2004 a janeiro de 2005 e de janeiro a abril de 2005. “Foi a maior mostra de arte colombiana contemporânea realizada na Europa”, sustenta Herzog. É o mesmo recorte de obras, com montagem diversa, que agora chega ao Rio de Janeiro. “Ela continua atualíssima”, diz o curador.

Força simbólica

“Mesmo na Colômbia esses excelentes artistas eram pouco conhecidos”, afirma Herzog. Ele observa que suas escolhas foram premonitórias de uma percepção mais nítida dessa produção. “Depois das exposições na Suíça, o público colombiano parece ter finalmente descoberto sua arte.” Livros recentes trataram de incorporá-los à história e ao circuito principal de mostras internacionais. O catálogo-livro da mostra, com 410 páginas e longas entrevistas com os artistas no formato pergunta e resposta, significou outra eficaz divulgação e contextualização. A coletiva Cantos Cuentos Colombianos traz um conjunto equilibrado de peças de grande força simbólica. Juan Manuel Echavarría comparece com tra-


V IDEOINSTAL a ç ã o m u s a pa r a d i s í aca ( 1996), de José Alejandro r e st r e p o ; c e n a s d o v í d e o B o ca s de Ceniza (2003), de Juan Manuel Ec h ava r r í a , s u c e s s o da B i e n a l de Veneza, em 2005; cenas do vídeo mugre (19992 0 0 4 ) , e da a ç ã o s i n to m a ( 1 9 8 4 ) , de Rosenberg Sa n d ova l ; n a p á g i n a ao l a d o, o c u r a d o r Hans-Michael H e r zo g

balhos importantes de sua trajetória, inclusive a que lhe garantiu visibilidade internacional a partir da Bienal de Veneza de 2005, Bocas de Ceniza (Bocas de Cinza). A impactante videoprojeção registra em close a fisionomia de vários sobreviventes de um massacre que aconteceu no estuário (a boca) do Rio Magdalena. Eles cantam para contar a tragédia, dando pungentes graças a Deus por terem escapado. “Com uma dignidade humana muito além do ódio e do olho por olho”, observa Echavarría em depoimento para o catálogo. “A violência desumaniza o ser humano. Faço do respeito pelo outro a parte essencial da minha obra”, frisa.Doris Salcedo é outro destaque inevitável. Algumas das peças exibidas, especialmente as emblemáticas cadeiras e armários sepultados em blocos de concreto, integram a série apresentada ao público brasileiro pelo galerista Marcantonio Vilaça em 1996, na primeira mostra individual da artista no País. Salcedo tem sua poética identificada com a violência, os desaparecidos políticos e as vítimas de tortura e agressões dos regimes totalitários. Esteve até 3 de fevereiro com uma instalação em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo (ver Reviews).

Uma casa para todos

Cantos Cuentos Colombianos, de 23 de março a 27 de agosto, Casa Daros, Rua General Severiano, 159, Botafogo, Rio de Janeiro, www. casadaros.net

O humor corrosivo de Nadín Ospina traz uma mudança de registro bem-vindo ao conjunto. Seus trabalhos são simulacros de peças arqueológicas em que a cultura pré-colombiana se mistura a personagens da cultura pop, como Bart Simpson e Mickey Mouse, em mordazes comentários ao colonialismo cultural irradiado pelo império norte-americano. Também acionando o humor, mas em diapasão soturno, Fernando Arias apresenta, entre outras peças, Ataúd de Lego (Caixão de Lego), homenagem às crianças vitimadas pela violência do narcotráfico e seu combate. A programação inaugural inclui uma mostra paralela, de foco educativo, com curadoria de Eugenio Valdés Figueroa, diretor de arte e educação da Casa Daros. Com o título Para Saber Escutar, ocupa cinco salas situadas no início do percurso expositivo e está focada nos ensinamentos do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Completa o conjunto um auditório para cem pessoas, um restaurante, uma cafeteria e uma biblioteca especializada em livros e revistas de arte latino-americana. Espetáculo à parte, o restauro completo da fachada e de dois terços da extensa propriedade, que tem mais de 11 mil metros quadrados de área construída, datada de 1866, dá testemunho dos planos de longo alcance da instituição, que, aliás, como assinala Hans-Michael Herzog, evitou as denominações convencionais como museu ou instituto cultural. “Nós, deliberadamente, escolhemos Casa, para deixar claro que é um lugar para todos.”

à esquerda: claudio edinger. acima: ifa/sttutgart, denis mortell, käthe walser e Rosemberg sandoval

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urbanismo

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Utopia possível

Da n i e l a L a b r a , d e B a r c e lo n a

Em 1971, estudantes de arquitetura colocaram de pé a Instant City, uma cidade de plástico, efêmera, em Ibiza, na Espanha. O lugar funcionou como metáfora de um novo modelo social, baseado na cooperação entre as pessoas


“O mundo está se preparando para uma metamorfose dos deuses. Abandonam-se os valores e arquétipos da cultura vigente e adotam-se novas formas de vida nascidas de outra visão do mundo.” Assim começava o manifesto da Instant City, uma das proposições do VII Congresso do International Council of Societies of Industrial Design (Icsid), realizado em outubro de 1971 na outrora idílica ilha de Ibiza – ou Evissa. O evento foi organizado pela Agrupació de Disseny Industrial del Foment de les Arts Decoratives (ADI/FAD), radicada em Barcelona, e teve um formato revolucionário, cujo objetivo era transformar um encontro profissional convencional em um acontecimento libertário, sem precedentes na Espanha – que amargava os últimos anos da obscura ditadura do general Francisco Franco. O congresso, que durou três dias, foi inspirado pela contracultura dos anos 1960 e fazia referência ao espírito livre da época. Seus organizadores, a maioria estudantes, pretendiam desconstruir os congressos de então, formais, tediosos, com crachás, tradutores e cafeterias impessoais. A meta era potencializar o intercâmbio de ideias entre profissionais e alunos de design industrial – uma nascente disciplina – e assim obter um resultado vivo e transformador. Apesar de inicialmente criticado por membros do conselho internacional, o modelo experimental do Icsid Evissa foi levado a cabo, tornou-se referência no meio e incentivou novas propostas, impulsionando Barcelona como uma das capitais mundiais da arquitetura e do design. Para rememorar tal evento e sua importância, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba) organizou a exposição La Utopía Es Posible, que esteve em cartaz até 20 de janeiro, sob curadoria de Daniel Giralt-Miracle e Teresa Grandas. De museografia simples e despojada, a mostra, repleta de displays cheios de documenta-

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ção, tinha projeções e fotografias dispostas diretamente sobre as paredes. No chão, televisores em racks brancos passavam documentários e entrevistas, enquanto pufes em tons laranja, amarelo e vermelho convidavam o espectador a relaxar ao som de uma trilha sonora que incluía All Along the Watch Tower, de Bob Dylan, interpretada por Jimi Hendrix. Embora Ibiza seja hoje um símbolo do hedonismo capitalista, em 1971 a ilha – cuja ocupação remonta à Idade do Bronze (20001600 a.C.) – apenas começava a ser explorada pelo turismo de massa. Mas, na década de 1930, alguns intelectuais, como Walter Benjamin, se refugiaram ali e confrontaram, pela primeira vez, a vanguarda moderna e transgressora com a tradição pacata do vilarejo. Os atributos históricos, culturais e naturais de Ibiza determinaram sua escolha como sede do VII Icsid, que teve lugar na Cala de Sant Miquel, uma baía da costa noroeste da ilha, longe

Fotos: xavier miserachs/cortesia macba. arquivo jordi gómez/cortesia macba

Cerimonial (197 1), d e A n to n i M i r a l da , performance de abertura do encontro; à e s q u e r da , i n sta n t city em pleno f u n c i o n a m e n to, n o c o n g r e s s o d o Ic s i d


urbanismo

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do centro. Para os organizadores, a praia bucólica seria um refúgio para a produção intelectual e criativa, e isso contrastava radicalmente com Montreal ou Londres, cidades-sede anteriores, que proporcionavam mais a dispersão do que a integração. No que tange à programação do congresso, palestras e debates foram organizados em salas de reuniões nos dois hotéis existentes na Cala, mas também podiam acontecer ao ar livre, espontaneamente. Nesses encontros, discutiam-se design, urbanismo, arte, novas tecnologias e pensamento contemporâneo. Em paralelo às atividades, diversas proposições vinculavam o design a outras linguagens. Uma das mais significativas foi Instant City, projeto criado por José Miguel de Prada Poole para facilitar o alojamento dos jovens que fossem ao congresso. Professor da Universidade Politécnica de Madri e especialista em arquiteturas infláveis, Prada Poole idealizou uma cidade de plástico, efêmera, que não deixasse rastro, baseada em um sistema de construção bastante simples e barato: cilindros e esferas que se interconectavam e podiam crescer segundo as necessidades. Como não havia verbas e a solução precisava ser econômica, a estrutura sustentada por ar – a mesma matéria dos sonhos – era uma saída perfeita. Instant City foi feita com plástico PVC doado por uma multinacional e erguida pelo esforço coletivo de voluntários usando como ferramentas grampeadores comuns e tesouras. O trabalho durou menos de uma semana. Para convocar os “operários”, os então alunos de arquitetura Carlos Ferrater e Fernando Bendito, hoje destacados arquitetos, redigiram, com o escritor Luis Racionero, o Manifiesto de la Instant City, que foi difundido pelo mundo. O manifesto chamava estudantes a participar da construção dessa cidade temporária, em que a cooperação era o motor para integrar as pessoas. O sistema de sinalização de Instant City era precário e, por isso

No momento em que a Europa é assombrada por uma crise econômica e a Espanha vê o acirramento de discursos separatistas, a memória desse evento libertário é um alento mesmo, criativo. Assim que ficava pronta uma parte da estrutura, indicações eram escritas com pilot atômico sobre a lona plástica. Para entrar no edifício mole, atravessava-se uma fenda, o que alguns participantes relataram como sendo uma experiência de entrar no “útero/ vida”. Tal descrição condiz com o espírito poético da época, quando artistas como Hélio Oiticica ou Maurice Agis propunham vivências que ampliavam a percepção sensível. Do mesmo modo, croquis de arquiteturas utópicas surgiam em projetos artísticos de coletivos como Archigram, Haus-Rucker-Co. e UFO. Estima-se que cerca de 2,5 mil pessoas foram ao congresso, e que a maioria passou pela Instant City, para dormir ou participar de festas psicodélicas. Apesar do sucesso, participantes recordam que as escassas instalações sanitárias promoveram certo caos e que, ao fim do encontro, centenas de metros de plástico usado foram doados, deixando Ibiza repleta de restos coloridos de um material que ainda não era temido ecologicamente nem banalizado como agora. Entre as proposições artísticas que pon-


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ac i m a , Vac u f l e x-3 , d e A n to n i M u n ta da s e G o n z a lo M e z z a ; n o a lto, i n f l á v e l d e J o s e p P o n sat í ; à e s q u e r da , p ú b l i c o o b s e r va o e d i f í c i o m o l e d e i n sta n t c i t y

Fotos: xavier miserachs/cortesia macba. arquivo raimon torres/cortesia macba. arquivo america sanchez/cortesia macba

tuaram o congresso do Icsid estavam duas esculturas “moles”. A primeira era a Vacuflex-3, de Antoni Muntadas e Gonzalo Mezza, feita com um largo conduíte industrial de plástico flexível, com mais de 150 metros de comprimento, para ser manipulado pelo público, no mar e na areia. Além dessa, outra obra de grande impacto visual foi o inflável modular de Josep Ponsatí, com cerca de 40 metros, que flutuava imponente sobre o mar ao ser ancorado no meio da baía. Houve ainda o jantar de inauguração do encontro, organizado por Antoni Miralda, uma cerimônia-happening, onde se serviu uma paella multicor aos presentes, que vestiam máscaras e indumentárias com as mesmas cores da comida. O Icsid de Ibiza foi uma experiência de socialização, trabalho coletivo e reflexão intelectual. Para os organizadores, o encontro criticava o puritanismo provinciano da ditadura e anunciava o começo de um novo ciclo da cultura. Embora seu legado material não vá além de documentos e registros, o Icsid Evissa semeou relações. Mais de 40 anos depois, vemos que diversas ideias contidas ali se mantiveram na pauta contemporânea: sustentabilidade, participação, solidariedade, novas relações entre indústria e sociedade, a utopia da natureza livre e a arte como experiência educativa libertadora. No momento em que a Europa é assombrada por uma crise econômica sem perspectivas de acabar, e a Espanha vê, nesse contexto, o acirramento de discursos separatistas, a memória desse evento libertário é um alento. Ela nos recorda que o “fim das utopias” é em si um delírio utópico, pois, enquanto houver vida humana, haverá sonho e perspectivas de transformações sociais, estéticas e éticas, ainda que pareçam longínquas.


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Artes visuais

Berço de um novo mundo JULIANA MONACHESI

Abordagem Mediterrânea defende a tolerância entre as culturas do Ocidente e do Oriente Famoso pelo vídeo Temporary Shelter Center (2007) – em que uma fila de pessoas aguarda imperturbável na escada de acesso ao avião ausente –, o artista albanês Adrian Paci nunca tinha exposto no Brasil. Estreou em grande estilo na mostra Abordagem Mediterrânea, que esteve em cartaz até o fim de janeiro no Sesc-Pinheiros, em São Paulo. Na videoinstalação Last Gestures (2009), quatro projeções mostram os momentos que antecedem um casamento, quando, por tradição, a noiva se despede de cada membro de sua família, já que está prestes a abandoná-la para ingressar em uma nova. Para o público pouco habituado aos simbolismos islâmicos, as cenas da noiva paramentada sendo beijada e olhada por diferentes homens mais parece uma metáfora da ambiguidade ocidental em relação ao amor monogâmico. Esse contraste cultural pauta toda a exposição, dedicada – nas palavras da curadora Adelina von Fürstenberg – a apresentar a realidade da região por meio da arte. O Mediterrâneo não é apenas o ponto em que três continentes – África, Ásia e Europa – se encontram, é um sistema geopolítico complexo, berço de civilizações e palco de travessias entre Ocidente e Oriente por parte de imigrantes clandestinos em busca de alternativas civilizatórias. “Desde os conflitos da Primavera Árabe até a crise econômica na Grécia, a atenção sobre a região nunca foi tão grande e queremos alimentar a discussão sobre essas problemáticas por meio das artes visuais. Estas obras se afirmam no sentido da garantia de direitos fundamentais e da liberdade de expressão.”, defenFotos: divulgação

Abordagem Mediterrânea, curadoria de Adelina von Fürstenberg, até 13/1, Sesc Pinheiros, Rua Paes Leme, 195, São Paulo - SP

I m ag e m d e nenhuma escuridão nos fa r á e s q u e c e r , filme de huseyn karabey

de a curadora e presidente da fundação ART for the World, responsável pelo projeto. O audiovisual comparece na maioria das obras dos 14 artistas incluídos em Abordagem Mediterrânea – entre eles, Ghada Amer, Ziad Antar, Gal Weinstein e Peter Wüthrich, para citar os mais conhecidos – e indubitavelmente fala mais alto. O cineasta turco Huseyn Karabey apresenta o curta Nenhuma Escuridão nos Fará Esquecer, sobre o funeral do jornalista turco-armênio Hrant Dink, assassinado em Istambul em 2007 por um ultranacionalista de apenas 17 anos. No filme em preto e branco, o funeral é recriado em animação e o áudio em off é o emocionante discurso da viúva para as cerca de 200 pessoas que marcharam em protesto pacífico pelas ruas de Istambul, verdadeiro manifesto de amor e tolerância.


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Música

Para sempre Bowie nina gazire

Aos 66 anos, David Bowie reaparece com single sobre Berlim, cidade que se revela uma espécie de paraíso perdido do eterno camaleão do rock Envelhecer com dignidade. Não estamos falando de qualquer rock star que depois dos 60 anos ainda quer mostrar vitalidade e jovialidade, devires indissociáveis do rock- n’-roll. É com a nostalgia digna de quem fez história no mundo da música que David Bowie, ao lançar seu primeiro single em dez anos, enaltece o seu passado com uma das baladas que de partida já se encontra no rol das melhores músicas que nos chegam em 2013. Intitulada Where Are We Now? (Onde Estamos Agora?), a canção de cerca de 4 minutos e 30 segundos, é uma ode a Berlim, cidade onde o artista realizou, na década de 1970, três álbuns que estão entre os melhores de todos os tempos: Low, Heroes e Lodger. Não por coincidência, Bowie convoca o produtor Tony Visconti, seu parceiro de longa data, com quem já trabalhou em mais de 13 discos (inclusive os da famosa trilogia de Berlim) para produzir o hit Where Are We Now?, mas também o álbum The Next Day, do qual a canção faz parte, a ser lançado em março pela Columbia. Berlim é uma espécie de paraíso perdido de Bowie. O lugar para onde o cantor britânico se mudou após se cansar das guitarras melódicas já pedantes que exauriram o rock até 1977, ano em que os sintetizadores eletrônicos e o punk mudaram o cenário musical para sempre. Mas no que Berlim se transformou hoje? A resposta vem entoada pelo tom melancólico da voz de Bowie, que ao escrever a canção realiza uma espécie de deriva mental pelos pontos mais importantes da cidade hoje sem muros. Exemplo é o trecho em que se refere à Potsdamer Platz, local próximo ao estúdio Hansa, onde o artista produziu sua famosa trilogia. Na década de 1920, a praça era ponto de

c e n a d o n ovo videoclipe de dav i d b o w i e , a s s i n a d o p e lo v i d e oa rt i sta to n y o u rs l e r

encontro da juventude progressista alemã e hoje é ocupada por um shopping center e edifícios com projetos arquitetônicos de gosto duvidoso. Outro ponto alto é o clipe que acompanha o single, produzido pelo videoartista americano Tony Oursler. No vídeo, Bowie tem a face projetada sobre o rosto de um boneco sentado em um banco, à maneira dos trabalhos de Oursler. Apesar de toda nostalgia, Bowie nos aponta para o futuro. Aos 66 anos, vai ser headline de um dos maiores festivais de música, o Coachella, e, segundo Visconti, ao contrário da entonação melancólica do single, o álbum a ser lançado é basicamente rock-n’-roll, do jeito que só o camaleão sabe fazer. Que venha março e mais 100 anos de David Bowie.

Livros

Livro de cabeceira

Where Are We Now? David Bowie, US$ 1,29, Itunes Store

Lacunas críticas em relação à obra de Nelson Leirner inspiram os textos do novo livro sobre seu trabalho recente Em entrevista concedida em 2012 para a revista IstoÉ, Nelson Leirner passou à repórter a lista dos seus cinco livros de cabeceira, relativos aos grandes temas que têm ocupado sua cabeça durante suas noites e dias. Nenhum deles se referia ao tempo. Mas o texto que a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz escreve no recém-lançado Nelson Leirner – A Arte do Avesso surge como que para sanar essa lacuna da mesa de cabeceira do artista. Com imagens da grande panorâmica


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Hobby (2011). Assim, em um texto crítico lúcido, de um detalhismo amoroso, Farias passa em revista essa extensa produção – da Rex Gallery, dos outdoors confiscados, do amor aos objetos, das excursões ao Saara, às estratégias do jogador. Para, enfim, chegar ao Hobby, considerado por ele “a súmula de sua obra” e “sua definição do que seja arte”. O fato é que Nelson Leirner merece essa interlocução e cada décimo de segundo de tempo que autores do calibre de Agnaldo Farias e Lilia Moritz Schwarcz dedicam à sua obra. PA na Galeria do Sesi, em 2011, o livro tem também textos de Agnaldo Farias e Piero Leirner. O texto de Lilia Moritz Schwarcz evoca o tempo descrito por Italo Calvino, por Thomas Mann e pelo antropólogo Pritchard Evans para discorrer sobre como o tempo se comporta na obra do artista. Descobre-se, então, uma obra regida por um tempo não controlado, não civilizado, portanto, irracional, que funciona contra o relógio do modelo ocidental de civilização. “A própria arte de Nelson Leirner parece se apoiar num tempo sem tempo, num tempo da paródia, da burla e do humor, que brinca com nossa temporalidade, com nossa história: essa ideologia que nos constrói e nos dá sentido”, escreve Schwarcz. Agnaldo Farias, que vem sendo o grande interlocutor de Nelson Leirner nos últimos anos (foi o curador da panorâmica Nelson Leirner 2011 – 1961 = 50 anos, e um ano antes da Ocupação Nelson Leirner no Itaú Cultural) é o autor do texto Abrindo o Jogo, que justamente abre o livro. É surpreendente que, após tantas incursões ao corpo da obra de Leirner, Farias ainda encontre um ponto de vista inédito sobre esse trabalho que, afinal, acaba por se mostrar caleidoscópico. Farias também encontrou lacunas a preencher. O autor localiza duas obras recentes “do mais alto nível” que nunca ganharam atenção crítica à altura “de sua sofisticação”, mas que tiveram, segundo ele, reação vaga por parte da mídia ou, no máximo, um “julgamento descuidado”. São elas a sala especial da Bienal de São Paulo de 2002 e a instalação Fotos: divulgação

Artes visuais

Sob o peso do inerte Nelson Brissac

Nelson Leirner – A Arte do Avesso, Andrea Jakobsson Estúdio, 230 págs., R$ 95

Instalação de Doris Salcedo na Estação Pinacoteca é um paradoxal encontro entre a vida e a morte A instalação de Doris Salcedo causa, a quem chega à Estação Pinacoteca, um impacto. O cheiro de terra, a estranheza daquelas mesas suspensas com as pernas para cima, ocupando sala após sala. O silêncio, tudo parece inerte, morto. Como um salão após o baile, como um velório, uma sucessão de túmulos. Em Plegaria Muda (Prece Muda), a artista colombiana evoca as vítimas dos massacres na guerra civil em seu país, mas também as mortes violentas e gratuítas em todos os cantos do planeta. É um tributo àquelas vidas profanadas e um ritual que celebra a ressurreição. Doris Salcedo é responsável por algumas das últimas mais importantes obras e intervenções arquitetônicas, como a grande fenda feita no chão da entrada da Tate Modern, em Londres, e o tensionamento das paredes de uma galeria no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), cobertas por telas de metal e gesso. As mesas são empilhadas aos pares, invertidas, formando 120 conjuntos. Entre elas há um bloco de


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terra. Como se cada peça recortasse uma camada geológica da paisagem, um estrato em que talvez se depositaram restos, sedimentos acumulados ao longo do tempo. Matéria comprimida, contida, cerceada. Estamos, aparentemente, sob o peso de tudo que é inerte, do que foi imobilizado, submetidos a uma inexorável gravidade. A impressão inicial é que contemplamos uma câmara mortuária. Mas logo se percebe que, por entre as frestas na madeira dos tampos das mesas, crescem pequenos tufos de ervas. É ali, naquela faixa estreita, onde as raízes não podem ser profundas, que o mato germina. Naquele espaço intermediário, um intervalo, o entre. Pois é pelo meio que as coisas adquirem velocidade. O dispositivo, porém, torna-se paradoxal quando enquadrado nos procedimentos expositivos das grandes instituições por onde vem circulando. Nesses museus, a instalação tem de estar sempre pronta, imediatamente apresentada para diretores, patrocinadores e grande público. Não há tempo para que os elementos trabalhem, para que o material orgânico evolua. Então, em cada peça se instala um mecanismo de irrigação e um botânico se encarrega de plantar mudas de mato nos orifícios das mesas e acompanhar o seu crescimento. Tudo é rigorosamente controlado, de modo que a qualquer momento se tenha a obra acabada. Logo uma instalação que enfatiza a capacidade da matéria de romper os limites da contenção, desestratificar, encontrar uma linha de fuga. Que revela a força da vida que renasce por entre as vigas que a aprisionam e asfixiam. A obra de arte não consistiria justamente numa aposta nessa potência imanente da matéria?

Doris Salcedo: Plegária Muda, até 3 de março, Estação Pinacoteca, Praça da Luz, 2, São Paulo - SP

Livro

O futuro é o nosso presente Giselle Beiguelman

f r ag m e n to d e p l e g á r i a m u da ( 2 0 1 2 ) , i n sta l a ç ã o d e d o r i s sa lc e d o

Artigos de Ronaldo Lemos reunidos em livro discutem as possibilidades em aberto da cultura contemporânea Ronaldo Lemos reuniu em um livro (Futuros Possíveis: Mídia, Cultura, Sociedade, Direitos) diversos artigos publicados em jornais, revistas, sites e alguns inéditos. O resultado é uma oportunidade rara de contemplar um radar em ação, pontuando tendências e chamando atenção para as possibilidades em aberto na cultura contemporânea. Esse é o aspecto mais interessante e importante do livro, pois falar de tendências no mundo fluido da digitalidade é sempre um risco. Algumas hipóteses se concretizam, outras caducam juntamente com os dispositivos na dinâmica da obsolescência programada e da nossa demanda pela melhora dos equipamentos. Por isso, não procure nessa obra um manual de futurologia. Busque um ativador de olhares e ideias sobre temas em que se deve prestar atenção e refletir. Quem já viu Ronaldo palestrando ou dando aula sabe que uma de suas qualidades maiores é o didatismo não piegas. Ele parte do pressuposto de que seus ouvintes são interlocutores. Preza a inteligência alheia e conduz a conversa de forma clara e sem redundâncias, chamando ao debate. A mesma postura se repete nos seus textos. Isso não é suposta vocação para a docência. É generosidade intelectual e capacidade de agenciamento. A diversidade dos artigos não esconde algumas ideias que se revelam como preocupações centrais do autor – seja como professor, advogado, colunista ou crítico musical. São elas as novas relações centro-periferia, ou melhor, da periferia com a nova periferia e do centro com o novo centro, e as emergentes tensões na esfera pública. Diretor do Creative Commons no Brasil, Ronaldo é também


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militante engajado no debate sobre a legislação nacional e internacional relacionada ao uso da internet. Cobre com igual rigor Tecnobrega, o papel das lan houses no Brasil, a campanha de Obama, moedas virtuais, direitos autorais e a discussão do Marco Civil da internet brasileira. Comportamento jovem é outro tópico que tem cada vez mais ocupado o autor em seu raio diversificado de interesses. A explosão da Geração Eu, memes e YouTube são assuntos sempre tratados. Apesar do fôlego mais curto, pela aderência ao momento em que foram escritos, não são menos importantes que os dedicados às temáticas mais estruturais (como políticas públicas e formatos emergentes de produção e consumo cultural). Afinal, o livro discute possibilidades de futuro e o futuro que importa é o que fala do nosso presente.

Ronaldo Lemos Futuros Possíveis: Mídia, Cultura, Sociedade, Direitos. Editora Sulina, 318 págs., R$ 32

Livro

RITUAL INTERIOR JUAN ESTEVES

Fotógrafo mineiro traduz em imagens sua experiência na Beltane, festa pagã no interior dos EUA Welcome Home, livro do fotógrafo mineiro Gui Mohallem é uma obra essencialmente autoral, delicada e intimista em sua concepção. Uma viagem interior do fotógrafo, embasada em uma palheta exclusiva para representar suas vivências e anseios durante três edições anuais da Beltane, uma espécie de comemoração pagã de origem celta, que em maio de 2012 congregou 700 pessoas, notadamente de orientação homossexual, em um retiro no Tennessee, interior dos Estados Unidos. Em harmoniosa cadência, a grande maioria das

Fotos: divulgação, juan esteves. na página ao lado: tadeu jungle

o tennessee r e t r ata d o p o r Gui mohallem e m w e lc o m e home (2011)

imagens ocupa menos de 50% do espaço da página, e elas estão opostas em relação à orientação vertical do livro, alertando, de imediato, a posição do fotógrafo perante a sociedade e a intimidade que ele tem na liturgia do ritual ali comemorado – inclusive com seus personagens, alguns cujo relacionamento nos parece mais do que próximo. Esse statement de imediato não é panfletário ou sectário, e apenas baliza o leitor para um conteúdo que deve ser observado com muita atenção, pois agregado a ele está também todo um processo de grande complexidade técnica que faz com que a finalização do trabalho adquira tonalidades extremamente autorais, cuja excelência ratifica plenamente todo seu esforço conceitual. A viabilização da publicação também traz contornos peculiares, com o autor vendendo previamente 300 cópias de uma das imagens, o que garantiu a bela impressão de apenas mil volumes, feita em uma gráfica da China, com o delicado papel tipo Yulong, de cor amarelada, com capa de tecido. Em resumo, uma publicação muito bem cuidada do início ao fim. Assim como Mohallem participa do ritual, ele promove um próprio, na finalização de suas imagens, as quais começam em negativos superexpostos que apresentam uma densidade acima do normal. Esses, por sua vez, produzem cópias, alterando as cores reais para aquelas desejadas pelo autor, resultando em matizes aparentemente irreais, que


reviews compõem sua palheta mais ampla, pertinentes ao conteúdo metafísico, resultado dos humores e das inquietações do artista. Com uma retórica excepcional, o livro traz imagens de isolamento explícito, distantes de qualquer clichê do gênero, um trabalho que está muito mais para o lado intuitivo e distante da racionalização que o processo todo aparentemente apresenta. O conjunto das imagens nos leva ao autor diretamente, e a percepção de que nelas há uma explosão criativa que caminha juntamente com seus humores, inquietações e, principalmente, seus desafios.

Welcome Home, 170 págs., R$ 60

Cena do vídeo P ovo N a P r a i a , d e Ta d e u J u n g l e

Arte e tecnologia

Olho subjetivo João Paulo Quintella

Exposição coloca em xeque propriedades do vídeo, como a visualidade, e questiona sua fruição estética A relação direta entre imagem e existência é a síntese da exposição Videoarte 2013, com curadoria de Alberto Saraiva, que inaugura nova galeria no Oi Futuro Ipanema. Entre as obras de 13 artistas expostas, Jozias Benedicto chama a atenção para sua experiência literária intitulada Minha Vida de Menina. Neste trabalho, o artista narra um texto produzido por ele próprio, assumindo sem medo a posição de um contador de histórias diante da câmera. Por sua mínima utilização dos recursos próprios do suporte vídeo (plano fixo e único, fotografia simples e cortes escassos), à primeira vista, sua presença parece estranha em uma exposição cuja intenção é apresentar um panorama da produção recente no País. Alguns minutos mais e fica claro que o conceito por trás da curadoria vai além do virtuosismo visual que se pode esperar de um meio tão cheio de efeitos, mas nem tão especiais. O trabalho está para além do que se vê, parafraseando Marcelo Camelo, e recusa sua propriedade mais óbvia, a visualidade.

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Videoarte 2013, até 31 de março, Oi Futuro Ipanema, Rua Visconde de Pirajá ,54, Rio de Janeiro

Em outros dois trabalhos, Olho, de Cid Campos, e Povo na Praia, de Tadeu Jungle, existem pistas de que essa mecânica do olhar, da fruição estética, é que está em xeque nessa coletânea. A exposição aponta não para a evolução de um meio mas para sua apropriação por diferentes poéticas. Relicário, vídeo de Alessandro Sartore, é outro a apontar para fora das experimentações de linguagem do próprio suporte. Aqui vemos uma simples caixa de sapato aberta e brilhante e ouvimos uma música que remete ao universo infantil. A carga imaginativa dialoga com o texto de Jozias Benedicto, formando uma espécie de palíndromo sobre a questão da construção de subjetividade. O questionamento do sujeito e do espectador (des) aparece ao longo da visitação. A exposição não foge das respostas e, para concebê-las, ninguém melhor que o próprio Nietzsche. As palavras do filósofo alemão foram digitalizadas e programadas para responder a qualquer questão do visitante no trabalho Diálogos, de Ricardo Barreto e Maria Hsu. Nietzsche encarna um rosto feminino em sua versão avatar, talvez para trazer à tona um pouco da ilusão que a linguagem imagética digital disseminou no mundo contemporâneo. Um segundo módulo da exposição acontece na fachada do prédio, repercutindo no espaço físico o mesmo movimento que as obras produzem: para fora do suporte. Esse deslocamento redimensiona a relação entre a arte e a instituição com o espaço urbano. As projeções tomam conta da arquitetura, deixando evidente o foco na mais recente característica incorporada pelo vídeo, a mobilidade.


Desenhos sem fronteira 106

vernissage

Foto: cortesia do artista


Eliminando os limites entre o desenho, a fotografia e a instalação, o artista pernanbucano Kilian Glasner busca a cada trabalho uma maneira nova de ver o mundo F e r n a n da L o p e s

S u r fac e ( S u p e r f i c i e , 2 0 0 9) , F o r m ato i n sta l at i vo d o P r o c e ss o 1 3


vernissage

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A exposição Câmera Obscura, que Kilian Glasner inaugura em março na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro, é quase um resumo no espaço da rotina de vida e de trabalho desse artista recifence durante o ano de 2012. Reunindo cerca de dez trabalhos, a primeira individual de Glasner na cidade divide-se entre os dois espaços expositivos da galeria. Na sala principal estarão os desenhos de grandes formatos, que chegam a medir 1,50 x 2,60 metros. Já no espaço conhecido como Anexo, de dimensões menores, estarão os desenhos em pequenos formatos. “Há um ano me divido entre Berlim e a ilha de Itamaracá (Pernambuco). Berlim é a cidade onde descubro novos materiais, visito grandes exposições, conheço novos artistas. É uma cidade muito rica culturalmente. Já em Itamaracá tenho a oportunidade de estar mais isolado, concentrado, em contato com a natureza, sem interferência do mundo. É uma dinâmica que estimula minha produção. Pretendo ficar mais alguns anos entre os dois países”, explica Kilian Glasner. “Entre” parece ser o termo-chave para falar da obra do artista. Em Câmera Obscura, ele reúne uma série de imagens que remetem à sua condição de estar em constante deslocamento. Nessa exposição são explo-

Fotos: cortesia do artista

radas apenas paisagens noturnas e assim Glasner faz conviver imagens aparentemente tão distantes quanto cabanas à beira da praia e vistas aéreas de grandes metrópoles, revelando através de pequenos pontos de luz sinais de ocupação. “Entre” também parece ser o lugar onde habita sua ideia do que possa ser um desenho. Quando começou a trabalhar como artista, há 15 anos, ele desenhava. Naquele momento, tudo o que dizia respeito à ideia clássica de desenho lhe interessava. Com o tempo, começou a perceber que seu desenho não precisava ser só bidimensional nem estar confinado à moldura, preso à parede. Começou a pensar o desenho usando fotografia, instalação e vídeo. Na série Infinito (2011-2012), por exemplo, os desenhos em preto e branco criam novas perspectivas fotográficas, por vezes realistas, por vezes fantásticas, a partir da sobreposição de elementos retirados de diferentes fotografias. Já em Rua do Futuro (2008) – contemplado pelo programa Rumos Artes Visuais do Instituto Itaú Cultural em 2009 –, o artista desenhou sobre as paredes de uma casa abandonada e em seguida demoliu parcialmente o imóvel, mesclando o desenho, a arquitetura e o que restou da casa. Na serie de trabalhos que Kilian Glasner apresenta agora na Galeria Laura Marsiaj, o ponto de luz, branco, é o elemento estrutural das criações. As composições são


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a exposição câmera obscura reúne uma série de imagens e paisagens noturnas que remetem à condição do artista de estar em constante deslocamento n a p á g i n a a n t e r i o r , D e r H i m m e l ü b e r B e r l i n ( 2 0 1 2 , d e s e n h o e m n a n q u i m e m g r a n d e d i m e n s ã o ; à e s q u e r da , s e m s i n a l ( 2 0 1 2 ) , n a n q u i m s o b r e pa p e l ; ac i m a , m u d o ( 2 0 1 2 ) , pa st e l s o b r e pa p e l


vernissage

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desenhadas por aglomeração de pontos que se deslocam como se fossem organismos vivos para representar paisagens noturnas, sejam luzes da cidade, estrelas etc. Ao mesmo tempo sombrios e misteriosos, os desenhos contêm uma luz intensa, graças ao forte contraste do branco do papel com o preto do nanquim. A nova técnica usada nesses trabalhos traz de volta à tona o flerte entre desenho e fotografia. O artista aqui deixa de lado o pastel e o carvão sobre o papel para dar lugar ao nanquim e a materiais menos convencionais durante a construção dos desenhos, que lembram muito o processo de

“Para mim, não existem fronteiras entre a fotografia, a instalação e o desenho” B r a n c o - c e l e st e ( 2 0 1 1 ) , da s é r i e i n f i n i to, pa st e l s o b r e pa p e l


captura da imagem por técnicas como a câmera obscura e revelação de uma fotografia analógica. O flerte entre meios vai além em desenhos como Sem Sinal (2012), em que a relação entre positivo e negativo é levada ao extremo. “Para mim, não existem fronteiras entre a fotografia, a instalação e o desenho”, revela Glasner. É como se seus desenhos fossem “desenhos inconformados”, como definiu a crítica de arte Thais Rivitti: “Se, por um lado, estamos diante de trabalhos realizados em meios tão diversos como a fotografia, o desenho, o vídeo e a intervenção direta no espaço, ouso dizer que

estamos sempre diante de desenhos. Poderíamos pensar que, afinal, a grande ambição desses trabalhos é a de deixar de ser desenho. Mas não. Esse solo comum é sua essência, a parte vital dessa produção. É como o artista enxerga o mundo, como se relaciona com ele, foco de onde emana a potência de seu trabalho”. “Penso na minha obra como uma expressão visual e não verbal. Busco uma imagem que fale por si só, deixando espaço para que o espectador tenha suas próprias interpretações. Meu trabalho vive e sobrevive dessa experiência. A arte está nesse mistério”, explica Glasner.

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delete

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A nova roupa invisível da Globeleza Com maquiagem “inspirada em Escher”, abrem-se as alas de mais um show de mau gosto Nina Gazire

Não é pelo calendário que os telespectadores sabem da proximidade do carnaval, mas pelo nosso maior canal de televisão, que faz questão de esfregar o fato na cara do telespectador, todo começo de ano, transformando a nudez na coisa mais cafona possível. A tortura se repete desde 1991, quando a carioca da gema Valéria Valenssa tornou-se a primeira Mulata Globeleza. Incorreções políticas à parte, o termo é herdeiro de nossa história escravocrata. O problema não é a beleza ou a nudez da passista, mas a estética de Hans Donner, seu marido e pai da tradição “telecarnavalística”. E dá-lhe purpurina e maquiagem corporal “minimalista”, feita de adesivos e tapa-sexos brilhantes, muitas vezes concebidos pelo próprio Donner. Para 2013, a alegria foliã travestida de mau gosto se repete. Aline Prado, que substituiu Valenssa em 2006, samba na tela da televisão com um corte de cabelo à Cleópatra, mas as mudanças da “vestimenta” em relação aos últimos 22 anos de carnaval Globeleza são mínimas. Não que seja imprescindível fazer criações inéditas e variadas, quando o que se quer é cobrir minimamente a genitália e os mamilos, tapeando a carne feminina à mostra no açougue do carnaval. Mas, convenhamos, já deu! Este ano, o figurino e o conceito artístico da campanha ficaram a cargo do artista Cesar Rocha e do diretor Alexandre Pit Ribeiro.

foto: tv globo/rafael frança

O f i g u r i n o da G lo b e l e z a 2 0 1 3 é a s s i n a d o p o r C e sa r Roc h a , m a s p e r m a n e c e f i e l à e st é t i ca d e H a n s Do n n e r

Eles, definitivamente, fizeram a escola de Donner e superaram o mestre. Rocha afirma que a pintura “foi inspirada em M. C. Escher” e que a “purpurina do ano passado foi substituída por brocal”. Oi? Contenção de gastos ou um grande artista que consegue fazer “muito” com pouco? Genial, não? E para finalizar: 22 horas seguidas de maquiagem e colagem de adesivos no corpo da beldade! É realmente muito difícil vestir a rainha da bateria com a roupa mágica invisível. Tá na hora de deletar.


obituário

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Telefone celular (1973-2013)

O celular vai morrer de morte matada do que lhe deu vida: a mobilidade Giselle Beiguelman

Nascido em abril de 1973, depois de uma longa gestação iniciada em 1947, pesando 1 quilo e medindo 30 centímetros, o telefone celular mudou a história da comunicação humana. Filho da mamãe Motorola, o primogênito chamava-se DynaTAC. Foi às ruas somente em 1983 e, daí em diante, passou a crescer em número

de fãs e funções. Demorou a aprender a se comunicar por escrito, mas com 10 anos soltou o verbo em SMSes e nunca mais parou. Com cerca de 20 anos sofreu uma mutação e ficou a cara de uma tia finlandesa, a Dona Nokia, com quem sua história se confundiu por vários anos. Mas, como diz o ditado popular, a vida do homem começa mesmo aos 40. Nem que isso implique algumas reformas básicas na funilaria. E o bisturi de Mr. Jobs fez o milagre. Retirou o teclado, que vinha amarelando seu sorriso, e trocou por uma bela fachada de toque. Todo mundo queria pôr a mão... Virou mania. Dizem que vai enterrar sua avó, modelo de seu comportamento por tantos anos, a internet de desktop, ainda neste ano de 2013. Inevitável. Devagar com o andor. Quem com ferro fere, com ferro poderá ser ferido. Na busca por mais mobilidade, os chineses já estão produzindo computadores vestíveis, os óculos de Realidade Aumentada do Google vão entrar no mercado em pouco tempo e a empresa de óculos Oakley detém cerca de 600 patentes para produção de equipamentos semelhantes aos planejados para o Google. Descanse em paz, telefone celular, o futuro é bem mais móvel que você.

das coi sas quebra das (2012) , de lucas ba mboz z i

FOTO: ANDRE VELOSO/DIVULGAÇão


selects / cultura na rede

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Malu Andrade Paraísos online A cultu ra , o u o a ces so à c u lt u ra, é o m el h o r da i n tern et . Co m part i l h am en to, cultu ra li vre, gestã o c u lt u ral , arte digi ta l , a u diov i sua l , m ú s i ca. . .

C ult u ra l Go ogle I n st i t u te

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Year of t he G litch

Produção Cultural no Brasil

B a i xa C u lt u ra

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P la t a fo r m a m u l t i m í d i a co m e - b o o k g r á t i s e ce m e n t rev i s t a s co m p ro f i s s i o n a i s d a c u l t u ra fa l a n d o so b re s u a s ex p e r i ê n c i a s e o r u m o d a p ro d u ç ã o c u l t u ra l n o Pa í s .

B l o g so b re c u l t u ra l i v re e d i t a d o p e lo j o r n a l i s t a Le o n a rd o Fo letto d esd e 2 0 0 8 . Tra z a r t i gos so b re c u lt u ra l i v re e d i s p o n i b i l i z a exce l e n te b i b l i ote ca em mídias.

P ro j eto d o a r t i s t a d i g i t a l P h i l l i p S tea r n s co m p os ts d i á r i os so b re g l i tc h a r t (a r te d o ru í d o) fe i t a co m d i ve rs a s m í d i a s : v í d e o, fo tog ra f i a e á u d i o.

Projeto Rizoma

htt p: / / bi t . ly/ Tc j cDV P rete n d e fa ze r u m m a p ea m e n to e u m a re d e q u e co n e cte a r t i st a s v i s u a i s , ga l e r i a s e i n s t i t u i ç õ es . O v i s i t a n te p o d e fa ze r a s u a p r ó p r i a c u ra d o r i a d o co n te ú d o.

C u lt u re 36 0

h tt p : / /sg .sg /a Y8LUS P la t a fo r m a p e n s a d a p a ra u n i r a Á s i a e a E u ro p a n o se t o r c u l t u ra l , co m n ot í c i a s , e n t rev i s t a s e o p o r t u n i d a d es d e res i d ê n c i a s .

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h ttp : / / b i t .ly/ 3oR 3 M Fa nt á st ico. Os v is it a n tes p o d e m escreve r no s ite juntos, e m te mp o real, cr ia nd o textos a pa r tir d o estímu lo q ue ca d a um d e les d e ixa registrad o.

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A p ro d u ç ã o b ra s i l e i ra e m f i c ç ã o e d o c u m e n t á r i os , lo n ga s e c u r t a s m et ra ge n s . Tra ba l h o d e ga r i m p o em que o autor da página d i s p o n i b i l i zo u f i l m es i n te i ros se m fa ze r o u p l o a d d e n e n h u m .

Pa ra q u e m gos t a d e m ú s i c a b o a , pa s s a n d o p o r t o d a s a s v e r t e n t es que o jornalista musical Fábio B r i d ge se i n t e res s a .

M u se u c u j a s ex p os i ç õ es s ã o co m p a r t i l h a d a s p e lo m u n d o v i a s t re a m i n g . A s p l a t a fo r m a s pa ra v i s u a l i z a ç ã o v ã o d o ce l u la r a l o c a i s p ú b l i cos .

Foto: divulgação


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