ENCONTRO DAS ARTES CRÍTICA AO MINC NÚMEROS DA CULTUR A A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A
DEPENDÊNCIAS TÁTICAS ARTE INDÍGENA HOJE
POLÍTICA CULTURAL
JUN/JUL/AGO 2018 ANO 07
EDIÇÃO 39 R$ 19,90
EXEMPLAR DE ASSINANTE VENDA PROIBIDA
Detalhe da obra da série Missão Francesa (2017), de André Penteado
Ministério da Cultura e Porto Seguro apresentam
ATÉ 22 DE JULHO DE 2018 ESPAÇO CULTURAL PORTO SEGURO Alameda Barão de Piracicaba, 610 Campos Elíseos . São Paulo terças a sábados, das 10h às 19h domingos e feriados, das 10h às 17h espacoculturalportoseguro.com.br
CURADORIA Marie Bertran e Marta Gili Exposição organizada pelo Jeu de Paume, Paris, em colaboração com o Espaço Cultural Porto Seguro
Fire Martyr [Mรกrtir do Fogo], 2014
Earth Martyr [Mรกrtir da Terra], 2014
29.4 – 9.9.2018
Sesc Avenida Paulista Av. Paulista 119 São Paulo, SP sescsp.org.br
Imagens Kira Perov
Exposição com obras do videoartista norte-americano, produzidas nos últimos dez anos.
Air Martyr [Mártir do Ar], 2014
Water Martyr [Mártir da Água], 2014
58 PORTFÓLIO
ANDRÉ PENTEADO
Da série Cabanagem (2015), de André Penteado
Processos de violência social no Brasil são tema para o artista
36
40
46
50
54
COLUNA MÓVEL
COLUNA MÓVEL
COLUNA MÓVEL
FOGO CRUZADO
MUNDO CODIFICADO
A FAVELA NA VANGUARDA
DEPENDÊNCIAS TÁTICAS
TRANCOS E BARRANCOS
BALANÇO DE MINISTROS
OS NÚMEROS DA CULTURA
Jailson de Souza e
Seroussi trata de
Afonso Luz comenta
Titulares comentam
Orçamento do MinC só
Silva escreve sobre arte
espaços autônomos e
os altos e baixos na
suas realizações e
encolhe, enquanto Lei
contemporânea na Maré
políticas de guerrilha
gestão do MinC
frustrações na Cultura
Rouanet sobrevive
SEÇÕES
10 16 17 32 34 36 54 108 114
Editorial Comentários / seLecT Expandida Da Hora Agenda CCBB Acervos Itaú Cultural Colunas Móveis
72
Mundo Codificado
CURADORIA
Reviews
VILA ITORORÓ
Em Construção
A história do projeto cultural Canteiro Aberto
66
82
92
REPORTAGEM
SEMINÁRIO
REPORTAGEM
FUNDOS PATRIMONIAIS
ENCONTRO DAS ARTES
HORA DE SOMAR
Masp recorre a doações,
Expoentes apontam
Instituições fazem
enquanto MAM Rio
os problemas e
parcerias em
quer leiloar Pollock
debatem soluções
ações e doações
98
104
TERRITÓRIOS
ARTE E EDUCAÇÃO
ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA
LÓGICA DO LUCRO
Falar de direito à terra
Mirtes Marins de Oliveira
e à vida é essencial,
comenta a extinção
escreve Jaider Esbell
de cursos de arte
FOTOS: ANDRÉ PENTEADO/ PAULA ALZUGARAY/ MARCELO CAMACHO/ CORTESIA MAM RIO
E D I TO R I A L
10
CULTURA COM AS PRÓPRIAS MÃOS
Marielle Franco apresentava-se como “cria da Maré”. Iniciou
Seja na construção de um centro cultural que busca
sua vida política em projetos educacionais e organizações de
reinventar as relações com seu público – deixando de vê-
defesa da cidadania e da democracia do Complexo da Maré,
lo como alvo para torná-lo participante ativo –, seja na
na zona norte do Rio de Janeiro. A trajetória da ativista social
continuidade de um curso de artes, seja na formação e
é uma prova presente de que o acesso à Cultura é imperativo
preservação de acervos de museus, estamos buscando aqui
para a construção de vidas e de futuros melhores. Marielle
o que significa ser “público”, ou que pode, verdadeiramente,
teve a vida roubada, mas não o seu projeto. Dedicamos a
ser reconhecido como ações de utilidade pública.
seLecT #39 à continuidade de seu projeto e àqueles que
Política pública não é ampliar a atuação dos departamentos
tentam fazer frente à violência social praticada por um
de marketing de empresas privadas, que já ditavam o que
Estado que não cuida e não valoriza sua potência cultural.
era culturalmente relevante e agora começam a fornecer
A ineficiência das políticas públicas dedicadas à história
diretrizes para as atividades educacionais. Não é restringir a
cultural é abordada nesta edição nas séries fotográficas
circulação de obras de arte aplicando taxações proibitivas. Não
de André Penteado, que compõem o Portfólio e a capa.
é transformar áreas habitacionais em polos de turismo cultural,
Penteado investiga a crise do sistema institucional da
ou desapropriar instituições culturais com promessas não
arte e da educação, manifesta em projetos interrompidos
cumpridas de atender a demandas urgentes de outros setores
e abandonados. Seu trabalho é um retrato do que a
da sociedade. Este foi o caso do Paço das Artes, que perdeu sua
pesquisadora Mirtes Marins de Oliveira explora em seu texto:
sede na Cidade Universitária, em São Paulo, em março de 2016,
a descontinuidade (leia-se morte lenta) de cursos de arte
para dar lugar a uma fábrica de vacinas contra a dengue – que
e design no Brasil, em razão da visão da oferta educacional
logicamente nunca saiu do papel. Se essa instituição sobrevive
como produto e de seu público como consumidor.
hoje, mantendo sua grande influência e relevância no sistema de
Sobre a cruel lógica da catraca, que monetiza instituições
arte contemporânea, é graças ao corpo a corpo de sua equipe –
culturais e reduz a arte a entretenimento ou a bens de luxo –
reduzida, mas engrandecida pelo papel que tem em mãos.
o que corrobora a extinção de cursos que não respondem ao
Vamos falar aqui da ausência de política cultural no Brasil.
lucro –, cabe apontar programas de resistência, como o do
Mas também, e principalmente, de quem faz cultura com as
Canteiro Aberto Vila Itororó, tema da Curadoria desta edição.
próprias mãos.
Paula Alzugaray Diretora de Redação
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
EXPEDIENTE
FUNDADOR: DOMINGO ALZUGARAY (1932-2017) EDITORA: CÁTIA ALZUGARAY PRESIDENTE-EXECUTIVO: CARLOS ALZUGARAY
12
EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN REDATORA-CHEFE: MÁRION STRECKER REPORTAGEM: LUANA FORTES
COLABORADORES
Afonso Luz, Benjamin Seroussi, Giselle Beiguelman, Jaider Esbell, Jailson de Souza e Silva, Michelle Farias Sommer, Mirtes Marins de Oliveira, Olivia Ardui, Paulo D’Alessandro
PROJETO GRÁFICO
Ricardo van Steen e Cassio Leitão
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO
CONTATO
PUBLICIDADE
Roseli Romagnoli Hassan Ayoub
faleconosco@select.art.br
DIRETOR NACIONAL: Maurício Arbex DIRETORA: Ana Diniz DIRETORA DE MARKETING E PROJETOS: Isabel Povineli GERENTES-EXECUTIVOS DE PUBLICIDADE: Batista Foloni Neto, João Fernandes e Tania Macena GERENTE: Regiane Valente SECRETÁRIA DIRETORIA PUBLICIDADE: Regina Oliveira EXECUTIVA DE PUBLICIDADE: Andréa Pezzuto ASSISTENTE ADM. DE PUBLICIDADE: Ederson do Amaral COORDENADORES: Gilberto Di Santo Filho CONTATO: publicidade@editora3.com.br RIO DE JANEIRO-RJ: COORDENADORA DE PUBLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.: (21) 2107-6667 / Fax (21)2107-6669 BRASÍLIADF: Gerente: Marcelo Strufaldi. Tel.: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 ARACAJU-SE: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962. BELÉM-PA: Glícia Diocesano - Dandara Representações - Tel.: (91) 3242-3367 / 8125-2751. BELO HORIZONTE - MG: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 / 99831783. CURITIBA-PR: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 / 9962-9554. FLORIANÓPOLIS-SC: Anuar Pedro Junior e Paulo Velloso - Comtato Negócios; Tel./Fax: (48) 9986-7640 / 9989-3346. FORTALEZA-CE: Leonardo Holanda - Nordeste MKT Empresarial - Tel.: (85) 9724-4912 / 88322367 / 3038-2038. GOIÂNIA-GO: Paula Centini de Faria – Centini Comunicação - Tel. (62) 3624-5570 / 9221-5575. PORTO ALEGRE -RS: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel./Fax: (51) 3388-7712 / 9985-5564 / 8157-4747. RECIFE-PE: André Niceas e Eduardo Nicéas - Nova Representações Ltda - Tel./Fax: (81) 3227-3433 / 9164-1043 / 9164-8231. BA/SALVADOR: André Curvello - AC Comunicação - Tel./ Fax: (71) 3341-0857 / 8166-5958. VILA VELHA-ES: Didimo Effgen-Dicape Representações e Serviços Ltda. - Tel./Fax (27)3229-1986 / 8846-4493 Internacional Sales: Gilmar de Souza Faria - GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062. MARKETING PUBLICITÁRIO GERENTE: Maria Bernadete Machado ASSISTENTES: Marília Gambaro. REDATOR: Bruno Modulo. DIR. DE ARTE: Pedro Roberto de Oliveira.
ASSINATURAS E OPERAÇÕES
CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE
Três Comércio de Publicações Ltda. Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP
(11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES) ASSINE www.assine3.com.br EXEMPLAR AVULSO www.shopping3.com.br
SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661-7320 COMERCIALIZAÇÃO: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA EM BANCAS PARA TODO O BRASIL: FC Comercial e Distribuidora S.A., WWW.SELECT.ART.BR
Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678, Sala A, Osasco - SP. Fone: (11) 3789-3000. IMPRESSÃO: Log & Print Gráfica e Logística S.A.: Rua Joana Foresto Storani, 676, Distrito Industrial, Vinhedo - SP, CEP: 13.280-000
PAT R O C Í N I O :
PAT R O C Í N I O :
REALIZAÇÃO:
MINISTÉRIO DA CULTURA
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
HISTORIAS AFRO-ATLÂNTICAS INSTITUTO TOMIE OHTAKE|MASP 28.6-21.10.2018
Barrington Watson Conversation 1981 Detalhe Coleção National Gallery of Jamaica Foto Franz Marzouca
Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Instituto Tomie Ohtake, MASP e SESI apresentam
VISITE A EXPOSIÇÃO NO INSTITUTO TOMIE OHTAKE Av. Faria Lima, 201 Entrada pela R. Coropés, Pinheiros institutotomieohtake.org.br VISITE A EXPOSIÇÃO NO MASP Av. Paulista, 1578, Bela Vista masp.org.br
PATROCÍNIO
APOIO DE MÍDIA
CO-REALIZAÇÃO
REALIZAÇÃO
COLABORADORES
14
BENJAMIN SEROUSSI Curador, editor e gestor cultural, é diretor-executivo da Casa do Povo. Foi curador associado da 31 a Bienal de São Paulo e diretor de programação do Centro da Cultura Judaica. coluna móvel P 40
MICHELLE FARIAS SOMMER Pós-doutoranda em Linguagens Visuais na UFRJ, doutora em História, Teoria e Crítica de Arte pela UFRGS, mestre em Planejamento Urbano e Regional, arquiteta e urbanista. Atua no ensino, pesquisa, crítica e curadoria de artes visuais. reviews P 110
MIRTES MARINS DE OLIVEIRA
AFONSO LUZ
Mestre e doutora em Educação: História e Filosofia. É pesquisadora na Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi e curadora de artes visuais. Organizou com Fabio Cypriano o livro Histórias das Exposições/Casos Exemplares (Editora da PUC-SP).
Crítico de arte, formado em Filosofia na USP, vive atualmente em Nova York. Dirigiu o Museu da Cidade e o Arquivo Histórico (SP), foi consultor (BID/Unesco), assessorou o MinC na gestão de Gilberto Gil, quando foi secretário-adjunto de Políticas Culturais. coluna móvel P 46
arte e educação P 104
OLIVIA ARDUI
PAULO D’ALESSANDRO
Pesquisadora, pós-graduada em História da Arte Moderna e Contemporânea pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Foi membro do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake de 2013 a 2016. Integra a equipe de curadoria do Masp.
Fotógrafo com formação no Brasil e na Escuela de Altos Estudios de la Imágen y el Diseño (Idea) de Barcelona. Sua pesquisa tem como base retratos e experimentações formais. seminário P 82
coluna móvel P 42
JAILSON DE SOUZA E SILVA
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
GISELLE BEIGUELMAN
JAIDER ESBELL
Fundador do Observatório de Favelas, diretor-geral do Instituto Maria e João Aleixo e professor associado da Universidade Federal Fluminense.
Artista e professora da FAUUSP. Entre seus projetos recentes destacam-se Quanto Pesa Uma Nuvem? (2016) e Odiolândia (2017). É autora de Memória da Amnésia: Políticas do Esquecimento (Edições Sesc, em preparação).
Escritor e artista multimídia. Indígena do povo Makuxi de Roraima, sua trajetória pode ser conhecida por meio de sua vida na internet. Seu e-mail é es.b@hotmail.com
coluna móvel P 36
portfólio P 58
territórios P 98
FÁBRICA DE ARTE MARCOS AMARO
COMENTÁRIOS
16
"Que alegria fazer parte dessa edição. A interpretação do título Alma de Bronze: O brilho do metal que fabricou tantas armaduras x espírito guerreiro das mulheres é lindo! Eu não havia pensado nesse viés, obrigada por esta chave poética! Obrigada também pelo cuidado com a escrita e pelas sinapses que abri no meu processo criativo." Virginia de Medeiros, artista visual
“Vi agora a revista, ficou linda: a foto da Fabíola e o nosso trabalho, a edição como um todo está incrível. Muito feliz que o MEXA esteja junto!”
Escreva-nos Rua Itaquera, 423, Pacaembu, São Paulo - SP
João Dias Turchi, via e-mail
CEP 01246-030 www.select.art.br
“O cheiro estava muito forte! Estava me dando dor de cabeça e ainda lacrimejando! Pior, não consegui ler a minha revista toda!”
facebook.com/selectrevista
Lucas Niamey, via Facebook
instagram.com/revistaselect twitter.com/revistaselect
“Acabei de cheirar a revista, é realmente muito estranho. Adorei.”
youtube.com/selectartbr
Cláudio Seichi Kawakami Savaget, via e-mail
plus.google.com/+SelectArtBr
S E L E C T E X PA N D I D A O N L I N E
SEMINÁRIOS DAS ARTES
Assista em vídeos ao 1º Encontro das Artes Visuais – Em busca de soluções para questões normativas e tributárias, organizado por seLecT, MinC e CQ&S Advogados, realizado em março no Itaú Cultural. http://bit.ly/encontro-artesvisuais
VÍDEOS DOS ARTISTAS DA EXPOSIÇÃO EX AFRICA
CRÍTICA DAS GESTÕES DO MINC
Veja obras em vídeo de Kiluanji Kia Henda, Mohau Modisakeng e Nástio Mosquito.
Leia no site da seLecT a íntegra do texto de Afonso Luz publicado resumidamente nesta edição.
http://bit.ly/videos-exafrica
http://bit.ly/afonsoluz
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTO: CORTESIA MOHAU MODISAKENG, WHATIFTHEWORLD
A CELEUMA DA SELECT OLFATIVA
17
Da redação A edição 38 da seLecT trouxe como encarte a obra olfativa Teto de Vidro: dos Estilhaços à
de meu projeto artístico. Geralmente,
Resiliência (2015-2018), da artista Josely Carvalho. Criada especialmente para a revista,
tudo que é novo e experimental gera
a obra fez parte do projeto Diários de Cheiros: Teto de Vidro, que esteve em exposição
resistências e nos tira de uma área de
até 6/5 no MAC-USP, em São Paulo.
conforto”, argumenta Josely Carvalho.
Foi a primeira vez que a revista trouxe um encarte olfativo. Alguns leitores elogiaram, mas vários reclamaram, entre eles Pathy Souza: “Esse cheiro no museu, ok. Mas dentro da minha casa? Tive de jogar a revista fora sem ler. E o cheiro não sai da minha mão”. “O desafio para mim e para as parceiras Givaudan do Brasil e Ananse foi criar um cheiro cortante como os cacos de vidro”, disse a artista à seLecT. “O cheiro pode
Abaixo, a imagem completa que foi usada parcialmente no encarte olfativo Tetos de Vidro: dos Estilhaços à Resiliência (2015-2018), de Josely Carvalho, na edição 38 da seLecT
durar até 180 dias”, explicou Claudia Galvão, da Ananse. Para diminuí-lo recomenda-se pulverizar bicarbonato de sódio nas páginas da revista. Para preservá-lo, a dica é embalar em plástico para evitar a sua evaporação. “O cheiro Estilhaços que foi reproduzido no encarte da seLecT é o protagonista da exposição Teto de Vidro/ Glass Ceiling porque conecta as duas obras que compõem a mostra: o livro-objeto Estilhaços (cacos de vidro e da vida de cada um de nós) e Resiliência (recomposição dos cacos e da vida de todos nós, como seres sociais e políticos) através de esculturas de vidro soprado”, explica a artista. Resiliência exalaria pimenta, lacrimae, anóxia, barricada, poeira e dama-da-noite. “Reflete a inquietação do nosso tempo global. Ele retrata sentimentos angustiantes da nossa realidade. Ele não nos conforta. Ele provoca a reflexão”, avalia Josely. Estilhaços teria cheiro de prazer, ilusão, persistência, vazio, ausência e afeto. “Muito provavelmente, sou a única artista no Brasil que cria cheiros conceituais como elementos fundamentais da obra. Admiro e agradeço a atitude corajosa de seLecT ao incorporar em suas páginas um elemento estrutural
FOTO: CORTESIA DA ARTISTA
S Ã O PA U LO 42
ASSUME VIVID ASTROFOCUS De 21/7 até o fim de agosto, Casa Triângulo, Rua Estados Unidos 1.324, www.casatriangulo.com Todo o trabalho de assume vivid astrofocus (avaf, formado por Eli Sudbrack e Christophe Hamaide-Pierson) é voltado para a ativação do sistema sensorial do espectador, a fim de convertê-lo em performer. O novo trabalho, que será apresentado a partir de julho na Casa Triângulo, continua avançando nesse sentido integrador com o espectador. O conjunto da obra de avaf é uma espécie de arqueologia da cultura. Suas instalações são verdadeiras evocações do inconsciente coletivo, com camadas e mais camadas de fragmentos de todo e qualquer tipo de produção cultural. Mas, na nova série, a escavação arqueológica volta-se para o próprio trabalho. A instalação que ocupará a grande sala da galeria será composta de papéis de parede (segundo Eli Sudbrack, o mais importante dispositivo de imersão), objetos dançantes e pinturas, cujas composições partem de um procedimento de
zoom sobre outro trabalho pessoal, realizado digitalmente. “A cor será o grande dispositivo de difusão de energia”, diz Sudbrack à seLecT. Os objetos giratórios são tapetes que dialogam com a estética pré-colombiana, confeccionados para a primeira mostra-solo do artista no Peru, avaf: abstracto viajero andinos fetichizados, no MATE, até abril deste ano. Em outra sala, será apresentado um vídeo composto de 66 fragmentos de vídeos realizados com câmera de celular entre 2003 e 2016. Entre as imagens, bailes Vogue, que o artista frequentava em Nova York. “Será a primeira vez que dou uma dimensão pessoal ao meu trabalho, que em geral conecta com a emoção coletiva”, diz Eli Sudbrack. PA
Obra em construção, no ateliê de Eli Sudbrack, no Edifício Califórnia, em São Paulo
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
S Ã O PA U LO
A HORA E A VEZ DE RANCHINHO
19
De 16/8 a 17/9, Ricardo Camargo Galeria de Arte, Rua Cardoso de Almeida, 1.297, SP, www.rcamargoarte.com.br Sebastião Theodoro Paulino da Silva (1923-2003), o Ranchinho, era filho de agricultores, mas, devido a desvios comportamentais, não conseguiu emprego formal e viveu anos como catador de papel, latas e garrafas, na cidade de Assis, interior de São Paulo. Incentivado pelo diretor do Museu de Arte Primitiva da cidade a aprender técnicas de guache e acrílica sobre aglomerado de madeira, encontrou seu caminho na pintura. Sua trajetória artística passa por prêmios em salões, participação em várias edições da Bienal Naïf e mostras coletivas e individuais entre 1978 e 2002. Em agosto, a Ricardo Camargo Galeria de Arte, em parceria com a Galeria Brasiliana, realizou uma retrospectiva com 28 obras (acima, O Coelho, 1984) de quatro décadas de produção de Ranchinho, coletadas pelo pesquisador e marchand Roberto Rugiero. PA
S Ã O PA U LO
CAIXA DE PANDORA - BARRÃO Projeto Caixa de Pandora – Barrão, Kura/ Coleção Ivani e Jorge Yunes, Av. Europa, 21 A coleção Ivani e Jorge Yunes (CIJY) faz lembrar o Museu de Tudo, livro de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1975, que impressiona pela variedade temática. Quem faz a associação é Agnaldo Farias, curador da primeira edição da Caixa de Pandora, projeto que faz a Coleção Yunes respirar, colocando-a em diálogo com um artista contemporâneo. Doze obras em porcelana e resina epóxi do carioca Barrão (à esq. Matilha) foram instaladas no contexto de cinco séculos de pintura, escultura, tapeçaria, porcelana, cerâmica pré-colombiana, marfim, mobiliário e joias. Dividida em núcleos temáticos que compreendem arte asiática, africana, europeia (old masters), modernismo brasileiro, arte sacra e arqueologia, a CIJY é composta de algumas centenas de milhares de peças, além de expressivo acervo bibliográfico, e começou a ser catalogada e restaurada em novembro de 2017, em reserva técnica montada no local. O esforço institucional, iniciativa das herdeiras Beatriz e Camila Yunes Guarita, inclui a formação de um conselho consultivo formado por grandes nomes do setor, como Adriano Pedrosa, Ana Gonçalves Magalhães, Jochen Volz e Paulo Herkenhoff. Visitas ao projeto Caixa de Pandora devem ser agendadas pelo telefone 11- 30881821. PA
FOTOS: DIVULGAÇÃO/ EVERTON BALLARDIN
S Ã O PA U LO
INSTRUMENTOS 20
Ismaïl Bahri, até 22/7, Espaço Cultural Porto Seguro, Al. Barão de Piracicaba, 610 | espacoculturalportoseguro.com.br O Espaço Cultural Porto Seguro recebe a primeira individual na América Latina do tunisiano Ismaïl Bahri. A exposição Instrumentos foi primeiramente apresentada no Jeu de Paume, em Paris, instituição cultural focada em arte e tecnologia dos séculos 20 e 21. O artista vive alternadamente em Túnis, capital da Tunísia, Paris e Lyon, ambas na França. Com curadoria de Marie Bertran e Marta Gili, diretora do Jeu de Paume, a mostra abriga nove videoinstalações de Bahri (à dir., Denouement, 2011). Diante de suas lentes normalmente estão elementos banais da vida cotidiana. Sua produção caminha em busca da simplicidade a partir de investigações sobre objetos que ganham estatuto de sujeito. Uma gota d’água que reage à vibração das batidas de um coração é a imagem que recebe o público no trabalho Linha (2011). LF
S Ã O PA U LO
AMAZÔNIA: OS NOVOS VIAJANTES Até 29/7, MuBE, Rua Alemanha, 221 | www.mube.space Para a nova exposição coletiva apresentada no MuBE foi realizada uma viagem para a Amazônia com artistas e cientistas. Cocuradoria de Cauê Alves e da bióloga Lúcia Lohmann, a mostra parte do princípio de que a preservação das florestas brasileiras só acontece se as pessoas conhecerem mais sobre elas. Por isso, apresentam não só obras de arte, como também amostras coletadas por biólogos, filmes sobre a expedição e equipamentos de pesquisa – que podem ser manipulados pelo público. Na coletiva, o material está dividido entre os núcleos Histórico, Científico e Artístico. Friedrich Philipp von Martius e Alexander von Humboldt, pesquisadores naturalistas que exploraram a Amazônia no começo do século 19, destacam-se no núcleo Histórico. No núcleo Artístico há obras desenvolvidas a partir da viagem, assim como trabalhos de artistas que já se relacionaram com a floresta em sua trajetória. Entre os artistas figuram Cildo Meireles, Claudia Andujar (acima, Maloca Em Chamas, 1976), Flávio de Carvalho e Maurício Adinolfi. LF
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTOS: DIVULGAÇÃO
paulo bruscky, luto, 1976
art basel 14 - 18 de junho, 2018 feature - paulo bruscky unlimited - paul ramirez jonas sĂŁo paulo
rio de janeiro
new york
bruno dunley 09.06 - 11.08, 2018
abraham palatnik 24.04 - 14.06, 2018
leĂłn ferrari 26.04 - 16.06, 2018
antonio dias 09.06 - 11.08, 2018
marcos chaves 21.06 - 18.08, 2018
laura vinci 12.07 - 10.08, 2018
fabio miguez 09.06 - 11.08, 2018
BELO HORIZONTE
OUTROS MERCADOS-CHAVE 22
Criadores da feira de arte PARTE, de São Paulo, apostam no crescimento do mercado fora do eixo Rio-São Paulo Entre 3 e 6 de maio de 2018, aconteceu a primeira edição da ArteBH (à
dir., vista do estande da dotART galeria). O evento foi organizado pelos mesmos criadores da PARTE, feira de arte paulistana, em parceria com o 10 Contemporâneo, grupo de galerias de Belo Horizonte. Embora a presença de 4 mil visitantes tenha ficado aquém da previsão de receber de 5 a 6 mil, Tamara Perlman, diretora da PARTE Produções Culturais, avalia o resultado como positivo. “O perfil do público foi excelente: colecionadores, artistas, acadêmicos, curadores, autoridades e muita gente interessada em arte. Nós e os galeristas sabemos que se trata de um projeto de médio a longo prazo”, diz à seLecT. Segundo Perlman, a ArteBH foi estruturada a partir de um mapeamento de cidades que apresentam potencial de crescimento do mercado, presença de um número razoável de galerias de arte, interesse dessas galerias em realizar uma feira de arte na cidade, existência de instituições estruturadas e com bom programa expositivo, bons artistas na cidade, além de uma economia relevante. “Há um desequilíbrio no sistema de arte no Brasil, concentração do mercado em São Paulo, enquanto a produção e a difusão estão distribuídas pelo País. De fato, há mais colecionadores em São Paulo. Não por acaso, a cidade está saturada de feiras”, diz Perlman. “Nenhuma outra cidade no País comporta uma feira com cem galerias ou mais. Mas há espaço para eventos com 15 a 50 expositores, exatamente o que sabemos fazer bem.” Além de Belo Horizonte, a diretora tem Brasília, Curitiba e Goiânia em seu raio de interesse. “A concentração de coleções – públicas e privadas – em São Paulo e Rio imprime um olhar específico sobre o que será guardado para o futuro, para contar a história do nosso tempo. Vivemos um período tão crucial na nossa história que considero necessário ampliar essa visão para outras regiões. Isso, claro, é uma motivação pessoal.” LF
RIO DE JANEIRO
CHUTES INESQUECÍVEIS Analívia Cordeiro, até 22/7, MAM Rio, Av. Infante Dom Henrique, 85 | www.mamrio.org.br A individual de Analívia Cordeiro mostra desenhos e esculturas. No entanto, discutir sobre elas a partir de critérios específicos dessas linguagens não é suficiente. Apesar do que se vê, importa muito mais a maneira pela qual os objetos foram construídos. Bailarina, a artista desenvolveu com Nilton Lobo, em 1982, o software Nota-Anna, que codifica em escrita movimentos do corpo. Foi assim que Analívia Cordeiro criou as obras apresentadas na individual. Elas fazem referência a três chutes históricos – o yokogueri kekome, golpe realizado por Bruce Lee nos anos 1960 e dois chutes de Pelé de 1968, a bicicleta e o voleio. A exposição tem curadoria de Fernando Cocchiarale. “São trabalhos cujo sentido ultrapassa a contemplação das qualidades formais quase abstratas das obras para alcançar um campo experimental resultante da objetivação de fluxos do movimento em esculturas e desenhos inesquecíveis”, escreve Cocchiarale. LF
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTOS: DANIEL MANSUR / DIVULGAÇÃO
www.raquelarnaud.com
encarnadas elisa bracher abertura: 20 / 06 _ 19h exposição: 21 / 06 _ 12 / 08
“sem título”_ 2014
RIO DE JANEIRO 24
MODERNOS 10, DESTAQUES DA COLEÇÃO 10 CONTEMPORÂNEOS Até 30/9, Instituto Casa Roberto Marinho, Rua Cosme Velho, 1.105 Contam-se nos dedos das mãos as coleções de arte particulares abertas ao público, no Brasil. Apesar da gritante desigualdade da sociedade brasileira no acesso à cultura, é preciso comemorar o nascimento de um novo espaço cultural da iniciativa privada. A partir de 28/4, a população ganhou acesso livre (pelo menos às quartas-feiras, quando a entrada é franca) a 124 destaques da coleção que o jornalista e empresário Roberto Marinho (1904-2003) formou ao longo de 60 anos. As exposições Modernos 10, Destaques da Coleção e 10 Contemporâneos inauguram o Instituto Casa Roberto Marinho, na antiga residência da família, no bairro do Cosme Velho, no Rio. A julgar pela mostra introdutória, composta de dez expoentes do modernismo brasileiro dos anos 1930 e 40 (acima, Nós, 1926, de Ismael Nery), trata-se de uma coleção monumental. Não pelos números – são quase 1.500 obras –, mas qualitativamente. “Seu acervo de arte começou reunindo pintores, contemporâneos do jovem jornalista, que assumiam o Brasil como tema, linguagem e motor”, diz o diretor Lauro Cavalcanti. Com 1.200 metros quadrados de área expositiva, sala de cinema e a livraria Pinakotheke, em terreno de 10 mil metros quadrados, o instituto quer tornar-se um centro de referência de pesquisas sobre o modernismo. PA
LISBOA
MUNDO VASTO MUNDO Até 9/6, Fortes D’Aloia & Gabriel/ Escritório Lisboa, Praça Luís de Camões 22, 4º andar, Lisboa, www.fdag.com.br O título da exposição inaugural do escritório da Fortes D’Aloia & Gabriel em Lisboa não poderia ser mais sugestivo. Na persistência da crise econômica brasileira, quando o mercado de arte nacional continua jogando todas as fichas no exterior, a galeria paulistana dá um passo alémmar. Com obras de 21 de seus artistas representados ( à esq ., Ossos (17), 1998, de Julião Sarmento), Mundo Vasto Mundo evoca a relação entre a poesia modernista brasileira e o movimento surrealista português: o título é um verso extraído do Poema de Sete Faces (1930), de Carlos Drummond de Andrade, que foi citado em texto do poeta português Mário Cesariny, em 1957. Da curadoria, participam a dupla portuguesa João Maria Gusmão & Pedro Paiva. Os diretores esclarecem, no entanto, que o espaço em Portugal é uma base operacional internacional, e não uma galeria. “Só pela burocracia institucional de transitar com obras entre Brasil e Europa já compensaria”, explica o diretor Alex Gabriel à seLecT. “Além disso, Lisboa virou uma base estratégica entre curadores e colecionadores. Além de muitos clientes brasileiros e não brasileiros comprando imóveis lá, só este mês temos três visitas agendadas de curadores de museus da China, EUA e Europa”, diz ele. PA
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTOS: DIVULGAÇÃO/ JOSÉ MANUEL COSTA ALVES, CORTESIA FORTES D’ALOIA & GABRIEL
Abertura 30 de junho de 2018 (sábado) 2 de julho a 11 de agosto de 2018 Aberta à visitação pública de segunda à sexta-feira, das 10h às 18 horas e aos sábados das 10h às 16 horas.
Rua Ministro Nelson Hungria 200 Real Parque | Morumbi | São Paulo | SP
50
BRASÍLIA
ARTE, EDUCAÇÃO E POLÍTICAS Prêmio seLecT de Arte e Educação lança luz sobre projetos que ocupam espaços onde as políticas públicas não chegam. Segunda edição acontece em Brasília e tem inscrições abertas até 31 de julho
ações voltadas a promover discussões sobre arte e direitos hu-
O Prêmio seLecT de Arte e Educação foi criado para valorizar
realizar dez intervenções do projeto Mídia Tática em diferentes
iniciativas inovadoras e experimentais que favoreçam os
cidades, com grupos de jovens organizados em torno de direitos
vínculos entre arte e educação. Mas os selecionados e
humanos. Mas os moradores de Pinhões não quiseram só uma
premiados da primeira edição nos mostraram mais que isso:
intervenção efêmera, e sim criar uma ‘área criativa’, em caráter
o Prêmio lança luz sobre projetos que nascem e ocupam
permanente”, conta Vilela à seLecT.
lugares que as políticas públicas não alcançam – ou não dão
Como a verba que Vilela tinha para uma intervenção não alcançava
conta de sua complexidade.
construir um espaço cultural nos moldes de Pedra Azul, foi criado
Um caso emblemático foi o vencedor na categoria Formador, em
o ‘Teto’ – literalmente um teto para abarcar encontros e discussões
2017. O Espaço Cultural Área Criativa, de Bruno Vilela, consistiu
para a afirmação do jovem quilombola. “O Teto é um lugar para a
na construção de um centro cultural autogestionado por jovens
discussão de políticas – do próprio espaço e do município. Se a gen-
e crianças da cidade de Pedra Azul (MG), com atividades e re-
te pode criar regras para um espaço, por que não podemos inter-
gras de funcionamento pensadas pelos próprios usuários. Após
ferir nas regras que o Estado dedica à população?”, diz Vilela. Uma
três anos de sua implantação em uma cidade que não dispunha
representante do projeto está negociando com o poder público mu-
de equipamentos culturais, a Área Criativa continua ativa. Com
nicipal a possibilidade de apoio para a continuidade do espaço. PA
FOTO: DIVULGAÇÃO
manos, o gestor e produtor cultural Bruno Vilela foi estimulado a retomar a estratégia da Área Criativa em Pinhões, bairro quilombola do município de Santa Luzia (MG). “Programamos
O Teto é um espaço para discussões sobre arte, política e direitos, em comunidade quilombola, criado por iniciativa do projeto Mídia Tática
R. J A R D I M B O T Â N I C O 9 9 7 RIO DE JANEIRO . BRASIL @_om.art_
28
COLEÇÃO SELECT GÊNERO Fotografias de Aleta Valente, Rosa Luz e do coletivo MEXA integram a primeira coleção de obras de arte com curadoria da revista Foi lançada na última SP-Arte, em abril, a primeira coleção de obras de arte curada pela revista. A Coleção seLecT Gênero traz fotografias de Aleta Valente, do Rio de Janeiro, Rosa Luz, de Gama, cidade-satélite de Brasília, e do grupo MEXA, de São Paulo. Aleta Valente (1986) ficou conhecida pelo personagem @ex_miss_ febem, que incorporou em redes sociais como Instagram e Facebook. O trabalho de Aleta Valente na Coleção seLecT Gênero chama-se Material Girl e mostra a artista em pose provocativa em cima de uma pilha de restos de demolição, desconstruindo a narrativa das fotos sensuais femininas exploradas na sociedade machista.
Acima, Material Girl, de Aleta Valente; ao lado, Fabíola Dumont, Centro de Esportes Radicais, São Paulo, Terminal 10 mg, Mexa, em foto de Dudu Quintanilha; abaixo, E Se a Arte Fosse Travesti?, de Rosa Luz
A foto produzida pelo grupo MEXA foi clicada por Dudu Quintanilha (1987), artista multidisciplinar de Bauru que vive atualmente em Frankfurt, na Alemanha. O MEXA, de composição mutante, desde 2015 utiliza táticas artísticas, como escritura e performance, para defender e promover o encontro da diversidade da população em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo. A foto da coleção chama-se Fabíola Dumont, Centro de Esportes Radicais, São Paulo, Terminal 10 mg, Mexa. Rosa Luz (1995) é uma artista multimídia e performer que mantém no YouTube o programa Barraco da Rosa. Mulher trans, negra e periférica, teve seu trabalho E Se a Arte Fosse Travesti?, de 2016, destacado na capa da seLecT 38. A imagem também integra a Coleção seLecT Gênero. As fotografias da coleção foram impressas em papel de algodão Felix Schoeller Smooth Rag, em tiragem limitada, e estão à venda por preços entre R$ 1.000 e R$ 1.200 cada uma. Mais informações em faleconosco@select.art.br SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
GALERIA EDUARDO FERNANDES
Como tatuar um espírito ? | Exposição de 09.06 a 04.08 “Sinto-me seduzido pelas formas do imenso. O ar. As árvores como relâmpagos invertidos. A solidão terrosa das raízes e o silêncio invertebrado das pedras. A arquitetura da respiração. Ao tentar representar o imenso, o desforme sopra. Rochas que se apoiam, levitam, galhos venais, raízes, o caule das cabeças, inalação das vozes respirando amorosamente numa espécie de magma ontológico.”
ARTURO GAMERO WWW.GALERIAEF.COM | INFO@GALERIAEF.COM.BR | +55 11 38123894
CARMELA GROSS
30
de Douglas de Freitas (org.),
ERNESTO DE FIORI: O EXÍLIO BRASILEIRO
Cobogó, 280 págs., R$ 150
de Ivo Mesquita, Capivara, 184
Compilação da obra de Carmela
págs., R$ 150
Gross dos últimos 50 anos,
Livro sobre a obra do artista
com textos de Clarissa Diniz,
ítalo-alemão Ernesto de Fiori,
Luísa Duarte e Paulo Miyada.
que passou a viver no Brasil
O livro compreende registros
para fugir do nazi-fascismo,
de trabalhos acompanhados
em 1936. Aborda especialmen-
de pequenos textos da artista,
te sua influência em artistas
uma bibliografia selecionada e
paulistanos como Alfredo Volpi,
cronologia da trajetória.
Mario Zanini e Mick Carnicelli.
PROCURANDO IRACEMA de Jorge Bodanzky, Madalena, 152 págs., R$ 140 Fotolivro de mil exemplares com fotogramas de filmes capturados com câmera super-8 em Manaus e na Rodovia Transamazônica. As imagens serviram como base para o filme Iracema, uma Transa Amazônica (1974), dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Acompanham uma reprodução do cartaz original do longa-metragem e reportagem do New York Times.
O CÍRCULO DE THEON SPANUDIS de Antonio Carlos Suster Abdalla e Ladi Biezus, Cult Arte e Comunicação, 274 págs., R$ 50 Relato biográfico sobre a vida do colecionador e crítico Theon Spanudis, com ensaios, depoimentos, fotografias e destaques de sua coleção. A partir de uma metáfora simbólica, o livro traça
RODRIGO MATHEUS
relações entre importantes
de Kiki Mazzucchelli, Mat-
CILDO: ESTUDOS, ESPAÇOS, TEMPO
figuras da arte brasileira tendo
EDITH DERDYK DE 1997 A 2017
thieu Lelièvre, Philip Monk,
de Diego Matos e Guilherme
Spanudis como eixo central.
de Edith Derdyk e Ruth
Cobogó, 180 págs., R$ 98
Wisnik (org.), Ubu Editora, 304
Alvarez (coord.), Edições A, 159
Panorama da trajetória de
págs., R$ 120
págs., R$ 60
Rodrigo Matheus que percorre
A publicação coloca em foco
Produzido de forma indepen-
sua produção entre 2008 e
o processo criativo de Cildo
dente, o livro aborda 20 anos da
2018. Inclui textos reflexivos
Meireles, mostrando registros
produção de Edith Derdyk e traz
de Kiki Mazzucchelli, crítica e
de trabalhos, desenhos e
textos autorais e de críticos de
curadoria de Matthieu Lelièvre,
esboços. O conceito de estudo
arte como Jacopo Crivelli, Peter
curador e diretor artístico da
permeia a concepção do livro,
Pál Pelbart e Juliana Mona-
Fundação Fiminco, na França,
que traz 12 textos de críticos
chesi. Foi desenvolvido durante
e uma conversa entre o artista
nacionais e internacionais
dois anos ao lado da artista-
e o curador Philip Monk.
sobre a produção do artista.
-designer Ruth Alvarez.
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
AG E N DA CC B B
32
Sem Título (2016), pintura de Arjan Martins S Ã O PA U LO
EX AFRICA Com curadoria do alemão Alfons Hug, mostra reúne obras de artistas de oito países africanos e os brasileiros Arjan Martins e Dalton Paula
NAS OUTRAS SEDES DO CCBB: Ex Africa, até 16/7, CCBB SP, Rua Álvares Penteado, 112 Ex Africa é um olhar sobre a contemporaneidade africana por meio de
BRASÍLIA
BELO HORIZONTE
90 trabalhos. A coletiva reúne dois artistas brasileiros afrodescendentes, Arjan Martins e Dalton Paula, e 18 artistas de oito países da África, dos
JEAN-MICHEL BASQUIAT
100 ANOS DE ATHOS BULCÃO
quais, lamentavelmente, apenas um é mulher, a nigeriana Ndidi Dike. A
Até 1º/7, SCES, Trecho
Até 24/6, Praça
curadoria é assinada por Alfons Hug, que dirigiu o Instituto Goethe em
02, lote 22
da Liberdade, 450
Lagos, Nigéria, e curou a 26ª Bienal de São Paulo, em 2004.
Jean-Michel Basquiat –
Apresenta mais de 330 pe-
Como referência para a escolha do título, Hug menciona a frase em
Obras da Coleção Mugrabi
ças do artista carioca, em
latim Ex Africa semper aliquid novi (da África sempre há novidades a
traz 80 trabalhos do artis-
comemoração ao cente-
reportar), escrita há 2 mil anos por Caio Plínio Segundo. Em seu texto
ta americano, com cura-
nário de seu nascimento.
sobre a exposição, o curador refere-se ao continente como o “berço da
doria de Pieter Tjabbes.
humanidade!” – com direito a exclamação – e ressalta a influência africana sobre manifestações culturais de diversos países, desde o Carnaval
RIO DE JANEIRO
BELO HORIZONTE
brasileiro até a pintura de Pablo Picasso Les Demoiselles d’Avignon
FILE
(1907). “No fundo, somos todos descendentes de africanos”, escreve Hug.
Até 1º/7, Rua Primeiro
DRAGÃO FLORESTA ABUNDANTE
O abre-alas da mostra é a grande instalação Non Orientable Paradise
de Março, 66
Até 30/7, Praça
Lost 1667 (2017), do ganês Ibrahim Mahama, estruturada com caixas
O Festival Internacional
da Liberdade, 450
de engraxar sapatos. Adiante, os trabalhos dividem-se entre os
de Linguagem Eletrôni-
Individual de Christus
quatro núcleos expositivos Ecos da História, Corpos e Retratos, O
ca (File), com curadoria
Nóbrega, com curado-
Drama Urbano e Explosões Musicais. Parte do primeiro eixo, a obra
de Paula Perissinotto e
ria de Renata Azambuja,
Exchange For Life (2017), da artista Ndidi Dike, curiosamente descrita
Ricardo Barreto, exibe
traz obras produzidas
por Hug como “masculina” durante coletiva de imprensa, traz objetos
obras que lidam com a
durante residência ar-
originais do tempo da escravidão. LF
tecnologia e o digital.
tística em Pequim.
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA A GENTIL CARIOCA
35 57
Steve McCurry • Man Runs at Dawn (Brazil 2012)
Representamos Steve McCurry com exclusividade no Brasil
Vila Modernista • Alameda Lorena 1257 casa 2 Jardim Paulista • São Paulo - SP + 55 11 3825 0507 instagram.com/galeria_de_babel facebook.com/galeriadebabel galeriadebabel.com
A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L
POLÍTICA CULTURAL
34
Uma seleção de projetos e editais desenvolvidos pelo instituto e de verbetes da Enciclopédia Itaú Cultural sobre ações culturais e intervenções artísticas de viés público PROJETOS RUMOS Ao completar 20 anos de atuação em 2017, o programa Rumos Itaú Cultural possibilitou ações artísticas e culturais que alcançaram mais de 5,1 milhões de pessoas, selecionou artistas, pesquisadores e produtores, e gerou outros programas, reinventando-se a cada edição. Um dos mais longevos editais públicos do País, contempla projetos sobre arte e cultura brasileira, de qualquer expressão artística ou intelectual, desenvolvidos em qualquer tipo de suporte, formato, linguagem artística ou mídia. O edital 2017-2018 teve mais de 12 mil inscrições e investe cerca de R$ 15 milhões nos projetos selecionados, divulgados em 28/5.
OBSERVATÓRIO O Observatório Itaú Cultural foi criado em 2006 com foco na gestão, na economia e nas políticas culturais. O programa visa estudar e debater esses temas, estimular a reflexão sobre eles em seus vários aspectos e analisar os indicadores nacionais. O Observatório realiza seminários, encontros e palestras entre especialistas de todo o mundo; apoia e estimula a produção de estudos acadêmicos voltados para temas relacionados à gestão cultural, por meio do Rumos Pesquisa; possui uma linha editorial responsável pela publicação de livros e da Revista Observatório, disponível gratuitamente para consulta e download no site; promove pesquisas; organiza informações sobre o campo cultural. A mais recente edição, de número 23, é voltada para a importância das estatísticas e indicadores para o desenvolvimento da economia e da cultura.
+
Links em bit.ly/colecoes-itau-politica-cultural
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
VERBETES
ARTE PÚBLICA Definir uma arte que seja pública obriga a considerar as dificuldades que rondam a noção desse conceito. Em sentido literal, seriam as obras que pertencem aos museus e acervos, ou os monumentos nas ruas e praças, que são de acesso livre. Nessa direção, é possível acompanhar a vocação pública da arte desde a Antiguidade, lembrando de obras integradas à cena cotidiana – por exemplo, O Pensador, de Auguste Rodin (18401917), instalado em frente ao Panteão, em Paris, 1906 – e de outras mais diretamente envolvidas com o debate político. O projeto de Vladimir Tatlin (1885-1953) para um monumento à Terceira Internacional (1920) e o Memorial de Constantin Brancusi (1876-1957), 1937-1938, dedicado aos civis romenos que enfrentaram o Exército alemão em 1916, são exemplos disso. O muralismo mexicano de Diego Rivera (1886-1957) e David Alfaro
No alto, a escultura Praça da Sé, de Ascânio MMM, em exibição no saguão da sede da prefeitura de SP; acima, Ensacamento, do coletivo 3nós3
Siqueiros (1896-1974) pode ser considerado um dos precursores da arte pública em razão de seu compromisso político e seu apelo visual.
ARTE DO NEW DEAL
3NÓS3
A produção artística financiada oficialmente du-
Formado pelos artistas plásticos Hudinilson Jr. (1957-2013), Mario
rante o governo do presidente Franklin D. Roosevelt
Ramiro (1957) e Rafael França (1957-1991), o grupo 3NÓS3 realiza
(1933-1945), nos EUA, com o programa de reformas
ações que questionam os espaços da cidade de São Paulo de 1979,
empreendido para conter a Grande Depressão e
ano em que é fundado, até 1982. (...) Intitulada Ensacamento, a
recuperar a confiança na economia americana, é
primeira intervenção é realizada em 1979, em São Paulo. Segundo
conhecida como a arte do New Deal (1933-1939).
registro do grupo, 68 estátuas públicas da cidade têm as cabeças
(...) Como parte das diversas medidas tomadas para
ensacadas durante a madrugada, como o Monumento às Bandeiras
conter as taxas de desemprego entre os trabalha-
(1953), do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955). No
dores, o governo institui, em 1933, o Public Works of
dia seguinte, os artistas se revezam em ligações para a imprensa
Art Project, extinto no ano seguinte, com a função
e simulam vizinhos indignados com a intervenção de vândalos e
de recrutar artistas para decorar os prédios públicos
questionam os jornais sobre as ações. A intervenção do grupo faz
com “arte de qualidade”. Como qualidade compreen-
alusão à prática comum durante os interrogatórios, em que as
de-se principalmente a capacidade de expressar os
cabeças de presos políticos são cobertas com sacos, induzindo ao
valores nacionais da cultura norte-americana.
sufocamento e garantindo o anonimato dos envolvidos.
FOTOS: ANDRÉ SEITI, ITAÚ CULTURAL/ AGÊNCIA OPHELIA/ 3NÓS3
C O L U N A M Ó V E L / J A I L S O N D E S O U Z A E S I LVA
36
PARADIGMA DA POTÊNCIA: A EXPERIÊNCIA DA/NA MARÉ
Abertura da exposição de arte contemporânea Travessias 5: Emergência (2017), com curadoria de Moacir dos Anjos, no Galpão Bela Maré, no Rio de Janeiro
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
cadas à democratização das linguagens são necessárias para a superação das desigualdades que atravessam a sociedade brasileira. Para isso se faz necessária a superação das representações usuais sobre os espaços periféricos, que se sustentam no que chamamos de Paradigma da Ausência. Graças a ele, os olhares e percepções dirigidos para as favelas, por exemplo, são marcados pelo desconhecimento do que ali existe de fato. A partir de um juízo sociocêntrico, pois construído por grupos que não vivem aquela realidade, apreende-se a favela apenas como um espaço da violência, da carência, da criminalidade, no limite, do caos. Oposto a isso, propomos um olhar centrado no que chamamos de Paradigma da Potência. Nele se revela a capacidade de olhar para as favelas e espaços similares, sem idealização, a partir das práticas sociais dos seus viventes: inventividade, criatividade, sociabilidades, manifestações artísticas/culturais, as diferentes formas de beleza, dentre outros aspectos centrais.
O RECONHECIMENTO DE QUE HÁ CULTURA NOS ESPAÇOS PERIFÉRICOS É EVIDENTE; MAIS QUE ISSO, AS MANIFESTAÇÕES DESSES GRUPOS SOCIAIS NESSE CAMPO – NA FORMA MUSICAL, DE DANÇA, ESCULTURA E OUTRAS SIMILARES – SÃO REFERÊNCIAS IDENTITÁRIAS DO PAÍS.
Todavia, o mesmo não ocorre quando se levam em conta as manifestações de sujeitos das periferias em várias linguagens artísticas. Nesse caso, a representação é marcada por juízos estigmatizantes, sendo afirmada a impossibilidade de um trabalho de “excelência” por essas pessoas. Por isso, seu teatro é denominado “amador”; a pintura é “naïf ”; a literatura é “marginal” e a música é “brega”, ou criminalizada, como no caso do funk. O fenômeno acima descrito ocorre porque a arte dita “profissional” continua sendo uma das principais formas de distinção e legitimação na sociedade contemporânea. Considera-se natural, por exemplo, que um Teatro Municipal, normalmente um prédio de grande valor arquitetônico e alto custo de manutenção – paga pela sociedade por meio de impostos –, seja reservado apenas para espetáculos representados como eruditos, tais como as óperas e os concertos. Mas a utilização desses espaços para obras de autores populares é considerada quase uma heresia. Da mesma forma, a presença desses tipos de linguagens artísticas nos territórios periféricos ainda é muito rara, com muitos considerando que elas não seriam “assimiláveis” pelo povo. Os espaços e as linguagens, portanto, seriam para seres sociais desiguais por natureza. Os exemplos, como é sabido, são muitos. No quadro exposto, evidencia-se que iniciativas dedi-
COMUNICAÇÃO CRÍTICA Nossa experiência na Maré (1)
demonstra o sentido dessa proposição. O primeiro trabalho que fizemos de forma direta no campo artístico foi a construção da Escola Popular de Comunicação Crítica – Espocc, no início deste século. Nela temos formado centenas de fotógrafos, dentre outros profissionais, tendo muitos uma obra de rara qualidade e atuando profissionalmente nesse campo. Eles passaram a construir um olhar sobre a favela, no qual o registro do cotidiano se faz significativo, para além das formas tradicionais que acentuam apenas as situações de violência(2). Nesse tipo de trabalho, a questão da convivência com diferentes sujeitos da cidade é uma estratégia relevante. A experiência da Companhia de Dança Lia Rodrigues demonstra as possibilidades dessa interação: desde quando Lia trouxe sua companhia para a favela – há cerca de 14 anos – numa parceria com a Redes da Maré, ela registra que seu trabalho se tornou ainda mais denso, criativo e engajado. Graça a essa parceria, foi criado o Centro de Artes da Maré – CAM, um espaço de produção e difusão artística de excelência e relevância para a cidade. Ao lado do CAM temos o Centro de Artes Visuais Bela Maré. Ele foi criado na perspectiva de ampliar o acesso e a produção dos moradores das periferias à arte contemporânea e permitir que moradores de diversas partes da cidade (re) conhecessem a favela a partir de um espaço de excelência artística. Ouvimos de muitos a expressão de um sentimento de estranhamento, e mesmo de oposição. Fomos chamados, inclusive, de “elitistas” (sic) por priorizar uma linguagem artística que não teria relação com a realidade da favela e
FOTO: FÁBIO CAFFÉ/ CORTESIA AUTOMÁTICA
38
O Centro de Artes Visuais Bela Maré foi criado para ampliar o acesso e a produção dos moradores das periferias à arte contemporânea. Fomos chamados de “elitistas” por priorizar uma linguagem artística “alienada, alienadora”, que não teria relação com a realidade da favela
que o povo precisa é de educação, saúde ou de preservar suas manifestações de origem popular e não de expressões artísticas “alienadas” e “alienadoras”. Esse tipo de juízo reducionista sobre o que os grupos sociais periféricos necessitam orienta, inclusive, a política pública. Logo, não é casual que um equipamento de custo tão elevado como a Cidade das Artes esteja localizado na Barra da Tijuca, bairro das classes econômicas mais ricas e de difícil acesso para grande parte da população carioca. Felizmente, o sucesso das iniciativas e o envolvimento progressivo dos moradores e moradoras da Maré e muitos outros bairros da cidade nas atividades do Polo Cultural da Maré revelam que o acesso às linguagens artísticas mais diversas é um imperativo para a construção da democracia. De fato, temos clareza de que a política cultural nos permitirá construir elementos que estimulem a percepção integral dos sujeitos da cidade, a importância da convivência na diferença e a superação das diversas formas de violência que se apresentam em nosso cotidiano urbano. Violência como a sofrida por Marielle Franco, que se tornou uma ativista social a partir de projeto educacional desenvolvido por nós, demonstra até onde pode ir a barbárie. E ela, no que concerne aos grupos sociais das periferias, em geral negros, decorre da falta de reconhecimento dos nossos direitos fundamentais, assim como das formas como as hierarquias sociais são reproduzidas. Fazer com que as artes deixem de ser formas de legitimação dessas práticas e sejam postas a serviço da construção de uma cidade mais justa, humana e fraterna é o caminho que temos buscado construir a partir da Maré, para a cidade, para a humanidade inteira.
Acima, Modelo Vivo Maré (2013-2017), de Pedro Évora, maquete em processo que em 70 m 2 já reproduz 70% do complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro; foi montada nas edições 2, 3 e 4 do Travessias em oficinas de arquitetura. (1)
O complexo da Maré é o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, sendo constituído por 16 comunidades, onde vivem 140 mil pessoas. Esse conjunto fica próximo
do Aeroporto do Galeão e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ali nasceram as organizações sociais Observatório de Favelas www.observatoriodefavelas.org.br; a Redes da Maré – www.redesdamare.org.br; e o Instituto Maria e João Aleixo – www.imja.org.br; dentre outras. (2)
Cf. https://youtu.be/Rc7LLI0QDBM
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
FOTO: GABI CARRERA/ CORTESIA AUTOMÁTICA
CO LU N A M Ó V E L / B E N JA M I N S E RO U SS I
40
DEPENDÊNCIAS TÁTICAS
O projeto coletivo e auto-organizado Aparelhamento aconteceu em julho de 2016 na Funarte ocupada, logo após o anúncio da extinção do MinC pelo governo Temer; um leilão foi realizado para usar recursos do mercado da arte para financiar ações de luta, relacionadas ao campo ampliado da arte
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
NÃO EXISTEM POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA NO BRASIL. EXISTEM PROGRAMAS, LEIS DE INCENTIVO, AÇÕES PONTUAIS E EQUIPAMENTOS, QUASE SEMPRE SUCATEADOS, como teatros, museus, arquivos, bibliotecas,
coleções e orquestras; mas raras são as políticas que conseguem atravessar a gestão que as desenhou, que dão conta da dimensão pública da cultura e que abraçam a cultura na diversidade das suas manifestações. Nesse vazio institucional, artistas, iniciativas, equipamentos culturais, produtores e o próprio poder público lutam pela sobrevivência, brigam pelos mesmos recursos e correm atrás das mesmas empresas, dos mesmos doadores e dos mesmos editais – a grande exposição, o museu federal, o espaço autônomo, a companhia de teatro e a orquestra do interior vivem em uma guerra desigual e permanente de todos contra todos. Essa paisagem cultural não está totalmente achatada: existem editais voltados para espaços autônomos ou para a produção de obras, programas que focam em minorias, e leis de incentivo que abrem espaços para a manutenção de acervos, mas essas especificidades são exceções nunca consolidadas, conquistas sempre ameaçadas ou apoios raramente assegurados para além de um ano. No Brasil, nos encontramos na situação curiosa – e invertida – em que o poder público demanda ao setor cultural (que ele mesmo contribui para desorganizar) que se organize sozinho para então sugerir suas próprias políticas – sugestões que serão engavetadas em seguida. Sem condições de planejar suas próprias atividades, e menos ainda de propor um planejamento para o setor como um todo, todos saem precarizados – os artistas em particular, pois as instituições acabam focando mais em suas sobrevivências do que no cuidado ao trabalho artístico, na produção de obras
ou na manutenção dos seus acervos, fugindo, portanto, de suas missões originais. Enquanto, no mundo afora, os espaços de arte trabalham de forma cada vez mais contínua com “artistas associados” em programas plurianuais, os equipamentos culturais daqui seguem como barrigas de aluguel, procurando por conteúdos que não têm condições de conceber nem de produzir. Portanto, salvo institutos criados por bancos ou os centros culturais do Sesc, somos todos espaços independentes! Não existem distinções funcionais ou políticas públicas que diferenciam os artistas (agora microempreendedores individuais ou MEI) das instituições de pequeno, médio ou grande porte, públicas ou não. Por isso, o espaço independente é o melhor lugar para entender as tensões que atravessam as nossas políticas culturais. O que é um espaço independente? É um espaço que não tem dependências fixas (convênio com o poder público, endowment, venda regular de ingressos ou de obras), mas que tem de reinventar constantemente as suas dependências estratégicas para existir. Por isso, é melhor falar em “espaços autônomos” do que em “espaços independentes”, pois a questão é menos deixar de depender e mais saber de quem e como depender. É tecendo essas dependências táticas, criando alianças e estabelecendo associações que, apesar de tudo, e especialmente do poder público, surgem políticas culturais de guerrilha. Fazemos muito mais do que apenas lançar políticas de amigos ou mandar PDFs de apresentação para captar recursos via leis de incentivo. Criamos outras formas de trabalhar e de nos organizar, reduzindo as diferenças salariais, multiplicando as receitas (ou funcionando sem receitas mesmo), extrapolando os limites das artes, abrindo-se para outras formas de engajamento, reinventando as relações com um público que deixa de ser alvo para se tornar participante ativo, mudando nossa relação com o tempo e com o espaço, abolindo as grades de programação e os horários de funcionamento, construindo algo comum (na ausência de algo público), acolhendo o que outros recusam e tentando adaptar as nossas estruturas às práticas artísticas vigentes. Dessa forma, de um modo silencioso e na ausência de políticas públicas claras, os espaços autônomos tentam inventar outras instituições que não parecem fábricas ou templos de consumo, mas onde o pensamento crítico pode circular, instaurando, assim, outros mundos possíveis. Mas essa luta é árdua e muitas vezes apenas conseguimos reinventar... a roda. Por isso, e para garantir que o setor possa ser criativo sem ser necessariamente produtivo, seguir frágil sem ser precário, aberto sem ser diluído, não deixaremos de lutar por políticas culturais públicas que sejam criadas a partir das nossas práticas e das nossas especificidades, pois, antes de ser uma mercadoria ou um setor econômico dinâmico, a cultura é um direito que há de ser assegurado.
FOTO: BENJAMIN SEROUSSI
CO LU N A M Ó V E L / O L I V I A A R D U I
42
ACORDO DE CONFIANÇA? QUEM SÃO OS PROTAGONISTAS DO TABULEIRO QUE É O SISTEMA DAS ARTES? QUE POSIÇÃO E MOVIMENTAÇÕES CABEM AOS ARTISTAS, CURADORES, INSTITUIÇÕES, GALERIAS E COLECIONADORES NESSE JOGO? Quais
são as implicações por trás dos processos de legitimação, disseminação, mediação, exposição e valorização de obras de arte? Esses são alguns questionamentos que levaram à realização da exposição Acordo de Con-
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
fiança (Biblioteca Mário de Andrade, SP, 2017), que realizei com Jacopo Crivelli Visconti. A mostra propunha suscitar uma reflexão sobre os bastidores desse sistema das artes internacional, as articulações entre seus agentes, nas quais muitas vezes se confundem o público e o privado, as esferas pessoais e as profissionais. Entraram em ressonância trabalhos que envolvem pactos e acordos secretos ou relações e genealogias encobertas.
com destaque para o seu protagonismo no MoMA-NY. RSVP (1939), de Alessandro Balteo Yazbeck, também aponta para a maneira como os interesses dessa família se sobrepunham à agenda do museu. Yazbeck relaciona declarações de Nelson Rockefeller e do presidente Franklin Delano Roosevelt sobre um convite fictício elaborado em 1939 por Frances Collins, então responsável pelo setor de publicações do museu nova-iorquino, que convidava para uma abertura semipública do “museu da Standard Oil”. No seu código de ética para os museus, o coletivo Guerrilla Girls também chama atenção para conflitos de interesse que se insinuam por trás de agendas institucionais e elenca uma série de práticas questionáveis – que não deixam de ser corriqueiras. Entre elas, empresas que esperam melhorar sua imagem patrocinando exposições ou programas de museus prontos a fazer mais concessões do que deveriam; indivíduos que se utilizam de sua influência ou das facilidades decorrentes de seu cargo para valorizar a própria coleção ou ainda para sustentar (des)afetos (abusivos). PROVOCAÇÕES As relações de poder assimétricas entre
Questionamento público de Nelson Leirner ficou conhecido como o Happening da Crítica (1967)
Abrindo a exposição com um diagrama rizomático de intrincadas relações políticas, a obra NuganHand Bank Sydney (1974-1980), de Mark Lombardi, expõe empresas e figuras públicas envolvidas em escândalo do banco australiano. Entre eles, o governo da Líbia, a máfia, Frank Sinatra e a família Rockefeller, que fez fortuna principalmente no ramo do petróleo, com a companhia Standard Oil, e que teve uma grande influência no setor cultural,
agentes do meio artístico estão na mira do happening crítico de Nelson Leirner. Incorporada à exposição, a nota de jornal em que o artista questionava a decisão do júri de um salão de admitir seu porco empalhado e enjaulado. Quase todos os membros do júri reagiram à provocação de Leirner. A precariedade das relações de trabalho também é o cerne da ação 5 Weeks, 25 Days, 175 Hours, de Maria Eichhorn, que consistiu na interrupção do funcionamento de um espaço expositivo público por todo o período da exposição, encarregando os funcionários da tarefa de não trabalhar. Provenientes de contextos diversos, os trabalhos ganham novos contornos quando pensados em relação à realidade brasileira, no que diz respeito à fragilidade e desregulamentação das relações de trabalho e à falta de políticas culturais sólidas, que são preenchidas pela iniciativa privada, facilitando os conflitos de interesse. A curadoria buscou praticar a mesma transparência, em relação aos processos da própria exposição, e colocou suas cartas na mesa. Uma vitrine expôs correspondências e registros relativos à produção e montagem: trocas de e-mails com a instituição, plantas, termos de empréstimo, um orçamento geral. Desde o princípio, o contexto foi exposto: a presença de uma maioria de obras de coleções particulares em um espaço público. Uma provocação que funcionaria como gatilho para iniciar um debate sobre essas complexas relações? Ao menos era o que se esperava.
FOTO: REPRODUÇÃO
43
C O LU N A M Ó V E L / PAU L A A L Z U G A RAY
44
EDLA MÚLTIPLA A escritora Edla van Steen, falecida em abril passado, em um de seus papéis pioneiros: editora de obras de arte em série; abaixo, o anúncio da Múltipla, galeria dirigida por ela nos anos 1970, publicado nas três edições da histórica revista Malasartes
CADA PERSONAGEM COM A SUA SINTAXE. ASSIM A ESCRITORA EDLA VAN STEEN DEFINIA O EXERCÍCIO DE CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS DE SEUS CONTOS – gênero ao qual se dedicou
em mais de 50 anos de atividade literária. “Em cada conto, uma linguagem diferente: nunca me preocupei em ter meu ‘estilo’. Sempre dei, e dou, preferência a encontrar alguma coisa coerente com o personagem ou a situação”, escreveu ela em um breve texto autobiográfico, aos 72 anos. Algo similar poderia ser dito sobre as personas e formas de expressão experimentadas por Edla van Steen ao longo da vida (1936-2018). Acima de tudo, escritora, sim, premiada e inventora de estilos. Em um dos últimos livros publicados, Instantâneos (2013), respondeu aos hábitos de escrita telegráfica que surgiram com as novas mídias sociais. Foi atriz, roteirista, dramaturga e editora de oito coleções literárias. Mas pouco se sabe de sua relevante atuação na arte contemporânea, para a qual ela mesma encontrou uma definição original: editora de obras de arte em série. Em sua passagem pelas artes visuais, Edla van Steen foi pioneira. Associada à artista Teresa Nazar, dirigiu, de 1972 a 1977, a Múltipla, primeira galeria de arte brasileira dedicada a múltiplos, peças originais idênticas, atreladas a um conceito essencialmente político: a democratização da arte através da multiplicação das obras, em que os custos de produção são diluídos na tiragem. Uma atitude “altamente polêmica, que instaurou um olhar angular diferente para SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
se apreciar e consumir arte”, segundo Maria Bonomi, em texto de 2002 para os 30 anos da galeria. “Estava-se mexendo com os alicerces da tradição empedernida, onde obra boa é obra única.” A exposição inaugural Múltiplos Brasileiros (1972) trazia trabalhos de uma turma da experimentação pesada que incluía Aloisio Magalhães, Amélia Toledo, Amílcar de Castro, Anna Bella Geiger, Claudio Tozzi, Edo Rocha, Flavio Império, Lothar Charoux, Luiz P. Baravelli, Mario Cravo Neto, Nicolas Vlavianos e Nelson Leirner, com nada menos que os múltiplos da série Homenagem a Fontana, de 1967. Depois viriam mostras individuais de Fernando Lemos, Tomoshigue, Fayga Ostrower, Morellet e Marcelo Nitsche, entre outros. Entre os estrangeiros, o mexicano José Luis Cuevas, “geração da ruptura” com o muralismo, e o franco-argelino Fred Forest. “Edla fez minha primeira exposição no Brasil, em 1973, na Múltipla, no Brooklin, bairro pelo qual circulei alguns meses antes da minha Caminhada Sociológica”, conta Forest, sobre o projeto desenvolvido para o MAC-USP, na gestão de Walter Zanini. A escritora foi uma das principais agentes de um período crucial, em que a arte brasileira se abria e estabelecia vínculos concretos com o mercado. São Paulo já estava repleta de galerias de arte, mas cabe apontar que a Múltipla, consciente da importância de seu papel nesse sistema, foi a única galeria anunciante nos três números da revista Malasartes. “Cada escritor tem sua forma própria, sua lógica interior. E, também, sua lógica anterior”, escreveu Edla van Steen, que criou sua lógica com invenção, entusiasmo e muita originalidade. FOTOS:REPRODUÇÃO
49
CO LU N A M Ó V E L / A F O N S O LU Z
46
ACERTOS E FRACASSOS DO GOVERNO NA ÁREA DA CULTURA
DUAS DÉCADAS DE CONQUISTAS PÚBLICAS IMPRIMIRAM CONTINUIDADE VIRTUOSA NOS ANOS FHC E LULA. CAMINHAVA-SE PARA QUE O BRASIL ALCANÇASSE EQUIVALENTE BÁSICO E ATENÇÃO NECESSÁRIA, COMO PAÍSES PRÓSPEROS TRATAM A ÁREA DA CULTURA, como Polí-
tica Pública. Já nesta década Dilma/Temer, programas e instituições parecem retomar o fraco dinamismo da era Collor, talvez até pior. Com o fim dos governos militares, criam-se oportunidades de mudanças estruturais, Celso Furtado altera em parte o ambiente problemático de nação periférica e subalternidade cultural. Desde muito o Brasil perde inestimáveis acervos; seus artistas estão abandonados a regimes desumanos de sobrevivência. Nos anos Francisco Weffort (FHC) desconstrói-se o modelo de ação cultural centralizadora, com estratégias de alavancar empreendedores e reduzir a intervenção do Estado, implementando mecanismos de renúncia fiscal, sob ideologia de “mecenato privado” (com dinheiro público). Tentou-se algo disso nas gestões Sarney e Collor, de forma irresponsável, sem se desdobrar minimamente. Weffort vale-se de influxo multicultural e pautas da Unesco, vaga bandeira de diversidade, conceituando operações de diversificação do investimento público para induzir novos agentes culturais no mercado e profissionalizar o setor de atividade. Assume o modelo empresarial de negócios, no qual consultores/atravessadores ordenam oferta e demanda. Leis de incentivo geram enorme economia desde então, com adesão das grandes empresas ao mecanismo fiscal, produzindo vasta classe de operadores da Lei Rouanet, envolvendo marqueteiros, advogados e técnicos numa Babel de projetos culturais. Assim inflaciona também o mercado de serviços culturais com robusta expansão de “gestores” vivendo de sazonalidades e substituindo instituições inexistentes, com precarização e descontinuidade nos serviços públicos pelo desmonte de tradicionais museus, centros culturais, bibliotecas, teatros, salas de cinema, galerias e equipamentos congêneres; “plataformas antigas” convertidas para reSELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
À dir., cena da cerimônia de entrega do Prêmio Camões 2016 ao escritor Raduan Nassar; depois de um discurso de protesto político do escritor, que havia sido contrário ao impeachment de Dilma, ele, ao lado do embaixador de Portugal no Brasil, Jorge Cabral, assiste à reação do ministro da Cultura, Roberto Freire, que em vez de ler o discurso que trazia impresso, disse entre outras coisas ser “fácil fazer protesto em momentos de governo democrático como o atual”, ao que a plateia reagiu com gritos e vaias
ceber avulsos projetos externos. O MinC transformou-se em agência de aprovação de propostas, consumadas ao acaso, numa loteria de cartas marcadas pelos departamentos de marketing, mais interessados em propaganda do que em sua “responsabilidade pública” de doação. Na onda das agências reguladoras de FHC cria-se a Ancine e outra lei fiscal só para cinema, exacerbando a renúncia para o audiovisual (em substituição à Embrafilme), redesenhando o antigo balcão de negócios. O desproporcional investimento a financiar o renascimento do “cinema nacional” deixa outras áreas de fora da atenção pública. Quanto ao patrimônio cultural, Weffort tentara converter a gestão dos bens históricos e artísticos em parte do desenvolvimento urbano sob a palavra de ordem “revitalizacão” de centros históricos (misto de restauração e gentrificação), através de empréstimo do BID, o Programa Monumenta, que sairia do papel apenas no governo Lula. Já o Iphan, visto como resíduo autoritário-estatal, foi desmobilizado para sobreviver em atividades raquíticas, apenas para chancelar a circulação de bens históricos-arqueológicos e atividade acadêmica como compensatória aos intelectuais, apenas a distribuir prestígio e encampar nomes universitários de estima do governo, mas fundamentalmente sem função.
Nos anos FHC houve enorme efervescência do setor de arte visual, emergindo megaexposições e equipamentos culturais sem acervos, geridos como agências bancárias (BB, Santander, Itaú, Caixa etc.). Atividades educacionais e edição de catálogos ganhavam objetivo publicitário, embora pela primeira vez criando um mercado editorial no setor. Exemplo desse momento, a gigantesca operação do Banco Santos e da BrasilConnects toma conta da Bienal e do Ibirapuera, agenciando a internacionalização com inédita polarização de recursos e parâmetros fantásticos, por vezes em obscuro comércio de arte e antiguidades, eivada de megalomania insustentável (alguns diriam criminosa). A Funarte, das melhores medidas do período de abertura e de transição nos 1980, foi mantida de maneira vegetativa, depois de sua recuperação apenas num jogo de cena, mas sem conseguir reverter o desmantelamento de quadros, funções e atividades que Collor realizou quando por decreto a extinguiu (assim como quase todo o MinC, redesenhado em uma secretaria paupérrima, muito semelhante ao que tenta o governo Temer). A gestão Weffort teve verdadeiros méritos, descontado o irresponsável apego a modelitos “neoliberais”, pois na estabilidade de oito anos o MinC pôde lentamente acomodar traumática experiência de esfacelamento e desmo-
bilização do Estado, o que se vivera em governo anterior, quando a área cultural fora violentamente tratada como desnecessária e perdulária, extirpada dos encargos públicos, destruindo iniciativas proveitosas do ciclo de Aloísio Magalhães até Celso Furtado (fim dos 1970 para os 1980). MEDIDAS ESTRUTURANTES Coube a Gilberto Gil, no curso do governo Lula, uma transição engenhosa. Com uma equipe com experiência em vários universos da arte, das novas tecnologias sociais e experimentalismos cibernéticos, trabalhou nos anos 2000 para construir instrumentos de última geração e alcançar capilaridade no contato com os cidadãos, provendo injeção de recursos em pequenas quantidades e em pontos-chave do campo cultural. Assim radicalizava a perspectiva da Unesco de Diversidade Cultural, destacando que ele mesmo foi voz ativa e liderança na construção do novo Tratado assinado em 2005, marcando a necessidade de promover o reconhecimento e dar suporte mínimo aos pequenos agentes culturais (fora ou na periferia dos centros urbanos), coletivos de artistas, núcleos independentes, comunidades tradicionais, jovens produtores e formações colaborativas. O impacto das políticas culturais alcançou todo o território brasileiro, sob a palavra de ordem de Cultura Viva e Pontos de Cultura. Outra medida estrutuFOTO: AGÊNCIA BRASIL
48
rante foi aperfeiçoar a regulação pública dos mecanismos e benefícios fiscais (evitando distorções, desvios de finalidade e irracionalidade predatória). Tal estratégia tinha como meta tornar equivalente o montante destinado à inciativa privada e o investido publicamente pelo próprio MinC (por meio do Fundo Nacional de Cultura), contudo nunca se chegou a um oitavo do que se dotava anualmente à iniciativa privada. Mesmo com poucos recursos e iniciativas ousadas, transformou-se o modelo de investimento direto por meio de editais de seleção e concursos públicos, em que a sociedade civil e os institutos independentes, até aldeias indígenas, poderiam apresentar projetos e receber investimentos diretos. A mudança de estatuto do MinC e o redesenho dos institutos (com destaque para a restruturação do Iphan e a criação
temporânea, o que, juntamente com a ascendência simbólica do próprio artista que Gil encarnava, produziu momento de grande visibilidade e aderência para o Brasil, principalmente em pautas de direitos autorais e coletivos, assim como de usos de novas tecnologias e formações em redes. Nesses anos, a circulação internacional de um soft-power cultural, com o apoio decisivo do Itamaraty, fez com que um ambiente de oportunidades se abrisse. Já a falta de política pública que marca os últimos anos tem causas e consequências que não se analisariam pelos influxos da política cultural. São injunções e fracassos de um desenvolvimentismo de matriz neoautoritária, seu apego tecnocrático ao controle social e sua insensibilidade para a inovação difusa no tecido sociocultural. Dilma implodiu o MinC ao submeter sua agenda ao Programa de Aceleração do Crescimento, dando força ao destempero nacional-popular colonizado pelo espírito militante e a disputa fratricida na máquina administrativa. Os anos Temer foram marcados pela tentativa de extinguir o MinC, golpe que não vingou. Nesses oito anos, talvez as duas imagens mais célebres do MinC sejam as de Dilma e Ana de Hollanda inaugurando o retrato de Romero Britto no Planalto e Roberto Freire a usurpar a função de ministro da Cultura ao vilipendiar Raduan Nassar na entrega do Prêmio Camões no Museu Lasar Segall. Choca quando nos damos conta de que oito personagens sentaram na caA presidente Dilma Rousseff (à dir.) e a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, recebem Romero Britto e sua irmã Roberta deira de ministro sem con(à esq.) no Palácio do Planalto, em 2011, para inauguração de um retrato de Dilma feito pelo artista seguir fazer muito além de ridículos discursos, quando não destruir cada um o legado do Instituto BR de Museus) foram uma marca de Gil, que de seu antecessor, embora alguns aspectos estruturais das permitira pela primeira vez um orçamento público fora da gestões FHC/Lula ainda se vejam em funcionamento inercial. gestão pessoal do ministro, passando os recursos a cumprir Um dos grandes problemas nessas décadas de democratização planejamento e meta de alcance na execução de projetos e parece ser a incapacidade de o governo federal reinventar a Fuprogramas, descentralizados através de uma rede MinC. A narte. Um grande buraco de política cultural no Brasil, onde as implantação de secretarias pautadas pela transversalidade artes performáticas (teatro, dança, música, circo e afins) e as somada ao “empoderamento” de institutos setoriais, estruartes visuais (arte contemporânea, arquitetura, design, moda turados para dar suporte a demandas emergentes e aos cie afins) continuam sendo tratadas miseravelmente ao sabor dadãos, estes que, com acesso à internet, passavam a poder do consumo privado e ao capricho do marketing corporativo. monitorar programas federais. O MinC com Gil tinha uma Se houver futuro para a política cultural e a vida pública no estrutura como outras áreas de atividade do Poder ExecutiBrasil, talvez isso comece com a reinvenção da Funarte. Ou vo (como Educação, Saúde etc.), monitorava impactos e avaquem sabe até com a criação de duas delas, uma fundação liava o alcance de políticas, o que envolvia o IBGE e a Capes. que qualifique os palcos e espetáculos performáticos e ouAlém disso, desenvolveu-se uma plataforma de exportação de tra que permita a cada indivíduo cultivar seu olhar sensível produtos culturais com a Apex. O conjunto de medidas repersobre os objetos e o espaço da cidade. Oxalá aconteça! cutia mundialmente como modelo inovador e de potência conLeia
a íntegra deste texto em www . select . art . br / acertosefracassosdo M in C.
FOTO: AGÊNCIA BRASIL
Leia o regulamento e inscreva-se entre 1º de junho e 31 de julho de 2018 no site www.premio-select.com.br
A arte como pivô na formação do conhecimento e do pensamento crítico A segunda edição do Prêmio seLecT de Arte e Educação acontece em setembro de 2018 no CCBB-Brasília. Serão concedidos dois prêmios em dinheiro para as categorias ARTISTA e FORMADOR para projetos realizados em todo o Brasil no biênio 2017-2018
Patrocínio
Parceria
Realização
MINISTÉRIO DA CULTURA
GOVERNO FEDERAL
FOGO CRUZADO
50
QUAIS AS MAIORES REALIZAÇÕES E FRUSTRAÇÕES DOS MINISTROS DA CULTURA?
JUCA FERREIRA 30/7/2008 A 31/12/2010 Em especial nos dias de hoje, observo a experiência que tive no MinC a partir das transformações históricas que se iniciaram com a eleição de Lula. Fomos parte disso. A missão maior que considero termos entregado para o País foi um reposicionamento da cultura e do nosso Ministério diante de um projeto de desenvolvimento de país. Colocamos a cultura no patamar das políticas públicas mais importantes. Deixamos uma instituição que tinha como prática a discussão sobre a política cultural com todos os segmentos culturais. Uma instituição com indicadores e planejamento. Nossas frentes de trabalho foram muitas, a Lei Cultura Viva, a cultura digital, a política para o cinema e o audiovisual, nossos esforços com o ProCultura e com a atualização da legislação do direito autoral, a construção de uma Política Nacional para as Artes, o Vale-Cultura. É claro que ainda havia muito por fazer e, de fato, é frustrante, por exemplo, ver que não conseguimos concluir a modificação da Lei Rouanet, que segue deixando nas mãos dos departamentos de marketing o direcionamento dos incentivos fiscais. Mas é ainda mais frustrante ver o Ministério que foi estruturado, do ponto de vista do orçamento e de um pensamento que compreenda o papel da cultura, sua dimensão simbólica e econômica, sendo desmantelado. Foi pela mobilização da classe artística e cultural que conseguimos manter o MinC. E, embora isso tenha sido uma vitória, é preciso não perder de vista o que vem sendo feito das políticas para a cultura. SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
O Brasil criou um ministério específico para a Cultura apenas em 15 de março de 1985, durante o governo José Sarney. De 1953 a 1985, a área estava a cargo do Ministério da Educação e Cultura (MEC). O mais famoso titular do MinC foi Gilberto Gil, que assumiu a função no primeiro governo Lula, em 1º de janeiro de 2003, e pediu demissão em 30 de julho de 2008, já no segundo governo Lula, alegando dificuldades em conciliar as funções governamentais com a carreira artística. Foi uma turnê internacional a razão alegada pela assessoria de Gilberto Gil para ele não participar desta matéria. Seu sucessor foi o também baiano Juca Ferreira, que vinha atuando como secretárioexecutivo do MinC desde o início da gestão de Gil. Já no governo Michel Temer, quando o ministro da Cultura era Juca Ferreira (em segunda gestão), o MinC foi extinto. Deixou de existir de 12 a 23 de maio de 2016, para voltar sob comando de Marcelo Calero, que bateu de frente com o então ministro de Governo Geddel Vieira Lima, que pressionava o Iphan para aprovar um edifício de 30 andares em área tombada em Salvador, no qual Geddel havia comprado unidade. Calero caiu, mas Geddel não apenas caiu como já foi preso duas vezes em 2017, sendo a última depois de a polícia apreender mais de R$ 51 milhões em dinheiro num outro apartamento ligado a ele. A seguir, o depoimento dos titulares da pasta nos últimos dez anos.
ANA HOLLANDA 1º/1/2011 A 13/9/2012 Considero o maior avanço do MinC em minha gestão o grande passo dado em relação à economia criativa. Criamos a Secretaria de Economia Criativa – SEC. Apresentei o projeto Plano Brasil Criativo à presidenta Dilma Rousseff, que o aprovou. Entendo que este país de dimensões continentais, exuberância e pluralidade culturais frutos de heranças de tradições nativas indígenas, africanas, ibéricas e de vários outros povos que para cá vieram, merece uma atenção especial, no mínimo, para protegê-lo da diluição provocada pela globalização e para garantir a modernização e sustentabilidade do mundo da cultura. Uma das iniciativas que poderiam já estar colaborando para a sustentabilidade do mundo da cultura seria o grande portal do MinC, onde haveria um mapeamento do que existe em todos os setores da produção cultural, quem faz o que, onde e como pode ser encontrado. Sobre frustração, reconheço que esse programa descrito acima, ambicioso, necessário e absolutamente viável, tenha sido interrompido por meus sucessores.
FOTOS: RICARDO LAFF/ PAULO ROSA
51
MARTA SUPLICY 13/9/2012 A 11/11/2014 52
Considero legado a implantação e a aprovação de leis estruturantes. Relatora no Senado, implantei o Sistema Nacional de Cultura. Articulei a aprovação das leis do Ecad e da PEC da música, reivindicações do mercado produtor; a do Vale-Cultura e a do Programa Cultura Viva. Ampliamos os espaços, a gestão e as oportunidades para o povo brasileiro criar e se expressar. Já temos, no País, 148 unidades dos CEUs das Artes (inaugurados até dezembro passado). Lançamos inéditos editais para produtores e criadores negros; mulheres; LGBTs. Por fim, soft power, projetando a nossa cultura para além de estereótipos. Tivemos a exposição Guerra e Paz, de Portinari, no Grand Palais de Paris; a homenagem, ao Brasil, em feiras de livros que movimentam o mercado mundial, a principal, em 2013, em Frankfurt. O fortalecimento do mercado audiovisual (lançamento do programa Brasil de Todas as Telas) e o apoio à economia criativa (Rede Incubadoras Brasil Criativo). A frustração foi não aprovar o Procultura, em substituição à Lei Rouanet, debate que perdura, tamanha a complexidade.
JUCA FERREIRA 1º/1/2015 A 12/5/2016 (ver depoimento à página 52) SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
MARCELO CALERO 24/5/2016 A 18/11/2016 A maior realização, no contexto da reorganização da estrutura do ministério que fizemos nos dois primeiros meses de gestão, criamos o Programa de Valorização dos Servidores de Carreira. Por meio desse programa, mais de 40 servidores de carreira do Ministério da Cultura foram selecionados para ocupar cargos de liderança na estrutura do MinC. O processo contemplou a análise de currículos e entrevistas, e foi capaz de identificar muitos talentos até então pouco aproveitados. O programa foi único na Esplanada e alguns ministérios chegaram a pedir o modelo que usamos, embora eu não tenha notícia de que ele tenha sido efetivamente aplicado. Combatemos com isso o aparelhamento político da pasta e demos valor a servidores que prestaram concurso para estar ali. A maior frustração: tínhamos um projeto muito robusto para as artes, que era a transformação da Funarte em agência, a Anarte, com uma modelagem institucional que permitisse uma política efetiva de valorização das artes no Brasil, de modo semelhante ao que já ocorre com o Audiovisual por meio da Ancine. Já havia, inclusive, rascunhado uma Medida Provisória que a criava. Essa foi, sem dúvida, minha maior frustração, que deixei na gaveta quando deixei o ministério no episódio Geddel-La Vue.
ROBERTO FREIRE 18/11/2016 A 22/5/2017 A grande realização foi a nova Instrução Normativa da Lei Rouanet, que ampliou os mecanismos de controle e fiscalização. Era algo reivindicado tanto pelo meio cultural quanto, principalmente, pela sociedade brasileira. Passou a haver um acompanhamento mais detalhado e rigoroso da utilização do dinheiro público. Sempre tivemos clareza de que, com maior fiscalização e controle, aproximaríamos ainda mais a população dos projetos culturais aos quais ela deve ter acesso. Uma Rouanet mais transparente significa uma gestão mais eficiente e mais cultura para todos. É evidente que deve ser feita uma avaliação permanente a respeito dessas mudanças, onde elas funcionaram adequadamente e de que forma as falhas devem ser corrigidas. De qualquer forma, conseguimos retirar a Lei Rouanet das páginas policiais que noticiavam escândalos de corrupção, infelizmente tão comuns também nessa área em governos anteriores. Não tive nenhuma grande frustração, até porque permaneci à frente do ministério por um curto período. Não houve tempo para isso.
SÉRGIO SÁ LEITÃO DESDE 25/7/2017 Meu objetivo principal à frente do Ministério da Cultura é fazer com que o poder público e a sociedade brasileira passem a encarar a produção cultural como um dos principais ativos do País; e a política pública de cultura, como um eixo fundamental da política de estímulo ao nosso desenvolvimento, com alto impacto sobre a geração de renda, emprego, inclusão e arrecadação de impostos. Estamos tomando uma série de medidas para isso, além da campanha #CulturaGeraFuturo. O Brasil tem tudo para ser a grande potência cultural e criativa do século 21, como os EUA foram no século 20. Podemos nos tornar um dos cinco maiores mercados do mundo em audiovisual, games, música, artes visuais e outras áreas da economia criativa. É preciso um novo olhar sobre a cultura e a política cultural; e uma priorização à altura. Se conseguir fazer com que a agenda da economia criativa seja incorporada em definitivo à agenda do desenvolvimento do País, será uma realização. Não tenho propriamente uma frustração, mas um incômodo. Estamos melhorando muito a gestão e a performance do MinC, mas o que o Estado brasileiro precisa mesmo é de uma reforma radical, para custar menos e fazer muito mais. O custeio é alto e o que sobra para investimento, proporcionalmente pouco. A eficiência e a eficácia poderiam ser bem maiores. FOTOS: PATRICIA LINO/ ANA NASCIMENTO/ DIVULGAÇÃO/ DIVULGAÇÃO
53
MUNDO CODIFICADO
OS NÚMEROS DA CULTURA Em 2012 e 2013, o MinC tinha 0,1% do Orçamento da União, valor que caiu para apenas 0,06% este ano; a Lei Rouanet atingiu seu auge de captação em 2010 M Á R I O N ST R EC K E R E LUA N A F O RT ES
A RESPONSABILIDADE DO MINISTÉRIO DA CULTURA (MINC), SEGUNDO SUA PRÓPRIA DEFINIÇÃO, É PRESERVAR O PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARQUEOLÓGICO E ARTÍSTICO NACIONAL, além de desenvolver políticas de fomento e incentivo
às letras, artes, folclore e demais formas de expressão da cultura do País. Mas a fatia que cabe ao MinC do Orçamento da União é de modestíssimo 0,06%, com dotação de R$ 2 bilhões este ano. Por esse motivo, o uso das leis de incentivo fiscal, em particular da Lei Rouanet, é tão importante para o setor. O auge da captação via Lei Rouanet foi de R$ 1,457 bi em 2010, em valores da época. Ano passado, a captação foi de R$ 1,193 bilhão e 60% foram gastos em artes cênicas e música. Artes visuais ficaram com 13,5%. Os gráficos a seguir mostram como o recurso tem sido usado.
0,118
ORÇAMENTO DO MINC É O MENOR EM 10 ANOS
0,1
0,078
PORCENTAGEM DO MINC NO ORÇAMENTO DA UNIÃO
0,060
0,05 2008
Fonte: Ministério da Planejamento https://www1.siop.planejamento.gov.br/acessopublico/ SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
2013
2018
EVOLUÇÃO DO USO DA LEI ROUANET NOS ÚLTIMOS 25 ANOS
10 bi 9 bi
valor apresentado valor aprovado
8 bi
valor apoiado
7 bi 6 bi 5 bi 4 bi 3 bi 2 bi 1 bi R$ 0 1993
1998
2003
SP RETÉM A MAIOR PARCELA DA CAPTAÇÃO DA LEI ROUANET (2017)
2008
2013
2017
QUANTIDADE DE PROJETOS DE ARTES VISUAIS NA LEI ROUANET POR REGIÃO (2017)
600 mi.
L SU 400 mi.
SUDESTE DOMINA
87,60%
200 mi. 100 mi. R$ 0
FONTE: MINC/ VERSALIC/ SALICNET
ESTE NORD
6,61% 2,93%
CENTRO-OESTE
NORTE
2,83% 0,03%
LEI ROUANET POR ÁREA EM CAPTAÇÃO (2017) 56
ARTES CÊNICAS 451 mi.
38,0% ARTES VISUAIS 160 mi.
13,5%
PATRIMÔNIO CULTURAL 148 mi.
MAIORES PROJETOS DE ARTES VISUAIS DA LEI ROUANET (1993-2008)
MÚSICA 256 mi.
21,5% HUMA NIDADES
12,5%
ÁUDIOVISUAL 79 mi.
MUSEUS E MEMÓRIA 8 mi.
6,7% 0,8%
R$ MILHÕES CAPTADOS
PROJETO
83 mi.
7,0%
30 a Bienal de São Paulo (2014)
22,9
Itaú Cultural Plano Anual (2012)
22,0
Inst. Tomie Ohtake Plano Anual (2016)
21,4
32 a Bienal de São Paulo (2018)
20,7
31 a Bienal de São Paulo (2016)
17,8
Inst.Tomie Ohtake Plano Anual (2017)
16,9
Inst. Tomie Ohtake Plano Anual (2015)
16,2
Inst. Tomie Ohtake Plano Anual (2014)
15,4
Itaú Cultural Plano Anual (2015)
14,7
Masp Plano Anual (2015)
14,5
Masp Plano Anual (2016)
14,2
GASTOS CONCENTRADOS EM EXPOSIÇÕES LEI ROUANET PARA ARTES VISUAIS (2017)
EXPOSIÇÕES DE ARTES VISUAIS
PROJETO DE FOMENTO À CADEIA PRODUTIVA ARTE VISUAL
1,8%
92,9%
PROJETO EDUCATIVO DE ARTES 1,8% VISUAIS AÇÕES EDUCA TIVO -CUL TURAIS
1,2% DESIGN
MO DA
FORM. TÉCNICA ARTÍS TICA
0,8% 0,7% ARTES PLÁSTICAS
FOTO GRAFIA
0,1% 0,3% 0,5%
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
MAIS CAROS PROJETOS DA LEI ROUANET EM REAIS (1993-2018)
36,2 milhões Fundação Roberto Marinho / Museu da Imagem e do Som - MIS/RJ (2010)
30,6 milhões Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2009)
35,6 milhões Assoc. Amigos do Teatro Municipal RJ / Theatro Municipal RJ -
29,5 milhões Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2011)
Restauração Interna (2008)
28,5 milhões Org. de Desenvolv. Cultural e Preservação Ambiental - AMA Brasil Restauro do Casarão do Valongo - Santos (2008)
29,5 milhões Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2008)
27 milhões Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2007)
28,3 milhões Associação Cultural do Arquivo Nacional / Restauração do Conjunto Arquitetônico do Arquivo Nacional (2000)
25,5 milhões Fundação Roberto Marinho / Estação da Língua Portuguesa (2001)
26,6 milhões Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2010)
23,2 milhões BrasilConnects Cultura / Brasil 500 Anos Artes Visuais: Exposição e Itinerância (1999)
22,1 milhões
22,9 milhões
Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2002)
Fundação Bienal de SP / 30ª Bienal de São Paulo (2012)
22 milhões
22,7 milhões
Instituto Itaú Cultural / Plano Anual de Atividades (2012)
Fundação Bienal de SP / 29ª Bienal de São Paulo (2010)
EXPOSIÇÕES DE ARTE QUE MAIS CAPTARAM LEI ROUANET (2017)
PROJETO
R$ CAPTADOS
Fundação Bienal de São Paulo / Plano Anual (2018)
9.8 milhões
Jean-Michel Basquiat - Obras da Coleção Mugrabi
8.5 milhões
Instituto Tomie Ohtake / Plano Anual (2017)
8.3 milhões
Masp / Plano Anual (2017)
6.5 milhões
Fundação Bienal de São Paulo / Plano Anual (2017)
6.4 milhões
Basquiat - Itinerância
5.2milhões
A Cidade de Manaus - História, Gente e Cultura
4.4 milhões
FILE Exposição de arte contemporânea: arte eletrônica na Época Disruptiva E FILE SOLO
3.1 milhões
Ex Africa
3.1 milhões
Instituto Tomie Ohtake / Plano Anual (2018)
2.9 milhões
11 a Bienal de Artes Visuais do Mercosul
2.9 milhões
Cícero Dias: Um Percurso Poético 1907-2003
2.7 milhões
Masp / Plano Anual (2018)
2.4 milhões
ArtRio (2017)
2.2 milhões FONTE: MINC/ VERSALIC/ SALICNET
57
PORTFÓLIO
58
ANDRÉ PENTEADO ENTRE MEMÓRIAS DO FUTURO E PROJETOS DO FRACASSO
As séries fotográficas Cabanagem e Missão Francesa falam de processos de violência social do Brasil contemporâneo, da importação de modelos culturais e da forma como projetos são interrompidos e abandonados GISELLE BEIGUELMAN
Acima., foto da série Missão Francesa (2017); à dir., foto da série Cabanagem (2015), ambas de André Penteado SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
60
Foto da série Cabanagem (2015), em que o artista investiga evidências factuais e metafóricas da revolta social de 1835-1840 iniciada pelos cabanos (negros, índios e mestiços)
ANDRÉ PENTEADO É UM ARTISTA QUE EVOCA RASTROS PERDIDOS. SEU TERRITÓRIO SÃO OS LUGARES ABANDONADOS, AS PERDAS EMOCIONAIS, AS INTERRUPÇÕES INEXPLICÁVEIS. Formado em administração pública pela
Fundação Getulio Vargas em 1989, estudou Ciências Sociais na USP, não terminou o curso e decidiu dedicar-se à fotografia em 1993. Atuou durante muitos anos apenas comercialmente. Os primeiros trabalhos artísticos coincidiram com a dor pela morte do pai. São eles os premiados O Suicídio de Meu Pai (2007-2011), série de fotos que registram do funeral a autorretratos com a roupa do pai, e Não Estou Sozinho (2009-2013), composto de retratos de participantes de grupos de apoio a pessoas que perderam familiares ou amigos por suicídio, entre outras coisas. Penteado viveu em Londres de 2005 a 2012. Ao retornar, foi mobilizado pelas manifestações de junho de 2013. Envolveuse em um longo processo de pesquisa que sistematizou
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
como Rastros, Traços e Vestígios. No seu espectro propõe fazer uma reflexão sobre o Brasil de hoje por meio de uma investigação fotográfica sobre momentos da nossa história, anteriores à invenção da fotografia ou em locais onde a fotografia ainda não havia chegado, quando os fatos ocorreram. “Isso me permite não entrar em diálogo com uma iconografia de época. Acredito que a fotografia tem potência para discutir a história porque pode construir narrativas, sejam elas visuais ou historiográficas.” O primeiro fruto dessa investigação foi o livro Cabanagem (2015), seguido de Missão Francesa (2017). Ambos foram realizados com leis de incentivo. Na sequência virão Farroupilha, no qual está trabalhando, e Descobrimento e Independência. Cabanagem empresta seu nome da longa revolta social, ocorrida no Grão-Pará, atual Amazônia, de 1835 a 1840. Em um primeiro momento, articularam-se na revolta dois confrontos distintos com o governo regencial.
61
Na série Missão Francesa (2017), de André Penteado, que aparece acima e nas próximas páginas, reverberam as crises dos sistemas institucionais da arte, da cultura e da educação
O dos cabanos – negros, índios e mestiços–, que viviam na miséria, e o das elites brancas locais contra o monopólio português do poder. Contudo, à medida que a revolta se interiorizou, saindo da capital, Belém, evoluiu para uma luta de caráter social mais amplo, explica a historiadora Magda Ricci, com quem Penteado trabalhou. Violentas, as batalhas resultaram em mais de 30 mil mortes e na repressão total do movimento. Apesar de ter sido uma das maiores revoltas da História do Brasil, a Cabanagem é pouco conhecida. Para realizar seu trabalho, André Penteado percorreu parte do estado do Pará, visitando, entre outras localidades, Belém, Acará, Vila de São Francisco Xavier, Cametá, Vigia e a Ilha de Tatuoca. Da sua busca por evidências factuais e metafóricas da revolta, somos confrontados com o abandono das instituições, a ausência das políticas públicas, os espaços em franco desmoronamento.
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
“Procuro fotografar tudo do mesmo jeito, que é sempre reto - câmera no tripé -, com uma só fonte de luz, uma iluminação simples e direta”
OUTRA HISTÓRIA
Não se trata de uma visão melancólica, romântica, que procura a nostalgia de um passado idílico que nunca tivemos. Tampouco uma “obra de denúncia” que aponta uma suposta incapacidade atávica de o Brasil cuidar do seu patrimônio. Penteado escreve, visualmente, outra história a partir dos seus ensaios fotográficos. Para tanto, insiste no uso de um vocabulário específico, que deixe claro a não neutralidade da cena retratada. “Acho que é exatamente esse o ponto que me interessa na fotografia. A descrição nos mínimos detalhes do real, que, na verdade, é uma construção absoluta do artista, mas que gera essa confusão do observador. Procuro fotografar tudo do mesmo jeito, que é sempre reto – câmera no tripé –, com uma fonte de luz só, para criar uma iluminação simples e direta. Porque acredito que o poder da fotografia já está no snapshot… Essa é a minha estratégia para lidar com questões que considero relevantes. É como se eu dissesse: é fotografia mesmo, não é verdade! No jornal também não é a ‘verdade’”, diz ele. Desses procedimentos as imagens renunciam de contar a história do que ocorreu e interrogam as atualizações da Cabanagem nos processos de violência social do Brasil contemporâneo. Por outro lado, questionam como o descaso com a memória e com a história da produção social dessa violência contribui para sua reprodução. “Estamos falando de uma revolução vitoriosa que depois é massacrada e matam 30 mil pessoas na região... A gente precisa falar disso, é assunto para um trabalho, mas como é que eu vou falar se ninguém fala disso?”, questiona. FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
63
FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Em Missão Francesa, o foco desvia-se para um capítulo menos apagado da história brasileira, mas também bastante revelador da fragilidade das políticas públicas nacionais. Se na Cabanagem o tema remete aos circuitos da memória e do patrimônio, aqui reverberam as crises dos sistemas institucionais da arte, da cultura e da educação. Como o nome do trabalho diz, trata-se do grupo de artistas que, em 1816, durante a estada da família real portuguesa no Brasil (1808-1821), e logo após a queda de Napoleão Bonaparte (1815), chegou ao Rio de Janeiro, então capital do Reino. Integravam o grupo os pintores Jean Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay e Zépherin Ferrez, além do arquiteto Grandjean de Montigny. O grupo era liderado por Joaquim Lebreton, exdiretor do Louvre e secretário recém-destituído do Instituto de França. A “Missão” é relacionada à implementação do ensino formal das artes plásticas no Rio de Janeiro, com a fundação da Academia Imperial de Belas Artes, e responsável pela introdução da pedagogia neoclássica no Brasil. Descendentes desses artistas tornaramse intelectuais e artistas importantes, como o historiador Afonso D’Escragnolle Taunay e o fotógrafo Marc Ferrez (filho de Zépherin Ferrez). No campo da historiografia não são poucas as polêmicas que cercam a empreitada. Desde a organização da iniciativa (se teriam sido convidados ou vindos por conta própria) até o seu legado (na oposição ao estrangeirismo neoclássico/ barroco brasileiro, central no nosso modernismo). Mas não é especificamente da história da Missão que se fala no trabalho, e sim das heranças que se projetam no imaginário e nas políticas culturais. Para Penteado, importam a dependência da importação de modelos e a forma como os projetos são abandonados e interrompidos. “Missão Francesa veio dessa coisa que se fala muito: quando o Brasil conseguir ser que nem os EUA, ter consumidores que nem nos EUA, ter mercado de arte que nem sei lá o quê... Sempre algo de fora! O projeto começou disso. Depois, visitando o prédio da Federal do Rio, me veio muito forte essa questão das coisas inacabadas. Ao lado de onde fica o prédio da Faculdade de Arquitetura e a Escola de Belas Artes tem um hospital inacabado. Nem terminou, mas já deu problema e vão destruir. E o prédio em si da Academia Imperial de Belas Artes, que hoje é um estacionamento? É uma forma de ver como lidamos com a nossa história. Passa um trator.”
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
65
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
66
R E P O R TA G E M
APOSTA EM FUNDOS PATRIMONIAIS FOTOS: CORTESIA MAM RIO/ PAULO D’ALESSANDRO
Enquanto o Masp arrecada doações para seu endowment, o MAM Rio planeja leiloar seu único Pollock para criar um fundo patrimonial que ajude o museu a manter as portas abertas
MÁRION STRECKER
FOI SÓ O MASP INSTITUIR UM FUNDO DE ENDOWMENT NO ANO PASSADO PARA LOGO SE TORNAR REFERÊNCIA PARA MUITAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS BRASILEIRAS QUE LUTAM PARA SOBREVIVER . Sob administração de governantes que destinam cada vez menos recursos à cultura e em meio a mais uma enorme crise econômica que afetou a capacidade de captar patrocínios, museus públicos e privados buscam saber se seria viável constituir um fundo patrimonial que possa garantir sua estabilidade. A ideia parece um sonho: ter uma reserva grande o bastante para dela só usar o superávit, ou seja, aquilo que exceder o valor do fundo corrigido monetariamente. Assim, as instituições poderiam ficar longe dos interesses ou desinteresses dos políticos da vez, dos terremotos administrativos do País e das crises financeiras. O projeto do Masp começou a ser desenvolvido em 2016. O museu foi buscar informações em instituições como o Louvre, a Fundação Getty e, principalmente, o Fine Arts Museum de Houston, no Texas. “Houston tem um endowment de US$ 1,5 bilhão. O superávit já paga 50% do orçamento do museu”, disse à seLecT Juliana Siqueira de Sá, diretora de assuntos institucionais do Masp. A criação do endowment do Masp foi aprovada em abril de 2017 e em um ano arrecadou R$ 17 milhões. “O Masp doou R$ 1 milhão para o endowment no ano passado. Esse é um compromisso que o museu
assumiu: doar 5% de sua receita operacional para o endowment até o fundo reunir R$ 50 milhões”, diz Sá. O orçamento anual do Masp está beirando os R$ 40 milhões. “Para que o endowment tenha de fato um impacto relevante no orçamento, teríamos de atingir um valor pelo menos dez vezes maior do que esse”, diz Juliana de Sá. “É um projeto de muito longo prazo. A primeira palavra de ordem é paciência. A segunda é governança”.
“O Masp assumiu o compromisso de doar 5% de sua receita operacional para o endowment”, diz Juliana Siqueira de Sá, diretora de assuntos institucionais
À esq., a pintura Nº 16 (1950) do norte-americano Jackson Pollock (1912-1956), em óleo sobre aglomerado, medindo 56,7 x 56,7 cm; a obra, doada pelo magnata Nelson Rockefeller em 1952, foi posta em reserva técnica por “segurança”, enquanto o MAM Rio planeja sua venda
A gestão do endowment é feita pelo comitê de governança e pela diretoria estatutária do Masp. Os diretores-gestores não têm nenhum acesso a esse fundo. Segundo a diretora, o Masp criou mecanismos muito rigorosos de segurança para proteger o fundo em qualquer administração que esteja no comando do museu. O fundo hoje é composto apenas de dinheiro, aplicado em renda fixa. Mas poderá ser composto também de imóveis, obras de arte ou outros ativos financeiros no futuro. “Estamos conversando com pessoas que estão envolvidas em planejamento de sucessão para que pensem no museu nessa hora”, diz Sá.
OSESP, UM ANTIEXEMPLO
Um dos motivos que levam ao fato de haver muito poucos endowments no meio da cultura no Brasil, segundo Juliana de Sá, é a falta de um instrumento que reconheça sua existência jurídica e evite que o dinheiro simplesmente desapareça. Por isso, muitos empresários brasileiros prefeririam criar trustes, fundações ou endowments no exterior. Um triste exemplo de endowment na área cultural brasileira é o da Osesp, criada por lei estadual em 1954 e considerada a principal orquestra sinfônica do País. A Fundação Osesp surgiu em 2005, quando foi criado seu fundo patrimonial. Esse fundo chegou a atingir R$ 80 milhões, mas com o tempo passou a ser usado como um mero fundo de reserva, o que fez com que o seu patrimônio caísse para R$ 40 milhões. A continuar nesse ritmo, na próxima década, o governo do estado terá
simplesmente dizimado o fundo patrimonial da Osesp. Diversos projetos de lei sobre endowment tramitam atualmente no Congresso Nacional. Entre os pontos que estão em debate é se deve haver um mecanismo único para todos os setores sem fins lucrativos. Nesse caso, uma família com uma grande fortuna poderia criar um endowment para financiar causas culturais, sociais ou do setor de saúde, por exemplo. Também se debate a possibilidade de se usarem leis de incentivo fiscal para alimentar endowments. E, no caso de instituições públicas, outra preocupação é evitar que esses fundos de longo prazo sejam geridos como se fossem recursos públicos, cuja destina-ção é alterada a critério do governante de plantão.
A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) foi criada por lei estadual em 1954; o fundo patrimonial da Fundação Osesp já teve R$ 80 milhões e hoje tem R$ 40 mlhões
“Não é apenas a ligação com membros da família Chateaubriand que os dois museus têm em comum: ambos são instituições privadas sem fins lucrativos, têm a mesma idade, ocupam edifícios de arquitetura moderna espetacular criados para eles, foram construídos em locais icônicos e representam bastante para a sua população” SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
POLLOCK À VENDA
conhecido como Bebeto. Gilberto Chateaubriand, por sua vez, é filho de Assis Chateaubriand, o barão da imprensa (Diários Associados) que fundou o Masp, em 1947, com o marchand, crítico e colecionador Pietro Maria Bardi. O MAM do Rio de Janeiro surgiu no ano seguinte, fundado por empresários como Raymundo Ottoni de Castro Maya, Walther Moreira Salles, Roberto Marinho (O Globo), Paulo Bittencourt e Niomar Moniz Sodré (Correio da Manhã). Não é apenas a ligação com membros da família Chateaubriand que os dois museus têm em comum: ambos são instituições privadas sem fins lucrativos, têm praticamente a mesma idade, ocupam edifícios de arquitetura moderna espetacular criados especificamente para eles, foram construídos em locais icônicos dessas cidades e representam bastante para a sua população, embora tenham perfis de acervo muito diferentes e histórico de gestões também, cada qual com seus altos e baixos. O orçamento anual do MAM Rio é hoje de somente R$ 7 milhões, o que condena a instituição a uma programação bastante modesta, nada comparável ao que tem feito o Masp ou o MAR (Museu de Arte do Rio), por exemplo. A receita do MAM Rio vem apenas do aluguel de espaço para eventos, do teatro, estacionamento e bilheteria, e do apoio cultural oriundo de leis de incentivo fiscal. É esse “o patamar para o MAM realizar suas “A equipe é extremamente enxuta”, diz o presidente do MAM Rio, Carlos Alberto Gouvêa Chateaubriand 26 exposições/ano, as atividades da Cinemateca, manter os acervos de artes visuais (16 mil obras), de filmes (8.400 títulos) e documentação (4 milhões de itens), o programa educativo e a equipe extremamente enxuta especializada do García, que estavam expostas temporariamente ali. museu, com pouco mais de 50 pessoas, além de gastos Recebendo em doação coleções como a de Esther Emílio com infraestrutura (energia, segurança, limpeza etc.)”, Carlos e da empresa White Martins, o MAM Rio aos disse Carlos Alberto Gouvêa Chateaubriand à seLecT. poucos constituiu novo acervo, hoje com 7.606 obras. “Sete milhões/ano é menos, por exemplo, do que a folha Contando o que está em comodato (empréstimo), de pagamento anual do MAR”, compara, mencionando são 16 mil obras armazenadas ali. O mais importante um dos mais jovens museus da cidade. “Nós também comodato foi firmado em 1993, com 6.630 obras da carregamos um passivo administrável”, disse sobre a Coleção Gilberto Chateaubriand, especializada em dívida renegociada no Refis (programa de parcelamearte brasileira moderna e contemporânea. Gilberto nto de dívidas tributárias) ano passado, que seria de Chateaubriand vem a ser pai de Carlos Alberto Gouvêa cerca de R$ 4 milhões. Chateaubriand, o presidente do MAM Rio, também Enquanto essas discussões se travam, em março um fato novo cau-sou alvoroço. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro tornou pública sua intenção de vender a única obra que possui do pintor norte-americano Jackson Pollock (1912-1956), expoente do expressionismo abstrato. A obra é a pintura Número 16 (1950), em óleo sobre aglomerado, doada ao museu pelo magnata Nelson Rockefeller, em 1954. A obra sobreviveu ao trágico incêndio do MAM Rio, ocorrido em 1978, que destruiu 90% do acervo, inclusive obras de Picasso, Miró, Dalí, Magritte e Max Ernst, além de centenas de brasileiros. Na ocasião perderam-se também 250 telas de latino-americanos, entre elas 80 de Joaquín Torres-
FOTOS: ALESSANDRA FRATES, DIVULGAÇÃO OSESP/ CORTESIA MAM RIO
“O Ibram foi contra a venda da obra de Pollock pelo MAM Rio, o Iphan declarou que não tem competência legal para opinar e o MinC lavou as mãos”
MINC LAVA AS MÃOS
Ao saber do plano de venda do único Pollock em coleção aberta ao público no País, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), ligado ao Ministério da Cultura, publicou nota afirmando ter recebido a notícia “com surpresa” e solicitando a suspensão da decisão para “procurar outras soluções possíveis para os desafios enfrentados pelo MAM”. A realidade é que o Ibram não tem poder para impedir que a venda ocorra. O MAM Rio preferiu “consultar” outra autarquia vinculada ao MinC, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que nada tem a ver com isso, já que a obra não é tombada nem é brasileira. O Iphan respondeu que não tem competência legal para opinar. O MinC, gerindo um orçamento miserável (mais detalhes no Mundo Codificado, à página 54), lavou as mãos e apoiou a decisão sob argumento de que “reconhece e valoriza a autonomia” do MAM Rio e que a venda do Pollock, estimado em US$ 25 milhões, “irá assegurar a conservação adequada” de todo o acervo remanescente do museu. Lembremos apenas que nem a prefeitura, nem o estado e nem o governo federal contribuem para a manutenção do museu. Também em março, no 1º Encontro das Artes Visuais, Paulo Herkenhoff, com extensa carreira como curador e diretor de museus, entre eles o MAM Rio, fez a seguinte análise. “Se é para guardar a Coleção Chateaubriant, que se venda uma Tarsila. Esse Pollock é a mais importante pintura no Brasil da segunda metade do século XX. Essa obra é pintada sobre um tabuleiro de xadrez. Isso tem a ver com Duchamp, com a espacialidade, sabe? Com a amplitude. Então, não se trata de ser pequena. Ela é vasta. E a minha solução é a seguinte. Se não querem vender a Tarsila para financiar a guarda das suas obras no MAM, então que troquem com o Masp por pequenas obras. O Masp tem 12 Renoir. Troca por três ou quatro. Vende isso e o Masp fica com o Pollock. Mas o Pollock não pode sair do Brasil”, disse ele. Um manifesto assinado por centenas de profissionais, entre eles críticos, artistas, curadores, museólogos e marchands, defendeu um “choque de gestão” no museu. “Que se convoque uma administração ativa, com visão estratégica e plano de governança, antenada com a contemporaneidade da arte para que o MAM volte a ser o mais importante museu da cidade”, diz o documento, fazendo lembrar as mudanças no sentido da profissionalização ocorridas no Masp nos anos recentes.
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
O Conselho do Masp, presidido por Alfredo Setubal, é composto de 80 membros, além de representantes da Cultura nas três esferas de governo. O conselho pode ter dois mandatos de quatro anos cada. Cada conselheiro fez uma doação inicial ao museu, cujo valor médio ficou entre R$ 100 mil e R$ 150 mil. A diretoria estatutária, presidida por Heitor Martins, pode ter, no máximo, três mandatos de três anos cada. Cada conselheiro e cada diretor estatuário faz uma doação anual obrigatória de R$ 35 mil ao Masp. No MAM Rio, são apenas 21 conselheiros e a contribuição anual é “espontânea”, ou seja, não tem valor mínimo obrigatório. A direção do MAM Rio defende-se das críticas, argumentando que a obra de Pollock não é central no acervo do museu, já que o foco da coleção seria “arte brasileira moderna e contemporânea”. Vale lembrar que nem sempre o museu deu tão pouca importância à arte estrangeira. A exposição
O Museu de Arte Moderna do Rio, com edifício projetado por Affonso Eduardo Reidy e jardins de Roberto Burle Marx, enfrenta crise aos 69 anos
inaugural do MAM Rio, em 1949, num salão no último andar de um edifício projetado por Oscar Niemeyer no centro do Rio, foi de arte contemporânea europeia. Em 1952, quando o MAM Rio inaugurou outro espaço, dessa vez no térreo do Palácio Gustavo Capanema, entre os artistas da exposição estavam Yves Tanguy (França), Joan Miró (Espanha), Jean Dubuffet (França), Diego Rivera (México), Wassily Kandinsky (Rússia) e Alberto Giacometti (Suíça), entre outros estrangeiros. A crônica falta de recursos tem condenado os museus brasileiros a serem cada vez mais locais.
“Não se tem notícia de museu brasileiro que tenha dinheiro para comprar um Pollock, embora o Brasil tenha 42 bilionários, segundo a revista Forbes”
FOCO TORNA-SE LOCAL
Sobre o Pollock, o MAM Rio chegou a cogitar levá-lo a leilão fora do Brasil, mas isso praticamente impediria a tela de ficar no País, já que um comprador brasileiro teria de pagar uma alta taxa de importação se quisesse trazê-la de volta de um leilão internacional. No momento em que este texto é escrito, o plano do museu é leiloá-la no Brasil. “O leilão público garantirá a transparência na operação”, diz Carlos Alberto Chateaubriand. “Esperamos que algum museu brasileiro, que tenha um fundo para aquisição, compre.” Não se tem notícia de museu brasileiro que tenha dinheiro para comprar nem um pequeno Pollock, embora o Brasil tenha 42 bilionários, segundo o último ranking em dólares publicado pela revista norte-americana Forbes. “O endowment permitirá justamente a desejada independência financeira do MAM”, diz seu presidente. “Com isso, ter um programa de aquisição de obras, entre outras demandas, para que seja o museu de ponta que pretendemos.” Chateaubriand acredita que o rendimento do valor do Pollock aplicado será suficiente, “juntamente com outras receitas próprias”, para manter o museu equilibrado “por várias décadas”. Do valor obtido com a venda, “o museu só usará parte do rendimento em sua manutenção, parte na criação de um fundo anual de aquisições e o restante será reaplicado no fundo”, diz Chateaubriand. “O principal, só em caso de catástrofe. O endowment terá um comitê gestor que decidirá sobre o tipo de aplicação e o seu uso”, declarou.
ACORDO ENTRE MASP E MAM RIO
Em abril, surgiram notícias de que o Masp e o MAM Rio estariam desenhando um acordo de compartilhamento da Coleção Gilberto Chateaubriand, pelo qual o museu paulista pagaria uma quantia ao museu carioca. “Ainda não chegamos a esse ponto da conversa”, respondeu Chateaubriand, quando questionado pela seLecT. A dúvida que não quer calar é sobre o futuro da Coleção Gilberto Chateaubriand, já que Gilberto está com 93
O Museu de Arte de São Paulo (Masp), com edifício projetado por Lina Lo Bardi: museu arrecadou R$ 17 milhões em um ano para seu endowment
anos. “A coleção continuará sendo a Coleção Gilberto Chateaubriand, e exibida ao público”, diz Carlos Alberto. “Se você se refere ao meu pai, ele está completamente lúcido, e acompanha tudo o que se passa com sua coleção e o MAM. Há muitos anos compartilho com ele a gestão da coleção, e tenho seu total apoio para qualquer decisão.” Sobre transformar o comodato em doação, diz ele: “Ainda não decidimos sobre isso. Pode ser que a coleção se divida por outras instituições brasileiras que não tenham acervo, e alguma no exterior para promover a arte brasileira”. Seguindo a tradição familiar, Carlos Alberto Gouvêa Chateaubriand é ele mesmo um colecionador. “No meu caso, também coleciono arte brasileira. Compro obras há muitos anos, e tudo vai para a Coleção Gilberto Chateaubriand.”
FOTOS: VICENTE DE MELLO, CORTESIA MAM RIO/ EDUARDO ORTEGA, CORTESIA MASP
CURADORIA
54
Trabalhos de Graziela Kunsch, Mônica Nador, ConstructLab, Raumlabor e Carla Zaccagnini iluminam a vocação processual da Vila Itororó Canteiro Aberto e as transformações da cidade QUANTAS CAMADAS DE DEMOLIÇÕES DORMEM SOB OS NOSSOS PÉS? QUANTOS ANDARES DE EDIFÍCIOS OCUPADOS POR FAMÍLIAS SEM-TETO DESABADOS? QUANTAS HISTÓRIAS VIRARAM PÓ E CINZA? Quantos teatros queimados, quantos cinemas
convertidos em estacionamentos? Quantos rios sacrificados e canalizados? Quantas obras públicas nunca finalizadas? Quantos projetos culturais descontinuados? Durante os últimos três anos, o Centro Cultural Vila Itororó Canteiro Aberto, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, sustentou-se como um ponto fora dessa curva de projetos abortados, ao se estabelecer em meio às instabilidades de um canteiro de obras. Diferentemente de construções que acontecem a portas fechadas, o projeto de restauro da Vila Itororó – que há décadas levanta questionamentos e necessária polêmica – propôs a abertura de seu canteiro de obras SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
As paredes do galpão do Canteiro Aberto ganharam intervenção do projeto Padrões da Vila Itororó (2015), realizado por Mônica Nador com ex-moradores do local
CANTEIRO ABERTO ESPAÇO ONDE TUDO É POSSÍVEL
PA U L A A L Z U G A R AY
ao público e a instalação de um experimento de centro cultural. Convidado a pensar formas de tornar visíveis os processos decisórios da reforma, o curador e gestor Benjamin Seroussi concebeu o projeto de um centro cultural temporário, onde conviveram arquitetos, engenheiros, operários, marceneiros, artistas, educadores, curadores e público. No Canteiro Aberto, tudo está em processo. O local foi concebido como praça pública – qualidade de espaço que a cidade de São Paulo carece imensuravelmente –, com estímulo a usos espontâneos e uma programação construída na medida das necessidades de seus visitantes, que usam o galpão da Rua Pedroso, 238, para ensaiar, brincar, se exercitar, estudar e descansar sem pedir autorização a ninguém. Em vez de uma loja de design, foi implantada ali uma marcenaria pública; no lugar de um restaurante, uma cozinha comunitária. FOTO: RICARDO VAN STEEN
74
Dentro de uma concepção ampliada de cultura, elas são entendidas como práticas culturais associadas ao cuidado com outras pessoas, ao viver junto, estabelecer alianças. Entre essas atividades, destaca-se a Clínica Pública de Psicanálise, formada por nove psicanalistas, três supervisores e uma artista, que trabalham voluntariamente “a favor da saúde psíquica da população”. “O futuro não existe. A maneira de o projeto existir foi trabalhar na espessura do presente, abrindo na precariedade, na sujeira e nas limitações de segurança do canteiro”, disse Benjamin Seroussi, em visita guiada ao Canteiro Aberto, no domingo 9 de março, na qual seLecT tomou parte. “Sempre que nos perguntam ‘quando o centro cultural vai ficar pronto?’, respondemos que já está pronto e que nunca ficará pronto!” Aquele foi um domingo diferente. Antes de conduzir os visitantes, Seroussi avisou que aquela poderia ser sua última atividade no espaço provisório. Era o último dia de gestão cultural do Instituto Pedra com recursos captados via Lei Rouanet. Responsável pelo restauro do conjunto de construções criadas ao longo do século 20 para fins residenciais e de lazer, o instituto ainda prolongou a guarda do local por mais seis meses, em convênio firmado de forma emergencial com a Secretaria Municipal de Cultura. “Ao término do Termo de Colaboração, a Secretaria de Cultura decidiu definir uma equipe própria e viabilizar recursos também próprios para fomentar as oficinas que vinham sendo realizadas. A expectativa, para curto prazo, é de que a programação siga de forma semelhante ao aplicado nos últimos meses”, diz a seLecT Luiz Fernando de Almeida, diretor-presidente do Instituto Pedra e arquitetocoordenador das obras de restauração. Os desdobramentos desse experimento ainda são imprevisíveis. Mas as histórias ativadas no canteiro reverberam e perduram nos projetos dos artistas Graziela Kunsch, Mônica Nador, Carla Zaccagnini e dos coletivos ConstructLab e Raumlabor.
Um padrão geométrico vermelho aparece em meio à poeira do piso da lavanderia da Casa 2; o desenho de um ladrilho hidráulico remete às ondas do mar de um livro infantil; um assoalho de tacos de madeira lembra a forma de espinha de peixe; os gradis sinuosos que um dia foram saqueados reaparecem durante uma oficina conduzida pela artista Mônica Nador. “A proposta foi a de que os participantes recolhessem os elementos decorativos da arquitetura da Vila”, diz Nador à seLecT. “A oficina foi dirigida aos ex-moradores, o povo que foi morar no conjunto do CDHU que foi construído para eles, sabe? Gente que tinha saído da Vila Itororó há dois anos. Uma dessas pessoas foi a Camila, uma moça de 30 e poucos anos, mãe de uma galera e agente de saúde da comunidade, que adorou se aproximar do universo da arte”, conta a artista, que levou para o Canteiro Aberto sua experiência de pintura elaborada coletivamente no Jardim Miriam Arte Club (Jamac). As lembranças que pareciam ter se perdido no processo de desapropriação dos moradores de Vila Itororó, que aconteceu entre 2011 e 2013 durante o tombamento do complexo arquitetônico, hoje constituem o projeto Padrões da Vila Itororó (2015) e habitam as paredes do galpão do centro cultural, recontando as histórias do lugar. MÔNICA NADOR: PADRÕES DA VILA ITORORÓ (2015)
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
75
“Jaqueline Santana dando banho em Kauã”, frame de vídeo da série Excertos da Vila Itororó, de Graziela Kunsch
Em janeiro de 2006, Graziela Kunsch leu no jornal que a Vila Itororó havia sido decretada, pela prefeitura de São Paulo, área de utilidade pública e seria transformada em “polo de turismo cultural”. O texto mencionava que o local havia se tornado um cortiço e que as famílias seriam removidas para a conversão das casas em restaurantes, galerias de arte e residências artísticas. Membro do Centro de Mídia Independente (CMI), a artista foi até a Rua Martiniano de Carvalho apurar o fato e nunca mais saiu de lá. Iniciou um trabalho de acompanhamento e colaboração na luta dos hoje exmoradores, buscando demonstrar a legitimidade das famílias em continuar habitando a Vila e tentando responder as questões: Quem determina o que é patrimônio? Quem determina o que é utilidade pública? Utilidade pública para quem? Por que as pessoas têm de sair da Vila para que a área tenha fins culturais? O que são fins culturais? A colaboração deu origem à obra-arquivo Excertos da Vila Itororó (em processo), disponível no site http://vilaitororo.naocaber. org, composto de vídeos com cenas da vida cotidiana dos moradores – “Jaqueline Santana dando banho em Kauã”, “festa junina”, mutirão de limpeza do pátio” etc. – e registros de reuniões na Secretaria da Habitação, audiências públicas, debates em faculdades GRAZIELA KUNSCH: EXCERTOS DA VILA ITORORÓ (EM PROCESSO) E NÓS SOMOS O PÚBLICO (2018)
FOTO: GRAZIELA KUNSCH
76
Fotografia da série Nós Somos o Público (2018), de Graziela Kunsch, que documenta os grupos de usuários do Canteiro Aberto
de arquitetura, e assim por diante. “A maioria das vozes registradas são aquelas que normalmente ficam silenciadas pela história tal como ela costuma ser contada pelos vencedores. Na contramão disso, os excertos aqui apresentados foram filmados da perspectiva dos vencidos e operam, portanto, como uma singela anatomia do poder”, escreve Benjamin Seroussi na apresentação do projeto. Além disso, de março de 2015 a abril de 2017, Graziela trabalhou na Vila Itororó Canteiro Aberto como responsável pela formação de público – agenda prioritária para as instituições públicas que costuma ser tratada dentro da lógica da eficiência de resultados. Inversamente, as propostas de “autoformação de público” de Kunsch serviram para dividir com os visitantes as decisões sobre o programa de usos do espaço, para repensar o que é cultura e para ajudar a impedir que a Vila Itororó se tornasse um patrimônio sem SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
77
memória. O projeto foi finalista do 1º Prêmio seLecT de Arte e Educação, em 2017, e a Clínica Pública de Psicanálise, em atividade, foi um de seus desdobramentos. A incógnita gerada sobre o destino do centro cultural provisório resultou ainda em um terceiro projeto, Nós Somos o Público (2018), concebido a partir de nota em que a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo dizia estar “avaliando a melhor forma de utilizar o espaço da Vila Itororó, levando em consideração a sua importância histórica para a cidade e o interesse público”. “Como resposta a essa nota, pintei a faixa NÓS SOMOS O PÚBLICO e estou realizando fotos de grupos específicos do contexto, segurando essa faixa – ex-moradores, grupo da Clínica Pública, pessoas de circo que usam o espaço, as muitas crianças do Centro da Criança e do Adolescente que também usam o espaço, o Coletivo Riacho e outros”, diz Graziela à seLecT. FOTO: ALEXANDRE R. PEREIRA
A Vila Itororó é um projeto inacabado com uma história de transformação permanente. Foi inaugurada em 1922, mas seu proprietário, o imigrante português Francisco de Castro, mudou-se para o palacete muito antes disso, vivendo anos no canteiro de obras. A construção de fato não terminaria até sua morte, já que ao longo dos anos o local foi ganhando novas vocações, com casas para locação de famílias de várias classes sociais e com o que ele definiu como um “empreendimento de indiscutível utilidade pública”: uma piscina para aulas de natação e o instituto terapêutico de banhos a vapor e sulfurosos, que davam face à rua que margeava o Riacho Itororó. O caráter transitório assumido pelo centro cultural, portanto, reflete não apenas a história da Vila, como da própria São Paulo, que no começo do século 20 era uma cidade de aluguel e crescia com a chegada de forasteiros em busca de enriquecimento rápido. Em 1920, 80% dos domicílios eram alugados – o que dava à cidade um contorno de lugar de passagem. O conceito de arquitetura móvel, criado pelo coletivo ConstructLab para elaborar os módulos e equipamentos, responde a essas histórias. Convocando a colaboração de 50 participantes para o trabalho na marcenaria do canteiro de obras, foram construídos bancos, estantes, cadeiras, balanços, escorregadores, bares, bicicletários, arquivos, uma parede de escalada e um espaço de assembleia, a serem usados em disposições variáveis no galpão. Para evocar a memória do Éden Liberdade Futebol Clube, ativo na região em 1898, quando a Vila ainda não existia, até o início dos anos 2000, o projeto de mobiliário foi intitulado Éden. CONSTRUCTLAB: ÉDEN (2015)
O coletivo Raumlabor é formado por arquitetos radicados em Berlim, na Alemanha, e atua na interseção entre arquitetura e arte pública. Também operando no espectro de uma arquitetura temporária, eles foram convidados a ministrar um workshop para 15 pessoas qualificadas em marcenaria, arquitetura e design, envolvendo-as na adaptação da Casa 8 – onde antigamente ficavam a piscina e o centro de águas terapêuticas –, para funcionar como residências artísticas dentro do programa Goethe na Vila, em parceria com o Instituto Goethe. Após o workshop, com duração de, aproximadamente, um mês, o espaço recebeu dez projetos em 2017 e está recebendo outros em 2018. RAUMLABOR: CASA 8 (2016)
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
79
Na página ao lado, o curador Benjamin Seroussi inicia visita pública no espaço de assembleias, idealizado pelo coletivo ConstructLab. Nesta página, no sentido horário, espreguiçadeira e bicicletário desenhados e fabricados pelo ConstructLab; cadeira do Raumlabor, fabricada com engradados de garrafas; e o espaço interno da Casa 8, antiga piscina e centro de lazer da Vila Itororó, habilitada pelo Raumlabor para residências artísticas
FOTOS: RICARDO VAN STEEN/ CAMILA PICOLO/ FERNANDO STANKUNS
80
Instalada no pátio principal da Vila, a escultura ambiental Panapanã (2016), de Carla Zaccagnini, é formada por canteiros de plantas hospedeiras para atrair borboletas
Em guarani, Itororó quer dizer água barulhenta. A Vila foi construída nas várzeas do riacho que ali fluiu até 1969, quando foi atropelado e soterrado pela Avenida 23 de Maio. Com uma de suas entradas voltada para o leito do rio, diferenciava-se de outras construções da época, que davam as costas para as áreas com cursos d’água que atravessavam a área urbana, “pois saneá-las implicava custos em empreendimentos adicionais”, segundo apontam Sarah Feldman e Ana Castro, autoras do livro Vila Itororó: Uma História em Três Atos (Instituto Pedra, 2017). As águas correntes que deram nome à Vila – e que em 1922 ganharam lá dentro um “monumento”, na forma de um leão de cimento armado que guardava uma bica d’água nascente no terreno – foram cooptadas para regar os jardins do trabalho de Carla Zaccagnini. Para aproximar-se das histórias de transformação da Vila, a artista remeteu-se às metamorfoses das borboletas. “As presenças de larvas, casulos e borboletas tornam palpáveis, CARLA ZACCAGNINI: PANAPANÃ (2016)
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
81
em outra escala de tempo e de espaço, as violentas transformações que caracterizam também a Vila: entre utopia e fracasso, sonho e frustração, construções e destruições, rios enterrados e moradores desalojados; os ciclos naturais das borboletas e as narrativas humanas da Vila se entrelaçam em uma experiência vertiginosa do tempo”, escreve Seroussi. Para atrair as borboletas, Zaccagnini criou canteiros de plantas hospedeiras. O contato com a terra e as plantas desaguou no cultivo de encontros e atividades sociais, que envolveram a preparação de refeições com a colaboração do laboratório itinerante de cozinha Sol de Noite. O trabalho gerou um audioguia e uma publicação com desenhos de João Loureiro, em que as metamorfoses de um transformista que se apresentava no extinto Teatro São José se confundem com o movimento das borboletas. O livro, os vídeos, as plantas, as comidas, as pinturas, as oficinas e as festas geradas nos trabalhos do Canteiro Aberto vêm ao encontro, afinal, da fala da ex-moradora Antonia Candido para a câmera de Graziela Kunsch: “Para você ter um livro, um filme ou uma peça de teatro, você precisa de uma história. Não é apagando a história que você vai construir algo”. FOTOS: CAMILA PICOLO
SEMINÁRIO
40
|
1 º E N C O N T R O DA S A R T E S V I S U A I S
MEIO ARTÍSTICO DISCUTE SEUS PROBLEMAS Que políticas públicas deveriam existir ou ser aperfeiçoadas para melhorar a sustentabilidade das instituições culturais? Por que o sistema normativo e tributário não diferencia obra de arte de outra mercadoria qualquer? Como facilitar a circulação de bens culturais e o intercâmbio de artistas? Como incentivar doações para museus? Qual o sentido dos fundos patrimoniais? Como evitar seus desvios?
DA R E DA Ç Ã O
|
F O T O S PA U L O D ’A L E S S A N D R O
Ana Helena Curti,
produtora cultural, diretora da A3 EM 28/3, SELECT ORGANIZOU UM CICLO DE DEBATES COM IMPORTANTES AGENTES DO SETOR DAS ARTES VISUAIS NO BRASIL, PARA DISCUTIR OS PRINCIPAIS GARGALOS E DESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO DO SETOR. O 1º ENCONTRO DAS ARTES VISUAIS – EM BUSCA DE SOLUÇÕES PARA QUESTÕES NORMATIVAS E TRIBUTÁRIAS aconteceu no Itaú Cultu-
ral e foi realizado em parceria com a Secretaria da Economia da Cultura do MinC e com o escritório CesnikQuintino&Salinas Advogados. O objetivo foi contribuir para o avanço da construção de uma agenda de políticas públicas para o sistema das artes no País. Três áreas de discussão foram delimitadas: Circulação internacional, Fundos Patrimoniais para a Sustentabilidade Institucional e Colecionismo institucional. Ao longo de um dia inteiro de debates, os convidados contribuíram expondo suas experiências e dificuldades e propondo alternativas de soluções para os problemas. Leia a seguir os melhores momentos de um dia incendiário. SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
AUTUADA EM FLAGRANTE COM 89 PICASSOS “Fiz uma exposição do Picasso reunindo 89 obras, com itinerância pelo Brasil. Quando fomos embarcar essas obras para a última itinerância, elas foram apreendidas pela Receita de um estado. Pediram a nota fiscal das obras. Eles achavam que, diante da não apresentação da nota fiscal, elas poderiam ter sido roubadas ou seriam falsas. Imediatamente, a minha equipe me chamou, já era tarde da noite, não tinha como ir para esse estado de avião. Fui de ônibus. Cheguei na Receita do estado, sentei-me às 9h da manhã e fui
83
atendida com muito carinho às 15 para as 5 da tarde. Quando entrei na sala do inspetor do estado, ele tinha sobre a mesa um dossiê a meu respeito. E aí, como não perco a piada, eu disse: ‘O senhor vai me perdoar a intimidade, mas posso tirar xerox? Porque, se eu tiver um dia que ter um currículo comprovado, o senhor acabou de fazer um para mim. Eu nunca reuniria tantas informações’. Aí ele me disse: ‘Nós queremos a nota fiscal’. Eu falei: ‘Olha, o senhor não vai me levar a mal. Fosse eu dona de 89 obras do Picasso, nós estaríamos conversando na Polinésia Francesa, ao lado de uma piscina tomando champanhe francês. E eu não teria vindo de
ônibus para cá, e não estaria sentada há oito horas aguardando por este momento tão incrível’. E aí eu fui autuada em flagrante, não pela brincadeira, mas porque as obras poderiam ser roubadas. Eu mostrei a documentação de importação temporária das obras, a autorização para que elas fossem apresentadas no Brasil, mas, muito incrivelmente, eu recebi a seguinte frase: ‘Aqui essa documentação não vale’. Eu falei, imediatamente: ‘Este estado desgrudou do Brasil e virou uma ilha’. Aí fui autuada em flagrante, com uma multa de R$ 798 mil. Huuu! Mas aí eu disse: ‘Sei que tenho direito a uma ligação antes que tudo termine. Então, eu vou ligar para a minha advo-
gada’. Liguei para a minha advogada e falei: ‘Então, estou sendo autuada com uma multa de R$ 798 mil e, se eu não assinar, não consigo tirar a obra e essa exposição não inaugura daqui a dois dias em Brasília. O que eu faço?’ Ela falou: ‘Assina. Quem deve isso não paga’. Aí, eu assinei. A única coisa que pedi, e eles foram muito gentis, é que a escolta que acompanhava esse caminhão ficasse do lado do caminhão a noite inteira, no estacionamento da Receita; caso contrário, 89 obras do Picasso virariam souvenir. Aí entrei com uma ação contra o estado, ganhei em primeira instância e não houve nem a possibilidade de recorrer da parte deles.”
Fernanda Feitosa diretora da SP-Arte
AEROPORTOS DECIDEM QUE EVENTOS SÃO PATRIÓTICOS
84
“Todas as exposições que vocês veem no Brasil, todos os shows, os teatros, as companhias de dança, as óperas, entram no País por um regime especial chamado ‘importação para admissão temporária’. É tão importante o Brasil estar inserido no mundo, que a União não cobra imposto de importação, não cobra a Cofins, não cobra o PIS e não cobra ICMS. O aeroporto recebe essas obras e tem a obrigação de fazer a capatazia. Ele cobra tarifas de armazenagem para movimentar e ocupar ali um pedacinho do depósito dele, enquanto o despachante, coitado, está ralando, pegando ônibus, para tentar mostrar os documentos todos. O aeroporto
Eneida Braga
Antonio Almeida
MUSEUS PÚBLICOS NÃO TÊM VERBAS PARA ATIVIDADES FINALÍSTICAS
FAMÍLIA INVIABILIZA DOAÇÃO DE OBRA AO MUSEU
“Os museus privados no Brasil têm mais facilidade em conseguir dinheiro para projetos pontuais. E têm uma gigantesca dificuldade em conseguir recursos para a sua manutenção. Pagar água, luz, telefone, funcionários, segurança e tudo. Invertidamente, os museus públicos têm aquele orçamento, por menor que seja, para as suas atividades de manutenção: abrir, fechar porta, pagar funcionário, água, luz, telefone, segurança etc. Mas têm pouquíssimos recursos para a sua atividade finalística. O Museu Imperial, que é o museu público brasileiro de maior visitação, tem um orçamento anual para suas atividades finalísticas, do governo federal, de R$ 600 mil, tirando a parte de manutenção. É trágico.”
“Tive uma experiência muito séria com o MoMA. O curador Luis Pérez-Oramas esteve na galeria querendo a doação de uma peça do Amilcar de Castro. Chamamos a família para uma reunião, discutimos o assunto e eles nos fizeram a seguinte proposta: a galeria compra a peça e doa para o MoMA. Eu falei: Tá bom. Eu compro a peça e doo para o MoMA. Perfeito. Mas que nome vai constar na ficha de doação: o meu ou do Amilcar? Eles tinham a oportunidade de levar o Amilcar de Castro para o MoMA e, por causa de uma doação, não o fizeram.”
diretora do departamento de difusão, fomento e economia dos museus do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
galerista, diretor da Galeria Almeida & Dale
cobra uma taxa. Historicamente, essas taxas são baixas, cobradas com base no peso do que está vindo. Toda vida foi assim. Semana passada, todos os aeroportos do Brasil, todas as principais portas de entrada, passaram a dizer que todas essas mercadorias vão ser taxadas em 0,75% do seu valor. E, para o aeroporto liberar a mercadoria, a Receita Federal precisa processar o pagamento dos impostos ou da taxa. E nós estamos tendo um problema com a Receita Federal, por causa de uma greve. Se passa dois dias, vira cinco dias, é 1,5%. Passou 10, vira 2,5%. Passou 20 dias, o aeroporto vai cobrar 4,5% de taxa de armazenagem. E 4,5% é mais do que a União Federal cobra do Imposto de Importação, que é 4%! E a alegação para estarem fazendo isso é que esses eventos não são patrióticos! Como é que pode caber ao concessionário do aeroporto julgar se o conteúdo da exposição que está vindo é patriótico?”
Paula Fabiani
diretora-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis)
MILIONÁRIOS DEVERIAM PRATICAR MAIS A RENÚNCIA FISCAL “O Brasil é o país que figura na posição 17 em número de milionários. Cadê esse dinheiro? Esse dinheiro está aí. Quando a gente olha, por exemplo, para a Lei Rouanet, menos de 10% da renúncia possível é usada por pessoas físicas. Por quê? Tem uma série de razões. As pessoas não conhecem – o que seja –, mas esse recurso poderia ser atraído.”
Fábio Guimarães Rolim
coordenador-geral de Autorização e Fiscalização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
ENTRE 50 MIL BENS ANALISADOS AO ANO, APENAS TRÊS TÊM RESTRIÇÃO PARA DEIXAR O PAÍS “A Receita olha para um bem e fala: ‘Como vou saber se isso está tombado ou protegido por força de lei? Eu quero a manifestação do Iphan’. (...) Quando a Receita está com dúvida, faz uma consulta ao Iphan. O Iphan faz o que tem de fazer e identifica, bate o carimbo: não tem restrição (para um bem cultural sair do País). A maior parte dos objetos não tem restrição, inclusive. É muito difícil você se deparar com um bem que é tombado e está saindo do País. Dos 50 mil objetos analisados por São Paulo, no ano, numa recente contagem que a gente fez, três objetos foram identificados com restrição.”
44
Antonio Grassi
diretor-executivo do Inhotim e ex-presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte)
O MoMA-NY TEM MAIS DE 700 BRASILEIROS DOADORES “É claro que, no âmbito de instituições até internacionais, nós não fugimos muito dos modelos que vêm desde o Louvre, em que a captação via bilheteria é insignificante dentro da sua manutenção. Mas que tem um corpo sólido de amparo, com um ciclo de patronos e de doadores. Instituições como o MoMA, por exemplo, têm mais de 700 brasileiros dentre os seus doadores e patronos. Esse é um dado muito importante.”
Ana Letícia Fialho
diretora do departamento de estratégia produtiva da Secretaria da Economia da Cultura do MinC
CULTURA PRECISA DE FATIA MAIOR DA RENÚNCIA FISCAL “Acho que, na questão da Lei Rouanet e dos incentivos, nos batem de todos os lados. A visão da sociedade nem sempre é positiva, mas é importante dizer que a renúncia representada pelo setor da cultura é de 0,66% de toda a renúncia do Estado brasileiro. É importante comunicar isso e acho que precisamos brigar por uma fatia maior desse teto. Acho que isso pode impactar nessa discussão de endowments.” SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
Eduardo Saron
diretor do Instituto Itaú Cultural e vice-presidente da Fundação Bienal de São Paulo
COMO SAIR DA LÓGICA DA CATRACA, DO ESPETÁCULO E DO NOVO PRÉDIO
45
“Nós estamos debatendo como é que a gente sai de um ciclo que a própria Lei Rouanet, ou o modelo de gestão cultural dos últimos anos, nos impôs. Eu costumo dizer que fomos localizados, nos últimos anos, pelo CEP. C-E-P. O C da catraca, todo mundo querendo girar a catraca. Quanto mais pessoas, melhor. Era um significado de qualidade e não necessariamente é. O E do espetáculo. Todo mundo investindo nos fogos de artifício e muito pouco no artista ou na atividade cultural em si. E, por fim, o P dos prédios. Um monte de gente saiu fazendo prédio, não é? Agora, ao derreter a commodity brasileira, nós nos vimos numa profunda crise não só no setor econômico, mas em todo o Estado brasileiro. E na sociedade, o que nos fez perceber que não dá para continuar rodando a catraca com essa velocidade, porque nós não temos energia. Não dá para gastar dinheiro com fogos de artifício, porque a gente tem de se voltar para o núcleo do que a gente faz. E não dá para fazer prédios como a gente fez nos últimos tempos. Eu não consigo pensar em instituições privadas sem pensar numa reestruturação da Funarte. Não há política das artes no País sem ter uma Funarte fortalecida. Quiçá nas próximas privatizações não se determine que 1% de tudo possa ir para a Funarte.”
Paulo Vicelli
diretor de relações institucionais da Pinacoteca do Estado de São Paulo
LEI ROUANET NÃO DÁ AGILIDADE PARA A AQUISIÇÃO DE OBRAS “Durante anos, a Secretaria de Estado da Cultura provinha a Pinacoteca com uma verba para a compra de obras históricas. Em 2012, a gestão percebeu que havia a necessidade de manter o museu atualizado com obras de artistas brasileiros contemporâneos. O Programa de Patronos surge dessa necessidade do museu de oxigenar o seu acervo e de envolver a sociedade civil. Optamos por não oferecer a Lei Rouanet para o doador, para facilitar para a instituição esse processo de compra. A Lei Rouanet dificultaria a agilidade que precisamos ter para decidir uma compra.”
Claudinéli Ramos
coordenadora da unidade de monitoramento da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo
88
FUNDOS NÃO PODEM SER USADOS PARA PAGAR DÍVIDAS “Acho que seria muito sedutor e muito fácil chegar e fazer um discurso de defesa dos endowments. Hoje no poder público, nas várias esferas do Brasil, essa é uma discussão que atrai muito porque é uma maneira que se enxerga para desincompatibilizar o poder público da obrigação de custear os equipamentos. E tenho certeza de que não é esse o objetivo aqui. Aí, falando do lado do poder público, nós temos alguns mecanismos instituídos que precisam funcionar. Tem Fundo Nacional de Cultura, fundos estaduais de cultura. Esses fundos precisam operar plenamente. Eles não podem ser contingenciados. Eles não podem ser usados para pagar dívida ou o que quer que seja. A gente precisa implementar os fundos setoriais para museus, para bibliotecas, e a gente precisa avançar num estudo, que é um pouco diferente dos endowments privados, para a constituição dos fundos dos equipamentos públicos.”
Luciana Brito
galerista e presidente da Associação Brasileira de Arte Contemporânea (Abact)
ARTISTA BRASILEIRO PAGA TAXA DE 48% PARA TRAZER SUA OBRA PARA CASA “Quais as prioridades agora para as galerias? Primeiro, a isenção de taxas e impostos sobre a importação de obras de arte de artistas brasileiros. A gente não consegue trazer essas obras de volta para o Brasil, porque elas estão sujeitas a taxas de importação de 48,68%. É uma coisa totalmente absurda. Segundo, a redução das taxas de importação de obras de artistas estrangeiros. Hoje em dia, o intercâmbio é muito importante. Se não conseguimos trazer artistas internacionais porque a importação é proibitiva, a gente também não consegue levar os nossos artistas para fora, porque não há intercâmbio entre galerias. Terceiro item: alíquotas especiais para importações de materiais artísticos, que também são absurdas. E o quarto item seria a mudança no tratamento dado à obra de arte, por parte dos órgãos do governo, porque a obra de arte não é reconhecida como um bem cultural, mas como um bem de luxo.” SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
João Carlos Figueiredo Ferraz empresário, colecionador e presidente da Fundação Bienal de São Paulo
47
95% DA PRODUÇÃO VISUAL BRASILEIRA ESTÁ EM COLEÇÕES PARTICULARES “Vejo o museu como o espaço onde as obras de melhor qualidade da produção cultural brasileira e internacional possam ser mostradas. E, de vez em quando, paro para pensar que 95% de toda produção visual brasileira da metade do século 20 para cá está em coleções particulares. Me pergunto por que as coleções particulares se escondem ou são inibidas? Primeiro, porque não há estímulo nenhum para que se mostrem. Em segundo lugar, temos uma Constituição que gera receio, impõe medo. Existe uma espada na cabeça dos colecionadores. O que nós temos é um somatório de leis, decretos e normas que a cada governo que passa vai se acumulando e virando uma colcha de retalhos. Uma coisa complicada, difícil de entender e de fazer com que as pessoas tenham confiança em mostrar as suas coleções.”
Gregory Becher
especialista em direito tributário do escritório CQS Advogados
A LEI NÃO PREVÊ TRATAMENTO DIFERENCIADO PARA OBRA DE ARTE “Vale a gente discutir, vale a gente diminuir alíquota, vale a gente ter um ambiente mais competitivo? Com certeza. Vamos brigar, eu acho que a carga tributária também é elevada no Brasil, eu acho que a gente tem pouca competitividade, a gente tem pouca participação nas cadeias internacionais de produção e de cultura. Não só de cultura, mas no geral, porque a gente tem um ambiente muito fechado. Imagina um fiscal de fronteira estadual que está acostumado a ver bem de perto mercadoria comum. Ele vê fogão, vê farinha, vê saco de trigo. Ele não está acostumado a ver uma obra de arte. Ele vai olhar aquilo como uma mercadoria. E não há previsão na legislação para ele dar um tratamento diferente.”
90
Paulo Herkenhoff crítico de arte e curador
OS PROBLEMAS DO BRASIL SÃO OS PROBLEMAS DO COLONIALISMO “Deixei o Museu Nacional de Belas Artes com R$ 10 milhões, mas não ficaria nem mais um dia. R$ 10 milhões não dados pelo
Cris Olivieri
advogada especializada em cultura
FUNDO PATRIMONIAL EXIGE ESTÁGIO AVANÇADO DE GOVERNANÇA “Acho que uma instituição, para montar um fundo patrimonial, tem de estar num estágio de governança, de gestão e de profissionalização tal que ela vai saber dizer para o patrocinador: ‘Meu querido, dos seus R$ 20 milhões, R$ 5 milhões terão de ir para programação e R$ 15 milhões para o fundo, senão, eu sinto muito. Eu não quero o seu dinheiro. Porque eu não posso querer ter um fundo para sobreviver daqui a 50 anos e não chegar lá, não é? A pessoa que estiver fazendo a doação tem de entender que eu preciso chegar lá.” SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
ministério. Gosto da arte. Tenho a ira de quem não gosta de arte, tenho uma ira fisiológica. No MAM, a ideia foi tentar estabelecer certas questões. Como o MAM tinha uma bela coleção de escultura sobrevivente, então fui trabalhar um pouco nisso, criar uma coleção latino-americana. Fui para Buenos Aires etc. Quando chego, todo o dinheiro que eu tinha foi empregado em outra coisa. Saí com US$ 300 mil em 1987 e voltei com zero. Hoje, não se falou aqui do Museu Nacional de Belas Artes. Isso é responsabilidade de todos. Como não se fala do Museu Nacional de Belas Artes? Como não se fala de uma instituição de 1816, que recebeu cerca de 98 ou 97 obras e ainda tem 94 delas guardadas? Com tudo que lhe aconteceu de ruim, essa instituição, com seus percalços, altos e baixos, é um exemplo de possibilidades, de grandes surpresas. O imperador D. Pedro II foi maior do que a República até hoje. A República Velha foi mais respeitosa com a arte do que a democracia de Juscelino Kubitschek. A ditadura, comprando o autorretrato de Tarsila, muito superior do que a redemocratização. Até 2002, 2003, o último presidente que havia dado, comprado algo, assim mesmo ínfimo, para o Museu Nacional de Belas Artes, havia sido Sarney. Como Fernando Henrique Cardoso indica Heloísa Lustosa para diretora do Museu Nacional de Belas Artes e mantém por oito anos o museu à beira de um incêndio? Ela havia deixado o MAM depois do incêndio, o MAM que ela dirigia. Como? Em que país do mundo isso pode ocorrer? Em que cidade do mundo, senão no Rio de Janeiro? No MAR, infelizmente, que é uma instituição que eu acho que podia ter maior participação da sociedade civil, me leva a desconfiar da viabilidade de uma Organização Social (OS) na condução de um museu. Se o presidente de uma OS não gosta de arte e acha porque é de teatro que pode ensaiar sua companhia nesse museu, não tem jeito, né? É só tocando em privilégios que a sociedade brasileira mudará. Como pode morrer um Volpi e uma Lygia Clark e nada ir para a sociedade brasileira?”
Ricardo Levisky
produtor cultural, presidente da Levisky Negócios & Cultura e do Fórum Internacional de Endowments Culturais
ENDOWMENT NÃO É PARA TODOS “O fato concreto é que o endowment (fundo patrimonial) só é possível quando a sociedade civil abraça aquela instituição e percebe que ela tem, de fato, uma missão e uma função de perenidade. O endowment não vai ser para todos, não apenas por uma questão de governança, de gestão, mas até por uma questão de personalidade daquela instituição.”
Ricardo Resende curador do Museu Bispo do Rosário
É SÓ PEDIR! VOCÊ CONSEGUE! “Cheguei na Funarte em 2009 para ser diretor de artes visuais. Recebi um telefonema da diretora-executiva logo nos primeiros dias, me informando que ela tinha feito a distribuição das verbas da Funarte, cerca de R$ 100 milhões. Eram R$ 60 milhões para teatro, acho que R$ 25 milhões para música, R$ 5 milhões para dança, mais um tanto ali para políticas de artes integradas. Aí ela me fala: ‘Ah, Ricardo, infelizmente, eu não tenho nada para as artes visuais’. Aí eu falei: ‘Bom, então o que eu vim fazer aqui?’ É interessante você [Marcelo Araújo, presidente do Ibram] falar isso [que basta às instituições pedirem recursos], porque uma vez eu fui convidado para participar de um debate sobre fomento e falei da dificuldade de fazer um catálogo do Projeto Leonilson. Aí uma pessoa da plateia fez o mesmo questionamento que você. ‘É só pedir! Você consegue!’ Sabe quem ela era? Produtora cultural do Cirque de Soleil. Conseguiu R$ 9 milhões do Bradesco. Eu que fico ali no Museu Bispo do Rosário, pegando BRT todos os dias para tentar manter aquela instituição, ajudá-los a salvar aquele acervo. Você acha que o BNDES me recebe? Quem é que se interessa de fato por um acervo de um louco lá nos cafundós do Rio de Janeiro? Semana passada, estava nas notícias dos jornais a Zona Oeste. Era aquela bandidagem toda e aqueles carros soltando tiros. Era do lado do museu. É desse museu que estou cuidando. Você acha que as pessoas vão para lá visitar o museu? Não. ‘Ai, como é que eu chego? É perigoso?’ É assim que eu ouço o tempo todo, tentando incentivar as pessoas a visitarem. Então a minha realidade é muito diferente. O Bispo do Rosário é um museu invisível.”
49
R E P O R TA G E M
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
LUA N A F O RT ES
SOMAR PARA NÃO ENCOLHER
93
Parcerias institucionais entre museus e galerias trazem soluções para o desenvolvimento do sistema de arte brasileiro
DELINEADAS POR UM SISTEMA RESTRITIVO, POR VEZES PROIBITIVO, INSTITUIÇÕES CULTURAIS TÊM REAVALIADO SEUS MODELOS DE NEGÓCIOS. Quem um dia foi visto como competidor, pode ser agora um
importante parceiro. Com benefícios mútuos, experiências revelam como disputas são menos vantajosas do que alianças. O Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Instituto Tomie Ohtake (ITO), ambos privados e paulistanos, uniram empenhos para a montagem da exposição Histórias Afro-Atlânticas, que acontece entre 29/6 e 21/10/2018. Com curadoria de Adriano Pedrosa, Lilia Schwarcz, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes e Tomás Toledo, a coletiva traz mais de 400 obras de 210 artistas e compreende cinco séculos. De acordo com Ricardo Ohtake, diretor do ITO, a parceria começou informalmente em 2014. Antes de Adriano Pedrosa ser contratado como diretor artístico do Masp, ele assinou a curadoria de Histórias Mestiças, também realizada ao lado da antropóloga Lilia Schwarcz, no Instituto. A experiência foi tão positiva que rendeu elogios de Ohtake para Heitor Martins, presidente do Masp, que pouco depois incorporou Pedrosa à sua equipe. Não é de surpreender, então, que, quando o museu decidiu dedicar um ano de sua programação a narrativas e histórias afro-atlânticas, seu diretor artístico tenha convidado o Instituto para realizar a exposição juntos. “Evidentemente, a parceria vai bem quando os dois saem ganhando”, diz Ohtake à seLecT. E foi o caso. “A gente aprendeu muito e eu tenho certeza de que eles também devem ter aprendido”, completa. Enquanto o Masp recebe a coletiva em todo o seu espaço, o ITO apresenta os núcleos Ativismos e Resistências e Emancipações. A soma de conhecimento de duas das principais instituições brasileiras promete um projeto multifacetado e rigoroso. Ohtake aponta para o diálogo como principal ferramenta em uma parceria. Penny Dreadful (2017), da americana Nina Chanel Abney, faz parte do núcleo Ativismos e Resistências da exposição Histórias Afro-Atlânticas, que estará no Instituto Tomie Ohtake
RICARDO OHTAKE
INTERCÂMBIO A opinião é compartilhada por Jaqueline Martins. A galerista
participa do projeto colaborativo CONDO, que promove exposições a partir de intercâmbios internacionais. A iniciativa permite que galerias apresentem seus artistas em diferentes cidades e alcancem novos públicos, FOTO: CORTESIA DA ARTISTA, JACK SHAINMAN GALLERY, NY
o que, evidentemente, inclui novas possibilidades comerciais. O CONDO já aconteceu em Londres, Nova York, Xangai e Cidade do México. Em abril de 2018, o projeto chegou em formato reduzido a São Paulo. Diferentemente do que acontece em seu modelo original, que movimenta diversos espaços em uma mesma cidade, sete galerias compartilharam o amplo espaço da Galeria Jaqueline Martins. Foram elas KOW (Berlim), Carlos Ishikawa (Londres), Simon Preston (NY), Nuno Centeno (Porto), Grey Noise (Dubai), PM8 (Vigo) e Proyectos Ultravioleta (Cidade da Guatemala). “Em Londres, a adesão foi instantânea, mas aqui, em São Paulo, tivemos de receber o CONDO em uma condição diferente. Apenas três galerias se mostraram dispostas a abrigar o projeto”, conta à seLecT Jaqueline Martins, referindose às galerias Leme, Vermelho e Casa Triângulo. Em janeiro de 2018, 17 espaços londrinos receberam 46 galerias internacionais. “Mas, no ano que vem, quando tivermos a segunda edição do CONDO em São Paulo, acredito que conseguiremos ampliar esse número e criar um circuito”, continua. Ao observar um projeto internacional como o CONDO, o adverso tratamento dado pelo Brasil à importação e exportação de obras de arte fica evidente. As taxas são mais altas, os processos mais arriscados e o medo mais presente. Jaqueline Martins conta que, ao montar individual de um de seus artistas em outro país, leva isso em consideração. Na maior parte das vezes, escolhe trabalhos que possam ser montados no lugar onde serão exibidos, usando materiais locais. Assim, se a obra é vendida, não é necessário exportá-la. Caso SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
JAQUELINE MARTINS
contrário, basta destruí-la. “São as soluções criativas brasileiras”, diz Martins. A galerista também notou a resistência dos similares estrangeiros em enviar obras para o Brasil. “Eles ficam com medo. Sabem que vão enfrentar um processo mais caro, com burocracia grande e lenta, e que as obras podem ficar retidas na alfândega”, diz. Mas como o projeto é realizado com espírito de colaboração, cada galeria acaba se adequando às especificidades das outras. “É realmente um fluxo de sinergia e troca.”
95
DOAÇÕES PARA MUSEUS Outras galerias que têm realizado parcerias são
a Nara Roesler e a Almeida e Dale. Em 2011, a Nara Roesler criou a Associação para o Patronato Contemporâneo (APC), dirigida por Mariana Dupas. A APC busca realizar projetos institucionais que estimulem o patronato cultural. Entre seus projetos está a viabilização de doações para museus de obras produzidas por artistas representados pela Galeria Nara Roesler. A associação procura instituições museológicas e pede que elas indiquem seus grandes sonhos de consumo. “O objetivo principal é fazer um trabalho conjunto com as instituições para identificar lacunas e preenchê-las”, diz Dupas à seLecT. Durante a SP-Arte 2017, a galeria ofereceu uma condição especial aos colecionadores Daniela e Helio Seibel e viabilizou a doação da obra Mixirica (2015), de Artur Lescher, para a Pinacoteca de São Paulo. No ano seguinte, na mesma feira de arte, foi a vez de Paulo Bruscky com um conjunto de obras da série Arte/Pare (1973), também para a Pina, doado por Sergio Werlang e Rose e Alfredo Setubal. As articulações da Galeria Nara Roesler conseguem beneficiar todas as partes envolvidas. O museu, ao ter uma lacuna preenchida; o artista, ao ter representação em uma instituição; e o colecionador, ao se tornar agente da doação. No caso da Galeria Almeida e Dale, os benefícios também são profusos, mas não impactam a galeria de forma imediata. Até 2015, quando o mercado de arte brasileiro estava bastante aquecido e em franco crescimento, parte de seu orçamento destinava-se a ações de promoção cultural, desvinculada de propósitos comerciais. Depois disso, mesmo com maior
MARIANA DUPAS
Na pág. ao lado, exposição do projeto CONDO Unit na Galeria Jaqueline Martins. Acima, fotografia que registra ação da série Arte/Pare (1973), do livro homônimo de Paulo Bruscky FOTOS: GUI GOMES/ CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA NARA ROESLER
ANTONIO ALMEIDA
SELECT.ART.BR
cautela, a galeria permanece dedicada a esse objetivo. Investindo dinheiro do próprio bolso, sem renúncia fiscal, a galeria organiza e leva exposições para museus fora do eixo. “Todas as grandes exposições passam pelo Rio, passam por São Paulo, algumas vezes por Brasília e outras por Belo Horizonte. O resto do Brasil não tem direito também?”, pergunta Antonio Almeida, um dos três sócios da galeria. Nas exposições que a Galeria Almeida e Dale recebe, comumente estão presentes obras de outros espaços comerciais. No entanto, para Almeida, existe uma diferença ética entre vender trabalhos artísticos e montar boas exposições. E são essas mostras que a galeria acaba levando a instituições museológicas. É o caso da individual de Alfredo Volpi no Museu de Arte Moderna da Bahia, em exibição até 1º/7. A exposição foi realizada a partir de seu apoio, além de suporte do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna e da Paulo Darzé Galeria de Arte, de Salvador. No forno da galeria também está um projeto maior que pretende ampliar o acervo de instituições museológicas nacionais. Diferentemente das ações da Galeria Nara Roesler, o projeto da Almeida e Dale busca viabilizar doações de obras que não são necessariamente de seu acervo. Mas, vale perguntar, que benefícios isso traz à galeria? Almeida opina que descentralizar o sistema da arte brasileiro pode criar novos mercados e desenvolver novas possibilidades comerciais. Então, acredita que a vantagem apareça mais adiante. “Se você planta o bem, você colhe o bem. Você não vai plantar jaca e colher melancia”, brinca Almeida. A Almeida e Dale também se envolveu na recuperação do acervo do Museu
JUN/JUL/AGO 2018
Bispo do Rosário, no Rio de Janeiro, que até recentemente não tinha obras catalogadas. Com seu apoio, museu e galeria estão desenvolvendo o Catálogo Raisonné do Bispo, com previsão de lançamento para início de 2019. Logo depois, a Fundação Marcos Amaro entrou na jogada e ofereceu uma mão. Se um ajudou na catalogação de obras, o outro garantiu que elas seriam conservadas em boas condições. “O Marcos Amaro nos visitou e ficou muito comovido com as nossas condições precárias. Então começou a nos ajudar”, conta à seLecT Ricardo Resende, curador do museu e também diretor artístico da fundação. Assim a reserva técnica do espaço passou a ser readequada.
97
INDEPENDÊNCIA E MORTE Outra parceria que começou a dar frutos
recentemente é entre o Sesc Ipiranga e o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, que está fechado para visitação desde 2013, com previsão de reabertura apenas em 2022, caso a restauração prevista de fato comece em 2019. Em 2017, o Sesc realizou oficinas de conservação e atividades educativas com o corpo técnico do museu. Para celebrar 195 anos da emancipação política brasileira, os dois apresentaram o Museu do Ipiranga em Festa, no Parque da Independência, com 20 atividades culturais gratuitas. Ainda em 2017, o Sesc tomou conta do saguão do museu com o espetáculo Leopoldina – Independência e Morte, dirigido por Marcos Damigo, com Fabiana Gugli. O mais recente dos resultados da parceria é a exposição Papéis Efêmeros: Memórias Gráficas do Cotidiano. Com curadoria de Chico Homem de Melo e Solange Ferraz de Lima, a mostra leva ao Sesc Ipiranga até 26/8 um recorte do acervo do Museu Paulista. Sobre os benefícios que a parceria traz para ambos os lados, Solange Ferraz de Lima, diretora do Museu, afirma à seLecT: “As trocas são inúmeras. O Sesc tem uma estrutura ágil e espaços adequados para o desenvolvimento de uma série de atividades, que são do nosso escopo, com o público de diferentes faixas etárias. E nós temos o acervo e especialistas no campo da museologia, educação, conservação e historiadores”.
SOLANGE FERRAZ DE LIMA
À esq., Casas (1950), pintura de Alfredo Volpi e bolha de higienização do acervo do Museu Bispo do Rosário. Acima, Fabiana Gugli encena o espetáculo Leopoldina – Independência e Morte (2017), diante do Museu do Ipiranga FOTOS: DIVULGAÇÃO/ JOÃO GILBERTO LOPES/ MATHEUS JOSÉ MARIA
TERRITÓRIOS
ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA E O GRANDE MUNDO Não há como falar em arte indígena contemporânea sem falar dos indígenas, sem falar de direito à terra e à vida JAIDER ESBELL
AO LONGO DESTE TEXTO DEVEMOS PASSEAR POR TERRITÓRIOS DISTINTOS DO PENSAR E LOGO NOS REMETER AO PENSAR EXTRAPOLADO. PARA MAIOR SENTIDO, começamos a nossa abordagem por ressignificar
conceitos básicos. Antes, devo dizer que, como autor, me construo de representatividade; e a socialização desse pensamento compreende bem mais que a minha posição individual sobre tão vasto universo. Não há como falar em arte indígena contemporânea sem falar dos indígenas, sem falar de direito à terra e à vida. Há mesmo que se explicar o porquê de chamarmos arte indígena contemporânea e não ao contrário. Na história da literatura especializada sobre arte contemporânea produzida no Brasil, não temos autores artistas indígenas. Nesse sentido, o componente novo surpreende por seu protagonismo histórico. Convidamos a um inteiro desconstruir para outros preenchimentos. Indígena e arte são de origem comum e indissociável. Aceitar essa sentença adianta o entendimento. O sistema de arte é algo paralelo e hoje eles se tocam, envolvendo-se para além das percepções dos especialistas. A arte indígena contemporânea seria então o que se consegue conceber na junção de valores sobre o mesmo tema arte e sobre a mesma ideia de tempo, o contemporâneo, tendo o indígena artista como peça central. Um componente trans-tempo histórico e trans-geográfico é requerido. Falamos de ideia de país, mas a arte entre os indígenas hoje brasileiros vem desde antes de tudo isso.
DESCONSTRUÇÃO CONCEITUAL
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
99
Abaixo e nas próximas páginas, obras da coleção It Was Amazon (2016), de Jaider Esbell, em canetas posca e lápis giz sobre papel preto, medindo 29,7 x 42 cm
FOTOS: MARCELO CAMACHO
100
A imagem sugere o encontro da relação de valores que têm os indígenas brasileiros (sic) com a arte e com os valores do sistema clássico europeu. Uma leitura corriqueira é percebida: como é o encontro, ou como é o acesso da arte indígena contemporânea ao sistema de arte geral? Refazendo o caminho da pergunta, ressignificamos as respostas. Entendese com essa pergunta que o sistema de arte seja algo que realmente não compreende, no sentido de não conter, a arte dos indígenas. Percebese também que o sistema de arte de natureza ocidental não vê, não percebe e não faz qualquer relação com seu próprio paralelo: o sistema de arte indígena, digamos assim. O sistema de arte europeu desconhece e, portanto, não reconhece que entre os indígenas há um sistema de arte próprio, com sentidos e dimensões próprios. A arte indígena contemporânea seria essa força-poder de atração, ou mesmo atracação. Uso um termo-metodologia empregado pelos europeus e que ainda hoje é utilizado para atrair aquele intocável selvagem desconhecedor misterioso para um encontro futuro decisivo. Colocamos um pote de mistério na borda da floresta escura e esperamos que alguém venha buscar e paulatinamente vá adquirindo confiança para um encontro pessoal à luz da arte maior. Vivemos com a arte indígena contemporânea um real encontro com o Brasil do momento em relação ao sistema de arte prevalecente. Ao receber o convite para escrever sobre o assunto para esta revista, eu não poderia começar com outra abordagem. Digo que isso significa um avanço dentro de uma lógica de resistência e de uma lógica de legitimidade que a arte indígena obtém por força própria. Minha contribuição é no sentido de oferecer ao leitor-pesquisador uma visão panorâmica do momento grandioso em que estamos envolvidos. Hoje, no Brasil, posso bem representar o encontro do sistema de arte entre os indígenas com o sistema de artes global no contexto contemporâneo. Falo do reconhecimento que tenho a partir de minha identidade indígena. Falo com a potência que tem a força do meu trabalho. Falo desse boiar no agora com toda essa conquista e partilha abertas. Hoje sou um artista reconhecido com prêmios. Hoje posso dizer que o sistema de arte global já me absorveu. Hoje tenho tudo o que precisa e a que se propõe a indústria cultural. Hoje escrevo a partir de uma experiência de vivência profissional nos Estados Unidos, além de experimentar a função de galerista. A exposição midiática máxima de um trabalho artístico em ambientes polivalentes me dá surpreendente vantagem. Atuar na internet e ir pessoalmente ao encontro do povo me possibilita ler realidades e estratificá-las em possibilidades de análises sobre um Brasil em si, um Brasil em relação à América Latina e em relação ao planeta. Nessa leitura de realidade atual, a arte entre os indígenas representa em sua máxima capacidade o acesso ao mundo complementar que representa a falta de sentido que há no mundo moderno, no mundo-força que dominou e em que se evidencia o colapso. A arte indígena contemporânea nesse sentido está para muito além das molduras e estruturas. A arte indígena contemporânea purifica-se filtrando em si mesma com a força da espiritualidade, seu núcleo. A arte indígena encosta na arte geral enquanto sistemas próprios, mas elas não se fundem nem se confundem totalmente, a priori. Os propósitos da arte indígena contemporânea vão muito além do assimilar e usufruir de estruturas econômicas, icônicas e midiáticas. A arte indígena contemporânea é, sim, um caso específico de empoderamento no campo cosmológico de pensar a humanidade e o meio ambiente. O SISTEMA ME ABSORVEU
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
97
O sistema de arte de natureza ocidental não vê, não percebe e não faz qualquer relação com seu próprio paralelo: o sistema de arte indígena
Como pensar a arte indígena em contato com a ideia de cultura brasileira? Arte e indígenas é um passar performático ao longo do tempo e da geografia e para esses sentidos temos de abordar o elemento colonizador. O indígena aparece primeiro nas cartas enviadas para a Europa, logo após a chegada dos primeiros navios. Ele aparece em representações de artistas europeus numa cena de primeira missa. Assim é o encontro do sistema de artes europeu com os artistas selvagens. Para os nativos, a arte sempre será outra coisa além. O indígena é posto a cantar na catequese, é posto a ilustrar documentos de pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento. Sobre esses artistas pouco é falado. Devemos atender a um sentido a mais. Quando a arte indígena encontra o sistema de arte global, a assinatura do artista ou do
O ELEMENTO COLONIZADOR
98
coletivo de artistas é requerida. É requerido algo emoldurável para o que nunca caberá em molduras. Esse atributo de valor influencia e faz toda a diferença no contexto contemporâneo. O tempo passa e o sentido da arte entre os indígenas sofre severas influências da colonização. Aqui devemos pensar o conceito de arte indígena contemporâneo como algo estendido para todas as realidades que temos hoje no Brasil. Como pensar esse conceito sem compreender e aceitar que ainda hoje nas florestas remotas da Amazônia brasileira há “tribos selvagens” sem qualquer contato com essa ideia de mundo? Que, entre elas, a arte tem seu sentido próprio? Em certo ponto, sinto-me em atuação performática para além do figurativo. Não seria exatamente uma total abstração, mas um sentido corpóreo e bem definido para o que é exigido da arte indígena contemporânea para o tempo agora. A arte indígena contemporânea chega em ícones corporificados e depurados em uma trajetória de representação até um estado pleno de identidade cosmo-consciente. De Chico da Silva, artista mestiço, já temos mais energia que em Tarsila do Amaral. Nossa literatura já não é mais tão colonizada e hoje somos vistos como autores em salões nobres. Não é possível concluir este texto sem abordar Macunaíma e logo chamá-los para conhecer meu avô Makuniamî. Aqui temos outro paralelo multidimensional para todos que se aventurarem a abordar um assunto tão alheio como a arte indígena contemporânea. A consciência de um buscar além das referências habituais.
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
Os propósitos da arte indígena contemporânea vão muito além do assimilar e usufruir de estruturas econômicas, icônicas e midiáticas. É um caso específico de empoderamento no campo cosmológico de pensar a humanidade e o meio ambiente
99
Definitivamente, a juventude indígena artista do Brasil vem com todas as forças a que acessam ao entregarem seus talentos sem reservas a uma sabedoria maior. Hoje surgimos desenhando a política tão bem ilustrada por Ailton Krenak em sua performance de pintar o rosto com jenipapo no Palácio do Planalto, ao defender o indígena na Constituição de 1988. A arte indígena contemporânea vem juntamente com tudo o que há de tecnologia. O livro de Davi Kopenawa Yanomami – A Queda do Céu – é uma bíblia. Temos o Coletivo Maku, com exposição na Fundação Cartier, em Paris. No salão da Bienal de Arte Naïf do Sesc Piracicaba-SP, o maior do País, temos Carmézia Emiliano como a mulher artista mais premiada. Carmézia é indígena Makuxi e está totalmente absorvida pelo sistema de arte internacional. Embora seja grande em seu fazer, a artista é pouco conhecida e mesmo a arte naïf continua em uma posição periférica em relação ao eixo do sistema. Em 2016, tivemos três artistas indígenas indicados ao Prêmio PIPA. Desse feito temos eu, Jaider Esbell, como vencedor do Prêmio PIPA Online 2016 e Arissana Pataxó em segundo lugar. Também foi indicado Ibã Sales Hunikuin representando o Coletivo Maku.Essas evidências são pontos fundamentais para todos os atentos que buscam estar a par desse encontro de sistemas. Devo dizer que meu atuar ecoa para um sentido da arte que puxamos para nós indígenas em relação ao grande mundo. Fazemos política de resistência declarada com a arte em contexto contemporâneo aberto. Em contexto fechado, ressignificamos nossas estruturas culturais e sociais com arte e espiritualidade em um mútuo alimentar de energias para compor a grande urgência de sustentar o céu acima de nossas cabeças. DESENHANDO A POLÍTICA
ARTE E EDUCAÇÃO
ENTERRADAS VIVAS: ESTRATÉGIAS NEOLIBERAIS Cursos de ensino superior de arte e design desaparecem sob a lógica de que a oferta educacional é um produto e o público, consumidor
MIRTES MARINS DE OLIVEIRA
DESDE 2009, QUANDO DO INÍCIO DE DESCONTINUIDADE DAS AÇÕES DE UM MESTRADO EM MODA NA CIDADE DE SÃO PAULO, VERIFICA-SE QUE, DE FORMA SISTEMÁTICA, ALGUMAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR (IES) OPTARAM POR ENCERRAR A OFERTA DE CURSOS NO CAMPO DA ARTE E DO DESIGN. Uso a palavra descontinuidade por
tê-la escutado várias vezes em processos que acompanhei de perto. Seu uso tem uma função apaziguadora de professores e alunos, embutindo, por parte das IES, morte lenta ao processo de fechamento desses cursos, uma exigência da legislação que prevê que os alunos já SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
matriculados devam ser atendidos até o final do curso. Quase dez anos depois, e com o acúmulo de outros casos, é necessário levantar hipóteses sobre possíveis causas dessa situação: seria um ataque deliberado das instituições educacionais especificamente ao campo artístico, histórica e supostamente considerado criativo, crítico e inovador? Para tentar estabelecer outros vínculos, aproveito informações concedidas pela Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), que fornece os dados consolidados do Cadastro do e-MEC de Instituições e Cursos de Educação Superior de 2015 para a área de artes
105
Estudantes marcham em São Paulo, aos gritos de “Não tem reforma, vai ter luta!”, contra a reforma do Ensino Médio, em 2016
visuais. Naquele ano, o documento aponta para a descontinuidade ou fechamento total de cerca de 28% dos cursos de bacharelado e 20% das licenciaturas – presenciais e a distância – em Artes Visuais (e cursos afins como Arte e Moda ou Arte com Habilitação em Figurino e Indumentária) no Brasil, incluindo nessa contabilidade iniciativas de IES particulares, públicas e comunitárias. No mesmo documento referente ao ano de 2016, dos 367 cursos oferecidos no segmento Artes Visuais, 17 estão em processo de descredenciamento solicitado pelas próprias instituições. Mas seria essa situação circunscrita à área artística? Como
confrontá-la com a profissionalização visível e a consolidação de um circuito artístico em algumas regiões do Brasil nas últimas décadas? Essa relação – entre fechamento de cursos em nível superior de Artes e o circuito – pode ser estabelecida de forma tão direta? Haveria um desmonte, que seria no campo cultural ou educacional? Ou ambos? Haveria uma conexão com o contexto internacional? Não é possível compreender essa operação sem considerar que se fala de um sistema educacional cujos alvos não seriam apenas os cursos de Arte, mas, aparentemente, as Humanidades de maneira geral. FOTO: AGÊNCIA BRASIL
Faz muito sentido buscar essa redefinição do que é arte com a finalidade de (re)encaixá-la na categoria luxo, quando se trata de, com essa operação, 106
reduzir preocupações e, principalmente, gastos
Depois de alguns anos nos quais o foco desse sistema foi a expansão da educação superior no Brasil através de políticas de acesso e apoio às instituições por meio do oferecimento de cursos a distância, das políticas de cotas, do Programa de Financiamento Estudantil (Fies), do Programa Universidade para Todos (ProUni), do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), verifica-se a descontinuidade também desses processos. Apesar dessa entrada por meio do ensino superior, uma visada mais ampla permite observar que esse novo desenho não se restringe nesse nível, mas é possível observá-lo em outras instâncias. Assim, é possível compreender a nova versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino médio a partir das descontinuidades, específicas no que diz respeito ao ensino de Artes e Humanidades, já que o documento prevê que apenas as áreas de linguagens e matemática devem ser ofertadas de forma obrigatória nos três anos do ensino médio. Falar em sistema, no caso da arte e da educação, implica uma percepção local e global. Também em 2015, The Guardian publicou um artigo de Suzanne Moore, Our art schools have become finishing schools for a wealthy few, no qual tratava dos protestos e ocupações na Central St. Martins protagonizados por alunos de artes. Moore apontava para a abrangência desses protestos – com ecos internacionais – que chamavam atenção para cortes financeiros nos cursos daquela fundação. Sua avaliação, conforme indica o título da matéria, era a de que as escolas de arte se tornariam restritas e abertas apenas para aqueles que pudessem pagar por essa educação. Segundo a autora, a base dessa premissa é a de que arte é um luxo e, portanto, não mereceria financiamento público. Certamente, os artistas de Arts & Crafts (do século 19) e Bauhaus (no século 20), para considerar apenas uma visada europeia, reviraram-se nos túmulos com essa formulação simplista e limitada. Mas também não é DESCONTINUIDADES
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
essa uma formulação que circula atualmente pelas mídias diversas sobre o papel da arte nas sociedades? Faz muito sentido buscar essa redefinição do que é arte com a finalidade de (re)encaixá-la na categoria luxo, quando se trata de, com essa operação, reduzir preocupações e, principalmente, gastos. Mas, se Arts & Crafts e Bauhaus tentaram articular inovação, criatividade e pensamento crítico (o que se espera de um ensino em Arte e Humanidades) em diálogo com o capital, o que dizer das inúmeras experiências em arte e design que buscam a experimentação? Enterradas vivas, operam nas instâncias periféricas e permanecem, portanto, sem fomento para desenvolvimento e sustentação. De qualquer forma, urge pensar, debater e duvidar das descontinuidades, mas a pauta necessária como pano de fundo é discutir a função social da arte e também da educação. Ambas consideradas e apoiadas não apenas em nível superior ou de pesquisa, mas também como fundamento desde os primeiros anos escolares. Arte e educação para artistas e para todos. Mas estaria essa questão no horizonte do circuito artístico para além do número de passantes em catracas, que, muitas vezes, considera a oferta educacional um produto e o público, consumidor, delineado pela cada vez mais frequente atuação do departamento de marketing, que agora passa a fornecer diretrizes para as atividades educacionais. Essa constatação pode ser observada de outro ângulo: significa que certa produção artística (e sua educação correspondente) mantém-se desejável, porque inserida na lógica monetária. Assim, o que não pode ser transmutado rapidamente nessa ordem deve ser descartado e desqualificado porque não merecedor de atenção, estímulo, investimento. Estendida para o campo ampliado das Humanidades (se ficarmos a penas no âmbito da Universidade), talvez seja possível concluir que as descontinuidades não têm como alvo o exercício do pensamento crítico, mas são resultado da incapacidade do campo de, em curto espaço de tempo, se transformar em moeda.
CURSOS DE ARTES VISUAIS EXTINTOS OU EM EXTINÇÃO NO BRASIL I N ST I T U I Ç Ã O D E E N S I N O S U P E R I O R
E STA D O
CU R S O
TIPO
VAGAS
SITUAÇÃO
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI (UAM)
SP
ARTES
LICENCIATURA
60
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE BRAZ CUBAS (UBC)
SP
ARTES PLÁSTICAS
LICENCIATURA
160
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE EST. DE CAMPINAS (UNICAMP)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
30
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE EST. DE CAMPINAS (UNICAMP)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
0
EM EXTINÇÃO
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE ARARAS (UNAR)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
80
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU (USJT)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
0
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL (UNICSUL)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
90
EM EXTINÇÃO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO SÃO LUÍS (FESL)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
0
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DE MOGI DAS CRUZES (UMC)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
240
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA (UNISANTA)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
50
EM EXTINÇÃO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO E CULTURA MONTESSORI (FAMEC)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
200
EM EXTINÇÃO
FACULDADE ESTÁCIO COTIA - ESTÁCIO FAAC (ESTÁCIO FAAC)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
200
EM EXTINÇÃO
FACULDADE ESTÁCIO DE IBIÚNA (ESTÁCIO IBIÚNA)
SP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
100
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI (UAM)
SP
ARTES
BACHARELADO
60
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE EST. PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO (UNESP)
SP
ARTES PLÁSTICAS
BACHARELADO
25
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE BRAZ CUBAS (UBC)
SP
ARTES PLÁSTICAS
BACHARELADO
160
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE EST. DE CAMPINAS (UNICAMP)
SP
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
0
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE EST. DE CAMPINAS (UNICAMP)
SP
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
30
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU (USJT)
SP
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
90
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE REG. DE BLUMENAU (FURB)
SC
ARTES
LICENCIATURA
81
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA (UNOESC)
SC
ARTES
LICENCIATURA
35
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA (UNOESC)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
40
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA (UNOESC)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
40
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA (UNOESC)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
40
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO OESTE DE SANTA CATARINA (UNOESC)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
40
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA (UNISUL)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
80
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA (UNISUL)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
80
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE ALTO VALE DO RIO DO PEIXE (UNIARP)
SC
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
50
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE COMUNITÁRIA DE CHAPECÓ (UNOCHAPECÓ)
SC
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
50
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE (UNIVILLE)
SC
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
48
E XT I N TO
UNIVERSIDADE EST. DO CENTRO-OESTE (UNICENTRO)
PR
ARTE - EDUCAÇÃO
LICENCIATURA
25
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ (UTP)
PR
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
100
EM EXTINÇÃO
FACULDADE DO NOROESTE DO PARANÁ (FACINOR)
PR
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
50
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE EST. DO CENTRO-OESTE (UNICENTRO)
PR
ARTE - EDUCAÇÃO (A DISTÂNCIA)
LICENCIATURA
250
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ (UTP)
PR
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
100
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ)
RJ
ARTES
LICENCIATURA
0
EM EXTINÇÃO
CENTRO UNIVERSITÁRIO GERALDO DI BIASE (UGB)
RJ
ARTES
LICENCIATURA
120
EM EXTINÇÃO
ESCOLA SUP. DE ENSINO HELENA ANTIPOFF (ESEHA)
RJ
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
40
EXT I N TO
ESCOLA SUP. DE ENSINO HELENA ANTIPOFF (ESEHA)
RJ
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
40
EXT I N TO
UNIVERSIDADE DA REGIÃO DA CAMPANHA (URCAMP)
RS
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
50
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL (ULBRA)
RS
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
130
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE REG. DO RIO GRANDE DO SUL (UNIJUI)
RS
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
40
EM EXTINÇÃO
FACULDADES INTEGRADAS MACHADO DE ASSIS (FEMA)
RS
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
40
EXT I N TO
UNIVERSIDADE FED. DE JUIZ DE FORA (UFJF)
MG
ARTES
LICENCIATURA
0
EM EXTINÇÃO
CENTRO DE ENSINO SUP. DE UBERABA (CESUBE)
MG
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
80
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE FED. DE JUIZ DE FORA (UFJF)
MG
ARTES
BACHARELADO
0
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE FED. DE GOIÁS (UFG)
GO
ARTES VISUAIS - DESIGN DE INTERIORES
BACHARELADO
30
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE FED. DE GOIÁS (UFG)
GO
ARTES VISUAIS - DESIGN GRÁFICO
BACHARELADO
35
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR (UCSAL)
BA
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
120
EM EXTINÇÃO
UNIVERSIDADE FED. DO AMAPÁ (UNIFAP)
AP
ARTES VISUAIS
LICENCIATURA
35
EM EXTINÇÃO
INST. DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROF. CAMILLO FILHO (ICF)
PI
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
80
EM EXTINÇÃO
FACULDADES INTEGRADAS BARROS MELO (FIBAM)
PE
ARTES VISUAIS
BACHARELADO
80
EM EXTINÇÃO
Fonte: Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), com dados do Cadastro do e-MEC de Instituições e Cursos de Educação Superior de 2015 e 2016
107
LIVROS
DE QUE MATÉRIA É FEITO O DOMINGO? PAULA ALZUGARAY
Artistas e colaboradores dos Domingos da Criação reencontram-se em livro-arquivo do projeto que é marco da experimentação em arte e educação Quando os alunos de Anna Bella Geiger perguntavam, em 1970, o que deveriam levar para seu curso no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – lápis, pincel, tinta? –, a resposta era: nada disso. Deveriam trazer o que encontrassem em seu caminho de casa até o museu, na rua, no lixo. Então, as aulas começavam com uma incógnita do tipo: “Descubram aí o que é preciso para iniciar um trabalho”. Em um dos primeiros cursos que ela deu, propôs que desmanchassem o jardim do museu. Todas as pedras foram removidas, criando uma nova paisagem. Esse era o contexto do MAM Rio quando Frederico Morais era coordenador dos cursos e ateliês livres, que abriam campo para que jovens artistas como Geiger e Aluísio Carvão ampliassem seus projetos experimentais para o escopo do museu, de seus jardins e da cidade. Os Domingos da Criação nasceram nesse contexto, concebidos por Morais inicialmente como extensão das atividades didáticas. Mas o projeto revelou-se muito mais do que isso, quando deu materialidade à ideia da ocupação do espaço público como ato estético e político. Assim, nos seis encontros dominicais organizados entre janeiro e agosto de 1971, a área externa do MAM e o SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
À esq., Domingo do tecido, em foto de Raul Pedreira; abaixo, Domingo da terra a terra, em foto de Beto Felício
R E V I E WS
Aterro do Flamengo foram incorporados como extensão natural do museu. Entre as importantes discussões suscitadas pelo projeto, levanta-se a questão do lugar da arte. Lugar físico – aqui ampliado para a cidade – e lugar temporal. Questionava-se a limitação da fruição da arte a uma atividade de fim de semana, dissociada da vida real. “De que matéria é feito o domingo? Qual a tessitura do domingo? O domingo é um tigre de papel? Com que roupa o vestimos, com que fios tecemos o domingo? Quais as cores e os sons do domingo, sua corporeidade?”, escreveu Frederico Morais em ensaio publicado em Domingos da Criação: Uma Coleção Poética do Experimental em Arte e Educação, organizado por Jéssica Gogan. “Uma das ideias motoras dos Domingos da Criação era de que a
Domingos da Criação: Uma Coleção Poética do Experimental em Arte e Educação Jéssica Gogan (org.), 308 págs., R$ 75
criação não está restrita às atividades dominicais. Ela pode e deve ser desenvolvida em tempo integral, em casa ou no trabalho, no lazer e nas atividades produtivas, no modo como nos vestimos, caminhamos, conversamos, nos relacionamos com outras pessoas, como participamos da vida política e social.” A publicação, projeto contemplado no Rumos Itaú Cultural 2015-2016, define-se como um livro-arquivo. Reúne um acervo precioso de imagens dos seis encontros, uma coleção de fac-símiles de artigos e reportagens de jornais, ensaios e entrevistas realizadas recentemente com os artistas colaboradores dos Domingos, como Angel Vianna, que participou com Klauss Vianna do Corpo a Corpo do Domingo (29/8/71); Carlos Vergara e Antonio Manuel, que integraram Um Domingo de Papel (24/1/71). FOTO: RAUL PEDREIRA/ BETO FELÍCIO/ DIVULGAÇÃO
À esq., Cabelo, o xamã ianomâmi Davi Kopenawa e a curadora Lisette Lagnado em encontro realizado dentro da exposição Luz Com Trevas, na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, no Dia do Índio
102
RIO DE JANEIRO
RIMBAUD CONTRA RAMBO NO PORÃO DO CAPITALISMO MICHELLE FARIAS SOMMER
Luz com Trevas, exposição-obra de Cabelo, mantém fios soltos em indomesticáveis proposições freestyle “Aqui é do fim pra frente”, lê-se no lambelambe instalado no térreo da sede do BNDES, no Largo da Carioca, Centro do Rio de Janeiro, que anuncia a exposição Luz com Trevas, individual de Cabelo com curadoria de Lisette Lagnado. Na terça-feira 20/3, a abertura da exposição aconteceu em paralelo ao grande ato em memória dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorridos na semana anterior. Contra a superfície da cidade em convulsão emergem do subsolo – onde está localizada a galeria – espasmos de luz em uma exposição-obra. “Sou eu é você é a América Latina – sul sub embaixo da terra longe do falatório dentro de você condição única da criação”, diz o texto Subterrânia (1969), de Hélio Oiticica. No porão do capitalismo – que enfrenta sua contradição acolhendo uma exposição a partir de edital de seleção pública – o prefixo “sub”, utilizado no texto de Oiticica para compor palavras de conotação política, pode ser aplicado aqui como substrato-essência da exposição Luz com Trevas. Configurada como ateliê do artista em campo SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
Luz Luzcom comTrevas, Trevas, de de21/3 21/3aa11/5/2018, 11/5/2018, Galeria GaleriaBNDES BNDES(Av. (Av. República Repúblicado doChile Chile100, 100, Rio Riode deJaneiro, Janeiro,RJ) RJ)
ampliado, ali estão obras, objetos, tecidos, filmes, sofás, tapetes, tevês e “ovos-bomba”, que, como gênese em explosão, irrompem o novo. Na exposição-obra, Cabelo não se prende e não se deixa apreender em amarras: mantém fios soltos em indomesticáveis proposições freestyle. Entre conexões de um espiritualsensível-experimental na loucura sã do artista baixam as entidades Cobra-coral, Exu e MCs. Todos em um: Cabelo, veículo da poesia. No simbólico 19/4, lampejos de lucidez política e poética são adensados pela presença xamânica de David Kopenawa, entre uma atenta plateia de 500 pessoas que habita o chão da exposição. Na anarquia matérica do entorno – da exposição, da cidade –, as sábias palavras do líder ianomâmi nos mostra que, apesar dos olhos abertos, enxergamos tão pouco; nos enchemos de esquecimentos, ficamos ignorantes, matamos uns aos outros, dormimos sem sonhos. Mas Cabelo sonha, invoca Rimbaud contra Rambo, constrói uma zona autônoma temporária que é uma catapulta volátil que mira um algo, um corpo, alguém para con-sentir, como um jogo de significantes que dá consenso para um sentir outro; talvez uma suprassensação (de novo Oiticica). A exposição é acompanhada de um catálogo – desenhos da escrita em pele de papel – que contém um glossário da produção do artista, compilados pela curadora em encontros que completam 20 anos. Ali estão “camuflagem”, “transe” e “instauração” – que designam os efeitos de um acontecimento no espaço. Luz com Trevas é uma exposição-obra que amplia o corpo singular experimental daqui; contém restos vivos de uma espécie de explosão pós-Big-Bang, com obras que copulam e dançam – mesmo estáticas –, convocando a imaginação para estados de invenção que não estão dados. Uma fresta do sol “sub” que, em tempos de catástrofe, sounds like light. FOTO: WILTON MONTENEGRO
Bloco Cacique de Ramos, em foto de Alair Gomes, que integra a exposição O Rio do Samba
RIO DE JANEIRO
O ESPÍRITO DAS RUAS PAULA ALZUGARAY
O MAR e a Escola do Olhar, exceções no caos das políticas públicas brasileiras, completam cinco anos com mostra sobre o samba O Museu de Arte do Rio surgiu em um momento de convulsão urbana e social. Em 2013, com a região central do Rio convertida em canteiro de obras para capacitar a cidade a receber os Jogos Olímpicos, falava-se que reforma tão grande só teria sido vista cem anos atrás, quando o então prefeito Pereira Passos demoliu o Morro do Castelo para abrir a Avenida Rio Branco, além de outras peripécias. Entre a poeira e o bate-estacas da demolição da Perimetral, da construção do polêmico Museu do Amanhã e da descuidada remoção de moradores dos morros da região portuária, surgiram o MAR e a Escola do Olhar, que imediatamente se firmaram como exceções dentro do desregramento do cenário das políticas públicas tanto no Rio quanto em âmbito nacional. Com um projeto institucional capitaneado pelo então diretor artístico Paulo Herkenhoff, o MAR desenvolveu atividades de coleta, registro, preservação e devolução à comunidade de uma categoria de bens e patrimônios culturais até então desprezados por programas museológicos. Em diálogo com seu entorno, região conhecida por “Pequena África”, o MAR deu visibilidade às histórias do Valongo e voltou-se para contextos extremos do território brasileiro, como a Amazônia
O Rio do Samba: Resistência e Reinvenção, Museu de Arte do Rio (MAR), RJ/ até 30/3/2019
e o Pará. Essa trajetória é coroada com O Rio do Samba: Resistência e Reinvenção. Com curadoria de Evandro Salles, atual diretor artístico do MAR, Clarissa Diniz, Marcelo Campos e o pesquisador Nei Lopes, a mostra reúne cerca de 800 itens, entre obras de arte e documentos. Os materiais de comunicação sinalizam que ela está dividida em três segmentos, que atravessam momentos-chave do samba: da herança africana e a marginalização dos sambistas até o resgate da importância do ritmo e sua alçada à condição de patrimônio cultural. Esse “crescendo” da marginalidade à reafricanização tem um caráter de reconstrução de uma história até aqui muito mal contada, e vocação para funcionar bem no catálogo, previsto para ser lançado em fevereiro de 2019 (livro que faria excelente trabalho se adotado como peça didática do ensino formal no Brasil). Mas, na prática, no espaço expositivo, são outros quinhentos. Se o samba nasceu do encontro cultural e social entre mundos muitos distintos, é natural que suas fases, suas passagens e seus personagens amalgamem e se confundam. Essa mistura, muito condizente com o “espírito das ruas” evocado na literatura de João do Rio, é o espírito que prepondera no terceiro andar do MAR, onde a exposição ficará montada até março de 2019. É nesse espírito da mistura que se encontram bambas de diferentes geografias e gerações, como Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres e o jovem artista paulistano Jaime Lauriano, que realizou uma intervenção no calçamento português do térreo do MAR, inscrevendo no piso os nomes de regiões do continente africano que foram palcos de sequestros e deportações para o fornecimento de mão de obra escrava ao Brasil. FOTO: ALAIR GOMES/ACERVO DA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
Entrada do Studio OM.art, em que o subsolo é um espaço expositivo, inaugurado com remontagem de instalação de Hélio Oiticica, e os andares superiores são o estúdio de Oskar Metsavaht
104
RIO DE JANEIRO
EM BUSCA DE IDENTIDADE MÁRION STRECKER
Oskar Metsavaht, fundador e diretor de criação da Osklen, abre espaço expositivo junto ao Hipódromo da Gávea, no Rio de Janeiro “Não sou um mecenas. Sou generoso de ter um espaço que poderia ser só meu estúdio, estou abrindo porque para mim me acresce e porque compartilha com todo mundo”, diz Oskar Metsavaht à seLecT. “Imagine agora com todos os meus amigos artistas, as performances. Divertido”, comenta ele. Esse é o novo Studio OM.art, que tem como vizinho a Carpintaria, filial da Galeria Fortes D’Alloia & Gabriel, e fica na Vila Portugal, junto ao Hipódromo da Gávea, na Rua Jardim Botânico. A área pertence ao Jockey Club Brasileiro e está em processo de reviSELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
Hélio Oiticica: Rhodislândia Até 4 de agosto, com performances de Luciana Magno (23/6), Ayrson Heráclito (7/7) e Opavivará! (4/8) Studio OM.art, Rua Jardim Botânico, 997, Rio de Janeiro om.art.br
talização em parcerias com a iniciativa privada. A exposição inaugural, feita com a Lei Rouanet, traz a remontagem de uma instalação de Hélio Oiticica (1937-1980), feita em 1971 com alunos em workshop na Universidade de Rhode Island, nos EUA. O curador é Cesar Oiticica Filho, sobrinho de HO, cineasta, fotógrafo e artista ele também. A instalação, com chão de brita, divide-se por telas coloridas e soltas em pequenos compartimentos transparentes, dentro dos quais há elementos diferentes, como galhos, um piano ou poemas em papel. A ideia original era permitir que outras pessoas usassem o espaço. Cesinha, como é conhecido, chamou performers para atuarem ali. Na inauguração, a vez foi da artista paraense Berna Reale. “Eu não faço performance dentro de galeria”, disse ela, explicando por que não se apresentaria ao vivo. “Achei honesto e maduro que eu apresentasse um vídeo e eles aceitaram.” Assim, Berna exibe A Frio (2017), performance filmada em que aparece careca, com luvas e fone de ouvidos cor-de-rosa, literalmente enxugando gelo, numa labuta sem fim. Homens espalham com pás as pedras de gelo. Filmado numa fábrica de gelo em Belém do Pará, sabemos que ela ouve o canto litúrgico católico Vos Omnes, em latim, que repete como mantra: “Oh! Vós homens que passam, olhem e vejam se há dor como a minha dor”. “Este é um organismo vivo”, diz o curador. “Vai ser sempre renovado pela ativação dos artistas. Luciana Magno vai trazer uma coisa bem forte: eles vão botar as pessoas para voar”, adianta. Estão previstos ainda o Sofáraokê, do coletivo carioca Opavivará!, que vai botar o público para cantar, e Buruburu, performance do baiano Ayrson Heráclito, em que a pipoca, conhecida no candomblé como flor de Obaluaê, orixá das doenças e curas, vai ser oferecida ao público em banho ritual de limpeza de corpo e alma. Sobre a linha de atuação do Studio OM.art, Oskar comenta: “Não quero ter uma identidade definida. Acho que o espaço vai ganhar a sua identidade”. FOTO: MÁRION STRECKER
O performer Norman Scott é banhado por fluidos de diferentes cores em Nascimento Invertido (2014), vídeo de Bill Viola
105
SÃO PAULO
BILL VIOLA ESTREIA NOVO SESC LUANA FORTES
Focado na relação entre corpo, arte e tecnologia, Sesc Avenida Paulista abre com exposição de vídeos do norte-americano Bill Viola A abertura da nova unidade do Sesc na Avenida Paulista, em São Paulo, é marcada pela exposição Visões do Tempo, de Bill Viola, um dos pioneiros da videoarte. Doze trabalhos produzidos nas últimas duas décadas espalham-se pelo espaço escuro e labiríntico. A seleção de vídeos foi feita por Kira Perov, diretora-executiva do Bill Viola Studio e mulher do artista, em diálogo com Juliana Braga de Mattos e Sandra Leibovici, do Sesc São Paulo. O conjunto mostra o interesse de Viola pela extensão da duração do tempo, pelo corpo humano e pela tecnologia. O ritmo de cada trabalho é único, fazendo com que a experiência de ver 12 deles em uma mesma ocasião seja inconsistente. A videoinstalação com nove canais Capela de Ações Frustradas e Gestos Fúteis (2013) mostra performers realizando exatamente aquilo que o título indica. A obra pode provocar desde o tédio até uma reflexão sobre a frivolidade da existência humana. Mas uma coisa é certa, dos 12 trabalhos expostos, algum certamente levará a inquietações. Entre os destaques da exposição estão Homem Em Busca De Imortalidade/Mulher Em Busca De Eternidade (2012), em que Viola projeta imagens de um homem e de uma mulher, idosos e nus, sobre placas de granito preto apoiadas na parede. Enquanto eles examinam seus corpos, a textura do granito desvia o olhar do público.
Bill Viola: Visões do Tempo Até 9/9. Sesc Paulista, Av. Paulista, 119, www.sescsp.org.br
O trabalho traz o desejo de se aproximar, mas o zelo da montagem e a forma como as pessoas são filmadas inibem o movimento. Em Nascimento Invertido (2014), a projeção de um vídeo vertical ocupa o pé-direito duplo do espaço e exige apreço. Cinco fluidos de diferentes aspectos e cores molham o corpo de um homem, em referência ao ciclo da vida. Terra, sangue, leite, água e ar lideram simbolicamente uma reflexão sobre o nascimento, a morte e o renascimento. A transformação não é só o assunto dos vídeos, mas também algo possível de acontecer ao espectador. FOTO: CORTESIA BILL VIOLA STUDIO
EM CONSTRUÇÃO
114
EXTREMOS DA AMÉRICA LUA N A F O RT ES
NELSON FELIX FOI CONVIDADO PELO CURADOR GABRIEL PÉREZ-BARREIRO A DESENVOLVER PROJETO-SOLO NA 33ª BIENAL DE SÃO PAULO, QUE ACONTECERÁ ENTRE 7/9 E 9/12 DE 2018.
Peréz-Barreiro pensou a Bienal a partir de uma revisão do conceito de curadoria. Seu processo de seleção não foi de obras de arte, mas de artistas-curadores e projetos individuais. Enquanto 7 artistas montam exposições coletivas simultâneas, outros 12 foram escolhidos para apresentações-solo, dos quais 8 tiveram obras comissionadas. Nelson Felix foi um deles. De acordo com o artista, o novo trabalho será um reflexo de Cruz na América (1985-2004). Como é costume em seu processo criativo, o trabalho a que faz referência começou no papel, como desenho. Felix selecionou, a partir de coordenadas geográficas, dois pontos em um mapa da América – um na Floresta Amazônica e outro nos Pampas gaúchos. Interligou esses dois pontos com uma linha e traçou uma perpendicular à reta, prolongando-a até o litoral e até o Deserto do Atacama, formando uma cruz sobre o mapa da América do Sul. Depois, realizou intervenções em cada um desses lugares. Na época, desejava fugir de pensamentos compositivos e se esquivava de escolhas excessivas. Na obra deste ano, esse penSELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2018
No desenho da série Esquizofrenia (20172018), Nelson Felix reflete sobre obra que apresentará na 33a Bienal de São Paulo
samento é invertido. “É um trabalho totalmente feito na ideia da composição. Eu vou para um determinado lugar, numa determinada hora e tomo uma decisão importante do trabalho”, conta à seLecT. Os lugares a que faz referência são Ushuaia (Patagônia argentina), no extremo sul da América, e Anchorage, cidade mais populosa do Alasca (EUA), no extremo norte. Nos desenhos da série Esquizofrenia (2017-2018), o artista indica Ushuaia e Anchorage como locais de escolha, unidos por uma coluna vertebral. Em São Paulo, a obra de Nelson acontecerá em dois espaços diferentes. Um deles será o prédio da Bienal e o outro a empena de um prédio. O artista considera importante que o trabalho não possa ser visto por inteiro de uma só vez. “Acho que arte é essa impossibilidade de ver e compreender tudo”, diz. Para a composição, usa objetos de ferro, vasos de plantas, cactos e mimosas pudicas, também conhecidas como dormideiras. São pequenos arbustos que se recolhem quando tocados. Para o artista, “tudo se resume na possibilidade de o cacto tocar a dormideira e ela se fechar”. FOTO: CORTESIA DO ARTISTA, GABI CARRERA
Onde tem riqueza cultural, tem o apoio do Banco Safra. O Banco Safra tem a tradição de apoiar projetos que carregam a maior riqueza de um país: a cultura. Seja musical ou artística, para ser resgatada, preservada e compartilhada com todos os brasileiros, ela conta sempre com o apoio do Banco Safra.
SAC: 0800 772 5755 (24 horas por dia, 7 dias por semana). Ouvidoria: 0800 770 1236 (dias úteis, das 9h às 18h).