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As relações amorosas, possessivas, conturbadas, enigmáticas e irônicas que os artistas visuais desenvolvem com as palavras e a literatura
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ISSN 2 236-393 9 exemplar De assINaNte venda proibida
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JUN/JUl 2015 fev/mar 2015 aNO aNO0505 eDIÇÃO eDIÇÃO2422 r$r$16,90 16,90
O Amante, 2015, de Fabio Morais
EM tEMpo
A Select nº24 eStá nAS melhoreS bAncAS de todo pAíS. A edição completA tem 124 páginAS. Aqui você AceSSA pArte do Seu conteúdo. Folheie e deguSte. pArA ASSinAr e conSultAr AS ediçõeS AnterioreS, Feche eStA jAnelA e AceSSe oS linkS ASSine e Arquivo, no cAnto Superior dA telA. boA leiturA!
fogo cruzado
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Exi stE crítica dE a r tE hojE no Brasil? Fala-se muito na efemeridade das publicações especializadas em arte e na evasão do espaço dedicado à crítica nos periódicos de grande circulação no Brasil. Há motivos para o alarme? Agentes dos sistemas artístico e editorial brasileiros discutem o estado da crítica de arte hoje no País.
RODRIGO MOURA Diretor Artístico Do instituto inHotim
Não haver crítica de arte no Brasil seria um desastre, na hipótese de que seja verdade. A crítica é um componente fundamental do sistema das artes tal como o conhecemos e, portanto, me parece que sua contribuição será sempre da maior importância. Ela é o que garante que o sistema seja criticado de dentro e que as ideias circulem também para além das trocas. Se há decadência na crítica militante, ela pode ser atribuída parcialmente à falência dos projetos editoriais da grande imprensa. Para reparar isso, seria necessário criar mecanismos de estímulo à crítica, por exemplo, exigindo que as pessoas do meio de arte leiam mais. Será que isso é pedir demais? SELECT.ART.BR
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Marcos augusto gonçalves Jornalista, editor do caderno ilustríssima, da Folha de s.Paulo
A crítica de arte certamente não acabou, mas tem passado por transformações. No Brasil, onde as instituições e as condições gerais são mais precárias, vê-se que são crescentes as dificuldades para um crítico exercer sua atividade de maneira digna e independente – o que requer meios materiais condizentes. Os jornais, como se sabe, enfrentam uma crise estrutural. Muitos desapareceram e os que permanecem dedicam pouco espaço à crítica de mais fôlego. O próprio leitor, em meio à dispersão midiática, tende a impor uma demanda por informações mais rápidas e pragmáticas, voltadas para a orientação do consumo, do tipo “vale a pena ou não eu sair de casa para ver isso?”. Em países mais ricos, como os EUA, ainda subsiste uma crítica importante na imprensa, que pode ser considerada ruim ou boa, mas exerce uma função. Os grandes jornais, como The New York Times e Los Angeles Times, publicam textos críticos sobre os principais eventos do circuito, e há revistas e blogs especializados. Outro espaço tradicional da crítica é o meio universitário. Aqui, de certa forma, o ambiente é mais propício do que o da imprensa, mas há outros problemas. A universidade tende a ser refratária ao que identifica como cultura de “mercado” e parte da produção acadêmica é cifrada e voltada para o público interno. Não circula como poderia e acaba em muitos casos sendo estéril. Uma tendência que se consolidou nos últimos anos e ganhou força no Brasil foi a transformação do crítico em curador. A curadoria não deixa de ser uma forma de crítica ao propor uma seleção, um recorte, uma reflexão. Mas, apesar dessa afinidade, não é uma instância crítica propriamente – nem tem o distanciamento necessário para isso.
Jochen volz curador da 32ª Bienal de são Paulo
celso Fioravante crítico e editor do maPa das artes
A crítica de arte deixou de existir no Brasil há algumas décadas, desde que o mercado começou a assumir o lugar dos museus, das universidades, dos jornais... A crítica de arte pode até voltar a existir, desde que caiba em 140 toques ou possa ser resumida em uma carinha amarela com um sorriso.
Existe, mas a questão é onde e de que forma ela ocupa um lugar. Os jornais brasileiros priorizam matérias sobre restaurantes e viagens em vez de resenhas sobre artes visuais, literatura, teatro e dança. A crítica costumava ser reconhecida como uma forma literária autônoma, introduzindo análises regulares como um pilar da cultura, para um vasto círculo de leitores. A crítica séria ocupa hoje um espaço dedicado a circuitos específicos e mais exclusivos. Isso não é bom, porque a arte não pode se distanciar da sociedade, e a crítica também não pode se separar da educação geral.
Fotos: No seNtido horário, Flávio Augusto silvA, soFiA ColuCCi/FuNdAção BieNAl de são PAulo e tiAgo sANtos. NA PágiNA Ao lAdo: dANielA PAoliello
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PatriCia Canetti artista e editora do site Canal Contemporâneo 46
É comum ouvirmos a afirmação de que não existe espaço editorial para a crítica de arte no Brasil. Entretanto, percebemos que o jornalismo independente criou seu espaço na internet brasileira, assim como ocorre com a crítica de cinema. Mas o mesmo não ocorreu com a crítica de arte. O atual curador do Instituto Tomie Ohtake, Philip Larratt-Smith, afirmou em matéria na Folha que “não existe nenhum artista fora do mercado, hoje”. Seria então possível afirmar que não existe nenhum crítico de arte fora do mercado, hoje? E, se assim for, qual seria o espaço de ação e a relevância para a crítica de arte atualmente?
Charles CosaC Fundador da editora CosaC naiFy
Naturalmente, eu e a editora já tivemos inúmeras experiências de trabalhar com vários críticos de arte brasileiros de grande envergadura aqui e no mundo, tais quais Rodrigo Naves, Ferreira Gullar, Paulo Venâncio Filho, Angélica de Moraes, Lorenzo Mammì e Luiz Camillo Osorio, entre outros. Também trabalhei com críticos estrangeiros íntimos da cultura visual do Brasil – esses foram Guy Brett e Carlos Basualdo. Na última década, os canais digitais e físicos aumentaram enormemente o espaço para a crítica, outrora restrito às insuficientes colunas dos jornais diários. Periódicos e afins, no passado, poucos e de circulação limitada, atualmente podem ser encontrados ou até mesmo lidos por toda parte. Saliento também os inúmeros cursos de história e teoria das artes visuais que nascem em diversos departamentos de universidades, e mesmo independentes dessas (como o curso de História da Arte de Rodrigo Naves, por exemplo), que não só refletem o aumento de leitores como também o de futuros autores/críticos de arte. Vejo que, no Brasil, a crítica de arte vem se especializando e se proliferando, assim como o próprio interesse do brasileiro pela nossa arte e pela arte em geral. O momento não poderia ser mais propício. SELECT.ART.BR
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anna Maria Maiolino artista visual
Eu me indago o que motivou essa pergunta. Como me questionava quando me era perguntado nos anos 1960: a pintura acabou? E eu não tinha respostas absolutas, como falar de arte de forma categórica? Quando, justamente, é nesse território que o homem pode usufruir da sua máxima potência como criador e colocar nele suas diferenças. Um crítico sincero é também um artista, portanto, ele também goza desse privilégio. Por outro lado, o pensamento filosófico é vivo no Brasil e, quando ele se expande para a crítica de arte, torna esses os melhores momentos. Como em todas as disciplinas, temos altos e baixos.
FoToS: no SEnTido hoRáRio,divuLgAçÃo, oRioL TARRidAS E BoB woLFEnSon
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de trás pra frente e de baixo pra cima! gustavo fioratti
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Curadoria
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L u c i a n a Pa r e j a n o r b i at o
Pa l av r a s ó Quando palavras não nomeiam, mas são antítese, contradição ou comentário do objeto ao qual se relacionam SELECT.ART.BR
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Se pela palavra o homem Se diStingue do animal,
é com intervenções na natureza que deixa seu rastro e busca torná-la um hábitat possível. Com a técnica, doma as intempéries e submete o relevo à sua vontade. Com as palavras, unidades significantes articuláveis entre si, elabora sua história e desfaz a linha que o separa do mundo natural. Mas o artista que subverte o instrumentalismo da escrita nega que a palavra se comporte como signo, como substituto de outra coisa. Quando trabalha com uma só palavra, não quer nomear coisas. Confere-lhe atrito e devolve-lhe a qualidade de imagem, elo perdido entre humano e natural.
Lenor a de Barros
C on t r a M ão
(19 96)
A paulistana Lenora de Barros tem uma vasta incursão em pesquisas com poemas visuais. Chegou até a assinar, nos anos 1990, uma coluna semanal dedicada a elas no Jornal da Tarde. Nessa vertente de sua produção, as possibilidades da palavra são elevadas ao infinito pelo flerte com o pop e a poesia concreta. Na obra Contra Mão (1996), o que seriam duas palavras aglutinam-se na inscrição feita sobre a pele. Ao contato imaginário das duas palmas, uma contra a outra, tornariam fato o que a fotografia apenas sugere: a unidade do vocábulo. Foto: cortesia galeria millan Fotos:
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Cesare Pergol a
Fa n ta sm a Rupe s t Re
( 2 014 )
Em performance, fotografia ou instalação, a obra de Cesare Pergola, constrói-se na invenção de arquiteturas da luz e da sombra. Na série recente Fantasma Rupestre, o artista italiano radicado em Paraty e em São Paulo, utiliza palavras como memórias de acontecimentos passados, futuros ou imaginários. Projetadas sobre a paisagem da Mata Atlântica brasileira, ganham existência de corpos performáticos, simulando fenômenos naturais e instintos libertários em estado de devir.
SELECT.ART.BR
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mauríCio ianê s
W ordl e s s
(2007)
Na sobreposição de suas duas metades, Wordless, palavra-título da obra de 2007, torna-se imagem expressa de seu(s) sentido(s). É pela anulação das palavras que a constituem – “word”, ou “palavra”, e “less”, literalmente “menos” ou, pela junção com a primeira, “sem” – que a obra de Maurício Ianês multiplica suas possibilidades de leitura: sem palavras, pelo empastelamento das próprias palavras. Menos palavras, pela anulação de uma palavra pela outra, ou sobre a outra.
Carmel a Gross
Auror A
(2007)
Aurora já passou pelo Paço Imperial (RJ, 2003), pela Galeria Olido (SP, 2004) e até itinerou por paragens insuspeitas como a longínqua Moscou, em sua Bienal de 2007. Mas foi em 2012 que a instalação de néons róseos, alusão explícita à luminosidade do sol nascente, ganhou ressignificação mais do que oportuna ao ocupar um dos andares do Pivô, espaço artístico localizado no Copan, prédio histórico do Centro de São Paulo. Em que outro lugar faria mais sentido uma alvorada com aparência de letreiro publicitário e luz fria? Carmela Gross empresta ironia pop a um dos momentos do dia mais evocados pelos poetas.
Fotos: de cima para baixo, cortesia galeria vermelho, cortesia pivô. na página ao lado, cortesia cesare pergola Fotos:
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Luis Camnitzer
Ob je tO s A rbi t r á riO s (19 7 0 –2 015) e t r AtA DO s Obre A PA i s AGeM (19 96) Com sutil evocação a garrafas jogadas ao mar, contendo em seu interior cartas de náufragos com uma derradeira narrativa, o artista alemão radicado no Uruguai Luis Camnitzer criou a instalação Tratado Sobre a Paisagem, 1996. Na série de vasilhames que trazem metáforas de elementos naturais, a palavra recobra função classificatória, remetendo também a vidros de amostras dos antigos laboratórios. Já em Objetos Arbitrários, breves frases e palavras conectam-se a fragmentos ou pequenas coisas, permitindo ao público uma infinidade de combinações de sentidos, ainda que desconexos e contingentes. SELECT.ART.BR
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Fotos: de cima para baixo, paula alzugaray, mario grisolli/casa daros. na pågina ao lado, de cima para baixo, cortesia alexander gray associates ny/Š 2015 luis camnitzer/artist rights society ny, paula alzugaray Fotos:
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mAril á dArdot
A OrigeM dA Obr A de A r t e
(2002)
A letra está para a palavra assim como a palavra está para o vocabulário. Tanto uma quanto a outra funcionam como as unidades que produzem o código e abrem possibilidades. De combinação ou de sentido, não importa. Neste jardim em potencial criado pela mineira Marilá Dardot para o Inhotim, vasos de plantas que podem ser cultivados pelo público têm formas de letras, amontoadas a esmo ou combinadas em palavras. Ali, a palavra não é uma certeza, como a própria lacuna entre emissor e receptor de uma mensagem
ArmAndo Queiroz
Fel- Mel
(19 9 5 -2 0 0 5 )
Armando Queiroz é um artífice da imagem. O artista de Belém do Pará constrói cenas inusitadas, pela apropriação de elementos cotidianos deslocados de seu contexto usual. Ao inserir palavras em suas fotografias, faz do cruzamento de sentidos um dado de ironia e humor. Quem lê o sachê Fel-Mel (1995-2005) sem cuidado pode não perceber que o formato corriqueiro da embalagem usualmente melíflua é virado do avesso pelo título amargo que recebe. É a antítese entre palavra e objeto. SELECT.ART.BR
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T h i a g o C e r va n
P on t e
(s.d.)
Poeta marginal e artista do grafite, o paulista de São Bernardo do Campo gosta de fazer intervenções gráficas nas palavras que imprime nos muros, potencializando sentidos. Seu ódio vem entre algemas, que fazem as vezes da letra “o”. Seu Mar tem as letras formadas pelo recorte em estêncil em três pedaços de papel, simulando estar à deriva num grande espaço azul. Em Ponte, esse elemento arquitetônico ganha tradução pelo alongamento exagerado da perna da letra “n”, estabelecendo a conexão entre as duas extremidades da palavra. Fotos: laura aidar. na página ao lado, de cima para baixo: daniella paoliello/instituto inhotim e cortesia galeria virgilio Fotos:
Portfólio
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Fabio Morais, Escritor dE artEs visuais Com uma obra farta em humor, citações, referências, armadilhas e revelações, Fabio Morais, definitivamente, não é um escritor e ponto. Assim como não é um artista plástico e ponto Agenda (2012), corte e colagem sobre o Márion Strecker
EstE portfólio não aprEsEnta um artista plástico quE também EscrEvE livros. Não apresenta exatamente um escritor que atua
em paralelo no campo das artes visuais. Não é tampouco sobre um poeta que organiza seus poemas de forma gráfica ou visual. Dizer que ele é mais um artista que se apropria de palavras em sua obra plástica também não parece suficiente. Esqueça o arquétipo binário literatura/artes, embora espaço, gênero e identidade sejam questões suscitadas pela obra do artista Fabio Morais (São Paulo, 1975). Não que seja incorreto dizer que Fabio Morais é um escritor e é um artista plástico. Mas ele, definitivamente, não é um escritor e ponto. Assim como não é um artista plástico e ponto. As atividades artísticas e literárias se dão para ele de forma tão imiscuída que parece justo aceitar o título que ele prefere: um escritor de artes visuais. O produto pode ser um objeto, uma instalação, uma descrição de performance imaginária ou mesmo uma publicação. O que têm em comum são o fato de serem obras de arte conceituais, em que os objetos físicos nunca serão tão importantes quanto as ideias que os motivam e habitam. SELECT.ART.BR
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livro Marcel Duchamp, de Paulo Venâncio Filho
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Foto: cortesia do artista
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Confetes para Te Deixar Mais Feliz, Ruy (2008), livro com toda a obra do poeta portuguĂŞs Ruy Belo (1933-1978) picotado em formato de confetes, acondicionado numa caixa SELECT.ART.BR
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Não vamos aqui voltar aos caligramas árabes nem aos poemas visuais do período helenístico para navegar na obra de Fabio Morais. Mas vamos reler o que ele nos oferece de epígrafes à sua obra-tese-de-mestrado, como Suicide, de 1920, do poeta francês Louis Aragon (1897-1982). SUICIDE Abcdef ghijkl mnopqr stuvw xyz Vamos reler também Z A [Elementar], de 1922, do artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948), de onde salta aos olhos menos a inversão da ordem do abecedário do que a falta de um jota: ZA [elementar] Z Y X W V U T S R Q P O N M L K I H G F E D C B A Na sequência, Fabio Morais inicia sua tese com um breve capítulo que funciona como comentário sobre a linearidade do espaço expositivo. ESPAÇO EXPOSITIVO a b c def ghijkl m no pq r stuv wx y z “Cada obra (re)define em si o(s) gênero(s) a que pertence”, registra o artista.
Foto: cortesia do artista
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Acima, um texto de O Performer (2005), personagem fictício para o qual Fabio Morais escreveu 21 performances, todas elas odes à falta de talento. À direta, Artoday (2008), trabalho em que o livro Artoday, de Edward Lucie-Smith, foi usado para confeccionar 108 bandeirinhas, que também podem ser instaladas “para alegrar o ambiente”, como descreve o artista
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FoToS: CoRTESiA do ARTiSTA
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“A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais”, escreve Fabio Morais em depoimento imaginário quando velho, em sua obra-tese de mestrado Site Specific, um Romance (2013)
À esquerda, Cumbica (2013), impressão tipográfica em baixo-relevo sobre papel holler; acima, O Amante (2015), porta-guardanapo de metal esmaltado com todas as páginas do livro homônimo de Marguerite Duras
Fabio Morais vive e trabalha em Perdizes, ao lado do campus principal da PUC-SP, epicentro dos estudos semióticos no País e bairro de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, expoentes da poesia concreta, movimento que nos anos 1950 estruturou o texto poético a partir do espaço do seu suporte. Mas formou-se em artes plásticas na Faap e foi na Universidade Estadual de Santa Catarina que escolheu fazer seu mestrado, concluído em 2013. O tema: literartura. O resultado veio em forma de uma publicação pela Par(ent)esis. Misto de pesquisa e criação, a experimentação chama-se Site Specific, um Romance. No seu livro-tese-obra há um capítulo chamado Velatura. O termo denomina uma técnica de pintura de consiste em sobrepor camadas de tinta jogando com a transparência. No texto, Fabio Morais narra uma entrevista com ele mesmo velho, sobre a própria tese que escreve, em que as referências artísticas se desdobram e surgem afirmações como a seguinte: “A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais”. Sua obra é farta em citações, referências, armadilhas, revelações e humor. Romances, dicionários, mapas, álbuns, dedicatórias e caligrafias surgem em apropriações ou diálogos de sua literartura. Fabio Morais é ainda autor de hilários textos críticos sobre si mesmo e a própria obra. O crítico e o artista brigam diariamente, escreve. “Só não mencionei que ainda há, nessa relação entre o artista Fabio Morais e o crítico Fabio Morais, o cidadão médio, de médio para pequeno, o Sr. Fabio Morais. Mas esse triângulo jamais será abordado assim publicamente.”
Fotos: cortesia do artista
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Ensaio
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O títulO deste artigO reprOduz O de uma tela pintada pOr JOan miró em 1976. A obra está atual-
mente no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em exposição que procura enfocar o processo de formação da linguagem de signos do artista catalão e sua experimentação com a matéria. Entre 1930 e 1970, Miró baseou-se em um exercício constante de redução da imagem até chegar a um vocabulário de conceitos universais composto pelas figuras da mulher, do pássaro, da estrela, da lua, e de um amplo, vago e moldável “personagem”. Combinados e conjugados em frases pictóricas, esses elementos também são chaves de leitura para os jogos poéticos travados com escritores catalães, franceses e o brasileiro João Cabral de Melo Neto, com quem Miró estabeleceu uma de suas colaborações mais estreitas. Elaborou para ele ilustrações, ganhou um ensaio e tornou-se personagem de dois de seus poemas, numa relação simbiótica parecida à que hoje acontece entre Dominique Gonzalez-Foerster e o escritor Enrique Vila-Matas, que fez da artista francesa protagonista de seu mais novo romance, Marienbad Électrique, a ser lançado em setembro, em Paris.
COnstelações
Dado o interesse de Joan Miró pelos movimentos do céu e da terra, frequentemente atribui-se ao espaço pictórico de suas composições a qualidade de cosmogonia. Nela, os elementos plásticos conectam-se caligraficamente sobre superfícies neutras e os títulos das obras formam frases concisas, espécie de haicais, em que os elementos do céu e da terra são conectados: O Diamante Sorri ao Crepúsculo ou Dois Personagens Caçados por um Pássaro. “Todas as fontes culturais ligadas às mitologias mediterrâneas fazem referência à mulher, como símbolo da vida e da fertilidade; aos astros, que marcam o transcorrer do tempo e o ciclo da vida; e aos seres alados, a meio caminho entre a essência terrena e a divina”, aponta Rosa Maria Malet, diretora da Fundació Joan Miró, que recebeu seLecT, juntamente com um grupo de cinco jornalistas brasileiros, para uma imersão no universo do artista. O personagem (personatge), presente nos títulos desde os anos 1930 – quando o artista se muda para Palma de Maiorca –, é um elemento menos evidente e mais aberto a interpretações. “Na obra de Miró, SELECT.ART.BR
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Dois personagens caçaDos por um pássaro
Pa u l a a l z u g a r ay
De que forma artistas como Dominique Gonzalez-Foerster e Joan Miró tornam-se personagens senão da própria obra, de textos de escritores com quem têm o hábito de dialogar
Detalhe da instalação TH.2058 (2008), de Dominique Gonzalez-Foerster, na Tate Modern, em que a artista dispôs livros para leitura do público. Na imagem, leitora do romance O Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas FoTo: jon CARTwRighT
LegendaEquatest, omnimus id esequidenis ditio et ipsunt exceaquis et, occulpa consedist, ventis sincipsam ilitae volorib usdae. Ipitat fugit et dita quam im conserferum quuntemo et Foto::
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É na conexão em rede dos elementos de suas composições pictóricas que o artista Joan Miró vem a estabelecer um elo com procedimentos de GonzalezFoerster, que constrói sua obra como uma teia de apropriações e citações
Público interage com TH. 2058, instalação de Gonzalez-Foerster SELECT.ART.BR
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a figura feminina é um elemento central, gerador de vida. O ‘personagem’ é o princípio masculino, mas ele ocupa um segundo plano”, opina Jordi Clavero, responsável pelo departamento educativo da Fundació Miró de Barcelona. A pintura Homem e Mulher Diante de uma Pilha de Excrementos (1935), considerada uma das obras mais preciosas do acervo da Fundação, é uma das poucas em que o artista se refere diretamente ao homem. É importante porque pertence à série das “pinturas selvagens”, realizadas um ano antes da eclosão da Guerra Civil Espanhola, e considerada premonitória. Mas também chama atenção pela ênfase que dá ao excremento. Nela estaria delineada sua prática de limpeza da imagem, extraindo o supérfluo da matéria, até chegar ao conceito essencial. O lixo remete à operação de redução, tão fundamental e constitutiva da poética do artista, desde que ele entrou em contato com os surrealistas, em Paris, nos anos 1920. Sobre sua opção pela síntese, deixando os elementos à solta em suas composições, foi comparado pelo etnógrafo e escritor Michel Leiris à prática mística tibetana de “compreender o vazio”. “A partir da eliminação do supérfluo, ele chega a uma composição aparentemente simples. Mas o que quer é uma obra próxima da poesia: motivar o espectador com o mínimo, assim como os escritores fazem só com a sonoridade das consoantes”, diz Rosa Maria Malet. Por meio do recurso da redução ao essencial, assistimos ao fenômeno “da migração para a pintura de características típicas da poesia”, segundo define o escritor português Valter Hugo Mãe, em texto escrito para o catálogo da exposição “Joan Miró, a Força da Matéria”. Teias
Embora a livre gravitação das figuras no espaço pictórico seja uma característica marcante das composições de Miró, na série Constelações ele chega à expressão máxima de sua linguagem, conectando os conceitos de sua cartografia simbólica do mundo em uma só rede, desenhada por uma linha fina e sinuosa que guarda relação visual com a teia da aranha. É nessa trama de conexões que Miró vem a estabelecer um elo com procedimentos da arte contemporânea, mais especificamente com a obra de Dominique Gonzalez-Foerster, que constrói sua obra como uma teia de apropriações e citações de obras de outros artistas e de
No alto, capa do livro Joan Miró, de João Cabral de Melo Neto, realizado a quatro mãos entre poeta e artista; acima, a tela Dois Personagens Caçados por um Pássaro, de Miró
textos literários. A lista de autores cujas vozes foram assimiladas pelas instalações de Gonzalez-Foerster pode ser longa demais para reproduzir aqui, mas a artista ressalta que, entre os mais importantes, estão JG Ballard, Philip K Dick, Roberto Bolaño, G.W. Sebald, Virginia Woolf, Vladimir Nabokov, Walter Benjamin e Enrique Vila-Matas. Além do intuito de alinhar o mundo em rede, existe nas apropriações de artista, segundo Ana Pato, autora do ensaio Literatura Expandida – O Arquivo e a Citação na Obra de Dominique Gonzalez-Foerster (Edições Sesc, 2014), uma lógica arquivista que estabelece “um novo fluxo de relações”. Com Enrique Vila-Matas a colaboração é ainda mais intensa. Em 2011, Dominique Gonzalez-Foerster mandou-lhe um e-mail convidando-o a escrever um ensaio para o catálogo da instalação TH.2058, montada na Turbine Hall da Tate Modern, em Londres. A partir do recebimento da mensagem, a artista automaticamente entrou para as páginas de Dublinesca, romance sobre o qual o escritor catalão trabalhava naquele momento. Quase um exercício de criação literária, TH.2058 imaginava o museu londrino em um futuro não muito longínquo, transformado em abrigo da população durante um dilúvio. As grandes obras da arte, do cinema e da literatura mundial também ganhavam a guarda do museu. O espaço instalativo na Turbine Hall era, assim, inteiramente varrido por beliches, réplicas de esculturas e livros, entre eles O Mal de Montano (2002), de Vila-Matas. Embora tenha se apropriado do nome do escritor no título da instalação Tapis de Lecture (Enrique Vila-Matas) (2000-2007) e assimilado seus livros em instalações, Gonzalez-Foerster nega que ele tenha sido em algum momento encarado como personagem de sua obra. “Mas eu sou certamente um de seus personagens”, afirma por e-mail a seLecT. Agora ela volta às páginas de um livro de Vila-Matas como uma fabricação fictícia: é a protagonista de Marienbad Électrique, que será lançado concomitantemente à exposição que inaugura no Centre Pompidou, em Paris, em setembro próximo. O livro sucede a Impressions de Kassel (2014, ainda inédito no Brasil), nas incursões de Vila-Matas ao universo da arte contemporânea. Em seus exercícios de liberdade, Joan Miró também entrou no território da poesia não apenas como agente criador, mas como criatura. Dominique e Miró são, afinal, dois personagens caçados por um mesmo pássaro: o escritor. Fotos: Cortesia suCCessio Miró 2015. na página ao lado: paula alzugaray
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DOMINIQUE GONZALEZ-FOERSTER FABIO MIGUEZ GUIMAR ÃES ROSA NUNO R AMOS EDUARDO K AC
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As relações amorosas, possessivas, conturbadas, enigmáticas e irônicas que os artistas visuais desenvolvem com as palavras e a literatura
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ISSN 2 236-393 9 exemplar De assINaNte venda proibida
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JUN/JUl 2015 fev/mar 2015 aNO aNO0505 eDIÇÃO eDIÇÃO2422 r$r$16,90 16,90
O Amante, 2015, de Fabio Morais
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