FANCY VIOLENCE L AURA LIMA GHAZEL MARCO PAULO ROLL A A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A
MAURÍCIO IANÊS
Sem titulo (2011-2012), Paulo Nazareth
PERFORMANCE Como os artistas utilizam essa linguagem para moldar identidades e afirmar atitudes políticas
EM TEMPO
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O que particulariza a performance como manifestação estética de outros usos e significados expandidos da palavra? Artistas, curadores e pesquisadores respondem à pergunta, discernindo sobre a maleabilidade e os deslocamentos do termo FOGO CRUZADO
O QUE É PERFORMANCE? RENATO DE CARA GALERISTA DA MEZANINO E COORDENADOR DO FESTIVAL DE PERFORMANCE MOVIMENTA
A performance é uma ação que, quando percebemos, já acabou, independentemente do uso da palavra. Seu discurso pode ser estético e político. Aliada à arte conceitual, expande-se em cena. De sua poética ficam o registro e o impacto do momento. A performance pode conter desenho, escultura, música ou teatro. Cito Tania Rivera: “Mais forte do que a escrita, a presença corporal de alguém, ao se oferecer ao olhar do outro, não seria essencialmente uma declaração inequívoca de que ‘se está vivo’ – o que sempre significa que ‘ainda’ se está vivo?” SELECT.ART.BR
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CHRISTINE MELLO CRÍTICA E CURADORA
CRISTINA FREIRE CURADORA E PESQUISADORA DO MAC-USP
A palavra performance tem muitos e contraditórios sentidos na atualidade. Sua origem nas artes cênicas desqualificou para muitos artistas seu uso no campo das artes visuais, em especial nos anos 1970. Artistas mais politizados, sobretudo latino-americanos, consideraram o termo performance inadequado, na medida em que teatralizava ações e situações, esvaziando seus conteúdos políticos. Na atualidade, performance presta-se a qualificar uma categoria tecnocrática, ironicamente ligada à avaliação de resultados no mundo dos negócios. Fala-se, por exemplo, da avaliação da performance de funcionários. Nesse sentido, muito longe dos artistas dos anos 1970, o conceito de performance insere-se num mundo cada vez mais estruturado pelas normas de socialização performáticas, isto é: eficácia, iniciativa, flexibilidade, além de reiteração continuada de si mesmo. Assim, o termo performance designa tanto uma poética originária no teatro e utilizada pelas artes visuais como também se aplica à eficácia do capitalismo.
As diferenças existentes entre o termo performance (como manifestação artística) e performatividade (muito utilizado na antropologia e no pensamento crítico) ampliam hoje a noção de performance para diferentes campos, contextos e linguagens. Inscrita na história da arte, a performance é constituída de atos performativos, embora integre a eles propósitos artísticos. A noção de performatividade corresponde à instauração de um ato e ao próprio momento em que uma dada ação é realizada. Manifesta-se de forma geral no plano político, social e cultural. A performatividade promove deslocamentos e a descentralização de processos singulares de produção de linguagem na performance como gênero artístico. Amplia a trama de relações constituídas para além dela. Destacar, portanto, os estados performativos em vez da noção tradicional de performance tem interesse por serem eles processos mais ricos de heterogênese, produzindo, desse modo, expansão e pluralidade.
LUCIO AGRA PERFORMER
O que se costuma chamar de “arte da performance” diz respeito a uma delimitação de “certa” história da arte, produzida nos centros da cultura ocidental dos séculos 19 e 20, a partir de pontos de vista que, social e culturalmente, refletem essa hegemonia. A tarefa de construir uma história da performance brasileira ainda está em processo. Por outro lado, entre as palavras mais usadas hoje no meio intelectual-artístico, certamente performance é uma delas. Isso, de certo modo, é o que acaba suscitando essa delimitação: fora desse circuito, performance geralmente é designativo de desempenho, no sentido mais costumeiro, presente na língua inglesa. E isso é uma pena, pois somos um povo que sabe saborear bem o corpo e seus processos no tempo-espaço. Precisamos tomar a denominação como nossa e fazer da conexão arte-vida, presente desde sempre entre nós, uma potência sensível dos brasileiros. FOTOS: ACIMA, AMBAS DIVULGAÇÃO E ABAIXO,JOSÉ PEDRO ALMEIDA, DUPLA PERFORMANCE COM GRASIELE SOUSA. NA PÁGINA AO LADO: LIFE BY LUFE
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MUNDO CODIFICADO
O DESEMPENHO DA PALAVRA Manifestação artística. Ato de apresentar uma peça, concerto ou outra forma de entretenimento. 40
Desempenho de função ou missão. Em inglês informal, comportamento exagerado. Ilimitados são os usos e as aplicações da palavra performance. Especialmente em língua inglesa, onde ganha também a forma verbal. Para medir o desempenho dessa palavra em diferentes contextos, meios e linguagens, seLecT rastreou seu uso em apenas um dia – sexta feira, 14 de agosto de 2015 – em três jornais brasileiros e em um jornal de língua inglesa.
POLÍTICA
ECONOMIA
DANÇA
TEATRO
ÓPERA
Capa
Página B1
Página C1
Página A19
Página C4
2 menções debate político do candidato republicado John Kasich
Desempenho instável de vendas em lojas de departamentos
Apresentações no Festival de dança Jacob’s Pillow
6 menções Apresentações teatrais do empresário da Broadway Biff Liff
Apresentação musical no Metropolitan Opera
Página C17
3 menções Apresentações de dança e desempenho de bailarinos em espetáculos em cartaz em Nova York
Desempenho vocal de Sara Bareilles em musicais da Broadway Página C3
7 menções Apresentações teatrais em contextos e festivais diversos em Nova York
Profissão de artista Off-Broadway
Guia Divirta-se 2 menções Apresentação da bailarina Vera Sala no Sesc-Pinheiros e da coreógrafa Beth Bastos no MI OUT/NOV 2015
Página C2
Página C15
Página 65
SELECT.ART.BR
ARTES CÊNICAS
Página C14
3 menções Apresentações esportivas, circenses e teatrais para crianças
Página M5 Guia da Folha
Página M92 Guia da Folha
Página B9
Página M76 Guia da Folha
Apresentações de caráter multidisciplinar de Tadeusz Kantor, em matéria sobre exposição
Desempenho esportivo de Michael Phelps em duas Olimpíadas, citado em coluna de Mariana Lajolo
Página M98 Guia da Folha
Desempenho sexual de Anderson Silva, em matéria sobre suspensão por um ano, devido a doping
Página B9
Projetos do artista Siri em exposição em São Paulo na Galeria Mezanino
MÚSICA
ARTE
Página C2
ANIMAÇÃO
CINEMA
ESPORTES
Página C18
Página C3
Página B7
Execução da Sinfonia nº 8 de Gustav Mahler na abertura do Lucerne Festival Orchestra
Experimentações radicais de Yoko Ono com linguagem e performance
Desempenho do ator no lançamento de People Places Things
Página C18
Página C6
Página C14
Apresentação musical no Bronx Salsa Fest
Engajamento de Robin Rhode com desenho e performance
Página C17
Página C18
5 menções Desempenho de orquestras, diretores musicais e cantores de óperas em cartaz em Nova York
Atuação de Ebecho Muslimova como performer
2 menções Desempenho de atores nos lançamentos de Ten Thousand Saints e Return to Sender
Bom desempenho na pré-temporada da National Football League pode afetar a equipe negativamente na temporada oficial
O GLOBO
Página C16
3 menções Desempenho de atores em lançamentos da semana
Página C5
2 menções Apresentações no contexto do Fringe Festival
Página C8
Desempenho no Ibope do personagem Bob Esponja, citado em nota de Cristina Padiglione na coluna Sem Intervalo
O ESTADO DE S. PAULO
2 menções Apresentações de caráter multidisciplinar em show de lançamento do segundo álbum do artista Fepa
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FOLHA DE S.PAULO
Desempenho sofrível de time de futebol, em coluna de Fernando Calazansl
THE NEW YORK TIMES
Página 29
“NÓS AFIRMARÍAMOS COMO COROLÁRIO: NÃO HÁ IDENTIDADE DE GÊNERO POR TRÁS DAS EXPRESSÕES DO GÊNERO; ESSA IDENTIDADE é performativamente constituída pelas próprias
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‘expressões’ tidas como seus resultados.” Quem afirma é a filósofa norte-americana Judith Butler, pesquisadora de questões de sexo, gênero e identidade. O trecho integra seu livro Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, Divisor de Águas agora relançado pela Civilização Brasileira (288 págs., R$ 39). E dá a pista de como gênero e identidade, hoje, não podem mais ser entendidos como a adequação do sujeito a um corpo fisiológico. São questões performativas. Num mundo onde o indivíduo não se compreende mais como agente, mas como a própria ação, não há como pensar em configurações subjetivas fixas e extrínsecas. Trocando em miúdos, é na maneira como cada um se coloca no mundo que a identidade é moldada, num processo que vem se intensificando desde a contracultura – no Brasil representada pelo Tropicalismo – nos anos 1960. É mais ou menos nesse período que a performance, entendida como vertente artística, ganha força como um modo de trazer para a arte uma atitude genuína, de injetar vida no terreno das visuais. Mas como na arte contemporânea toda forma é instável e constantemente reinventada para não cair no estabelecido, a performance teve sua unidade conceitual expandida para uma noção de performatividade, elástica e aplicável a qualquer manifestação artística – teatro, música, dança e visuais, entre outras. Nesse território onde as linguagens têm fronteiras diluídas, arte e vida também se atravessam. E o artista que trabalha a partir de diálogos e tensões com aspectos da vida tem a performance como uma poética que não é nada além de seu estar no mundo. Caso do paulistano Daniel Lie, 27, que por volta dos 14 anos começou a manifestar nas roupas e cabelo sua sensação de não pertencimento entre os alunos de um colégio conservador. “Minha adolescência foi regrada pelo underground. Começou a vontade de ficar loiro, de me vestir de uma maneira diferente. Eu queria ser completamente diferente do pessoal da escola que me enchia o saco, ideologicamente, visualmente”, diz Lie à seLecT. A vida noturna e a faculdade de artes visuais liquidaram a síndrome de patinho feio. Frequentava o Baixo Augusta e adjacências do Centro paulistano, tornou-se produtor e DJ de festas alternativas como Casa Pelada e Voodoohop, ao mesmo tempo que deslanchava sua carreira de artista. Buscar sua turma condicionou a vocação social de seu trabalho. Nas instalações com minerais e plantas suspensas no ar – como o Podre Show, que está no Arte Pará de 8/10 a 8/12 –, cria ambientes místicos para atingir diretamente seu público. As performances ritualísticas que faz nos vernissages também são um canal poderoso. Com visual exótico pelos cabelos bem
Ao lado, Daniel Lie em performance ritualística com visual andrógino, em imagem de Jessica Rosen SELECT.ART.BR
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C O M P O R TA M E N T O
PROCESSO PERFORMÁTICO DE VIDA
Questões de identidade e gênero expostas na vida e na obra de cinco criadores
L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O
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FOTOS:
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Rodolpho Parigi como Fancy Violence, em performance no CCBB-SP fotografada por Miselene Martins. Acima, a multiartista Cibelle em montagem de Jessica Rosen
Mas, no espectro da vida pessoal, a performatividade de Sonja também se aplica às atitudes da multiartista, que desde 2008 vem burilando uma persona indefinida e mutante – cultivando longos pelos nas pernas e nas axilas – a partir da leitura do filosófo indiano Jiddu Krishnamurti, que inspirou sua tese de mestrado no Royal College of Art, chamada Epistemologia do Vazio. “A ideia central é o zen, a presença, a prática cotidiana e artística para tirar as lentes que nos definem. A internet, com as mídias sociais que conectam todo mundo, é um motor colocado em movimento perpétuo para a mudança. Invariavelmente, a gente vai chegar nesse ponto, porque tudo está sendo desconstruído o tempo inteiro na nossa cara”, diz Cibelle à seLecT. O encontro com o artista Ricardo Càstro e a Abravanação (termo de Càstro e sua turma para os encontros coloridos em que buscam a dissolução do eu individual, em releitura do Tropicalismo e de Hélio Oiticica) fez com que ela pensasse “arte e vida” de outro modo. Percebeu que as roupas não eram expressão de sua personalidade e que ideias como gênero e identidade eram, antes, códigos impostos por um determinado estado de coisas. “Comecei a usar looks que desconstroem essa autoimagem falsa. Visto qualquer coisa, por mais absurda que seja, e seguro a onda. Vou pra rua e dali a duas horas aquele look sou eu. Aí você percebe que não é a roupa que veste.” UMA JOIA TRANS
compridos raspados a máquina zero nas laterais e o rosto de traços indonésios herdados do pai, o heterossexual Daniel Lie bagunça o coreto da definição de gênero com visuais andróginos e influência do Candomblé e do xamanismo. “Faço questão de ir de transporte público pras aberturas, quando estou caracterizado. Uma vez, eu estava totalmente azul, inspirado em rituais da Indonésia. As pessoas gritavam na rua: olha o Smurf, olha o cara da TIM! É legal entrar na brincadeira, porque crio relações.” CIBELLE OU SONJA
Transdisciplinar por natureza, Cibelle Cavalli Bastos, 37, é cantora, produtora musical, artista visual, atriz e performer nascida em São Paulo e radicada em Londres. Ela orientou seu trabalho para a performance com a criação de personagens como Sonja Khalecallon, que se apresenta em suas instalações espaciais compostas de telas, esculturas e projeções. SELECT.ART.BR
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O processo de construção identitária aliado à prática artística é uma via de mão dupla. Se as pulsões que não cabem nas categorias sociais preestabelecidas são muitas vezes canalizadas para o âmbito da arte, garantem ao performer outra forma de ser, que acaba por reivindicar seu lugar no cotidiano. Ainda mais se a questão trans entra em cena. Quando decidiu trazer ao mundo sua criatura da noite, batizada Fancy Violence, o paulistano Rodolpho Parigi, 38, não imaginava que a mulher enorme de roupas pretas rendadas e soturnas encarnada por ele iria bagunçar o pedaço. Da possibilidade de fazer coisas inimagináveis, como ser suspensa até a abóbada central do CCBB-SP, ou estilhaçar o cenário de uma apresentação na Galeria Olido, vieram queixas do corpo, na forma de um joelho machucado pelo abuso do salto 15. Mas o maior questionamento foi de ordem psicológica: e se a persona feminina ficasse mais forte do que a masculina? “No começo, não vou mentir, fiquei supermexido, muitas coisas passaram pela minha cabeça. Sou uma pessoa sensível. Falei: e agora?”, conta Parigi à seLecT. Mas o joelho e a “montagem” que Fancy requer (fazer a barba e as unhas, maquiagem, peruca, figurino impecável) acabaram por fazer com que Parigi optasse por guardá-la como “uma joia” – não sem a ajuda da psicanálise.
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Mavi Veloso, que começou a tomar hormônio feminino como experimentação artística e de vida, na colagem de Jessica Rosen
Verónica, quando pronta, é uma travesti, tem uma vida de travesti, se relaciona como travesti. É como Clark Kent, que sabe que é o Super-Homem, mas precisa tirar a roupa para se transformar”, diz Verónica à seLecT. Sua performance tem lugar em palcos musicais, com a banda de rock Verónica Decide Morrer – com integrantes de todas as orientações sexuais –, que tem circulado pelo meio das visuais em shows na galeria A Gentil Carioca (RJ) e na Casa Triângulo (SP), dia 3/10, na abertura da mostra Transbordar, que enfoca o universo transgênero nas artes com curadoria de Yuri Firmeza. “A arte pode ser um lugar para desnaturalizar o mundo, onde não paramos de criar identidades, naturalizações…”, diz Firmeza. Como a transexual protagonista do filme Hedwig – Rock, Amor e Traição, de John Cameron Mitchell (2001), Verónica conta em seus shows sua história – de evangélico que cantava no coro da igreja até os 20 anos à aceitação de sua transexualidade – em letras como Testemunho de Trava, que inclui até versículos bíblicos. Uma história que, paradoxalmente, vem lembrar a videoinstalação Sérgio e Simone, de Virgínia de Medeiros, apresentada na 21ª Bienal de São Paulo e no 18º Festival Videobrasil, que retrata a dupla identidade de uma travesti convertida em pastor evangélico. CROSS DRESSING
“Eu sou o hospedeiro desses dois seres, Rodolpho e Fancy. Poder flertar com esses dois momentos é muito interessante. Mas existe o Rodolpho, que é uma pessoa, e a Fancy, que é um trabalho do Rodolpho”, define o artista. “Agora eu a guardei na gaveta que ela merece, que é uma gaveta muito boa, mas com a chave bem alta pra não ter facilidade de pegar toda hora, e voltei a pintar. São duas energias muitos fortes. Ela não me deixa pintar e a pintura não me deixa ser ela.” Se Parigi decidiu tirar sua persona feminina do armário apenas em apresentações em ambientes artísticos, Verónica Valenttino, persona feminina do cearense Jomar Carramanhos, 31, tem estado tão presente que já domina a agenda social e as emoções do corpo que habita. “Eu tinha essa dificuldade de dizer o que eu era. A SELECT.ART.BR
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Performer desde que se entende como artista, a londrinense Mavi Veloso, 30 anos, nascida homem, mas caracterizada socialmente como trans, não encontra definição para si mesma – e nem quer. Nada mais natural para alguém que desde os 5 anos fazia cross dressing com as roupas e maquiagens da mãe e preferia boneca a carrinho. O caminho da arte surgiu na faculdade, mas foi a partir dos 23 anos que começou a fazer livremente aquilo que sua mãe a proibia quando criança – se montar. “Minha pesquisa artística vem de um interesse em desconstruir as coisas via corpo, via pele. Desde os 23 anos, fui introduzindo as montações no meu ofício de performance. Performar me permitia testar coisas, e testar coisas em performance permite abrir portais para aplicar na vida cotidiana”, diz Mavi Veloso. Integrar o Como Clube, grupo de arte transdisciplinar e de enfoque alternativo, só aprofundou essa trilha. Atualmente em uma residência artística em Bruxelas, ela decidiu radicalizar no cruzamento de gênero. “Estou há alguns meses me submetendo ao tal tratamento hormonal male to female. Mas vem de uma curiosidade, desejo de cruzar arte e vida, experiência estética com experimento trans. Estou incorporando esse processo, bem novo pra mim, de uma transformação via articulação hormonal no meu trabalho em arte, percebendo como isso me transforma política, psicológica, emocional, racionalmente.” Perguntado se pensava em fazer a operação de
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Verónica Valenttino ( à dir. ) divide os vocais de sua banda, Verónica Decide Morrer, com Jonaz Sampaio, em foto de Alex Costa
mudança de sexo, responde: “Oh, my god! Eu queria ter duas vaginas, três paus e cinco cus!” Definição que, realmente, não está em sua pauta. É perceptível, pelo número de práticas e agentes envolvidos com questões de identidade e de gênero, que o ambiente da arte é privilegiado para que essas questões, mais do que debatidas, possam ser vivenciadas cotidianamente pelos artistas. “Mas eu tenho um incômodo com a forma como às vezes a gente coloca a arte como pioneira ou privilegiada em relação a certos tipos de práticas e modos de existência. Parece que a palavra ‘arte’ cria uma permissividade que não deveria ser só dela... fico pensando como as drag queens foram importantes para a teoria da performance, por exemplo”, questiona Yuri Firmeza. Denílson Lopes, professor da Escola de Comuni-
cação da UFRJ e especialista em estudos de gênero, aponta a discrepância que ainda existe entre arte e vida quanto a questões de gênero. “É importante pensar quem pode quebrar fronteiras. Pode ser interessante fazer isso em arte, onde esse é um comportamento valorizado; mas na rua é complicado, as pessoas podem ser agredidas”, diz à seLecT. “É preciso ver a realidade em que estamos inseridos, porque há uma discussão sobre o trans, mas nossa sociedade ainda é muito violenta e fundamentalista. O homem que se aproxima do feminino é ainda muito estigmatizado”, completa. Se a arte é solo fértil para que as pessoas se realizem como obras de si mesmas, não são menos artistas aqueles que se impõem no mundo como as pessoas que desejam ser.
PORTFÓLIO
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PAULO NAZARETH, SOBRE OPRIMIDOS, MESTIÇOS E MIGRANTES MÁRION STRECKER
Depois da longa travessia do Sul ao Norte das Américas, ele iniciou outra grande viagem, desta vez pela África, continente que quer cruzar antes de pôr os pés na Europa. O artista elabora a história dos outros, que é também a sua própria história e a história da humanidade
“PERIFERIA É ONDE EU VIVO, ONDE EU ANDO” , diz o artista que
mora no município de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte. “No Palmital existe mais vida, as relações são mais próximas, vejo a vida pulsar na rua.” Palmital é o apelido de um conjunto habitacional dos anos 1980 que se expandiu nessa vila do Ciclo do Ouro, às margens da Estrada Real, por onde escoavam as riquezas de Minas para os portos do Rio de Janeiro e Paraty. Um lugar que Paulo Nazareth não tem a menor intenção de trocar. Ele é neto de índia Krenak, tribo dos chamados Botocudos pelos portugueses no século 18, que no século 20 tiveram as terras (e as vidas) rasgadas por uma estrada de ferro da companhia Vale do Rio Doce. Essa avó adotou o Candomblé como religião e, por fim, foi internada como louca. Ainda do lado materno, ele também descende
Ao lado, a obra Sem Título da série Para Venda (2011)
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de africanos escravizados no Brasil, cuja natureza dos cabelos herdou e mantém compridos, embora os detalhes da história os senhores de escravos tenham feito de tudo para apagar. E ele descende ainda de europeus, da Itália e de Portugal, que deixaram mais clara sua cor de pele, transformando o artista em alguém que não é índio, nem branco, nem negro. Paulo Nazareth adotou o sobrenome da avó materna, que por sua vez é o nome de local de peregrinação cristã, descrito como cidade onde Jesus passou sua infância, e
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Fotografia da performance O Sacudimento da Maison des Esclaves (2015), em Gorテゥe, Senegal FOTOS: AYRSON HERテ,LITO FOTOS:
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Acima, obra da série Imagens Que Já Existem no Mundo (2010-2011) e o panfleto Qué Ficar Bunito?(2005). Ao lado, Sem Título (2011-2012)
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atualmente uma espécie de capital dos cidadãos árabes de Israel, que são ali a maioria da população. Aos 12 anos foi trabalhar numa pocilga em Curvelo (MG), ganhando um quarto de salário mínimo e cuidando dos porcos desde o parto até o momento do abate. Acha os porcos muito inteligentes, mais inteligentes do que os cachorros, e pensa que eles sabem muito bem que destino lhes reservam na pocilga. Nazareth ainda não era vegetariano nessa época. Carne era artigo de luxo para sua família, raramente servida. Carne crua virou um dos materiais usados por ele em performances, muitas vezes amarrada no rosto ou na cabeça, para desgosto de alguns e para a indiferença de outros, inclusive alguns mais familiarizados com os procedimentos da arte contemporânea. Paulo Nazareth é um mestiço como quase todos nós, os brasileiros. Também é um tremendo caminhante que não abandona sua terra nem quando viaja, filho de uma mãe “devota de todos os santos”, pai distante, e primeiro entre os irmãos a fazer uma faculdade. Artes plásticas na UFMG. Antes foram dois anos de aulas com Mestre Orlando em BH, o artista baiano que fazia carrancas com pedra-sabão. Agora, Nazareth é pai de uma filha recém-nascida. QUÉ FICAR BUNITO? Salão de beleza “DE BÉsTI BIRíFUU”. Esse é o título de um panfleto que ele produziu em 2010. Best? Beautiful? Matou a charada! O panfleto continua assim, assimilando a linguagem corrente e atropelando a gramática: “Alisa-se cabelo, clareia-se pele, afina-se nariz, encurta-se orelhas, colore-se olhos, aumenta-se seios, diminui-se nádegas, depila-se virilhas, arranca-se unhas, corta-se beiços, lixa-se pés, muda-se nome, ensina-se inglês, passa-se perfume, tira-se foto, arruma-se padrinho, arranja-se bolsa, consegue-se visto, manda-se para fora, apaga-se memória, deixa-se bunito”. O endereço onde tantos serviços seriam prestados é da Governador Valadares natal de Paulo Nazareth, cidade do Vale do Rio
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O direito de passagem e o direito à paisagem são duas das preocupações centrais da obra de Paulo Nazareth, que explora a performance, a videoperformance, o registro fotográfico e o panfleto como formas de disseminar suas ideias FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, SÃO PAULO
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Nesta página, fotografia da performance Pão e Circo (2012). Ao lado, fotografias Sem Título, da série Notícias de América (2011)
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Doce onde ele viveu até os 12 anos e que ficou notória pela exportação de mão de obra clandestina para os Estados Unidos da América e para a Londres de Jean Charles, de onde vão trabalhadores sobretudo da área rural e voltam recursos financeiros para as famílias. No trabalho “Qué ficar bunito?” o que surpreende é a forma crua e direta de tratar o preconceito que está por trás de tantos desejos de “embelezamento” e de um futuro melhor, ou seja, desejo de aceitação e sobrevivência.
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ARTE DE CONDUCTA
Paulo Nazareth ficou famoso por uma travessia que fez boa parte a pé, calçando chinelos de dedo, juntando a poeira dos países do Sul para, literalmente, se lavar no Rio Hudson, em Nova York, de onde partiu menos de 48 horas depois, incluindo o tempo que ficou vagando e o tempo que passou no protesto contra a desigualdade social chamado Occupy Wall Street. O destino não importava tanto quanto o percurso, as pessoas que conheceu, as histórias que ouviu, as fronteiras que cruzou e desafiou. Caminhar é palavra-chave para ele, que nasceu com os pés tortos, que sua mãe resolveu endireitar na infância com operação, gesso e botinhas. Nessa caminhada, que resultou na série Notícias de América, carregou placas que diziam frases cortantes como “I clean your bathroom for a fair price” (Limpo seu banheiro por um preço justo). “Para os brasileiros, o espanhol é quase um sotaque”, anotou, entre tantas outras coisas. Acabou a viagem de 13 meses e uma semana na Art Basel Miami Beach, com uma Kombi cheia de bananas, que pôs à venda por US$ 10 cada, enquanto ele carregava uma placa que dizia: “Vendo mi imagen de hombre exótico”. Vivência, observação, engajamento, registro. Isso tudo são partes do seu trabalho, que, provavelmente, a artista cubana Tania Bruguera chamaria de “arte de conducta”, em vez de chamar de performance ou outra coisa. Ela, Tania Bruguera, criadora de uma cátedra em Cuba, em 2002, exatamente sobre esse assunto.
Entre os muitos trabalhos de Paulo Nazareth, boa parte reproduzida em material barato e distribuída por ele mesmo na feira de Rua de Palmital, está uma série de desenhos em técnica mista sobre papel, que se chamou Imagens Que Já Existem no Mundo. Entre elas, cenas de conflitos entre civis e militares no Egito, na Faixa de Gaza, na fronteira do México, na China. E ainda um barco repleto de migrantes cubanos navegando de pé, talvez aidéticos, em travessia para os EstaFOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, SÃO PAULO
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dos Unidos. Nazareth queria ter ido a Cuba, mas todos os barcos levavam para os Estados Unidos, como os barcos do Norte da África levam hoje os refugiados para a Europa, sem garantia de chegada nem acolhimento. CADERNOS DE ÁFRICA
Desde 2012, Paulo Nazareth dedica-se aos Cadernos de África. Está “vivendo os cadernos”, como ele diz. “Os cadernos são em torno do que existe de África na minha casa e o que existe de minha casa na África”. Já foi ao Benin, à Nigéria, Moçambique, África do Sul, Namíbia, Quênia, Tanzânia, Zimbábue e Botsuana. “Na África onde tenho andado são poucos os negros com cabelos compridos”, conta. Também está visitando quilombos no Brasil e foi à Argentina, ver onde foram parar os negros que sobreviveram ali. Os negros
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que eram 30% da população daquele país. Os negros que foram empurrados para as fronteiras do Brasil e do Paraguai, durante o que nós aqui chamamos de Guerra do Paraguai, mas os paraguaios chamam de Guerra Grande, e os argentinos e uruguaios chamam de Guerra da Tríplice Aliança (entre Brasil, Argentina e Uruguai). Tudo questão de ponto de vista, se estamos dispostos a ver o mundo com os olhos dos outros. “Pode não existir raça, mas existe racismo”, disse em entrevista à seLecT. “Nos bairros nobres se perguntam: o que esse cara está fazendo neste lugar? Aqui democracia racial é um mito. Aqui o negro é invisível, invisível na tevê, invisível nas revistas. Cabelo curto é quase uma exigência de ‘boa aparência’. Cabelo comprido não é um cabelo de trabalhador. É coisa de encrenqueiro, de marginal”, diz ele, que já fez uma performance em que comia o próprio cabelo, cortado pela irmã. Esse brasileiro está preocupado com “o direito de passagem e o direito à paisagem”. Ele é, hoje, o principal artista da galeria paulistana Mendes Wood DM, dos sócios Pedro Mendes, Matthew Wood e Felipe Dmab. Enquanto ele atrasa propositalmente sua ida à Europa, sua obra já esteve nas bienais de Veneza e Lyon e suas publicações são editadas em países como a Alemanha.
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Questionado se está acompanhando a travessia dos refugiados do Norte da África rumo à Europa, reconheceu: “Eu estou falando dessas pessoas”. E disse mais: “Quero desafiar essa lógica de que o centro está na Europa. A Europa vai ficando mais distante. Eu nego essa chegada”.
À esqueda e acima, imagens do projeto Cadernos de África (2013). Ao lado, frame da videoperformance Cabelo (2006)
FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, SÃO PAULO