A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A JAN/FEV/MAR 2021 VOL. 10 N. 49
FLORESTA MARGENS E PERIFERIAS Sereia, 2019, de Rafael Bqueer
NAY JINKNSS
DENILSON BANIWA
UÝRA SODOMA
COLEÇÃO AMAZONIANA GERVANE DE PAULA
CURADORIA ANA PAULA CAVALCANTI SIMIONI
A exposição traz ao público mais de 100 obras de artistas de diversas gerações que discutem o lugar do bordado na arte, evidenciando transformações nas hierarquias estéticas e sociais.
EXPOSIÇÃO
terça a sexta 13h—20h sábados 10h—14h Retire seu ingresso em sescsp.org.br/pinheiros mediante disponibilidade de horários.
Sesc Pinheiros Rua Paes Leme, 195 Tel.: 3095 9400 Estação Faria Lima /sescpinheiros sescsp.org.br/pinheiros
24
46
54
COLEÇÃO
PORTFÓLIO
PERFIL
AMAZONIANAS
AFROBAFO
Coleção da UFPA é fruto de
Futurismo afro-indígena, drag
LEONA VINGATIVA ASSASSINA
experiências cotidianas e
queens e zentai alimentam
Cantora e atriz integra cultura
pesquisas acadêmicas sobre
a obra de Rafael Bqueer
travesti, aparelhagem, crítica política e bom humor
produção de arte local
36 PORTFÓLIO
ÁRVORE QUE ANDA U ý ra S o d o m a é a e n t i d a d e q u e re ú n e s a b e re s c i e n t í f i cos e a n ce st ra i s e m d e fe sa d a f l o re st a
VOL. 10 / N. 49
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62
70
PROJETO
CURADORIA
ARTISTAS VIAJANTES
#FLORESTAPROTESTA
VER-O-PESO AO SOL
Gervane de Paula é o primeiro
Dirceu Maués, Nay Jinknss e
DERIVA E OBSERVAÇÃO
artista convidado para projeto
Armando Queiroz retratam o
Frederico Filippi e Maya Da-Rin
de cartazes políticos
mercado mais famoso de Belém
abordam os trânsitos da floresta
JAN/FEV/MAR 2021
78 ENSAIO
NECROBRASILIANAS Denilson Baniwa escava, em imagens, índices das violências constitutivas do Brasil
84
110
ESTUDO DE CASO
EM CONSTRUÇÃO
NATIVA E ALIENÍGENA
O CURUPIRA NA ESTRADA
Anna Bella Geiger desmonta lógica
Filme de Janaina Wagner
binária entre periferia e centro
evoca mitologia para repensar a noção de progresso
90 LITERATURA
AURITHA TABAJARA Cordelista indígena evoca saber ancestral em texto sobre futuro da floresta
92
+
ENTREVISTA COLETIVA
EXPANDIDAS
FLUXO CONTÍNUO
SONS DA FLORESTA
Artistas e educadores da
Playlist colaborativa feita
Amazônia participam de corrente
pelos leitores da seLecT
de perguntas e respostas
https://open.spotify.com/ playlist /0s4DVeM4bI5z6hJTyZPi8i
CELESTE Podcast da seLecT estreia em 22/ 1/2021 com a Rádio Floresta, projeto de Gustavo Torrezan
SEÇÕES
6 12 20 22 102
Editorial Da Hora Livros Acervos Itaú Cultural Crítica
FOTOS: MATHEUS BELÉM / CORTESIA DOS ARTISTAS
E D I TO R I A L
A FLORESTA, 8
PRIMEIRAS PALAVRAS Na introdução de Cultura Amazônica – Uma Poética do
interlocutores, os habitantes das florestas e das cidades amazônicas,
Imaginário (2015), o poeta e pensador paraense João
corpos afro-indígenas que constroem suas próprias narrativas. As
Jesus Paes Loureiro apresenta o distanciamento, ou
vozes que abrem a edição são de Orlando Maneschy e Keyla Sobral,
o estranhamento, como conceito-chave para sua
curadores da Coleção Amazoniana da Universidade Federal do Pará, um
análise do imaginário amazônico. Extraída da teoria
projeto em movimento que arregimenta obras que ativam reflexões
teatral de Bertolt Brecht, a ideia de distanciamento
sobre um território múltiplo. As amazonianas se somam e se contrapõem às
confere um sentido dialético às relações dos
necrobrasilianas, pesquisa de Moacir dos Anjos com nomes, como
homens com outras realidades: “Relações em
o amazonense Denilson Baniwa e o maranhense Thiago Martins de
que a motivação estética e a consciência do real
Melo, que se apropriam de representações do Brasil feitas por artistas
devem permanecer juntas numa mesma atitude de
viajantes, extraindo delas significados novos e críticos, construindo
espectador-participante ou receptor ativo”, aponta
narrativas contra-hegemônicas e constituindo outra memória de Brasil.
Paes Loureiro.
Imbuídos da atitude de viajantes-participantes das múltiplas Amazônias,
Nesta edição #49 da seLecT, que configura
investigamos nesta edição os sentidos das margens e das periferias.
uma introdução à série de publicações que
Margem é o partido visual assumido pela designer Nina Lins nesta edição,
dedicaremos em 2021 aos imaginários da floresta,
tensionando os limites das páginas da revista;
elegemos como primeiras palavras as margens e
Periferia é o encontro da floresta com a cidade, que se processa na
periferias. Num gesto de prudência e respeito, nos
relação que Dirceu Maués, Nay Jinknss e Armando Queiroz estabelecem
aproximamos de nosso objeto de estudo pelas
com os trabalhadores do Mercado Ver-o-Peso, de Belém;
margens, cientes do nosso lugar distanciado de
Margem é a zona de atuação de Uýra Sodoma nos igarapés poluídos, nos
“receptores ativos” dessa que é a maior floresta
bairros sem saneamento básico de Manaus;
tropical do mundo, que representa dois terços das
Periferia é o berço da cultura YouTube, onde apareceu Leona Vingativa,
florestas naturais do Brasil e que cobre quase 50%
viralizando imagens em baixa resolução;
do território nacional. Amazônia, que neste trágico
Margem é a borracha queimada de pneus, o asfalto derretido e outros
2020 teve o maior registro de incêndios de sua
“materiais de fronteira”, trabalhados por Frederico Filippi;
história e está gravemente ameaçada pela atual
Periferia são os trânsitos ilegais, a clandestinidade, o não lugar, a deriva
gestão governamental.
praticada pelos filmes de Maya Da-Rin;
Daqui, deste árido bioma urbano chamado São
Margem é o limite incerto entre o Brasil Nativo e o Brasil Alienígena, como
Paulo, eu, Leandro Muniz e Nina Rahe iniciamos
ensina Anna Bella Geiger;
um movimento de aproximação com a floresta no
Periferia é o centro da cultura do remix, a cena drag de montação, a
momento auge da primeira onda da pandemia.
afroficção, a Mãe Terra intergaláctica, o Curupira na estrada fantasma
Começamos a buscar, pelas vias digitais, os
rumo à Realidade;
informantes e os contadores das histórias que
Margem é sair da periferia de Belém e ocupar os espaços de poder da
nos abriram as primeiras trilhas de acesso.
arte contemporânea;
Estabelecemos uma agenda de reuniões de pauta
Periferia, assim como centro, é um conceito vago e relativo que ativamos
com diversos artistas e pesquisadores do Norte do
neste momento divisor de águas para a vida no planeta.
país, entre eles, Rafael Bqueer, que nos disse que seu
O aprendizado com a pandemia e com a grave crise ambiental é entender
desconhecimento sobre suas raízes étnicas o levou
que somos parte de um sistema articulado – um cosmo – e que temos
a investigar “as identidades afro-indígenas que nos
de encarar o futuro com imaginação, invenção, empatia e cooperação.
foram negadas, já que a violência da colonização
Feliz ano-novo.
apagou nossas histórias”. E assim, em busca da própria identidade ancestral, remixar signos locais e globais na construção da própria imagem. Decidimos que as quatro edições florestais de 2021
Paula Alzugaray
serão escritas com ativa participação de nossos
Diretora de Redação
VOL. 10 / N. 49
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EXPEDIENTE
8
EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY PROJETO GRÁFICO: RICARDO VAN STEEN E CÁSSIO LEITÃO EDIÇÃO E REPORTAGEM: NINA RAHE E LEANDRO MUNIZ DESIGNER: NINA LINS
COLABORADORES SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO
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CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE
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Auritha Tabajara, Deri Andrade, Gervane de Paula, Keyla Sobral, Luciara Ribeiro, Moacir dos Anjos, Moara Tupinambá,Nina Gazire, Orlando Maneschy Cristina Dias Hassan Ayoub
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ACROBÁTICA EDITORA LTDA. Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320
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SELECT (ISSN 2675-8296) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320
APOIO:
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COLABORADORES
AURITHA TABAJARA Escritora cordelista, contadora de histórias e terapeuta holística. Sua primeira obra, Magistério Indígena em Verso e Prosa (2007) foi lançada no Ceará e adotada como leitura obrigatória pela Secretaria de Educação. Autora de Toda Luta e História do Povo Tabajara (2008), Diário de Auritha (2009) e Coração na Aldeia, Pés no Mundo (2018). LITERATURA 90
MOACIR DOS ANJOS
DERI ANDRADE Criador do Projeto Afro, plataforma de mapeamento e difusão de artistas negros/as/ es, é jornalista, pesquisador e especialista em Cultura, Educação e Relações Étnico-raciais pelo CELACC-USP, onde aprofundou suas pesquisas sobre arte afrobrasileira. CRÍTICA 102
Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e das mostras Cães sem Plumas (2014), A Queda do Céu (2015), Emergência (2017) e Educação pela Pedra (2019). É autor dos livros Local/Global. Arte em Trânsito (2005), ArteBra Crítica (2010) e Contraditório. Arte, Globalização e Pertencimento (2017). ENSAIO 78
KEYLA SOBRAL Artista visual, curadora, pesquisadora independente e doutoranda em Artes pela Universidade Federal do Pará. Atua como curadora-adjunta da Coleção Amazoniana da UFPA e, como artista, tem participado de exposições e projetos no Brasil e no exterior. COLEÇÃO 28
NINA GAZIRE Jornalista, curadora e educadora. É curadora do Festival Katsudo Shashin, foi professora dos cursos de Cinema e Audiovisual, Moda e Relações Públicas, Publicidade e Propaganda do Centro Universitário UNA (2010 -2018), em Belo Horizonte, e Produção Cultural na Faap (2010-2013), em São Paulo. CRÍTICA 100
ORLANDO MANESCHY Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é professor da UFPA e curador da Coleção Amazoniana de Arte dessa instituição. Artista, editor e curador independente, tem participado de projetos no país e no exterior, como Pororoca: A Amazônia no MAR (2014), Outra Natureza (2016), na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e Deslendário Amazônico (2019), no Museu do Estado do Pará. COLEÇÃO 28
MOARA TUPINAMBÁ
LUCIARA RIBEIRO Educadora, pesquisadora e curadora, é mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Unifesp. Integrou a equipe de curadoria do Instituto Tomie Ohtake e é diretora de conteúdo da Diáspora Galeria. CRÍTICA 104
GERVANE DE PAULA Artista autodidata, nasceu e vive em Cuiabá (MT). Integrou a “Geração 80” e participa de mostras individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Entre as mais recentes estão o 36° Panorama da Arte Brasileira – Sertão (2019) e a Frestas Trienal de Artes (2017). PROJETO 60
Artista visual, nasceu em Mairi Tupinambá e desde 2015 vem trabalhando com arte e ancestralidade. Em 2019, iniciou um processo criativo de imersão em pesquisa independente sobre seus parentes que se originam da comunidade de Cucurunã/ Santarém/Tapajós, o que a fez criar um “museu” itinerante e digital, o @museudasilva. CRÍTICA 104
FOTOS: DIVULGAÇÃO/ ARQUIVO PESSOAL/ JEFFERSON SANTOS/ RAIMUNDO REIS
Bebe, Cambridge, 1980
Coleções Fundación MAPFRE. © Nicholas Nixon
MINISTÉRIO DO TURISMO, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, POR MEIO DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA, MAPFRE, FUNDACIÓN MAPFRE E INSTITUTO TOMIE OHTAKE apresentam
CURADORIA
CARLOS GOLLONET
COLEÇÕES FUNDACIÓN MAPFRE
CONHEÇA A OBRA DE UM DOS PRINCIPAIS NOMES DA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA, AUTOR DA EMBLEMÁTICA SÉRIE AS IRMÃS BROWN.
DE 22 DE JANEIRO A 18 DE ABRIL DE 2021 INSTITUTO TOMIE OHTAKE
www.institutotomieohtake.org.br /inst.tomie.ohtake
patrocínio
apoio de mídia
realização
@institutotomieohtake
organização e realização
14
ON-LINE
MUSEU ITAMAR ASSUMPÇÃO itamarassumpcao.com Lançado no Dia da Consciência Negra (20/11), o MUI.TA reúne mais de 2 mil itens do acervo do músico e compositor paulistano Itamar Assumpção (na foto, com a banda Isca de Polícia). Com exposições temporárias e permanentes, vídeos e entrevistas em português, inglês, iorubá e alemão, além de lojinha, este primeiro museu virtual de um artista negro brasileiro promove diálogos entre a obra de Ita – como era chamado – e artistas negros de novas gerações . Atualmente, o site conta com exposição de Dalton Paula, uma sala com músicas e imagens de Serena Assumpção e uma página que contextualiza o músico em relação ao movimento negro desde os anos 1950.
CURITIBA
COMPRE ARTE Individual de Renato Ranquine, até 2/2/2021, Soma Galeria, Rua São Francisco, 179 | @somagaleria O artista Renato Ranquine inaugura individual na qual a frase “compre arte” é aplicada em letreiros, camisetas e adesivos e buttons (foto), replicando as estratégias de mercados populares como o Saara, no Rio de Janeiro, e a 25 de Março, em São Paulo. A exposição é a segunda na nova sede da Soma Galeria, em Curitiba, e funciona como uma autocrítica bem-humorada sobre o mercado de arte.
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NITERÓI
ENTRE FRAGMENTOS E FRESTAS Exposição coletiva, até 28/2/21, Museu Janete Costa de Arte Popular, Rua Presidente Domiciano, 178 | culturaniteroi.com.br/janete A mostra, que ocupa o Museu Janete Costa de Arte Popular, em Niterói, conta com cerca de 80 obras de 50 artistas, cujas descendências africanas – e a criação plástica – se manifestam em esculturas de barro, pinturas em tela e trabalhos em madeira, como a escultura de Lafaiete (foto). Entre os nomes selecionados estão Izabel Mendes, Agnaldo Santos, Itamar Julião, Mestre Didi e Mestre Guarany. A curadoria é de Jorge Mendes.
RIO DE JANEIRO
COSMOCOCA – PROGRAMA IN PROGRESS: NÚCLEO POÉTICO DOS QUASE-CINEMA Individual de Hélio Oiticica, até 28/2/2021, MAM Rio, Av. Infante Dom Henrique, 85 | mam.rio Com curadoria de Fernanda Lopes e Fernando Cocchiarale, o Museu de Arte Moderna do Rio apresenta uma exposição de fotografias do artista Hélio Oiticica a partir dos seus filmes produzidos em Nova York, nos anos 1970, em parceria com Neville D’Almeida. A mostra, que foi pensada a partir da doação do material fotográfico ao museu, é uma espécie de resumo dos experimentos Quase-Cinema e inclui os filmes
Agripina e Roma-Manhattan (1972) e registros dos membros da Mangueira, como Nildo e Nininha (foto), vestindo os Parangolés.
FOTOS: OSCAR BASTOS / DIVULGAÇÃO / VICTOR PASTANA / EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO / ANDREAS VALENTIM
14
ON-LINE
ART CURATOR GRID artcuratorgrid.com Lançada em 2020 por Pauline Foessel, a
startup reúne perfis de diferentes curaS Ã O PA U L O
dores internacionais, apresentando sua
EXFINITO
produção de exposições e textos. O ArtCu-
Exposição individual, até 28/2/2021, Farol Santander, Rua João Brícola, 24 | farolsantander.
rator Grid conta ainda com uma revista, a
com.br
Curtain Magazine, focada no lifestyle dos curadores mundo afora. Com edição de
Com curadoria de Marcello Dantas, a individual dedicada ao artista chileno Iván Navarro
Cristina Sanchez-Kozyreva, a publicação
reúne 14 trabalhos inéditos que ocupam todo o 22º andar da instituição. Por meio de
online conta com quatro artigos mensais,
formas labirínticas, espelhos e luzes que criam ambiguidades entre o espaço real e o
entre perfis, entrevistas e indicações de
virtual, o artista provoca dúvidas sobre a nossa percepção e os sentidos, como acontece na
leituras. No blog da plataforma, que tam-
instalação Impenetrable Room (foto). Na área externa do Farol Santander, na Praça Antônio
bém divulga oportunidades de empregos,
Prado, Navarro apresenta a instalação Escada Caixa D’Água, uma obra pública com néon
é possível acessar vistas de exposições e
dentro do recipiente. É a primeira grande mostra de Navarro no Brasil.
textos dos autores cadastrados.
ON-LINE
VINTE MIL LÉGUAS quatrocincoum.com.br/br/podcasts/ vinte-mil-leguas No novo podcast da Quatro Cinco Um, Leda Cartum e Sofia Nestrovski mostram os pontos de contato entre o mundo científico e o da literatura. No primeiro programa, as duas escritoras exploram, por exemplo, as relações entre a teoria de Darwin e o surgimento de uma nova doença; ou o que a seleção natural tem a ver com o racismo. Os episódios tratam da história, do meio ambiente e do darwinismo, entre outros temas abordados
por
pesquisadores
como
Matheus Gato, Nurit Bensuan e a própria equipe de redação da revista Quatro
Cinco Um.
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S Ã O PA U L O
MARIELOISA 1003 Exposição coletiva, até 13/2/2021, Edifício Marieloisa, Alameda Glete, 1.007 | centralgaleria.com / galerialeme.com A parceria entre as galerias Leme e Central reúne os artistas José Carlos Marinat e Rodrigo Sassi em um antigo edifício na Alameda Glete, em São Paulo. A mostra aborda questões como o espaço urbano e o uso de materiais de construção na produção de esculturas e instalações, como Corpo Acomodado (foto), de Sassi.
S Ã O PA U L O
URBANISMO ECOLÓGICO 2020 Exposição coletiva, 17/1/2021, Museu da Casa Brasileira, Av. Brig. Faria Lima, 2.705 | mcb.org.br Parceria entre o Museu da Casa Brasileira e a Universidade de Harvey, na Califórnia, EUA, a exposição reúne maquetes e desenhos que propõem soluções para o futuro das cidades. Curadoria das arquitetas Marina Correia e Fabiana Araújo, a mostra também celebra o lançamento do livro Urbanismo Ecológico na
América Latina, editado por Mohsen Mostafavi, Gareth Doherty, Marina Correia, Ana María Durán Calisto e Luis Valenzuela.
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FOTOS: DIVULGAÇÃO / FILIPE BERNDT
RIO DE JANEIRO
JEANE TERRA – ESCOMBROS, PELES, RESÍDUOS Individual de Jeane Terra, de 3/3 a 29/5/2021, Simone Cadinelli Arte Contemporânea, Rua Aníbal de Mendonça, 171 | simonecadinelli.com Com curadoria de Agnaldo Farias, a individual de Jeane Terra reúne trabalhos inéditos que têm como ponto de partida os escombros das casas do Pontal de Atafona, no litoral norte-fluminense, que vêm há décadas sendo tragadas pelo mar. As instalações, esculturas e objetos que compõem a exposição são fruto de uma imersão na Praia de Atafona, experiência que também resultou em trabalhos que a artista chama de “monotipias em pele de tinta”, uma técnica própria que confere às obras aparência de pergaminho e aparece em peças como Lajedo Adormecido (foto).
S Ã O PA U L O E B R U X E L A S
LYDIA OKUMURA Individual, a partir de 23/1/2021 (encerramento a definir), Galeria Jaqueline Martins, Rua Dr. Cesário Mota Júnior, 443 / RueauxLaines, 14 | galeriajaquelinemartins.com.br A Galeria Jaqueline Martins, que inaugurou sede em Bruxelas em 2020, mantém no espaço europeu a mostra dedicada à obra do artista Hudinilson Jr. e, na galeria da Vila Buarque, em São Paulo, abre uma exposição de Lydia Okumura, artista brasileira radicada em Nova York que vem investigando o interstício do espaço bidimensional e tridimensional através de desenhos, pinturas e instalações site-
specific. Nesta que é a sua segunda exposição individual na galeria, Okumura apresenta uma série de pinturas dos anos 1980, nunca antes exibidas, e instalações que ocuparão dois dos pavimentos, colocando em questão a presença física dentro do espaço expositivo, caso de A.I.R. Gallery, New York, NY (foto).
S Ã O PA U L O
TRANSBORDAR: TRANSGRESSÕES DO BORDADO NA ARTE Exposição coletiva, até 8/5/2021, no Sesc Pinheiros, Rua Paes Leme, 195 | sescsp.org.br Com curadoria de Ana Paula Simioni, a mostra apresenta obras históricas e inéditas de 30 artistas que utilizam o bordado e questionam seu estatuto de “arte menor”. Entre os artistas estão Anna Bella Geiger, Arthur Bispo do Rosário, Beth Moysés, Fabio Carvalho, Fernando Marques Penteado, Jucelia da Silva, Karen Dolorez, Leonilson, Letícia Parente, Nazareth Pacheco, Rosana Paulino, Rosângela Rennó e Ana Miguel, que apresenta o trabalho Para Sempre Meu (foto).
FOTOS: VICENTE DE MELLO/ CORTESIA LYDIA OKUMURA / GALERIA JACQUELINE MARTINS/ EDGAR CESAR
PANTANAL João Farkas, Sesc Edições, 228 págs., 2020, R$ 150 Considerando as aceleradas mudanças em curso no Pantanal mato-grossense devido às queimadas, o fotógrafo João Farkas produziu um livro que reúne imagens da paisagem, das pessoas,
BURLE MARX – PARAÍSOS REINVENTADOS
da fauna e da flora da
Org. Guilherme Wisnik, Almeida
do Sesc, abordando a
& Dale, 128 págs., 2020, distribuição
questão da fotografia e
região. Textos de Danilo Santos Miranda, diretor
gratuita
um texto e um infográfico
Com dois textos de Roberto
do professor de biologia
Burle Marx, de 1954 e 1967, a
Sandro Menezes
publicação gerada a partir da
Silva, descrevendo o
exposição da Galeria Almeida & Dale, com curadoria de Guilherme
funcionamento daquele
Wisnik, situa o paisagismo de Burle Marx em relação à arquitetura,
importante ecossistema,
à literatura e à pintura moderna brasileira. De formulações
finalizam a publicação.
polimórficas, não nacionalistas e selvagens, os jardins do artista, segundo o curador, expressam de forma radical a cultura em que
MARCOS AMARO
foram criados.
Org. Ricardo Resende, Cobogó, 280 págs., 2020, R$ 99 Em edição bilíngue, o livro percorre a obra completa de Marcos Amaro, mostrando como temas recorrentes, como a aviação, aparecem em diferentes linguagens, do desenho à assemblage. Com textos do artista Gilberto Salvador e do curador Ricardo Resende, há também uma conversa entre este,
MIS PIEDRAS, SERGIO CAMARGO: ATELIÊS 1950-1990
Amaro e o artista Nuno
Org. Carlos Nunes, Marilucia Bottallo, David
desde aspectos internos
Forell e IAC, Instituto de Arte Contemporânea, 152
de sua produção até seu
págs., 2020, R$ 90
trânsito por diferentes
Ao longo de sua trajetória, o escultor
atividades do sistema da
Sergio Camargo ocupou diversos ateliês
arte, de colecionador a
no Rio de Janeiro, em Paris e em Soldani,
gestor de uma instituição e,
na Itália. A publicação reúne imagens
claro, artista.
desses diferentes espaços, fac-símiles de seus diários e trechos de escritos do artista, que variam de reflexões sobre a escultura a poesias sobre a luz e o espaço. VOL. 10 / N. 49
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Ramos, na qual discutem
ANTONIO DIAS – DERROTAS E VITÓRIAS Org. Felipe Chaimovich, MAM São Paulo, 171 págs., 2020, R$ 60 Com curadoria de Felipe Chaimovich, a individual de Antonio Dias desdobra-se em um catálogo com textos de Roberto Conduru, Sérgio Martins e 19
do curador. A exposição é organizada a partir da coleção que Dias mantinha de suas obras, em um movimento autorreflexivo. Os trabalhos de diferentes períodos permitem compreender com abrangência o desenvolvimento da pesquisa, a ideia de uma experiência pop no Brasil e a crítica à ditadura e ao jornalismo sensacionalista dos anos 1960.
DUPLO De Claudia Jaguaribe, Ipsis Pub, 144 págs., 2020, R$ 220 Com textos de Margareth Dalcolmo e Victor Stirnimann, o livro de
TEMPO CIRCULAR
fotografias de Claudia
De Leda Catunda, Cobogó, 257 págs., 2019, R$ 130
Jaguaribe reúne imagens
Os ciclos de superação e regeneração
da população de São
da cultura de consumo sucedem-
Paulo no retorno às
se nas séries de trabalhos de Leda
atividades presenciais
Catunda, que ganham leitura do crítico
durante a pandemia.
Paulo Miyada, em monografia lançada
Pessoas usando
pela Cobogó. A ideia de rede, trama
máscaras, céus límpidos
e circularidade orienta a seleção de
e ruas vazias mostram
obras e o texto é uma revisão ampliada
os efeitos do isolamento
e atualizada do ensaio curatorial
social e do tempo. Este
publicado no catálogo da mostra Leda
é o primeiro lançamento
Catunda – I Love You Baby, realizada no
da Ipsis Pub, editora que
Instituto Tomie Ohtake, em 2016.
nasce dedicada a livros de arte e fotografia.
A IDEIA DE CINEMA NA ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA De Katia Maciel, Circuito, 342 págs., 2020, R$ 40 Com orelha-poema de Lívia Flores, prefácio do cineasta Carlos Adriano e elaborado a partir de análises e discussões com alunos da graduação e pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, o livro da artista, poeta e professora Katia Maciel empreende leituras sobre como a ideia de cinema se expande na obra de 33 realizadores contemporâneos. Ana Vitória Mussi, Laura Lima e Ana Costa e Silva entre eles.
FOTO: ACERVO MAM RIO
O ALIENISTA De Machado de Assis,, ilustração de Rivane Neuenschwander, 120 págs., 2020, R$ 62 Os 20 bonecos da instalação O Alienista, de Rivane Neuenschwander, ilustram esta edição do clássico machadiano, publicado originalmente em 1882. No prefácio, um ensaio de Laymert Garcia dos Santos e Elton Corbanezi endossa o viés político da obra literária, que, em sua observação do autoritarismo, do alienismo e da arbitrariedade no uso do poder institucional, cabe como luva na análise da situação do Brasil contemporâneo.
DIANTE DE GAIA – OITO CONFERÊNCIAS SOBRE A NATUREZA NO ANTROPOCENO De Bruno Latour, Ubu, 480 págs., 2020, R$ 89,90 No prefácio da edição brasileira do livro publicado em 2015, na França, Latour aponta que “é um tanto
próxima. Leitura obrigatória para quem luta para manter
ESPAÇO DE EMERGÊNCIA, ESPAÇO DE RESISTÊNCIA – ESCOLA DE ARTES VISUAIS DO PARQUE LAGE (1975-1979), UMA EXPERIÊNCIA RADICAL E COLETIVA IDEALIZADA E DIRIGIDA POR RUBENS GERCHMAN
a terra habitável.
Org. Clara Gerchman, Isabella Rosado
aterrorizante publicar o livro no Brasil, em meio a uma crise moral, política, sanitária, ecológica e religiosa de tamanha proporção”. Ele afirma que, em 2013, quando proferiu estas oito conferências sobre a crise ambiental, em Edimburgo, se preparava para uma “tempestade perfeita” – com a sobreposição de todas as crises ao mesmo tempo –, cuja chegada não imaginava tão
Nunes e Sergio Cohn, Azougue, 153 págs., 2020, R$ 48 O livro aborda o projeto pedagógicoartístico do fundador e gestor da Escola de Artes Visuais do Parque
A MÁQUINA DO ÓDIO: NOTAS DE UMA REPÓRTER SOBRE FAKE NEWS E VIOLÊNCIA DIGITAL
Lage, nos anos 1970. Em 2007,
De Patrícia Campos Mello, Companhia das Letras, 296 págs., 2020, R$39,90
gravasse seus depoimentos sobre a
Os usos das redes sociais no Brasil e em países como os
criação da EAV, gerando um material
Estados Unidos e a Índia estiveram no espectro de pesquisa
primário na produção da publicação,
da jornalista Patrícia Campos Mello desde 2008. Em seu
que conta com documentos, fotos
novo livro, Campos Mello aborda como as redes sociais são
e análises de matérias da imprensa
aparelhadas para violar fatos e desqualificar o jornalismo,
da época. Há ensaios de Isabella
como os disparos de WhatsApp contribuíram na eleição
Rosado Nunes, Suzana Velasco
de Jair Bolsonaro. Milícias digitais, trolls patrióticos e
e Claudia Calirman, além de 22
tecnopopulismo são algumas das expressões cunhadas pela
entrevistas com profissionais que
repórter para denunciar a disseminação de informações
participaram da criação da escola.
falsas na atualidade.
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Gerchman pediu à filha Verônica que
BRASIL, PARAÍSO RESTAURÁVEL De Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib, Estação Brasil, 352 págs., 2020, R$ 39,90 O novo livro do historiador Jorge Caldeira é construído sobre a tese de que está em curso uma intensa e incontornável transformação do mundo na direção de uma economia centrada no valor da natureza. Em tantos capítulos o livro desenvolve argumentos convincentes de que as metas relacionadas à natureza e ao meio ambiente estão no centro do planejamento estratégico governamental das grandes economias do planeta. Nesse contexto, de Éden bíblico no século 16, o Brasil deve aspirar à posição de nova potência nesta ordem mundial. Segundo Caldeira, o “paraíso restaurável” é hoje um projeto tecnicamente possível. Ele depende, no entanto, da eliminação imediata do mais severo obstáculo, chamado governo Bolsonaro.
A VIDA NÃO É ÚTIL De Ailton Krenak, Companhia das Letras, 128 págs., 2020, R$ 29,90 O novo livro do ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, Ailton Krekak, é um grito de guerra. Cético em relação a uma economia baseada na ideia de desenvolvimento sustentável, ele desmonta, em cinco textos adaptados de palestras e lives realizadas entre 2017 e 2020, os pilares da “civilização” contemporânea, a saber: uma concepção de humanidade baseada no consumismo desenfreado e na devastação ambiental.
PISTAS FALSAS: UMA FICÇÃO ANTROPOLÓGICA De Néstor García Canclini, Itaú Cultural: Iluminuras, 106 págs., 2020, R$ 35,70 Da coleção Os Livros do Observatório Itaú Cultural, o novo trabalho do antropólogo argentino narra uma história de amor mediada pelo mundo digital. Ambientada em um futuro próximo, 2029, a história discute vigilância, guerras no ciberespaço e catástrofes naturais. No lançamento, houve uma conversa entre o autor e Teixeira Coelho, diretor da coleção. O debate está disponível no YouTube da instituição.
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A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L
SABERES INDÍGENAS 20
Em projetos e verbetes do Itaú Cultural, a proposição de um pensamento crítico sobre as relações entre sociedade, política, tecnologia e meio ambiente
VERBETES
Fortaleza Cansada (2018), de Mag Magrela
CARIMBÓ
MULTICULTURALISMO
Gênero musical, dança e expressão artística de origem
(...) No campo das artes, o multiculturalismo assume
amazônica, em particular no nordeste do estado
formas variadas, ainda que tenha sempre caráter
do Pará, o carimbó conta com matrizes africanas,
engajado e intervencionista, definido em função da
indígenas e europeias historicamente desenvolvidas
experiência social do artista: sua origem, pertencimento
por setores sociais marginalizados, entre os quais
de classe, orientação sexual etc. (...) Nos EUA – onde o
comunidades pesqueiras, rurais e suburbanas. A
multiculturalismo é definido e teorizado por intelectuais
hipótese é de que o nome advém do tupi curi m’bó: em
de origem terceiro-mundista –, as relações entre
português, pau oco escavado. “Curimbó” – ou korimbó –
produção artística e política estreitam-se na década de
também designa o tambor tocado nas apresentações
1970. Basta lembrar a criação, em 1969, da Art Workers
(...). Menções a carimbó já eram publicadas no século
Coalition – AWC [Coalizão dos Trabalhadores de Arte],
19, mas de modo depreciativo e persecutório (...). Antes
em Nova York, e do simpósio organizado pela revista
atacadas e menosprezadas pelas elites econômicas
Artforum, “O Artista e a Política”. [...] O Brasil parece
e políticas, as expressões sociais, culturais, artísticas
ficar à margem dessas discussões até a década de 1980,
e religiosas vinculadas ao carimbó paulatinamente
data do fortalecimento e da visibilidade das chamadas
ganham a apreciação de outras camadas da sociedade.
minorias étnicas, raciais e culturais.
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Links em select.art.br/acervos
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PROJETOS UNA SHUBU HIWEA – LIVRO ESCOLA VIVA Na edição 2013-2014 do edital Rumos Itaú Cultural, a Editora Dantes foi selecionada para a publicação de um livro que registrava a sabedoria medicinal dos Huni
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Kuin, população indígena do Acre. O livro é parte de um projeto mais amplo, que inclui Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva, documentário e site que organizam a pesquisa desenvolvida pela editora Anna Dantes e sua equipe, com membros como o botânico Alexandre Quinet, o etnobotânico Pedro Luz, a fotógrafa Camila Coutinho, o pajé Manuel Vandique Dua Buse, a liderança Huni Kuin José Mateus Itsairu e a escritora Ana Miranda. A Editora Dantes existe desde 1994 e está focada na transmissão e na materialização dos saberes indígenas pela palavra escrita.
PODCASTS MEKUKRADJÁ Apresentado por Daniel Munduruku, o programa tem enfoque na experiência política, social e cultural dos povos indígenas. A palavra que dá nome ao projeto tem origem caiapó e significa sabedoria e transmissão de conhecimento. O uso da linguagem do podcast pode ser compreendido como uma expansão das tradições orais de aprendizado e ensino das culturas indígenas. O apresentador, da etnia Munduruku – predominante na região do Rio Tapajós –, tem formação em história, filosofia e psicologia, e, além de dezenas de livros publicados, recebeu o Prêmio Jabuti em 2017. Atualmente na sua quinta temporada, o podcast já teve participação de agentes como a curadora Naine Terena, a cineasta Graci Guarani e a antropóloga Varin Mema (na foto)
A FLORESTA QUE DORME DEBAIXO DO ASFALTO O líder indígena Ailton Krenak (na foto) e o permacultor australiano Peter Webb, mediados pela jornalista Natália Garcia, protagonizaram um debate do projeto Brechas Urbanas, em 2016. A ampliação do conceito de floresta e o questionamento sobre como essa experiência pode modificar a cidade são o eixo central da conversa, que aborda o entrelaçamento entre modos de vida, estruturas políticas e meio ambiente. Outra maneira sugerida para a reativação da floresta latente no asfalto das cidades é a escuta da linguagem das plantas e suas formas de comunicação. O Brechas Urbanas é um projeto de debates do Itaú Cultural que busca encontrar soluções inovadoras para os modos de vida na cidade, contando com a participação de artistas, agentes políticos, sociólogos e pesquisadores.
FOTOS: ANDRÉ SEITI/ AGÊNCIA OPHELIA/ DIVULGAÇÃO/ CORTESIA ITAÚ CULTURAL
COLEÇÃO
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ARDOR
EXPERIÊNCIA ORLANDO MANESCHY E KEYLA SOBRAL
Midas (2009), de Armando Queiroz
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E FRICÇÃO:
AMAZONIANA
A PRÁTICA CONJUNTA E O DESEJO DE CRIAR JUNTES COMO EMBRIÕES DE UM ACERVO DE ARTE DAS MÚLTIPLAS AMAZÔNIAS FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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É PRECISO TER CONHECIMENTO PARA ADENTRAR A FLORESTA. RESPEITO E CUIDADO. É preciso pedir
licença, mesmo em um país colonizado e em chamas, precisamos ter respeito! Tudo parece muito distante e, ao mesmo tempo, tudo tão próximo. A física quântica já explicou. E nos deslocamos no espaço-tempo cruzando territórios, sempre a iminência do impacto final. Dos primeiros viajantes aos megaincêndios de 2020, a Amazônia atravessou diversos ciclos de “modernidades”, que transformaram decisivamente os locais em que ocorreram. As estratégias do capitalismo têm seu requinte de sedução e sedação. Ambas seguem aliadas às práticas colonialistas. Por vezes é necessário dormir, dormir, dormir para acordar desse longo sono disposto à transformação, à luta para modificar e construir outras práticas; tentar estabelecer novas formas de existência, de permanência, de resistência. Caminhos de construção estando juntas, juntos, juntes. É nesse cenário de sucessivos ciclos coloniais que a Coleção Amazoniana de Arte da UFPA nasce e se enraíza. Fruto de pesquisas na academia e de experiências estabelecidas na prática cotidiana, calcada em trocas forjadas em processos coletivos e dialógicos, a Amazoniana encontra sua gênese em percursos empreendidos por distintos artistas e pesquisadores, que somam forças para potencializar seus desejos e viabilizar seus projetos. Talvez essa prática conjunta seja o embrião desta coleção: o desejo de criar juntes. A prática de agrupamentos de artistas é uma estratégia política para a realização e acaba por contribuir para o debate e o aprofundamento do pensamento. Assim foi com a FotoAtiva, oficinas de fotografia idealizadas pelo fotógrafo e educador Miguel Chikaoka nos anos 1980, que com o tempo foi agregando diversos fotógrafos em suas experimentações em Belém. Mais do que ensinar a fotografar, Chikaoka estimulava o participante a descobrir sua linguagem por meio da imagem, da luz e do envolvimento coletivo. Esse tipo de experiência será deVOL. 10 / N. 49
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à dir., Jurema, Uma Proposta de Bandeira para o Brasil (2019), de Luciana Magno. Na dupla anterior, Midas (2009), de Armando Queiroz
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terminante na adesão de diversos artistas ao projeto que constituiria a Amazoniana e em várias ações correlatas. Fruto de um desejo de manter na região obras que nascem de exercícios significativos ao fazer de artistas, a coleção é resultado de processos de reflexão e acompanhamento da produção de arte, sedimentada na academia e subvencionada por agências de fomento. Ela pretende consolidar conhecimentos e conservar obras nesse território, empregando recursos públicos no bem público. E, claro, seu nome instiga se pensarmos em brasilianas em terras estrangeiras e aciona questões diversas sobre agenciamentos de poder e de construção de discursos. Como sua origem é a pesquisa, relacionamos diversos processos que culminaram na sua constituição, desde projetos de iniciação científica desenvolvidos com estudantes universitários com recursos da UFPA, CNPq e Fapespa, até os subvencionados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sobre fotografia; e pela Fundação Nacional de Arte (Funarte), sobre videoarte. Estes alimentaram o desejo de pensar a produção e constituir um acervo de arte na Amazônia, que foi ganhando contornos por meio de pesquisas, curadorias e projetos até chegarmos ao Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça/Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Funarte, que viabiliza, por meio da exposição Amazônia, Lugar da Experiência, a elaboração do conjunto de obras que iniciaria a Coleção Amazoniana e estabeleceria um campo de diálogos e trocas, com site e seminários, potencializando novos processos de enunciação. No ano seguinte, a partir da premiação do edital Conexões Artes Visuais (MinC/Funarte/Petrobras), em parceria com a UFPA, foi editado o livro Amazônia, Lugar da Experiência, trazendo não apenas as reproduções das obras e imagens das exposições, mas um conjunto de textos de artistas, pesquisadores que pensam a existência artística na região. Em 2014 criou-se a Seção Moda da Amazoniana, com a doação de obras e documentos do estilista André Lima e o ]Arquivo[ viria tempos depois. FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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Acima, da série O Martelo Sem Mestre (2019), de Danielle Fonseca; na pág. ao lado, Rodovia Belém-Brasília, São Miguel do Tocantins (2012), de Paula Sampaio e Tatiane Nascimento
AQUI NÃO HÁ ROMANTISMO O que opera na constituição dessa coleção é a compreensão de que os artistas existem-resistem nesse ambiente de complexidade histórica, pois outrora éramos muitos, éramos outra coisa. Não éramos Brasil, mas sim o estado do Grão-Pará e Maranhão (1751). Impossível não pensar como teria sido se... Toda essa complexidade histórica, social, localizada ao pé do Equador, na periferia do Brasil, entre calor e água, com esses artistas que empreendem suas práticas através da sua vivência na região. Aqui não há romantismo, mas o embate diário com a vida, na fricção com o mundo, com o intuito latente de exercer esse protagonismo, o direito à fala. Apesar de tudo, apesar do outro, juntamente com o outro. Somos todos iguais, mas diferentes, mas para alguns ainda somos a parte dita-e-redita exótica do Brasil. A parte que incomoda, como uma porta que range. Através do exercício de diálogo constante, desenhamos uma coleção que está em movimento, em expansão, arregimentando obras potentes que ativam discussões e refleVOL. 10 / N. 49
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xões sobre este território, construídas através de protagonistas em meio à travessia. Entender, escutar e trocar com os artistas e suas pesquisas fizeram e fazem a base desta coleção. Estar sempre atento às pulsões que pululam feito vagalumes a iluminar a densa e úmida floresta, atentos àquilo que faz sentido à existência em um mundo no qual tudo é mercadoria. Precisamos aguçar os sentidos, abrir os olhos, rasgar o véu que nos impede de ver mais além. Perfurar a menina dos olhos como em Hagakure, de Miguel Chikaoka, obra que abria a primeira mostra da Amazoniana: Amazônia, Lugar da Experiência (2011). Na obra, uma caixa de luz com três negativos transpassados por espinhos da palmeira tucumã, que atravessam as imagens dos olhos do fotógrafo em um convite para rever modelos e práticas, focando em conduta ética, partindo da entrega daquele que serve. “Furar meus olhos, gentilmente fotografados por Alberto Bitar, foi uma experiência emblemática, um rito de passagem para seguir com luz, além da imagem”, atesta o artista.
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É NUM CENÁRIO DE SUCESSIVOS CICLOS COLONIAIS QUE A COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UFPA NASCE E SE ENRAÍZA. FRUTO DE PESQUISAS NA ACADEMIA E DE EXPERIÊNCIAS ESTABELECIDAS NA PRÁTICA COTIDIANA, CALCADA EM TROCAS FORJADAS EM PROCESSOS COLETIVOS
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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TODA ESSA COMPLEXIDADE HISTÓRICA, SOCIAL, LOCALIZADA AO PÉ DO EQUADOR, NA PERIFERIA DO BRASIL, ENTRE CALOR E ÁGUA, COM ESSES ARTISTAS QUE EMPREENDEM SUAS PRÁTICAS ATRAVÉS DA SUA VIVÊNCIA NA REGIÃO
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Muitas das obras presentes na Amazoniana se concretizam ao olhar com agudeza para essa região. Paula Sampaio é uma artista que há décadas cruza a Amazônia por suas estradas, tantas e quantas vezes documentando a vida dos habitantes, com seu olhar requintado, em que pessoas e natureza estão em complexas relações. São muitos os Antônios e Cândidas que têm sonhos de sorte, frustrados e iludidos pelos inúmeros projetos de desenvolvimento. São famílias que Sampaio encontra e reencontra ao longo dos anos, em um grande retrato dos brasileiros entregues à própria sorte. Em sua fundação, a Coleção Amazoniana constituiu-se com a participação de 31 artistas, divididos em duas mostras, duas intervenções urbanas, como as de Lucas Gouvêa e Éder Oliveira. Eles, para além das obras no museu, ocuparam pontos da cidade. Oliveira realizaria pinturas murais e numa delas figura Quintino, gatilheiro famoso nos anos 1980, que finda por se aliar aos excluídos, sendo chacinado. Misto de bandido e herói, ele é símbolo da complexidade que envolve a questão agrária na região. Também com forte tônica de crítica social, Lúcia Gomes vai contribuir, em performances e intervenções urbanas contundentes sobre as questões sociais. Em Nem Que L. Faça 100 Anos, um tufo de cabelo repousa em uma colher, em alusão à jovem presa em uma cela com homens no Pará; em outra obra, a artista desloca um barco típico da região para o aterro sanitário de Belém e ali desenvolve ações com a comunidade de catadores e convidados. Armando Queiroz, ao integrar este primeiro momento, faz um recorte do seu projeto sobre o garimpo de Serra Pelada e aparece em sua performance para vídeo Midas, cheia de metáforas. Devorando e devorado, como as bocas banguelas nos moldes das arcadas dentárias dos garimpeiros presentes em Ouro de Tolo, douradas com ouro falso.
Intervenção na Rua da Marinha (2012), de Éder Nascimento
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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BELÉM ULULANTE Múltiplas narrativas contra-hegemônicas figuram nestes e em outros trabalhos presentes na Amazoniana, como na Coleta do Orvalho e em outras performances do Grupo Urucum, de Macapá; e ainda nas obras de Thiago Martins de Melo, Dirceu Maués, Patrick Pardini, Raquel Stolf, Victor de La Rocque, Rubens Mano e Roberto Evangelista, este último com seu manifesto fílmico ecológico Mater Dolorosa – In Memoriam II, vai abordar ancestralidades e violência – esta que nunca deixou de acontecer nesta zona equatorial. Alexandre Sequeira, Maria Christina, Jorane Castro, Cláudia Leão, Luciana Magno, Patrick Pardini, Rubens Mano, Danielle Fonseca e Oriana Duarte partem de vivências em lugares específicos para construir suas narrativas no mergulho da experiência. Duarte montará sua instalação Barco em plena feira do Ver-o-Peso e tomará sua sopa de pedra. Assistir ao vídeo da performance no Gabinete de Souvenirs, Sopa de Pedra nos dá a dimensão de uma Belém ululante dos anos 1998. Numerosos experimentos em que a imagem ainda aciona afetos, memórias e histórias. Melissa Barbery consVOL. 10 / N. 49
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O Açougueiro - Auto-retrato com Alcatra (2013), de Victor de La Rocque
trói um jardim de objetos luminosos para discutir o consumo e o descarte da natureza; Roberta Carvalho projetará os rostos dos ribeirinhos na paisagem, paisagem atravessada e também ressignificada em imagens como nas desenhadas por Acácio Sobral sobre fotografias e em mini-instalação de Val Sampaio, O Jogo, ou Para Que Servem os Amigos? Talvez uma dica esteja no objeto, copo americano de Armando Queiroz, que convida o visitante com seu título: Aparelho para Escutar Sentimentos, que eclodem nas imagens de Elza Lima, Octávio Cardoso e Luiz Braga, que revelam facetas diversas dos povos deste lugar em cenas que implicam respeito e cumplicidade. Finalizavam esse conjunto de mostras as sessões de Invisíveis Prazeres Cotidianos, de Jorane Castro, no Cinema Olympia – o mais antigo em funcionamento no país. O filme reuniu blogueiros para tentar recompor uma cidade da memória por meio de fragmentos e pedaços de olhares alheios. Afinal, Somos Todos Invisíveis, clama o led em vermelho de Keyla Sobral, não somos?! Agora não dependemos
mais de olhos para nos protagonizarem, fazemos nós mesmos o nosso levante, nossa visibilização. Silenciosa, a frase ecoa e reverbera no rebatimento de sua luz vermelha sobre outras imagens que gritam como as obras de Milton Guran, Anna Kahan, Sávio Stoco, Paula Sampaio, Éder Oliveira e Nayara Jinknns, que reencontram outras de Victor de La Rocque, Nina Matos e Luciana Magno, que revisitam as imagens de viajantes; Danielle Fonseca, que surfa num piano, e Paulo Meira, que atravessa ilhas e costura memórias em cabeças de peixe. Podemos ver como Marise Maués surge imponente no meio de um igarapé, onde fica imóvel durante cerca de sete horas, testando ali o limite do próprio corpo, acompanhando o ritmo da cheia e da vazante, seu corpo-rio, seu corpo-floresta, seu corpo-tempo; ou como Juliana Notari também apresenta esse corpo-limite numa performance realizada na Ilha de Marajó, onde é amarrada num búfalo e segue sendo arrastada por ele numa praia e, no dia seguinte, como momento mais pungente, come o testículo cru do animal que foi castrado. Também em situações que tensionam limites, temos Rafael Matheus Moreira, com seus retratos de travesti, e Giuseppe Campuzano e Carlos Pereyra, com performances orientadas para a fotografia Dolorosa, para além do corpo normatizado, o re-corpo. Ainda há a participação de obras bastante significativas para a construção de narrativas, como o trabalho de Oswaldo Goeldi, Kurt Klagsbrunn, Aloísio Carvão, Osmar Dilon e Jair Júnior, chegando ao Zero Cruzeiro, de Cildo Meireles e O NÃO PAÍS – Adita-Adura, de Cristovão Coutinho, que emociona, porque é forte e atual: uma bandeira brasileira onde se nota a ausência do círculo azul que representa os estados, juntamente com a frase Ordem e Progresso, como se anunciando tempos sombrios, tempos cheios de tensão, tempos irreversíveis?! Trata-se de um chamamento para um despertar, para uma reação, um vestígio de um levante futuro em uma obra concebida em 1985. Nestas obras, diversas facetas de olhares para a região em imagens, que implicam respeito, cumplicidade, tomada de posição. Há artistas colaboradores cujas presenças se repetem, seja em novas proposições, seja em obras, como Armando Queiroz e Marcelo Rodrigues, Jair Júnior, Nayara Jinknns, Luciana Magno, Marise Maués, Octávio Cardoso, Paula Sampaio e Keyla Sobral, dentre outros, bem como novos participantes, entre os quais Pablo Mufarrej, Margalho, Marcone Moreira, Bené Fonteles, Flavya Mutran, Emmanuel Nassar e Marinaldo Santos, que se dedicam a pensar intensamente sobre memória, história e cultura neste território. FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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Acima, Uiaras Defendendo o Paraíso (2019), de Rafael Matheus Moreira; na pág. ao lado, Eu, índia (2019), de Elieni Tenório
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EXISTÊNCIA-RESISTÊNCIA O corpo e suas distensões performativas aparecem ainda nas obras da Cia. Moderna de Dança, nas de Emerson Pontes, com sua Uýra Sodoma, ente drag ecológica e nas Sereias Superzentai de Rafael Bqueer. Allyster Fagundes, Bianca Levy e Edivânia Câmara Ilundê performatizam e transcendem criaturas míticas. Guy Veloso traz com suas imagens insurgentes fé e fantasia, tal qual a fantástica história do pássaro de Walda Marques, com seus personagens de uma Amazônia surreal. No Deslendário Amazônico, múltiplos olhares somam-se em revisões e críticas e nos deparamos com o nosso próprio retrato, como no busto de Elieni Tenório, Eu, índia, em que a artista subverte a importância desse tipo de objeto escultórico para, em seu autorretrato, elevar a identidade de tantos indígenas e mestiços que habitam este ambiente. São diversas as obras que foram doadas a partir dessa exposição do projeto Arte Pará.
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A Amazoniana abarca entrecruzamentos, perspectivas e visões heterogêneas de uma região que é múltipla. Esse pluralismo que afirma a existência-resistência de um fazer artístico dentro da Amazônia, das variadas Amazônias. O que nos importa é esse fluxo e trocas de saberes, de um olhar pictórico, um olhar performático, como no trabalho de Rafael Matheus Moreira, que retorna à Amazoniana como outros, constituindo fluxos em seus processos de criação, a partir da reflexão sobre a emblemática pintura da Fundação de Belém. Nela, a artista apresenta o colonizador morto nos braços das Iaras, atingido pela flecha de uma nativa do paraíso em chamas, apresentando um corpo desobediente e político que tensiona o agora. O que faz com que essas obras tenham em comum com as teses, fotografias, livros de artistas no ]Arquivo[ Amazoniana? O que significa a Pedra de Raio, livro de artista de Ionaldo Rodrigues, que olha atentamente para estas bandas desta terra incógnita? Talvez nos lembre que é preciso arar o solo. O que se pretende com esse ambiente que ainda está fragmentado, dividido, é buscar unir-se em um lugar para tentar comportar algo que escapa, que não se comporta, que não cabe em arquivos digitais, mapeamentos e plataformas, e que é pensado para o outro, para o debate, a troca, a pesquisa. Isso passa por um processo coletivo de qualificação museológica por meio de parceria com o Projeto Tainacan e toda a sua equipe. Nesse contexto, ampliando a perspec-
tiva, temos a museóloga Paola Maués, bem como os estudantes Guido Elias, Moema Correa, Thais Palheta, Joel Silva e Letícia Carvalho, que se somam a tantos outros parceiros pesquisadores com quem estabelecemos trocas, como Bernardo Baia, Christian Bendayan, Carmen Palumbo, Danilo Baraúna, Marcela Cabral, Marisa Mokarzel, Paulo Herkenhoff, Rosangela Britto, Sávio Stoco, Susane Pinheiro, Tadeu Costa e Yorrana Maia. São diversos os ângulos em diversificadas visões sobre a Amazônia. O Bom Selvagem cansou de ser servil. Queremos apenas existir em nossos modos de vida. Os caraíbas pouco entenderão. O capitalismo não permite. Talvez fique aqui uma interrogação, o desejo de ligar, de pensar em toda essa potência de construção nas bordas do poder, para quebrar as práticas coloniais cotidianas, em um lugar que já teve poder, que não era o Brasil e que precisa se descolonizar. Assim, desnortear é preciso; afirmar que não há um único centro, e em meio a aproximações e discordâncias encontrar, entre fazeres e fricções, este lugar, com estas múltiplas Amazônias e construir um Comum. Quem sabe esse local de trabalho brabo e de sonho afetuoso seja a Amazoniana, um lugar do pensamento estando juntes.
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
PORTFÓLIO
Ensaio Boiúna, da série Mil [Quase] Mortos (2019)
U
UÝRA SODOMA:
NINA RAHE
A COBRA DAS ÁGUAS
AMAZÔNICAS DIANTE DA
DEGRADAÇÃO AMBIENTAL
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EM UMA QUARTA-FEIRA DE 2020, DURANTE CONVERSA POR VÍDEO, EMERSON PONTES DISSE À SELECT QUE LEVOU DOIS DIAS PARA CONSEGUIR ESCREVER A MINIBIO QUE DEVERIA ENVIAR À 34A BIENAL DE SÃO PAULO, PARA A QUAL FOI SELECIONADO. “Apesar de ser um
texto aparentemente trivial, demanda uma reflexão profunda sobre como você se apresenta”, diz. A complexidade, no caso, está associada a uma série de fatores, desde a sua ascendência indígena, que, embora declarada, é proveniente de uma etnia que Pontes não tem clara, até o fato de que ele assumiu artisticamente a persona Uýra Sodoma, um ser híbrido, cruzamento de conhecimentos científicos com os saberes ancestrais que, de forma simplificada, define como “a árvore que anda”, uma drag amazônica e “entidade em carne de bicho e planta”. Desde 2016, ela tem mesmo andado não só pelas ruas de Manaus, seu local de origem, como também por São Paulo, onde realizou uma performance na Avenida Faria Lima, durante participação no Prêmio EDP nas Artes, do Instituto Tomie Ohtake, e acabou estampando até mesmo a capa da revista Vogue. Para entender o DNA de Uýra Sodoma, no entanto, é preciso retornar à origem de Emerson Pontes, de 30 anos, que viveu até os 5 em Mojuí dos Campos, distante a três horas de ônibus de Santarém (PA). Apesar de o local ter se emancipado em 2013, tornando-se município, e já contar com mais de 15 mil habitantes, na memória de Pontes a comunidade onde cresceu resume-se ao povoado em torno de um igarapé com água limpa e muita floresta. Segundo o artista, inclusive, a figura de Uýra vem desse tempo, ainda que, só mais tarde, ele tenha se “transformado” nela. “Faz poucos anos que estou vivendo a consciência de que a Uýra existe, mas percebo que, quando tinha 5, ela já me habitava e já acontecia naquele instante uma investigação sensorial dos cheiros, das imagens e dos sons que existiam naquele local e que passam pela Uýra”, diz. “Hoje, a Uýra é um dos meus principais canais de comunicação. Eu me transformo e vou à rua, a diversos locais, tentando comunicar sobre o direito à vida e suas violações, que são coisas que me interessam a partir da ótica da diversidade de formas.” VOL. 10 / N. 49
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A memória da vivência na comunidade, onde via preguiças nadando na água e observava o cheiro e a textura da terra, e a posterior mudança para Manaus agora aparecem como contrastes evidentes na construção de Uýra Sodoma. Talvez por isso, quando questionado sobre seu fazer artístico, Pontes comece pela complexidade da capital amazonense, onde chegou após uma viagem de barco e viu prédios pela primeira vez. Uma cidade, de acordo com ele, de atravessamentos, metrópole de 2 milhões de habitantes no meio da Amazônia Central, imersa em água e, ao mesmo tempo, com quase todos os igarapés que a cortam poluídos, além de estar localizada no segundo estado que mais desperdiça água no país. “É uma cidade onde apenas 20% do esgoto é coletado e só 10% é tratado, que se construiu em cima de aldeias, em um modelo que apaga tradições para se instalar. É rica e tecnológica, mas tem um dos piores índices de saneamento básico do Brasil”, continua. MANAUS DE CONTRASTES
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CRIADA PELO ARTISTA EMERSON PONTES, UÝRA SODOMA MISTURA SABERES CIENTÍFICOS E CONHECIMENTOS ANCESTRAIS EM UMA EXPLORAÇÃO DA DIVERSIDADE DA NATUREZA E DA CIDADE
Ensaio Fogo, da série Elementar (2018)
FOTO: MATHEUS BELÉM
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São contrastes que, na pele de Uýra, estão nítidos. No ensaio Caos (2018), parte da série Mil [Quase] Mortos, por exemplo, Pontes escolheu o Igarapé do Mindu, situado sob a Ponte de São Jorge, como cenário para a realização de uma fotoperformance. A água poluída aparece em um contexto industrial, composto de grandes edifícios. Já a montagem coloca em diálogo uma saia de carimbó cheia de flores coloridas, extremamente limpa, com o lixo que se forma ao seu redor. No rosto de Uýra, ainda, estão uma espécie de caracol que vive em águas limpas e um caramujo africano, introduzido no país, gerador de doenças, e, em sua cabeça, folhas e plantas murchas. “Quero trazer o contraste entre a vida e o caos e explorar também essa imagem de que a vida é resiliente dentro desse ambiente”, diz. “Esses atravessamentos da cidade e da floresta são a principal base do meu trabalho.” Todas essas informações são reproduções de sua própria vivência. No bairro periférico onde cresceu em Manaus, não era incomum ver a chuva invadir as casas de palafita. Mas a água suja que corria das inundações, disseminando doenças, trazia também muitos bichos. “Lembro de encontrar sapinhos que nunca tinha visto e achava sensacional, ficava impressionado com aqueles animais.” Mais tarde, o artista, graduado em Biologia pelo Instituto Federal do Amazonas, iria desenvolver pesquisas científicas sobre a conservação de anfíbios e répteis amazônicos. “Mais que poder investigar a vida desses animais, também pude me inspirar bastante neles, porque os anfíbios possuem vida dupla, na água e na terra, além de uma série de defesas”, explica Pontes.
Ensaio Caos, da série Mil [Quase] Mortos (2018)
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À esquerda, Pipocas (2008), à direita, Pedra Roseta (1999) da série Baldios
“MANAUS É UMA CIDADE ONDE APENAS 20% DO ESGOTO É COLETADO, QUE SE CONSTRUIU SOBRE ALDEIAS, EM UM MODELO QUE APAGA TRADIÇÕES PARA SE INSTALAR. É RICA E TECNOLÓGICA, MAS TEM UM DOS PIORES ÍNDICES DE SANEAMENTO BÁSICO DO PAÍS”, DIZ O ARTISTA
FOTO: MATHEUS BELÉM
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Questões como a contaminação das águas e das florestas estão nas séries A Última Floresta e Mil [Quase] Mortos, ambas produzidas entre 2018 e 2019. Na primeira, focada no desmatamento, o artista explora os signos da devastação, como o fogo, que dá título à primeira sessão de fotos, tiradas na estrada de Iranduba, onde foi possível atear fogo em um mato seco. Já para o cenário de Terra Pelada (2019), Uýra invadiu um canteiro de obras que era resultado da destruição de vários hectares de mata nativa. Em Mil [Quase] Mortos, a discussão em torno da devastação das matas cede lugar à contaminação das águas, em uma investigação sobre os igarapés de Manaus, que até a década de 1960 ainda eram limpos. A escolha por realizar o primeiro ensaio, Caos, em um ponto central da cidade, a Ponte de São Jorge, foi também uma maneira de chamar atenção para um tema que aparece invisibilizado no dia a dia da metrópole. “É um igarapé que as pessoas nem olham mais. Está em total abandono e quem mora naquele local também vive a situação do abandono. Mas toda essa vida de antes, quase morta, continua se movimentando e tem uma série de espécies adaptadas a esse ambiente. É a resiliência dentro do caos”, diz. Outro trecho do mesmo igarapé, o do Mindu, também foi escolhido para a continuação desta série, com o ensaio que ganhou o nome de Boiúna (2019). Nele, Uýra Sodoma transforma-se – por meio de uma calda feita de folhas, com mais de 8 metros de comprimento – na grande cobra das águas amazônicas, um ser nobre que se torna impotente diante da degradação ambiental. RESILIÊNCIA DENTRO DO CAOS
No alto, ensaio Fogo, da série Elementar (2018); à dir., ensaio Terra Pelada, da série A Última Floresta (2019)
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FOTOS: MATHEUS BELÉM
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Ensaio Lama, da série Elementar (2017)
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Quando começou suas performances, o artista tinha como preocupação a difusão da consciência ecológica e ambiental. Por esse motivo, suas obras vinham acompanhadas de dados não apenas sobre a floresta, como também sobre saneamento básico, tratamento de esgoto, coleta de lixo etc. Mas, aos poucos, ele se desprendeu da informação – o que fica evidente na série Elementar (2017-2020), na qual foge do ativismo mais evidente de A Última Floresta e Mil [Quase] Mortos para realizar uma exaltação das belezas naturais, em uma exploração das formas de flutuação ou do encontro da água com a terra. O fogo, aqui, aparece não mais como denúncia de destruição, mas como acalento. Atualmente, o artista diz entender que o melhor caminho é integrar imagem e construção textual. E a narrativa, agora, relaciona-se não só com a floresta, mas com os seres que nela habitam. “Depois de seis anos dentro da ciência, pesquisando a vida, percebo que o bicho e a floresta não são somente objetos de estudo, mas o bicho é meu irmão e a floresta é minha avó”, diz. “Sempre tive a certeza de que a vida, em suas múltiplas formas, é muito sagrada, única e deve ser respeitada.” A performance de Uýra Sodoma, assim, é também uma contestação à heteronormatividade e um movimento para a inserção de corpos dissidentes. “Quando a Uýra surge, em 2016, eu já estava saturado e com muita fome, sede, de levar a pauta de conservação da vida para outros lugares e entendendo essa vida não somente como a vida do bicho, da planta, da floresta, mas da travesti, da preta, do periférico. A vida de modo amplo, mesmo.” FOTOS: KEYLA SERRUYA
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FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
RAFAEL
PORTFÓLIO
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PA U L A A L Z U G A R AY
É SOBRE DECOLONIZAR DISCURSO
BQUEER 47
OS E OCUPAR ESPAÇOS DE PODER
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O FUTURISMO AFRO-INDÍGENA, A CENA DRAG DE MONTAÇÃO E O TECNOBREGA, FENÔMENOS ESTÉTICOS DAS PERIFERIAS DE BELÉM E MANAUS, POVOAM AS PESQUISAS DO ARTISTA PARAENSE SOBRE SUA ANCESTRALIDADE AMAZÔNICA
BRASA ILHA (2018), do OPAVIVARÁ!, no Largo da Batata, em São Paulo, durante exibição da mostra URBE
Nesta pág., Pintura Néon Sobre Paisagem (2020). Na dupla anterior, Videoperformance Sereia (2019), da série Super Zentai
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QUANDO GABY AMAR ANTOS L ANÇAVA SEU PRIMEIRO DISCO-SOLO, TREME , LEVANTANDO UM TERREMOTO NA MÚSICA POP NACIONAL, R AFAEL BQUEER CURSAVA ARTES VISUAIS NA UNIVERSIDADE FEDER AL DO PAR Á (UFPA) E JÁ TR ABALHAVA HÁ QUATRO ANOS COMO A SSISTENTE DE CARNAVALESCO, EM BELÉM.
Mas naquele ano de 2012, o jovem artista também assinava seu primeiro projeto-solo na escola de samba Quem São Eles, com um enredo sobre o bairro do Umarizal. Esses três vértices – o tecnobrega, o Carnaval e a produção de conhecimento na universidade – são pilares da poética combativa e empoderada de Rafael Bqueer. Ao problematizar as narrativas hegemônicas, buscando superar processos coloniais, sua obra aporta para a arte contemporânea brasileira e paraense as visualidades afro-indígenas da região. Ele conta que Amarantos já era uma pop star no Pará muito antes de fazer sucesso na cena nacional. “Desde o início dos anos 2000, lembro dela como uma importante vocalista de músicas de tecnobrega e cantora de aparelhagens. Sempre com figurinos com motivos espaciais e futuristas”, diz Rafael Bqueer à seLecT. “A periferia de Belém tem essa estética, vem daí minha paixão por afroficção e afrofuturismo. Para mim, essa visualidade que remixa signos locais e globais está diretamente em diálogo com a arte contemporânea de países como Nigéria e Angola.”
AMAZÔNIA PRETA Se a educação é um instrumento de transformação, as pedagogias voltadas para relações étnico-raciais têm um papel constitutivo para os movimentos sociais negros da cidade de Belém. Nesse sentido foram influência decisiva na formação de Bqueer os textos da feminista e professora emérita da UFPA Zélia Amador de Deus sobre ancestralidade afro-indígena e relações afrodiaspóricas. “O ensino, além de voltado para a pluralidade de linguagens, me deu uma formação decolonial, me localizou para pensar teoricamente uma Amazônia preta e para pensar politicamente a minha condição quilombola”, diz ele. O caminho de busca de uma identidade ancestral fez-se por meio da construção da própria imagem. Na imagem de um corpo que se afirmava no lusco-fusco néon das festas de aparelhagem, ou na construção de situações (afroficções) para performar a sua subjetividade. O corpo negro performático, abordado nas pesquisas de Zélia Amador de Deus como ferramenta de resistência e construção de discursos, é vestido por Bqueer nas “montações drag” da cena noturna de Belém. É de onde surgiu Uhura Bqueer, “a panterona afrofuturista e intergaláctica do Pará”, que toma emprestado o nome da única personagem negra do seriado de tevê Star Trek. Plugada nas pirotecnias de uma Amazônia made in China, síntese e mistura de Gaby Amarantos, Grace Jones e Vera Verão (a personagem televisiva de Jorge Lafond), Uhura Bqueer premiou Rafael como a primeira Rainha Drag-Themônia da festa Noite Suja, em 2014, e mais tarde com o Prêmio Foco ArtRio 2019, uma das portas de entrada para jovens artistas no circuito de arte sudestino. FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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À esq., da série Super Zentai, Sem Título (EAV Parque Lage, 2019). Acima, Uhura Bqueer em ação na noite de Belém
AFROBAFO Arte, política, teoria decolonial e festa se combinam de forma explosiva na obra de Rafael Bqueer. Mas esse consistente corpo de pesquisa não acontece de forma isolada: está conectado a uma rede de muitxs outrxs artistxs, pensadorxs e performáticxs que se organizam em famílias e coletividades. Como as Themônias, grupo de estudos sobre a monstruosidade, que agrega cerca de 200 integrantes em Belém e Manaus, ou as Monstrxs, de Salvador (BA), apontadas por Bqueer como “outra importante cena drag rica de ações políticas e de visualidades contra-hegemônicas”. No debate “choque de monstrxs”, organizado por Uhura Bqueer no Goethe-Institut Salvador, em outubro de 2020, celebrou-se o encontro entre essas duas importantes cenas de montação, arte e política LGBTQIA+ do Norte e Nordeste. Foi um papo de manas. “Eu gosto muito de investigar essa invasão dos colonizadores, que nas travessias do Atlântico criavam as imagens de monstras, as monstruosidades”, disse Uhura no evento. “Na floresta, a gente fica tentando imaginar que seres habitam ali. É um mistério. Então, as Monstrxs existem há séculos, as Themônias existem há séculos, lutam e resistem há séculos contra a violência do Cristianismo, contra violências seculares do colonialismo europeu.” Premiado no início de dezembro com a Bolsa de Fotografia Zum/IMS 2020, Rafael Bqueer realizará com o coletivo Themônias um filme curta-metragem e cinco performances. Ainda dentro do escopo da pesquisa sobre a ancestralidade e a contemporaneidade de corpxs dissidentes, e o atravessamento cultural que nelxs opera, o artista desenvolveu a série Super Zentai de objetos-performance, em citação à prática fetichista e aos super-heróis japoneses. Em obras como Sex Ranger – Super Zentai (2017), Sem Título (EAV Parque Lage, 2019) e Pintura Néon Sobre Paisagem (2020), ele faz do corpo uma zona de anonimato. Na anulação da identidade com o corpo coberto de lycra, afirma o sufocamento que advém da invisibilização das narrativas afro-indígenas. Em Sereia (2019), videoperformance mostrada no salão Arte Pará 2019 e que hoje integra o acervo da Coleção Amazoniana, com curadoria do artista e professor Orlando Maneschy, Bqueer ecoa um lamento pela destruição do meio ambiente. Em sua languidez e agonia, a sereia futurista amazônica nada a seco na direção do observador, abraçando-o e ameaçando-o com sua doçura e monstruosidade.
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Fotografia da sĂŠrie Jogo do Bicho (2020)
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DEMONIZAÇÃO DA CULTURA Em 2016, Rafael Bqueer aterrissou sua nave espacial no Rio de Janeiro, para trabalhar no G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro e ocupar os espaços de poder da arte contemporânea. Começava aí um período de intensa atividade nos mares do Sul, participando de diversas residências e exposições. Foi finalista do prêmio EDP nas Artes do Instituto Tomie Ohtake, em 2018; selecionado pela EAV Parque Lage para uma bolsa de residência na AnnexB, em Nova York, e indicado para a 7ª edição do Prêmio Marcantonio Vilaça.
Atualmente, vive e trabalha entre o Rio de Janeiro e São Paulo e ainda se autodefine como carnavalesco, além de drag queen, ativista LGBTQIA+ e artista. “Se você pensar que 90% dos carnavalescos do grupo especial do Rio hoje são brancos, acadêmicos, qual o lugar do corpo negro na escola de samba? Na construção da cidade?”, indaga em vídeo produzido pelo Prêmio Foco ArtRio. A experiência no Rio de Janeiro vem reforçar sua crítica sobre a visão histórico-colonial do corpo negro e indígena, “muitas vezes visto como ausente de subjetividades e entregue a uma visão extremamente estereotipada e exotizada”. Na série de fotografias Jogo do Bicho (2020), atualmente na mostra Casa Carioca, no MAR, Bqueer reconfigura as questões colocadas na série Super Zentai, sempre com uma bem-vinda dose de humor, ao expor corpos mascarados de bichos, sem identidade própria. “Pensar o imaginário do subúrbio com uma perspectiva crítica contra a exotização dos corpos negros é o que o trabalho propõe.” Integra ainda o corpo de obras de temática carnavalesca Alice e o Chá Através do Espelho (2014), que reencena um momento épico do Carnaval carioca: o ator Jorge Lafond interpretando Alice, no abre-alas da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, em 1991, no desfile Alice no Brasil das Maravilhas. No deslocamento da Marquês de Sapucaí, passarela máxima de exaltação e exotização do corpo negro, para os lixões e a violência da periferia de Belém – do luxo ao lixo –, o artista quando (mais) jovem já anunciava a que vinha. Esta maneira de Rafael Bqueer samplear a cultura de massa hegemônica, distorcendo-a e contorcendo-a de modo a afrontar a normatividade até ela sangrar, talvez seja o que a artista Flores Astrais se refere ao dizer que “hoje entendemos as Themônias como um movimento artístico e cultural de demonização da nossa cultura”. Demonizar como estratégia política de sobrevivência.
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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LEONA VINGATIVA: NARRATIVAS CONTRAHEGEMÔNICAS E VIRALIZAÇÃO PERFIL
LEANDRO MUNIZ
CANTORA, ATRIZ E UMA DAS PRIMEIRAS YOUTUBERS DO BRASIL, A ARTISTA PARAENSE INTEGRA CRÍTICA SOCIAL, CULTURA TRAVESTI, APARELHAGEM E PARÓDIAS DA MÚSICA POP INTERNACIONAL VOL. 10 / N. 49
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STILL DO DOCUMENTÁRIO LEONA VINGATIVA, O FILME. FOTO: CORTESIA CLARA SORIA
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NO FIM DOS ANOS 2000, UM GRUPO DE CRIANÇAS DA PERIFERIA DE BELÉM REENCENAVA TRECHOS DE NOVELAS MEXICANAS, GRAVAVA COM O CELULAR E PUBLICAVA NO YOUTUBE. LEONA VINGATIVA, NA ÉPOCA LEANDRO DOS SANTOS, TINHA QUASE 10 ANOS E JÁ VIRALIZAVA COM SUAS ATUAÇÕES E COM A DECLAMAÇÃO DO SEU NOME.
“Meu nome é Nati Natini Natiê Lohanny Savic de Albuquerque Pampic de La Tustuane de Bolda, mais conhecida como Danusa Deise Medly Leona Meiry Cibele de Bolda de Gasparri. A mulher jamais falada. A menina jamais igualada. Conhecidíssima como a noite de Paris. Poderosíssima como a espada de um samurai. Eu sou apertada como uma bacia. Eu sou enxuta como uma melancia. Tenho dois filhozinhos, um zolhudinho, outro barrigudinho. Casei com o dono da Parmalat. Virei mamífera. Só mamo. Pertenço à família imperial brasileira Orleans e Bragança. Penetração difícil. Eu não sou a Graziele do corpo dourado, eu sou a Leona da cor do pecado.” Leona foi proibida judicialmente de produzir vídeos por quatro anos, devido à idade e aos conteúdos de seu canal, voltando às redes por volta de 2016, como cantora e atriz. Daquela ação inicial com seus amigos mantiveram-se o modo de operar com paródias, remixes e deboche, o baixo orçamento e a alta energia.
À dir., cartaz do minidocumentário Leona Vingativa - O Filme (2019); nas próximas págs., cena do projeto apresentado no IMS Convida, e frame do filme, documentando apresentação da artista na Avenida Paulista, em SP
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DESCENTRALIZAÇÃO DA INTERNET Se hoje os youtubers são um fenômeno generalizado, naquele momento seus canais eram uma atividade pouco experimentada, especialmente por crianças, que hoje usam (ou são usadas) na exploração do potencial econômico da plataforma. Também chama atenção a possibilidade de descentralização que a internet proporciona, sendo a viralização dos vídeos de Leona Vingativa e seus amigos um exemplo claro das hipóteses da artista alemã Hito Steyerl sobre as “imagens pobres”. Para a autora, há simultaneamente um aspecto democrático e conservador na alta circulação de imagens de baixa resolução que são continuamente reelaboradas. Experiência que ganha contornos específicos no Brasil, em especial vinda de uma artista da periferia de Belém do Pará.
A reencenação de novelas mexicanas, por um lado, é um sintoma da estereotipia da cultura de massa e seus aspectos colonizadores. A estrutura codificada dessas narrativas e características classistas, por vezes sexistas e racistas, no entanto, ganha nuances quando aquele grupo de crianças do bairro do Jurunas, um dos mais populosos de Belém, passa a embaralhar lugares de gênero e classe. A viralização de seu trabalho também coloca em questão o poder de disseminação da imagem, ainda que a estrutura material de seus vídeos evidencie as assimetrias econômicas e a má distribuição de renda. O impulso inicial de reencenar as novelas também pode ser compreendido como uma forma de elaborar e metabolizar aquelas narrativas hegemônicas. Mas, em um segundo momento, quando Leona Vingativa começa sua trajetória na música, esse procedimento de reencenação passa a ser usado como estratégia crítica.
CARTAZ DO DOCUMENTÁRIO LEONA VINGATIVA, O FILME. FOTO: CORTESIA CLARA SORIA
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DEBOCHE Ao observar seu conjunto de músicas e clipes, é fácil perceber a pressão de diversas experiências sociais. Desigualdade econômica, religião, travestilidade, sexualidade, racialidade, precariedade, trabalho, política, somados à falta de saneamento básico, como os lixões a céu aberto, comuns na periferia de Belém. O deboche opera aqui como elaboração crítica de todos esses problemas inter-relacionados e como proposição de saída pelo bom humor. Sem preocupação de encaixar as traduções e versões nas métricas das músicas originais, Leona parte de hinos da Copa do Mundo, canções de Anitta, Gaby Amarantos ou do Daft Punk para produzir seu repertório, misturando pop e aparelhagem, pajubá e carimbó. Além das críticas sociais, há indicações bem-humoradas sobre o uso de preservativos ou o descarte adequado de lixo. Há autoironia, inclusive, com comentários debochados sobre a própria construção dos vídeos no final de cada um, mostrando erros de filmagens e acidentes de percurso. A metalinguagem também é um recurso usado quando, nos clipes, a personagem Aleijada Hipócrita, que aparece nas reencenações iniciais, ressurge cumprindo outros papéis. Ou quando, já adulta, Leona dá continuidade às
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narrativas que encenava quando criança, mas agora com roteiros autorais. Essa miscelânea, que encontra sínteses próprias na trajetória da artista – pela especificidade de sua experiência com a cidade de Belém, as periferias, o meio ambiente, a travestilidade, a raça, a ostentação etc. –, pode ser compreendida como um traço da cultura brasileira de um modo mais amplo, da música comercial à arte contemporânea. Sua história foi contada na peça Leona Vingativa – O Espetáculo (2019), de Tiago de Pinho, e no minidocumentário Leona Vingativa – O Filme (2019), de Clara Soria e Hugo Resende. Ambos os títulos aprofundam a reflexão sobre a autoexposição e a ostentação, assuntos tão discutidos em sua música como afirmação da presença de pessoas trans na cultura mainstream. Em 2016, a artista apresen-
tou uma performance no Ateliê397, na exposição TransAmazônica, com curadoria de Adler Murada, e, em 2020, ela participou do programa IMS Convida, mostrando os interesses do meio de arte em sua produção, assim como sua amplitude de circulação. “A internet é minha história, o YouTube é minha vida, a web sou eu”, disse em entrevista para o Instituto Moreira Salles.
FRAME DO PROJETO NO IMS CONVIDA / STILL DO DOCUMENTÁRIO LEONA VINGATIVA, O FILME. FOTO: CORTESIA CLARA SORIA
PARA HITO STEYERL, HÁ SIMULTANEAMENTE UM ASPECTO DEMOCRÁTICO E CONSERVADOR NA ALTA CIRCULAÇÃO DE IMAGENS DE BAIXA RESOLUÇÃO
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A POLÍTICA Embora tenha uma circulação midiática relativamente alta, há poucas análises críticas sobre sua relevância para além das entrevistas anedóticas e textos informativos. Na análise Leona Vingativa: Explicitamente Política, o pesquisador Álvaro Andrade discute como a política é uma linha que conecta toda a sua prática, em clipes, comentários sobre problemas locais ou mesmo vídeos de panfletagem, em defesa ou crítica de certos agentes. Na esteira de outros artistas que passam a atuar no campo da política, Leona foi candidata a vereadora em 2020, mas não foi eleita. Em seu texto, Andrade aponta como o sobrenome Vingativa foi suprimido da campanha, como forma de evitar tensões e ambiguidades. Fica a pergunta sobre quais estratégias e efeitos de sua ação no campo cultural – o deboche, a liberação, a mistura – seriam aplicados nas leis e projetos diretamente sociais.
P R OJ E T O
SELECT.ART.BR
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#FLORESTAPROTESTA SELECT INICIA UM PROJETO DE ARTE E POLÍTICA, CONVIDANDO ARTISTAS A PRODUZIR PÔSTERES EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE. O ARTISTA MATO-GROSSENSE GERVANE DE PAULA INICIA A SÉRIE
A PALAVRA É UM ELEMENTO-CHAVE NA OBRA PICTÓRICA DO MATO-GROSSENSE GERVANE DE PAULA (CUIABÁ, 1961). A frase “arte aqui eu mato” é título e enuncia-
do da pintura apresentada no 36º Panorama da Arte Brasileira – Sertão, em 2019, estampando um homem branco carregando uma espingarda e a pele de uma onça pintada. “Minha obra carrega uma relação muito forte com o meio em que vivo, no centro geodésico da América do Sul, dentro de três ecossistemas: Cerrado, Floresta e Pantanal”, declara o artista em texto publicado no catálogo de Sertão. Gervane de Paula é o primeiro artista da série #florestaprotesta, com o cartaz Não Verás Floresta Nenhuma (2020). O projeto acontece ao longo de todo o ano de 2021, convidando artistas a elaborar trabalhos no formato de pôsteres e flyers, com mensagens sobre a floresta. #florestaprotesta também tem entre suas referências o projeto It’s Urgent!, coordenado pelo curador Hans Ulrich Obrist. Desde 2019, ele convidou mais de cem artistas contemporâneos de todo o mundo para responder, na forma de cartazes, a pergunta do que é urgente em nosso tempo. As respostas cobriram temas relacionados a ecologia, desigualdade, solidariedade, futuros coletivos, antirracismo e justiça social, entre outros. Com este projeto, seLecT alinha-se ao campo da gráfica de protesto – presente em periódicos, zines, cartazes, bandeiras e panfletos –, na luta contra o obscurantismo e os discursos de ódio. A ideia é expandir as ideias dos artistas para outros espaços, fazendo-as circular em nossas páginas e nas redes.
Não Verás Floresta Nenhuma (2020), Gervane de Paula
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
CURADORIA
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E NCO N TRO DA FL ORE STA C OM A C ID AD E, O MERCADO PARAEN SE IN SPIRA N OS ART ISTAS D IRCEU Q UEIRO Z
SELECT.ART.BR
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MAUÉS, UM
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PROLON GAD O
FOTO: CORTESIA GALERIA FORTES D’ALOIA & GABRIEL
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LONGA
EXPOSIÇÃO
NINA RAHE
O ROMANCISTA DALCÍDIO JURANDIR VIA NOS BARQUEIROS PARAENSES, COM SUAS VELAS QUE SE LEVANTAM PARA O SOL, “O MISTERIOSO PODER DE TODO O INESPERADO ENCANTO DE BELÉM”. Em texto publicado em 1941, ele descreve:
“Os canoeiros, no amanhecer, levantam as velas para o sol. Houve na véspera uma grande chuva. As canoas entram na doca, atordoadas pelo vento e batidas pela maresia. As velas, agora pesadas e gotejantes, estão subindo magnificamente para o sol. É o Ver-o-Peso colorido de velas, cheio dos meus irmãos canoeiros da Baía de Marajó, do Salgado, do Tocantins. É o Ver-o-Peso, no amanhecer, quando as velas erguidas se enchem de sol e parecem crescer sobre os telhados da Cidade Velha como se toda a cidade, depois da chuva e da noite, acordasse para ver surgir o que todos os caboclos, o que todos os canoeiros esperam na sua vida de bubuia nas águas: a Cobra Norato que dorme debaixo da Sé”. Encontro da floresta com a cidade, centro de comércio de mercadorias do Baixo Amazonas e principal porto de chegada de produtos europeus no século 18, Sem Título o Mercado Ver-o-Peso, com todo seu(1988), encanto, reúne mais de mil comerciantes de Ivens Machado cadastrados, mas não só: junto a eles está também uma comunidade cativa de artistas que veem o local como memória constitutiva da cidade.
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TEMPO DILATADO “É um lugar meio mágico, como se o coração da cidade fosse ali”, diz Dirceu Maués, cuja relação com o mercado remete à infância. O fotógrafo lembra-se de quando precisava acordar no sábado cedo da manhã para acompanhar seu pai às compras. Foi nessa fase que começou a construir seus próprios brinquedos, a partir de materiais que encontrava, como as bandejas de isopor que viravam aviõezinhos. O fazer artesanal, de acordo com ele, corresponde às gambiarras que os trabalhadores do mercado fazem para resolver problemas cotidianos. Foi esse interesse pela manualidade, inclusive, que levou Maués de volta ao Ver-o-Peso na fase adulta, lançando-se no projeto de fotografar o mercado com câmeras pinhole, feitas com madeira, latas e caixas de relógios. Mas, para além da construção das máquinas – que causavam identificação e curiosidade –, o que interessou a Maués foi trabalhar a noção de um tempo que, no mercado, transcorria de outro modo. “As pessoas que trabalham no Ver-o-Peso têm uma relação muito forte com o interior e com a cultura ribeirinha, e quem vive no rio (e do rio) tem um tempo diferente. O tempo não é o do relógio, mas o da maré, do sol, da lua, algo mais conectado com a natureza e, de alguma forma, na feira há um pouco disso também”, diz.
Nesta página e na anterior, fotografias da série Ver-o-Peso pelo Furo da Agulha (2004), de Dirceu Maués
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Na série Ver-o-Peso pelo Furo da Agulha (2004), desenvolvida no decorrer de um ano, essa percepção aparece tanto no prazo estendido do projeto como impressa em cada uma das imagens. “É como se o tempo que eu procurava, mais dilatado, passasse para dentro do dispositivo fotográfico”, diz Maués, que programava a velocidade de abertura do obturador de acordo com a duração das cenas. O que se vê, agora, nas imagens de um urubu na ponta do barco ou de uma menina que se volta para a câmera é o resultado da tradução temporal de alguns movimentos: o quanto leva a parada antes de um voo ou o olhar curioso de uma criança. O envolvimento neste trabalho acabou, ainda, se desdobrando no vídeo Feito Poeira ao Vento, (2006), para o qual Dirceu produziu uma cobertura fotográfica de 360º do local. Para realizar o feito sem pausas, ele alternou o uso das câmeras – foram cerca de 40, com média de 30 poses cada uma, durante um período de quatro horas – e contou com a ajuda de amigos, que iam numerando as máquinas conforme as imagens eram tiradas. Os erros, os ruídos e os acasos capturados nessa ação ininterrupta – transpostos para o vídeo – se configuram justamente no que as imagens apresentam de mais potente. Em movimento, elas também são acompanhadas por um som que lembra as batidas de um barco a motor.
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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NOSSA SENHORA DO VER-O-PESO O envolvimento de longa duração é uma constante entre os artistas que se aventuram no interior do complexo do mercado. É o caso também de Nay Jinknss, que documenta o espaço há mais de uma década. Interessada inicialmente na arquitetura, nas cores quentes e nos contrastes de luz do local, a fotógrafa foi se interessando cada vez mais em documentar as pessoas. “Conseguia fazer imagens dos urubus, da torre, da Praça do Relógio, mas comecei a me questionar sobre o fato de que essas imagens não estavam levando nenhum retorno para a comunidade que estava ali inserida”, diz. Se, no início, suas fotografias retratavam usuários de drogas do local desde uma perspectiva distanciada, a câmera passou a ser utilizada para captar suas emoções, dores e amores. A artista atribui a mudança de postura ao período em que morou no Rio de Janeiro e percebeu que, fora de Belém, era tida como negra, identidade que antes não assumia para si. “Foi ali que entendi que era uma mulher negra e pensei: se só agora estou entendendo o que sou, de que maneira vou dialogar com a minha comunidade?”, lembra. “A minha cor, as tatuagens e o modo com que me expresso acabam me aproximando das pessoas do mercado e assim vou criando laços.” Os laços foram reforçados quando Nay Jinknss passou a utilizar o celular como instru-
A Última Ceia (2020), de Nay Jinknss
As Erveiras e sua Contribuição para a Memória do Conhecimento Tradicional (2019) e O Vendedor de Facas (2018), de Nay Jinknss
mento de trabalho, o que, além de ser menos intimidador, permitia que ela mantivesse os olhos em seus retratados. Agora é como se suas fotografias tivessem se deslocado de uma dimensão macro – a arquitetura e o espaço – para outra micro, o universo íntimo de cada um dos personagens. Em suas imagens, que possuem títulos como “Há mistério em quase tudo ou há muitos modos de enxergar” e “Quanto mais o fogo ardia ela dava gargalhada”, as narrativas se constituem na composição de cenas, colocando os retratados como atores e atrizes da sua própria história. “Tu já pensou em ser ator?”, ela perguntou a um deles, fazendo um convite para a encenação. “Se o coloco como um personagem, afasto a visão de que é apenas um drogado”, diz a artista. Em suas incursões pelo Ver-o-Peso, ela já pediu para que interpretassem Nossa Senhora de Nazaré (“Hoje você vai ser Nossa Senhora e vai emocionar os paraenses”, disse a uma das modelos) ou Plácido, o caboclo que encontrou a imagem da santa às margens do Igarapé Murucutu.
FOTOS: NAY JINKNSS/ CORTESIA DA ARTISTA
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PONTO DE ENCONTRO ANCESTRAL A fabulação também está nos trabalhos que Armando Queiroz realizou no (e a partir do) Ver-o-Peso. O artista, que lembra de uma época na qual a cidade não tinha supermercados e o Ver-o-Peso assumia a função quase exclusiva no suprimento de alimentos e mercadorias, contou com os trabalhadores e frequentadores do local para produzir o vídeo 252 (2007). Nesse trabalho, os participantes leem os nomes das 252 pessoas que foram assassinadas no episódio que ficou conhecido como Massacre do Brigue Palhaço, quando, no contexto da Guerra da Independência do Brasil, em 1823, um grupo responsável por saques e outros casos de desordem acabou detido a bordo de um brigue no porto, bem em frente do Ver-o-Peso. Ali, confinados no porão dessa embarcação superlotada e sem ventilação – havia apenas uma fresta para a entrada de ar –, os prisioneiros entraram em desespero e, em resposta, a guarnição, além de tiros, lançou cal virgem sobre a pequena abertura. “Quando tive acesso à lista de mortos, meu interesse foi dar rosto a esses nomes e sugeri que os trabalhadores emprestassem imagem e voz como uma forma de homenagem”, diz Queiroz. “É muito significativo porque, se a gente pudesse dar um salto no tempo, muito provavelmente pessoas com características e vivências iguais às que emprestam seu rosto poderiam ser aquelas que foram assassinadas.” No processo para a feitura do vídeo – que contou com pequenas equipes incumbidas não só de recrutar participantes para a leitura, mas de explicar a eles o acontecimento e, assim, trazê-lo à tona novamente –, Queiroz foi abordado por um feirante que disse ser descendente de Eduardo Angelim, um dos líderes da Cabanagem, e possuir uma espada que teria pertencido a ele. O objeto acabou integrando a exposição Marcantonio Vilaça, em 2010 e, apesar de não ter sido comprovado como pertencente a essa época, o que interessava ao artista era justamente a possibilidade de reconstruir a memória em torno da Guerra dos Cabanos, que acabou esquecida pela história. “O simples fato de alguém acreditar que era uma espada cabana tinha muito mais força narrativa do que atestar se ela de fato era”, diz Queiroz. O artista, que possui uma série de trabalhos realizados no Ver-o-Peso – o texto citado no início desta curadoria foi usado em uma instalação sua –, já cobriu a estrutura do mercado com o desenho da silhueta do interior de uma lâmina de barbear. “Pensei na possibilidade de estender esse perfil para que o vermelho da lâmina pudesse novamente vascularizar aquelas instalações todas. Acho que havia um desejo de estratificação, de não só me revelar, mas de me relacionar com essas histórias outras do Ver-o-Peso”, explica. “Há algo de uma ancestralidade, desse ponto de encontro e de entreposto. Não é à toa que Ver-o-Peso é onde é.”
Da série Lâmina (2006), de Armando Queiroz
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FOTO: DAVID ALVES
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ CENTRAL GALERIA
A R T I S TA S V I A J A N T E S
FREDERICO FILIPPI E MAYA DA-RIN TRABALHAM NOS FLUXOS ENTRE CIDADE E FLORESTA, DANDO VISIBILIDADE ÀS CONTRADIÇÕES ECONÔMICAS, CULTURAIS E SUBJETIVAS
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ENVOLVIDAS NESSES PROCESSOS RELACIONAIS
DERIVAS
AMAZÔNICAS L E A N D R O M U N I Z E PAU L A A L Z U G A R AY
A BUSCA PELA ALTERIDADE É UM LUGAR-COMUM EM TODA A ARTE MODERNA. SE, AO LONGO DOS SÉCULOS 19 E 20, ARTISTAS EUROPEUS VIAJAVAM ÀS AMÉRICAS, À ÁFRICA, AO ORIENTE E À OCEANIA, FINANCIADOS PELO PODER COLONIZADOR, EM BUSCA DE NOVAS IMAGENS, O PROBLEMA GANHA NOVOS CONTORNOS NO SÉCULO 21 . Hoje é o artista das classes médias de grandes centros urbanos que
trabalha com populações historicamente oprimidas, que pesquisa singularidades antropológicas ou que parte em busca de experiências remotas. O debate sobre essas abordagens e as implicações dos diferentes lugares de fala envolvidos nessas ações estão na pauta do dia, tanto no campo da arte quanto no social. Mas o que acontece no embate entre esses diferentes agentes? Na Amazônia, território de invasões e violências contra populações indígenas desde o período colonial e de crescente desmatamento para exploração econômica, essa discussão ganha mais uma camada de problema, a do “extrativismo cultural”. Frederico Filippi e Maya Da-Rin são artistas que tratam desses fluxos entre cidade e floresta, visibilizando as contradições econômicas, culturais e subjetivas decorrentes desses processos.
Venus of Vlacke Bos (2012), de Nona Faustine VOL. 10 / N. 49
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Registros fotográficos produzidos por caminhoneiros das intervenções de Frederico Filippi em lameirões, para a série Seivas (2020)
FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
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Formado em Comunicação Social, Frederico Filippi nasceu em São Carlos (SP), em 1983, mas estruturou seu trabalho artístico sobre um movimento pendular entre o sair a campo e o voltar para o ateliê. Dadas as diferenças e particularidades das pesquisas, os caminhos de acesso à Amazônia, tanto para Da-Rin quanto para Filippi, deram-se pelas veias abertas da América Latina. Em uma residência realizada no Matadero Madrid, Filippi desenvolveu uma trilogia de trabalhos usando os metais que orientaram as invasões das Américas – o ouro, a prata e o bronze. Em uma espécie de ação a contrapelo dos métodos utilizados pelos conquistadores europeus sobre os territórios invadidos, o artista escolheu como estratégia a apropriação, a expropriação e a infiltração clandestina e não autorizada sobre monumentos, espaços comemorativos e centros de documentação. Direito de Resposta (2014) foi o título dado a essas intervenções realizadas diretamente sobre as matrizes dos discursos oficiais do “descobrimento”, na capital espanhola. O ouro volta agora à pesquisa do artista na série Seivas (2020), composta de pinturas de palavras colocadas em circulação em lameirões de caminhões. Na obra em
FREDERICO FILIPPI: O ARTISTA ENQUANTO INFORMANTE
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processo, o movimento é a matéria e o caminhão, signo do deslocamento. Com uma dimensão autocrítica, as palavras e as imagens falam da arte como trânsito, compreendendo suas assimetrias e contradições. Se o artista não cria raízes, posto que está em deriva constante, é a partir dessa experiência que ele propõe seu pensamento crítico. As palavras circulantes (Seivas) são Ouro, Mercúrio, Fogo, elementos que, segundo ele, são modificadores da paisagem e do meio ambiente. O trabalho acontece na estrada: a palavra mercúrio viajou de São Paulo à Amazônia, passando por Mato Grosso do Sul e Mato Grosso; o ouro foi de São Paulo a Salvador, atravessando a rota do ouro colonial; e o fogo rumou à Terra do Fogo, no sul da Argentina. O mercúrio é o metal utilizado na purificação do ouro extraído ilegalmente na Amazônia. Mas também reporta a atividade do artista enquanto informante.
O OURO, METAL QUE ORIENTOU AS INVASÕES DAS AMÉRICAS, VOLTA À PESQUISA DE FREDERICO FILIPPI NA SÉRIE SEIVAS, COMPOSTA DE PINTURAS DE PALAVRAS COLOCADAS PARA RODAR AS ESTRADAS NAS TRASEIRAS DE CAMINHÕES
Da série Direito de Resposta (2014), de Frederico Filippi, em que o artista opera uma estratégia de infiltração clandestina de folhas de ouro em páginas de livros da Biblioteca Nacional da España, em Madri
Em uma série de textos sobre os desafios do artista viajante, o crítico e historiador belga Marcus Verhagen discute a temporalidade da arte no mundo globalizado. Sendo a aceleração a norma desse contexto de fluxos, viagens e trocas incessantes, ele argumenta que sua intensificação acaba sendo uma maneira positiva de lidar com as desigualdades intrínsecas a esse sistema. Por outro lado, Verhagen aponta a desaceleração como saída conservadora, por vezes escapista e alienada. Portanto, cabe pensar como os artistas viajantes lidam com os deslocamentos, sem impor aos contextos visitados a velocidade do “colonizador”, ou expandir sua temporalidade de “sujeito burguês”. Capturamos o mundo de hoje não em lugares específicos, mas nos trânsitos entre eles, afirma o historiador.
CARNE DE CAÇA
Ao eleger a estrada como campo de ação, Filippi reporta-se, portanto, tanto às dinâmicas do mundo globalizado quanto a um período específico da história amazônica: a colonização por meio do projeto nacional-desenvolvimentista da ditadura militar brasileira. As estradas são rasgos na mata que deram acesso a invasões, saques, doenças e contaminações do solo, da água e das populações. O sentimento de desforra e reparação pode ser tomado como mola propulsora de suas pesquisas realizadas com “materiais de fronteira”, como a borracha e as carrocerias de veículos abandonados, lixo da civilização amontoado nos interstícios entre as florestas e as áreas devastadas. É nas margens que o artista aprofunda sua pesquisa sobre o arco do desmatamento, informando sobre como os ciclos econômicos e desenvolvimentistas influíram na transformação geofísica da paisagem.
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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Na série Carne de Caça (2019), Frederico Filippi pinta sobre fragmentos de carros queimados. O contraste entre as pinturas feitas com asfalto derretido, gerando uma geometria incerta – dada a enfática manualidade de sua fatura –, e as carcaças queimadas – material de fronteira – configura o choque temporal apontado por Verhagen. Esses objetos industriais, que assumem a condição de resíduos arqueológicos de tempos e ações extrativistas, produzem um embaralhamento entre presente, passado e futuro. “Grande parte da iconografia produzida pelos povos ameríndios, entre eles aqueles que ocupam a Amazônia há séculos, manifesta-se nas formas geométricas”, diz Filippi à seLecT. “Sempre fui impactado pelos padrões e repetições não só da pintura indígena, mas também da pintura rupestre. Há um certo transe na repetição da imagem.” Padrões geométricos repetem-se ainda nos geoglifos (marcas na terra) descobertos no sul da Amazônia, e visíveis a partir de observação aérea. “Acredita-se que esses geoglifos foram espaços demarcados de sociabilidade e de ordenamento dos deslocamentos, com entradas e saídas, que serviam tanto a fins práticos como espirituais”, escreve Filippi em Ensaio para um Movimento Cruzado – A Proliferação de Formas pelo Arco do Desmatamento na Amazônia. A relação do forasteiro Frederico Filippi com o território amazônico oscila, portanto, entre a arte, a arqueologia, a história, a política e a economia. Seu próximo passo é voltar a entrar lá de corpo presente e trabalhar com a comunidade de Igapó-Açu, entre Porto Velho e Manaus, na implantação de uma movelaria, engajando-se na ativação de um processo econômico autossustentável entre as populações locais.
Obras da série Carne de Caça (2019), de Frederico Filippi, composta de pinturas em fragmentos de carros queimados
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Deriva e observação são condições inerentes a toda a obra fílmica e instalativa da artista Maya Da-Rin. Nascida no Rio de Janeiro em 1979, graduada pelo Le Fresnoy – Studio National des Arts Contemporains, em Tourcoing, na França, e com mestrado em Cinema e História da Arte na Sorbonne Nouvelle, em Paris, a cineasta e artista tem o trânsito como parte de sua própria formação. Desde Margens (2007), filmado do ponto de vista móvel de uma embarcação que navega lentamente pelo Rio Amazonas, até A Febre (2019), o primeiro longa ficcional, passando por Terras (2009), Horizonte de Eventos (2012) e Camuflagem (2013), “os trabalhos nascem um do outro”, sucedendo-se como as águas de um rio e formando uma malha hidrográfica. A questão das diferentes temporalidades envolvidas nos processos relacionais com outros contextos, apontada
MAYA DA-RIN: FRONTEIRAS MÓVEIS
por Verhagen, também pode ser aferida aqui, já que em Margens a velocidade do barco determina a velocidade do filme. A câmera nunca sai do barco e os narradores são os viajantes que embarcam e desembarcam durante os dois dias e três noites de um percurso que parte da fronteira entre Brasil e Colômbia, em direção à cidade peruana de Iquitos. Na viagem, Da-Rin conheceu Basília, indígena da etnia Bora, natural de Letícia, na Colômbia. Uma de suas filhas era técnica de enfermagem. Da conversa com Basília nasceu a personagem Vanessa, do longa A Febre. A enfermeira Vanessa é a filha mais nova de Justino, o indígena Desana que protagoniza o filme. “Foi a partir desse encontro que nasceu o desejo de fazer um filme de ficção sobre uma família indígena que tivesse migrado para a cidade. Decidi fazer em Manaus, grande polo industrial no centro da floresta”, diz a artista.
Frame do curta Margens (2007), de Maya Da-Rin, filmado do ponto de vista móvel de uma embarcação que navega o Rio Amazonas
FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
Tematizar um indígena residente na periferia de Manaus sinaliza o interesse da artista pelos grupos sociais que sofrem nos trânsitos ilegais e clandestinos entre a floresta e a cidade. São recorrentes as longas e melancólicas cenas em que Justino aparece dentro do ônibus, caminhando na estrada ou em seu solitário trabalho como segurança de um porto de cargas, em Manaus. Que Justino trabalhe na vigilância de um local de entrada e saída de mercadorias que ele desconhece também indica uma crítica aos processos da globalização. O contraste entre a imaginação cosmogônica do indígena e sua rotina laboral automatizada indica que sua febre inexplicável é o sintoma de um grave desajuste civilizacional. O enfoque nos interstícios entre civilização e floresta também se revela nas dinâmicas entre as três línguas faladas em A Febre: o português, o tikuna e o tukano, línguafranca entre os povos indígenas do Rio Negro, falada nas aldeias urbanas formadas desde o século 18, por conta dos processos de catequização. Nos espaços públicos e urbanos, Justino fala português, enquanto o tukano é restrito ao espaço doméstico. “No vaivém de idiomas, não são só palavras que se alteram, mas os tempos, as pausas, os gestos corporais. Há todo um sistema cultural que é ativado com uma língua”, diz Da-Rin.
ENTRE A OBSERVAÇÃO E A VIGILÂNCIA
A Febre parte de um mesmo processo de deriva, de trabalhos documentais anteriores. “Passei dois meses vivendo em Manaus, sem saber direito o que estava buscando”, diz. “Foi nas caminhadas, nos encontros com as pessoas e os acontecimentos que as narrativas foram se formando.” O roteiro é fruto de dinâmicas coletivas com o elenco de indígenas, desencadeando uma correspondência entre os processos documentais e ficcionais de construção da realidade. A artista afirma que o uso da ficção lhe possibilitou descrever com liberdade o sonho e a experiência interior do protagonista, atendendo à inexistência de limites entre o real e o imaginário, própria do sistema de conhecimento dos povos indígenas. “Foi um processo no qual aprendi muito. O texto não é decorado, mas incorporado, é um conhecimento que está armazenado no corpo e não no papel”, diz. Se a deriva, a escuta e a observação são procedimentos da artista viajante, a vigilância é a questão de fundo em A Febre. Durante a noite, Justino é perseguido por uma criatura misteriosa. De dia, ele tem seu ofício vigiado pelos chefes e pelo “colega” de trabalho – um capataz de fazenda que rouba seu lugar. Podemos tomar essa condição da personagem como uma autorreflexão da autora sobre o próprio “lugar de fala” do filme e sobre seu poder – panóptico ou relacional – de produzir e disseminar imagens sobre contextos outros.
No papel de um vigilante de cargas do Porto de Manaus, Regis Myrupu protagoniza o longa-metragem A Febre (2019), de Maya Da-Rin, falado em português, tikuna e tukano
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ENSAIO
PARA
DECOLONIZAR 80
A BRASILIANA A ESTRATÉGIA CRIATIVA DE DENILSON BANIWA, ENTRE OUTROS ARTISTAS BRASILEIROS, DE EXIBIR EM SEUS TRABALHOS AQUILO QUE A BRASILIANA DE FATO É: UM CONJUNTO DE DOCUMENTOS DA CULTURA E DA BARBÁRIE INAUGURADAS COM O EMPREENDIMENTO COLONIAL M OAC I R D O S A N J O S
DENILSON BANIWA É ARTISTA INDÍGENA CONTEMPORÂNEO, NASCIDO NO INTERIOR DO AMAZONAS. Por
vários anos tem desenvolvido, sobre suportes diversos (pintura, performance, gravura, desenho, instalação), uma investigação crítica sobre a continuada violência – de Estado e de particulares – cometida contra os povos originários das terras que constituem o Brasil. Junto a um número crescente de outros criadores indígenas, tem formulado maneiras de resistir a exclusões seculares e de afirmar o direito de viver diferente. Entre seus muitos trabalhos recentes há uma série de intervenções gráficas e discursivas que faz sobre as ilustrações de um livro chamado Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, publicação que apresenta centenas de imagens feitas por artistas que vieram ao país, integrando expedições culturais ou científicas, a partir do século 16. Livro que reúne representações de tipos humanos, de cenas supostamente vividas e de espécies animais e vegetais encontradas no Brasil desde a colônia até o início do século passado. As intervenções de Denilson Baniwa, feitas com nanquim, são chamadas por ele de “rasuras”, pois VOL. 10 / N. 49
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riscam informações ali existentes e acrescentam outras novas, modificando os significados primeiros daquelas pranchas. Em uma delas, chamada A Catequização. Reescritura sob Perspect-Ativismo (2020), acrescenta traços e frases sobre a reprodução de uma pintura que descreve a pregação de um padre de batina para um grupo de indígenas despidos, que se aglomeram em torno dele: traços que, sobrepostos ao traje do padre, acoplam nele um pênis ereto; e frases, graficamente associadas às figuras dos indígenas, de rejeição àquela tentativa de captura de crenças. Intervenções que aproximam pregação religiosa de violação e catequização de epistemicídio. Em outra dessas rasuras, intitulada Não Há Cartografia no Mundo dos Pajés (2020), o artista escreve a frase-título do trabalho sobre um mapa dos rios da Amazônia feito no século 17 e desenha, sobre essa representação ocidental que divide territórios unos, a imagem do que parece ser um remo indígena decorado com grafismos – objeto que, disposto horizontalmente sobre a prancha cartográfica, articula e defende um complexo hídrico ocupado à força por estranhos.
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Não Existe Cartografia no Mundo dos Pajés (2020), de Denilson Baniwa, consiste em escritura e desenho sobre mapa dos rios da Amazônia feito no século 17
O QUE SE CONVENCIONOU CHAMAR DE BRASILIANA
Esta série de trabalhos de Denilson Baniwa é exemplo de estratégia criativa que artistas brasileiros diversos têm, cada qual a seu modo, explorado: escavar, em imagens de séculos passados que tematizam o Brasil, índices das violências formadoras e constitutivas do país. E que, transformadas, até hoje persistem. Violências contra os povos indígenas que habitavam as terras invadidas por europeus e contra pessoas negras trazidas à força da África e escravizadas no Brasil. Entre os artistas que partilham ou já partilharam, em vários de seus trabalhos, essa estratégia com Denilson Baniwa incluem-se, em listagem não exaustiva, Adriana Varejão, Ana Lira, Dalton Paula, Gê Viana, Jaime Lauriano, Rosana Paulino, Sidney Amaral, Thiago Martins de Melo, Tiago Sant’Ana e Yhuri Cruz.
Eles escavam imagens originalmente produzidas ou concebidas, em sua maior parte, por artistas estrangeiros, trazidos para a terra colonizada pelos donos do poder com o intento oficial de registrar a natureza e a cultura de um mundo em formação. Um mundo que mantinha traços de algo que existia antes de os colonizadores o in-
vadirem, mas que já incorporava radicais transformações em razão da própria presença deles ali. Essas representações da construção social do Brasil, feitas por aqueles chamados, usualmente, de “viajantes”, constituem parte importante do que se convencionou chamar de brasiliana – coleções de informações visuais (por vezes acompanhadas de textos) que tematizam o Brasil e que de alguma maneira refletem sobre a sua formação. Entre os mais conhecidos desses viajantes incluem-se Albert Eckout, Auguste Sthal, Frans Post, Jean-Baptiste Debret, Johan Moritz Rugendas, José Christiano Jr., Nicolas-Antoine Taunay, Theodore de Bry, Thomas Ender e Victor Frond. As imagens da brasiliana desvelam, com maior ou menor clareza, a gradual formação de um lugar de vida cindido e radicalmente desigual em termos do acesso que corpos brancos e não brancos possuíam a uma existência autônoma e resguardada. São representações que ora promovem a desumanização dos habitantes nativos das terras colonizadas, ora descrevem os africanos e afrodescendentes escravizados como homens e mulheres acomodados a uma posição subordinada e de subjugação ao coloFOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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nizador, com frequência minimizando não apenas toda a violência implicada no sistema escravocrata, mas a continuada resistência que aquela população oferecia a essa desigual distribuição de corpos. A normalização do olhar europeu sobre as regiões invadidas e colonizadas ultrapassa, porém, o próprio período em que foi materializado nas imagens que constituem a brasiliana, informando também a memória que, séculos depois, comumente se possui daquele período no Brasil. Memória atualizada por meio da reprodução acrítica daquelas cenas em livros escolares de história e em produtos culturais diversos, tais como exposições, filmes, telenovelas, propagandas, selos e cartões-postais, além de VOL. 10 / N. 49
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serem comumente estampadas em objetos variados de consumo, como roupas e calendários. Uma memória da qual foram apagadas muitas das brutalidades coloniais e, de modo ainda mais evidente, silenciada a continuada oposição a essa condição de abuso físico e mental. Memória seletiva que permite dominar o antigo colonizado mesmo após o término formal do colonialismo como ordem política. Memória que integra o que o sociólogo peruano Aníbal Quijano certa vez chamou de “colonialidade cultural”, resultado de um processo em que “a cultura europeia passou a ser um modelo cultural universal”, informando os modos de pensar, de agir e de lembrar dos habitantes de colônias e ex-colônias.
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INVESTIGAÇÃO CRÍTICA E VONTADE TRANSFORMADORA
Ao se apropriarem de representações do Brasil feitas por artistas europeus viajantes e extraírem delas significados novos, artistas brasileiros contemporâneos têm produzido uma crítica sobre a memória visual quase apaziguadora do país que a brasiliana oferece. E o fazem para mostrar como nela se inscrevem, de modos menos ou mais explícitos, as violências racistas que colonizadores europeus impuseram aos povos indígenas e aos negros e negras desde a invenção do país, causando danos graves a parcelas de sua população que até agora persistem. A relevância dessa estratégia artística para o Brasil contemporâneo pode ser também sustentada a partir daquilo que o filósofo alemão Walter Benjamin entendia ser a principal atribuição do historiador, estendendo-a aqui para esses criadores. Atribuição que une e enlaça investigação crítica do passado e vontade transformadora no agora.
A Catequização. Reescritura sob Perspect-Ativismo (2020), de Denilson Baniwa, intervenção sobre reprodução de pintura
Para o filósofo alemão, em Sobre o Conceito da História, “[a]rticular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma recordação tal como ela relampeja no momento de um perigo”. Momento de perigo que, no Brasil, nunca passou para os povos indígenas e para os descendentes de negros e negras escravizados. Mais ainda, diz ele: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Lembrar os mortos do processo de formação do Brasil – aqueles que sofreram as violências de sua criação e que são secularmente esquecidos e silenciados – seria, assim, função fundamental do historiador, mas também do artista, parecem argumentar os trabalhos comentados. Função que requer tomar de maneira radicalmente crítica a memória comum e assentada sobre o passado do país, informada por imagens e textos que ignoram ou domesticam aquelas brutalidades, além de escamotear ou diminuir as resistências impostas a elas. Uma memória “oficial” que não é natural ou imutável, mas feita de reminiscências que, diante da constante reiteração de abusos contra os “mortos” e contra os que deles descendem, podem ser atacadas e reconstituídas em bases distintas. Memória passível de ser refeita, arrancando, segundo Benjamin, “a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela” e permitindo que se imagine, para um tempo que ainda vem, outra distribuição de corpos no Brasil. FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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ASSUMIR O PAPEL DO HISTORIADOR
Para esses artistas, as imagens feitas pelos viajantes em tempos da colônia e do império no Brasil devem ser assumidas como registros indiciais da violência absoluta que colonizadores europeus (e seus associados e continuadores locais) perpetraram contra povos indígenas e a população negra escravizada. Em termos benjaminianos, esses artistas exibem, em seus trabalhos, aquilo que a brasiliana de fato é: um conjunto de documentos da cultura e, de modo simultâneo e inseparável, da barbárie inaugurada com o empreendimento colonial. Escrever a história no “sentido contrário” ou “a contrapelo”, como demandava o filósofo alemão, traduz-se, no presente contexto, na decolonização da brasiliana feita por esses criadores; no despegar-se de interpretações dessas imagens que não acolhiam a gravidade extrema de tudo a que elas se referem. É tarefa que requer considerar a brasiliana de novo, mas a partir do ponto de vista daqueles que aparecem nela como os vencidos, desafiando sua inscrição abrandada no cânone da história da arte. Tarefa que demanda expor os modos como essas cenas traem, para além do que seus criadores eventualmente desejaram mostrar, o cancelamento de possibilidades de vida antes disponíveis aos derrotados e as consequências duradouras dessa supressão violenta imposta pelos vencedores, pois “os que num dado momento dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes”. Projeto que vai além, todavia, da constatação de danos materiais e psíquicos impostos a tantos por tempo tão largo, afirmando também a incontornável responsabilidade de retomar e
O Arco e Flecha Reescritura sob Perspect - Ativismo (2020), rasura a nanquim sobre ilustração do livro Grandes Expedições à Amazônia Brasileira
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refazer, em outros termos, aquelas possibilidades negadas pelo que se entende por “progresso”. Ao assumirem, para si, o papel que Walter Benjamim atribuía ao historiador, esses artistas não se propõem, portanto, a meramente descrever o passado tal como ele teria supostamente ocorrido, prestando-se, sobretudo, a “fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, [a] inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente”, segundo Jeanne Marie Gagnebin em Walter Benjamin: Os Cacos da História. Apelo pela realização daquilo “que podia ter sido e que não foi”, como uma vez sintetizou, em outro contexto, o poeta Manuel Bandeira. É impossível saber, todavia, quão bem-sucedidas podem vir a ser essas estratégias de defender os mortos e animar os vivos. Não existem, afinal, quaisquer garantias de que aquilo que a arte oferece seja subjetivado politicamente e influencie, de algum modo relevante, os movimentos de uma comunidade em um indeterminado futuro. São, em todo caso, gestos e narrativas que, em um momento de tão intensas disputas simbólicas como têm sido as primeiras décadas do século 21, se somam a outros movimentos e construções em uma rede de resistências para lembrar, a qualquer um, as maneiras como aquelas violências passadas estão articuladas com violências presentes e nestas se transmutam. Para lembrar que existe uma violência colonial contemporânea, a qual deve ser confrontada sem subterfúgios por quem a ela se opõe, valendo-se, para isso, dos instrumentos que cada um dispõe para fazer uso.
ESTE TEXTO É EXTRATO DE ENSAIO INÉDITO DO AUTOR, DEFENDER OS MORTOS, ANIMAR OS VIVOS. AS QUESTÕES NELE APRESENTADAS SERÃO OBJETO DA EXPOSIÇÃO NECROBRASILIANA, A SER REALIZADA NA FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, NO INÍCIO DE 2021, COM CURADORIA DE MOACIR DOS ANJOS.
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
ESTUDO DE CASO
ANNA BELLA GEIGER O NATIVO, O ALIENÍGENA E O DESLOCAMENTO DA PERIFERIA PARA O CENTRO A diluição de binarismos na obra fundamental de Anna Bella Geiger
PA U L A A L Z U G A R AY
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Acima e na próxima dupla, Brasil Nativo/ Brasil Alienígena (1976/77), série na qual Anna Bella Geiger, na sua condição de mulher, branca e urbana, reencena rituais indígenas
FOTOS: LUIS CARLOS VELHO/ CORTESIA DA ARTISTA
“O centro não é simplesmente estático” (Circumambulatio, 1973)
O DESMONTE DA LÓGICA BINÁRIA É UMA DAS GRANDES CONTRIBUIÇÕES DAS TEORIAS QUEER E PÓS-FEMINISTAS ÀS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E COMPORTAMENTAIS EM CURSO HOJE, COLOCANDO EM MODO DEMOLIÇÃO REGRAS NORMATIVAS QUE POR SÉCULOS SUSTENTARAM A COLONIZAÇÃO DOS CORPOS.
Essas mesmas forças de desestabilização das lógicas de poder sobre corpos e territórios entraram em campo nos estudos de Anna Bella Geiger sobre o centro e as polaridades. Brasil Nativo/ Brasil Alienígena (1976-77) é um ponto de inflexão desse processo, quando toda a classe de binarismos, como a parte e o todo, o dentro e o fora, e eu e o outro, começa a se desequilibrar e se embaralhar. O trabalho é feito de nove pares de imagens, mas nem por isso fala de extremidades, ou de opostos complementares. De um lado, uma coleção de cartões-postais comprados pela artista em uma banca de jornal mostra cenas cotidianas e rituais de indígenas de diversas etnias – Bororo, de Mato Grosso; Suiá e Trumai, do Alto Xingu; Uaika, do Alto Rio Negro.
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No verso, lê-se “Brasil Nativo”. Do outro lado, temos as reencenações dos mesmos atos indígenas, realizadas pela artista, filhos e amigos, no contexto da cidade do Rio de Janeiro. No verso, lê-se “Brasil Alienígena... Com o meu despreparo como homem primitivo”. Aponta a crítica Estrella de Diego, no texto Sobre o Mito do Pertencimento – Outras Formas de Ser Feminista, para os usos do cartão-postal nas manobras de construção, dominação e invenção de mundos, a serviço de agendas colonialistas. Por trás dos estereótipos de uma vida idílica e intocada, adivinhava-se a política genocida que se infiltrava na Amazônia, nas rodovias abertas pelo regime militar. Ao analisarmos as fotografias dos Bororo, Suiá, Trumai e Uaika, fica claro que se trata de indígenas encenando seu papel de “nativos”, seja varrendo o chão em frente à maloca, dançando, manejando o pilão da mandioca, ou posando para a fotografia ao lado da freira católica. O que Anna Bella Geiger faz nas imagens do conjunto “Brasil Alienígena” é reencenar essas encenações, na sua condição de artista, mulher, branca, urbana: na calçada de um prédio modernista em Copacabana, no terraço do seu apartamento no Flamengo, segurando uma sacola de supermercado, acariciando um animal de estimação.
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ESPELHAMENTO E EMPATIA Entre os pares de imagens, um chama particular atenção: de um lado, uma índia Suiá sorri, observando a própria imagem em um espelho. Do outro, Geiger se debruça na direção de um olho d’água no chão, na pose ocidental clássica do Narciso contemplando a própria imagem. Nas imagens espelhadas das duas mulheres – uma com seu corpo e território ameaçados por invasões; a outra, com seus atos e gestos cerceados pela censura –, os reflexos de uma mesma opressão. Diluídas hierarquias nesses espelhamentos, nos perguntamos: quem aqui é o nativo? Quem o alienígena? “Os cartões-postais do ‘Brasil Nativo’ me trouxeram a pergunta: onde está o Brasil alienígena? E o que ocorre nesses dois Brasis, no nativo e no alienígena? Foi isso o que me motivou a criar a relação: a nossa falta do voto, a nossa falta de cidadania”, diz Anna Bella Geiger à seLecT. Pelo seu caráter desestabilizador de forças, Brasil Nativo/ Brasil Alienígena é um trabalho fundacional na trajetória da artista. A obra nomeia a exposição que esteve em cartaz no Masp e no Sesc, em 2019, e que em 2021 segue para o Smak Antuerpia. Ela dá continuidade às pesquisas sobre a relatividade dos conceitos de centro e periferia – Aqui é o Centro (1973) – e abre caminhos para as fotogravuras de mapas – Mapas Elementares (1976); Local da Ação (1979-80) – que colocam a América do Sul no centro e o Rio de Janeiro no centro cultural do mundo. Deslocado para o contexto de 2020, o trabalho adquire centralidade em discussões atuais relativas a diversidade, decolonialidade, crise ambiental, fake news e negacionismo. A imagem da vida pretensamente imperturbada das aldeias amazônicas, reproduzida nas bancas de jornais de um país censurado, está para os tuítes do Brasil de Bolsonaro: a Floresta Amazônica não está queimando. VOL. 10 / N. 49
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POR QUE NÃO SENTIR O AROMA? Mas outro elemento perturbador vem embaralhar as certezas sobre quem é o nativo e quem é o alienígena nesta história. Ele se chama Anna Bella Waldman. “Imagine que meu sobrenome é Waldman – o homem da floresta”, diz a artista à seLecT. “Quando me casei, em 1956, eu assinava Anna Bella Waldman, mas por essas coisas de hierarquias machistas, naquela época o nome de solteiro desaparecia e vinha o nome do marido... demorou para eu assimilar, mas comecei a assinar Geiger. Gosto do sobrenome Geiger, que significa violinista, mas não é a minha verdadeira face de uma Waldman, que é mais selvagem, que vem de dentro da floresta.” A espiral das derivas, das oscilações e das flutuações na obra de Anna Bella Waldman Geiger se completa quando, em outubro de 2020, ela volta à série em processo Rrose Sélavy, Mesmo (1997-2020). “As inserções de Rrose Sélavy em páginas de jornal eu já faço há uns 20 anos, quando as manchetes me trazem frases que podem ter duplo sentido”, diz. Colada sobre a fotografia de um indígena e sob a chamada “Febre da selva”, no segundo caderno do jornal O Globo, o alter ego queer de Duchamp e as “quase manchas” dos “quase mapas” de projetos anteriores são convocados para de novo provocar e desestabilizar nossas certezas sobre quem está no centro e quem está na margem. FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
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Na pág. ao lado, detalhe de Brasil Nativo/ Brasil Alienígena (1976-77). À esq., da série Rrose Sélavy, Mesmo (2020), exposta na coletiva Sempre É de Novo a Primeira Vez, curadoria de Marcus Lontra na Danielian Galeria, Rio, até 30/1
FOTOS: LUIS CARLOS VELHO / CORTESIA DANIELIAN GALERIA
L I T E R AT U R A
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SABERES ANCESTRAIS A CORDELISTA AURITHA TABAJARA DIZ ESCREVER COM AS VOZES DA TERRA, DA ÁGUA, DO VENTO, DA CHUVA E DOS ANIMAIS
NINA RAHE
DURANTE TRÊS ANOS E SEIS MESES, ENQUANTO FAZIA MAGISTÉRIO, AURITHA TABAJARA NÃO PERDEU UMA ÚNICA AULA. Nesse período, todos os dias, ela ia
transformando o conteúdo das disciplinas a que assistia em literatura de cordel. O resultado do processo está no livro Magistério Indígena em Verso e Prosa, que foi publicado em 2007 e adotado pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará como obra obrigatória nas escolas públicas. Mas a paixão por contar histórias, de acordo com a escritora, vem de muito antes, quando ainda estava na barriga da mãe. A afirmação é justificada pelo fato de sua avó ser parteira e uma das maiores contadoras de histórias do povo Tabajara. Foi ela, inclusive, quem escolheu o nome ancestral Auritha para chamar a neta, batizada oficialmente como Francisca Aurilene Gomes. E não só: por ouvir da matriarca a constatação de que “tudo passa”, a autora cresceu com a ideia de que, para que as outras gerações conheçam sua história, não é suficiente apenas escrever, mas necessário também publicar. Talvez por isso, desde que lançou seu primeiro livro, não tenha parado mais. Além dos folhetos Toda Luta e História do Povo Tabajara (2008), Diário de Auritha (2009), A Sagrada Pedra Encantada (2019) e A Grandeza Tabajara (2019), ela está para publicar o livro A Lenda do Jurerê, escrito em 2020, e conta com uma série de textos em antologias indígenas, como nas revistas Maria Firmino dos Reis e Acrobata.
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Concluir Corações na Aldeia, Pés no Mundo, seu segundo livro, que lhe rendeu o título de primeira escritora cordelista indígena, Auritha relembra, não foi nada simples. “Cordel é simples de ler e entender, mas não é nada fácil para escrever”, diz. “As pessoas não acreditavam que poderia fazer sucesso.” O lançamento só aconteceu com o incentivo de Daniel Munduruku, da Editora UKa, que sugeriu imprimir uma tiragem de mil exemplares como teste, para entender a aceitação do livro, que hoje está esgotado e ainda sem previsão para uma segunda edição. Adaptar-se a São Paulo, cidade onde passou a viver em 2009, também foi uma tarefa árdua. O ritmo acelerado da cidade bloqueava a escrita da cordelista, que estava acostumada a produzir sentada na areia ou na raiz de uma árvore. A dificuldade de encontrar trabalhos formais, ainda, marcaram os 11 anos em que viveu na metrópole, onde por muito tempo foi cuidadora de idosos movida pelo desejo de ouvir histórias diferentes das que aprendeu em sua aldeia. Auritha costuma dizer que a mulher indígena escreve com várias vozes: da terra, da natureza, da água, dos pássaros, do vento, da chuva, dos animais. As vozes ancestrais que, durante a pandemia, momento em que precisou retornar à sua aldeia – a 370 quilômetros da capital cearense –, se tornaram ainda mais próximas.
Peço aqui, mãe natureza Que nos dê sua licença, Em palavras transformar Os versos de tua essência, Neste momento urgente A floresta grita e sente O ardor da violência. O Brasil é um país De patrimônio ambiental, Se queimam toda floresta É a riqueza nacional, Crescendo o desmatamento, Visando o faturamento, Nosso ar ficando mal. O futuro será incerto, Desta nova geração nossos filhos, nossos netos Sem terra sem proteção, Sem plantas medicinais Os povos tradicionais, E toda população. Se ainda existe floresta, Porque somos resistência, Não estamos separados No sagrado, na ciência Riqueza é respirar bem Pense aí você também Bonito é ter consciência. Nosso berço de origem Nossa casa ancestral, Nossa verdadeira mãe, De uma força universal, É nosso bem planetário, Ninguém é proprietário É Morada espiritual.
Não apenas os que vivem nela, Pra toda sociedade A floresta representa O princípio da humanidade Dádiva do Criador O lugar dela é onde estou Para o mundo, necessidade.
Auritha Tabajara Sítio Boa Esperança 29/11/2020 Ipueiras Ceará
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E N T R E V I S TA C O L E T I VA
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CORRENTE AMAZÔNICA A PARTIR DE UM QUESTIONAMENTO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA VISUALIDADE AMAZÔNICA, SEIS CRIADORES, EDUCADORES E PENSADORES DO PARÁ, RONDÔNIA E ACRE CONFLUEM SOBRE TENSÕES E IMAGINÁRIOS VIVENCIADOS EM UM TERRITÓRIO PLURAL
MIGUEL CHIKAOKA
NESTA EDIÇÃO QUE DISCUTE A AMAZÔNIA A PARTIR DE SUAS FRONTEIRAS, QUESTIONANDO AS NOÇÕES DE CENTRO E PERIFERIA, OPTAMOS POR LANÇAR UMA DINÂMICA DE ENTREVISTA COLETIVA, ABORDANDO A FLORESTA POR MEIO DA PLURALIDADE DE QUEM A VIVENCIA E PEDINDO PARA QUE OS PARTICIPANTES ESCOLHESSEM A QUEM GOSTARIAM DE FAZER A PRÓXIMA PERGUNTA. Para iniciar
a corrente, convidamos o fotógrafo paulista Miguel Chikaoka, que fincou raízes em Belém, em 1980, e ali idealizou a Associação Fotoativa, a Agência Kamara Kó Fotografias e promoveu uma série de processos educativos. A partir de Chikaoka, a conversa seguiu adiante com Marcela Bonfim, que se mudou de São Paulo para Porto Velho (RO), onde passou a retratar a presença negra na Amazônia; Jaycelene Brasil, socióloga acriana que se dedica às questões de raça, gênero e classe e atua desde 2015 como professora; Camila Cabeça, produtora nascida em Belém, pesquisadora das culturas populares, com um projeto voltado para a educação patrimonial e uma das embaixadoras do Projeto Juntos pela Transformação, coordenado pela escritora Djamila Ribeiro; Priscila Duque, compositora, vocalista e performer paraense, cofundadora do grupo Carimbó Cobra Venenosa; e Roberta Tavares, quilombola da comunidade de Cravo (PA), poeta e mestranda em História pela UFPA, onde pesquisa a escravidão e a presença negra nas regiões quilombolas do Rio Bujaru. VOL. 10 / N. 49
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MARCELA BONFIM
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seLecT: Como a visualidade amazônica vem sendo construída dentro e fora do território? Miguel Chikaoka: Meu envolvimento direto e intenso nessa cons-
trução resulta numa teia de conexões que dificultam o distanciamento necessário para produzir uma leitura racional. É como estar no olho do furacão e querer saber sobre o seu tamanho e o caminho por onde ele segue. Minha visão resulta, portanto, de uma compilação de aspectos das leituras, com os quais concordo, produzidas por pesquisadores, curadores, pensadores e estudiosos, que abordam, com distanciamento e desenvoltura, os meandros desse processo. Em comum está a percepção de que a construção da visualidade amazônica se dá num cenário de dimensões continentais, diverso, complexo e marcado historicamente por projetos e processos de ocupação e exploração devastadores, seja no plano ambiental, seja no social e cultural. Muitos produtores culturais e artistas que atuam nesta cena tratam, de alguma forma, dessas tensões e como elas são vivenciadas no cotidiano. Isso se dá num movimento de reconhecimento, autoconhecimento e afirmação de identidades e, claro, de resistências permeadas por experiências que dialogam com a potência da sabedoria e do imaginário caboclo e ribeirinho, e da ancestralidade dos índios e negros, sem a qual não se pode pensar e trabalhar a Amazônia em toda a sua plenitude. Em certa medida, a visualidade amazônica desvela-se naquilo que emerge desse processo e pode ser percebida mais como um modo de sentir do que propriamente de demonstração racional. Miguel Chikaoka: Que conexões surgiram no seu processo ao desvelar a Amazônia negra? Marcela Bonfim: O próprio encontro com uma Amazônia da cor de
minha pele foi essa conexão, que me permitiu acessar lugares que nunca imaginei, fazendo da vivência um alinhamento diário entre o corpo e a ideia. Daí a consciência de imagem, esse pertencimento visual que passou a ser parte de mim. Foi aqui, em Rondônia, que percebi um sentido de vida mais próximo das minhas reais condições de mulher negra; e foi aqui também que percebi a necessidade de buscar o que ainda não conheço. “Você é barbadiana?” Eu nunca havia sequer ouvido falar sobre um barbadiano. Mas, andando de bicicleta pelas ruas da cidade, passei a ouvir com frequência essa pergunta, levantando a curiosidade de saber que imagena seriam aquelas associadas à minha feição. Assim conheci essa presença negra fundamental a Porto Velho, que se trata de uma grande diáspora vinda de muitas partes do Caribe, não apenas de Barbados, cuja primeira geração colaborou na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, entre 1907 e 1912. Percebi daí graves lacunas em minha existência, uma série de faltas na própria identidade, tendo FOTOS: ALE RUARO/ SAULO DE SOUSA
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como reflexo (subjetivo) o não pertencer a esse corpo, convivendo boa parte da minha história com a imagem da baixa autoestima. Sombras! Aos poucos, contornadas de encontros e reflexos dignificados com o Maranhão, com o Pará, com a Bahia, com o Ceará, com o Haiti, e tantos lugares que (re)conheço aqui, na tradução de potências e caminhos à flor da minha própria pele. A fotografia tem esse poder de conexão! Marcela Bonfim: Como se lida com as tantas fronteiras identitárias presentes nesta Amazônia acriana cheia de presenças e invisibilidades? Jaycelene Brasil: Nas confluências das várias histórias das nossas
histórias acrianas nortistas amazônidas, ainda invisibilizadas para muitas pessoas que vivem do lado de “cá”, e também para quem vive do lado de “lá” do Brasil, é que se agiganta o desafio de estilhaçar a presença do senso comum e o silêncio sobre quem somos e como vivemos, verdadeiramente, em um território rico em pluralidades. Segundo o pesquisador e professor Jorge Fernandes, a historiografia acriana registrou a presença nordestina no Acre, mas a presença de pessoas negras ficou em condição incógnita, especialmente por não haver evidências oficiais de serviços escravos nesta região. Nesse sentido, considerando o peso da colonialidade durante o processo de ocupação territorial, é que precisamos exaltar amazonicamente um povo que tem identidade e cor (somos 73% da população no estado do Acre, somatório de quem se autodeclarou preto e/ou pardo durante o censo de 2010). É importante registrar aqui também a existência das 16 etnias indígenas no estado. Precisamos caminhar na direção do movimento da “afrobetização” com a finalidade de lidar com essa invisibilidade histórica, ao mesmo tempo temos de potencializar a luta antirracista nas diversas ambiências: nas escolas, em casa, no trabalho, nas universidades, nas pequenas rodas de conversa, criando territórios de negritude numa proposta de descolonizar o pensamento. Nossa ancestralidade afro-amazônida precisa ser pesquisada e exaltada positivamente para o mundo, porque, certamente, atravessará o tempo e será contada.
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JAYCELENE BRASIL
CAMILA CABEÇA
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Jaycelene Brasil: Como desenvolver potências criativas em arte e educação patrimonial, considerando a diversidade amazônida? Camila Cabeça: Para a melhor formação do público que se pre-
tende, para ampliar a sensibilidade do seu resultado, é importante saber chegar não como os detentores da sabedoria e do conhecimento em um ambiente escolar ou de formação, mas como proponentes de soluções. Outra circunstância é trabalhar as formas da criação amazônica, sua natureza, sua composição identitária, suas histórias… sua patrimonialidade ampla e rica de referenciais afro e indígenas. Certa vez, quando dava aula no projeto Mais Educação, tive uma aluna que passava por um processo pesado de não aceitação de sua origem indígena, pois seu sobrenome Kaxinauá era usado por outros alunos para a prática do bullying. Para o processo de construção de estima e a troca da importância das coisas, eu a transformei em uma bailarina principal. Tudo mudou para melhor, a partir de então. Por isso que a arte no ambiente escolar é fundamental, pois, a partir do contato do aluno com as linguagens artísticas, ele começa a compreender que o caminho, mesmo com as rudezas da vida, passa a se tornar amplo de possibilidades. Precisamos, enquanto educadores, ter a noção de que estamos em concorrência desleal com o crime organizado, que coopta jovens potentes. E chegar primeiro, com os processos criativos de arte e patrimônio, para que ocorra a compreensão do seu espaço de território criativo, de que a sua história parte dali para a conquista do olhar, para ver o mundo repleto de transformações positivas e que, sobretudo, se sinta parte dele e isso faça a diferença na sua vida. Para que ocorram, enfim, o pertencimento e o empoderamento, que constituem o processo tão almejado para um desenvolvimento.
FOTOS: CAIQUE BRASIL MARQUES/ ALLEN FERRAZ
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Camila Cabeça: Qual é a importância do carimbó no processo de construção do trabalho da representatividade feminina? Priscila Duque: O carimbó é uma manifestação da cultura popu-
lar paraense. É um estilo de vida que nos apresenta uma noção de comunidade-território, poesia, identidade estética e rítmica. É um espaço onde se apresentam modos de ver o mundo. As mulheres estavam no carimbó majoritariamente com funções internas de auto-organização e como dançarinas. Nos últimos anos, começamos a reivindicar lugares simbólicos de poder, que são o curimbó (tambor característico do carimbó), o banjo (instrumento de corda), a voz puxando a roda. Começamos a exigir o reconhecimento como parte fundamental do processo. Frequentando rodas há quase 15 anos, o que sempre via era uma festa em que os homens iam tocar e as mulheres iam dançar. Cheguei a viver e a assistir a cenas de assédio e até de violência contra mulheres. Quando comecei a “brincar de tocar e cantar”, já notava que várias mulheres eram superimportantes nos bastidores e algumas até tocando, mas estavam sempre invisibilizadas ou sob a autoridade dos homens. Penso que o que fiz de diferente foi sistematicamente passar a questionar esse patriarcado. Meu protagonismo passou a reverberar e a incomodar os mais tradicionalistas. Mas também inspirou outras mulheres. A representatividade feminina no carimbó é fundamental porque somos sujeitas de nosso tempo. Assumir o lugar de mulher protagonista é uma maneira de transformar a nossa própria vida e tudo à nossa volta, não mais permitindo que violências físicas e simbólicas se perpetuem. A nossa voz e o nosso corpo são a nossa decisão, por isso podemos fazer tudo, inclusive sentar no tambor e cantar resistência no carimbó.
PRISCILA DUQUE
ROBERTA TAVARES
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Priscila Duque: Como é ser uma artista e pensadora quilombola na Amazônia? Roberta Tavares: É parecido com qualquer artista e pensadora
de muitas partes do mundo, oriunda das classes populares, na medida em que me parece que ser artista não é garantia de ter facilmente a sustentação material de nossas próprias vidas, a partir do reconhecimento dos nossos trabalhos, neste mundo capitalista que preza pela insensibilidade e pela exploração. Ao mesmo tempo, tenho a peculiaridade de ser mulher negra e quilombola da e na Amazônia, que faz poesia e que constrói narrativas históricas a partir do protagonismo deste lugar. Isso parece simples, mas não é, se pensarmos que no imaginário social a região ora transita numa perspectiva de imagem deturpada de floresta inabitada, de vazio demográfico e sem presença negra, ora somente relacionada à ideia de “índios” estáticos, sem reconhecimento da existência real dos vários povos nativos que aqui estão. No mais, ser poeta e historiadora na Amazônia e da Amazônia é subverter a lógica racista que sempre nos colocou em lugar de objetos da pesquisa ou da arte. Como poeta e historiadora negra amazônica, eu carrego comigo a subversão de ser, fazer ecoar a nossa própria história, construída desde sempre por nós mesmos. Nossa arte e nossa narrativa, que são coletivas por pertencer ao povo ao qual pertencemos e que nos ensinou a ser gente que respeita o mato, que respeita os antepassados, que respeita a vida, e essa é uma sabedoria ancestral, de comunidades negras rurais, quilombolas, indígenas, e outras que fazem deste território sua casa há centenas de anos.
ACINÔZAMA ETNERROC FOTOS: EVELYN CASTRO/ MARA EDUARDA TAVARES
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CRÍTICA VIDEOCLIPE
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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QUE OS ASTROS NOS SALVEM Vetor estético do novo vídeo de Gaby Amarantos é referendado pelo afrofuturismo, que finalmente chega de maneira enfática ao pop nacional NINA GAZIRE
É comum, em inúmeras mitologias, a existência de deidades triádicas que se completam em uma tarefa contínua: a criação, a manutenção e a renovação do mundo. Em Vênus em Escorpião, novo trabalho de Gaby Amarantos, tal concepção naturalizada do ciclo da vida é encarnada pelo encontro entre três artistas de diferentes gerações: Ney Matogrosso, a cantora mineira Urias e a própria Amarantos, os quais, metamorfoseados em seres da floresta, representam essa função no videoclipe lançado em 27/11/20. A música é resultado também da parceria com os conterrâneos paraenses de Gaby Amarantos, os músicos Jaloo e Lucas Estrela, que transformam a batida do tecnobrega e seus riffs mesclados de guitarras alegres em um ritmo acelerado e raivoso. E com razão. VOL. 10 / N. 49
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Saída do tecnobrega paraense e da mistura encantada da Floresta Amazônica, Gaby Amarantos implora aquilo que os astrólogos dizem significar a Vênus transitando pelo signo de Escorpião: transformação e justiça em um ano em que incêndios no Pantanal atingiram o inédito índice de 210% e as queimadas na Amazônia marcaram o maior registro de focos na história, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável por monitorar tais índices e que no governo Bolsonaro vem sofrendo sucateamento. Não à toa, quando o hit foi lançado, Vênus, o planeta do amor e da riqueza, transitava pelo signo de Escorpião. Os gritos de mudança para o Brasil vêm de todos lados, principalmente do Norte e do coração da Floresta Amazônica. A amplificação do grito de Gaby Amarantos ficou a cargo do diretor João Monteiro, da dupla Os Primos, responsável pela estética LGBTQIA+ de toda uma geração de músicos surgidos a partir dos anos 2010, como Pabllo Vitar, Glória Groove e a própria Urias, que teve o trabalho Diaba, seu primeiro single, dirigido por Monteiro. É comum ver nos vídeos desse diretor uma estética drag, queer e barroca que dialoga com a tradição do brega brasileiro, mas em Vênus em Escorpião a roda gira, assim como o tom matreiro de Amarantos gira para uma Amazônia futurista e distópica (ou atual?). O vetor estético do videoclipe e de toda imagética do trabalho é referendado por uma espécie, se assim se pode dizer, de afrofuturismo, que finalmente chega ao pop nacional de maneira enfática. Tal fenômeno estético vem se infiltrando nas mostras de cinema do país há um bom tempo. É crescente o trabalho de cineastas que usufruem desse movimento, como, por exemplo, o filme Kbela (2015), da carioca Yasmin Thayná, no qual a diretora faz um mergulho ancestral e de empoderamento das mulheres negras, e também o surgimento de curadorias totalmente dedicadas ao tema, como as da pesquisadora Kênia Freitas, que tem pinçado na produção audiovisual brasileira trabalhos alinhados que podem ser chamados de afrofuturistas.
Esse renascimento do movimento que, segundo Freitas, é ainda desconhecido do público brasileiro, foi fortificado pela onda de protestos antirracismo que tomou conta do mundo nos dois últimos anos e, obviamente, vem reverberando na produção artística do país. Kênia Freitas, pesquisadora do tema, quando realizou uma curadoria de produções audiovisuais afrofuturistas de diferentes lugares do mundo (incluindo o Brasil) para a Mostra de Cinema de São Paulo, em 2015, afirmou em entrevista ao site Cinefestivais que o fenômeno nascido nos Estados Unidos é “um movimento estético, político e crítico plural e multifacetado, tendo como ponto comum uma narrativa alternativa e fantástica para as experiências das populações negras no passado, no presente e no futuro. Nesse processo, as obras misturam e são influenciadas por elementos da ficção científica, do hiper-realismo, da fantasia, das diversas mitologias de origem africana”. É também inegável que o videoclipe Vênus em Escorpião bebe na fonte de artistas norte-americanas, como Janelle Monae e Erikah Badu, que também levaram para a música pop o afrofuturismo atualizado. Seguindo a cartilha do afrofuturismo de Gaby Amarantos, há a floresta e sua miscigenação: Ney Matogrosso, ora um Exu espacial, ora um Zé Pilintra; Urias, uma Uiara futurista e também uma entidade de um-
O clipe Vênus em Escorpião(2020), promove o encontro de artistas de diferentes gerações, Gaby Amarantos, Urias e Ney Matogrosso, metamorfoseados em seres da floresta
banda; e, por fim, Amarantos interpreta uma Mãe Terra intergaláctica e também um Curupira vanguardista. Todos eles tentando salvar o mundo de um holocausto, em que a metáfora da vida é tudo aquilo que há de mais rico no Brasil: suas florestas, a água, a terra e sua gente encantada. Aqui, esse afrofuturismo à Brasil também deve algo à Tropicália e toda performática inovadora do grupo Secos & Molhados, que durante os anos 1970 arriscou-se à frente de vários artistas, que hoje bebem na fonte da androginia tribal da banda, e o vocal singular de Ney Matogrosso. Diferentemente da capa antológica do primeiro disco do grupo, em 1973, em que as cabeças eram servidas em uma mesa na sala de jantar, hoje Ney, Amarantos e Urias – outra tríade – têm suas cabeças servidas em embalagens industriais cheias de remédio, carne e glúten, de onde imploram amor para o mundo, sem o cinismo da sobrevivência que o período da ditadura pedia. Pois os tempos, infelizmente, pedem a urgência da Vênus em Escorpião como nunca antes na história. FOTOS: REPRODUÇÃO
CRÍTICA S ÃO PAU LO
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Experimentando o Vermelho em Dilúvio (2016) de Musa Michelle Mattiuzzi e, na pág. seguinte, Mama Goma (2014) de Deana Lawson
OS VENTOS QUE SOPRAM AQUI A 34a Bienal de São Paulo realiza a mostra Vento entre o vazio dos espaços físicos e temporais DERI ANDRADE
Na abertura de Vento, essa que é uma síntese da 34ª Bienal de São Paulo, fragmentada no espaço-tempo em detrimento da nova dinâmica imposta pela maior crise sanitária da humanidade, a performance de Paulo Nazareth, transmitida ao vivo nos canais digitais da Fundação, já enunciava a vontade de um sopro de respiro. Nazareth performava [A] A Flor da Pele (20192020) pela primeira vez no Brasil na exposição VOL. 10 / N. 49
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que ocorreu entre novembro e dezembro de 2020, período em que estaríamos visitando a grande mostra da Bienal, adiada para 2021, não fosse pela pandemia que forçou o fechamento dos espaços culturais, atrasando o calendário expositivo das artes. No imponente pavilhão de portas fechadas, Nazareth realizava a ação com três imigrantes de origem africana que vivem em São Paulo. Dois homens lançam facadas em um saco de algodão suspenso, deixando escorrer a farinha de trigo ali armazenada, tomando o espaço desenhado por Oscar Niemeyer. Uma mulher, então, varre o pó que ocupa o chão, quase como um ato de limpeza das feridas abertas pelos epistemicídios movidos pela cultura ocidental branca. Esse mote, aliás, é a ponta de lança de Experimentando o Vermelho em Dilúvio (2016), videoperformance de Musa Michelle Mattiuzzi. Do alto do primeiro pavimento do prédio da Bienal era possível assistir ao vídeo, enquanto observávamos o registro da obra de Nazareth, em segundo plano, no térreo. O diálogo entre os trabalhos, por sua vez, apresenta-se para além da expografia propositalmente espaçada que reúne, no total, 21 artistas. Os dois atos poéticos de Nazareth e Mattiuzzi rememoram as violências que a população negra tem sofrido por séculos, aproximando contextos e territórios. A mesma simbiose pode ser observada em Deana Lawson, no trabalho Sem Título (Provisório), de 2018. Aqui, a artista norte-americana, que teve sua individual como parte da 34ª Bienal cancelada, reflete sobre
tempo histórico e tempo presente. O retroceder das imagens registradas em grandes eventos esportivos, religiosos e musicais nos EUA e na África, observadas na segunda parte do vídeo que compõe a obra, é o rastro de uma diáspora em constante diálogo. Longe de anacronismos, o que se coloca em consonância é a possibilidade de encontros nesses deslocamentos. Esse vértice é o cerne de Vento. A relação espaço tempo dá-se enquanto herança de uma memória friccional. É nesse curso que acontece a obra de Ximena Garrido-Lecca, que inaugurou o primeiro movimento da Bienal em fevereiro de 2020. Permanecida no prédio que esteve fechado por meses, a obra-cultivo Insurgências Botânicas: Phaseolus Lunatus (2017-2020) recebe agora seu público com soberba. Na instalação alegórica, que teve suas plantas murchas e reavivadas novamente, a permanência desse passado sistêmico estabelece conexões com a nossa época. Ainda assim, a instância do agora é que dita as regras do que virá em seguida.
Na impossibilidade do estar junto, fazer junto e viver em comunidade, o que toma corpo é a rotina do isolamento social e seus rigorosos protocolos de segurança. Isso se reflete na exposição como resultado de uma tensão constante de imprevisibilidade. Nesse sentido, os trabalhos de Koki Tanaka, que recepcionavam o visitante no térreo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, eram exímios representantes do improviso. Apesar de terem sido produzidos em outros contextos, os vídeos surgem como uma analogia ao experimento proposto pelos curadores Jacopo Visconti Crivelli e Paulo Miyada. Em Vento, a sensação é de uma Bienal que se redime, deglute-se e olha para si. Ao passo que se abre para a cidade, ao propor parcerias com instituições como Pinacoteca de São Paulo, MAC-USP, MAM-SP e Centro Cultural São Paulo na realização de eventos em rede, a 34ª Bienal indica em sua própria subjetividade os caminhos para mudanças, sejam essas estruturais ou simbólicas. Assim como em Wind [Vento] (1968), filme de Joan Jonas que empresta seu título à exposição, no qual assistimos aos esforços de bailarinos que lutam contra um gélido vento em Long Island, Nova York, no dia mais frio daquele ano, o que observamos é uma vontade de preenchimento desses vazios movidos pelo vento, pelo tempo e pela memória. Se os ventos que sopram aqui coreografam tentativas de diálogos com o nosso contexto atual, desejamos que essa mesma brisa infle transformações que reverberem para além desta edição. FOTOS: CORTESIA DAS ARTISTAS / BIENAL DE SÃO PAULO
CRÍTICA S ÃO PAU LO
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Experimentando o Vermelho em Dilúvio, 2016, de Musa Michelle Mattiuzzi e, na página seguinte, Mama Goma, 2014, de Deana Lawson
GRITOS E SUSSURROS A partir da palavra-chave Farsa, mostra com artistas do Brasil e de Portugal investiga materialidades da linguagem e fraturas da comunicação LEANDRO MUNIZ
Os três núcleos da exposição Farsa. Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal são experimentados em um movimento crescente, a partir da silenciosa e enigmática cortina de Renata Lucas, Farsa (2019), em direção a uma cacofonia de imagens, sons e palavras que se sobrepõem no espaço expositivo do Sesc Pompeia. VOL. 10 / N. 49
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A intenção curatorial de Marta Mestre e da curadora-adjunta Pollyana Quintella é discutir a linguagem, o que se expressa nos diversos trabalhos que articulam palavras em diferentes materialidades: livros, bocas, línguas e todo um universo simbólico relativo aos meios de comunicação. Sobre a boca, inclusive, a pesquisadora Patrícia Mourão apresenta um ensaio no catálogo da mostra, abordando a abjeção, o cinema marginal e o nosso enjoo geral com a situação política do país. Também chama atenção um texto de Jota Mombaça que discute o segredo como forma de resistência contra a hiperexposição de corpos dissidentes. O catálogo cria um ambiente de experiências próprias, como um exercício de linguagem em si, mais do que replicar a espacialidade da mostra. Com duplas de páginas unidas pelas bordas externas, há um jogo de descobertas quando rasgamos o picote e encontramos imagens de vistas da exposição. A repisada discussão Brasil x Portugal, que é o mote do projeto, aparece dispersa em obras de artistas como Linn da Quebrada, Aline Motta, Katú Mirim e Grada Kilomba, mas não se aprofunda nas questões sobre apagamentos, violências e influências das epistemologias indígenas, de matriz africana ou mesmo de expressão popular. São muito mais visíveis as imagens de galáxias ou exercícios formais com palavras e cores, que estão em abundância em uma vitrine com poemas visuais e concretos, peças de Mira Schendel ou Ana Hatherly.
Na pág. ao lado, Farsa (2019), de Renata Lucas. Acima, Amanhã Não Há Arte (2019), de Carla Filipe e Sem Essa, Aranha (1970), de Helena Ignez
No último núcleo é praticamente impossível ver uma obra sem a interferência visual ou sonora de outra, o que gera linhas de associações diretas. Como, por exemplo, na relação entre Burocracia (1982), de Anna Bella Geiger, Transfobia (2018), de Agrippina Roma Manhattan e os cartazes do Movimento Feminino pela Anistia no Brasil (1975). Manhattan cita Geiger utilizando-se da mesma estrutura formal de um grupo de pessoas soletrando palavras de quatro ou cinco sílabas. As interferências do espaço expositivo também funcionam na apresentação do vídeo Corpografias do Pixo (2019), de Gê Viana e Márcia de Aquino, no qual as artistas performam estabelecendo relações com pichações nos muros da cidade, incorporando os movimentos angulosos e sincopados daquela linguagem. Neste caso, os sons e as imagens das obras distribuídas ao redor replicam as dinâmicas do contexto urbano em que o trabalho foi feito. FOTOS: ILANA BESSLER
Mas em casos como Ayvu Ypy/ Origem da Língua (2020), da dupla Rita Natálio e Alberto Álvares, os outros estímulos presentes no ambiente podem chegar a impedir a concentração na narrativa intimista proposta pelos artistas. Natálio e Álvares – este de origem indígena – investigam o fundamento da língua guarani, a partir de trabalho de campo em uma aldeia em Silveiras, São Paulo, onde recolheram relatos de moradores locais. As falas pausadas e o tom de proximidade, no entanto, parecem soterrados pelo som ao redor. O conceito de farsa, por fim, aparece nas obras que têm uma dimensão teatral ou, ainda, nas relações entre peças que sugerem a reedição de problemas ao longo da história, como se dá no alinhamento entre Geiger, Manhattan e os cartazes feministas. Segundo Marta Mestre em seu texto para o catálogo, além da farsa enquanto gênero dramático, interessa a célebre frase de Karl Marx de que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Há aqui a proposição de um debate importante que, ainda que apareça de forma explícita, em Farsa. Língua, Fratura, alguns momentos, muitas vezes parece um Ficção: Brasil-Portugal conceito externo aos trabalhos e suas relaAté 30/1/2021, Sesc ções. A ideia de ações consequentes – implíciPompeia, Rua Clélia, 93 - São Paulo tas na formulação de Marx – parece atomizarsescsp.org.br -se no conjunto, assim como a sobreposição na exposição favorece a dispersão.
CRÍTICA S ÃO PAU LO
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Experimentando o Vermelho em Dilúvio, 2016, de Musa Michelle Mattiuzzi e, na página seguinte, Mama Goma, 2014, de Deana Lawson
Pintura sobre alvenaria de Kaya Agari (2020). Na pág. ao lado, máscaras e roupas do povo Wauja
VÉXOA: NÓS SABEMOS (OU O QUE NÃO SABEMOS) Mostra na Pinacoteca de São Paulo é um projeto de reescrita das artes no Brasil e deve ser vista para além do marco de primeira dedicada às produções visuais indígenas LUCIARA RIBEIRO E MOARA TUPINAMBÁ
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Durante o período de quarentena, principalmente após o assassinato do afro-estadunidense George Floyd e das campanhas do movimento #blacklivesmatter, debates foram lançados às instituições culturais fazendo-as repensar suas vocações e pautando a urgência por comprometimento com as lutas antirracistas, decoloniais, feministas, LGBTQIA+, de acessibilidade, entre outras. Véxoa: Nós Sabemos, exposição com curadoria de Naine Terena na Pinacoteca do Estado de São Paulo, parte desses interesses e princípios. A mostra reúne 23 artistas indígenas e vem sendo apresentada como um marco na história da instituição e anunciada como a “primeira” dedicada exclusivamente às produções visuais indígenas e “primeira” a ser assinada por uma mulher de origem indígena, o que demonstra o “atraso” no qual os acervos e espaços museais no Brasil se encontram. Sem desconsiderar a importância desses fatores na histórica trajetória de Véxoa, pergunta-se: o que significa anunciar esta exposição e esta experiência curatorial como “primeiras”? O que o lugar de “primeiro” significa? Não faz muito tempo que Rosana Paulino e Diane Lima, ao realizarem a curadoria de Diálogos Ausentes, também foram anunciadas como as “primeiras”. Convidadas pelo Itaú Cultural a propor um programa de debates que e inseriu artistas negros nas ações institucionais, as curadoras, apresentadas na época como as “primeiras” mulheres negras a assina-
rem uma exposição de arte em uma instituição paulistana, se questionavam sobre o quão grave isso era. Para Naine Terena, usar o termo “primeiro” como palavra-chave para os avanços tardios é algo que sempre a incomodou. “O termo vem acompanhado de um glamour que não existe. É uma reparação histórica e, quando estamos nesse processo de ser o primeiro, na realidade já temos de pensar no segundo, no terceiro, e assim por diante”, diz. Segundo a curadora Fernanda Pitta, que realizou o acompanhamento curatorial de Véxoa, é sabido pela Pinacoteca que 115 anos de exclusão e invisibilidade indígena não serão resolvidos com uma exposição, e que, por isso, a instituição tem direcionado esforços no reposicionamento das artes indígenas em seu acervo e programação. No entanto, apesar desses apontamentos para o futuro, as sequelas deixadas por um passado no qual tanto a instituição como o seu acervo corroboraram construções estereotipadas, reducionistas, racialistas e racistas em torno das populações indígenas e afro-brasileiras, levarão tempo para ser curadas. Véxoa: Nós Sabemos, como afirma Naine Terena em seu texto curatorial, “integra a proposta da instituição” junto ao seu “pensar a arte contemporânea brasileira, seus nomes e processos históricos”, experimentando nas suas três salas a noção expandida do termo arte. A reivindicação do conceito de arte, que para alguns pode parecer ingênuo ou desavisado, visto que ele exerceu um papel decisivo no processo de desqualificação das produções visuais indígenas, é realizado em Véxoa de forma estratégica e intencional. Obras da chamada produção “tradicional”, que há alguns anos eram vistas de maneira reducionista, como “primitivas” e/ ou objetos etnográficos, habitam horizontalmente o mesmo espaço que as produções da arte indígena contemporânea. Um exemplo disso é o caso das peças Yudjá, que ao lado das instalações de Denilson Baniwa, provocam relações diversas, ultrapassando a temporalidade e as classificações visuais.
Mas, além dos conceitos, Naine Terena propõe em Véxoa outros modos de se fazer curadoria, com processos de negociação que extrapolam a lógica do cubo branco, da linearidade do tempo, das hierarquias e das supostas divisões artísticas. Reconhecida por sua atuação em rede, pela escuta atenta e pela busca por diálogos abertos, a curadora traz em sua prática elementos da educação e do ativismo, transformando o museu em um espaço de liberdade, acolhida e amplitude. Sua curadoria ativista fica explícita, por exemplo, quando ela oferece ao público olhar algumas das obras vandalizadas durante a Mostra M’Bai de Arte indígena, realizada em 2019, no Centro Cultural Mestre Assis, na cidade de Embu das Artes, e nos lembra que os artistas indígenas que participaram da exposição não receberam, até hoje, as indenizações necessárias, tanto moral quanto financeiramente, pelos danos causados. A exposição também se conecta com diferentes mundos e meios, como as florestas, as cidades e outros locais invisíveis. A maioria das sociedades indígenas molda-se ao mundo para atravessá-lo, e por isso se fazem presentes em diferentes lugares, recorrendo constantemente às suas sabedorias e heranças ancestrais. Mas nem sempre é fácil habitar um território que não te acolhe e, por isso, a pergunta “como re-existir em ambientes urbanizados, de concreto, sem perder a ancestralidade?” paira pela vida de muitos artistas indígenas. Esse é o caso de Yacunã Tuxá, e pode ser observado em seus desenhos digitais. A obra não se desliga da vida, e Yacunã é a natureza de sua obra. Em sua biografia, ela revela sobre esse progresso que invade territórios ancestrais e sagrados, como a situação que ocorreu com as diversas ilhas que o povo Tuxá ocupava, especialmente a Ilha da Viúva, localizada no Rio São Francisco. Essa região ficou submersa após a construção da Hidrelétrica de Itaparica, que forçou a migração do povo Tuxá para outros territórios. Véxoa: Nós Sabemos é mais que uma exposição, é um projeto de reescrita das artes no Brasil. Reivindicá-la para além do marco inaugural e do “primeiro” é vê-la em sua complexidade, é reafirmar o que a sua curadora tem dito: “Os povos indígenas não querem mais ser um puxadinho dos museus e instituições de arte”; é também fazer efetiva a fala de Jaider Esbell durante a performance Morî’ erenkato eseru’ – Cantos Véxoa: Nós Sabemos, para a Vida, realizada dentro da mostra em até 22/3/2021, novembro, quando ele afirmou ser aquela a Pinacoteca de São primeira vez que artistas indígenas entram Paulo, Praça da Luz, 2 pinacoteca.org.br pela porta da frente dos museus e que, a partir daquele dia, essas serão as portas pelas quais todos devem passar. FOTOS: LEVI FANAN
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Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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NO TREMOR DO MUNDO, NO CALOR DA HORA Publicação interdisciplinar organizada pelos curadores Luisa Duarte e Victor Gorgulho reúne ensaios e entrevistas sobre a complexidade do mundo pandêmico
Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Experimentando o Vermelho em Dilúvio, 2016, de Musa Michelle Mattiuzzi e, na página seguinte, Mama Goma, 2014, de Deana Lawson
LEANDRO MUNIZ
Pouco tempo depois de oficializada a pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde, a compilação Sopa de Wuhan reunia textos escritos por autores como Paul B. Preciado e Giorgio Agamben entre fevereiro e março de 2020. Com projeto editorial do Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio (Aspo), o PDF circula desde abril com análises, discussões filosóficas e prospecções sobre os impactos da pandemia na vida. Entre acertos e erros, eram projeções feitas no calor da hora. Entre abril e outubro de 2020, os curadores Luisa Duarte e Victor Gorgulho trabalharam nessa mesma chave, produzindo uma compilação de ensaios de autores brasileiros de diversos campos do conhecimento, do jornalismo à filosofia. Apenas um estrangeiro integra o projeto – Franco “Bifo” Berardi, entrevistado pelos curadores. Os sete meses de construção do livro são perceptíveis nos textos produzidos em diferentes momentos da pandemia, impriVOL. 10 / N. 49
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mindo o crescimento do número de mortes, de adoecimento psíquico e de escândalos políticos. Nesse sentido, o avanço de No Tremor do Mundo em relação a Sopa de Wuhan é justamente o processamento de experiências concretas de lida com a pandemia depois do assombro inicial, assimilando iniciativas de combate e prevenção ao vírus e, especialmente, de organização social. As discussões sobre problemas específicos surgidos no contexto pandêmico – como o aumento da violência doméstica, concentração econômica, o debate sobre renda básica etc. – carregam muito mais vitalidade do que aqueles ensaios em que os autores repetem e aplicam seus próprios conceitos, ainda em uma dimensão abstrata. A entrevista com Eliana Sousa Silva, fundadora e diretora da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, mostra as ações concretas daquela comunidade, desamparada pelo Estado. A partir desse caso específico, é possível compreender problemas estruturais de desigualdade, falta de acesso à informação, racismo, violência e descaso político que vivemos hoje no Brasil. No ensaio A Política como Show de Celebridades – Desafios do Jornalismo em um Brasil Pandêmico, a jornalista Fabiana Moraes questiona o fato de o jornalismo, em sua suposta neutralidade, não ter nomeado as atrocidades de Bolsonaro durante a campanha eleitoral, colocando-o apenas como
“polêmico” ou “controverso”. A partir disso, Moraes analisa os impactos concretos da atividade presidencial em relação à pandemia, bem como problemas estruturais da produção e da circulação da informação no período. Também se sobressaem como preocupações centrais o fim do capitalismo e do mundo, os limites de nossa imaginação política e os impactos da internet – além do contexto atual em si. “É como se a pandemia do novo coronavírus estivesse sendo acompanhada por outra pandemia, espero que benéfica, de textos sobre o novo coronavírus”, escreve o professor Pedro Duarte em sua análise da produção filosófica sobre o assunto. O fim do livro surpreende, mostrando como as intervenções poéticas e literárias podem aliviar a tensão, dando vasão às sensações. Marcio Abreu tematiza as conversas de Zoom e WhatsApp em um texto híbrido e sincopado e Noemi Jaffe fala da quarentena infinita, comparando-a com a que sua mãe viveu na Europa, 75 anos atrás. Um texto dialético, que em sua sobriedade e franqueza busca uma elaboração do luto. Experiência que todos estamos vivendo. FOTO: CREATIVE COMMONS
Na pág. ao lado, capa de No Tremor do Mundo (2020). Acima, praça fechada pela pandemia da Covid-19
O trânsito entre análises sociológicas, textos jornalísticos, históricos, literários e filosóficos mostra como as diversas abordagens metodológicas refletem a complexidade do momento. Mas chama atenção a pouca presença de textos psicanalíticos – embora um conceito ou outro seja usado de forma instrumental pelos autores, apenas Christian Dunker comparece com Uma Memória do Futuro Anterior – e a limitada contribuição de artistas e outros agentes desse campo. Especialmente tratando-se de um livro organizado por curadores especializados na produção de exposições e pesquisas em arte. Uma questão editorial? Um reflexo de como a arte tem reagido ao problema da pandemia? Provavelmente, os dois. Claro que não se trata de exigir um imediatismo na formulação de respostas. Talvez os efeitos da experiência do isolamento social e do luto coletivo – pelos mortos da Covid, pela democracia em colapso, pelo fortalecimento de dinâmicas neoliberais e o consequente enfraquecimento do espaço público – só sejam percebidos nas obras a posteriori, lançando luz sobre pontos que talvez ainda não possamos ver hoje. No Tremor do Mundo pode ser visto como um sismógrafo. Junto a outras iniciativas como Pandemia Crítica, Dossiê Coronavírus e o próprio Sopa de Wuhan, compõe uma história não apenas da pandemia, mas também do pensamento produzido a partir dessa tragédia.
CRÍTICA
UMA SEMENTE WAPICHANA Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg,
S L IÃO VRO PAU LO
Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
Baaraz Kawau, de Gustavo Caboco, é uma obra de arqueologia sentimental e cultural que restabelece elos e resgata das cinzas vidas soterradas por séculos de violência colonial
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Capa de Baaraz Kawau (2020), de Gustavo Caboco
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O pequeno livro vermelho chegou pelo correio e, na dedicatória para mim, o artista Gustavo Caboco escreveu à mão: “Este livro é uma semente Wapichana. Plante e veja a nossa ancestralidade nascer”. Baaraz Kawau, que significa “campo após o fogo”, em língua Wapichana, conta o retorno do autor à sua ancestralidade indígena. O projeto foi vencedor do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação, na categoria Artista. A jornada que dá origem ao livro começa em julho de 2018, quando o artista viu, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, uma borduna Wapichana, datada de 1924. Bordunas são instrumentos da cultura bélica indígena usados para defesa, ataque e caça; já o povo Wapichana é atualmente uma população de 13 mil indivíduos, que vive na fronteira entre o Brasil e a Guiana. “Ocorreu literalmente um curto-circuito ao ver o objeto, pois a idade da borduna me lembrou meu tio Casimiro Cadete, de nome indígena Cassun: o peixe-elétrico”, escreve Caboco no livro. Dois meses depois da visita ao museu, a peça que reacendeu a memória de Gustavo foi consumida pelas chamas, juntamente com outros 40 mil objetos de 300 povos indígenas, que estavam “guardados” na seção de Antropologia. A fugacidade do resgate e a imediata perda do objeto inspiraram o projeto Baaraz Kawau. Das suas páginas irradia tanto o lamento pelos 20 milhões de itens destruídos na maior tragédia museológica do país quanto a felicidade do reencontro do artista com suas raízes. No caminho de volta à aldeia Canauanim e ao idioma de seus ancestrais, Gustavo Caboco sai de Curitiba (onde sua mãe, Luciene, chegou aos 10 anos, e foi adotada por uma família local) e passa por episódios que marcaram a destituição da cultura de seu povo, como a catequese ou o trabalho no garimpo de ouro e diamantes em fazendas de Roraima. Mas avança também por atividades de restauração da dignidade, descrevendo atos que foram decisivos para preservar a língua nativa da extinção, como o dicionário Wapichana-Português/ Português-Wapichana, realizado pelo tio Casimiro, em 1990. Baaraz Kawau é uma publicação independente, encadernada em capa dura e impressa à mão, em serigrafia. As tiragens têm 100 exemplares e, a cada nova edição, 30 unidades são enviadas para a comunidade Wapichana. O livro coloca-se, assim, como uma pequena grande obra de arqueologia sentimental e cultural, que vem restabelecer elos e resgatar das cinBaaraz Kawau, zas vidas soterradas por séculos de violênGustavo Caboco, cia colonial. Não à toa, intitula-se “o campo @impressaoindigena, após o fogo”, para reafirmar a resistência e 2020 a resiliência indígenas, que devem servir de inspiração a todos os brasileiros sufocados pela fumaça e pela combustão. PA
EM CONSTRUÇÃO
Lisette Lagnado, curadora da 11 a Bienal de Berlim
JANAINA WAGNER: A CURUPIRA NA ESTRADA FANTASMA Em produção, filme de ficção da artista paulistana conecta mitologia, literatura e cinema para alertar sobre o desmatamento na Amazônia
EM SEU PROJETO DE DOUTORADO, EM CURSO PELO LE FRESNOY E PELA UNIVERSIDADE DE LILLE, NA FRANÇA, JANAINA WAGNER DESENVOLVE UMA PESQUISA PRÁTICO-TEÓRICA SOBRE A FIGURA DA CURUPIRA. Wagner já vinha
pesquisando elementos do imaginário que atuam na realidade material – a lenda do Lobisomem relacionada à mineração, por exemplo. No caminho encontrou a Curupira, que originou a pesquisa que envolve a reelaboração do imaginário sobre a Amazônia e o interesse global sobre esse território. “Não é um lugar que eu tenha algum tipo de relação de base, mas as tensões que isso produz dizem respeito ao presente global, e a ficção permite que eu, como branca, trabalhe na Amazônia e trace novas linhas de fuga”, diz Wagner à seLecT. VOL. 10 / N. 49
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Nesta página e nas próximas, frames da obra em processo de realização Curupira e a Máquina do Destino
O objetivo é produzir um curta-metragem que misture citações a Graciliano Ramos, Jorge Bodanzky, José de Alencar, referências às mitologias grega e indígena, em um procedimento de colagem. A atualização dessas personagens para o presente indica o entrelaçamento cíclico entre progresso e extrativismo, entre outras questões reiteradamente repetidas e não elaboradas no contexto sociopolítico brasileiro no que diz respeito à Amazônia.
TRAZER A CURUPIRA PARA A REALIDADE Jornalista de formação, Wagner usa a apropriação e a associação de elementos já dados na cultura como estratégia de reflexão crítica sobre a realidade. E Realidade, inclusive, é o nome de uma das vilas onde o filme será gravado. Com ruas de terra, baixa infraestrutura e altos índices de extração madeireira, Realidade é localizada entre Porto Velho e Manaus, na BR-319, que liga o Norte ao Sul do país e é conhecida como Estrada Fantasma. Essa estrada – uma cicatriz na floresta – sofreu ataques de comerciantes na época de sua construção, nos anos 1970, por acabar com o transporte fluvial, tendo todo seu asfalto destruído, o que dificulta o trânsito da população local. Se o asfalto é o sonho daquela comunidade por possibilitar o deslocamento, também é a facilitação do escoamento de madeira, fruto do desmatamento ilegal. A crença no “progresso” vindo do extrativismo também faz com que aquela comunidade se veja representada nos discursos políticos da extrema-direita, em uma complexa relação de interesses. Outra localidade onde o filme é realizado é São Gabriel da Cachoeira, última cidade do Rio Negro, ponto de convergência de 23 etnias indígenas. Nessa comunidade não há limites entre a mitologia da Curupira e seus efeitos na realidade. “Há uma certa exotização dos franceses em relação ao meu projeto. Eles têm esse imaginário da Amazônia como uma grande floresta maravilhosa. De fato, é um lugar idílico, mas com muita violência. São Gabriel é uma cidade onde o capitalismo entrou sem barreiras, com violência, abandono, alcoolismo e consumo desenfreado. É o lugar com o maior índice de suicídios indígenas”, problematiza a artista.
FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
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PROGRESSO AO INVERSO Curupira é uma palavra tupi e alguns a compreendem como mãe da mata. Outros nomes possíveis são Namu e Caapora. Ninguém vê a Curupira; quem a vê desaparece. Só é possível escutar os seus indícios. Caçadores costumam colocar tabaco e cachaça na entrada da floresta, como oferenda para se proteger de seus ataques. Tem o cabelo de fogo e os pés para trás e, se sua representação foi infantilizada e adocicada pela cultura de massa, na cosmogonia das populações locais ela é a força que protege a floresta.
Os pés para trás serão usados no projeto de Janaina Wagner, intitulado Curupira e a Máquina do Destino, como uma metáfora crítica das “evoluções” do mundo moderno e das ideias do progresso. Já o cabelo de fogo abre muitas possibilidades de interpretação: de uma chama interior ao controle do homem sobre a natureza. “Minha ideia é fazer um mito de Prometeu ao contrário. Quando pega o fogo dos deuses, ele começa a civilização. Vou abrir o filme com uma imagem de Cubatão filmada com drone, o fogo saindo por uma
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chaminé de uma das cidades mais poluídas do país.” O projeto usa novas tecnologias para reencenar personagens do passado. Algumas imagens desenhadas são uma manada de bois fantasmas na BR-319, um encontro entre a Curupira e o espectro da Iracema do filme de Bodanzky (um avatar criado em 3D) e um céu sempre vermelho, irradiando as queimadas e o pôr do sol eternos. O encerramento do filme propõe uma profecia para o futuro. As filmagens acontecem a partir de janeiro de 2021, ao longo de cinco semanas. Os deslocamentos de Janaina Wagner para a Amazônia recolocam a discussão sobre os artistas viajantes e de fronteiras, as assimetrias e os pontos de contato decorrentes desses processos. Os desmatamentos da Amazônia, no entanto, dizem respeito ao desequilíbrio climático causado pelo aquecimento global. A forma encontrada pela artista de repor a universalidade da questão é pelo imaginário: mitologias e ficções possibilitam conectar o próximo e o distante, o conhecido e aquilo que ainda não foi mapeado. LM
FOTO: BERLIN BIENNALE FOR CONTEMPORARY ART
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O PODCAST DE ARTE E EDUCAÇÃO DA SELECT
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