A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A ABR/MAI/JUN 2021 VOL. 10 N. 50
FLORESTA
COSMOVISÕES
Samya, por Labô Young
GÊ VIANA
JAIDER ESBELL
ALINE ROCHEDO PACHAMAMA
LABÔ YOUNG GUSTAVO CABOCO
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EXPERIMENTE DUAS MODALIDADES DE VISITA VIRTUAL 360º À EXPOSIÇÃO, CONHEÇA O CATÁLOGO, A PUBLICAÇÃO EDUCATIVA E DETALHES DAS MAIS DE 250 OBRAS SELECIONADAS EM SESCSP.ORG.BR/BIENALNAIFS SESC PIRACICABA /sescpiracicaba sescsp.org.br
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CURADORIA ANA AVELAR E RENATA FELINTO
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bienal naifs do brasil
Ideias para adiar o fim da arte
26
34
ESTUDO DE CASO
MODA
TEMPOS SOBREPOSTOS
DESIGN ORGÂNICO
Realidade e mundo espectral
informam o styling do artista e
se interconectam na pintura
estilista paraense Labô Young
Ancestralidade e natureza
recente de Jaider Esbell
72 REPORTAGEM
ARTE INDÍGENA NO MUSEU Os desafios dos artistas indígenas contemporâneos em expor em instituições ocidentais
88 CIÊNCIA
ETNOBIOLOGIA Disciplina supera a dicotomia
42
entre natureza e cultura propondo abordagem etnogênica da floresta
COSMOGONIA
MOVIMENTO ONÇA S í m b o l o d e fo r ç a e i n te l i g ê n c i a , o m a i o r fe l i n o d a s A m é r i ca s é te m a n a a r te , n a l i te ra t u ra e n a c i ê n c i a
94 ENTREVISTA
JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO Poeta e ensaísta fala sobre imaginário social que decorre da relação com a natureza
50 PROJETO DE ARTISTA
#FLORESTAPROTESTA A gráfica ativista de Armando Queiroz, Thiago Martins de Melo e do Aparelhamento em defesa do meio ambiente VOL. 10 / N. 50
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60 CURADORIA
THEMONIZAR A ARTE Expressão estética surgida em Belém do Pará afirma imaginário da monstruosidade em levante anticolonial
+
84
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LITERATURA
REPORTAGEM
RÁDIO CELESTE
HISTÓRIA ESCRITA
O segundo e terceiro episódios
Escritores indígenas
ARTE E ANCESTRALIDADE
reivindicam a urgência de
Gê Viana e Gustavo Caboco
dedicados à aparelhagem e ao
registrar a sua história
partem de suas histórias e
movimento Themônias. Ouça em
raízes para agir no presente
https://www.select.art.br/
EXPANDIDAS
do podcast da revista são
categoria/radio-celeste/
100 ENSAIO
FOGO CRUZADO Como expor arte indígena? Fernanda Pitta, Jaider Esbell
TECENDO ÁGUAS
e Pedro Cesarino debatem
Fernando Zalamea navega pelos
o problema. Assista ao
estratos de relações entre os
debate em https://youtube.
rios Niágara, Nervión e Negro
com/playlist?list=PL_ ipxxih1HLb90kM4wUf9TxySZLy00hG
124 PROJETO VERNISSAGE
VÍDEO DE ARTISTA Bárbara Balaclava, de Thiago Martins de Melo, discute as
JEANE TERRA
reiteradas violências na história
As ruínas causadas pelas
brasileira. Leia em https://
marés são a matéria-prima
www.select.art.br/categoria/
das esculturas da artista
selectv/video-de-artista/
SEÇÕES
6 12 17 20 22 107 132 140
Editorial Da Hora Livros Acervos Itaú Cultural Coluna Móvel Mundo Codificado Crítica Em Construção FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
E D I TO R I A L
6
VER MARAVILHA NAS COISAS No ano em que a seLecT completa uma década de
Os trânsitos entre as culturas originárias e ocidentais também é objeto
atuação, dedicamos nossas quatro edições para
de análise crítica quando a questão é “como expor arte indígena”. Esse
um bem maior: a floresta. Neste segundo episódio
é o tema da reportagem e do Fogo Cruzado on-line, conduzidos por
da série, trabalhamos sobre as cosmogonias,
Leandro Muniz. “Se o legado da civilização indígena tem muito a oferecer
epistemologias e ficções indígenas. Na recusa
para o mundo atualmente em colapso, fica a pergunta sobre como não
de uma historiografia que construiu uma visão
reproduzir a lógica colonial ao apresentar essa produção nos contextos
excludente de Brasil, seguimos com o projeto de
institucionais”, coloca o repórter da seLecT.
escrever com e não sobre os habitantes amazônicos.
“Somos plantas tentando sobreviver neste solo árido que é o Brasil e o
Através das narrativas dos artistas sobre o que
próprio sistema de arte”, responde o amazonense Denilson Baniwa. Além
habita o fundo dos rios e das matas, conhecemos
de participar de reportagens, Baniwa foi um dos “informantes” da edição #50,
a Rasga Mortalha, o Capelobo, o Kanaimé, a Onça
iluminando nossas reuniões de pauta, ao lado de Samantha Moreira e Dinho
Celeste, o Jabuti, a Boiuna, as Icamiabas, a Mãe do
Araújo, coordenadores do Espaço Chão, em São Luís do Maranhão.
Fogo. Eles nos contam como os mitos e encantarias
Rafael Bqueer, que participa da série Floresta desde a edição #49, volta
se
política
à tona com uma curadoria sobre a revolução estética das Themônias.
contemporânea nesta “era fálica trevosa que o
O movimento, surgido no fervo da noite da região metropolitana de
país adentrou”, como aponta o artista maranhense
Belém, também integra o terceiro episódio do podcast celeste: Quanto
Thiago Martins de Melo na Coluna Móvel.
Mais Themônia, Melhor.
Jaider Esbell, Estudo de Caso da edição #50 com
Na série de arte e ativismo #florestaprotesta, o grupo Aparelhamento
a série de obras apresentadas na 34ª Bienal
e os artistas Armando Queiroz e Thiago Martins de Melo elaboram seus
de São Paulo, sugere como o Kanaimé pode ser
cartazes para uma mobilização em defesa da Amazônia e do meio
associado ao uso da violência para se fazer justiça,
ambiente. O projeto reafirma o papel do artista nas urgentes lutas
apresentando-se como uma entidade necessária
sociopolíticas. E na tessitura desta edição que se afirma toda como um
na atual “guerra de mundos” por territórios, modos
protesto, a artista Nina Lins, designer da seLecT, optou por desconstruir
de pensar e recursos. E como o Jabuti, para o povo
a integridade da tipografia e de fotografias de algumas matérias, criando
Macuxi, representa a parcimônia e a paciência
um efeito fantasmático com a separação das cores RGB.
para lidar com o que não se alcança por meio da
Com esse recurso gráfico, buscamos dar alguma visibilidade à natureza
força bruta. Já Yná Kabe Rodriguez Olfenza usa
mágica das coisas. Assim como o fotógrafo Luiz Braga dá materialidade
os sentidos de poder e habilidade atribuídos às
às encantarias, representando-as fotograficamente em sua nova série,
onças em uma analogia à travestilidade, já que
apresentada na seção Em Construção por Nina Rahe.
ambas, onças e travestis, são permanentemente
A Mãe do Fogo marajoara de Luiz Braga fecha a edição, assombrando os
ameaçadas e vigiadas no Brasil.
vaqueiros, garimpeiros, madeireiros e invasores das florestas; usando o
Entre sombras e pesares, a utopia emerge algumas
fogo para nos tirar da treva que assola o país e iluminando os caminhos
vezes dos textos. Aline Rochedo Pachamama, que
que estamos abrindo: o Núcleo seLecT de Arte e Comunicação, nosso
escreve sobre a literatura dos povos originários,
braço de cursos e estudos on-line em parceria com a plataforma Zait, e
afirma que a palavra, “se com alma, movimenta
a elaboração do terceiro episódio da série Floresta, que será dedicado
afeto, lucidez e utopias”. Em entrevista, João de
às construções coletivas e comunidades.
atualizam
na
realidade
social
e
Jesus Paes Loureiro evoca uma utopia social de feição socialista quando fala de sua Abaetetuba natal, e sugere de que modo a natureza amazônica
Paula Alzugaray
contém o sublime kantiano.
Diretora de Redação
VOL. 10 / N. 50
ABR/MAI/JUN 2021
EXPEDIENTE
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EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY PROJETO GRÁFICO: RICARDO VAN STEEN E CÁSSIO LEITÃO EDIÇÃO E REPORTAGEM: NINA RAHE E LEANDRO MUNIZ DESIGNER: NINA LINS
COLABORADORES SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO
CONTATO
Aline Rochedo Pachamama, Ana Clara Simões Lopes, Aparelhamento, Armando Queiroz, Fernando Zalamea, Gustavo Godoy, Nina Gazire, Rafael Bqueer, Thiago Martins de Melo Cristina Dias Hassan Ayoub
faleconosco@select.art.br
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SELECT (ISSN 2675-8296) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Avenida Paulista, 1.636, Conj. 4, Pav. 15 - São Paulo - SP, CEP: 01310-200, Tel.: (11) 3661.7320
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VOL. 10 / N. 50
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COLABORADORES
ANA CLARA SIMÕES LOPES ALINE ROCHEDO PACHAMAMA Pertencente ao povo Puri da Mantiqueira, é historiadora, escritora e ilustradora. Com doutorado em História Cultural pela UFRJ, idealizadora da Pachamama Editora, elabora e executa ações em prol da valorização e preservação de Línguas dos Povos Originários. LITERATURA 84
Bacharel em História da Arte pela Uerj, atua como curadoraassistente no Solar dos Abacaxis. Colaborou com as exposições À Nordeste (Sesc 24 de Maio, 2019) e FARSA − Língua, Fratura, Ficção: Brasil-Portugal (Sesc Pompeia, 2020). PROJETO VERNISSAGE 124
NINA GAZIRE APARELHAMENTO Surgiu, em 2016, como uma rede de artistas ativistas com mais de 200 nomes. O grupo impulsionou ações coletivas espalhadas pelo Brasil, atuando também como incentivador de outras redes. #FLORESTAPROTESTA 69
ARMANDO QUEIROZ Artista e doutor em Artes Visuais (EBA-UFMG), vive e trabalha entre Rondon do Pará, Marabá, Belém e Belo Horizonte, trabalhando conceitualmente com questões sociais, políticas e patrimoniais. #FLORESTAPROTESTA 50
Jornalista, curadora e professora universitária. É curadora do Festival Katsudo Shashin, foi professora do Centro Universitário UNA (20102018) e da Faap (2010-2013), em São Paulo. REPORTAGEM 88
THIAGO MARTINS DE MELO Artista visual, vive e trabalha entre São Luís do Maranhão, São Paulo e Guadalajara (México). Seus trabalhos integram as coleções permanentes do Museu de Arte de São Paulo e da Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre outros museus. COLUNA MÓVEL 22 #FLORESTAPROTESTA 82
FERNANDO ZALAMEA Professor de Matemática na Universidade Nacional da Colômbia, com cerca de 30 livros publicados. Entre os prêmios que recebeu estão Jovellanos (Espanha 2004), Gil Albert (Espanha 2004), Kostakowski (México 2001) e Andrés Bello (Colômbia 2000). ENSAIO 100
GUSTAVO GODOY Antropólogo, com doutorado sobre língua de sinais e gestos que acompanham a fala do povo Ka’apor e mestrado sobre o ritual de Cauim, pela UFRJ. Documenta a língua guató do Pantanal e tem pesquisa centrada no estudo comparado de mitos. MUNDO CODIFICADO 107 COLUNA MÓVEL 24
RAFAEL BQUEER Artista premiadx na 8 a Edição da Bolsa de Fotografia da Revista ZUM (2020) e na 7 a edição do Prêmio FOCO Art Rio (2019). Suas obras fazem parte das coleções do Museu de Arte do Rio (MAR), do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) e do Museu do Estado do Pará (MEP). CURADORIA 60
FOTOS: DIVULGAÇÃO/ ARQUIVO PESSOAL/ ARTUR CUNHA / MIGUEL SAN MARTIN
MINISTÉRIO DO TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO POR MEIO DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA BRADESCO INSTITUTO TOMIE OHTAKE apresentam
curador IVO MESQUITA
muralista
Mural Paisagem rural (detalhe), 1951 óleo sobre parede Hotel Clube dos 500, Guaratinguetá, SP Foto Nelson Kon
INSTITUTO TOMIE OHTAKE
www.institutotomieohtake.org.br /inst.tomie.ohtake
DE 28 DE MAIO A 15 DE AGOSTO DE 2021
@institutotomieohtake
patrocínio
apoio de mídia
realização
organização e realização
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VIEWING ROOM
FEMALE VOICES OF LATIN AMERICA Até 2/5, Vortic | vortic.art A Vortic, plataforma de realidade aumentada, apresenta um projeto digital que reúne artistas mulheres da América Latina. Cada galeria participa com um projeto dentro do site, criando relações entre as artistas representadas. Na página da Casa Triângulo, Juliana Cerqueira Leite, Vânia Mignone e Manuela Ribadeneira, entre outras artistas, participam do projeto Scream. Já a Central Galeria dedica uma página exclusivamente para Greta Sarfatty em Enlace (foto), e a costa-riquenha MADC apresenta uma individual da jovem pintora curitibana Maya Weishof. Lançada no mês das mulheres, a plataforma reúne mais de 150 artistas, entre estabelecidas e emergentes, mostrando a pluralidade dessa produção. VOL. 10 / N. 50
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FOTOS: CORTESIA CENTRAL GALERIA
T E AT R O
ENTRE: DRAMATURGISMOS Goethe-Institut São Paulo, de 8 a 15/4 | goethe.de/ins/br/pt/kul/sup/edr Considerando o dramaturgo como um mediador no campo teatral, o Goethe-Institut São Paulo promove três mesas de debates sobre os processos de criação, formação e inserção institucional desse profissional. Estabelecendo diálogos entre o contexto brasileiro e o europeu, o projeto conta com nomes como Antonio Duran, Beti Rabetti, Daniel Cordoba e Marici Salomão (fotos). As mesas serão transmitidas pelo YouTube, mas para recebimento de certificado é necessário inscrição prévia para acompanhar via Zoom, o que também permite participação no encontro Espaço Aberto: Redes Possíveis, para ampliação de networking.
SITE
AUGUSTO DE CAMPOS 90 ANOS Luciana Brito Galeria | augustodecampos90anos.com Em comemoração aos 90 anos do poeta, a Galeria Luciana Brito inaugurou um espaço virtual para homenageá-lo, no qual estão reunidos de trabalhos históricos a obras recentes, como Mercado (2002-2019) (à dir.). O site também apresenta textos analíticos e uma entrevista exclusiva com o escritor. A página acompanha a programação da Biblioteca Mário de Andrade, que prevê várias homenagens a Augusto de Campos até o fim deste ano – como parte de exposição Poema cidadecitycité pela cidade, que esteve em cartaz até 23/4/2021, a instituição realizou a instalação do poema Cidade City Cité (um painel de led com 10 metros de altura) em sua fachada.
FOTOS: ACERVO PESSOAL/ DENITSA STOYANOVA/ DIVULGAÇÃO / CORTESIA GALERIA LUCIANA BRITO
14
P L ATA F O R M A
VIDEOBRASIL ONLINE Associação Cultural Videobrasil | videobrasil.online A partir de seu acervo e exibindo trabalhos inéditos, a instituição apresenta um programa que discute o vídeo e os formatos digitais a partir de três eixos curatoriais: Artistas propõe uma revisão crítica de artistas da coleção do Videobrasil; Curadorias é realizado por pesquisadores convidados, criando diálogos entre obras; e Estreias é dedicado a trabalhos inéditos. O primeiro projeto nesta última categoria foi Nhonhô (frame acima), de Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi, no qual discutem o casarão no bairro de Higienópolis, em São Paulo, que atualmente abriga o Paço das Artes. Com participantes de diversas gerações e linguagens, a plataforma é dedicada a reflexões sobre o Sul Global.
DOCUMENTÁRIO
ARTE NEGRA: NA AUSÊNCIA DA LUZ De Sam Pollard | hbogo.com.br Theaster Gates, Faith Ringgold, Amy Sherald , Lyle Ashton Harris e Kerry James Marshall
(à esq. Untitled (Club Couple)) são alguns dos artistas abordados no filme, que problematiza a relevância e as contradições surgidas na exposição Dois Séculos de Arte Negra Americana, de 1976, no Los Angeles County Museum of Art. Com curadoria do artista e historiador David Driskell, a mostra percorria a produção afro-americana desde o século 19, ressaltando a diversidade de recursos, linguagens, temas e estilos usados por esses artistas. Ainda que marcado por momentos críticos, de revisão e denúncia de racismos enraizados nas instituições e metodologias do campo artístico, o documentário tem tom otimista, buscando criar uma história positiva dessa população.
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FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS / CORTESIA HBO
P L ATA F O R M A
BANAL BANAL Até o fim de 2021 | banalbanal.org Ativo desde 2016, o projeto exibe obras digitais com enfoque em artistas que lidam com o virtual como matéria-prima, promovendo debates sobre política, economia e sociedade. Com curadoria de Germano Dushá, Banal Banal já recebeu trabalhos de Traplev, Felipe Barsuglia, Ricardo Carioba, Vitória Cribb e atualmente exibe EEE (frame à dir.), de Wisrah Villefort . Em seu projeto – o último promovido pela plataforma –, Villefort apresenta um mapa com visualização de dados de atividades industriais em escala global. Com texto de Guilherme Teixeira e som de Desampa, o trabalho discute as relações entre globalização e ecologia.
VÍDEO
TRUE FAKE: TROUBLING THE REAL IN ARTISTS’ FILMS Até 29/4, e-flux | e-flux.com O programa apresenta vídeos de artistas como Chris Marker, Sondra Perry, Walid Raad e Harun Farocki (abaixo, frame de Parallel III). Centrado na discussão sobre o conceito de pós-verdade, o projeto discute a virada documental da arte desde os anos 1990 diante de problemas como fake news, verdades alternativas ou controle informacional, considerando que as mudanças tecnológicas foram decisivas para as complexas formas de compreensão da realidade. Organizado pelo pesquisador Lukas Brasiskis, True Fake compreende que o negacionismo, as crises identitárias e nacionalistas ou as mudanças climáticas são parte de uma mesma dinâmica existente em escala global. Nesse cenário, pensar o limite entre realidade e ficção, verdadeiro e falso, coloca a arte como ferramenta política.
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / CORTESIA E-FLUX FOTOS: OSCAR BASTOS / DIVULGAÇÃO / VICTOR PASTANA / EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO / ANDREAS VALENTIM
D E B AT E
VIDEOARTEPAPO
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Org. Marcia Beatriz Granero, Museu da Imagem e do Som de São Paulo | mis-sp.org.br Quinzenalmente, o MIS apresenta uma nova live com artistas que estão representados no acervo da instituição. Já participaram Sandra Kogut, Regina Vater, Gisela Motta e José Roberto Aguilar (à esq. fra-
mes de Rio de Luz). Entre os pesquisadores se destacam Lyara Oliveira, Lucila Meirelles e Solange Farkas. O projeto é parte da programação do #MISemcasa e marca as comemorações dos 50 anos do museu, que coincidem com o cinquentenário da videoarte no país. É possível acessar vistas de exposições e textos dos autores cadastrados.
PODCAST
TERRA ARRASADA Produção de Fabio Zuker, Le Monde Diplomatique | diplomatique.org.br O programa discute as reiteradas formas de violência contra a floresta e suas comunidades, inclusive, agravadas com a crise do Coronavírus. Produzido por Fabio Zuker, a direção sonora é de Ricardo Monteiro e o projeto conta com apoio do Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center. O ensaio fotográfico Terra Arrasada: Histórias da Pandemia na Amazônia (à esq.), de Avener Prado, acompanha a série e foi produzido a partir de imagens de telas de celular, respeitando os protocolos de segurança. Entre os temas abordados no podcast estão as consequências da construção da Usina de Belo Monte, as invasões nos territórios Yanomâmi e as expulsões da população quilombola na cidade de Alcântara, no Maranhão.
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FOTOS: DIVULGAÇÃO / AVENER PRADO
ELEDÁ Edição Julia Lima, Universidade Federal do Vale do São Francisco, 76 págs., distribuição gratuita | mailchi.mp/3ff830fd1169/ publicacao-eled Em 2020, o artista Felippe Moraes apresentou uma série de imagens em seu Instagram com textos produzidos por outros artistas, curadores, psicanalistas, professores e mães de santo. Abordando as religiões de matriz afro-brasileira, as fotografias foram produzidas durante uma residência no Rio de Janeiro e são autorretratos que alegorizam orixás e elementos de ancestralidade – Eledá significa “o ancestral que habita em mim”, em iorubá. Agora reunidos em publicação digital que replica a ordem dos posts, os textos e as imagens podem ser vistos com outros elementos que
PALAVRAS CRUZADAS, SONHADAS, ROUBADAS, USADAS, SANGRADAS
contextualizam o projeto, como a
Miguel Rio Branco, IMS, 208 págs., R$ 109,50
além de mapas e músicas.
introdução da editora Julia Lima,
Com organização de Rio Branco e Thyago Nogueira, e texto crítico de Luisa Duarte, a publicação elabora um percurso
MEMÓRIAS DE RIO – AMAZÔNIA, 1970
na obra do fotógrafo, desde a estética em preto e branco da
Lucio Kodato e Zetas Malzoni, ed. do autor, 256 págs.
série New York Sketches (1970-1972) até hoje, passando por
Kodato e Malzoni, celebrados diretores de fotografia do cinema
seus múltiplos processos de saturação da cor, para abordar
brasileiro, conheceram-se aos 20 e poucos anos no set de
temas como sexualidade, violência, dor e solidão.
filmagem de Um Anjo Mau (1971), de Roberto Santos, e caíram na estrada juntos, com duas câmeras fotográficas e duas cinematográficas. Das filmagens nasceu o documentário Rio Negro, exibido no Globo Repórter, com locução de José Wilker. As fotografias, cerca de 700 slides 35 mm, ficaram guardadas numa caixa até ganhar uma edição no livro recém-lançado.
VÂNIA MIGNONE Org. Gabriel Pérez Barreiro, Pinã Cultura, 195 págs., R$ 50 A produção pictórica de Vânia Mignone é informada pelo cinema, pela gravura e pela música. O primeiro livro monográfico dedicado à artista enfatiza essas diversas relações ao encadear pinturas nas quais as palavras escritas geram um ritmo sonoro e visual, ou ao alternar visões gerais e de detalhes das obras, lembrando a operação do close-up nos filmes. Além de um texto escrito pelo curador Gabriel Pérez Barreiro, uma entrevista com a artista contextualiza sua história e alguns dos processos das obras, como sua abordagem direta com a pintura, que evita esboços e projetos.
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JARAGUÁ Caio Reisewitz, Imprensa Oficial, 88 págs., R$ 80 O livro amplia um ensaio fotográfico que foi apresentado em 2014 na Casa da Imagem, em São Paulo. Entre cartografias, imagens de arquivo, reproduções de pinturas ou gravuras e fotografias inéditas, a publicação mostra as transformações desse morro na região oeste da Serra da Cantareira. Preservado do ponto de vista geológico como um dos pontos mais altos da cidade, o Pico do Jaraguá é tema de análise em textos de Nourival Pantano Júnior, Marcos Cartum, Adolfo Montejo Navas, Henrique Siqueira e Monica Caldiron.
ENCICLOPÉDIA NEGRA Orgs. Flávio Gomes, Jaime Lauriano e Lilia M. Schwarcz,
20 EM 20, OS ARTISTAS DA PRÓXIMA DÉCADA: AMÉRICA LATINA
Cia. das Letras, 789 págs., R$ 89,90
Org. Fernando Ticoulat, João Paulo Siqueira Lopes, Art
inéditos e um arco temporal que vai
Consulting Tool, 264 págs., R$ 200
do século 16 ao presente, o livro vai
O diálogo entre a consultoria Art Consulting
desdobrar-se também em uma exposição
Tool e curadores como Diane Lima, Raphael
realizada na Pinacoteca do Estado de
Fonseca, Kiki Mazzucchelli e Júlia Rebouças,
São Paulo, prevista para abril. Focada na
entre outros, resultou em um livro que busca
questão do retrato de pessoas negras, o
selecionar os 20 artistas que iniciam a
projeto comissionou obras de 36 artistas,
década de 2020 com propostas que podem
entre eles, Arjan Martins, Ayrson Heráclito,
redefinir o futuro da arte. Com uma proposta
Castiel Vitorino, Dalton Paula, Daniel
ambiciosa – considerando, além do próprio
Lima, Desali, Igi Ayedun e Juliana dos
tema, a extensão territorial que o projeto
Santos. A proposta foi recriar a imagem
abrange –, o livro apresenta as obras de
de personalidades cujas representações
nomes como Naufus Ramírez-Figueroa, Yuli
são escassas, devido aos mecanismos de
Yamagata, Dalton Paula e Jota Mombaça.
invisibilidade dessa população no país.
Entre mais de 400 verbetes, 103 retratos
A TRAGÉDIA DA CULTURA Georg Simmel, Iluminuras e Observatório Itaú Cultural, 128 págs., R$ 42 Organizada por Teixeira Coelho, a coleção Os Livros do Observatório lança a tradução de A Tragédia da Cultura. No posfácio da edição, Coelho aponta para a atualidade da tese do livro escrito pelo sociólogo Alemão, em 1911, no contexto da cultura hoje. “Nesse ângulo, a primeira tragédia, mais visível, a tragédia imediata, é a presença ainda dominante da antropologia do século 19 no território da política cultural”, escreve.
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MARIA BONOMI COM A GRAVURA: DO MEIO COMO FIM AO MEIO COMO PRINCÍPIO Patrícia Pedrosa, Rio Books, 140 págs., R$ 75 Partindo de obras emblemáticas na trajetória da artista, o livro analisa seus percursos e a forma experimental como lida com a gravura, como o uso de grandes dimensões, a apresentação das matrizes enquanto obra final ou mesmo o uso da tecnologia para a ampliação dessa linguagem. Analisando um arco temporal que vai de 1957 a 2016, o projeto é resultado da dissertação de mestrado de Patrícia Pedrosa, desenvolvido pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
CAJUBI: RUPTURA E REENCANTO Org. Antonio Leal de Oliveira e Marcia Ribeiro, Incompleta, 126 págs., distribuição gratuita | incompleta.com.br Como desdobramento do Festival Cajubi, realizado virtualmente em fevereiro, o livro reúne entrevistas, textos, ensaios visuais e experimentações com poesia que propõem alternativas e reflexões para o mundo atual. Com contribuições de nomes como Tom Zé, Ailton Krenak, Uýra Sodoma, Tiganá Santana e Fabio Morais, o projeto é inspirado na lenda Karajá, na qual o pássaro Cajubi rasga as trevas com seu voo, criando o dia e a noite.
O QUE VEM DEPOIS DA FARSA Hal Foster, Ubu, 192 págs., R$ 59,90 O novo livro do crítico norte-americano Hal Foster reúne ensaios sobre os acontecimentos sociais desde o atentado de 11 de setembro, produzindo análises rigorosas sobre as relações entre arte e política. Utilizando conceitos da psicanálise para refletir sobre dinâmicas de gosto, afetos e sociabilidade, esta obra parece mais especulativa em relação a outras em que o autor age de modo mais assertivo e categórico. Ainda que centrado no contexto estadunidense, nesta obra o autor realiza autocríticas a outros de seus trabalhos e mostra grande generosidade ao discutir obras de Harun Farocki, Hito Steyerl ou Kerry James Marshall.
A FÓRMULA DA EMOÇÃO NA FOTOGRAFIA DE GUERRA Leão Serva, Edições Sesc São Paulo, 204 págs., R$ 69 Leão Serva, diretor de Jornalismo da TV Cultura, parte das imagens captadas em campos de batalha para examinar como elas reproduzem cenas gravadas no imaginário de outras artes. O livro tem como base a teoria do historiador de arte alemão Aby Warburg (1866-1929), cujo conceito “fórmula de emoção” (pathosformel) demonstra como modelos de expressão e gestualidade humanas são universais, o que torna possível relacionar uma imagem de 2011, na qual um rebelde líbio tenta se afastar da morte, com o gesto do personagem mítico Orfeu ao ser torturado pelas divindades Mênades em A Morte de Orfeu (1494), de Albrecht Dürer. A obra é fruto de tese defendida em 2017 e aborda cenas de combate que vão de pinturas rupestres a gravuras e fotografias contemporâneas.
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A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L
SABERES INDÍGENAS CONHECIMENTOS E IMAGINÁRIOS 20 20
Em projetos e verbetes do Itaú Cultural, a proposição de um pensamento Projetos e verbetes do Instituto Itaú Cultural ressaltam ideias ee meio pensadores crítico sobre as relações entre sociedade, política, tecnologia ambiente indígenas, propondo pontes entre suas origens e o mundo ocidental VERBETES PROJETOS MEKUKRADJÁ – CÍRCULO DE SABERES: LÍNGUA, TERRA E TERRITÓRIO A segunda edição do Círculo de Saberes Indígenas foi realizada em outubro de 2017, em São Paulo, e contou com consultoria de Daniel Mundukuru e Junia Torres na organização de palestras, debates, oficinas e mostras de filmes. Mundukuru e Alcione Pauli ofereceram uma oficina de literatura indígena, enquanto Alberto Tavares ministrou uma de vídeo e fotografia etnográficos. Na mostra de filmes, Conversas no Maranhão (1983), de Andrea Tonacci, e Martírio (2015), de Vincent Carelli, foram apresentados na instituição. Entre os temas centrais dos debates e palestras, programação que contou com nomes como Tonico Benites, Darlene Taukane e Anápuáka Tupinambá, estavam as tensões territoriais, a preservação das tradições e as pressões por políticas públicas. Em sua apresentação, a advogada Fernanda Kaingáng (foto) comenta como seu povo tem uma concepção dualista, dividindo a organização social em duas grandes famílias: dos kamé, que são noturnos, lunares e guerreiros, e dos kairu, que são os xamãs e intelectuais da sociedade, solares e diurnos. Segundo ela, os Kaingáng são o terceiro maior povo indígena do país, com 45 mil pessoas nas regiões Sul e Sudeste, passando por problemas territoriais que afetam seus padrões nutricionais e de saúde. “Nós comíamos plantas não convencionais que cresciam nas sombras das araucárias e que eram muito nutritivas. Isso foi substituído pelo recebimento de cestas básicas que vêm com trigo envenenado porMULTICULTURALISMO agrotóxicos, gerando obesidade e hipertensão”, relata. CARIMBÓ Gênero musical, dança e expressão artística de origem
(...) No campo das artes, o multiculturalismo
amazônica, em particular no nordeste doCULTURA estado E EDUCAÇÃO assume formas variadas, DAVI KOPENAWA – SEMINÁRIO ARTE, NA AMÉRICA LATINA ainda que tenha sempre do o carimbó conta com matrizes africanas, caráter engajado e intervencionista, definido em Ao Pará, apresentar como funcionam as dinâmicas de ensino e aprendizado para os Yanomâmi, Davi Kopenawa (foto), importante indígenas e europeias historicamente desenvolvidas da experiência social do de artista: sua origem, liderança indígena, mostra como isso inclui os cantos, as festasfunção e as danças. Os afetos e as formas comunicação, como falar por setores sociais marginalizados, os quais que compreendem o e ouvir, também são partes dessesentre ensinamentos comunidades pesqueiras, rurais e suburbanas. A o bem e o mal. Essa sofrimento e a alegria como formas de identificar hipótese é de que o nome curiindígenas m’bó: empermite ver como compreensão histórica dasadvém formasdo de tupi pensar português, oco escavado. “Curimbó” – ou korimbó – as relaçõespau entre o micro e o macro, o próximo e o distante, o submerso
também designa o tambor tocado apresentações e o que está na superfície estão em nas constante interação. Diferentemente (...). Menções a carimbó já eram publicadas no século de objetos estáticos e isolados, o pensamento Yanomâmi compreende 19, dee modo depreciativo e persecutório (...). Antes os mas fluxos as conexões entre as coisas, buscando cuidar desses procesatacadas menosprezadas pelas elites econômicas sos para aemanutenção da vida. O seminário Arte, Cultura e Educação na eAmérica políticas, as expressões sociais,com culturais, artísticas de outros especiaLatina também contou a participação elistas religiosas vinculadas ao carimbó paulatinamente em educação, como Stela Barbieri, Ana Mae Barbosa, Everson Melganham apreciação de outras camadas da sociedade. quiades ea Roxana Pineda.
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Links em select.art.br/acervos
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PROJETOS VERBETES UNA SHUBU HIWEA – LIVRO ESCOLA VIVA Na edição 2013-2014 doLIVRO edital ESCOLA Rumos Itaú Cultural, a UNA SHUBU HIWEA – VIVA
Editora Dantes foi selecionada para a publicação dea Na edição 2013-2014 do edital Rumos Itaú Cultural, um livroDantes que registrava a sabedoria dosde Huni Editora foi selecionada para medicinal a publicação Kuin, população indígena do Acre. Omedicinal livro é parte um livro que registrava a sabedoria dosde Huni um projeto mais amplo, que inclui Una Shubu Hiwea Kuin, população indígena do Acre. O livro é parte de – Livro Escolamais Viva,amplo, documentário e Una site que organizam um projeto que inclui Shubu Hiwea – a pesquisa desenvolvida pela editora Anna Dantes e Livro Escola Viva, documentário e site que organizam
equipe,desenvolvida com membros como o botânico Alexandre asua pesquisa pela editora Anna Dantes e Quinet, o etnobotânico Pedro Luz, a fotógrafa Camila sua equipe, com membros como o botânico Alexandre
Coutinho, o pajé ManuelPedro Vandique Buse, aCamila liderança Quinet, o etnobotânico Luz, aDua fotógrafa Huni Kuin José e a escritora Ana Miranda. Coutinho, o pajéMateus ManuelItsairu Vandique Dua Buse, a liderança A Editora existeItsairu desdee1994 e está focada na Huni Kuin Dantes José Mateus a escritora Ana Miranda. transmissão e na materialização dos saberes indígenas A Editora Dantes existe desde 1994 e está focada na
PATRICIA FERREIRA MBYÁ Cineasta e pesquisadora, é natural do povo Mbyá-Guarani, que vive na fronteira entre Argentina e Brasil. Produz e ensina cinema através do projeto Vídeo nas Aldeias e é umas das fundadoras do Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, pelo qual dirigiu filmes como Bicicleta de Nhanderú (2011). O documentário trata da espiritualidade do povo Mbyá-Guarani e é codirigido por Ariel Ortega. A cineasta também assina o documentário experimental TekoHaxy (2018), em parceria com a diretora Sophia Pinheiro. Essa obra trata do encontro entre duas mulheres, uma indígena e outra não, para discutir
pela palavra escrita. transmissão e na materialização dos saberes indígenas
suas semelhanças e pontos de contato, mesmo vivenciando
pela palavra escrita.
cotidianos culturalmente diferentes.
PODCASTS MEKUKRADJÁ CRISTINO WAPICHANA
Apresentado por Daniel Munduruku, tem enfoque Escritoroeprograma músico natural de Roraima, colabora para a dina experiência política, socialfusão e cultural dos povos indígenas. A crianças e jovens através da cultura indígena para
palavra que dá nome ao projeto tem origem caiapó e significarecreativas e de sua produda organização de atividades sabedoria e transmissão de conhecimento. uso da linguagem ção literária. ÉOprodutor do Encontro de Escritores e Ardo podcast pode ser compreendido como umae,expansão tistas Indígenas em 2007,das foi premiado no 4º Concurso tradições orais de aprendizado e ensinode das culturas indígenas. O Tamoios Literatura pela Fundação Nacional do Livro apresentador, da etnia Munduruku – predominante na região do Infantil e Juvenil (FNLIJ) com o texto A Onça e o Fogo. En-
Rio Tapajós –, tem formaçãotre emseus história, filosofia e psicologia, e, A Oncinha Lili (2014) e títulos publicados estão além de dezenas de livros publicados, o Prêmioque Jabuti A Boca darecebeu Noite (2016), levaem para as crianças o coti-
2017. Atualmente na sua quinta temporada, o podcast já Wapichana teve pardiano e a poesia do povo ao narrar a aventu-
ticipação de agentes como aracuradora NaineDum Terena, a cineasta dos irmãos e Kupai, que querem descobrir o que Graci Guarani e a antropóloga Varin Mema (na acontece com o foto) Sol, quando chega a noite.
A FLORESTA QUE DORME DEBAIXO DO ASFALTO
RONI WASIRY GUARÁ
Professor, é formado em Pedagogia Intercultural Indígena e O líder indígena Ailton Krenak (na foto) e o permacultor australiano Peter escritor de livros infantojuvenis. Vindo do Baixo Amazonas, do Webb, mediados pela jornalista Natália Garcia, protagonizaram um debate povo Maraguá, foi vencedor do 8º Concurso FNLIJ Tamoios do projeto Brechas Urbanas, em 2016. A ampliação do conceito de floresta de Textos de Escritores Indígenas. Entre seus títulos estão e o questionamento sobre como essa experiência pode modificar a cidade Olho d’Água – O Caminho dos Sonhos (2012), A Árvore da Vida são o eixo central da conversa, que aborda o entrelaçamento entre modos (2014) e Mondagará – Traição dos Encantados (2019), que de vida, estruturas políticas e meio ambiente. Outra maneira sugerida para a descrevem a relação dos indígenas com a natureza e com a reativação da floresta latente no asfalto das cidades é a escuta da linguaancestralidade antes da chegada do homem branco e como, gem das plantas e suas formas de comunicação. O Brechas Urbanas é um a partir desse contato, surgiram tragédias como a devastaprojeto de debates do Itaú Cultural que busca encontrar soluções inovadoras ção e a miséria. para os modos de vida na cidade, contando com a participação de artistas, agentes políticos, sociólogos e pesquisadores.
FOTOS: ANDRÉ SEITI/ AGÊNCIA OPHELIA/ DIVULGAÇÃO/ CORTESIA ITAÚ CULTURAL FOTOS: ANDRÉ SEITI/ AGÊNCIA OPHELIA/ DIVULGAÇÃO/ CORTESIA ITAÚ CULTURAL
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C O LU N A M Ó V E L / T H I AG O M A R T I N S D E M E LO
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A RASGA MORTALHA, O URUTAU, AS IYAMIOXORONGÁ E OS AGOUROS DE MORTE QUE DOMINAM O BRASIL CONTEMPORÂNEO Frames do filme Rasga Mortalha (2019), de Thiago Martins de Melo
O BREU DA NOITE INUNDA A MATA LÁ FORA, O SOM ESTRIDENTE DE GELAR A ESPINHA E UM VULTO BRANCO QUE PASSA CORTANTE PELA VISTA, AGOURO DE FIM PRÓXIMO DE QUEM ELA SE APROXIMA. A Rasga Mortalha
é signo disseminado nas regiões Norte e Nordeste, tendo sua origem tão variada quanto as culturas que habitam essas regiões. Suindara pode ter sido uma jovem albina ou uma moça rechonchuda apelidada de coruja branca. Qual seja a sua origem, o fim que deu origem à lenda foi o mesmo, um amor perdido e a vida abreviada pelo assassinato. O terror de seu grito inumano, como o seu nome sugere, ecoa a injustiça sofrida, a ira vingadora e o inexorável destino de quem a testemunha. A Rasga Mortalha não é a única narrativa conhecida no país que relaciona mulheres, aves e agouro de morte. A matriz indígena trouxe o Urutau, nome tupi que significa “ave fantasma”. Conhecida no Centro-Oeste brasileiro e na Bolívia, trata da história trágica de uma mulher indígena, cujo pai assassinou o seu amante por não aceitar a relação e transformou a filha que testemunhou o ato em ave, para que o segredo não fosse revelado. À noite, a ave ecoa a voz da jovem que chora pelo amor perdido. Já o Atlântico, passagem para a chegada de voduns, orixás e inquices, trouxe o culto às IyamiOxorongá, mães tão antigas quanto a África, dotadas de profundo poder ancestral feminino e que, no Maranhão, têm seu culto relacionado a NochêNaê, a mãe de todos os voduns. O culto às IyamiOxorongá é cercado de tabus e vetado a leigos tanto na África quanto no Brasil. As Iyami têm o poder de transformar-se em um pássaro negro, noturno, que no Brasil foi associado à coruja, que, assim como a Rasga Mortalha, irrompe na noite com um tétrico grito que traz
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agouro de morte para aqueles que a encontram. Agouros de morte dominam o Brasil contemporâneo, do estabelecimento da necropolítica como política não oficial de Estado aos ataques sistemáticos à diversidade cultural brasileira. Dilma, Marielle e o fóssil de Luzia são marcos simbólicos do martírio do feminino na era fálica trevosa que o país adentrou. A catarse dos séculos de atividade do moedor de carne colonial irrompe em mais um ciclo, dessa vez com o retorno do fascismo ao poder oficial. Rasga Mortalha, o filme, surge como registro desse agouro terrível que no ano de finalização da obra se concretiza com a eleição de Bolsonaro. A catarse histórica, perpétua e cíclica sugerida em Rasga Mortalha, aliada à ascensão oficial do fascismo, acabou dando à luz o conceito de Necrobrasiliana, uma série de pinturas apresentadas no início de 2019 que abre essa oficialização da violência e morte como signos do imaginário pictórico brasileiro. A série tinha como base a releitura de imagens, signos – oficiais ou não – da história brasileira e sua construção fúnebre, a partir da invenção de país sobre os restos de civilizações e povos massacrados e assimilados. Assim, como na história da Rasga Mortalha, a era de trevas que assola o país aguarda que sua maldição seja quebrada. Desta vez, não pelas mãos de um salvador, mas pela construção coletiva que dará origem à tardia revolução brasileira, cuja utopia quebrará o ciclo da maldição de sacrifícios coletivos engendrados pelas tragédias políticas de nossa história. As histórias do Brasil, assim como as do mundo, são sempre as mesmas, transformam-se apenas os signos que as revestem e a utopia, como diria Eduardo Galeano, está no horizonte apenas para que continuemos a caminhar.
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
C O L U N A M Ó V E L / G U S TAV O G O D OY
E O RIO TORNOU-SE AMAZONAS 24
Capa da revista Icamiabas, de outubro de 2018, criada por Bruna Tamires (Malokêarô)
AS NARRATIVAS EM TORNO DE GUERREIRAS INDÍGENAS PODEM TER AVIVADO A CRENÇA EM UMA PROVÍNCIA DE MULHERES SEM HOMENS. Em 24 de junho de 1542, em
território que hoje é brasileiro, um pequeno grupo de espanhóis perdidos navegava em busca de um local para realizar a festa junina de São João. Eram comandados por Francisco de Orellana, que participara da conquista dos Incas. Vinham de Quito, hoje capital do Equador, de onde saíram no ano anterior. Seguindo boatos, buscavam uma região rica em canela e o tão sonhado país dourado, de onde extrairiam fáceis riquezas. Desceram o curso do rio sem saber para onde estavam indo. A duras penas, descobriram que era o maior rio do mundo. Famintos e esfarrapados, os espanhóis roubavam comida de diversas aldeias. Atacavam indígenas que se defendiam e não encontraram os locais que desejavam, nem mesmo um porto para a festa. Nessa altura do trajeto, a expedição encontrou um grupo feminino armado composto de uma dezena de mulheres altas, musculosas e com longas tranças no cabelo, que comandava com furor um exército nativo. O cronista da viagem, o Frei Carvajal, escreveu que a expedição deu em “uma boa terra e domínio das Amazonas”. A imaginação dos conquistadores encontrou um local para ambientar notícias fomentadas na antiguidade. Segundo os gregos antigos, uma nação exclusivamente de fêmeas, as amazonas, habitava a leste do Mediterrâneo. De acordo com eles, as ágeis arqueiras nômades montadas a cavalo, guerreiras fascinantes, seriam filhas do deus da guerra, Ares, e cultuadoras da deusa caçadora Ártemis, além de criadoras da cavalaria e das calças. Segundo a historiadora norte-americana Adrienne Mayor, uma especialista no tema, a lenda das amazonas foi inspirada nas guerreiras do povo cita. Os gregos fascinaram-se pelas bárbaras das estepes, onde os papéis de gênero eram tão diversos, e apropriaram-se de sua imagem. Recentemente, a pesquisa arqueológica desenterrou a base real dessas lendas e arqueólogos também escavaram ossos de guerreiras citas em túmulos aterrados desde a Ucrânia até a Ásia Central, e esqueletos de mulheres de 10 a 45 anos apresentavam indícios de atividade guerreira. Forjada no contato entre os gregos e os citas, a imagem das
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amazonas perdurou e migrou. Desde os primeiros tempos da invasão colonial, a ideia de uma nação de mulheres guerreiras, livres de homens, estava presente. Já em janeiro de 1493, apenas três meses após sua chegada, Cristóvão Colombo coleta informações sobre uma ilha chamada Matininó, habitada só por mulheres. Para engravidar, elas importavam homens da ilha Caribe. O tema espalhou-se no Novo Mundo, aparecendo em relatos de outros locais, mas as ditas amazonas não eram apenas um velho mito instalado pelos europeus no tal Novo Mundo. Os indígenas validavam as ideias invasoras, contribuindo para o batismo do Rio Amazonas. Em 1637, outra expedição ao Amazonas foi realizada, vinda do Maranhão e comandada por um português. Seu cronista foi Cristóbal de Acuña, jesuíta espanhol. A expedição obteve, por todo o rio, amplas notícias sobre as guerreiras de sociedades sem homens. Como a informação se repetia em diversos povos, Acuña observa que “não é crível que uma mentira pudesse ter se enraizado em tantas línguas e tantas nações”. Até hoje povos indígenas contam sobre figuras similares às amazonas. É o caso das Icamiabas na Amazônia, das mulheres-espíritos entre os Maxakalis, em Minas Gerais, e das hipermulheres entre os povos do Alto Xingu, em Mato Grosso. Embora alguns tenham duvidado, a luta da frota de Orellana contra as ditas amazonas pode ter sido real. Em 1576, na Primeira História do Brasil, Pero de Magalhães Gândavo informa sobre guerreiros transgêneros entre os Tupis da costa. Nascidos em corpo de mulher, abandonavam as tarefas femininas e seguiam ofícios ao lado dos homens. Com corte de cabelo masculino, arcos e flechas em punho, guerreavam e caçavam “sempre na companhia masculina”. Casavam-se, inclusive, com mulheres. Se na Grécia antiga as guerreiras citas atiçaram a fabulação, por aqui as narrativas em torno de guerreiras podem ter avivado a crença em uma província de mulheres sem homens. A fábula absorveu o verídico. O Rio Amazonas já tinha sido chamado, em 1500, de Santa Maria do Mar Doce. Alguns tentaram chamar de Marañón ou colocar o nome do conquistador sem rumo: Rio de Orellana. Nenhum deles pegou. E o rio tornou-se Amazonas.
FOTO: BRUNA TAMIRES (MALOKÊARÔ)
ESTUDO DE CASO
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JAIDER ESBELL E A SOBREPOSIÇÃO DE MUNDOS A série A Guerra dos Kanaimés materializa a compreensão macuxi de que a realidade tem dimensões que sobrepõem passado, presente e futuro, em simbiose e retroalimentação
LEANDRO MUNIZ
Guerra dos Kanaimés (2020), da série comissionada pela 34 a Bienal de São Paulo
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Brinquedo de Furar Moletom (2018), intervenção site-specific na varanda do MAC Niterói
FOTO: RAFAEL ARDOJÁN, CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA LEME
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SOBRE UM FUNDO PRETO OPACO FEITO COM TINTA ACRÍLICA, JAIDER ESBELL DESENHA COM POSCA (CANETA TAMBÉM DE BASE ACRÍLICA QUE PERMITE UMA COBERTURA HOMOGÊNEA) DIVERSOS SERES SOBREPOSTOS POR SUAS TEXTURAS E TRANSPARÊNCIAS. A série A Guerra dos Kanaimés, produzida entre 2019 e
2020, é composta de 11 telas de 145 x 110 cm – o que provoca no espectador um embate corporal com a imagem – e foi apresentada na exposição Vento, primeira de uma série da 34ª Bienal de São Paulo. O fundo preto enfatiza a sensação de um mundo espectral, enquanto as cores brilhantes dos desenhos trazem vibração à imagem, criando uma atmosfera entre o lisérgico e o cosmológico. O aspecto vazado dessas figuras alterna constantemente no olhar o foco entre os seres isolados e justapostos. As texturas remetem a padronagens e parecem oscilar entre o efeito descritivo de materiais, como tecidos e plantas, e a tentativa de tornar visíveis as sensações. Em alguns trechos da pintura, as linhas verticais sugerem a palha de uma roupa, o desenho geométrico da pele de um sapo, ou a atmosfera celeste. Em outros, as entidades flutuantes sobre a paisagem parecem nos olhar fixamente, em um trânsito entre o concreto e o imaginário, o material e o espiritual. Na cosmogonia Makuxi (população originária do estado de Roraima, perto da fronteira com a Colômbia e a Venezuela), o Kanaimé é um ser ligado à metamorfose que dialoga com o mundo imaterial e da magia. Quando incorpora em uma pessoa, ele torna-se outra criatura, um predador ou protetor. Também está diretamente ligado à questão social e a uma maneira muito própria de fazer justiça, em geral de modo violento, mas justificado no contexto. “Esse é um tema que trabalho desde 2011, no início da minha produção pictórica”, diz Jaider Esbell à seLecT. “Ao ser convidado pela Bienal, vi essa questão do conflito na forma da política atual que nos submete a forças e valores externos, que são hegemônicos. Há uma guerra de mundos, de fato, por territórios, por modos de pensar e por recursos.” Nas cosmogonias indígenas, não há separação entre as coisas do mundo, o indivíduo e o coletivo, o espiritual e o material. Se, em suas primeiras pinturas, Esbell construía a imagem por blocos de cor homogêneos, nesta série, o procedimento de sobreposição de texturas e imagens materializa o trânsito entre diversas dimensões. “Os mundos material e imaterial na nossa cultura são muito facilmente transpostos. O subconsciente, a magia e o espiritual são campos de disputa e estão em conflito.”
Nesta e nas próximas páginas, obras da série A Guerra dos Kanaimés (2020) VOL. 10 / N. 50
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
FOTOS: MARIO GRISOLLI/ DANIEL CABREL, CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA LEME
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Para além da transposição imediata do imaginário indígena para as técnicas ocidentais, a pintura de Jaider Esbell cria uma temporalidade comprimida e não linear, enfatizando um aspecto interno da produção pictórica: a construção por camadas
INTERMUNDOS
Uma operação recorrente na produção indígena atual é a transposição de imagens ligadas às suas etnias e clãs, em especial os grafismos, para técnicas, digamos, ocidentais, como a pintura em tela. Se as padronagens aplicadas na pele, nos tecidos e nas cerâmicas têm conexão com a vida prática, inclusive com funções específicas, de proteção ou mudança de ciclo, a história da pintura (sobre tela) está diretamente ligada à tradição ocidental da arte. É uma linguagem que pressupõe distância entre espectador e obra, emissão e recepção de mensagem, além de todo um sistema institucional e econômico que separa a arte da experiência integral do dia a dia – diferentemente do fazer indígena. Em entrevista para a 34ª Bienal de São Paulo, Esbell aponta como reivindica a autoria, de um traço ou linguagem próprios, sem se apropriar de um símbolo coletivo para fins individuais, ainda que, evidentemente, esse imaginário e essa estética grupal estejam na base de sua obra. Para além da transposição imediata do imaginário indígena para as técnicas ocidentais, suas pinturas recentes criam uma temporalidade comprimida e não linear pela ênfase em um aspecto interno da produção pictórica: a construção por camadas. A série A Guerra dos Kanaimés materializa a compreensão Makuxi de que a realidade tem várias dimensões que se interconectam e se sobrepõem umas às outras, com elementos do passado, do presente e do futuro em simbiose e retroalimentação. A pintura recente de Jaider Esbell faz a passagem entre esses diversos modos de operar, encontrando sínteses próprias de vocabulário e posicionamento crítico. A linguagem e o imaginário do trabalho demonstram o tempo como a simultaneidade e a interação entre os campos subjetivo e social, mágico e político, em um trânsito entre mundos.
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
Pancake (2001), performance / Instalação realizada na exposição Orlândia, ocupação de uma casa em obras, no Rio de Janeiro. Duração: 1 hora Texto da artista Em pé, dentro de uma bacia de alumínio (de 80 cm de diâmetro), abro uma lata de Leite Moça utilizando uma marreta pequena e um ponteiro. Derramo o leite condensado sobre minha cabeça e corpo. Repito a ação com todas as latas. Em seguida abro um pacote de confeitos coloridos, colocando o conteúdo numa peneira. Peneiro os confeitos sobre a minha cabeça e meu corpo. Repito a ação com todos os sacos de confeito. Os vestígios resultantes da performance permanecem em exposição. Material: 10 a 12 latas de Leite Moça, embalagem de 2,5 kg; 7 a 10 pacotes de confeito miçanga, embalagem de 1 kg
FOTO: WILTON MONTENEGRO
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E N CO N TRO DA FL ORE STA C OM A C ID AD E, O MERCADO PARAEN SE IN SPIRA N OS ART ISTAS DIRCEU QUEIROZ
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Ney Matogrosso, com figurino de Labô Young, para o clipe Vênus em Escorpião, de Gaby Amarantos
VOL. SELECT.ART.BR 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN JUN/JUL/AGO2021 2020
FOTO: CORTESIA GALERIA FORTES D’ALOIA & GABRIEL
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MADE IN BELÉM NINA RAHE
NINA RAHE
O ESTILISTA LABÔ YOUNG GANHA O MUNDO COM SUAS CRIAÇÕES A PARTIR DE VEGETAIS, E QUER Sem Título (1988), NA REGIÃO EM QUE CONTINUAR PRODUZINDO de Ivens Machado CRESCEU E DE ONDE VEM SUA INSPIRAÇÃO FOTO: RODOLFO MAGALHÃES
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À esq., o estilista Labô Young; à dir., página de editorial da revista i-D
É NO QUINTAL DE SUA CASA EM ICOARACI, DISTRITO DE BELÉM DO PARÁ, QUE O ESTILISTA LABÔ YOUNG ENCONTRA INSPIRAÇÃO PARA BOA PARTE DO QUE CRIA.
Ele conta que aprendeu com sua mãe a utilizar o que tinha à mão para confeccionar seus próprios brinquedos. Das plantas, palhas, caroços e sementes que havia ali surgiam miniaturas de vacas e bois, criados com a ajuda de muita imaginação. É nesse quintal com tucumanzeiro, mangueira e aceroleira, entre outras árvores frutíferas, que Young diz encontrar ainda grande parte dos materiais que servem agora para um propósito mais sério, mas não menos criativo. As mesmas plantas, palhas, caroços e sementes são hoje matérias-primas para figurinos de moda, trabalho pelo qual o estilista está chamando atenção e ganhando prêmios. Seu nome aparece entre os 50 jovens talentos mais inovadores de todo o mundo, na lista New Wave: Creatives 2020, do British Fashion Council, e Young também ganhou neste ano, ao lado de Rodrigo Polack, o melhor figurino do Music Video Festival por Vênus em Escorpião, clipe de Gaby Amarantos no qual suas peças, máscara e vestido construídos inteiramente de folhas, aparecem em meio a um cenário futurista como reforço ao grito pela preservação da floresta. Autodidata, sem titulação acadêmica, Labô Young diz que sua formação é ancestral. “Minha família vem de gerações ribeirinhas e são artistas também. Criam barcos, cestas, roupas, tudo a partir do próprio imaginário e isso se conecta muito comigo”, diz. Filho de uma marajoara que se mudou ainda nova para Icoaraci, o artista costumava viajar na infância para a Ilha de Marajó, lugar que se tornou referência em seu processo. “É um instinto ancestral. Eu e minha mãe sempre tivemos uma conexão muito forte com o rio, com a ilha, a floresta. A nossa vivência, enquanto pessoas amazônicas, é uma influência muito forte”, diz, lembrando das narrativas que cresceu ouvindo de seu avô, que era pescador. Eram histórias do folclore amazônico que encantavam Young e tinham como pano de fundo o cuidado com a floresta, mas, ao mesmo tempo, lhe davam medo por conta dos personagens que podiam também fazer mal. “Tinha medo por não entender, mas hoje entendo que nós fomos criados na encantaria e somos também encantaria.”
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FOTOS: JULIANA ROCHA E BRUNO MACHADO/ RAFAEL PAVAROTTI
SOMOS ENCANTARIA
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SOMOS ENCANTARIA Apesar da inventividade que sempre o acompanhou, Young conta que foi sua mudança para a Ilha de Mosqueiro, onde se encontrou longe dos amigos, que fez com que se voltasse para si mesmo e seu universo afetivo. Se antes, juntamente com sua turma, ele gostava de customizar peças de jeans, foi nesse deslocamento, em 2017, que o paraense começou a criar peças de roupas a partir de vegetais. E foi essa opção que, apenas dois anos depois, o colocou em contato com o estilista serra-leonês Ib Kamara, o cultuado editor de moda da revista britânica i-D. Ao ser chamado como modelo de um editorial da publicação estrangeira, que seria fotografado por Rafael Pavarotti, seu conterrâneo, Young aproveitou para mostrar suas criações e acabou sendo convidado para participar também de um editorial da revista do jornal francês Le Monde, que foi dedicado ao Rio de Janeiro. “Depois dessa parceria, as coisas começaram a acontecer e as pessoas entenderam o meu trabalho”, lembra. De lá para cá, além de colaborações com a cantora Gaby Amarantos, Labô Young participou da produção de curtas, como Queda do Céu, de Fernando Nogari, e Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de Igor Furtado, e outros videoclipes, como Flor de Mureré, do grupo paraense Carimbó Cobra Venenosa. Também tem colaborado com frequência para projetos da marca Farm, criando desde adereços e máscaras para as vitrines de lojas em São Paulo e Rio de Janeiro até adornos para editoriais de moda. Para todos esses trabalhos o artista conta que são raras as vezes que sabe de antemão o que vai criar. O que prefere, na verdade, é levar vários materiais consigo para sentir, na hora, o corpo de cada pessoa. A primeira vez que confeccionou um vestido, ele lembra, foi durante um cafezinho da tarde com uma amiga. No meio do encontro, visualizou uma folhagem que achou bonita e, como por encanto, estava pronta sua mais nova peça. “Não foi nada muito pensado, foi de sentir o corpo mesmo e as formas que as coisas têm e onde elas se encaixam”, lembra. “Sempre vou descobrindo coisas novas na natureza.”
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FOTOS: LABÔ/ BRUNA SUSSEKIND
Criação para o editorial Deriva, para a marca Arco; na pág. à esq., a irmã do artista, Samya
FOTOS: CORTESIA GALERIA VERMELHO
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MEMÓRIA AFETIVA Recentemente, ele deparou-se com a palha do Tururi, que estica ao ponto de quase se transformar em um tecido e, na viagem com a Farm para a Ilha de Marajó, onde aconteceu o ensaio fotográfico, Young também descobriu a inajá, palmeira nativa cujos frutos, que se parecem com tigelas, já aparecem nas suas criações. As “tigelas”, o artista depois soube, eram utilizadas por sua mãe e a avó para dar comida aos cachorros. “É muito forte para mim e me emociona de verdade, quando percebo que o que uso tem uma história e que outras pessoas podem voltar para essa memória afetiva de casa e conforto”, diz. Requisitado cada vez mais pelo mercado da moda, para o editorial da grife Dion Lee, o estilista teve a oportunidade de coordenar toda a produção em Belém. A conversa com a marca foi toda a distância e, a partir das peças enviadas, Young pôde escolher os modelos e os fotógrafos com quem iria trabalhar. “Tenho pensado nessa forma de ter autonomia para criar, de fazer com que a colaboração aconteça a partir de como eu quero que seja”, diz. Ainda que confesse ter medo de avião e não gostar muito de viajar, ele justifica essa vontade pelo fato de ter o Pará como seu lugar de inspiração. “A resistência que tento propor é para que as pessoas entendam que não sou sozinho. O que crio não vem só de mim, mas há pessoas que vêm antes para que eu possa construir, como minha mãe, minha família”, justifica. “Se tenho a oportunidade de trabalhar com as pessoas daqui, prefiro ter essa oportunidade e dar oportunidade a elas também. Aqui é o lugar que me nutre.”
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FOTO: RAFAEL PAVAROTTI/ LUCIANO CANTANHEDE
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Marcely Gomes, na série Cafarote, para o IMS; à esq., a mesma modelo em editorial da revista i-D
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ CENTRAL GALERIA
COSMOGONIA
CONSTELAÇÃO DA ONÇA L E A N D R O M U N I Z E PA U L A A L Z U G A R AY
ENTRE O FASCÍNIO E O TERROR, O IMAGINÁRIO DA ONÇA-PINTADA TEM RESSONÂNCIAS NAS COSMOGONIAS INDÍGENAS, NA CIÊNCIA E NA LITERATURA. A ONÇA É SÍMBOLO DE PODER, FORÇA, CONHECIMENTO E ESTRATÉGIA. PARA O BEM OU PARA O MAL
Somos Amigos da Onça (2018), de Yná Kabez Rodriguez Olfenza, na exposição do 7 o Prêmio EDP das Artes, 2021, no Instituto Tomie Ohtake
FOTO: CORTESIA INSTITUTO TOMIE OHTAKE
A ONÇA-PINTADA, TAMBÉM CONHECIDA POR JAGUAR, PANTERA-ONÇA, JAGUARAPINIMA, JAGUARETÊ OU CANGUÇU, É O MAIOR FELINO DAS AMÉRICAS. “Por estar no topo da cadeia alimen44
tar e precisar de grandes áreas preservadas para sobreviver, esse animal sempre foi importante nas ações de conservação ambiental. Para os cientistas, sua presença indicava que uma região oferecia boas condições para a sobrevivência. O narrador de Meu Tio o Iauaretê, conto de Guimarães Rosa, se dizendo parente de onça, conta que ela muda muito de lugar de viver, “por o de comer não chegar...”. Quando chega a pecuária, a exploração madeireira, as monoculturas, a mineração e o garimpo ilegal, as onças são “tocadas pra longe”. A regra sempre foi: onde há onça-pintada há manutenção de flora, fauna, rios e nascentes. Havia. Um estudo publicado em janeiro por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), que vem monitorando felinos nos últimos seis anos em Paragominas, no nordeste paraense, aponta que as espécies estão se adaptando à degradação ambiental na Amazônia. Esse felino arquetípico de poder, que na cosmogonia dos Yawalapiti, do Alto Xingu, é pai dos gêmeos Sol e Lua – que por sua vez são os pais dos seres humanos –, e é o único animal que não tem medo ou respeito aos humanos, deixou de aferir o grau de preservação das matas e dos biomas. Quando um arquétipo de destemor tem de se submeter às regras exploratórias para não ser extinto, mudando hábitos para se adaptar ao impacto humano e sobreviver em terras arrasadas, cabe lembrar as cosmogonias, os mitos de criação dos povos e do mundo, que narram a destruição da terra original por cataclismos em forma de incêndios ou dilúvios, decorrentes de crimes, traições ou vinganças. E pensar em como a capacidade de transmutação atribuída a esse felino tem sido uma chave da resistência indígena. São muitas as formas transmutadas que a onça assume ao se relacionar. Existem os gente-onça dos povos Tariano do Alto Rio Negro, o demônio-onça dos Jabuti de Rondônia, o pajé-onça dos Baniwa, a onça-jabuti dos Macuxi... Este texto segue as trilhas de alguns deles, em pegadas deixadas na cultura brasileira por meio da obra de artistas indígenas.
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Acima, Terra Indígena (2019), de Denilson Baniwa; Missionary Being Eaten by Jaguar (1907), de Noe Leon; Onça-Jabuti Macuxi (2021), de Jaider Esbell. À dir., pintura da série O Ataque do Kanaimé (2011), de Jaider Esbell
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / REPRODUÇÃO / CORTESIA DO ARTISTA / MARCELO CAMACHO, CORTESIA DO ARTISTA
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FOTO: MATHEUS BELÉM
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Assim como as pinturas indígenas encontram ressonâncias com os esquemas de representação científicos de células e ecossistemas, algumas mitologias sobre a onça também encontram paralelos com o pensamento científico. Se a presença de grandes carnívoros implica um ecossistema rico e saudável, para os indígenas esse animal é um dos mais antigos do mundo, em um estado avançado de compreensão do tempo. Diferentemente dos grandes felinos de outros biomas, a onça pode correr, subir em árvores e nadar com grande habilidade, podendo capturar presas em todos esses espaços. Essa variedade de recursos, aliada a seus hábitos predominantemente noturnos, permite com que ela ataque inclusive animais perigosos para ela mesma, como jacarés, o que implica, além de força e habilidade, estratégia de caça. Esse conjunto de características faz da onça um símbolo de poder e conhecimento. A artista Yná Kabe Rodríguez Olfenza tem usado imagens da onça em analogia à travestilidade: ambas são ameaçadas, vigiadas e vivem processos de transformação em seus corpos. ”Nós também somos felinas”, diz à seLecT. Em sua dissertação de mestrado, Táticas de Resistência: Relatórios da Sobrevivência da Onça, Yná Kabe desenvolve esses paralelos, comentando, inclusive, o hábito das travestis de usarem roupas com estampas de onça. Já no projeto Secretaria para o Desenvolvimento da Primeira Escola de Indisciplina do Brasil, a onça é símbolo de resistências das mais diversas causas, do desmatamento às violências epistemológicas. Mais que um animal, a onça é uma entidade que empresta ao mundo e aos outros seres a sua força destruidora. Para o bem ou para o mal. Para os Baniwa, as onças (Dzawi) viram o universo nascer e estão aqui desde o começo. Viram a passagem do tempo e o compreendem de outra maneira, têm acesso a informações privilegiadas e só são precedidas pelo gavião-real (Kamathawa), que sobrevoa o mundo e informa Ñhapirikuli e Amaro, o casal formador do mundo. Para os Caiapó, em tempos imemoriais, ela era dona do arco, da flecha e do fogo, até ser roubada pelos seres humanos. Privada das arRESISTÊNCIA E DESTRUIÇÃO
À dir., logo desenvolvido para a escola EIB (Primeira Escola Indisciplinada do Brasil), projeto em processo de Yná Kabez Rodríguez Olfenza. Na página ao lado, Bandeira da SEC-EIB (2020), obra de Olfenza e design fráfico de Félix B. Perini
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À esquerda, Pipocas (2008), à direita, Pedra Roseta (1999) da série Baldios
mas, passou a caçar com os dentes e, do fogo, restou-lhe o brilho no olhar. A integração entre animal e humano é um traço saliente das cosmogonias indígenas e, em muitos mitos de criação, há homens com a capacidade de se transformar em onça. No mito Tupinambá, restaurado pelo escritor Alberto Mussa em Meu Destino É Ser Onça, o apocalipse aconteceria quando Sumé, um indígena ancestral, transformado na grande jaguara azul, a onça celeste, devorasse a lua, apagando a luz da
noite, extinguindo a humanidade. Segundo o artista Jaider Esbell, para os Makuxi a onça é desafio, opressão e coloca a sociedade em alerta e vigilância. Ela é complementar à figura do jabuti: um é força e agressividade, o outro, parcimônia e paciência. E os povos tentam equilibrar-se nivelando essas duas forças. “Eles trabalham juntos para essa reflexão maior: a onça representando, por exemplo, o capitalismo, a globalização, a colonização; e o jabuti trazendo as respostas para aquilo que a gente não alcança por meio da força bruta”, diz o artista. “Essa dicotomia representa como lidar com os ímpetos, a raiva, o rancor, como utilizar a sabedoria para o nosso trabalho de contracolonização”, resume.
FOTO: MATHEUS BELÉM
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MAIS QUE UM ANIMAL PROPRIAMENTE DITO, A ONÇA É UMA ENTIDADE, UMA DIVINDADE QUE EMPRESTA AO MUNDO E AOS OUTROS SERES A SUA FORÇA DESTRUIDORA
À dir., Rômulo Nº 01 Olfenza, Princess Nebulosa Olfenza, Sudan El Toro Olfenza, Zaylee Olfenza e Mother Yná Kabez Rodríguez Olfenza para divulgação do Dia Internacional da Onça. Abaixo, Pajé-Onça (2018), de Denilson Baniwa, na marquize do Ibirapuera
Em entrevista à seLecT, a artista Sãnipã diz que hãkytxy (onça) é um ser que os Apurinã compreendem como uma deusa sobrenatural. “Ela é um pajé e, quando um mēēte Apurinã (pajé) recebe a pedra da onça, ele está preparado para cuidar do povo dele. Se precisar ir no mato buscar remédio, a onça indicará onde tem”, diz. “Os pajés Apurinã sempre conversam com a onça e, quando eles morrem, só morrem para os nossos olhos. Espiritualmente, se ele recebeu a pedra da onça, então onça virará.” Para os Baniwa, antes de o ser humano existir, havia outros seres em gestação dentro do cosmo, que evoluíram e tomaram conta de outros mundos existentes, fora do mundo físico. O mundo era governado por seres gigantescos que incluíam um tipo de gente – mas não com forma humana – e outros seres que, hoje, entendemos como animais, mas que na época também eram gente. A onça é um desses seres que deixaram esse mundo para que o homem vivesse aqui, mas ela pode ser acessada por meio dos pajés, tradutores desses dois universos. O pajé Baniwa, quando alcança o mundo das onças primordiais, está formado e recebe o título de Pajé-Onça, que é a formação máxima possível para as formas humanas – para avançar mais, na forma de um gavião-real, seria preciso ser outra coisa (não humana).
PRIMORDIAL E SOBRENATURAL
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Ele torna-se então mais poderoso, pois passou por vários treinamentos e experiências que nenhum outro humano suportaria. O último Pajé-Onça Baniwa, Seu Mandu (Manoel da Silva), faleceu há três anos e ajudou a construir uma escola de pajés, a Malikai Dapana, às margens do Rio Ayari, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Além da preservação de seus conhecimentos e tradições, a escola opera em resistência à entrada violenta do protestantismo na região. “Entendo o papel do artista como esse de traduzir mundos também, traduzir o ocidental para cá e traduzir o Baniwa para vocês”, diz Denilson Baniwa. “Quando me visto de pajé, estou fazendo essas traduções e me colocando à disposição desse ser ancestral para contar os ciclos de fim de mundo que já existiram e que podem voltar a existir se a gente não tomar cuidado”, completa o artista, sobre a performance Pajé-Onça (2018), em que caminha pela cidade de São Paulo munido de lança, chocalho, cabeça e capa de onça. A voracidade da onça também está nas constelações celestes, onde essa rainha da cadeia alimentar é igualmente temida. Um mito Tupi-Guarani relata que a onça (xivi, em guarani) sempre persegue os irmãos Sol e Lua. Na ocasião do eclipse solar ou do lunar, os indígenas ritualizam para espantar a Onça Celeste, pois o fim do mundo ocorrerá quando ela devorar a Lua, o Sol e os outros astros. No céu também estão a anta, a ema, a cobra, o veado, a seriema, o jabuti, o tatu, o tamanduá e outros bichos. Para os Ticuna, a constelação da onça localiza-se próxima ao Escorpião e à cabeça do tamanduá no Triângulo Austral. Eles afirmam que a briga da onça com o tamanduá ocorre durante a estiagem (de julho a agosto, época da vazante), para evitar o eclipse do Sol. No início do verão, a onça fica sobre o tamanduá e, ao final, este aparece vitorioso sobre ela, antes que ambos os animais deixem a esfera celeste visível para dar lugar à ascensão do jabuti. No céu, a força e a prudência interagem como se estivessem na floresta. FLORESTA NO CÉU
FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA / JOSÉ MOREAU
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FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
P R OJ E T O
#FLORESTAPROTESTA ARTISTA PARAENSE ARMANDO QUEIROZ ELABORA O LUTO PELO GENOCÍDIO INDÍGENA PARA A SÉRIE DE ARTE E ATIVISMO
ARMANDO QUEIROZ (BELÉM, 1968) ADAPTA PARA O PROJETO #FLORESTAPROTESTA UM DOS TRABALHOS DA SÉRIE REDUÇÕES (2021). Se a vela é um símbolo de luto e
homenagem aos mortos, o derretimento da matéria estampada com o desenho de um indígena de etnia Xavante suscita a reflexão sobre o desaparecimento programado dessas populações, nos levando à pergunta: até quando? Informado por extensas pesquisas históricas e sobre os usos sociais e simbólicos dos objetos e materiais, Armando Queiroz lida com fotografia, vídeo e performance para discutir as violências contra o território amazônico. Em sua dissertação de mestrado, Destino Eldorado, o artista analisa os impactos da atividade garimpeira em Serra Pelada, no Pará. A pesquisa resultou em uma série de obras que discutem o fascínio pelo ouro e as faces obscuras da extração desse minério: contaminação dos rios por mercúrio, trabalhos em condições análogas à escravidão e, claro, violência contra os territórios e as populações indígenas.
Série Reduções, 2021, Armando Queiroz
SELECT.ART.BR
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#FLORESTAPROTESTA EM AÇÃO DE ARTE E POLÍTICA, SELECT CONVIDA ARTISTAS A PRODUZIR PÔSTERES EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE E ALINHA-SE AO CAMPO DA GRÁFICA DE PROTESTO, NA LUTA CONTRA O OBSCURANTISMO E OS DISCURSOS DE ÓDIO QUE NUBLAM A REALIDADE BRASILEIRA
O GRUPO APARELHAMENTO ELABOROU UM PÔSTER A PARTIR DE UMA OBRA DO ARTISTA FRANCÊS JEAN-BAPTISTE DEBRET, QUE MOSTRA ÍNDIOS GUARANIS SENDO CAPTURADOS. O grupo traduziu e replicou o título original em uma alusão aos
acontecimentos que se repetem no Brasil desde o período colonial, “como a ânsia extrativista e as formas de exploração do trabalho entre classes, nem sempre distintas”, afirmam. A imagem é de domínio público e faz parte da Coleção Brasiliana da Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Em marcha decrescente, segue o povo supostamente civilizado em sua saga contra a floresta. A imagem feita por Jean-Baptiste Debret em 1834 infelizmente não é um documento anedótico de tempos passados”. Assim os artistas do grupo Aparelhamento definem o verbete da gravura de Debret, que retratou a sociedade brasileira no fim do período colonial, entre 1816 e 1831. O Aparelhamento é uma rede de mais de cem artistas, responsável por ações que “se configuram como críticas contundentes à lógica de retrocesso cultural e social percebida no Brasil desde 2016”, como definem os artistas. Entre elas, a Galeria Reocupa, instaurada dentro da Ocupação 9 de Julho, em 2018, e a Rádio Floresta (2020), que permitiu à comunidade ribeirinha de Careiro Castanho, no Amazonas, instalar e gerir sua própria rádio.
Sem Título, 2021, Aparelhamento
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
R E P O R TA G E M
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PLANTAR GÊ VIANA E GUSTAVO CABOCO CONSTROEM SUAS TRAJETÓRIAS A PARTIR DA COMPREENSÃO DA PRÓPRIA ANCESTRALIDADE
NINA RAHE
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O CORPO
Instalação de lambes da série Paridade (2017), de Gê Viana, em rua lateral do Sesc Santana
FOTO: PABLO MONTEIRO
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NO TRABALHO DE GÊ VIANA, O CAPELOBO TORNA-SE, POR MEIO DA FICCIONALIZAÇÃO DE LENDAS MARANHENSES, UM ELEMENTO DE PROTEÇÃO ÀS MULHERES INDÍGENAS E NEGRAS VIOLADAS VOL. 10 / N. 50
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NINA RAHE A ARTISTA GÊ VIANA CRESCEU ESCUTANDO DO SEU AVÔ MATERNO SOBRE OS CAPELOBOS, CRIATURAS COM CORPO DE HOMEM, FOCINHO DE TAMANDUÁ E PÉS EM FORMA DE FUNDO DE GARRAFA, QUE VIVEM NO MEIO DO MATO E SAEM À CAÇA EM BUSCA DE CÃES, GATOS E RECÉM-NASCIDOS PARA SE ALIMENTAR. Essa lenda popular indí-
Na pág. à esq., Paridade Primeira Camada Vô Fernandes Segunda Camada Homem Nativo da Amazônia, de Dominic Bracco II (2019), e Paridade Neide Tupinambá y Indígena Guaycuru (2019); acima, Retiro de Caça (2019), de Gê Viana
gena, que possui algumas variantes no Maranhão e no Pará, apesar de lhe dar medo, vinha também como uma lembrança presente na memória e no próprio corpo. “Tenho uma relação muito forte quando entro no mato, nesses lugares em que não é comum qualquer pessoa estar. Você acaba sentindo que pertence a uma coisa, a uma história brasileira”, diz à seLecT. Por conta do seu fenótipo, a artista foi questionada por um amigo a respeito de sua ascendência e decidiu, então, perguntar à sua avó materna, Maria José, se havia algum indígena na família. A resposta que ouviu (sobre uma mulher que tinha sido “pega no mato”) vem norteando sua trajetória desde então, em um trabalho que se dá em torno da compreensão de sua própria ancestralidade. A artista, que se aproximou do meio cultural por conta do teatro e da performance até cursar Artes Visuais na Universidade Federal do Maranhão, onde ingressou em 2017, começou nesse mesmo ano a produzir a série de fotomontagens Paridade. O trabalho é baseado na sobreposição de retratos de pessoas do seu próprio círculo, em diversas localidades do Maranhão, com imagens de representantes de diferentes etnias, procedimento que coloca em evidência a presença indígena em contextos urbanos contemporâneos. Entre os personagens da série estão tia Raimunda, irmã mais velha da sua avó, ao lado de uma mulher do povo Pawnee Squaw, e o avô Fernandes, sobreposto à imagem de um homem nativo da Amazônia em fotografia do mexicano Dominic Bracco. Seus bisavós maternos (José Vitorino Ferreira Viana e Torcata Francisca Viana) nasceram na beira do Rio Parnaíba, na cidade de Buriti, e por algum tempo Gê Viana chegou a pensar que eram pertencentes ao povo Guajajara, etnia que predomina no Maranhão. Só com o tempo (e muita pesquisa) ela entendeu que a cidade de Brejo, muito próxima do local onde sua família estava, era território dos Anapurus, um povo denominado originalmente como Muypurás. Essa pesquisa, inclusive, resultou na primeira reunião dos parentes Anapuru Muypurá, que aconteFOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM,FOTOS: BRUNOCORTESIA LEÃO/ PATRICIA DA ARTISTA LEITE
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ceu em fevereiro deste ano e juntou um número pequeno – cerca de dez pessoas –, mas importante para o movimento de retomada da história, da cultura e da resistência do povo aldeado na região do Baixo Parnaíba. O encontro só foi possível graças ao envolvimento de Gê Viana e do arte-educador Lucca Muypurá, que, juntos, estão coletando e disponibilizando uma série de documentos e informações no perfil do Instagram. Foi nesse percurso que a artista entendeu que o povo ao qual pertence vivia da lavoura, identificando nos livros e fotografias aspectos da sua própria família. “A casa em que nasci foi construída com sacas de arroz de uma plantação que meu pai fez. É o povo da colheita, não é da guerra, da caça”, diz. “É muito bonito, porque fiquei por um período questionando se eu pertencia mesmo a esse povo.” No seu trabalho, essa busca em torno de sua ancestralidade aparece de modo contínuo, em obras que se relacionam e exploram o limiar entre realidade e ficção, como em Retiro de Caça (2019). Ali, por meio da ficcionalização de lendas maranhenses, o Capelobo torna-se, um elemento de proteção às mulheres indígenas e negras violadas. Nesse processo, a artista está cada vez mais preocupada em associar a produção textual à visualidade, por causa “da necessidade de falar sobre as coisas que aconteceram ao nosso povo afastado do seu lugar de origem”. Seu desejo é criar um livro com essas histórias pessoais, que se entrelaçam com a história do povo Anapuru. “Reimprimir o quase perdido, movimentar o desejo, picotar até perceber a carne do dedo afundar pela fricção do estilete. É a continuação herdada pelos tapuias (termo de origem tupi utilizado no início da colonização do Brasil para designar os indígenas que não falavam o tupi antigo), me lavo do sol na cidade para não deixar essa memória que nem foi minha, mas agora é”, escreve Gê Viana em um texto para o projeto Convida, do Instituto Moreira Salles.
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O PROCESSO DE PESQUISA E CRIAÇÃO DE GUSTAVO CABOCO ENVOLVE UMA TENTATIVA DE AMPLIFICAR A VOZ DO POVO WAPICHANA E DE CAMINHAR EM DIREÇÃO ÀS SUAS PRÓPRIAS ORIGENS FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
A busca que norteia todo o trabalho da artista Gê Viana não é distante da de Gustavo Caboco, artista nascido e criado em Curitiba, que se aproximou do povo Wapichana apenas na adolescência, uma vez que sua mãe, indígena dessa etnia, deixou a aldeia Canauanim ainda criança, em 1968, passando um período em lares provisórios em Boa Vista e Manaus, antes de ser efetivamente adotada por uma família curitibana. Para esse episódio narrado por sua mãe como adoção, Caboco prefere utilizar as palavras rapto e desterro. Sua relação com a aldeia, segundo ele, vem de dois momentos distintos: de ouvir as memórias de sua mãe, quando ela contava que brincava de pescar e pular no igarapé e, mais tarde, quando visitou o local pela primeira vez e pôde entender o que escutava. “Quando fui lá, consegui entender as minhas diferenças em relação ao contexto de minha mãe, mas também em relação ao meu contexto. Se eu, antes, já sentia que minha vida foi marcada por diferenças, senti o mesmo quando fui conhecer os meus parentes – também era completamente diferente deles, porque cresci num outro lugar”, diz Gustavo Caboco à seLecT. A escolha do nome artístico Caboco, inclusive, é um desdobramento desse sentimento. “Essa palavra desloca a identidade indígena pro caboco, como se você não pudesse mais ser indígena e fosse o caboco.” Quem chama assim é o fazendeiro e Pintura Coração-deé algo que diminui, mas tentei fazer uma Bananeira (2021), de inversão de olhar, o deslocamento como Gustavo Caboco lugar de diálogo, entre Gustavo, Caboco e Wapichana”, explica. “O sistema de pensamento branco acaba usando do artifício da mistura para negar ou apagar raízes, então, para mim, esse caboco só faz sentido se estou em diálogo com os Wapichana.” Se Caboco, assim como Gê Viana, está procurando registrar essa história por meio da imagem e da escrita, os dois também têm aprendido outra forma de se relacionar, desenvolvendo um trabalho que aparece na transição entre uma busca individual para um processo coletivo. O divisor de águas, no caso do artista curitibano, foi a participação no Concurso Tamoios, em 2018, quando ele pôde se aproximar de um grupo de escritores indígenas e começou, a partir dali, a se aprofundar, cada vez mais, na história de seus familiares – entre eles o tio Casimiro Cadete, que, em sua visita à aldeia, o presenteou com um dicionário Wapichana-Português. “Já trabalhava há muito tempo entendendo minhas questões indígenas, mas vivia deslocado de DESTERRO
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qualquer tipo de circuito. Não cresci em um contexto de relação com indígenas, a não ser com minha mãe. Sempre estive à margem, inclusive com muita confusão nesse pertencimento”, diz o artista. No texto apresentado na ocasião, intitulado A Semente de Caboco, ele parte justamente das tentativas em organizar essa história, explorando com desenho e poesia questões de silenciamento e falta de escuta. “Retorno à terra” é o nome dado ao seu processo de pesquisa e criação, que envolve tanto uma tentativa de amplificar a voz do povo Wapichana quanto o caminhar para as suas próprias origens. O corpo em movimento está presente em todo o conjunto do trabalho de Caboco, e aparece de forma literal em Plantar o Corpo (2017), no qual o artista registra a si mesmo em uma sequência de duas imagens: na primeira, está deitado em um solo arenoso, pouco fecundo; na segunda, aparece imerso em uma cachoeira, fundindo-se à natureza. Em processo de preparação para sua participação na 34a Bienal de São Paulo, Caboco reuniu-se recentemente, no Rio de Janeiro, com uma equipe de trabalho Wapichana, que inclui a historiadora Roseane Cadete, a antropóloga Paula Berbert, o fotógrafo Wanderson Cadete, além de sua mãe, Lucilene Wapichana, e um artista mirim, de apenas 9 anos. “Meus parentes vieram de Roraima, eu e minha mãe saímos de Curitiba e estamos nesse ponto de encontro, olhando para o Rio Imperial e as travessias do ponto de vista histórico”, conta o artista, que insiste no fato de que o encontro já significa no próprio trabalho. “A gente não precisa estar em Roraima ou no Paraná para saber da nossa história, a gente pode estar em qualquer lugar, e esse processo de retorno à terra Wapichana não é uma caminhada individual, mas de relações”, diz Caboco. “É um sentimento de pluralidade e coletividades muito mais do que de exclusividade.” RETORNO À TERRA
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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PA U L A A L Z U G A R AY
MONSTRUOSIDADE, HIBRIDISMO, PAJELANÇA, LENDAS DA FLORESTA E APARELHAGENS DE TECNOBREGA CONFORMAM O IMAGINÁRIO DAS THEMÔNIAS, EXPRESSÃO CULTURAL SURGIDA NO PARÁ QUE SE AFIRMA COMO UM LEVANTE ANTICOLONIAL, EM RESPOSTA CRÍTICA AO OLHAR CIVILIZATÓRIO R A FA E L B Q U E E R
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Themônia Uhura Bqueer, 2014
FOTO: CORTESIA DA ARTISTA
A DEMONIZAÇÃO DEMONIZAÇÃO FOI FOI UMA UMA METODOLOGIA METODOLOGIA A USADA PELA PELA IGREJA IGREJA COMO COMO JUSTIFICATIVA JUSTIFICATIVA USADA PARA A A VIOLÊNCIA VIOLÊNCIA COLONIAL COLONIAL PARA 62
Nesta pág., Pintura Néon Sobre Paisagem (2020). Na dupla anterior, Videoperformance Sereia (2019), da série Super Zentai
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UMA EXPRESSÃO QUE SURGIU NO ESTADO DO PAR Á EM 2013 E SE ESPALHA PELO NORTE DO BR A SIL, SER THEMÔNIA TORNOU-SE UM CONCEITO, UMA IDEIA , UM POSICIONAMENTO CONTR A-HEGEMÔNICO DE CORPA S DISSIDENTES QUE VIR AM NA ARTE DA MONTAÇÃO A POSSIBILIDADE DE QUEBR AR COM OS PADRÕES NORMATIVOS DE COMPORTAMENTO E GÊNERO.
Sobre o significado da palavra montação, a artista Sarita Themônia explica na primeira edição da revista Themônia: “A montação virou MEGAZORD e as themônias vêm em POROROCA. Vivendo a montação como determinante na descoisificação dos corpos, e com isso o corpo como lugar de visibilidade de outros símbolos, temas e empoderamentos, a montação Themônia nos liberta a custo de muito desconforto, nos exigindo diferentes movimentos e posturas, colocando o nosso corpo em função da montação, dando suporte e evidência, provocando outra relação das pessoas com a nossa arte, com o corpo e, consequentemente, ressignificando a relação dos corpos montados com o lugar e as pessoas, potencializando, assim, um espaço favorável a comportamentos não Domesticados”. A primeira e a segunda década dos anos 2000 foram marcadas por uma grande influência de programas de televisão e internet com foco na arte Drag Queen como entretenimento. Em diversos países, incluindo o Brasil, começaram a surgir festas e coletivos que passaram a expandir as possibilidades estéticas e performativas dessa arte. Com a importante presença de mulheres cis, artistas trans, não binárias, lésbicas, pretas e periféricas que começaram a se montar na capital paraense, o conceito de drag foi sendo ressignificado a ponto de não corresponder mais ao imaginário-padrão e tradicional comercializado pelas grandes mídias. A monstruosidade, a estética tranimal e o hibridismo com a natureza foram se tornando mais evidentes nos figurinos e nas maquiagens. As expressões culturais e artísticas da Amazônia refletem fortemente suas ancestralidades pretas e indígenas, o imaginário da pajelança, os figurinos de carimbó, lendas dos rios e florestas, concursos de São João, músicas de dona Onete, Leona Vingativa, aparelhagens de tecnobrega. Um caldeirão de ritmos e imagens que são fortes referências para esse grupo que ano após ano vem construindo uma verdadeira revolução estética e política no Norte do Brasil.
Themônia Pandora Rivera Raia, 2019
FOTO: ALLYSTER FAGUNDES
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NOITE SUJA A festa Noite Suja, produzida por S1mone (Matheus Aguiar) e Tristan Soledade (Maruzo Costa) foi se tornando a cada edição uma referência, um refúgio para as artistas LGBTQIA+ paraenses que viram na montação a possibilidade de expressar suas verdadeiras identidades. Entre 2013 e 2014, houve momentos de grande fervo na cena cultural de Belém. Muitas artistas que moravam na região metropolitana da capital começaram a se montar na casa de amigas que moravam no Centro da cidade, criando uma importante rede de colaboração e fomentando o surgimento das houses ou “famílias”, termo bastante presente no documentário Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990), sobre a cena da ball culture idealizada por artistas trans e pretas do Brooklyn, em resposta ao racismo e preconceito dos bares gays do Centro de Manhattan. A cada encontro, cada evento, mais jovens artistas foram se incorporando ao movimento, contando também com a presença de nomes ligados à arte transformista do início dos anos 2000, integrantes da festa da Chiquita, participantes de concursos de miss, que passaram a experimentar o oposto do que as gerações mais antigas tinham como ideal de beleza. A ideia de se montar com o que você tem em casa, transformar o precário em luxo, tudo vale! Flores Astrais, Sarita Themônia, Gigi Híbrida, Cìlios de Nazaré, Skyyssime, Monique Lafond, Pandora Rivera Raia, La Falleg Condessa, Xirley Tão, entre tantas outras artistas, são alguns dos nomes que fortalecem a história desse movimento cada vez mais reconhecido pela população paraense e em outras regiões da Amazônia, ganhando vida no trabalho de artistas como Uýra Sodoma, em Manaus. As corpas LGBTQIA+ são as corpas demonizadas pelo cristianismo. A imagem do Demônio representa o pecado, aquilo que não é aceito por não ser o padrão seguido pelos conceitos conservadores e tradicionais. Se assumir enquanto Themônia é uma forma de ativismo, uma tentativa de tornar vivas e visíveis as identidades que sempre foram destituídas de suas humanidades. BRASA ILHA (2018), do OPAVIVARÁ!, “Ironizamos o termo Demônio, ressignificando a deno Largo da Batata, em São Paulo, finição reducionista para a Themônia que se expande, durante exibição da mostra URBE multiplica e, ao exaltar também as nossas condições invisibilizadas, geramos profundo estranhamento nas pessoas”, aponta Sarita Themônia na revista Themônia.
Drag Condessa de DevonRiver, Belém do Pará, 2019
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THEMONIZAR A A ARTE ARTE TORNOU-SE TORNOU-SE UMA UMA AÇÃO AÇÃO THEMONIZAR DE DESCOLONIZAÇÃO, DESCOLONIZAÇÃO, DE DE FORTALECIMENTO FORTALECIMENTO DE DOS CONCEITOS CONCEITOS DECOLONIAIS DECOLONIAIS EE ATIVISMO ATIVISMO DE DE DOS CORPAS DISSIDENTES DISSIDENTES NA NA AMÉRICA AMÉRICA LATINA LATINA CORPAS
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Tristan Soledade, em performance na abertura da exposição Tupiniqueer, no Sesc Ver-o-Peso, Belém do Pará, 2019
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VISÃO BINÁRIA INVASORA Entre as diversas interpretações fantásticas criadas pelos invasores europeus sobre o suposto “novo mundo”, existia a expectativa de um paraíso, um “Éden” perdido, e também da presença de monstros e figuras bestiais que se encontrariam nos mares durante as travessias das caravelas. Encontramos essa visão binária de paraísos e infernos na obra O Jardim das Delícias (1490-1510), de Hieronymus Bosch, e também em pinturas e tapeçarias da Renascença. A demonização foi uma metodologia usada pela Igreja como justificativa para a violência colonial. Não é de hoje que corpas ameríndias são demonizadas. No século 20, o escritor Alberto Rangel descreveu a Amazônia como um Inferno Verde (1908), reafirmando o conceito cristão de um ambiente de condenação e sofrimento. As Themônias são um levante anticolonial, uma resposta crítica ao olhar civilizatório. Existir quanto monstruosidade, quanto seres não brancos e não europeus, há séculos vem sendo sinônimo de resistência. O coletivo vem experimentando formas de comunicação diferentes da língua do colonizador. Surge um verdadeiro glossário de palavras que dialogam com referências sonoras próprias da Região Amazônica, com a cultura de massa e também com o dicionário social LGBTQIA+ do pajubá. O movimento é vivo, pulsante de ações e ideias, se recria e se reinventa a cada semana, a cada mês. Os “hierogritos” e “megazord” são dois importantes exemplos deste novo vocabulário. O que para alguns ouvidos desinformados podem parecer gritos, ou berros que remetem a uma grande revoada de furiosas araras, trata-se, na verdade, de um grande sinal sonoro de anunciação e de aproximação do coletivo das Themônias. Uma forma de assustar os cis/hetero/conservadores, espantar os agouros, extravasar momentos de gozo e felicidade, ou até mesmo pedir socorro. Esses são os hierogritos. “Megazord é um termo criado pelas Themônias para quando precisarmos nos unir para nos proteger em alguma situação ou até mesmo para nos deslocar, quando saímos juntas formamos um megazord!”, contam as Themônias. Na cultura sentai, o megazord é uma arma poderosa de ataque que se forma da união de diferentes super-heróis. TRANSBORDE Os dados da união nacional LGBT apontam que a estimativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é 35 anos. Diz também que a cada três minutos uma pessoa LGBTQIA+ sofre algum tipo de violência. Em um país com informações tão alarmantes e com o atual governo que prega a intolerância e a morte, a organização desse movimento torna-se de grande importância para o reconhecimento da Amazônia como referência no combate à LGBTQIA-fobia. As Themônias transbordaram o estado do Pará e estão hoje por todo o Brasil. Expandindo suas atuações para além das festas, organizando festivais, manifestos, revistas, realizando debates sobre empregabilidade, segurança, saúde, acesso à educação e políticas públicas para a comunidade LGBTQIA+. Themonizar a arte tornou-se uma ação de descolonização, de fortalecimento dos conceitos decoloniais e ativismo de corpas dissidentes na América Latina.
FOTOS: PAULA SAMPAIO
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Themônia Gigi Híbrida, 2021 VOL. 10 / N. 50
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FOTO: HUGO CORREIA
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#FLORESTAPROTESTA EM AÇÃO DE ARTE E POLÍTICA, SELECT CONVIDA ARTISTAS A PRODUZIR PÔSTERES EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE E ALINHA-SE AO CAMPO DA GRÁFICA DE PROTESTO, NA LUTA CONTRA O OBSCURANTISMO E OS DISCURSOS DE ÓDIO QUE NUBLAM A REALIDADE BRASILEIRA
O GRUPO APARELHAMENTO ELABOROU UM PÔSTER A PARTIR DE UMA OBRA DO ARTISTA FRANCÊS JEAN-BAPTISTE DEBRET, QUE MOSTRA ÍNDIOS GUARANIS SENDO CAPTURADOS. O grupo traduziu e replicou o título original em uma alusão aos
acontecimentos que se repetem no Brasil desde o período colonial, “como a ânsia extrativista e as formas de exploração do trabalho entre classes, nem sempre distintas”, afirmam. A imagem é de domínio público e faz parte da Coleção Brasiliana da Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Em marcha decrescente, segue o povo supostamente civilizado em sua saga contra a floresta. A imagem feita por Jean-Baptiste Debret em 1834 infelizmente não é um documento anedótico de tempos passados”. Assim os artistas do grupo Aparelhamento definem o verbete da gravura de Debret, que retratou a sociedade brasileira no fim do período colonial, entre 1816 e 1831. O Aparelhamento é uma rede de mais de cem artistas, responsável por ações que “se configuram como críticas contundentes à lógica de retrocesso cultural e social percebida no Brasil desde 2016”, como definem os artistas. Entre elas, a Galeria Reocupa, instaurada dentro da Ocupação 9 de Julho, em 2018, e a Rádio Floresta (2020), que permitiu à comunidade ribeirinha de Careiro Castanho, no Amazonas, instalar e gerir sua própria rádio.
Sem Título, 2021, Aparelhamento
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FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
Soldados índios da província de
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Curitiba escoltando selvagens
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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ARTE INDÍGENA, COMO EXPOR?
ENTRE OBJETOS FUNCIONAIS E SIMBÓLICOS E PROPOSTAS INSTITUCIONAIS QUE MUITAS VEZES PRIORIZAM A ESTÉTICA EM DETRIMENTO DO CONTEXTO EM QUE OS OBJETOS FORAM CRIADOS, A APRESENTAÇÃO DE ARTE INDÍGENA EM MUSEUS E GALERIAS VEM REVENDO SEUS MODOS EXPOSITIVOS LEANDRO MUNIZ Acima e à esq., vistas do núcleo expositivo dedicado ao enunciado “cantos tikmu’ún”, da mostra Vento, parte da programação da 34 a Bienal de São Paulo – Faz Escuro Mas Eu Canto FOTOS: GIOVANNA QUERIDO / FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO
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NA ENTREVISTA PENSAMENTO DESCOLONIAL: POÉTICAS AMERÍNDIAS, O ANTROPÓLOGO PEDRO CESARINO NOS ALERTA PARA A DIFERENÇA ENTRE OBJETOS INDÍGENAS TRADICIONAIS E ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA. Em geral, os objetos produzidos
pelos diferentes povos têm função prática ou simbólica e não são destinados à simples exibição. Já a produção indígena contemporânea, ainda que se valha de questões ancestrais, é feita por indivíduos que têm liberdade de se inserir nas dinâmicas e linguagens do mundo, digamos, ocidental, com adesão ou pensamento crítico. Se os legados da civilização indígena têm muito a oferecer para o mundo atualmente em colapso, também fica a pergunta sobre como não reproduzir a lógica colonial ao apresentar essa produção nos contextos institucionais. “Os povos indígenas entendem guardar e preservar como aprisionamentos. O museu guarda um objeto, ele é colocado em exposição e descrito em uma legenda. Às vezes é puramente descritivo em termos materiais, é técnico, mas tem coisas que estão no objeto que ultrapassam sua forma”, diz o artista Denilson Baniwa à seLecT. “Os cestos Baniwa são objetos que guardam coisas, mas também representam um conhecimento ancestral que diz de qual povo ou família ele é e que história conta. É um objeto e um símbolo de uma cosmogonia, que narra o início do mundo ou de um clã. Não é possível descrever em uma legenda.” Baniwa alerta também para objetos que são feitos para ocasiões efêmeras e que devem ser destruídos após o uso, já que podem trazer má sorte se ultrapassarem seu ciclo de vida. Há ainda aqueles que não podem ser vistos por determinados grupos sociais, pois atendem a demandas específicas, como a entrada na puberdade, a manutenção da fertilidade ou da força. “A própria ideia de algo feito para ser exposto já é contraditória com os usos funcionais e simbólicos desses objetos em suas comunidades, pois, para o indígena, tudo é arte, mas não no sentido de exposição”, continua o artista. “De maneira geral, o que o museu faz com as peças indígenas é igual ao que Picasso fez com as máscaras africanas: é só a estética, sem o contexto e a função do objeto.” Os grafismos indígenas são um exemplo da apresentação muitas vezes descontextualizada dessas peças. Para os indígenas, podem ser usados para proteção, para marcar
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um momento de transformação ou ainda para representar elementos da vida, como os animais e o cotidiano. De caráter coletivo e ancestral, são aplicados com pigmentos naturais sobre a pele ou cerâmicas, ou tramados em cestarias e tecidos. Ao serem mostrados no museu, não deveriam ser reduzidos a experimentações puramente formais. Ao incorporar esses padrões, que são compartilhados por todos em suas produções individuais, os artistas indígenas contemporâneos também enfrentam novos dilemas. Em entrevista veiculada nos programas públicos da 34ª Bienal de São Paulo, o artista Jaider Esbell, de origem Makuxi, aponta que alguns artistas já foram criticados em suas comunidades por se apropriarem de um símbolo coletivo em sua produção autoral.
FOTOS: LEVI FANAN
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Vistas da exposição coletiva Véxoa – Nós Sabemos. Acima, pinturas de Daiara Tukano e desenhos do Pajé Gabriel Gentil Tukano na vitrine. À dir., panelas do povo Yudjá, vídeo de Olinda Muniz Tupinambá e máscaras e roupas do povo Waudja
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PALETA PRÓPRIA Para evitar esse tipo de conflito, a artista Sãnipã, de origem Apurinã e Kamadeni (etnias estabelecidas nas margens do Rio Purus), pede autorização à comunidade antes de aplicar as padronagens em suas pinturas e usa uma paleta própria, que não interfere nos sentidos simbólicos do uso do vermelho e do preto tradicionais. “Eu trabalho com grafismos indígenas, quero representar isso porque os Kamadeni já são poucos e a única historiadora que pesquisava sobre eles, Leonila Muniz de Souza Apurinã, ou Tuboá em sua língua natal, este ano se foi”, diz. “Posso não estar mais viva, mas a minha arte, esses grafismos e esses sím-
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bolos, vão seguir contando e compartilhando essa história.” Sãnipã estudou técnicas de pintura com tinta acrílica no Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia, que atua há mais de 15 anos em Manaus com programas de formação a longo prazo (o curso tem duração de quatro anos) para os indígenas interessados nesse campo. Nascido no Piauí, o maestro Dirson Costa estabeleceu-se em Manaus nos anos 1960, onde desenvolveu sua carreira. Inicialmente, a ideia do instituto era fomentar música, pela formação do idealizador, mas a família, após sua morte, ampliou para diversos segmentos, como artes visuais e teatro. Segundo
ESBELL E BANIWA TÊM CRIADO AÇÕES QUE NÃO APENAS EXIBEM A VISUALIDADE INDÍGENA, MAS TAMBÉM PROPÕEM OUTRO MODO DE OPERAR
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Em Apresentação: Ruku, individual de Jaider Esbell na Galeria Millan até 10/4, pinturas ganharam expografia instalativa
Carlysson Sena, fundador da Manaus Amazonas Galeria de Arte, a capital amazonense foi escolhida como sede do instituto pela carência de políticas públicas na região e a alta presença de indígenas desaldeados nas periferias da cidade. “A proposta do instituto é formar, fomentar e também colecionar arte indígena”, diz o galerista. A Manaus Amazonas, que representa Sãnipã e outros seis artistas indígenas e não indígenas, mas com interesses visuais e simbólicos em comum, surgiu como um desdobramento do instituto, onde ficou encubada no início, em 2013. “Comecei a vender as obras desses artistas e perce-
bi a possibilidade de fomentá-los pela comercialização de seus trabalhos. Hoje, a galeria tem sustentabilidade econômica e nos tornamos uma empresa amiga do instituto, então invertemos o processo.” Em paralelo, o instituto também está criando o Museu de Arte e Imaginário da Amazônia (MAIA), que está formalizado no Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em fase de implantação, e já conta com mais de 2,5 mil peças em seu acervo. Junto aos artistas Dhiani Pa’saro (Wanano), Duhigó (Tukano) e Yúpuri (Tukano), Sãnipã participou, em 2019, da exposição Nipetirã (Todos, em Tukano), na Casa do Largo, em Manaus, com curadoria de Cristóvão Coutinho. “Alguns dos artistas já têm uma ansiedade comercial, mas na exposição quis que abandonassem isso e sugeri que cada um ocupasse uma parede inteira, lidando com o espaço”, conta o curador. “Eles usam marchetaria e tinta acrílica sobre tela, com os motivos de suas aldeias e clãs, mas nunca tinham feito trabalhos nessas dimensões, então foi um espaço de experimentação.” A mostra refletia sobre os 350 anos de Manaus – única capital brasileira com nome indígena – e sobre a baixa presença dessas comunidades nas discussões da cidade, sendo relegados às periferias. Outras iniciativas recentes de exibição de arte indígena no contexto institucional são M’Bai, mostra regional – vandalizada em 2019 – que comemora a presença da aldeia M’Boy em Embu das Artes, e Véxoa: Nós Sabemos, em cartaz entre outubro de 2020 e março de 2021, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria de Naine Terena. “O próximo passo que as instituições precisam dar é realizar individuais desses artistas e incluí-los em exposições que não sejam destinadas apenas a artistas indígenas, ocupando os espaços de um jeito não categorizado”, diz Naine Terena à seLecT. “Algumas instituições estão adquirindo obras de indígenas, o que reconfigura a história da arte do Brasil. A pesquisa também faz a instituição desmistificar as expectativas do tipo de produção indígena contemporânea. A gente abriu essa porta de que os indígenas podem falar sobre o que quiserem no mundo em que estão vivendo”, conclui.
FOTO: PAULA ALZUGARAY
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PLANTAR NO ASFALTO Exposições focadas em artistas indígenas – assim como de artistas negros, mulheres etc. – também evocam ambiguidades: de um lado são necessárias por expor a ausência desses grupos nas instituições e marcar sua presença e, por outro, muitas vezes acabam ofuscando as singularidades de suas produções, resumidas à leitura a partir de uma ótica identitária. No caso das questões indígenas, as cosmovisões das diferentes etnias de onde vêm esses artistas parecem não ser aprofundadas em razão da categorização. Se reduzir a produção indígena contemporânea ao interesse antropológico, acaba reiterando uma posição colonizadora, também não se pode ignorar as diferentes cosmovisões que estão na base da produção desses artistas, com o risco de apenas submeter a visualidade indígena às técnicas ocidentais. Como então tornar pública a arte indígena nos contextos do museu, da galeria ou mesmo da cidade? Na exposição Vento, primeira de uma série da 34ª Bienal de São Paulo, os cantos Tikm’n ou Maxakali – de povos que ocupavam regiões entre a Bahia, Minas Gerais e Es-
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pírito Santo e foram historicamente oprimidos, quase extintos nos anos 1940 – ecoavam na arquitetura branca de Oscar Niemeyer através de caixas de som. Originalmente, os cantos têm um aspecto de cura e, na exposição, uma vitrine com traduções e notas, um breve texto introdutório e publicações feitas por pesquisadores e pajés contextualizavam esse sentido primordial. Segundo o curador Paulo Miyada, em depoimento em um dos programas públicos da instituição, a vitrine explicitava o contraste entre entoar os cantos coletivamente em uma aldeia e apresentá-los em uma exposição de arte. Tratava-se de uma tradução parcial que buscava tornar pública a cosmogonia indígena nesse contexto, reconhecendo os limites epistemológicos, simbólicos e rituais que uma exposição implica. O artista Jaider Esbell também tem encontrado maneiras de ecoar as vozes e os saberes indígenas a partir do contato crítico com os modos de pensar, fazer e compartilhar ocidentais. “Os Makuxi praticam arte dentro de seu sistema próprio, sem precisar dessa palavra arte”, diz o
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artista à seLecT. “Nossas práticas e saberes estão aí desde o princípio, essa experiência está aplicada na praticidade da vida. Arte é um lugar de encontrar e analisar, não um lugar de estacionar, é esse o elemento de conexão e atravessamento de mundos. A gente está se apropriando dessa palavra para ampliar nossas ferramentas de alcance e dizer que as coisas são maiores.” Esbell, que entre fevereiro e março apresentou uma individual na Galeria Millan, em São Paulo, tem diversas frentes de atuação que lhe permitem um exercício de sua singularidade enquanto artista, ao mesmo tempo que fomenta o debate em suas comunidades. Em 2013, depois do Encontro dos Povos – um evento que reunia as comunidades indígenas de Roraima para pensar sobre sua coletividade e as transformações que vinham vivendo – fundou a Galeria Jaider Esbell. O artista também defende a ideia de uma arte indígena contemporânea que faça contraponto à arte com parâmetros europeus enquanto categoria universal. “Minha última exposição foi uma parceria da Galeria Jaider
Na página ao lado, vista do núcleo expositivo Vento, da 34 a Bienal de São Paulo. Acima, Nada Que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), de Denilson Baniwa, em Véxoa, na Pina
Esbell com a Millan, mas não me interessa que os artistas indígenas sejam representados por essas galerias dominantes nos formatos já dados, mas que as galerias coloquem suas listas de contatos a serviço dos artistas indígenas, fazendo pontes entre esses universos”, diz o artista e galerista. A individual Apresentação: Ruku foi uma mostra em homenagem à árvore-pajé jenipapo, de onde se extrai pigmento para a pintura corporal e em tecidos. Entre raladores, pinturas e desenhos, a mostra reuniu no contexto expositivo tecidos pintados e suspensos pelo espaço, dinamizando as convenções da galeria, onde normalmente as pinturas estão nas paredes à altura do olhar. Como Esbell, Denilson Baniwa também tem criado ações e trabalhos que não apenas exibem a visualidade indígena, mas também propõem outro modo de operar dentro das instituições a partir de sua experiência e história.
FOTOS: LEVI FANAN, FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO / LEVI FANAN, PINACOTECA
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Durante a 33ª Bienal de São Paulo, Baniwa “invadiu” a instituição para realizar uma versão de sua performance Pajé-Onça (2018). Nessa edição, a artista e curadora Sofia Borges apresentou uma série de esculturas, pinturas e fotografias dos mais variados contextos – de imagens de esculturas gregas a obras do Museu do Inconsciente e imagens do povo Selk’nam, capturadas pelo jesuíta Martin Gusinde –, com o intuito de criar uma colagem de referências mitológicas, como diz em seu texto curatorial. Em relação às referências indígenas, no entanto, de acordo com a antropóloga Ilana Goldstein, no catálogo de Véxoa: Nós Sabemos, as imagens não tinham identificação correta e não mencionavam o fato de que os Selk’nam foram exterminados – o que se confirma com a legenda puramente técnica da lista de obras da Bienal. Em resposta à curadoria, Baniwa entrou na instituição com uma máscara de onça, lendo e rasgando as páginas do livro Uma Breve História da Arte, enquanto se deslocava pelo espaço expositivo. “A performance começou no Monumento às Bandeiras e fui descendo. Os seguranças da Bienal ficaram em choque, porque não sabiam se era arte ou vandalismo. Não fui convidado, invadi a instituição e eles não sabiam como reagir”, diz. Já em Véxoa: Nós Sabemos, na Pinacoteca, Baniwa apresentou Nada Que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), trabalho que está exposto logo na entrada da instituição. Escapando da hegemonia da visualidade – e dos modos de expor com heranças moderna e etnográfica –, o trabalho consistia em um jardim que necessitava de cultivo e cuidados. As espécies plantadas ali eram curativas para o corpo, para o espírito ou para a subjetividade. Entre o dentro e o fora do prédio, a obra também impedia o funcionamento do estacionamento, em uma crítica implícita ao automóvel e seus usos individuais. A ação de plantar nas frestas dos paralelepípedos, por si só, já era altamente polissêmica e poética. “Hilo é fresta, a cicatriz da semente por onde brotam as plantas”, diz o artista. “Somos essas plantas tentando sobreviver neste solo árido que é o Brasil e o próprio sistema de arte.” Sem recorrer a imagens dos Baniwa, Denilson evoca a ética e a experiência de seu povo, envolvendo a instituição para a criação de uma temporalidade própria, para além da pura exposição de objetos. Retoma as práticas de plantio dos povos indígenas e introduz vida em espaços destinados à contemplação, refazendo o sentido de movimento presente nas pinturas e objetos indígenas ancestrais. VOL. 10 / N. 50
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FOTO: JOSÉ MOREAU
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Intervenção de Denilson Baniwa sobre exposição de Sofia Borges para a 33 a Bienal de São Paulo, em 2018
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#FLORESTAPROTESTA CARTAZ DE THIAGO MARTINS DE MELO SIMBOLIZA MATRIZES RACIAIS E A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA POLÍTICA NA HISTÓRIA DO PAÍS
O PÔSTER CRIADO POR THIAGO MARTINS DE MELO (SÃO LUÍS, 1981) PARA O #FLORESTAPROTESTA É UMA COLAGEM DE TRABALHOS. Entre símbolos de opressão
e violência, como a bota militar, ou as correntes que remetem à escravidão, as Três Graças da história da arte são atualizadas como alegorias das matrizes raciais brasileiras. Bolsonaro decapitado aparece como troféu na parte superior da imagem e a premissa de “Ordem e Progresso” da bandeira nacional é substituída por “Terra e Liberdade”. Na poética de Thiago Martins de Melo, presente, passado e futuro se reinformam. Menções diretas a acontecimentos políticos são misturadas a eventos históricos. Sua pintura propõe reflexões sobre dimensões espirituais, materiais e imediatas da vida, transitando por referências iconográficas da colonização, de ações policiais, religião, sexo, racialidade, modos de vida indígenas, dados autobiográficos e morte, nos levando a intuir a interação entre essas experiências.
Floresta Protesta, 2021, Thiago Martins de Melo
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#FLORESTAPROTESTA EM AÇÃO DE ARTE E POLÍTICA, SELECT CONVIDA ARTISTAS A PRODUZIR PÔSTERES EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE E ALINHA-SE AO CAMPO DA GRÁFICA DE PROTESTO, NA LUTA CONTRA O OBSCURANTISMO E OS DISCURSOS DE ÓDIO QUE NUBLAM A REALIDADE BRASILEIRA
O GRUPO APARELHAMENTO ELABOROU UM PÔSTER A PARTIR DE UMA OBRA DO ARTISTA FRANCÊS JEAN-BAPTISTE DEBRET, QUE MOSTRA ÍNDIOS GUARANIS SENDO CAPTURADOS. O grupo traduziu e replicou o título original em uma alusão aos
acontecimentos que se repetem no Brasil desde o período colonial, “como a ânsia extrativista e as formas de exploração do trabalho entre classes, nem sempre distintas”, afirmam. A imagem é de domínio público e faz parte da Coleção Brasiliana da Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Em marcha decrescente, segue o povo supostamente civilizado em sua saga contra a floresta. A imagem feita por Jean-Baptiste Debret em 1834 infelizmente não é um documento anedótico de tempos passados”. Assim os artistas do grupo Aparelhamento definem o verbete da gravura de Debret, que retratou a sociedade brasileira no fim do período colonial, entre 1816 e 1831. O Aparelhamento é uma rede de mais de cem artistas, responsável por ações que “se configuram como críticas contundentes à lógica de retrocesso cultural e social percebida no Brasil desde 2016”, como definem os artistas. Entre elas, a Galeria Reocupa, instaurada dentro da Ocupação 9 de Julho, em 2018, e a Rádio Floresta (2020), que permitiu à comunidade ribeirinha de Careiro Castanho, no Amazonas, instalar e gerir sua própria rádio.
Sem Título, 2021, Aparelhamento
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
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TATAK BOACÉ – PALAVRA QUE PULSA A NECESSÁRIA ESCRITA DA HISTÓRIA PELOS POVOS ORIGINÁRIOS
A L I N E R O C H E D O PAC H A M A M A
AS VIVÊNCIAS SÃO A PRÓPRIA ESSÊNCIA DA PALAVRA, POIS A PALAVRA, SE COM ALMA, MOVIMENTA AFETO, LUCIDEZ E UTOPIAS. Avivo de gratidão é a ges-
tação e o parir de pensamentos despertos em atos. A presença de um povo, de suas vozes, do cheiro de floresta e a insistência em se manter vivo em palavras são semeaduras afetivas e enraizadas pelo empenho das autoras e autores originários no tempo presente. Pensando sobre o lugar dos povos originários na história e nas literaturas, é possível constatar que o desenvolvimento de um registro sobre os processos históricos que marcam sua presença e atuação vem sendo negado e silenciado na descrição tradicional da história e demais ciências por um sistema colonizatório e por uma escrita na perspectiva do outro, uma escrita de “fora para dentro”. Diante disso, faz-se necessário compreender os originários e seus remanescentes/descendentes em seu tempo e lugar, valorando suas experiências e narrativas, repensando e desconstruindo a memória de sua história registrada pela ótica do homem colonizador. Nos registros oficiais que podemos analisar, os processos de construção de memórias e histórias silenciam os originários desta terra. A partir de meados do século 19, a Assembleia Nacional Constituinte discutiu amplamente debates para o fortalecimento do conceito de nação. O melhor modelo, eleito pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), para escrever a História do Brasil, ainda em 1938, foi a dissertação de Carl
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Friedrich Philipp von Martius. O alemão, tendo formação em medicina, propôs uma história que tinha por norteadora a mistura das três raças para explicar a formação da nacionalidade, ressaltando, nessa análise, a valorização do elemento branco, além de sugerir um progressivo branqueamento “como caminho seguro para a civilização”. Nesse processo, com a intenção de inserir mecanismos de controle, a educação escolar e a escrita de uma história brasileira tornaram-se a possibilidade de consolidar a conformação social e cultural na qual originários/indígenas, afro-brasileiros, mulheres e a população, de forma geral, eram inferiores. No decorrer dos séculos, tanto na literatura quanto em registros históricos, as narrativas generalizam a participação do originário como o “índio”, colaborando para afirmar a sua não contemporaneidade, como se
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Onde Está a Arte Indígena no Paraná (2020), do artista-escritor Gustavo Caboco, que usa texto e imagem para resgatar a origem Wapichana
indígenas fossem um todo homogêneo, iguais entre si e fazendo parte apenas do passado. Povos Originários é um termo que se refere a 305 etnias no Brasil atual (que já foram mais de mil na época da invasão europeia). A palavra índio, empregada no século 15 aos povos originários, tem origem no nome do Rio Indu, do Sânscrito Sindhu, como era conhecido um dos sete rios sagrados da Índia, reduzindo a diversidade de
povos em apenas uma palavra que não tem referência em nenhuma das línguas dos povos originários. As abordagens, feitas a partir desses materiais, levaram a concluir que os povos originários não fazem parte da sociedade brasileira e que as relações só se deram na época da chegada dos colonizadores ao Brasil. Consolidou-se uma hierarquia científica da palavra escrita, atribuindo, direta ou indiretamente, invisibilidade, inferioridade,
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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COM A IMPLANTAÇÃO DA LEI 11.645/08, O ENSINO DE CULTURAS E LITERATURAS AFRICANAS, AFRO-BRASILEIRAS E INDÍGENAS TORNOU-SE OBRIGATÓRIO NAS REDES PÚBLICAS E PRIVADAS DE TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. MAS AINDA É PRECÁRIA E LACUNAR A SISTEMATIZAÇÃO DE SABERES INDÍGENAS
POEMA passividade e exclusão aos povos originários. Em suma, há uma tendência na historiografia de seguir uma postura excludente perceptível: o “ofício do historiador” (dos “cientistas”, “filósofos”, “sociólogos”) é um ofício de homens brancos, que escreveram a história no masculino, patriarcal e colonizador. Os povos originários, por muito tempo, foram “objeto” de estudo. Tornou-se lugar-comum escrever sobre os indígenas, mas nunca com. Não foi possível que fôssemos os próprios autores e autoras da historiografia. A escrita dos povos originários, nesse processo de colonização, que se estende aos dias atuais, é um lugar de vozes silenciadas. DECIDIMOS ESCREVER O histórico do trágico contato com os colonizadores revela, além do genocídio, também o etnocídio que, juntamente com outros fatores, ainda limita a compreensão da “sociedade” (refiro-me à não indígena) ao real protagonismo e atuação do originário. A vasta pluralidade étnica do Brasil ainda é desconhecida pela parcela majoritária da sociedade. Nessa perspectiva, a escrita de oralidades e memórias de nosso povo é instrumento de compreensão, pois privilegia a participação de pessoas que foram testemunhas de um processo histórico no Brasil. A pluralidade, proposta pela transição da oralidade à escrita, desdobra-se em rico diálogo. A publicação de autoras e autores indígenas intenta atravessar “os muros da história oficial” e, com isso, possibilitar que as pessoas entendam que os originários são parte da sociedade, que têm direitos e que podem
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falar e escrever sobre os temas que desejarem, inclusive, e principalmente, sobre a história dos povos dos quais fazem parte. A partir de nossas inquietações, escrevemos. Para honrar nossos ancestrais, escrevemos. Escrevemos porque há uma floresta em nós, afetos e uma luta. Escrevemos para desconstruir registros colonizadores. Há uma vasta bibliografia indigenista que não foi escrita pelo originário/indígena. Tais escritos se apropriam de nossos conhecimentos e saberes, muitas vezes traduzidos em vários idiomas, menos no idioma daquele que inspirou o registro. E o autor é sempre o outro. Um povo que é originário não será mais silenciado em seu próprio território e em seu conhecimento. Então, também por isso, decidimos escrever. Esse processo de registro histórico para o currículo escolar brasileiro consolidou o preconceito evidenciado nas formas pejorativas de se referirem a nós, como “coisa de índio”, “modelo tupiniquim”, dentre outros. Lembramos, ainda, que não somos “índios”, não escolhemos essa forma de chamamento. Inclusive, é bom sinalizar que, se quiséssemos o mês de abril como espaço de memória das lutas indígenas, que fosse para rememorar Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe, brutalmente assassinado em Brasília por cinco jovens de alta classe – que, atualmente, ocupam altos cargos políticos –, no dia 20 de abril de 1997.
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VERMELHO ALINE ROCHEDO PACHAMAMA Do Povo Puri da Mantiqueira ...E se esses tempos nos sufocam, também as árvores perderam as folhas e mudaram a casca do tronco. Para voltarem mais resistentes Naquela outra estação. Tsatêh, não temos opção de fragilidade, Somos o grão que germina força. E se marcam nossa pele com cicatrizes as invasões, o genocídio e as constantes colonizações, Nossa alma decide transformar dor em energia. Que seja a fúria, mas nunca a apatia. Em meio aos furacões diários, Sabemos para onde olhar quando deles saímos. Firmes. Não tombamos para um ou outro lado. Escolhemos a direção e seguimos. E se somos Tempestade, também orquestramos a calmaria. dos raios, trovões e ventanias Lutando, sonhando coletivo, Vivendo! Sendo os animais que nos acolhem em força Cantando o som que a Mãe Terra grita. Não temos os medos que o capitalismo engendra: Morrendo somos encantados. Vivos somos Presente. Nos move a força dos ancestrais, E a floresta que em nós habita sempre. ...E se esses tempos nos sufocam, Também as árvores perdem as folhas e mudam a casca do tronco. E voltarão mais resistentes, Na próxima estação.
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SOCIABILIDADES O QUE O BRASIL E A ETNOBIOLOGIA, NOVA DISCIPLINA LATINO-AMERICANA, TÊM A ENSINAR AO MUNDO SOBRE O ESTUDO DAS FLORESTAS NINA GAZIRE NINA GAZIRE
O BOTÂNICO NORTE-AMERICANO RICHARD EVANS SCHULTES E O NATURALISTA BRITÂNICO RICHARD SPRUCE EXPLORARAM AS SELVAS DA AMÉRICA CENTRAL E DA AMÉRICA DO SUL ENTRE OS SÉCULOS 19 E 20, DEIXANDO INÚMERAS PUBLICAÇÕES QUE SERVEM ATÉ HOJE COMO REFERÊNCIA PARA DETERMINAR UMA HISTÓRIA BOTÂNICA DA FLORESTA AMAZÔNICA. Estudos
recentes confirmam a hipótese desses pioneiros de que as florestas latinas são alteradas por humanos há pelo menos 11 mil anos – delimitando esse trajeto desde o México até a Amazônia continental, abrangendo Colômbia, Equador, Peru e Brasil. O que muda na visão atual é um novo e polêmico paradigma, que toma como entendimento a necessidade de uma abordagem da Floresta que seja mais etnogênica do que antropocêntrica, como as ciências biológicas e sociais determinaram durante séculos, no binômio selvagem e doméstico determinado por Teofrasto, discípulo de Aristóteles, há 2.300 anos. A visão etnogênica prepondera sobre outras perspectivas, graças a pesquisadores latino-americanos que vêm trabalhando de maneira transdisciplinar nos campos da arqueologia, antropologia, botânica, biologia e genética, em favor de uma relação não dicotômica entre o humano e a natureza. Esta foi a razão para o Simpósio Vozes Vegetais: Diversidade, Contradomesticação, Feminismos e História da Floresta, realizado na Unicamp em 2019, com o objetivo de fomentar a ideia de que não são somente os povos coletores e ribeirinhos que alteram a paisagem da Floresta e a filogenia de suas espécies, mas o contrário também acontece. VOL. 10 / N. 50
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Há um afeto das plantas que modifica os humanos. “Esse debate nasceu na Academia, quando eu estava concluindo o meu doutorado a partir de 2017 e comecei a estudar o povo Banawá, com quem trabalhava há 20 anos, como indianista e antropólogo”, diz Miguel Aparicio Suárez, professor adjunto da Universidade do Oeste do Pará, que esteve em campo com as etnias Banawá e Suruwaha. “O professor norte-americano Charles Clement é um dos pioneiros nesse campo e resolveu montar um curso pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) fazendo um cruzamento entre biologia e antropologia, dedicado especialmente aos antropólogos, já que os biólogos sempre tiveram mais interesse nesse fenômeno”, diz à seLecT. Aparicio estudou a relação interespécies entre CONTRADOMESTICAÇÃO AMAZÔNICA E A MEMÓRIA DAS PLANTAS
VEGETAIS
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Mulheres da etnia suruwaha trituram raízes de timbó, planta cujo nome científico é Deguelia utilis
os índios Banawá e as castanheiras, as flecheiras (Gynerium Sagittatum) e o tabaco (Nicotiana Tabacum). Foi por intermédio de Charles Clement, que é professor do Inpa, e de sua observação do cultivo da pupunha, que Aparicio descobriu as mudanças genéticas das plantas provocadas pelos povos tradicionais e como a pupunha alterou paisagens e demarcações à medida que foi “contradomesticada”. A descoberta é explorada por Miguel Aparicio em “Contradomesticação na Amazônia Indígena”, um dos 17 artigos que compõem o livro Vozes Vegetais (Ubu, 2021). Clement tornou-se uma grande influência para o nascimento da etnobotânica praticada por Aparicio em suas pesquisas com os Banawá, na Bacia do Purus, rio que percorre o Peru e os estados do Acre e do Amazonas. “Esse povo vive dessas tecnologias há séculos. Eles poderiam ganhar mais dinheiro com as castanhas ou con-
seguir mais peixes com o veneno do timbó, mas, por estarem cada vez mais criminalizados em seus hábitos ou por terem seus territórios sujeitados à domesticação (manejadas pelo agronegócio), passaram a praticar o que chamo de botânica de precaução”, diz o professor. “As mulheres e os xamãs narram aquilo que eles consideram ‘caça em excesso de peixes’ ou a perseguição da entidade dona do igarapé após a pesca com timbó, atitudes que causaram inúmeras mortes.” No artigo, Aparicio registra como a convivência com as castanheiras mowe (Bertholletia excelsa) marca de modo expressivo as trajetórias vegetais dos Banawá. Ele afirma que, além de serem imprescindíveis em sua dieta alimentar, as castanheiras, associadas à história de Mowewawa, o menino nascido de um ouriço de castanha, foram igualmente protagonistas na instauração de relações pacíficas com os extrativistas do interflúvio. FOTO: PAULO MÚMIA
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À esq., em ordem cronológica, fotografias tiradas pela antropóloga Priscila Ambrósio durante sua pesquisa com os frutos da árvore Cuia; abaixo, instrumentos para o preparo do rapé banawá e do tabaco temperado com cupui e cumaru, em imagem captada pelo antropólogo Miguel Aparício
No artigo “História das Memórias sobre as Cuias: O Que Contam os Quintais e as Florestas Alagadas Brasileiras?”, também presente em Vozes Vegetais, Priscila Ambrósio, doutora em biologia e pesquisadora do Museu do Índio, traça o caminho da espécie mais nobre de Cuia (árvore que rende um fruto que pode ser transformado em vasilhame abaulado). A bióloga pesquisou, inicialmente, a espécie Crescentia (Bignoniaceae), originária do México, que, ao longo de 11 mil anos, se espalhou por “contradomesticamento” humano ao logo da Bacia do Alto Rio Negro. O projeto começou em Manaus, em 2010, sob a supervisão de Charles Clement. “A ideia inicial era fazer uma coleta de folhas para saber de onde as pessoas começavam a selecionar as plantas e como essa seleção modifica o corpo daquelas plantas”, diz Ambrósio à seLecT. “Eu escolhi a Cuia por ser estranha. Sempre tive curiosidade em saber como as pessoas resolvem os problemas usando materiais vegetais. A planta não é comestível, mas é usada como remédio, está ligada a questões mágicas e a questões tecnológicas na história da Amazônia”, completa. Na América do Sul, o convívio dessas árvores com humanos data de, pelo menos, mil anos no Equador e 5 mil no Peru. Originária da América Central, a Cuia foi usada como demarcação de território e seu fruto usado durante a colonização europeia no Brasil. “Foram produzidos inúmeros relatos, com breves descrições sobre seu uso. As Cuias eram vendidas e usadas como copos ou tigelas produzidas nas ‘casas das índias’, de onde partiam remessas para Lisboa”, aponta Ambrósio no artigo. O estudo também ressalta a diversidade genética que o fruto ganhou em sua relação com ÁRVORES QUE CUIDAM DOS HUMANOS
os povos caçadores e coletores da Amazônia, principalmente nos quintais alagados das mulheres das comunidades ribeirinhas, onde cresceram descendentes da Cuia Crescentia. As Cuias são árvores que cuidam dos humanos, além de serem usadas para tratamento da fertilidade feminina e possuírem propriedades abortivas; sua polpa é usada para tratar catarro, resfriado e febre. “Minha ideia inicial no trabalho era buscar a rota do DNA”, diz Ambrósio. “Mas consegui perceber, depois de sete anos de intimidade com a cuia e de viagens por toda a Bacia Amazônica, que elas têm seus duplos: há a entidade Cuia que é a Sombra, que vaga pelas florestas alagadas, e tem a Cuia cultivada para mudanças como forma de marcar a terra e marcar o início de uma comunidade. É uma planta que está sempre cheia de gente ao redor, porque ela também trabalha o corpo das pessoas”, diz a bióloga. O professor Miguel Aparicio e a doutora Priscila Ambrósio compartilham em suas pesquisas uma mesma visão da Floresta como lugar de negociações e “contrarrespostas” das plantas. Para Aparicio, a visão antropocêntrica é responsável, por exemplo, pelo desmonte da Funai no contexto brasileiro de políticas ambientais cada vez mais escassas. “Os Banawá foram acompanhados diversas vezes pela Polícia Militar na coleta das castanhas, porque os Yaras (os homens brancos, como assim os denominam os Banawá) roubam a coleta cuidadosa desses povos tradicionais”, diz o pesquisador. Já Ambrósio acha que ainda é cedo por uma opção entre as duas possibilidades. “Esse saber, se antropocêntrico ou antropogênico, não está em questão porque o que estamos investigando é o verdadeiro afeto, as negociações que as relações entre humanos-plantas geram sem uma ordem hierárquica precisa.”
FOTOS: PRISCILA AMBRÓSIO / MIGUEL APARÍCIO
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Quando a ciência e a ficção se encontram: detalhes das capas dos livros Vozes Vegetais e Floresta É o Nome do Mundo
Na colônia terráquea imaginada pela escritora norte-americana Ursula Le Guin, em, Floresta É o Nome do Mundo (1973), Athshe é um planeta povoado por parentes dos humanos que, como os daqui, são caçadores, coletores e sonhadores de inúmeras florestas, flores, arbustos, árvores e outras espécies de plantas, sem as quais não se reconhecem. Isto até a chegada de exploradores do planeta Terra ávidos por madeira e pela transformação de áreas em monocultura de sementes, como, por exemplo, a soja. Um antropólogo chamado Lyubov, participante da missão predatória, é o único capaz de demonstrar compaixão e de traduzir, aproximadamente, a complexa relação simbiótica entre os creechies – hominídeos habitantes das florestas do Novo Haiti, como foi chamada a colônia de Le Guin, Athshe bem poderia ser o nome do planeta Terra: Floresta é o nome do mundo. A história que a escritora narra acontece hoje, talvez com a diferença de que o povo de Athshe tenha uma resolução de seu conflito colonial mais feliz do que os povos das florestas do Brasil vêm tendo. Afinal, a arte oferece outros futuros possíveis e essa obra literária tem sido fundamental para diversos teóricos criarem uma base transdisciplinar para o conceito de Antropoceno. Em suas inúmeras críticas, eles não apontam saídas para o nosso planeta, mas suas análises influenciam novas disciplinas, como a Etnobotânica. Le Guin, quase 50 anos à frente de seu tempo, vislumbrou o nascimento de uma disciplina que ainda não tinha nome. Mas o título de sua obra, Floresta É o Nome do Mundo (Morro Branco, 2020), bem que poderia sê-lo. PRÉ-POÉTICAS FLORESTAIS
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FOTOS: REPRODUÇÃO
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É U MA V I A G EM N O R I O MAR D A I MA G I N A Ç ÃO P O E TA E E N S A Í S TA PA R A E N S E FA L A S O B R E A R E V E L A Ç Ã O D O I M A G I N Á R I O AMAZÔNICO COMO FORMA DE CONHECIMENTO DO MUNDO E A NECESSIDADE D E I N C O R P O R A Ç Ã O D E S E U S VA L O R E S PA U L A A L Z U G A R AY F OTO S L U I Z B R AG A VOL. 10 / N. 50
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JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO FOI CRIADO OUVINDO QUE A SUA ABAETETUBA NATAL, CIDADE RIBEIRINHA DO BAIXO TOCANTINS, CONVIVIA COM UMA BOIÚNA, A GRANDE COBRA LENDÁRIA, SUBMERSA EM SUAS ÁGUAS. Ele cresceu, tornou-se poeta, prosador, ensaísta e dou-
torou-se em Sociologia da Cultura na Sorbonne, em Paris, com a tese Cultura Amazônica: Uma Poética do Imaginário. É professor de Estética, Filosofia da Arte e Cultura Amazônica na Universidade Federal do Pará, publicou dezenas de livros, expôs poemas visuais na 10ª Bienal de São Paulo, além de ter sido secretário de Educação no Pará. Mas a Boiúna, o Boto, a Iara, o Tambatajá e a circunstância cabocla de “ver maravilha nas coisas” acompanharam-no durante todo o percurso. Adepto do “devaneio poetizante” na escrita e na vida, é da realidade cultural da Amazônia que Paes Loureiro extrai os sentidos e as direções de sua poesia, seus romances e também de uma vasta obra ensaística, que trafega transversalmente pela estética, a história, a literatura e a semiótica. Afinal, “a poesia nasce geminada com o encantamento”, diz ele.
SELECT: Uma vez o senhor se referiu à sua cidade natal, Abaetetuba, como uma cidade encantada e mito de uma utopia social. Como Abaetetuba realiza essa sua vocação mítica?
Paes Loureiro: Abaetetuba é uma cidade ribeirinha, situada às margens do Baixo Tocantins. O município do qual é a sede é formado por mais de 70 ilhas. É o espaço cultural fecundo e fecundador dessa cartografia mítica enriquecedora do imaginário social. Uma produção fabulosa que tem um repertório tradicional e outro em constante processo de invenção, a partir do devaneio de pescadores e plantadores, cuja imaginação é impregnada pela relação entre a natureza magnífica e a vida. As extensões da solidão propõem um mundo a ser povoado pela imaginação criadora dessa habitação mítica. Tanto que nós, os que nascem em Abaetetuba, nos criamos a ouvir a narrativa que a cidade convive com uma Boiúna submersa, cobra grande lendária. No dia qualquer em que o rabo dessa imensa cobra for cortado, em uma de suas raras saídas pelo rio até a praia de uma ilha, a cidade será desencantada e, em seu lugar, surgirá outra com as mesmas pessoas que vivem na atual. A diferença é que será uma sociedade em que todos serão tratados de forma igual. Viverão na igualdade. Eu interpreto essa lenda como uma utopia social de feição socialista. Em Cultura Amazônica: Uma Poética do Imaginário, o senhor afirma que, para compreender a Amazônia, é preciso levar em conta seu imaginário social, que decorre de profunda relação com a natureza. Em que medida a sucessão de crises brasileiras, culminando com o atual governo negacionista, com endosso às queimadas e à pande-
mia, desequilibra esse sistema e altera esse estado das coisas?
A violentação da natureza, o desequilíbrio ecológico, a propagação de queimadas, a plantação de desertos, o cultivo de agricultura da soja e a multiplicação de rebanhos, predatórios do solo por falta de normas reguladoras e facilitação de transgressões por diminuição da vigilância, e o processo acentuado e incorporado nas ações do governo Bolsonaro para a Amazônia desequilibram um sistema de vida com imprevisíveis consequências sociais e predadoras de sua cultura, na qual o imaginário poetizante tem sua particularidade e riqueza. O imaginário não brota do nada. Brota de uma relação com a realidade concreta. Que imaginário brota da implantação de projetos agropecuários, hidrelétricos, de mineração e destruição da natureza?
O imaginário angustiado diante da terra-sem-males, nessas-terras– do-sem-fim, é também violentado, fatalmente passando a absorver o sentimento de que há um retorno ao inferno verde antes cunhado na região. Anteriormente, havia o imaginário recriando simbolicamente o mundo idealizado a partir de uma realidade idílica. Agora, o imaginário incorpora o sentimento de perda ou morte, das vidas, do solo, dos rios, da floresta, de um mundo. No livro, o senhor afirma entender por cultura amazônica aquela que tem a sua origem na cultura do caboclo, termo de origem indígena que significa“homem que vem do mato, da floresta”. O que é a “revelação cosmogônica” do caboclo diante da natureza amazônica?
Podemos reconhecer a revelação cosmogônica do caboclo e do índio diante de sua natureza (não se pode esquecer que a natureza amazônica contém a categoria da sublimidade, se lembrarmos as palavras do filósofo e geógrafo Immanuel Kant, ou estudar, na categoria do sublime, o sublime da natureza). A natureza amazônica é um dos exemplos dessa dimensão do sublime, vista por Kant cientificamente, mas sentida intuitivamente pelos índios e caboclos. Tanto que a cosmogonia mítica na Amazônia alegoriza a ideia do universo, a criação do mundo, o surgimento da vida, a relação entre o mundo original no alto e sua implicação no surgimento do mundo em que vivemos. Em alguns casos,
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uma percepção de dois mundos semelhante ao que Platão formulou. O que mostra que, diante da vida, cada representante de uma determinada cultura busca explicar, ao seu estilo, essas permanentes inquietações sobre saber a origem, a razão de tudo. Uma obra de grande sabedoria sobre essas questões é A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Obra que registra a narrativa da vida de Davi Kopenawa, desde quando é procedida sua iniciação religiosa e seu percurso até se tornar um líder Yanomâmi. Ao brilho do sol nas águas e nas folhas molhadas, se somam hoje os brilhos da noite tecnobrega e do afrofuturismo, incorporados nas estéticas de artistas que estão investigando suas raízes afro-indígenas. Como situa o imaginário afro-indígena na discussão sobre a formação da cultura amazônica?
A cultura é um processo de intercorrências. Não se congela. Tem a quentura de ser produção humana. Incorpora em sua composição todas as variantes que a vida social vai tendo. Não há mudança de realidade sem a correlata mudança cultural. A cultura afro resultante da crescente presença dos negros, que levam verdadeira devoção por sua cultura de origem e por sua força, passou a contribuir para o enriquecimento da cultura originária de índios e caboclos. No caso do tecnobrega, além da lambada e da guitarrada, é contribuição das culturas oriundas do Caribe, que, por sua vez, são também afrodescendentes. O que penso é que, ainda que o imaginário urbano “internacionalizado” passe a ter maior divulgação e peso, permanece na Amazônia o caráter distintivo da dominância do poético. A poética do imaginário. O senhor usa a metáfora do encontro das águas dos rios amazônicos para se referir à fusão entre realidade e “devaneio poetizante”, entre mito e poesia – que seria o modo de o ribeirinho “estranhar” sua realidade cotidiana. Como poesia e encantamento se enlaçam?
“ANTERIORMENTE HAVIA O SIMBOLICAMENTE O MUND DE UMA REALIDADE IDÍLIC INCORPORA O SENTIMENTO
A poesia nasce geminada com o encantamento. Mesmo que o conteúdo não seja lírico, a poesia no poema encanta pela sedução da palavra e dos efeitos poéticos nela comprimidos. Pode-se ler com encantamento o capítulo do inferno na Divina Comédia, de Dante, pelo encantamento que emana do uso da linguagem, das metáforas, símiles, alegorias, enfim, daquilo que constitui sua forma literária. Podemos lembrar o Morte e Vida Severina, de João Cabral. Navio Negreiro, de Castro Alves. Daí, porque, na radicalização do poema dito VOL. 10 / N. 50
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engajado, esse efeito poético cede, um pouco ou muito, sua dominância de forma para o conteúdo. Na verdade, todo poema é uma relação complexa entre forma e conteúdo que, mutuamente, se definem. Em que medida o devaneio, esse elemento estruturante do imaginário amazônico, tem relação
Como se o devaneante desejasse criar o seu destino. E como se dá hoje o encontro entre os imaginários do homem da floresta e do homem amazônico dos centros urbanos?
É quando o homem da floresta sente o impacto do preconceito relativo à sua cultura. E a pressão para que substitua os produtos desse imaginário, tidos como atrasados, pelos que a cidade oferece, que representam o atual, o civilizado. Esse encontro é impactante, porque vem na convivência do cotidiano, no sistema de ensino, em programas da mídia, na vida política, no mercado de trabalho. O isolamento é apontado pelo senhor como um aspecto fundamental da constituição do imaginário amazônico – tanto do ponto de vista geográfico quanto do político-administrativo. É muito interessante saber que, entre o século 17 e o início do século 19, a Amazônia não tinha vínculos de subordinação com o Brasil, sendo inteiramente autônoma, mantendo-se marginalizada em relação, inclusive, à América Latina. Em meados do século 20, essa condição é revertida pelas políticas econômicas exploratórias implantadas pelo regime militar brasileiro, condicionando a Região Éden (2017), Luiz Braga Amazônica a uma dependência Éden (2017), de Luiz Braga crítica da União. Segundo um estudo da PUC-Rio, 25% de todos os empregos formais oferecidos na Amazônia Legal estão hoje no setor público e quase a metade da renda dos habitantes da região – 48,8% com a vida nômade das comunidades amazônicas? – vincula-se diretamente a pagamentos feitos pelo Estado brasileiro. O devaneio é como um sonho acordado. Uma Como o senhor interpreta essa condição paradoxal entre isolamento viagem no riomar da imaginação. Nasce no e dependência do Estado? olho d’água individual para desaguar no oce-
O IMAGINÁRIO RECRIANDO DO IDEALIZADO A PARTIR CA. AGORA, O IMAGINÁRIO O DE PERDA OU MORTE”
ano do imaginário social através da arte, das narrativas fabulosas, do misticismo. O devaneio acompanha a vida nômade como forma de desejo de uma vida criada pelo devaneante.
Quando falo do isolamento como propiciador da constituição dessa relação entre homem e natureza, que prefiro homem/natureza, motivador desse imaginário amazônico, não desejo ser entendido como se fosse um fato posterior à construção da Belém-Brasília,
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quando passou a ser substituído pela integração. A retirada do isolamento, pela forma como a economia começou e a ditadura institucionalizou, é que foi problemática, pois foi uma invasão desse isolamento com a mentalidade de usufruir dos bens materiais que enriquecem a região. De modo que a retirada do isolamento não foi em benefício de sua gente, nem da região. Foi para usufruir dela, expropriá-la, saqueá-la. A região e sua população foram empurradas para a dependência. Não podemos deixar que se inverta o problema. Não foi o isolamento que gerou a dependência. O isolamento foi consequência da imposição dessa dependência, agravada pela política da ditadura militar para a Amazônia. A socióloga Violeta Refkalefsky Loureiro vem estudando com profundidade e revelando novos ângulos às questões amazônicas, dentre inúmeras contribuições em pesquisas, interpretações e questionamentos das formas de desenvolvimento impostas à Amazônia. Será pertinente ressaltar aqui alguns de seus conceitos formulados a partir de seus estudos: na obra Amazônia: Estado Homem Natureza, o conceito de “desenvolvimento às avessas” imposto à Amazônia, que transformou a “terra livre” anterior à ditadura militar, em que somente 2% eram tituladas como propriedade privada, no espaço de acelerada multiplicação desse porcentual, evoluindo para o atraso; outro conceito-chave que a socióloga vem desenvolvendo em artigos e conferências, e que será tema do novo livro que leva a sua proposta no próprio título, é: Amazônia – Colônia do País Brasil.
“O HOMEM DA FLORESTA SEN RELATIVO À SUA CULTURA E A PRODUTOS DESSE IMAGINÁRIO, A CIDADE OFERECE, QUE REPR
No texto “A poesia como encantaria da linguagem”, publicado no catálogo de Pororoca – A Amazônia no MAR, o senhor relaciona as encantarias a um “Olimpo submerso nos rios da Amazônia”. É muito interessante o trecho em que afirma ser o épico a navegação em grandes barcos no oceano e o lírico o navegar dos rios em canoas pequenas. A origem dessa convergência entre a teogonia amazônica e a antiguidade clássica está no próprio fato de o maior rio e a maior floresta tropical do mundo terem ganhado o nome das guerreiras da mitologia grega?
A Amazônia, como “paraíso na terra”, já estava no imaginário do mundo, pelo menos do mundo ocidental. Pode-se dizer que o imaginário foi a bússola que guiou as caravelas a chegarem até o dito Novo Mundo. Como se esse mundo estivesse começando naquele momento. Ao mesmo tempo, os navegadores desembarcaram na Amazônia trazendo em sua bagagem o imaginário grego. O frei VOL. 10 / N. 50
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Gaspar de Carvajal, vendo as mulheres guerreiras cavalgando, portando arcos, flechas e sedução em cavalos selvagens, comparou-as às Amazonas da mitologia grega, da antiguidade clássica. Na língua nheengatu, derivada do tronco tupi, são denominadas de Icamiabas, que é como prefiro me referir a elas. Na verdade, como a mitologia greco-romana tornou-se um padrão de referência no Ocidente,
zônia. Além dos Andes, no Peru. Para dar alguns exemplos. Eu tendo a ver, tanto no mito das Amazonas quanto no do Boto, remissões a um matriarcado arquetípico, que abriria caminho para os feminismos contemporâneos... Pergunto: o Boto, amante insaciável das mulheres ribeirinhas, sedutor de moças donzelas e mulheres casadas, que quebra o elo da rígida estrutura moral de punição da mulher, não estaria de certa forma desafiando o patriarcado e instaurando, no coração na floresta, uma semente feminista? Ou até ecofeminista? E nas Amazonas (que, segundo o senhor coloca no texto, teriam dado origem a uma “Amazônia-Safo”) não estaria o princípio de um amor não binário, reivindicado pelos ativismos LGBTQI+s?
NTE O IMPACTO DO PRECONCEITO A PRESSÃO PARA QUE SUBSTITUA OS TIDOS COMO ATRASADOS, PELOS QUE RESENTAM O ATUAL, O CIVILIZADO”
Curupira (2018), Luiz Braga
não esqueçamos que os navegadores aportaram no Brasil na fase do Renascimento, quando essa mitologia se tornou forte referência. Não esqueçamos que, em Os Lusíadas, Camões faz o cruzamento entre a mitologia pagã greco-romana e as entidades sagradas do catolicismo. Quanto ao lugar de mitos e deuses, o mundo é um verdadeiro arquipélago imaginal: Olimpo na Grécia. Encantarias na Ama-
Sou tentado a confessar uma compreensão diferente dessa instigadora questão. Não vejo esse desafio ao patriarcado e nem semente feminista ou ecofeminista. Penso que são conceitos que podem se referir às Icamiabas, com absoluta propriedade. O Boto não protege a mulher da punição familiar, da violência patriarcal e da discriminação social. Nos lugares cada vez mais isolados ou distantes das cidade maiores, quem escapa de punições é o filho do Boto, que considero um ser em que se realiza um clássico hibridismo: é filho de uma pessoa humana e de um encantado, uma divindade. No caso das Icamiabas, concordo com o princípio do amor não binário e tenho poema e ensaio teórico sobre essa questão.
Que lição ética os mitos indígenas e amazônicos trazem para o Brasil contemporâneo?
A lição ética que os mitos da Amazônia trazem para o mundo pode ser exemplificada através de alguns casos, pela dominância dessa dimensão: Tambatajá, a ética no amor; Icamiabas, a ética da liberdade de ser; Boto, a ética da súbita paixão de uma só vez; Curupira, a ética ecológica; Macunaíma, a ética quixotesca de querer criar o seu destino, burlando a lógica do real. E, ainda, a revelação do imaginário como forma de conhecimento do mundo e incorporação de seus valores. Inclusive o ético.
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Magdalena 50 ABR/MAI/JUN 2021 umayo Cahuinarí Cauca Guatavita Bogotá Ranchería Amazon Putumayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería umayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería Amazon Putumayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería umayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería Amazon Putumayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería umayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería Amazon Putumayo Cahuinarí Magdalena Cauca Guatavita Bogotá Ranchería
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N.N.N. ENSAIO
EM ENSAIO PARA O LIVRO WATERWEAVERS – A CHRONICLE OF RIVERS,
AUTOR DISSERTA SOBRE AS CONVERGÊNCIAS, AS DIVERGÊNCIAS E OS “METICULOSOS ESTRATOS DE RELAÇÕES” ENTRE AS ÁGUAS DOS RIOS NIÁGARA, NERVIÓN E NEGRO Na pág. à esq., design de Irma Boom para a capa do livro Waterweavers, organizado pelos curadores Alejandro Martin e Jose Roca FERNANDO ZALAMEA
DO ESTADO DA ÁGUA DE CRISTALIZAÇÃO, DA ÁGUA LIGADA EM GERAL – COMO O DOS TIPOS DE AR IGUALMENTE LIGADOS É UM CAMPO AINDA INTEIRAMENTE SEM CULTIVAR.
Novalis, Estudos de Friburgo (1798) As águas dos rios deslizam incólumes, o tempo escorre e permanece, o fluxo da corrente zomba das rochas passageiras. Já eu me disponho a sentir, penso, lembro: as imagens roucas e os sons azuis revelam a hidrografia duvidosa de minha vida. As ondas redemoinham, dançam e se entrelaçam em vertentes que evocam outros vertidos, em outros mares. Por minha mão correm gotas frias e a secura de minha alma parece não encontrar forma de se saciar. O tecido dos leitos – Waterweavers: a água ligada – exibe surpreendentes reveses, desdobramentos, transbordamentos. Mil imagens, nas beiras dos rios, me alumbram e me torturam. A força avassaladora das crescentes inunda as almas, aquela alma abandonada, minha alma. N. O primeiro rio cai fragoroso, com seu invisível rugido de brancura. A arrasadora violência da catarata ao longo dos séculos, vigilante, nunca igual e sempre a mesma, molda incompreensíveis desígnios. Um intrincado sistema de galerias, pontes e aberturas no granito, construído ao longo da queda, cai no esquecimento da
destruição. N. O segundo rio acumula o sangue mineral de décadas de usufruto siderúrgico. O ferro, o carvão, o aço entretecem, sem cisão possível, a terra, o curso da corrente, os fornos. Uma alquimia inapreensível da terra, da água e do fogo governa os ares pesados, plúmbeos, que pairam sobre a paisagem. N. O terceiro rio, atravessado por filões de quartzo, multiplica as clareiras de areia em todo o seu trajeto. A cor escura das águas provém da decomposição da vegetação desses espaços abertos. Combinam-se a vida dos fluxos, as areias silenciosas, a morte lenta do vegetal. Em um impulso de loucura, acreditei descobrir o compêndio do cálculo geral do universo nas iniciais dos topônimos dos meus rios: N.N.N. A letra tripla multiplica o n.n. do desconhecido, do anônimo, do esquecido. O cálculo integral consegue sintetizar, na repetição do n, o abandono e a ausência do homem. Índice de número natural, o signo abriga o nosso impossível acesso à Natureza. A partir da “grandiosa sucessão” N.N.N, o cálculo diferencial gera, por outro lado, toda a variedade da experiência. Próximo da demência, acredito descortinar os véus de Sais e choro de felicidade. Todas as complicadas alterações da alma são cifradas nas melvilleanas “núpcias da onda e da silva”. Vejo com nitidez como o homem, alheio, longínquo, se torna de repente a chave mestra desse cosmo que o evita. E minha demência, meu eu com FOTO: IRMA BOOM
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rachaduras, é capaz de refletir as dobras, os desgastes, as rupturas das águas ligadas que me envolvem. Niágara. O vento lambe com força as águas do lago. A calma planície torna-se uma serra interminável. As ondas quebram na praia contra pedras dispersas. As defesas da fortaleza revelam sua debilidade diante de uma infinidade alheia. Pinhos, olmos e carvalhos cumprimentam o despertar do letárgico cristal. Ao longe eleva-se a silhueta de uma cidade, incompreensível vista das ondas. Rocha, água e céu fundem-se em um traço contínuo de cobre e prata. Os globos, o olho e o cosmo confundem distâncias e diferenças. Um sol rasante transforma o ar em fogo. Centenas de brancos penachos de espuma escondem negras correntes. A potência segura de milhões de litros em movimento reduz a seu justo lugar as insignificâncias cotidianas. A geografia não deixa de se assombrar diante do estuário invertido. Com tranquila parcimônia, milenário, eterno, o lago inesgotável verte na boca do rio. Ongniaahra... “Trovão das águas”... “Terra cortada em duas”... O rio, nascendo de um lago, morre pouco depois em mais outro lago. O trovão e o corte multiplicam-se na portentosa catarata: Apocalipse sublime. Dezenas de prodigiosos arcanos jazem, desde o início, na improvável transposição do esteiro. Os movimentos submarinos acumulam no estreito novos sedimentos. Sem transição alguma, o reflexo dos céus espreme-se entre areias e umidades. Os caudais do canal adquirem seu impulso indomável. A bacia aloja, com precisão, cada fragmento de seu passado e de seu futuro. Nervión. Nas escarpadas alturas da serra nascem as águas que descem para o canyon. Os mananciais filtram-se entre a rocha calcária, no verão, ou unem-se para cair por um ingente salto, no inverno, quando o volume do caudal retido o permite. As formações cársticas, produto da ação erosiva da água, abrem dezenas de janelas e varandas na montanha. Os abutres fulvos pousam nesses habitáculos, antes de sobrevoar o território. Um denso bosque de faias esconde os acessos ao cume. A cor cinzenta das cascas e do solo baldio, escurecido pelas copas das árvores, evoca uma lúgubre antessala do Inferno. No meio da subiVOL. 10 / N. 50
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da, duas tocas de lobos, armadilhas formadas por altas paredes que convergem em poços profundos, lembram tempos pretéritos e selvagens. Do topo divisa-se o estreitamento das agrestes encostas cinza, caindo a pique sobre o incipiente rio. O verdor de suas ribeiras contrasta com a dura solidão da pedra. Aproximando-se do vale, surpreende a presença de umas fileiras de choupos-brancos. Os acherois de Homero constituem uma das possíveis fontes do Aqueronte. O nome pode provir daquelas plantas perenes, de uma falsa etimologia proveniente da “dor” ou de um sombrio “fluxo do luto”. Das próprias águas brotando afluem, na rocha e na árvore, duas referências aos círculos infernais. Quando, um pouco mais embaixo, a violência da siderurgia deságua inclemente no leito do rio, este acolhe o seu destino. Negro. O escudo tectônico, produto da erosão durante milhões de anos, destruiu as altas montanhas. Isoladas pelas planícies circundantes, algumas pequenas serranias aguentam ainda o labor dos elementos. Um clima sufocante, úmido e pegajoso adormece as próprias bestas da selva. As leguminosas reinam por toda parte, com suas folhas alternas, suas flores zigomorfas, seus frutos em legume. Os solos arenosos, cobertos de arbustos e bosques baixos, desfazem-se em uma sonolenta lentidão. O embasamento de granito sustenta os cursos quebrados e irregulares de dezenas de anos. As águas barrentas, cheias de argilas e limos, descem em direção à grande bacia do Amazonas. As altas torrentes combinam todos os tons imagináveis de brancos, marrons e cinzas. Gnaisse, sílice, quartzo, jaspe colorem os fundos das torrentes. O fragor dos choques da linfa e da pedra repercute em um som contínuo. As “núpcias da onda e da silva” extravasam a sua máxima expressão. Um magma de tempos e espaços virgens, idade de ouro do fluxo das ondas, continua ainda sua solitária corrida. A terra vira céu e o céu vira terra. O Puinawai, “Mãe da Humanidade”, acolhe mais um de seus eternos renascimentos. Enclave de meteoros e sedimentos, a reserva natural contempla outro transe alquímico de âmbares e arborescências. As rochas policromas e os tanques de águas cristalinas evidenciam o desgaste dos séculos. Os mananciais parecem brotar em
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cada metro de terreno. Curvando-se sem cessar, o rio recebe dezenas de afluentes, jatos e açudes. Debruço-me sobre meus rios – N.N.N. – e enlouqueço. Amei em N, vivi em N, morro agora em N. O amor, a vida e a morte, aqueles três grandes temas rulfianos, incrustaram-se nos limites dos meus rios. Consigo entender que somos só transmutações, transfigurações, transições. As águas convergem e divergem, ao teor mesmo de nossas frágeis ilusões e desesperanças. O tecido das almas – Soulweavers: a alma ligada – me sobressalta. Vejo com nitidez como as almas ligadas refletem-se nas águas ligadas, e descubro em minha mísera existência a chave da abóbada das arquitetônicas muito diversas que me atormentam. Os reinos e os cálculos – mineral, vegetal, corporal, intelectual, sideral, diferencial, integral – adquirem novos ares sob o que passo a chamar de hipótese N.N.N. Não só tudo se liga com tudo, algo que muitas propostas da Antiguidade já sugeriam, mas acontece através de meticulosos estratos de relações, que correspondem à exata ponderação, mistura, evaporação e condensação das águas. A cifra do universo encontra-se na meteorologia da alma, tal como Novalis (N) indicava, e essa meteorologia geral é cifrada, como por apocatástase, na hidrografia particular de minha alma. No N.N.N. condensam-se todos os mananciais (nascimentos), todas as águas de chuvas (dores), todos os fluxos dos rios (vidas), todos os transbordamentos (alegrias), todas as desembocaduras (mortes), e o ciclo expande-se por sua vez dos mares que vertem de novo nos rios. O tecido das águas – Waterweavers – reverte minha tristeza na chama do mundo e transforma minha loucura na sabedoria das coisas. Chego a ser plenamente consciente de minha iluminação, da epifania, do momento privilegiado, mas a encubro em minha desaprazível solidão. N. Sob o fragor inaudível das altas montanhas, nascera uma menina que convergiria nas cesuras e nas descargas da torrente. Ao crescer encarnaria a milagrosa conjunção de um veio marmóreo, em um límpido riacho, e a perfeição de uma esquecida escultura grega. Sua paixão pela arte confluiria, insuspeitada, em aguadas de outros tempos e outras paragens. Mesmo se dissolvendo em um sopro vão, um instante de eternidade propiciaria, com o suicídio da mulher na catarata, a união de duas eclosões de incalculável beleza. N. Longe dali, viera ao mundo um VOL. 10 / N. 50
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homem que passaria anos procurando decifrar elementos outros, em laboratórios científicos e centrais nucleares. As partículas elementares enalteceriam e destruiriam seu cérebro, até levá-lo àquela ria lacerada. As paixões, as lutas e os desamores o aproximariam, sem remissão alguma, do Aqueronte. Os saques da natureza e da alma humana não ficariam impunes. Os minerais teriam sua revanche. N. Não resultaria diferente o acontecer do menino. O carinho e o desamor se incrustariam em sua alma delicada, a felicidade e o desengano apreenderiam seu corpo, a liberdade e a submissão se interporiam no seu caminho. Submergindo-se em algum remoto distanciamento, o menino conseguiria contemplar a beira da penumbra e da luz. Seguindo as grandes águas negras, qual Proteu, atento a todas as fronteiras e todas as mudanças, o menino exploraria a partilha do mundo em um novo vislumbre do perpétuo transe entre a vida e a morte. A ligação das águas era muito simples em aparência – o homem e a mulher foram destroçados ao longo do Nervión, seu filho escapara ao Rio Negro, e eu tentara amá-la e salvá-la quando ela se exilara no Niágara –, mas a força dos rios sempre excedia meu pequeno vislumbre da realidade. Múltiplas correntes ocultas se entrelaçavam, uniam e desdobravam debaixo da aparente superfície das águas. Os cálculos verdadeiros não podiam se reduzir então à efêmera linearidade de minha percepção e de meu intelecto. A hipótese N.N.N. permitia multiplicar o universo, exponenciar meu desgarrado amor e situá-lo no centro mesmo de todas as coisas. Rio agora, com a gargalhada delirante de um louco, ao imaginar os séculos requeridos para demonstrar minha hipótese N.N.N. Concebo a hipótese de Riemann e a hipótese do contínuo de Cantor como consequências imediatas e infantis de minha conjectura. Só o Aleph de Borges parece conformar-se em uma digna contraparte de minha ambição. Só não entendo com absoluta clareza o contínuo fluir dos meus rios, inabaláveis, silenciosos, eternos, aparentemente independentes de minha própria tragédia. Imagino nesse momento que, entre aparências de aparências, só o particular do particular e o vago do vago – N.N.N. – podem ser capazes de captar a elusiva complexidade dos universais. T R A D U Ç Ã O PA L O M A V I D A L
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FOTO: IRMA BOOM
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MUNDO CODIFICADO
FALA-SE FALA-SEEM EMLÍNGUAS LÍNGUAS ARUAK, TUPI, TUKANO, MACRO-JÊ, ARAWÁ. O BRASIL É UM PAÍS BEM ABASTECIDO EM LÍNGUAS INDÍGENAS, ONDE HÁ 15 FAMÍLIAS DE IDIOMAS. MAS POUCO SE FALA SOBRE ELAS
G U S TA V O G O D O Y ARTE NINA LINS
NÃO SE SABE O NÚMERO EXATO DE LÍNGUAS INDÍGENAS NO BRASIL. Algumas publicações anotam perto
de 150, outras copiam uma estimativa antiga de 180. O Censo, baseado em autoidentificação, indica o número de 274, uma cifra alta demais. Um fato, no entanto, é definitivo: o Brasil é rico em línguas, isoladas ou aparentadas. Se uma língua não apresenta similaridades sistemáticas com nenhuma outra, é considerada isolada, sem parentes e ancestrais identificáveis. No Brasil, há nove delas: em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, o guató; em Rondônia, os idiomas kanoé, kwazá e aikanã; em Mato Grosso, trumai e iranxe e, em Roraima, máku e arutani. É o caso também da língua yaathê, em Pernambuco. Agora, quando um idioma se expande, diferentes comunidades passam a falar de modos cada vez mais divergentes. Surgem então dialetos que podem originar línguas novas, porém semelhantes. Juntas, elas são chamadas de família linguística, por descenderem de uma mesma raiz ancestral. No Brasil há 15 famílias, presentes em países vizinhos, como Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e mesmo no Equador. As maiores, que incluem dezenas de línguas, são aruak, tupi e caribe. Originárias da Amazônia, elas se expandiram pelo continente. Aruak e caribe chegaram até mesmo às Antilhas. Também com dezenas
de línguas, o conjunto macro-jê é exclusivo do território brasileiro, atravessando-o de Norte a Sul, desde o Pará e o Maranhão até o Rio Grande do Sul. Outras famílias ocupam áreas menores, mas ainda expressivas. As famílias tukano e nadahup estão no Alto Rio Negro, chegando até a Colômbia e a Venezuela. A família pano está no Acre, na Bolívia e no Peru. Em Mato Grosso, também, as famílias bororo e nambiquara já ocuparam grandes territórios. No Amazonas, o pirahã e o tikuna tinham línguas irmãs, mas atualmente elas estão extintas. Portanto, hoje eles são os últimos representantes das suas respectivas famílias linguísticas. Do contato colonial também surgem as línguas crioulas, que contam com muitas palavras oriundas das línguas dominantes. No Amapá, o kheuól, que vem do contato escravocrata entre o francês e línguas africanas, é falado por populações indígenas. Além das línguas orais, existem ainda línguas de sinais surgidas entre os povos ka’apor, no Maranhão, e terena, em Mato Grosso do Sul, entre outras. É no Brasil que está presente boa parte da diversidade linguística do mundo. Essas línguas, tão diferentes entre si, são ainda desconhecidas: pela opinião pública, que ignora mesmo seus nomes, pela falta de estatísticas coerentes e pela ciência linguística que apenas começou a descrevê-las. Em línguas, o Brasil é um país bem abastecido – o que é algo que pouco se fala.
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ARUAK PARESI (MT)
ENAWENÊ-NAWÊ (MT)
ARUAK*
ARUAK DE JUREMA
RAMO XINGU
PALIKUR (AP) CENTRAL
JAPU RIO BRANCO/
COLÔ
PIDJANANO WAPIXANA (RR)
MAWAYANA**
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TARIANA (AM)
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MANCHINERI (AC) APURINÃ (AM, AC, RO)
WAUJA (MT)
PURUS
MEHINAKU (MT) KUSTENAU (EXTINTA) YAWALAPITI (MT)
ASHANINKA (AC) CAMPA
RAMO HIPOTÉTICO
TERENA (MS, SP)
“PRÉ-ANDINO”
URÁ
ORINOCO
ÔMBIA
KINIKINAU (MS) BARÉ (EXTINTA)
BOLÍVIA-PARANÁ
WAREKENA DO XIÊ BANIWA-KORIPAKO (AM)
*A CLASSIFICAÇÃO DA FAMÍLIA ARUAK AINDA NÃO É CLARA. (CAMPBELL 2012: 71, REFORÇADO POR NIKULIN & CARVALHO 2019). **FALADA POR UMA DÚZIA DE IDOSOS NAS ALDEIAS WAIWAI E TIRIYÓ.
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WAYORO (RO)
TUPI GAVIÃO (RO)
TUPARI (RO) AKUNTSU (RO)
ZORÓ (RO) KARO (RO) CINTA-LARGA (RO)
ARUÁ (RO) SURUÍ/PAITER (RO)
RAMARAMA
SALAMÃÍ (RO)
JU
MONDÉ
XIPAYA (PA)
TUPI
ARIKÉM
KARITIANA (RO) VOL. 10 / N. 50
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SAKURABIAT (RO)
MUNDURUKU (AM, PA, MT)
MAKURAP (RO)
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KURUAYA (PA) XETÁ (PR)
MUNDURUKU
KAIOWÁ (PR)
TUPARI
PURUBORÁ
NHANDEVA (MS, PR, SC, SP)
AVÁ-CANOEIRO (TO, GO)
MAWETIGUARANI
KA’APOR (MA)
WARAZÚ (RO)
AWÁ-GUAJÁ (MA) TENETEHARA*
URUNA
GUARANI PARAGUAIO (PR, MS)
TUPI ANTIGO (LITORAL DE SP ATÉ MA, INDO PARA O PA)
TG PERIFÉRICO
TUPIGUARANI
SATARÉ-MAWÉ (AM)
MBYA (RS, SC, PR SP, RJ, ES, TO, PA)
KAMBEBA/OMAGUA (AM)
KOKAMA (AM) KAMAIURÁ (MT)
YUDJÁ (MT)
WAJÃPI (AP)
AWETI (MT)
TG CENTRAL
ARIKEM
KAYABI/KAWAIWETE (MT) TAPIRAPÉ (MT, TO) AIKEWARA (PA) ASSURINI DO TOCANTINS (PA)
ANAMBÉ (PA)
ARAWETÉ (PA)
PARINTINTIM, TENHARIM, JIAHUI (AM), AMONDAWA (RO)
ASSURINI DO XINGU (PA)
PARAKANÃ (PA) *TEMBÉ (PA) + GUAJAJARAS (MA)
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CARIBE CARIBE INGARIKÓ/ PATAMONA/ AKAWAIO (RR)
MACUX GRUPO COSTEIRO (NÃO É BRASILEIRO)
TAU GRUPO PERMONGUIANO
RAMO VENEZUELANO
CARIBE
RAMO GUIANENSE GRUPO TARANOANO TIRIYÓ (PA) AKURIYÓ
APARAI (PA) GRUPO PARUKOTOANO
WAIWAI (AM,PA, RR)
WAJANA (PA)
KATXUYANA (AM, PA, RR) HIXKARYANA (AM, PA)
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XI (RR)
IKPENG (MT) ARARA (PA)
UREPANG (RR)
BAKAIRI (MT)
RAMO PEKODIANO
RAMO-WAIMIRIANO
RAMO KUIKUROANO
PIMENTEIRA (EXTINTA) KUIKURO, KALAPALO-NARUVOTU, MATIPU, NAFUKWA (MT)
WAIMIRI-ATROARI (AM)
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MACRO-JÊ MACRO-JÊ XOKLENG / LAKLANÃ (SC)
KAINGANG (PR, SC, RS)
JÊS MERIDIONAIS
JÊS PARA
MACRO-JÊ
CHIQUITANO (MT)
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KRIKATI
PYKOBJÊ CANELA (MA) KRAHÔ (TO)
PARKATÊJÊ (PA)
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TIMBIRAS
KISÊDJÊ (MT)
PARANÁ (MT)
MOSSÂMEDES
INGAIN (EXTINTO)
APINAJÉ (TO)
TRIÂNGULO
CAIAPÓS DO SUL
TRANSTOCANTINS
KWAJKWAKRATXI (MT)
MEBÊNGÔKRE
JÊ SETENTRIONAL
XIKRIN (PA)
AKUWE KAMAKÃ
S
KRENAK (MG)
MAXAKALI (MG)
KAYAPÓ (MT)
PATAXÓ HÃHÃHÃE
ANAENSES
MAXAKALI
JÊ
TRANSFRANSCISCANO KARAJÁ, JAVAÉ E XAMBIOÁ (GO, MT, PA, TO)
ORIENTAIS
FAMÍLIA KARAJÁ
MATOGROSSENSES OCIDENTAIS
OFAYÉ (MS) RIKBAKTSA (MT)
JABUTI
ARIKAPU (RO) DJEOROMITXI (RO)
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PANO PANO PANO RAMO SETENTRIONAL
MATIS (AM) KORUBO (AM)
NADUHOP DÂW (AM) HUP (AM)
NADUHUP
YUHUP (AM)
NADEB (AM)
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KAXARARI (AM, RO)
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SUDESTE
CENTRO-MERIDIONAL MATSÉS / MAYORUNA (AM)
KATUKINA-PANO (AC) KULINA-PANO (AM)
NUKINI (AC)
PUYANAWA (AC)
HUNI KUIN / CAXINAUÁ (AC)
XINANE (AC) YAMINAWÁ (AC) ARARA / SHAWÃDAWA (AC)
YAWANAWÁ (AC) SHANENAWA (AC)
MARUBO (AM) KUTANAWA (AC)
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TXAPAKURA TXAPAKURA TXAPAKURA
YANOMAMI YANOMAMI YANOMAMI YÃNOMA (RR) VOL. 10 / N. 50
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TORÁ (AM)
KUJUBIM (RO) 119
RAMO MORÉICO
RAMO WÁRICO
YANOMAMI (AM) WARI’ (RO) YANOMAM (RR, AM) ORO WIN (RO)
SANOMA (RR)
NINAM/ XIRIANA (RR)
YAROAME (RR)
NAMBIQUARA
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SABANÊ
NAMBIQUARA
NAMBIQUARA DO NORTE
NAMBIQUARA DO SUL
TUKANO TUKANO TUKANO
TUCANO ORIENTAL
TUCANO OCIDENTAL*
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KATUKINA KATUKINA
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KATAWISHI (EXTINTA)
KATUKINA KATUKINA, KANAMARI (AM)
RAMO ORIENTAL
RAMO I
TUKANO / YEPAMAHSÃ / DAHSEA (AM) BARÁ (AM) TATUYO (AM) KOTIRIA / WANANA (AM) WAÍKHANA / PIRA-TAPUYA (AM)
RAMO II RAMO OCIDENTAL
CARAPANÃ (AM) TUYUKA (AM) KUBEO (AM)
DESANA (AM) SIRIANO (AM)
MAKUNA (AM)
RAMO MERIDIONAL
BARASANA (AM) *NÃO HÁ NO BRASIL
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MURA MURA MURA
MURA (EXTINTA)
PIRAHÃ (AM)
TIKUNA-YURI TIKUNA-YURI
TIKUNA (AM)
YURI (EXTINTA, FORA DO BRASIL) VOL. 10 / N. 50
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ARAWÁ
DENI (AM) 123
KULINA (AM)
BANAWÁ, JARAWARA, JAMANDI (AM)
ARAWÁ
PAUMARI (AM)
SURUWAHA/ ZURUAHÃ (AM)
GUAICURU GUAICURU KADIWÉU (MS)
GUAICURU
GUAICURU DO NORTE QOM
GUAICURU DO SUL*
ABIPÓN (EXTINTA)
*ESTA PARTE DA FAMÍLIA NÃO ESTÁ PRESENTE NO BRASIL, MAS NA ARGENTINA E PARAGUAI
P R OJ E T O V E R N I S S A G E
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ELOGIO DA LEMBRANÇA IMPOSSÍVEL NA MOSTRA ESCOMBROS, PELES, RESÍDUOS, EM CARTAZ NA SIMONE CADINELLI ARTE CONTEMPORÂNEA, JEANE TERRA APRESENTA OBRAS QUE SE CONSTROEM A PARTIR DA ESCAVAÇÃO DE MEMÓRIAS E DA REORGANIZAÇÃO DE RASTROS, ARREMESSANDO-NOS CONTRA A INEVITABILIDADE DA RUÍNA ANA CLARA SIMÕES LOPES
Lambris do Pontal, 2020, Jeane Terra
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FOTO: DIVULGAÇÃO, FOTOS: GALERIA CORTESIA SIMONE DOSCADINELLI ARTISTAS
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“SEI QUE PERDI TANTAS COISAS QUE NÃO PODERIA CONTÁ-LAS, E QUE ESSAS PERDAS, AGORA, SÃO O QUE É MEU.” A frase de Borges pode dizer sobre muita coisa,
especialmente sobre o trabalho de Jeane Terra. A artista teve sua trajetória marcada por impactantes perdas, únicas em suas formas e contextos. O luto da mãe foi interrompido pela abrupta perda do restante de sua família e a consequente demolição da casa onde crescera em Belo Horizonte. Jeane Terra conta que, quando viu os escombros de sua “morada de memórias” no canteiro de demolição, movida pela inabilidade de se despedir daquela construção e suas recordações, reuniu pedaços VOL. 10 / N. 50
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da ruína ali presente. “Carreguei esses escombros por um tempo, levei-os comigo em três mudanças, até entender o que precisava fazer com eles.” Mais tarde se tornariam parte de uma de suas obras. O Inventário (2017) tece profundas relações entre o tempo e os destroços. Nessa obra, um projetor, outrora de seu pai, reproduz a imagem da casa sobre uma ampulheta incrustada num escombro de sua demolição, a areia desta substituída pelo pó oriundo da ruína. Esse estopim aponta muitas das questões que, progressivamente, instalar-se-iam no cerne da prática artística de Terra: a casa, a perda, os vínculos entre o tempo e a arquitetura, entre a
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Crustáceo Vermelho do Pontal, 2020, Jeane Terra
memória e suas subjetividades. “Essa obra embrionária foi, para mim, uma forma de fazer com que aquela morada não deixasse de existir, de ressignificá-la”, reflete a artista. Na sua obra, debruçar-se sobre estas questões é uma forma de metabolizar o fardo dos acontecimentos, rearranjar lembranças, torná-las eternas, torná-las próprias, suas. Atafona é, nesta mostra, elemento aglutinador e ponto de partida para essas forças que poeticamente permeiam a pesquisa da artista. O distrito de São João da Barra, na Região Norte Fluminense, corresponde ao ponto de encontro do Rio Paraíba do Sul com o Oceano Atlântico. O assoreamento das águas e a devastação da mata ciliar ao longo desse rio – que atravessa os três estados mais populosos do Brasil (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) – enfraqueceram-no, tornando-o inofensivo diante da erosão das correntes e marés impostas pelo Oceano Atlântico em sua foz. O mar vem e, com sua força terminante e ininterrupta, progressivamente engole a cidade – faz ruir suas ruas, casas e construções. A Praia do Pontal, sítio que
reúne algumas das investigações de Terra, consiste atualmente em uma porção residual do que já foi sua extensa orla e é um dos exemplos manifestos dessa degradação. Em curso desde a década de 1960, este é um esboroar assistido, já assimilado pelo cotidiano da cidade. A artista presenciou o que chama de “luto dos moradores” de Atafona, que, com naturalidade, contabilizam os anos que ainda restam antes que suas casas sejam engolidas pelo mar. Esses resilientes habitantes parecem personificar a passagem de (W.G) Sebald, eles compreendem, melhor do que ninguém, os edifícios que “projetam a sombra de sua própria destruição”, que são experimentados “desde o princípio com um olho para sua existência ulterior como ruínas”. Condições com as quais a artista também se relaciona, Escombros, peles, resíduos reúne obras que urdem esses pedaços de construções e as memórias que os circundam. Reorganizando as ruínas que o mar faz da cidade, Jeane Terra incita impregnações poéticas entre as memórias de Atafona e suas próprias. FOTO: DIVULGAÇÃO, FOTOS: GALERIA CORTESIA SIMONE DOSCADINELLI ARTISTAS
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Sentinela Negra do Pontal, 2020, Jeane Terra
FAZER (COM) MEMÓRIA Nesta individual inaugural na Galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, a artista nos oferece um processo fortemente informado pelo afeto oriundo do ato de recordação. Aqui, memórias apontam percursos, dobras, procedimentos e até mesmo a opção por alguns materiais. Escavação Capilar – Pontal de Atafona (2021) é um desses casos. Aqui, a escavação, procedimento recorrente na obra de Terra, é realizada na parede da galeria. Aquela que uma vez fora a orla do Pontal de Atafona nos é apresentada enquanto talha na arquitetura, minuciosamente revestida pelo brilho das folhas de ouro. A inscrição da cartografia na arquitetura é entendida pela artista como um movimento de perpetuação da memória, “escavo o mapa da cidade para que a cidade não se perca”, ela diz, e continua: “No final da exposição, ainda que apagada, a escavação se tornará uma memória, permanecerá para sempre um vestígio na arquitetura da galeria”. Em alguns pontos desse contorno, seu sulco ganha corpo e volume: são fragmentos de ruínas resgatados e agora circunscritos à memória da cartografia da cidade. Nesses escombros subjacentes, a fisicalidade das, uma vez, moradas permanece: Crustáceo Vermelho do Pontal (2020) dispõe de uma pintura residual que, mesmo exposta a anos de marés, não perdeu sua qualidade rubra. A superfície de Pérola do Pontal (2020) segue incrustada por ladrilhos alvos e o revestimento escuro de Sentinela Negra do Pontal (2020) não desbotou, apesar de todo o mar. Essas características residuais aludem às possíveis funções e configurações anteriores desses fragmentos, nos incentivam a imaginá-los parte de moradas maiores; tornam palpável a brutalidade concreta do processo de degradação em curso. VOL. 10 / N. 50
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Em Lajeado 1 (2020) e Máscara Gold (2020), essa vontade de apreensão da memória parece se intensificar: a fisicalidade da construção que ruiu não é suficiente, é preciso reproduzi-la. Terra tira moldes de escombros fragmentados que, posteriormente preenchidos, são replicados. Com essa “impressão da casa”, ela eterniza um estágio de ruína superado ( já que os escombros seguem, em verdade, perecendo no oceano). A estas esculturas a folha de ouro também é sobreposta, aludindo novamente ao brilho de outrora, ao “quanto de memória há impregnado nos lugares que a gente vive”, como bem diz a própria artista. Presente em ambos os trabalhos, a folha de ouro é um dos materiais a que chega Terra por meio do acesso às suas próprias memórias. Essa pele dourada remete à mina afetuosa de lembranças das igrejas barrocas de Minas Gerais, que a artista visitava enquanto criança. Quando sobreposto à parede e ao cimento, o material acomoda-se e passa a remeter também à preciosidade das memórias de Atafona, da recordação das muitas casas e existências que não só as suas. Em Fáscia 2 (2020), a imagem de uma das casas em ruína de Atafona é bordada sobre uma pele de tinta, suporte de destacada fisicalidade inventado pela própria artista. Aqui, mais uma vez, as memórias alheias misturam-se às de Terra, em um processo de mútua impregnação poética.
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Na obra de generosa materialidade, o ímpeto em marcar o corpo com memórias (durante o luto, sentiu necessária uma tatuagem) transpõe-se à vontade de bordar nessa pele as ruínas de Atafona. O meticuloso bordado remete aqui, ainda, aos anos de convívio com sua avó. Como lindamente coloca Agnaldo Farias, curador da mostra, talvez assim, “sobrepondo os gestos de sua avó aos seus próprios gestos, elas se reencontrem e nem tudo fica perdido”. É justamente nessa sobreposição de gestos, no interfaceamento de recordações que as investigações plásticas de Jeane Terra se desenrolam. Com sua materialidade generosa, a obra é um elogio às memórias impossíveis, um exercício de apreensão das moradas cujo desaparecimento é iminente. Terra lança-se em direção às tentativas de recordação e reelaboração do que já se foi e do que resta para rearranjar as perdas e o luto, fazer dos afetos seu sentido próprio. Tudo aqui se faz (com) memória, afinal.
FOTO: DIVULGAÇÃO, FOTOS: GALERIA CORTESIA SIMONE DOSCADINELLI ARTISTAS
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Escavação Capilar – Pontal de Atafona 2020, Jeane Terra
FOTO: DIVULGAÇÃO, FOTOS: GALERIA CORTESIA SIMONE DOSCADINELLI ARTISTAS
CRÍTICA SU ÃO LO P B LPAU I C AÇ ÃO
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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ANTROPOFAGIA EM QUESTÃO
A um ano do centenário da Semana de 22, seção de crítica da revista The Brooklyn Rail confronta discursos legitimados e marginais para problematizar o debate sobre arte moderna LEANDRO MUNIZ
Um lugar-comum ao longo da arte moderna é a busca por um “outro” que revigore e permita uma autocrítica das próprias tradições. No caso brasileiro, no contexto paulista, especificamente, essa alteridade era o indígena, usado pelo grupo em torno de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral como forma de resistência à hegemonia cultural europeia. Ainda que o projeto dos artistas, poetas e músicos modernos tivesse radicalidade, seus limites de classe e as narrativas muitas vezes homogeneizantes sobre suas produções passam por crescente revisão na medida em que a Semana de 22 se aproxima de seu centenário. Um dos projetos que problematizam esse debate é a seção de crítica da revista The Brooklyn Rail, lançada em fevereiro e coeditada pela escritora norte-americana Sara Roffino e pelo artista brasileiro Tiago Gualberto. Já no título da edição há uma torção da afirmação modernista, que é colocada no interrogativo: Só a Antropofagia nos Une? A diversidade de vozes e registros ao longo dos textos permite um olhar nuançado para a questão. A ideia de deglutição do outro para a formação de si enVOL. 10 / N. 50
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Experimentando o Vermelho em Dilúvio, 2016, de Musa Michelle Mattiuzzi e, na página seguinte, Mama Goma, 2014, de Deana Lawson
contra contextualizações de classe, raça e poder que expõem tensões presentes, mas muitas vezes sublimadas, do circuito artístico. Além de introduzir a história da arte no Brasil para um público internacional, a seção reconhece a antropofagia como um assunto que tange diferentes áreas da experiência cultural no país, mas problematiza as narrativas em torno do assunto. “Não podemos fazer a celebração de um primitivismo de cem anos atrás”, diz Tiago Gualberto, evocando o texto “Antropofagia: Um Futuro Primitivo no Brasil de Cem Anos Atrás”, de Renato Araújo da Silva, presente na edição. Os editores começaram sua interlocução em 2018, quando, devido à retrospectiva de Tarsila do Amaral no MoMA-NY, Roffino ficou espantada com a pintura A Negra (1923). Para ela, a exposição demonstrou uma visão reducionista sobre o modernismo no Brasil, com aspectos racistas e idealistas, e decidiu então pesquisar artistas brasileiros que estavam pensando criticamente o período, em busca de contranarrativas ao discurso institucional. “O diálogo Norte-Sul acontece em uma só direção, mas podemos inverter esse fluxo”, diz Sara Roffino à seLecT. No site da revista é possível acessar os textos em português e inglês, verificando, inclusive, as diferenças de pensamento condicionadas pela língua e os limites impostos pela tradução. A versão impressa que é distribuída para a comunidade artística de Nova York, no entanto, é apenas em português, reforçando as barreiras linguísticas, mas também questionando o international art english que domina as publicações nesse campo.
Na página anterior, capa da publicação Só a Antropofagia nos Une?, e, ao lado, Rio Doce - Urucum sobre Corpo, de Caetano Dias
Só a Antropofagia nos Une? inclui análises acadêmicas, poemas, entrevistas e textos com tom marcadamente oral. Em ensaios escritos apenas com letras minúsculas, o artista rafael amorim – que usa a não hierarquia entre as palavras em toda a sua produção, eliminando as maiúsculas, inclusive de seu próprio nome – revisa a dimensão nacionalista das atrocidades cometidas por Bolsonaro. O poeta Sergio Vaz lança o Manifesto da Antropofagia Periférica e Denilson Baniwa apresenta o poema ReAntropofagia. O artista Caetano Dias publica um texto composto de apropriações de referências que discutem a ideia de brasilidade, do poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, à música Ideologia, de Cazuza, expondo violências e desigualdades persistentes na história do país. Comentando o aspecto indigesto do modernismo brasileiro para as populações indígenas e negras que serviram de tema para aqueles artistas, o artigo “A qualquer hora carne dura” coloca em conflito visões idílicas e negativas sobre o Brasil, embaralhando diversas temporalidades que se interconectam. O texto é parte da pesquisa de Caetano Dias – que é conhecido por produzir esculturas comestíveis, em que a figura humana é construída com açúcar e rapadura – sobre as dimensões simbólicas, políticas e físicas de se alimentar do outro. Poucas páginas separam o texto do professor de história da arte Luiz Renato Martins, sobre a dimensão rebelde da obra de Antonio Dias, e o relato do pichador Cripta Djan, sobre as violências que sofreu ao intervir nas paredes brancas da 28ª Bienal de São Paulo. “Os curadores haviam dito na mídia que o espaço estava aberto ao diálogo com a sociedade, aberto a intervenções urbanas. Nos sentimos convidados”, relata Djan. FOTOS: DIVULGAÇÃO/ CAETANO DIAS
REVISÃO EPISTEMOLÓGICA Essa reunião de discursos legitimados e marginais mostra dimensões menos óbvias ou menos domesticadas da ideia de antropofagia, para além do clichê. Há uma revisão do modernismo paulista, mas também fica clara a crítica às novas formas de autoexotização da arte produzida no Brasil. A presença de artistas periféricos nessa discussão, no entanto, não se reduz a uma reivindicação por representatividade. Há, inclusive, uma crítica da teatralização de dissidências ou das cotas de diversidade que assombram o circuito artístico atualmente. Além de escapar das categorizações a que esses intelectuais e artistas são submetidos, existe o cuidado em não reforçar os lugares em que colocamos o “outro”. “As instituições celebram uns poucos artistas negros e indígenas, porque eles satisfazem o paladar sobre o que se espera deles”, diz Tiago Gualberto. A revista propõe uma revisão do próprio campo da arte, que, mesmo com pautas progressistas, acaba reproduzindo dinâmicas de exclusão e desigualdade. Há uma reflexão sobre o papel das instituições e dos lugares estabelecidos de conhecimento na construção do que se compreende como arte brasileira e a variedade de vozes aponta como os aspectos problemáticos da história precisam ser vistos por diferentes ângulos, estabelecidos ou não. “O que é canibalismo para uns é inescapável para outros”, escreve a roteirista Thays Berbe. As múltiplas narrativas em torno da experiência da antropofagia e do modernismo geram um conjunto de textos sem celebração, mas também sem rancor, reconhecendo a importância e os limites Só a Antropofagia nos conceituais daquela premissa ao longo da Une?, 2021 história. Iniciado como publicação de carábrooklynrail. ter explicitamente experimental e fragmenorg/2021/2/ criticspage tário, o projeto abre espaços para uma série de reflexões e ações, marcando sua relevância a longo prazo.
CRÍTICA CRÍTICA
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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RUÍNA ANTES DE SER CONSTRUÇÃO Curadoria de Catalina Lozano no Pivô escava séries de trabalhos sobre rachaduras da linguagem e da comunicação
Acima, o vídeo Lobisomem (2016), de Janaina Wagner. e, na pág. seguinte, Hii horewe pe (2019), de Sheroanawe Hakihiiwe
HISTÓRIA NATURAL DAS RUÍNAS Até 17/4, exposição coletiva, Pivô - São Paulo, pivo.org.br
PAULA ALZUGARAY
Em junho de 2014, no Projeto Gameleira 1971, Lais Myrrha instalou no Pivô uma passarela precária para a visitação da memória da Gameleira, um dos maiores acidentes da construção civil brasileira. O edifício, que confirmou a visão de Lévi-Strauss sobre os tristes trópicos brasileiros, foi ruína antes de ser construção. Deixou 117 operários mortos ou desaparecidos sob os escombros da obra pública com projeto VOL. 10 / N. 50
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de Oscar Niemeyer. Mas foi alçado do esquecimento pela instalação da artista mineira e voltou ao debate público. A pesquisa de Lais Myrrha sobre demolições, desabamentos e o fracasso do projeto desenvolvimentista brasileiro não integra a mostra Uma História Natural das Ruínas, curadoria da colombiana Catalina Lozano, em cartaz no Pivô. Mas ocupou o mesmo espaço monumental no térreo do Edifício Copan, em São Paulo, e permanece, como uma aparição benigna, na história dessa pungente instituição cultural paulistana. Aquele trabalho de desvelamento da “falsa memória de um modernismo vitorioso”, nas
palavras da artista, soma-se a outros espectros do progresso e da modernização do período ditatorial brasileiro, como a rodovia Transamazônica, entre outras ruínas. A fantasmagoria é uma presença constante em Uma História Natural das Ruínas. A começar pela obra que pontua o início do trajeto expositivo, Fantomas, de Daniel Steegman Mangrané, que, segundo a curadora, funciona como um alfabeto suspenso no espaço, sinalizando as diversas investigações sobre a linguagem – ou sobre a ausência da linguagem na comunicação –, assumidas pelos trabalhos dos 15 artistas reunidos na coletiva. A qualidade espectral encontra-se especialmente na articulação porosa entre ficções, fábulas, narrativas científicas ou enciclopédicas – ou no questionamento da separação entre natureza e cultura, que a curadora afirma ser artificialmente construída pela modernidade –, presentes nos trabalhos de Janaina Wagner (Lobiso-
mem), Louidgi Beltrame (Amanecer Perpetuo) e Isuma (Inuit Knowledge and Climate Change), que demonstra a visão indígena sobre as mudanças climáticas. Ao assumir como um eixo central a revisão de processos de apagamento histórico e a elucidação de estratégias de sobrevivência em contextos pós-coloniais, a mostra é especialmente feliz em tramar, em sua tessitura curatorial, a interação entre narrativas de artistas de origem indígena e não indígena. Traz à tona obras de rara potência, como os desenhos em papel de Sheroanawe Hakihiiwe, de tradição Yanomâmi, ou os desenhos espaciais de Minia Biabiany (Como o Vento Sopra com Enxofre no Céu), natural da colônia francesa de Guadalupe. Já Reinserción em Circuitos Ecológicos (2019), de Lina Mazenett & David Quiroga, apesar de pecar pela aproximação com Quarta-Feira de Cinzas, de Rivane Neuenschwander e Cao Guimarães, de 2006 – pois promove o retorno de folhas de ouro à terra, transportadas por formigas –, contribui afinal para a escritura de uma história da arte não eurocêntrica ao parecer querer homenagear a série das Inserções em Circuitos Ideológicos (1970) de Cildo Meireles. Embora finalizada em 17/4, a mostra tem no site do Pivô uma ótima visita guiada pela curadora, o que confere ao projeto a merecida memória para aproveitamento em futuras pesquisas e interlocuções. FOTOS: PIVÔ/ EVERTON BALLARDIN
CRÍTICA HSI S TÓPAU R I A LO ÃO
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ANTI-HERÓI Livro Makunaimã e documentário Por Onde Anda Makunaíma? promovem revisão do mito que inspirou a obra-prima de Mário de Andrade NINA RAHE
Na ocasião da comemoração dos 90 anos do romance Macunaíma: O Herói Sem Nenhum Caráter, em 2018, Deborah Goldemberg foi convidada para dar uma palestra sobre a influência indígena na obra de Mário de Andrade. Em seu processo de pesquisa, a antropóloga deparou-se com o livro Do Roraima ao Orinoco – Observações de uma Viagem pelo Norte do Brasil e pela Venezuela Durante os Anos de 1911 a 1913, no qual o alemão Theodor Koch-Grünberg faz um levantamento etnográfico e linguístico dos povos indígenas da região, transcrevendo lendas e mitos de origem que depois inspirariam Mário de Andrade na construção de Macunaíma. Makunáima ou Makunaimã é a divindade indígena que habita o Monte Roraima, no extremo Norte do Brasil. “De novo esse papo? Já disse que copiei mesmo, oras bolas! Disse até que me surpreende o fato de falarem que me restringi à cópia de Koch-Grünberg, quando copiei a todos [...] Ai, que preguiça”, argumenta o personagem VOL. 10 / N. 50
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Mário de Andrade em Makunaimã – O Mito Através do Tempo, antes de assumir o equívoco no título: “Curioso. O alemão, como se referem ao Theodor Koch-Grünberg, havia registrado uma grafia indicando o acento aberto no segundo ‘a’, por isso cometi esse deslize. Logo no título!” Lançado em 2019, o livro Makunaimã é uma peça em dois atos de autoria coletiva, da qual Deborah Goldemberg faz parte. Sua dramaturgia reproduz o evento que a originou, uma palestra em comemoração dos 90 anos do livro Macunaíma, em que os herdeiros legítimos do mito, os povos Pemon, Taurepang, Wapichana e Macuxi reclamam a apropriação de Mário de Andrade. A diferença do evento, no entanto, está na presença do escritor modernista, que, na dramaturgia, desperta do Além e surge como quem estivesse apenas tirando uma soneca, pronto para ouvir – e aprender – com o que falam sobre ele. “Se Mário tivesse ido até lá conversar com os povos, teria escrito outra história”, diz o personagem Laerte, um dos palestrantes. “Mas você está dizendo que Mário não poderia ter escrito Macunaíma? Isso me incomoda, porque é o livro da minha vida”, responde uma das participantes. “Estou dizendo que ele teria feito diferente. A forma como ele fez, deslocando fragmentos do nosso sagrado e misturando a outras coisas até se tornar algo que não significa nada pra gente, é um xingamento − é um chamado de guerra!”, replica o primeiro.
Na pág. ao lado, a capa do livro Makunaimã: O Mito Através do Tempo (2018). Acima, frame do filme Por Onde Anda Makunaíma? (2020), de Rodrigo Séllos
RETORNO TARDIO O livro, atualmente esgotado, mas em processo para a segunda impressão, lança mão de uma revisão histórica. “Descobri que a obra de Mário era inspirada no mito de Makunaimã, que é central, só que ninguém contou essa história pra gente e, mais que isso, Mário escreveu esse livro, que é considerado obra-prima da literatura brasileira, só que ninguém nunca voltou para os povos Taurepang, Makuxi, Wapichana para dizer que escreveu uma obra-prima inspirada no mito”, diz a antropóloga Deborah Goldemberg em conversa com Daniel Munduruku na live “Makunaimã Ontem e Hoje”, que ocorreu no fim de março. Para o evento em comemoração aos 90 anos da obra de Mário de Andrade, em 2018, esteve presente Avelino Taurepang, o neto de Akuli – o pajé Pemon que contou FILME sobre Makunaímã para o etPor Onde Anda nólogo alemão. “É a maior Makunaíma? reflexão acerca da Semana Rodrigo Séllos Canal Curta, 2020
de Arte Moderna que faltava ser feita”, conclui Goldemberg no debate. Esse retorno, apesar de tardio, parece ser o caminho proposto também no documentário Por Onde Anda Makunaíma?, vencedor de Melhor Filme no Festival de Brasília de 2020. Se a peça realiza essa revisão por meio do humor, no filme, o diretor Rodrigo Séllos relembra o anti-herói de Mário de Andrade por suas passagens não só pela literatura, como também pelo cinema e o teatro, o que rende ao filme uma construção poético-imagética decorrente do mergulho nesse arquivo, mas mais que isso: em sua busca, Séllos recorre a depoimentos de indígenas para contar a história do mito, entre eles o artista Jaider Esbell, na tentativa de responder por onde andaria Macunaíma hoje, caso fosse revisto. Se Mário teria feito diferente é algo que nunca saberemos com certeza. O que o livro e o documentário mostram, no entanto, é que as vozes indígenas preLIVRO cisam ser escutadas. “Esse tempo acabou. Makunaimã: O Mito Agora estamos aqui, nós, os artistas inAtravés do Tempo dígenas, para contarmos nossas próprias Taurepang, Macuxi, histórias”, é o que vocifera Laerte em Wapichana, Marcelo Makunaimã. A um ano do centenário da Ariel, Mário de Semana de 22, essa é a renovação artística Andrade, Deborah Goldemberg, Theodor que cada vez mais se espera. Koch-Grünberg, Iara Rennó / Editora Elefante, 2018
FOTOS: DIVULGAÇÃO
CRÍTICA S ÃO PAU LO
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Arte Classificada (A Poesia Sonora e o Corona Vírus) (2020), de Paulo Bruscky
RECIFE
BRUSCKY PERGUNTA Produção do artista pernambucano no primeiro ano da pandemia da Covid-19 argumenta pela “virulência da arte” em contextos de adversidade extrema Em 1963, o artista pernambucano Paulo Bruscky caminhou pelo Centro do Recife vestindo uma placa que indagava aos passantes: “O que é arte? Pra que serve?”. A performance não se encerrou ali: ficaram as fotografias e a pergunta permaneceu no ar, percorrendo décadas e provocando todo tipo de discussão e interpretação, em salas de aula e debates acadêmicos, sem nunca chegar a um veredicto. “Serve para tudo e para nada”, afirma o artista. Mas neste ano em que o Coronavírus e a má gestão da crise sanitária VOL. 10 / N. 50
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no Brasil dizimaram todas as certezas sobre o dia de amanhã, a arte manteve-se como uma das únicas respostas possíveis. Este é o mote de A Virulência da Arte, individual de Paulo Bruscky na Galeria Amparo 60, no Recife, que argumenta pela resiliência da vida inteligente em contextos de adversidade extrema. A mostra, com curadoria de Mariana Oliveira e já encerrada, reuniu um ano de produção sob o confinamento da pandemia. Os trabalhos foram produzidos entre março e dezembro de 2020, em formas diversas: colagens, gravuras, performances e “artes classificadas” – nomenclatura que o artista dá a intervenções feitas em páginas de anúncios de jornais, dentro de um amplo corpo de trabalhos que investiga outras formas de circulação da arte. Na arte classificada Poesia Sonora e o Coronavírus, publicada no Jornal do Commercio, em 24/5/20, Bruscky propôs uma variação poética para os panelaços, orquestrando um concerto em homenagem aos profissionais de Saúde. Ele convocou todas as igrejas católicas do Recife e de Olinda a tocarem seus sinos ao mesmo tempo, e todos os habitantes dessas cidades a programar seus relógios despertadores para as mesmas 10 horas da manhã de domingo 31/5. O conjunto de ações culmina em outra pergunA Virulência da Arte ta crucial – O que nos espera? – colada sobre – Paulo Bruscky uma bandeira do Brasil rasgada. Mas, na obra Encerrada, Galeria de Bruscky, respostas são sempre possíveis. “A Amparo 60, Recife, virulência da arte é maior que a solidão do Coamparo60.com.br ronavirus”, escreve sobre uma página de classificados do jornal. PA FOTO: GALERIA AMPARO 60
CRÍTICA CSAÃO NAL A C ABO PAU LO
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frame da série Transamazônica: Uma Estrada para o Passado, 2021 Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
CICATRIZ ABERTA A série Transamazônica: Uma Estrada para o Passado atravessa a história da BR230 e investiga seu rastro de devastação da floresta Margeada por casas de interior, plantações de cana-de-açúcar, cacau e eucalipto, pela Caatinga ou pela Floresta Amazônica, a estrada é a personagem principal da nova série dos diretores Jorge Bodanzky e Fabiano Maciel. Começando na cidade de Cabedelo, na Paraíba, os episódios atravessam as motivações e os impactos socioambientais da construção da BR-230 até chegar em Lábrea, no coração do Amazonas. A operação central de composição da série é a contraposição entre imagens produzidas desde a estruturação da estrada, em 1969, durante a ditadura militar no Brasil, e outras recentes, mostrando reincidências e agravamentos de problemas ao longo do tempo. Na base da construção da Transamazônica estão os ideais de progresso e integração territorial, fazendo da estrada um marco do projeto nacional-desenvolvimentista. Sua implantação, no entanto, gerou uma série de violências pela terra, desastres ambientais, massacres de populações indígenas − cerca de 8 mil indígenas foram assassinados durante a construção − e um modelo econômico falho.
O extrativismo permite altos ganhos a curto prazo, mas o solo pobre da Amazônia em pouco tempo se esgota, gerando apenas devastação: a madeireira é substituída pela pecuária, depois pela monocultura, tornando o solo infértil. Apenas recentemente tem se pensado em práticas de economia não predatória na região, mas a tônica ainda é seguir desmatando, em um modelo que arrasa os recursos, gerando bolsões de pobreza. A questão do trabalho, inclusive, é um dos grandes assuntos da série. Movimentando massas de trabalhadores do Nordeste e do Sul do país no início da construção da estrada, o governo incentivava o “projeto de colonização” com concessões de terras. Logo após a ditadura militar, no entanto, esses pequenos agricultores ficaram à míngua. Outro problema que persiste é a condição de trabalho semiescravo a que muitos são submetidos. Os discursos da imprensa da época reforçam positivamente as ideias de colonização, de conquista do território e de extração incentivadas pelo governo. Consequentemente, essas opiniões acabavam enraizadas no imaginário da população e na manipulação da opinião pública. A disseminação de slogans como “Integrar para não entregar!”, de imagens exacerbadas de nacionalismo e as promessas de um futuro promissor eram atrativos para os trabalhadores que então se deslocavam para a construção da estrada e ocupação da floresta. Em Transamazônica: Uma Estrada para o Passado, os diretores também recorrem a trechos do filme Iracema: Uma Transa Amazônica, que Bodanzky filmou nos anos 1970. Além de propor uma autorreflexão sobre a produção do próprio cineasta, percebemos as continuidades e mudanças entre o passado e o presente, como a presença crescente das monoculturas ou as sínteses culturais que surgiram nas cidades às margens da estrada. Ao usarem imagens reiteradas ao longo da história, contrapondo-as com o presente, os diretores criam contrastes entre os discursos audiovisuais oficiais e aqueles que podem produzir SÉRIE contranarrativas. As repetidas imagens de Transamazônica: bandeiras, coreografias e gestos simbólicos Uma Estrada para o de um nacionalismo tacanho mostram que Passado 2021 a ideologia do novo, do extrativismo e do hbogo.com.br progresso começam, antes de tudo, por um certo imaginário. LM FOTOS: CORTESIA HBO
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MITOS E ENCANTARIAS Série em processo do fotógrafo Luiz Braga registra a cultura que brota das raízes amazônicas
A IMAGEM DE MÃE DO FOGO (2019), REPRESENTAÇÃO DA LENDA MARAJOARA A RESPEITO DE UMA FIGURA QUE ASSOMBRA E DESORIENTA OS VAQUEIROS, FAZ PARTE DA SÉRIE MITOS E ENCANTARIAS, QUE COMEÇOU POR ACASO EM 2018, QUANDO O ARTISTA LUIZ BRAGA RESOLVEU CLICAR UM CARANGUEJEIRO NA ILHA DE MARAJÓ E, AO VER O RESULTADO, COM SEU CABELO DESCOLORIDO E CORPO COBERTO DE LAMA DO MANGUE, PERCEBEU QUE TINHA ALI A REPRESENTAÇÃO DO CURUPIRA. A vontade
de retratar as lendas locais vem de conversas antigas com o escritor João de Jesus Paes Loureiro e a percepção de que existe uma cultura que brota a partir das raízes amazônicas e, segundo o fotógrafo, não precisa ser “chancelada por uma escola europeia, nórdica ou oriental”. “Se você puxar esse fio, ele vai dar no fundo do rio, no fundo da floresta e nada mais interessante que mergulhar nessas histórias”, diz Braga. Acostumado a fotografar a população ribeirinha de Belém, ele conta que, com o passar do tempo, começou a sentir a cidade se tornando mais áspera e encontrou em Marajó um território acolhedor, onde percebeu o respeito à floresta e viu a oportunidade de se relacionar com as histórias que ouvia de seu pai. Até agora, ele já registrou, além de Mãe do Fogo e Curupira, Matinta e uma lenda fictícia, criada por ele próprio, que nomeou como Nossa Senhora Padroeira das Lavadeiras. Entre as próximas vontades estão as imagens de Iemanjá, Mulher de Branco e Saci. NR VOL. 10 / N. 50 49
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Mãe do Fogo (2019), de Luiz Braga
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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