EDIÇÃO ESPECIAL ANIVERSÁRIO 10 ANOS
A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A JUL/AGO/SE T 2021
VOL. 10 N. 51
COMUNIDADES Xapiri (2012), de Gisela Motta e Leandro Lima Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra Bruce Albert
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ANITA EKMAN MAHKU BROOK GARRU ANDREW MIGUEL CHIKAOKA ABEL RODRÍGUEZ GÊ VIANA JAIDER ESBELL ALINE ROCHEDO PACHAMAMA LABÔ YOUNG GUSTAVO CABOCO
4
Curadoria Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza Assistência de curadoria Camila Fontenele Coordenação educativa Renata Sampaio Artistas participantes Aimée Zito Lema, Ana Pi e Maria Fernanda Novo, Antonio Társis, Bronwyn Katz, Carmézia, Castiel Vitorino Brasileiro, ColetivA Ocupação, Colectivo Ayllu, Dalton Paula, Davi de Jesus do Nascimento, Davi Pontes e Wallace Ferreira, Denilson Baniwa, Denise Alves-Rodrigues, Diego Araúja, Ella Vieira, Elvira Espejo, Engel Leonardo, Fernando Palma Rodríguez, Gê Viana, Guerreiro do Divino Amor, Haseeb Ahmed, Iagor Peres, Ivan Henriques, Jaider Esbell, Johanna Unzueta, Jonas van Holanda, Jota Mombaça, Juliana dos Santos, Julien Creuzet, Lais Machado, Laura Lima, Lia García, Luana Vitra, Madalena dos Santos Reinbolt, Marepe, Mário Lopes, Musa Michelle Mattiuzzi, Negalê Jones, Noara Quintana, Nohemí Pérez, Paulo Nazareth, Pêdra Costa, Pedro Victor Brandão, Rebeca Carapiá, Renata Lucas, Rommulo Conceição, Sabelo Mlangeni, Sallisa Rosa e Sucata Quântica, Shirley Villavicencio Pizango, Tabita Rezaire, Thiago Martins de Melo, Ventura Profana, Vijai Patchineelam, Zumvi Arquivo Fotográfico VOL. 10 / N. 49
JAN/FEV/MAR 2021
O rio é uma serpente
FRESTAS Trienal de Artes 2020–2021 5
Exposição de 21.08.2021 a 30.01.2022, no Sesc Sorocaba
sescsp.org.br/frestas Apoio
Apoio institucional
Realização
30
42
82, 121, 174
TERRITÓRIO
CURADORIA
PROJETO DE ARTISTA
MARABÁ: ESTUDO DE CASO ZONA DE CONFLITO
ARTISTAS E BARQUEIROS
#FLORESTAPROTESTA A gráfica ativista de Dora Longo
Mariza MokarzelTEMPOS escreve sobre a
Alexandre Silveira, Keyla Sobral
DESIGN ORGÂNICO Bahia, Guto Lacaz e Lenora de Barros
26
SOBREPOSTOS cena artística pulsante de uma e Maurício Adinolfi e o encontro
34 MODA
em defesa do meio ambiente Ancestralidade e natureza informam o styling do artista e
e mundo espectral cidade invadidaRealidade por adversidades com comunidades barqueiras se interconectam na pintura
estilista paraense Labô Young
recente de Jaider Esbell
72 REPORTAGEM
ARTE INDÍGENA NO MUSEU Os desafios dos artistas indígenas contemporâneos em expor em instituições ocidentais
52
88
CURADORIA
CIÊNCIA
VOLTA AO MUNDO DA ARTE INDÍGENA ETNOBIOLOGIA
Disciplina supera a dicotomia Ex p res s ã o l o c a l e co m u n i t á r i a , a r te d e p o vos o r i g i n á r i os co m p a r t i l h a e st ra t é g i a s d e c u raentre g l o b natureza al e cultura propondo abordagem etnogênica da floresta
84
94
110
118
PORTFÓLIO
PERFIL
ESTUDO DE CASO
LITERATURA
HÉLIO MELO E ABEL RODRIGUEZ
MESTRE IRINEU
PINTAR E CANTAR
O mito da fundação do
Os rituais da medicina xamânica
A fauna e a flora amazônica na
Santo Daime e a história da
na pintura do Movimento dos
A MULHERSERPENTE E O NIXI PAE
visão de dois ex-seringueiros,
iniciação ayahuasqueira de
Artistas Huni Kuin (Mahku)
Do livro Una Shubu Hiwea − Livro
do Acre e da Colômbia
seu criador, ex-seringueiro
Escola Viva, a história do cipó Yube Inu Dua Büse
70 ENSAIO
DO SAMBA AO SAMBAQUI A n i ta E k m a n e a f l o re s t a co m o p a t r i m ô n i o c u l t u ra l e a a r te i n d í ge n a co n te m p o r â n e a co m o re s i st ê n c i a e m s u a p re se r va ç ã o VOL. 10 / N. 50
ABR/MAI/JUN 2021
124
134
ENTREVISTA
PREVIEW
BROOK GARRU ANDREW
34 A BIENAL
Juliana Monachesi conversa
e as sonoridades na
com o primeiro diretor artístico
exposição Faz Escuro,
indígena da Bienal de Sydney
Mas Eu Canto
142
150
156
FOTOGRAFIA
TEATRO
REPORTAGEM
CÂMERA EM AÇÃO
REAÇÃO À PANDEMIA
A contribuição da
A VIDA BOA DE SERRA DO NAVIO
ação socioeducativa
O amapaense Grupo Frêmito
tecem redes como estratégia
de Miguel Chikaoka na
escava os resquícios de um
emergencial para conter o
formação da fotografia
empreendimento monumental e
impacto do coronavírus
contemporânea paraense
seus impactos no tecido social
52 REPORTAGEM
Lee “Scratch” Perry
Agentes artísticos e culturais
164
ARTE E ANCESTRALIDADE
COMUNICAÇÃO
Gê Viana e Gustavo Caboco
Plataformas, sites, blogs e
partem de suas histórias e
mídias sociais na resistência
raízes para agir no presente
ao desmonte sociocultural
ECOLOGIA MIDIÁTICA
100 ENSAIO
TECENDO ÁGUAS
+Fernando Zalamea navega pelos estratos de relações entre os
EXPANDIDAS
rios Niágara, Nervión e Negro
RÁDIO CELESTE O segundo e terceiro episódios do podcast da revista são dedicados à aparelhagem e ao movimento Themônias. Ouça em https://www.select .art .br/categoria/radio-celeste/
FOGO CRUZADO Como expor arte indígena? Fernanda Pitta, Jaider Esbell e Pedro Cesarino debatem o problema. Assista ao debate em https://youtube.com/playlist?list=PL_ipxxih1HLb90kM4wU-f9TxySZLy00hG
VÍDEO DE ARTISTA
SEÇÕES
6 12 18 26 22 28 176 186
Editorial Da Hora Livros Acervos Itaú Cultural Coluna Móvel Mundo Codificado Crítica Em Construção
Bárbara Balaclava, de Thiago Martins de Melo, discute as reiteradas violências na história brasileira. Leia em https://www.select .art.br/categoria/selectv/video-de-artista/
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
E D I TO R I A L
GENTE-FLORESTA 6
Em uma imagem da série de infogravuras Natureza-
construir e circular economicamente, resistindo coletivamente aos ciclos
Morta (2016-2019), de Denilson Baniwa, publicada
destrutivos de agropecuária e extrativismo mineral e vegetal.
nesta edição #51 da seLecT, a silhueta de um corpo
Ressaltamos os movimentos de contracolonização propostos por expoen-
indígena jaz sobre uma fotografia de satélite da flo-
tes da arte indígena internacional, entre eles Manuel Chavajay, Benvenuto
resta. Essa visão guarda relação melancólica com
Chavajay e Antonio Pichillá, escalados pela 22a Bienal de Arte Paiz, na Gua-
outra imagem aérea desta edição, Shadow on the
temala, que tem 50% de sua lista composta de artistas nativos. Entrevis-
Land, an Excavation and Bush Burial (2020) [Sombra
tamos o primeiro curador aborígene da história da Bienal de Sydney, Brook
na Terra, uma Escavação e Enterro de um Arbusto],
Garru Andrew, artista interdisciplinar com poderoso argumento sobre a
intervenção pública de Nicholas Galanin, artista in-
função dos arquivos na luta decolonial: “São objetos poderosos que possi-
dígena do Alasca, na 22a Bienal de Sydney. A obra
bilitam um espelho para olhar para trás e corrigir algumas das devastadoras
representa a sombra de uma estátua em homena-
perseguições coloniais”.
gem a um colonizador britânico, cavada na terra e
Eles dialogam com o coletivo Mahku e sua estratégia de recuperação de
cercada por grades de isolamento, como se se tra-
terras por meio da venda de obras de arte; as organizações artísticas que
tasse da cena de um crime. Baniwa e Galanin são ar-
brotaram em Marabá, entrecortadas pelo sentimento de indignação, en-
tistas ativistas, compartilham suas lutas decoloniais
volvendo o artista paraense Marcone Moreira e o santista Mauricio Adinolfi;
contra o apagamento histórico de povos originários.
o colombiano Abel Rodríguez, que trabalhou como seringueiro, foi guia de
Com esses trabalhos, eles propõem contramonu-
floresta e agora integra a 34a Bienal de São Paulo – que, por sua vez, traz a
mentos aos símbolos da história oficial. “A sombra
maior representatividade de artistas indígenas da história da exposição – e
sobre a terra pode ser aplicada a quase todas as
a 23a Bienal de Sydney, em 2022, com curadoria de Jose Roca.
grandes estátuas coloniais em terras indígenas ou
Nós, da seLecT, nos somamos a eles em suas estratégias coletivas de
aborígenes e se encaixa bem nos movimentos soci-
resistência para impedir a devastação das florestas, contra o racismo e os
ais que acontecem em todo o mundo, como o Black
apagamentos históricos. Para construir esta revista-comunidade, a artista
Lives Matter”, diz Galanin.
e designer Nina Lins concebeu um projeto gráfico em que uma matéria
Mas outro ângulo de visão pode ser aplicado ao in-
engata na outra, formando uma corrente de força e união. Contamos
dígena “carimbado” sobre a mata, além da remissão
com um time de 11 colaboradores-ativistas, entre eles os artistas Dora
àquilo que foi apagado e enterrado nesta terra
Longo Bahia, Lenora de Barros e Guto Lacaz, criando cartazes para a
brasilis. A imagem tem o poder transformador de
campanha #florestaprotesta. E a Redação ganhou o precioso reforço
sugerir o contrário da morte: a marca indígena que
de Denise Shnyder e Juliana Monachesi, de volta à revista. Na ilustração
reluz e permanece na epiderme da floresta. Ela ilus-
desta edição-comunidade, Ricardo van Steen compôs os retratos, que
tra a tese potente que embasa esta edição: a Flo-
incluem o repórter Leandro Muniz, o revisor Hassan Ayoub, Cristina Dias,
resta Amazônica como monumento talhado e cul-
secretária de Redacão, e Nina Rahe e Meno del Picchia, responsáveis pela
tivado pelos povos originários brasileiros. A artista
elaboração dos seis episódios da primeira temporada do podcast celeste,
e pesquisadora Anita Ekman, em seu ensaio sobre
que iluminou as comunidades em torno da Rádio Floresta, das festas de
a floresta como invenção cultural, menciona estu-
aparelhagem, do coletivo Themônias, do grupo de poetas Anáguas, da
dos que apontam que 60% da Amazônia é antrop-
luta Yanomâmi e dos rappers indígenas urbanos. Agradecemos também à
ogênica, isto é, foi construída e manejada por mãos
nossa comunidade de leitores nesta luta.
e mentes indígenas. À luz da floresta-monumento, desenvolvemos esta edição sobre comunidades. Falamos da florestagente, talhada pelas comunidades dos artistas, ativistas,
indígenas,
afro-indígenas,
barqueiros,
seringueiros, ayahuasqueiros, e aqueles que com-
Paula Alzugaray
partilham outros modos de relacionar, trocar, habitar,
Diretora de Redação
VOL. 10 / N. 51
JUL/AGO/SET 2021
EXPEDIENTE
8
EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY EDIÇÃO E REPORTAGEM: JULIANA MONACHESI E DENISE SCHNYDER DESIGNER: NINA LINS PROJETO GRÁFICO: RICARDO VAN STEEN
COLABORADORES
Anita Ekman, Anna Dietzsch, Dora Longo Bahia, Guto Lacaz, Leandro Muniz, Lenora de Barros, Luciana Pareja Norbiato, Márcio Vasconcelos, Marisa Mokarzel, Miguel Chikaoka, Paula Berbert, Ramiro Zwetsch, Ronaldo Bressane, Victor Moriyama
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO
CONTATO
PUBLICIDADE
CENTRAL DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE
WWW.SELECT.ART.BR
Cristina Dias Hassan Ayoub
faleconosco@select.art.br
ACROBÁTICA EDITORA LTDA. Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320
Pelo e-mail assinaturas.select@gmail.com ou (11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES)
SELECT (ISSN 2675-8296) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320
PAT R O C Í N I O :
VOL. 10 / N.51
JUL/AGO/SET 2021
APOIO:
MINISTÉRIO DO TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO POR MEIO DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA FUNDAÇÃO PIERRE VERGER INSTITUTO TOMIE OHTAKE FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO apresentam
P E R C U R S O S
E
M E M Ó R I A S
curadoria
PRISCYLA GOMES ALEX BARADEL ESTA EXPOSIÇÃO É UMA CORREALIZAÇÃO DO INSTITUTO TOMIE OHTAKE, FUNDAÇÃO PIERRE VERGER E FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO E INTEGRA A REDE DA 34ª BIENAL DE SÃO PAULO
DE 12 AGOSTO A 21 NOVEMBRO DE 2021 INSTITUTO TOMIE OHTAKE
www.institutotomieohtake.org.br /inst.tomie.ohtake
correalização
apoio cultural
apoio de mídia
realização
@institutotomieohtake
COLABORADORES
RAMIRO ZWETSCH LENORA DE BARROS Artista visual e poeta, formada em Linguística pela USP, com obra marcada pelo uso de diversas linguagens: vídeo, performance, fotografia, instalação sonora e construção de objetos. #FLORESTAPROTESTA 82
DORA LONGO BAHIA Doutora em Poéticas Visuais pela ECA USP com pós-doutorado em Filosofia pela FFLCH USP. Professora no Curso de Artes Visuais e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA USP e do Grupo de Pesquisa Depois do Fim da Arte. #FLORESTAPROTESTA 121
Jornalista, criador do site Radiola Urbana e DJ nas horas vagas. Já escreveu sobre música para as revistas Bizz, Bravo!, IstoÉ Gente e Rolling Stone e para os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Jornal da Tarde. PREVIEW 134
RONALDO BRESSANE Escritor, jornalista e professor de escrita criativa. Conheceu a ayahuasca há 20 anos, em uma sessão do Santo Daime, tema de seu texto nesta edição. Mestre em literatura pela Unifesp, é autor, entre outros, do romance Escalpo (Reformatório). PERFIL 94
GUTO LACAZ Premiado artista multimídia, ilustrador, designer, desenhista e cenógrafo. Membro da Alliance Graphic Internationale - AGI. Formado em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos. #FLORESTAPROTESTA 174
MIGUEL CHIKAOKA Fotógrafo, educador, idealizador e membro da Fotoativa. Dedica-se à pesquisa e experimentação de práticas educativas. Coordena atualmente as ações educativas da Kamara Kó Galeria. FOTOGRAFIA 142
MÁRCIO VASCONCELOS
PAULA BERBERT
Fotógrafo, dedica-se à pesquisa e registro da cultura popular e religiosa dos afrodescendentes no Brasil, especialmente no Estado do Maranhão, aliando a fotografia a uma vasta pesquisa antropológica e social. PERFIL 94
Antropóloga e programadora cultural. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da USP, onde realiza pesquisa sobre arte indígena contemporânea. COLUNA MÓVEL 22
MARISA MOKARZEL
LUCIANA PAREJA NORBIATO Jornalista cultural, artista, figurinista e designer artesanal. Cursou bacharelado de Interpretação em Artes Cênicas pela ECA-USP e graduou-se em Filosofia pela FFLCH-USP. REPORTAGEM 156
Pesquisadora e curadora. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Foi professora e pesquisadora da Universidade da Amazônia-UNAMA e da Universidade Federal do Pará-UFPA. Foi diretora do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas. TERRITÓRIO 30
ANNA DIETZSCH Arquiteta e urbanista pela FAU-USP, com mestrado em Desenho Urbano por Harvard. Leciona na Columbia University (NY), integra a Plataforma Habita-Cidade na Escola da Cidade, em SP e a plataforma Design for Six Feet em NY. COLUNA MÓVEL 24
ANITA EKMAN Artista visual, performer e pesquisadora. Atualmente trabalha em colaboração com a curadora Guarani Nhandeva Sandra Benites e o Instituto Maracá na criação de obras e exposições. Organizou e ilustrou o livro Yvyrupa - A Terra Uma Só, do autor Guarani-Mbya Timóteo da Silva Verá Tupã Popygua. ENSAIO 70 FOTOS: MARCOS ALVES/ DIVULGAÇÃO/ ANA MOKARZEL
“E o existente pensou resoluto: ‘Que eu me faça muitos; que eu prolifere.’ E criou o calor. Então esse calor pensou: ‘Que eu me faça muitos; que eu prolifere.’ E ele criou a água. É por isso que, sempre que esquenta, o ser humano transpira, daí que do calor nascem as águas.” — Chāndogya Upanisad .
Terra e Temperatura → Curadoria Germano Dushá Agnaldo dos Santos, Anna Maria Maiolino, Artur Barrio, Artur Pereira, Carybé, Castiel Vitorino Brasileiro, Chico Tabibuia, Conceição dos Bugres, Dalton Paula, Davi de Jesus do Nascimento, Djanira da Motta e Silva, GTO, Heitor dos Prazeres, Ione Saldanha, Ivens Machado, José Antônio da Silva, Lidia Lisbôa, Madalena dos Santos Reinbolt, Maria Martins, Mestre Didi, Mestre Guarany, Mira Schendel, Miriam Inez da Silva, Niobe Xandó, Paulo Monteiro, Paulo Pires, Solange Pessoa, Sonia Gomes, Syro, Tarsila do Amaral, Thiago Martins de Melo, Tunga, Anônimos (ex-votos). 12 de junho → 31 de julho, segunda a sexta-feira das 10h às 19h. Sábado das 10h às 16h. Mediante agendamento pelo site ou telefone: (11) 3882-7120. Almeida e Dale almeidaedale.com.br
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S Ã O PA U L O
TERRA EM TRANSE Até 4/10, Museu Afro Brasil, Av. Pedro Álvares Cabral, s/n Parque do Ibirapuera – próximo ao Portão 10 | museuafrobrasil.org.br Com curadoria de Diógenes Moura, a exposição apresenta 53 fotógrafos que retratam um Brasil semelhante ao Eldorado do filme de Glauber Rocha que dá título à exposição. O curador pernambucano buscou representações reais e cruas, de Roraima ao Rio de Janeiro. A pesquisa teve como intuito encontrar fotógrafos jovens de pequenos jornais, artistas que trouxessem um novo olhar para a realidade, como é o caso da série fotográfica de Adenor Gondim, que registrou ao longo de 20 anos o bloco de carnaval baiano Cãos de Jacobina.
VOL. 10 / N. 51
JUL/AGO/SET 2021
FOTOS: CORTESIA CENTRAL GALERIA
S Ã O PA U L O
DIZER NÃO De 22/7 a 19/9, Ateliê 397, Rua Cruzeiro, 802, Barra Funda |dizernao.com.br Contra as políticas governamentais negacionistas, racistas, sexistas, transfóbicas e homofóbicas, 40 artistas, duplos e coletivos realizam uma exposição de guerrilha na nova sede do Ateliê 397, na Barra Funda. Do veterano Cildo Meireles à iniciante Lícida Vidal, os participantes ocupam espaços físico e virtual em torno de questões como: “O que pode a arte contra a barbárie?”e “Há eficiência política nas ações artísticas?”. Com orçamento construído por doações, o projeto tem uma campanha ativa na plataforma abacashi para levantar fundos.
S Ã O PA U L O
A INDISCIPLINA DA ESCULTURA – ERICA VERZUTTI Até 31/10, Masp, Av. Paulista, 1.578, Bela Vista | masp.org.br A primeira mostra-solo da artista paulistana em um museu brasileiro reúne 79 trabalhos produzidos de 2003 a 2021, como Carne Sintética (2019). Com curadoria de Adriano Pedrosa e André Mesquita, a exposição faz parte do biênio das Histórias Brasileiras do Masp. Este ano, todas as exposições do museu são dedicadas à produção de artistas mulheres. As obras de Verzutti fazem referência direta a outros artistas, por meio de títulos, forma ou conceito, e, simultaneamente, dialogam com o cotidiano das telenovelas, tutoriais na internet e vídeos nas redes sociais. Tudo ao redor da artista tornase referência, sem nenhum tipo de hierarquia ou disciplina.
SA N TOS
PORTOS De 17/6 a 20/11, Sesc Santos, Rua Conselheiro Ribas, 136 – Aparecida| sescsp.org.br/santos Marco para o debate sobre arte e território, Portos foi idealizada pela equipe técnica do Sesc Santos em parceria com a curadora e antropóloga Ilana Goldstein. A mostra apresenta obras inéditas de 61 artistas do território da Baixada Santista, entre eles seis artistas indígenas, apresentando um panorama da arte contemporânea na região. A curadoria é inovadora ao desconsiderar hierarquizações reunindo criadores indígenas, caiçaras, artesões, grafiteiros e consagrados, como Paulo Climachauska. Os temas articulados são o chamado e a dedicação ao mar, a navegação, as maneiras de habitar a terra, a paisagem natural e urbana e a diversidade étnica e social do território. Portos conta com a colaboração de Cristine Takuá e Carlos Papá, curadores convidados da Aldeia do FOTOS: DIVULGAÇÃO/MAC-DRAGÃO DO MAR/MUSEU AFROBRASIL; PAT KILGORE/ATELIÊ 397; MASP E SESC SANTOS
14
S Ã O PA U L O
UM BRASIL PARA OS BRASILEIROS – CAROLINA MARIA DE JESUS De 4/9 a 5/12, Instituto Moreira Salles Paulista, Av. Paulista, 2.424, 5º andar, Bela Vista | ims.com.br/unidade/sao-paulo VIRTUAL
MUTHA (MUSEU TRANSGÊNERO DE HISTÓRIA E ARTE)
Dedicada à escritora Carolina Maria de
www.mutha.com.br
Jesus, a exposição trata de aspectos da trajetória e obra dessa escritora reco-
Criado pelo artista Iam Habib, com apoio do estado da Bahia via Lei Aldir Blanc, o
nhecida, desde a publicação de Quarto
museu virtual é uma iniciativa de âmbito nacional com o objetivo de estabelecer
de Despejo (1960), como uma das ex-
caminhos artísticos, educativos, políticos e sociais alternativos, resgatando
pressões mais relevantes para a cultura
narrativas suprimidas desde o período colonial. O investimento é na construção
brasileira do século 20. Com curadoria
de um robusto arquivo brasileiro sobre história e arte transgênera, valorizando a
de Hélio Menezes e Raquel Barreto, a
produção de pessoas trans pouco visibilizadas em espaços de produção cultural,
mostra problematiza percepções estere-
como a multiartista paulistana Fefa. O MUTHA entra em cena como importante
otipadas sobre a escritora, símbolo para
suporte para o debate sobre diversidade de gênero e pretende ser um museu
a comunidade negra e referência funda-
transformacional – modificando-se sempre para abarcar novos projetos.
mental para refletir o momento presente.
CURITIBA
EMANOEL ARAUJO – CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA De 3/7 a 28/8, Simões de Assis, Al. Carlos de Carvalho 2.173 | simoesdeassis.com Emanoel Araujo, mais conhecido por sua imensa contribuição à frente de importantes instituições culturais do Brasil, é também um nome fundamental da criação art[istica, o que consolida seu pensamento como pesquisador e curador. Sua primeira grande mostra em Curitiba apresenta obras de grandes dimensões. A exposição inicia-se pela fachada da Simões de Assis de Curitiba: “É impossível não se arrebatar com a escultura Sem Título, como uma espécie de ponte entre a rua e o espaço expositivo, revelando a dimensão pública e monumental da obra do artista”, aponta Julia Lima, curadora da mostra, que destaca o viés construtivo, simbólico e gráfico da
VOL. 10 / N. 51
JUL/AGO/SET 2021
FOTOS: ZILMARC PAULINO; ARQUIVO NACIONAL; CORTESIA SIMÕES DE ASSIS; FORTES D’ALOIA & GABRIEL, LUISA STRINA E SÉ GALERIA
N O VA Y O R K
ENGRAVED INTO THE BODY Até 30/7, Tanya Bonakdar Gallery, 521 W 21st St | tanyabonakdargallery.com Com curadoria de Victor Gorgulho e Keyna Eleison, diretora artística do MAM Rio, a mostra coletiva realizada na galeria nova-iorquina em parceria com a Fortes D’Aloia & Gabriel articula-se em torno de imagens do arquivo fotográfico do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado e dirigido por Abdias Nascimento (19142011). A proposta pioneira do teatro é incorporada como elemento disparador para esta curadoria com artistas contemporâneos que discutem raça, identidade e corpo, como Antonio Tarsis, Ayrson Heráclito, Panmela Castro e Moisés Patrício, entre outros. A mostra inclui ainda duas pinturas de Nascimento, realizadas durante seu autoexílio nos EUA, entre 1968 e 1978. C O M P O R TA , P O R T U G A L
SEGUNDO ATO: O CANTO DO BODE De 29/7 a 29/8, Rua do Secador, 8, 7580-642 Comporta, Portugal | fdag.com.br/exposicoes/o-canto-do-bode Galerias de arte também fazem comunidade. No centro da vila de Comporta, em Portugal, acontece, desde junho, uma peça de teatro, com arquitetura concebida pelo artista João Maria Gusmão, e uma narrativa que se desdobra simultaneamente na plateia, no palco e nos bastidores. Os diálogos, porém, não se estabelecem entre atores, mas entre artistas visuais de distintas gerações e percursos formais representados pelas galerias Fortes D’Aloia & Gabriel, Luisa Strina e Sé Galeria. Por meio de suas obras e vozes, uma narrativa é construída. O título faz referência ao termo grego tragoedia [tragos (“bode”) e oidé (“canto”) e celebra a tradição brasileira de sacralização do profano e profanação do sagrado, desconstruindo a dicotomia entre o dionisíaco e o apolíneo. Destaques para os artistas Lucia Laguna, Leonor Antunes, Anderson Borba e Tadáskía.
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / CORTESIA E-FLUX FOTOS: OSCAR BASTOS / DIVULGAÇÃO / VICTOR PASTANA / EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO / ANDREAS VALENTIM
SOROCABA
O RIO É UMA SERPENTE – FRESTAS TRIENAL DE ARTES De 21/8 a 30/1, Sesc Sorocaba, Rua Barão de Piratininga, 555 | frestas.sescsp.org.br/ Com curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza, a terceira edição da Trienal de Artes do Sesc reúne 54 artistas e coletivos de diferentes nacionalidades. São nomes do Brasil, África do Sul, Bolívia, Chile, Colômbia, Estados 16
Unidos, França, Holanda, México, Peru, República Dominicana e Suíça, que residem em diferentes países. Destes, 33 foram comissionados a criar obras inéditas para o projeto. Originalmente prevista para abrir em agosto de 2020, a Trienal inaugurou com uma série de ações formativas em ambiente virtual. Agora a instituição se prepara para a montagem da exposição que ocupará a unidade do Sesc Sorocaba e espaços públicos da cidade, tendo como norte a imagem do rio como serpente, abrindo “um portal que suscita possibilidades, reflexões e diálogos para além do agora”, como aponta a curadoria.
S Ã O PA U L O
PERCURSOS E MEMÓRIAS – PIERRE VERGER De 13/8 a 21/11, Instituto Tomie Ohtake, Av. Brigadeiro Faria Lima, 201 | institutotomieohtake.org.br Coprodução de Fundação Bienal de São Paulo, Fundação Pierre Verger e Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Priscyla Gomes e Alex Baradel, a exposição tem como objetivo proporcionar a imersão na obra do fotógrafo e etnógrafo francês que se tornou babalaô na Bahia. Esta é a primeira mostra a apresentar as múltiplas facetas de Pierre Verger. Documentos inéditos são apresentados em um recorte que soma novas leituras à sua trajetória, trazendo à tona questões como religiosidade, cultura local e sexualidade.
S Ã O PA U L O
JOTA MOMBAÇA De 4/9 a 5/12, Centro Cultural São Paulo, Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso | centrocultural.sp.gov.br/site/ Original de Natal, o artista queer Jota Mombaça define-se como “bicha não binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil”. Sua pesquisa parte das relações entre humanidade e monstruosidade, de violentas políticas de morte e invisibilidade às quais foram submetidos os corpos racializados ao longo da história colonial, que perduram sob a ficção da democracia racial. Em performances e escritos, Mombaça desafia a branquitude heterossexual cisgênero e masculina que se impõe como norma universal. A individual, organizada pelo CCSP em parceria com a 34ª Bienal de São Paulo, tem curadoria de Hélio Menezes.
VOL. 10 / N. 51
JUL/AGO/SET 2021
VIRTUAL
PROJETO BRÍGIDA Lançamento em 1º/7 | brigidabaltar.com Em março, um incêndio de grandes proporções atingiu um galpão que abrigava trabalhos de artistas de diferentes galerias. Entre as obras atingidas no acidente estava parte da produção de Brígida Baltar. Com isso, o Projeto Brígida, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural, tornou-se ainda mais importante após o incêndio, possibilitando a digitalização de toda a sua obra, incluindo 30 filmes – 12 deles inéditos, criados a partir de imagens encontradas em sua mapoteca. O levantamento será disponibilizado no site da artista em parceria com o produtor Jocelino Pessoa. S Ã O PA U L O
MOQUÉM SURARÎ De 14/8 a 21/11 no MAM-SP, Parque do Ibirapuera, Portão 3, Vila Mariana | mam.org.br Com curadoria do artista indígena Jaider Esbell e assistência curatorial de Paula Berbert, a exposição enfoca o pensamento cosmológico e narrativo ameríndio e faz parte da 34ª Bienal de São Paulo. A mostra reúne desenhos, pinturas, fotografias e esculturas de artistas das etnias Baniwa, Huni Kuin, Karipuna, Krenak, Marubo, Makuxi, Patamona, Pataxó, Tapirapé, Taurepang, Tikmu’un_Maxakali, Tukano, Xakriabá, Xirixana, Wapichana e Yanomami, formando um grande panorama da arte contemporânea indígena. Destaque para a obra de Sueli Maxakali.
S Ã O PA U L O
AR - GUTO LACAZ, LENORA DE BARROS E WAGNER MALTA TAVARES Até 19/9, Casa de Cultura do Parque, Avenida Prof. Fonseca Rodrigues, 1.300, Alto de Pinheiros | ccparque.com A mostra promove encontro entre obras dos três artistas, alinhavadas pelo curador Claudio Cretti pelo uso comum de engrenagens que mantêm as esculturas e instalações em movimento, o que imprime no ar do espaço expositivo um sopro constante, comentário discreto sobre a dificuldade de respirar no tempo presente. A série Eletro Livros, de Lacaz, amplifica elementos afetivos das leituras favoritas do artista. Uma instalação sonora de Barros sopra a voz da artista entoando um mantra cageano. O ar também anima as esculturas São João, Fantasma e Figura Ajoelhada, de Wagner
FOTOS: INDIARA DUARTE/SESC SOROCABA; FUNDAÇÃO PIERRE VERGER; SEBASTIAN BOLESCH/CCSP; CORTESIA BRIGIDA BALTAR, MAM-SP/DIVULGAÇÃO; CASA DE CULTURA DO PARQUE/DIVULGAÇÃO
CORRENTES Olga Tokarczuk, Editora Todavia, 400 págs., R$ 74,90 A autora polonesa, Prêmio Nobel de Literatura, tornou-se conhecida
ARJAN MARTINS
no Brasil após a publicação do
Paulo Miyada, Cobogó, 2021,
instigante romance Sobre os Ossos
184 págs., R$ 135
dos Mortos. Agora o leitor brasileiro
A monografia do pintor Arjan
entra em contato com Correntes,
Martins reúne obras dos
primeiro livro que deu visibilidade
últimos 15 anos, desde os
à autora fora da Polônia. O
desenhos em nanquim e pena
estranho romance de viagem é
de bambu (2007), passando
escrito em forma de pequenos
pelas iconografias e os mapas
contos, mostrando o trânsito
afro-atlânticos (2016-17), até a vasta série de retratos sem face
constante da narradora nômade
– que demarcam o trauma da violência colonial e perpassam sua
pelos quatro cantos do mundo.
“pintura de travessias”, como define o curador Paulo Miyada no
A própria edição é entremeada
ensaio para o livro. Em entrevista à historiadora Raquel Barreto,
por mapas, que poucas pistas
Martins fala do embate com outros portos da diáspora negra, em
fornecem sobre sua localização.
viagens à África e aos EUA, que norteiam seu trabalho recente.
Um romance que parece estar sempre em movimento, traçando um panorama da inquietude contemporânea.
PROXIMIDADE: ARTE E EDUCAÇÃO DEPOIS DA COVID-19 Marlies De Munck e Pascal Gielen, Cobogó, 2021, 64 págs., R$ 30 Este pequeno livro traduz, em poucas e boas palavras, o que muita gente pensa e com que se preocupa neste segundo ano de pandemia. Os autores belgas, que trabalham com filosofia e sociologia da cultura, propõem uma espécie de guia para a reeducação social do corpo presente. A partir da vivência do isolamento e da interação digital, eles apontam para a importância da cultura na reaprendizagem de compartilhar experiências e na reconstrução da vida social.
SOCIEDADE PALIATIVA: A DOR HOJE Byung-Chul Han, Editora Vozes, 2021, 120 págs., R$ 30 Na sociedade do otimismo tóxico, da psicologia positiva, das curtidas nas redes sociais, ainda sobra espaço para a dor? O pequeno ensaio do filósofo coreano Byung-Chul Han discute os meandros de nossa sociedade anestesiada que, ao suprimir a dor, suporta cada vez menos a vida e se nega a possibilidade de experienciar a catarse. A reflexão torna-se ainda mais acertada no contexto da pandemia, em que a recusa em sentir a dor do outro impacta o sentido de comunidade e humanidade.
POLÍTICAS DA IMAGEM - VIGILÂNCIA E RESISTÊNCIA NA DADOSFERA Giselle Beiguelman, Coleção Exit, Editora Ubu, 224 pgs, R$ 62,90 Antes de 2020, um observador atento já se percebia inserido em uma sociedade mediada por imagens e “vigiado” por corporações digitais. Após a pandemia, a condição agravou-se. As telas tornaram-se as principais interfaces da experiência cotidiana, ocupando todas as dimensões da vida. Além disso, os hábitos de consumo, transferidos durante o lockdown para a modalidade on-line, e a adesão até pelos céticos à ágora digital das redes sociais consolidaram o regime de vigilância que opera pela captação sistemática de dados pessoais na dadosfera. Em seu novo livro, Giselle Beiguelman, professora da FAU-USP, ensaísta e artista, defende que as imagens são, para além de lugar da transmissão de ideias e linguagens, o próprio campo das tensões e disputas políticas da atualidade. Segundo a autora, é a incontável produção de imagens nos feeds e stories de redes sociais, somada à captura avassaladora de dados, este que é o mais cobiçado dos valores agregados pelo capital, que configura uma nova estética da vigilância. Debate urgente. VOL. 10 / N. 51
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SÉRGIO MAMBERTI – SENHOR DO MEU TEMPO Sérgio Mamberti, com coautoria de Dirceu Alves Jr., Edições SESC, 2021, 388 págs., R$ 98 “Raios e Trovões!” é, com certeza, o bordão mais conhecido do ator Sérgio Mamberti, que interpretou na televisão o querido Doutor Victor, do aclamado Castelo Rá-Tim-Bum. 19
Aos 82 anos, o autor faz um relato inspirador de sua vida e trajetória nos palcos. Uma história de amor, engajamento e luta pela cultura, que se cruza com a história do teatro paulistano, desde a sua formação na histórica Escola de Arte Dramática (EAD). A trajetória do artista se transformará em um documentário dirigido por Eduardo Mocarzel.
O LIVRO DO GIA Org. Ludmilla Britto, Luis Parras
LINA: UMA BIOGRAFIA
e Marcelo Terça-Nada!, Duna,
Francesco Perrotta-Bosch, Editora Todavia, 576 págs., R$ 34,90
2021, 192 págs., R$ 45
É 2021 e Lina Bo Bardi é, finalmente, homenageada com um Leão
Prestes a completar 19
de Ouro póstumo na Bienal de Arquitetura de Veneza. Com isso,
anos de práticas críticas,
novas biografias sobre a história da arquiteta italiana radicada no
inesperadas e bem-
Brasil são lançadas. “Como uma estrangeira foi capaz de enxergar
humoradas, o Grupo de
tanto de um país que não era o seu, a ponto de traduzi-lo para
Interferência Ambiental,
os próprios brasileiros?” é a pergunta que norteia o estudo do
a.k.a. GIA sistematiza
arquiteto Francesco Perrotta-Bosch. Ao longo da biografia, o autor
em uma publicação os
faz emergir uma pesquisa extensa, com levantamento de fontes
registros imagéticos e o
inéditas, traçando de forma envolvente um percurso que revela a
conteúdo textual de suas
visão complexa e única da arquiteta.
obras efêmeras. A história do grupo, que nasceu em Salvador (BA), costura-se com a imensa diversidade de obras, pensadas para
SEXO, GÊNERO E SEXUALIDADES – INTRODUÇÃO À TEORIA FEMINISTA Elsa Dorlin, Crocodilo Edições e Ubu Editora, 2021, 160 págs., R$ 54,90 O ensaio da filósofa Elsa Dorlin traça um panorama do feminismo nos últimos 40 anos, superando a visão clássica de um movimento que teria ocorrido em ondas, oscilante. A teórica francesa recupera, dessa forma, a consistência do sujeito político do feminismo e suas práticas, expondo as engrenagens discursivas e defendendo que a sexualidade é um sistema político, no qual o gênero cumpre sozinho a função de invisibilizar as relações de poder.
DIÁRIO DA CATÁSTROFE BRASILEIRA – ANO 1: O INIMAGINÁVEL FOI ELEITO Ricardo Lísias, Editora Record, 2020, 352 págs., R$ 64,90 O escritor elabora uma análise reveladora do material de campanha política que resultou na eleição do “pior candidato da história brasileira”, ao mesmo tempo que tece comentários sobre arte, sociedade e cultura. O diário começa em 28 de outubro de 2018, quando o autor começou a arquivar imagens caçadas em grupos de extrema-direita no Facebook e no Twitter, a partir de uma denúncia publicada em reportagem da jornalista Patrícia Campos Mello.
os mais variados suportes.
A ERA DO CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA: A LUTA POR UM FUTURO HUMANO NA NOVA FRONTEIRA DO PODER Shoshana Zuboff, Editora Intrínseca, 2021, 800 págs., R$ 84,92 A robusta pesquisa de Shoshana Zuboff tem se desdobrado nos últimos dois anos em uma compreensão global e mais profunda do impacto da tecnologia de dados em nossas vidas. O livro da professora emérita da Harvard Business School expõe as engrenagens que sustentam os mecanismos de coleta de dados comportamentais, seus ciclos de captação e recondução para um crescimento ainda maior do poder dessa indústria com impacto para afetar a democracia.
GENÉTICA NEOLIBERAL – UMA CRÍTICA ANTROPOLÓGICA DA PSICOLOGIA EVOLUCIONISTA
POVO EM LÁGRIMAS, POVO EM ARMAS
Susan McKinnon, Ubu Editora, 2021, 160 págs., R$ 59,90
520 págs., R$ 120
O psicólogo cognitivo Steven Pinker tem sua psicologia
Sexto volume da série de
evolucionista desconstruída no ensaio da antropóloga
seminários O Olho da História,
Susan McKinnon, publicado em 2005, um ano depois
do filósofo e historiador de arte
que Pinker foi eleito uma das pessoas mais influentes
Georges Didi-Huberman, o livro
do mundo. McKinnon expõe a fragilidade das pesquisas
parte da análise de uma situação
científicas do autor, que, sem contextualizar bases
exemplar: um homem é vítima de
históricas, sociais e culturais, pretende produzir dados
morte injusta e violenta, mulheres
universais a partir de uma visão hegemônica, branca,
se juntam para chorá-lo e, logo
neoliberal e patriarcal.
mais, é um povo em lágrimas
Georges Didi-Huberman, N-1 Editora, 2021,
que se junta a elas. A situação retratada por Eisenstein em O Encouraçado Potemkin revela a
MAYBE AIRLINES: SARAJEVO
emoção que se movimenta do
Fernando Costa Netto, Garoa Livros, 2021, 96 págs., R$ 100
“eu” para o “nós”: quando as
Com posfácio de Leão Serva, o livro de fotografias
velhas carpideiras passam da
de Costa Netto documenta o estado de incerteza,
lamentação à cólera, “prestam
instabilidade e fragilidade que cerca não apenas o
queixa” e exigem justiça, fazendo
trabalho de um fotojornalista de guerra, mas também
nascer a revolução.
deste objeto de cobertura específico, a capital da Bósnia-Herzegovina. O livro reúne fotos de duas viagens realizadas em 1993 e 1994, após Sarajevo ter sido sitiada e bombardeada pelo exército sérvio.
CRÍTICA E CURADORIA DENTRO E FORA DO EIXO: OPERAÇÃO RESISTÊNCIA Ana Avelar, Intermeios Casa de Artes e Livros, 2020, 146 págs., R$ 45 O volume apresenta uma síntese da produção crítica e curatorial de Ana Avelar, professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. A coletânea inclui textos inéditos e produzidos para folders e catálogos de exposições, desde a sua atuação no programa de exposições do Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo, até seu projeto na Casa Niemeyer, que resultou na formação de uma coleção de arte brasileira para a UnB. Obra essencial para o estudo do panorama contemporâneo da crítica brasileira. VOL. 10 / N. 51
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DARWIN – ORIGENS E EVOLUÇÃO Estúdio M’Baraká e Magali Romero Sá, 2019, 182 págs., versão digital O catálogo da exposição Darwin - Origens e Evolução, que aconteceu no Museu do Meio Ambiente, no Jardim Botânico, RJ, e está em cartaz atualmente no Centro Cultural Fiesp, SP, faz uma leitura transversal da teoria da evolução de Darwin, criando relações com documentos históricos, arte contemporânea e textos críticos. O projeto é dividido em quatro núcleos: os primórdios da ciência, as descobertas geológicas, a trajetória do navio Beagle e os desdobramentos da teoria pós-publicação.
DORAMAR OU A ODISSEIA Itamar Vieira Junior, Editora Todavia, 2021, 160 págs., R$ 49,90 Coletânea de 12 histórias de Itamar Vieira Junior, autor do clássico instantâneo Torto Arado. Os contos reunidos oferecem ao leitor uma visão ampliada da escrita do autor e geógrafo, que faz emergir em seus personagens questões territoriais, históricas e culturais do Brasil. Assim como no romance de estreia, os personagens surpreendem ao desafiar os limites impostos pela realidade, e as mulheres são apresentadas como fortes protagonistas.
A FÓRMULA DA EMOÇÃO NA FOTOGRAFIA DE GUERRA Leão Serva, Edições SESC, 2020, 204 págs., R$ 69 O que A Descida da Cruz (1633), de Rembrandt, tem a ver com Che Guevara morto na Bolívia, em foto de 1967? Qual a relação entre uma gravura do século 19 de Joana d’Arc queimada viva com imagens do monge budista que ateia fogo ao próprio corpo, em 1963, e da violência do apartheid na África do Sul, em 1990? O que aproxima eventos tão distantes no tempo e no espaço é o pathosformel (fórmula do pathos ou fórmula da emoção), conceito do historiador Aby Warburg para a análise da história da arte a partir da carga emocional empregada na formulação das obras. Em livro editado a partir de pesquisa de Doutorado, o jornalista Leão Serva, que foi correspondente de guerra da Folha de S.Paulo nos anos 1990, aplica a metodologia de Warburg na sua análise da fotografia de guerra. Georges Didi-Huberman e Susan Sontag estão entre as referências.
AS MULHERES DE TIJUCOPAPO Marilene Felinto, Ubu Editora, 2021, 240 págs., R$ 59,90 O romance emblemático de Marilene Felinto ganha nova edição, com fortuna crítica de Ana Cristina Cesar, Caio Fernando Abreu e José Miguel Wisnik, entre outros. Escrito em 1982, quando a autora tinha 22 anos, o livro conta a viagem de retorno da narradora Rísia a Tijucopapo, local ficcional que evoca a história real de Tejucupapo, cidade pernambucana que, no século 17, foi palco de uma batalha entre mulheres e saqueadores holandeses. Ao entrelaçar a história das mulheres guerreiras, em seu teor feminista e antirracista, ao depoimento pessoal e poético da narradora, Felinto abre um novo território na literatura brasileira.
ABYA YALA! GENOCÍDIO, RESISTÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA DOS POVOS ORIGINÁRIOS DAS AMÉRICAS Marcelo Grondin e Moema Viezzer, Bambual Editora, 2021, 234 págs., R$ 54 Quantas pessoas sabem que o maior genocídio da história humana aconteceu com os povos originários das Américas? Foi a partir desta pergunta que os sociólogos Marcelo Grondin e Moema Viezzer reuniram estudos e documentos de diferentes épocas e partes do mundo para construir um grande inventário do genocídio, da resistência e da sobrevivência de povos nativos de cinco regiões do continente americano: Ilhas do Mar do Caribe, México, Andes Centrais, Brasil e Estados Unidos.
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C O L U N A M Ó V E L / PA U L A B E R B E R T
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De Malditas a Desejadas (2013), de Jaider Esbell
REFLEXÕES EM UM OBSERVATÓRIO AVANÇADO DA ARTE CONTEMPORÂNEA INDÍGENA A BRISA FRESCA ANUNCIAVA A CHEGADA DA CHUVA, UMA PRESENÇA QUASE DIÁRIA NOS LAVRADOS DE RORAIMA DURANTE O INVERNO AMAZÔNICO. Passando o
tempo devagar, de depois do almoço, na varanda da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea, fiz a seguinte pergunta ao artista e curador do povo Makuxi: - Jaider, o que é uma comunidade para você? - Comunidade é uma rede de relações, respondeu ele, sem titubear. Esta definição, que me surpreendeu pela sofisticação concisa, permanece ecoando nesses dias de imersão em Boa Vista. Estamos aqui trabalhando nos preparativos de uma agenda intensa para os próximos meses: a participação de Jaider na 34ª Bienal de São Paulo, a produção da exposição Moquém_Surarî, organizada por ele para o MAM-SP, e a mudança de sede de sua galeria. Catalogando, embalando e separando as centenas de obras, livros e documentos de seu acervo, revisito a trajetória de Jaider e da articulação de uma cena local da Arte Indígena Contemporânea(AIC), cuja história se embaralha com os caminhos abertos por ele e as iniciativas impulsionadas pela própria galeria. A afinidade de um grupo de artistas indígenas de Roraima ganhou outro corpo a partir da provocação curatorial lançada por Jaider Esbell em 2013, que os convidou a produzir obras VOL. 10 / N. 51
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que abordassem as particularidades da invasão colonial em seus territórios originários, destacando as estratégias indígenas de resistência. Firmados em sua raiz comum, que é o parentesco partilhado com o grande avô ancestral Makunaimî, Jaider, junto a Carmézia Emiliano, Bartô, Diogo Lima e Luis Matheus, do povo Makuxi, Amazoner Arawak, do povo Wapichana, Isaías Miliano, do povo Patamona, e Mário Flores, do povo Taurepang, produziram a série coletiva Vacas nas Terras de Makunaíma: de Malditas a Desejadas, em 2013. Os trabalhos que compõem esse conjunto foram comissionados para o 1º Encontro de Todos os Povos (evento também organizado por Jaider Esbell, que reuniu em três edições a produção de artistas originários da região) e demonstram a relação de pertencimento que os indígenas mantêm com a terra. Olhar novamente para essas obras, que serão apresentadas em breve ao público em São Paulo, leva meu pensamento a outra definição certeira de Jaider, que dias atrás me ensinou que as artes indígenas, tal como o manejo tradicional da espiritualidade (xamanismo?), são um conjunto de tecnologias para manter as relações com a terra. A memória antiga e a continuidade presente dessa relação talvez sejam as maiores forças movimentadas pela AIC, um convite e um lembrete que nos fazem os artistas indígenas de Roraima: tecer relações com a terra, ser dela parente, fazer comunidade com ela. FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
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CO LU N A M Ó V E L / A N N A D I E T Z S C H
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A CIDADE FLORESTA NO XINGU EM 2019, A CONVITE DO POVO KAMAYURÁ, FUI AO XINGU COM UM GRUPO DE ESTUDANTES DA ESCOLA DA CIDADE, DE SÃO PAULO. VOAMOS PARA BRASÍLIA E DE LÁ RUMAMOS PARA A CIDADE DE CANARÃNA, NO ESTADO DE MATO GROSSO. A viagem até o Território Indígena do Xin-
gu (TIX) fizemos em pickups, vencendo as planícies por estradas de terra. Durante mais de cinco horas cruzamos o reino da fronteira agrícola brasileira, com monoculturas extensivas que se estendiam, à esquerda e à direita, até encontrar o horizonte. Não é à toa que essa região, parte da nossa “indústria mais lucrativa”, é também conhecida como o Abraço da Morte. Monoculturas de soja, amaranto e outros grãos substituíram os ricos biomas de transição de cerrado e floresta, cansaram o solo, secaram nascentes e extraíram a umidade do ar. Fogos hoje se espalham com facilidade e a boa safra depende de insumos químicos que vão empobrecendo a terra e poluindo as águas. Um ciclo vicioso mortal em nome do desenvolvimento de uma indústria que, associada aos fluxos de capitais globais, concentra lucros a um custo coletivo altíssimo. No entanto, “do outro lado” dos campos de soja, dentro da reserva indígena, 16 etnias seguem suas vidas dentro de um VOL. 10 / N. 51
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ilustrações do projeto Cidade Floresta (2019), que assume como ponto de partida a tecnologia urbana de povos nativos ameríndios
contexto ambiental diverso e preservado. Seguindo tradições e práticas de agroflorestamento tradicional, abrem roças e constroem casas usando a floresta sem esgotá-la. A escala de atuação é, obviamente, diversa, mas os princípios apontam caminhos para a revisão de nossas práticas extrativistas. Nesse lugar nasceu o conceito da Cidade Floresta; a convicção de que precisamos transformar nossas cidades para que deixem de ser plataformas de esgotamento daquilo que chamamos de “natural”, para se tornarem fortes aliadas à sua existência. O conceito estruturador é simples: (re)construir a natureza ao (re)construir cidades. O que isso implica, no entanto, é a mudança de paradigmas enraizados como valores universais ou imutáveis, que no contexto da crise climática se mostram como empecilhos ao desenvolvimento no longo prazo. O projeto Forest City: A Generation of Care in the Amazon conta a história de como a economia do lucro puramente monetário teve de se transformar para enfrentar a crise climática, apoiando-se em estratégias de recursos compartilhados. Começamos com a ideia de que “natureza” e “cidade” não são espaços excludentes, mas plataformas interdependentes, como os complexos urbanos sofisticados construídos pelos FOTO: DIVULGAÇÃO
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povos ameríndios com a natureza e na natureza, antes da chegada europeia. Assumimos que a produção alimentar não prescinde da floresta, ou do contexto natural, como mostram as modernas (e tradicionais) práticas de agroflorestamento, permacultura e pecuária sustentável. Nessas, a produção alimentar está intimamente associada ao manejo e à reconstrução do ambiente natural, criando ciclos virtuosos de enriquecimento biológico. Para se ter uma ideia quantitativa, um hectare de terra cultivado com agroflorestamento pode render de duas a três vezes mais soja, milho ou arroz do que aquele em plantações de monocultura. Guiados pelos corpos d’água preservados, e as condições pluviométricas na área, propusemos um sistema de pequenas bacias de retenção para humedecer o solo enrijecido e com o agroflorestamento criar corredores verdes ligando o TIX às reservas indígenas Xavantes e à rede de cidades da região. Centros educativos e de promoção da nova agricultura foram desenhados para estruturar o sistema logístico e unir os conhecimentos tradicionais àqueles produzidos pelas universidades do país.
O uso de energia reciclável foi pensado com base em fazendas solares, aproveitando o alto índice de incidência solar da região, assim como no uso de miniturbinas hidráulicas. Sistemas de transporte fluvial em diferentes escalas, movidos a energia solar, foram usados para diminuir a dependência do transporte terrestre, evitando a abertura de novas estradas e o desmatamento. Com o uso de sistema seco de esgoto, evitamos a poluição dos lençóis freáticos e criamos insumos para a produção agrícola. O plástico descartado, tão problemático em sistemas biológicos ricos, serviu como matéria-prima para a fabricação do mobiliário urbano e novos edifícios foram construídos com o bambu e a madeira produzidos pelo agroflorestamento, assim como com as técnicas derivadas do uso da terra, seguindo os nossos antepassados ameríndios e europeus. A Cidade Floresta no Xingu foi um esforço coletivo de um grupo de pessoas em Nova York e São Paulo e celebra o encontro produtivo entre a floresta, a sabedoria indígena e a tecnologia ocidental. O encontro entre “cidade” e “natureza”, visando transformar o processo de urbanização extensiva em um processo de naturalização extensiva.
A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L
SABERES INDÍGENAS ANCESTRALIDADES 20 26
Em projetos e verbetes do Itaú Cultural, a proposição de um pensamento Verbetes da Enciclopédia Itaú Cultural e projetos pelo crítico sobre as relações entre sociedade, política,recém-inaugurados tecnologia e meio ambiente instituto sublinham as heranças de comunidades indígenas originárias que artistas, brincantes e ativistas celebram em suas práticas atuais VERBETES PROJETOS NAINE TERENA Doutora em educação e membro da nação Terena, Naine Terena é a nova colunista do Itaú Cultural e vem levantando debates urgentes que tocam em pontos nevrálgicos. Sem dar respostas, sustentando perguntas até o fim do artigo, Naine entrelaça saberes e convida o leitor para partilhar da reflexão. São quatro os artigos publicados até o momento: Economia Indígena, que expõe as relações econômicas entre cultura dominante e indígenas; As Mulheres Que Sabem Demais, que trata de questões próprias do feminismo indígena; Entrelaçando Saberes e Memórias Durante a Pandemia, que levanta as estratégias de sobrevivência e, em sua última coluna, Eu Estava Aqui o Tempo Todo, Só Você Não Viu – A Arte Brasileira Feita por Indígenas, que discute a imagem do “índio didático”, aquele retratado por tantos anos nos livros escolares, e a força e importância do ensino de artes na quebra desses paradigmas.
O SER AMAZÔNICO – ITAÚ CULTURAL PLAY A plataforma de streaming do Itaú Cultural foi lançada trazendo um catálogo com 135 títulos, que abrangem produções de 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. A mostra permanente O Ser Amazônico, faz um amplo e profundo recorte da produção
CARIMBÓ recente de todos os estados do Norte do país. A se-
Gênero e expressão artística de leção demusical, filmes édança do Matapi – Mercado Audiovisual origem amazônica, em particular no nordeste do do Norte, articulação dedicada ao desenvolvimento estado do Pará, o carimbóPara conta matrizes do audiovisual amazônico. Tercom Onde Ir, de Jorane africanas, indígenas e europeias historicamente Castro, é um dos destaques da mostra e primeiro lon-
desenvolvidas por setores ga-metragem feito no Parásociais em 40marginalizados, anos. O encontro entre os quais comunidades pesqueiras, entre três mulheres é o ponto de partidarurais para uma enarrativa suburbanas. A hipótese é de queaopaisagem nome sensorial que incorpora amaadvém do tupi curi m’bó: em português, pau oco zônica ao drama das personagens deste road-movie
escavado. “Curimbó” – comandante ou korimbó –de também amazonense: Eva, uma navio, Melina designa o tambor tocado nas apresentações (...). que vive entre baladas e amores incertos, e Keithy, Menções a carimbó já eram publicadas século uma ex-cantora de tecnobrega que morano numa casa 19, mas de modo depreciativo e persecutório (...). de palafita. Prêmio de Melhor Direção e Atriz CoadjuAntes atacadas e menosprezadas pelas elites vante no 40º Festival Guarnicê de Cinema, em 2016. econômicas e políticas, as expressões sociais, culturais, artísticas e religiosas vinculadas ao
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carimbó paulatinamente ganham a apreciação de
Links em select.art.br/acervos
outras camadas da sociedade. VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021 VOL. 10 / N. 49 JAN/FEV/MAR 2021
MULTICULTURALISMO
VERBETES PROJETOS ROSA GAUDITANO UNA SHUBU HIWEA – LIVRO ESCOLA VIVA Formada em jornalismo, Rosa Jandira Gauditano (São Paulo, SP, 1955) co-
meça a fotografar profissionalmente em 1977, para o jornal Versus, e torna-se
Na edição 2013-2014 doLIVRO edital ESCOLA Rumos Itaú Cultural, a UNA SHUBU HIWEA – VIVA
editora Editora Dantes foi selecionada para a publicação dea de fotografia do periódico. No início dos anos 1980, leciona fotojornaNa edição 2013-2014 do edital Rumos Itaú Cultural, lismo na PUC/SP, trabalha em publicações importantes e inicia a documenum livroDantes que registrava a sabedoria dos Huni Editora foi selecionada para medicinal a publicação de tação de festas populares religiosas no Brasil. Em 1989, estabelece o seu priKuin, população indígena do Acre. Omedicinal livro é parte um livro que registrava a sabedoria dosde Huni meiro contato com povos indígenas, em Altamira, no Pará, e, a partir de então, um projeto mais indígena amplo, que Una Shubu Hiwea Kuin, população do inclui Acre. O livro é parte de – documenta comunidades de índios Karajás, Kayapós, Tucanos, Yanomâmis, Livro Escolamais Viva,amplo, documentário e Una site que organizam um projeto que inclui Shubu Hiwea – Xavantes, Guaranis e Pankararus. Publica diversos livros de fotografia sobre a pesquisa pela editora Dantes e Livro Escoladesenvolvida Viva, documentário e siteAnna que organizam o tema. Em 2004 e 2005, realiza, com apoio da Unesco, o projeto Nutrição equipe,desenvolvida com membros como o botânico Alexandre asua pesquisa pela editora Anna Dantes e Infantil para o Povo Xavante, focado nas mães de crianças de zero a 6 anos, Quinet, o etnobotânico Pedro Luz,o abotânico fotógrafa Camila sua equipe, com membros como Alexandre criado a pedido dos anciãos da comunidade Wederã, da TI Pimentel BarboCoutinho, o pajé ManuelPedro Vandique Buse, aCamila liderança Quinet, o etnobotânico Luz, aDua fotógrafa sa, MT, para diminuir a mortalidade infantil. Em seguida, desenvolve com os Huni Kuin José e a escritora Ana Miranda. Coutinho, o pajéMateus ManuelItsairu Vandique Dua Buse, a liderança indígenas Xavante o Nossa Tribo, propondo uma ponte entre as aldeias e as A Editora existeItsairu desdee1994 e está focada na Huni Kuin Dantes José Mateus a escritora Ana Miranda. cidades, com foco nas áreas de comunicação, fotografia e vídeo. transmissão e naexiste materialização dos indígenas A Editora Dantes desde 1994 e saberes está focada na pela palavra escrita. transmissão e na materialização dos saberes indígenas pela palavra escrita.
CHICO DA SILVA
Filho de indígena da Amazônia Peruana, Francisco Domingos da Silva (Alto Tejo, Acre, 1910 − Fortaleza, Ceará, 1985) foi pintor e
PODCASTS MEKUKRADJÁ desenhista. Começou a desenhar a carvão e giz sobre muros e Apresentado porde Daniel paredes de casebres de pescadores por volta 1937,Munduruku, em Forta- o programa tem enfoque na experiência política, social esuíço cultural dos povos indígenas. A leza. Na década de 1940, sob o incentivo do crítico e pintor palavra queadá nome e, aojuntamente projeto tem origem caiapó e significa Jean Pierre Chabloz, iniciou-se na pintura guache e transmissão de conhecimento. O uso da linguagem com Chabloz, Antônio Bandeirasabedoria e Inimá de Paula, expôs na Gapodcast pode ser leria Askanasy, RJ. Entre 1961 e do 1963, trabalhou no compreendido recém-criadocomo uma expansão das orais de aprendizado e ensino das culturas indígenas. O Museu de Arte da Universidade tradições Federal do Ceará. Em 1966, receapresentador, da etnia – predominante na região do beu menção honrosa na Bienal de Veneza. Depois de Munduruku quatro anos Rio Tapajós –, tema formação em história, filosofia e psicologia, e, internado em um hospital psiquiátrico, voltou pintar em 1981. alémcosmogônico de dezenas deindígena livros publicados, Suas obras evocam o imaginário tanto recebeu o Prêmio Jabuti em 2017. Atualmente namíticos sua quinta temporada, o podcast já teve parpelos temas relacionados à floresta e seus seres quanto ticipação decobrindo agentes como Naine Terena, a cineasta pela fatura de repetição de gestos e cores toda a curadora tela. Graci Guarani e a antropóloga Varin Mema (na foto)
CURURU Folguedo popular encontrado, predominantemente, nas regiões rurais do Centro-Oeste e parte do Sudeste do Brasil. (...) Há pesquisas acadêmicas que demonstram que a origem da dança, e de sua nomenclatura, encontra-se na
A FLORESTA QUE DORME DEBAIXO DO ASFALTO
etimologia do tronco linguístico tupi-guarani e em rituais indígenas anteriores O líder indígena Ailton Krenak (na foto) e o permacultor australiano Peter à colonização europeia. Nas línguas tupis, o vocábulo cururu significa sapo Webb, mediados pela jornalista Natália Garcia, protagonizaram um debate ou sapo grande, o que explica uma dança cuja coreografia mimetiza o modo projeto Brechas Urbanas, em 2016. A ampliação do conceito de floresta vimento do pulo do sapo. (...) No ano de 2004, é reconhecida pelo Instituto e o questionamento sobre como essa experiência pode modificar a cidade do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Culsão o eixo central da conversa, que aborda o entrelaçamento entre modos tural de Natureza Imaterial Brasileiro. (...) Os cururueiros iniciam a dança com de vida, estruturas políticas e meio ambiente. Outra maneira sugerida para a uma louvação ao santo homenageado, ajoelhando-se diante da imagem ou reativação da floresta latente no asfalto das cidades é a escuta da linguado altar. Em seguida, a dança acontece com o grupo de homens organizado gem das plantas e suas formas de comunicação. O Brechas Urbanas é um em círculo, que gira sempre no sentido horário, acompanhando a direção do projeto de debates do Itaú Cultural que busca encontrar soluções inovadoras braço das violas de Coco. para os modos de vida na cidade, contando com a participação de artistas, agentes políticos, sociólogos e pesquisadores.
FOTOS: DIVULGAÇÃO; CORTESIA DA ARTISTA; FRANCISCO MOREIRA DA COSTA/IPHAN FOTOS: ANDRÉ SEITI/ AGÊNCIA OPHELIA/ DIVULGAÇÃO/ CORTESIA ITAÚ CULTURAL
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MUNDO CODIFICADO
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AMAZÔNIA:
BO
UM MAPA AMBIENTAL DA ARTE
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA
PRESID
MAPEAMENTO INÉDITO DE INICIATIVAS ATIVAS E REPRESENTATIVAS DAS CIDADES E TERRITÓRIOS AMAZÔNICOS COLOCA EM FOCO 14 MUNICÍPIOS E QUASE 70 NOVOS ESPAÇOS DE ARTE
Quais os critérios que definem um espaço de arte? O que delimita um ambiente artístico de outros territórios, ou mesmo dos palcos de outras manifestações culturais? Na análise dos dados levantados no Mapeamento Espaços de Arte na Amazônia surgiram muitas perguntas. A Floresta Amazônica, em si, foi um espaço citado na pesquisa realizada por meio de formulário aberto nas plataformas da seLecT. Em cidades como Rio Branco, no Acre, a conexão com a floresta é tão presente que ela se torna ateliê, palco, museu e escola. O Mundo Codificado desta edição, um projeto em processo, construído colaborativamente a partir de cerca de 100 respostas recebidas, mostra que Manaus é o centro urbano onde se concentra quase metade dos espaços de arte, e a Bola do 23, uma rotatória verde em meio à cidade, parece ser o mais representativo e ativo deles. Belém do Pará e Parintins, sede do festival do Boi-Bumbá, ocupam o segundo lugar entre municípios mais citados. São Luís do Maranhão também se confirma como importante pólo artístico, com destaque para as ações do Centro Cultural Vale do Maranhão e as residências artísticas do Chão Slz.
SELECT.ART.BR
MAR/ABR/MAI 2020
AM
AC RIO BRANCO
PORTO VEL
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O mapeamento de espaços de arte estende-se por muitos municípios e territórios, incluindo espaços que dependem de pontos de geolocalização, como a Casa Canto do Rio, entremeada na mata da Ilha do Combu. O acesso aos locais depende, na grande maioria dos casos, de investigação prévia, um telefonema, uma mensagem por WhatsApp e um bom papo. Entrar em contato antes de qualquer visita é necessário, pois muitos dos locais não têm site ou perfil nas redes sociais. Para conhecer a diversidade institucional e cultural amazônica, clique sobre os pontos sinalizados do mapa.
ACESSE OS VERBETES
OA VISTA
AP
RR
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MACAPÁ
BELÉM
DENTE FIGUEIREDO ALTER DO CHÃO PARINTINS
ALCÂNTARA
PA
MANAUS BARREIRINHA
SÃO LUÍS SÃO SEBASTIÃO DA BOA VISTA ILHA DO MARAJÓ
MA
PALMAS
LHO
TO MT CUIABÁ
ESPAÇO INDEPENDENTE
CENTRO CULTURAL
ESCOLA DE ARTE
ATELIÊ
MUSEU
GALERIA
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA
FLORESTA
TERRITÓRIO
Castanheiras de Eldorado dos Carajás (1999), monumento erguido por Dan Baron e a comunidade local, com 19 troncos da árvore da castanha, no lugar do massacre de trabalhadores rurais pela polícia em 1996
FOTO: CORTESIA GIL VIEIRA
TERRA DE ARTE, MEDITAÇÃO E CONFLITOS: MARABÁ MARISA MOKARZEL
NO SUDESTE DO PARÁ, O POTENCIAL DE UMA CIDADE PARA ESCREVER UMA CENA PULSANTE, MESMO QUE INVADIDA POR ADVERSIDADES E AGRAVADA COM O RETROCESSO POLÍTICO QUE AFETOU A CULTURA BRASILEIRA
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NA BUSCA DE MINERAIS PARA QUE PUDESSE ENERGIZAR SEU CORPO E PROSSEGUIR EM SUA VIAGEM ESPIRITUAL, MARINA ABRAMOVIC POUSOU EM MARABÁ. Em meio a blocos de quartzo,
reclinou a cabeça sobre o cristal e deitou-se sobre o banco de ferro para sentir o poder da alquimia vinda da terra, dos cristais. Ali, naquele campo magnético, realizou uma das versões de Waiting for an Idea (1991). Abramovic esteve em Marabá durante a Eco-92, integrando o projeto Arte Amazonas, apresentado pelo Instituto Goethe de Brasília. O projeto teve a participação de 27 artistas do Brasil e de outros países e se propunha refletir, no próprio território amazônico, as questões ambientais pelo viés da arte contemporânea. No catálogo havia o texto Réquiem Tropical, do antropólogo Darcy Ribeiro, que, a partir da sua vivência na floresta, concluía que as imagens da Amazônia tanto correspondiam ao “Inferno-Verde como ao Paraíso-Terrenal”. E, quanto à ideia de povoar a região, possuía visão crítica, afirmando que “o que se está fazendo não é instalar ali as populações excedentes de outras áreas. É, isto sim, entregar a Amazônia à especulação fundiária”. Situada entre dois rios, o Tocantins e o Itacaiúnas, Marabá é uma cidade marcada por forte migração e atravessada por megaprojetos, gerida por ciclos econômicos que envolvem a extração mineral, o extrativismo vegetal e o negócio agropecuário. Seu programa de desenvolvimento produz tanto riqueza como violência e conflitos de terra. Numa luta desigual, quatro anos após o Arte Amazonas, em 1996, ocorre o Massacre de Eldorado do Carajás, quando, armados de pau e pedra, os trabalhadores rurais se defendem da polícia, que, no solo, deixa a mancha de sangue dos 19 sem-terra assassinados. A tragédia aconteceu na Curva do S, local onde participantes do Movimento Sem Terra (MST) se encontravam acampados. O episódio nunca seria esquecido. Naquele mesmo ano, o MST procura Oscar Niemeyer para a construção de um monumento às vítimas de Eldorado do Carajás; e, de acordo com o pesquisador Gil Vieira Costa, “em julho daquele ano, o projeto já estava elaborado”. O Monumento Eldorado Memória (1996), no entanto, logo sofreu ameaças, e a sua destruição, esclarece Vieira, acontece em um momento de tensão entre o MST e a União Democrática Ruralista (UDR). VOL. 10 / N. 51
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Projeto do Monumento Eldorado Memória (1996), realizado por Oscar Niemeyer a pedido do Movimento Sem Terra (MST); o arquiteto e trabalhadores rurais ao lado do monumento, no Rio de Janeiro, em 1996; na página ao lado, reprodução da obra em parede do campus da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
FOTOS: REPRODUÇÃO; DOMINGOS PEIXOTO/AGÊNCIA O GLOBO; HALLEL/WIKIMEDIA COMMONS
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FOTO: MATHEUS BELÉM
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À esq., o antigo Galpão das Artes de Marabá (GAM), criado em 1997 e hoje vazio; abaixo, vista e detalhe da instalação Casa Temática: El Dorado (1996), de Klinger Carvalho, que homenageia as vítimas do massacre de Carajás
ARTE E MEMÓRIA
Em 1999, outra obra seria erguida no mesmo local em que ocorreu o massacre. Desta vez de autoria do arte-educador Dan Baron Cohen, em parceria com integrantes do MST. O gaulês Dan Baron, residente em Marabá, é o idealizador do projeto Rios de Encontro, que desenvolve, com a comunidade, ações colaborativas de caráter socioeducativo. Castanheiras de Eldorado do Carajás (1999) foi erguida com 19 troncos da árvore da castanha, representativa da região e sujeita às queimadas, daí ter sido sugerida pelos trabalhadores como elemento escultórico simbólico do massacre. No centro do monumento existe um tronco menor, no qual há uma placa gravada com os nomes dos 19 trabalhadores assassinados. Arte e memória são permeadas pelo massacre de Eldorado do Carajás. Entre os artistas que se
dedicaram ao tema encontra-se Klinger Carvalho, que, ainda em 1996, realiza em Belém a instalação Casa Temática: El Dorado, exposta no Museu do Estado do Pará. Fazendo alusão às casas de taipa existentes na região, constrói 19 túmulos-casas feitos de barro e cipó. Cada “casa” recebe uma pequena placa de vidro manchada de sangue, identificada apenas com a letra C e um número, correspondente a cada corpo morto. A instalação depois se expande, ocupando a praça em frente ao edifício do museu. Marcone Moreira também criou uma obra que se reporta ao massacre, o díptico fotográfico Ausente Presença (2013), e traz a junção de duas fotografias: uma, com as marcas de pés no barro, sobrepostas por outros modelados em argila; a outra foto é da placa com o nome dos 19 mortos que integra a obra de Don Baron e MST. Em seu ensaio Necropolítica (2011), Achille Mbembe confirma que esse tipo de soberania do poder político e econômico consiste em exercer o controle da mortalidade, em última instância definir quem deve viver ou morrer. Os discursos promovidos por Klinger Carvalho e Marcone Moreira manifestam-se sobre as cruéis armadilhas que geram tantos massacres e varrem do sistema da vida os que são considerados indesejados, sejam trabalhadores rurais, indígenas, negros ou os pertencentes ao grupo LGBTQIA+. Na cena artística de Marabá existem organizações que atuam interceptadas pelo sentimento de indignação, estabelecendo parcerias com os movimentos sociais, criando redes de atuação. É o caso do Galpão de Artes de Marabá (GAM), que surgiu com a ideia empreendedora de Mestre Botelho, orientando jovens aprendizes em direção a uma produção artística industrial. Antônio e Deíze Botelho, filhos do Mestre, em 1997, transformaram o espaço artístico-industrial no Galpão das Artes. Atuando como importante agente articulador e mobilizador, o GAM passa a operar com a comunidade artística em processos de discussão e reflexão, viabilizando não somente a criação da Associação dos Artistas Visuais do Sul e Sudeste do Pará (Arma), mas também de outras associações. Antônio Botelho foi o primeiro presidente da Arma e, atualmente, Marcone Moreira ocupa a presidência. FOTOS: CORTESIA ACERVO GAM E ACERVO KLINGER CARVALHO
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Acima, instalação de Antônio Botelho com tábuas de carne das cozinheiras da comunidade Cabelo Seco; à dir., Porteira (2013), de Marcone Moreira, ambas em exposição no Ateliê 397, em São Paulo
PERFORMANCE FLUVIAL
O Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, em 2013, selecionou o Projeto Carajás Visuais Entre Rios e Redes, realizado pela empresa Tallentus Amazônia, coordenada por Deíze Botelho. O projeto previa o intercâmbio e a interlocução entre profissionais das artes visuais das regiões Norte e Sudeste do Brasil. Tinha como proposta a cooperação inter-regional entre Marabá e a cidade de São Paulo. Foram pensadas e realizadas três ações: o I Encontro Cultural de Carajás Entre Rios e Redes, que aconteceu em Marabá; a residência artística de Mauricio Adinolfi (São Paulo), em colaboração com Marcone Moreira, Antônio Botelho e mais 30 barqueiros da Associação dos Barqueiros Marítimos de Marabá; e a exposição Onde o Rio Acaba, com artistas de Marabá, realizada no Ateliê 397, em São Paulo. BarcoR (2013) foi o nome dado por Adinolfi às ações desenvolvidas com os barqueiros. Estética VOL. 10 / N. 51
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Tocantina complementa a denominação. A culminância da ação deu-se com a performance fluvial sobre o Rio Tocantins, em que barcos encenaram o movimento da Buiúna, a Cobra Grande. Além da estética adotada, havia o propósito de refletir sobre os possíveis impactos socioambientais que grandes projetos, como o da implantação da Hidrovia Araguaia Tocantins ou da Hidrelétrica de Marabá, podem causar. A mostra Onde o Rio Acaba teve como curadoras Camila Fialho, que esteve em Marabá para conhecer os trabalhos dos artistas da região de Carajás, e Thaís Rivitti, representante do Ateliê 397. A exposição levou para São Paulo obras de artistas e ativistas culturais do sul e sudeste paraenses. A intenção era colocar em pauta questões relevantes para a região, como a transformação do Rio Tocantins em hidrovia, visando o escoamento de minério. Os eixos curatoriais foram formados por três palavras-chave: rio, território e exploração. A abertura da exposição é acionada, simbolicamente, pela Porteira (2013), obra concebida por Marcone Moreira. Nela estão presentes o ato restritivo de permitir ou proibir entradas e saídas. O campo rural muitas vezes funciona como território de conflitos de terra, como área de trabalho escravo, como solo de queimadas, de crimes ambientais. FOTOS: CORTESIA ACERVO GAM
OS DISCURSOS PROMOVIDOS POR KLINGER CARVALHO E MARCONE MOREIRA MANIFESTAM-SE SOBRE AS CRUÉIS ARMADILHAS QUE GERAM TANTOS MASSACRES E VARREM DO SISTEMA DA VIDA OS QUE SÃO CONSIDERADOS INDESEJADOS
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Ensaio Caos, da série Mil [Quase] Mortos (2018)
FOTO: MATHEUS BELÉM
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NOVAS TESSITURAS
Importante perceber a dinâmica das ações, as tramas traçadas que reverberam em novas tessituras da vida. José Viana, que morou em Marabá, conhece a gaúcha Camila Fialho, que decide deixar São Paulo e morar em Belém. Pouco depois, tornam-se parceiros e formam o Duo Raio Verde. A experiência vivida em Marabá os conduzirá à construção do S11D – Projeto de Salvaguardar Pedras, que foi apresentado no Arte Pará de 2014. A ideia era transformar uma pedra sem valor monetário em obra museal, salvaguardada em um acervo. A pedra seria coletada no Complexo Industrial de Carajás, na Serra Sul, mais especificamente na fatia
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de terra 11D. A intenção, revestida de humor e ironia, era de que a instalação fosse premiada e as pedras entrassem para o acervo do Arte Pará. A premiação não aconteceu. O projeto de salvaguarda ficou frustrado, mas não por muito tempo, pois Armando Queiroz, na época diretor do museu Casa das Onze Janelas, fez um gesto afetivo de acolhimento, viabilizando o sonho da dupla. Surgiu, assim, a Exposição na Casa: Registro do Presente, concebida como regalo saído de uma mineradora para ocupar salas expositivas e depois integrar o acervo de um museu. O gesto poético dos artistas e do diretor do museu permitiu que as pedras fossem salvaguardadas. O sistema de arte que vem se estabelecendo em Marabá repercute em outros municípios, como Canaã dos Carajás, Parauapebas, Paragominas, Eldorado do Carajás, Redenção, Conceição do Araguaia, São Félix
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Ausente Presença (2013), díptico fotográfico de Marcone Moreira, com os nomes das 19 vítimas do massacre de Eldorado do Carajás
do Xingu e Tucuruí. A primeira turma de artes da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) surge em 2014, e pode-se dizer que o curso está se transformando em polo importante nessa rede de arte que se está constituindo. Gil Vieira e Alixa Santos estão presentes desde a criação do curso. Vieira tem realizado pesquisas sobre a arte na Amazônia e dedicado muitos de seus artigos a Marabá. Desenvolve o Projeto Arquivo Digital de Artes e Culturas Visuais na Amazônia (ACVA), iniciado em 2021. O objetivo é promover o acesso digital a diferentes coleções e acervos que estarão reunidos em uma mesma plataforma de
pesquisa, com download gratuito. Cinthya Marques, fotógrafa, pesquisadora e, desde 2017, professora do curso de artes da Unifesspa, investiga a trajetória das artes visuais nas regiões sul e sudeste do Pará. Um de seus projetos, O Nanquim de Marabá – Patrimônio e Memória na Arte de Augusto e Pedro Morbach, tem como propósito catalogar as obras desses dois artistas, representativos de uma técnica que ficou conhecida como Nanquim Amazônico. Cinthya ainda dá prosseguimento a mais três iniciativas, entre elas o Projeto Fotográfico Ver-a-Cidade, que a Galeria de Arte Vitória Barros realiza desde 2010. Inaugurada em 2002, a galeria tornou-se instituto em 2015. Há quase 20 anos funciona como espaço independente, no qual prevalece “o espírito colaborativo da comunidade artística local”, de acordo com o site do Instituto de Artes Vitória Barros (IAVB).
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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TRINTA INTEGRANTES DA ASSOCIAÇÃO DOS BARQUEIROS MARÍTIMOS DE MARABÁ PARTICIPARAM DE PERFORMANCE DO ARTISTA MAURICIO ADINOLFI SOBRE O RIO TOCANTINS
Pintura de barcos no projeto BarcoR (2013), de Maurício Adinolfi
VALORES ÉTICOS E ESTÉTICOS
Estive em Marabá pela primeira vez em 2005 e, recentemente, fui convidada por Armando Queiroz para assistir, virtualmente, à abertura do 6º Festival Internacional Amazônida de Cinema de Fronteira, que acontece em Marabá, sempre em abril, em memória do massacre de Eldorado. O evento é colaborativo e tem como criador e curador o professor Evandro Medeiros. Gil Vieira participou da comissão do festival e Cinthya Marques foi curadora da exposição virtual Adeus, Amazônia, do fotógrafo Miguel Chikaoka, que nos anos 1980/90 esteve no sul e sudeste do Pará, acompanhando as lutas pela terra, registrando as invasões aos territórios indígenas e fotografando as consequências da exploração de minérios. Fiquei impactada com os discursos de abertura do evento, proferidos por Evandro Medeiros e Ayala Ferreira, representante do MST. Por ter presenciado esses discursos e observado a potência da programação, percebi que Marabá se abria à possibilidade de uma cena artística vigorosa, construída com valores éticos e estéticos muito próprios. VOL. 10 / N. 51
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Uma rede de ações e pensamentos confirma a primeira impressão que tive sobre o potencial de Marabá para escrever uma cena pulsante mesmo que amalgamada a um terreno arenoso, invadido por adversidades. Todavia, algo da cena mudou: tanto o Galpão como a Associação dos Artistas Visuais enfrentam um momento adverso, cujo primeiro impasse surgiu com o falecimento de Mestre Botelho. As dificuldades foram agravadas com o retrocesso político que afetou a cultura brasileira, comprometendo a realização de projetos, mas o importante para Deíze é que não afetou os pensamentos. Os cristais muitas vezes se quebram, podendo não permitir mais a viagem espiritual de Marina Abramovic, assim como o Réquiem Tropical pode mais uma vez se fazer ouvir ao som da voz de Darcy Ribeiro: As florestas tropicais úmidas, com sua massa prodigiosa de vida vegetal e animal, habitada por povos [...] armados de um saber de experiência feita de um imenso gozo de viver e de uma alegria espantosa, vão se convertendo em obsolescências num mundo caduco, cego para a vida, para o humano e para a beleza. Mesmo no atual mundo sombrio, demarcado por políticas assassinas. Mesmo que nos encontremos diante da ameaça da “queda do céu”, prevista por David Kopenawa, acredito que se possa reverter a cegueira e praticar a beleza. FOTO: CORTESIA ACERVO GAM
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Ensaio Lama, da série Elementar (2017)
FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
CURADORIA
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VALORES ÉTICOS E ESTÉTICOS
Estive em Marabá pela primeira vez em 2005 e, recentemente, fui convidada por Armando Queiroz para assistir, virtualmente, à abertura do 6º Festival Internacional Amazônida de Cinema de Fronteira, que acontece em Marabá, sempre em abril, em memória do massacre de Eldorado. O evento é colaborativo e tem como criador e curador o professor Evandro Medeiros. Gil Vieira participou da comissão do festival e Cinthya Marques foi curadora da exposição virtual Adeus, Amazônia, do fotógrafo Miguel Chikaoka, que nos anos 1980/90 esteve no sul e sudeste do Pará, acompanhando as lutas pela terra, registrando as invasões aos territórios indígenas e fotografando as consequências da exploração de minérios. Fiquei impactada com os discursos de abertura do evento, proferidospor Evandro Medeiros e Ayala Ferreira, representante do MST. Por ter presenciado esses discursos e observado a potência da programação, percebi que Marabá se abria à possibilidade de uma cena artística vigorosa, construída com valores éticos e estéticos muito próprios. Uma rede de ações e pensamentos confirma a primeira impressão que tive sobre o potencial de Marabá para escrever uma cena pulsante mesmo que amalgamada a um terreno arenoso, invadido por adversidades. Todavia, algo da cena mudou: tanto o Galpão como a Associação dos Artistas Visuais enfrentam um momento adverso, cujo primeiro impasse surgiu com o falecimento de Mestre Botelho. As dificuldades foram agravadas com o retrocesso político que afetou a cultura brasileira, comprometendo a realização de projetos, mas o importante para Deíze é que não afetou os pensamentos. Os cristais muitas vezes se quebram, podendo não mais permitir a viagem espiritual de Marina Abramović, assim como o Réquiem Tropical pode mais uma vez se fazer ouvir ao som da voz de Darcy Ribeiro: As florestas tropicais úmidas, com sua massa prodigiosa de vida vegetal e animal, habitada por povos [...] armados de um saber de experiência feita de um imenso gozo de viver e de uma alegria espantosa, vão se convertendo em obsolescências num mundo caduco, cego para a vida, para o humano e para a beleza Mesmo no atual mundo sombrio, demarcado por políticas assassinas. Mesmo que nos encontremos diante da ameaça da “queda do céu”, prevista por David Kopenawa, acredito que se possa reverter a cegueira e praticar a beleza. VOL. 10 / N. 51
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FOTOS: KEYLA SERRUYA
DAS MARGENS, DOS TEMPOS E DA ÁGUA COMO CENTRO
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DENISE SCHNYDER
NAVEGAMOS EM PROCESSOS DE ARTISTAS QUE PENSARAM O BARCO, DO MAR À MATA ADENTRO
Pintura de barcos no projeto BarcoR (2013), de Mauricio Adinolfi
Ensaio Lama, da série Elementar (2017)
FOTO: CORTESIA ACERVO GAM
QUÃO DOCE PODE SER O DESEJO DE ATRAVESSAR UMA PORÇÃO DE ÁGUA? UMA FOLHA DE PAPEL RETANGULAR, UMA DOBRA NO EIXO HORIZONTAL, NOVAS DOBRAS FORMANDO UM TRIÂNGULO E, FECHADAS AS BORDAS, É HORA DE VIRAR. É UM AVESSO, O BARCO DA INFÂNCIA. 44
Um artista prepara as malas para embarcar em uma residência artística, é Alexandre Silveira. Confere no mapa, o local é cercado de água. A maré oscila em até 8 metros. Em São Luís do Maranhão, a variação é, simplesmente, a maior do país. Quem manda é ela, a maré, e quem não se prepara, encalha. A comunidade desenvolve seus modos de compreender e navegar o ambiente. A transmissão desses saberes acontece no Estaleiro Escola, lugar onde a comunidade barqueira de ontem e de hoje constrói barcos e forma os barqueiros que vão navegar a Baía de São Marcos amanhã. É o Chão Slz a residência para a qual o artista está indo. Samantha Moreira, fundadora do espaço, des-
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creve a importância do encontro entre os artistas residentes e o Estaleiro Escola: “É o encontro dos artistas com a água. É um momento de submersão. A água abre novos canais”, diz a curadora à seLecT. “O encontro com o Estaleiro Escola foi importante para muitos artistas que passaram por aqui”, reitera Dinho Araújo, curador e gestor do Chão Slz, que começa a nos contar sobre o processo de Alexandre Silveira. Para chegar a essa antiga nave para a construção de barcos, que fica na outra margem do Rio Bacanga, é preciso encarar a travessia, compreender a maré. Em muitos momentos do dia, a travessia poderia ser feita a pé, mas é perigoso, sabe-se lá em quanto tempo a água pode voltar a subir. Antes de chegar na residência, Silveira, arquiteto de formação, pretendia conhecer mais sobre o contexto urbano da cidade, mas, quando viu o mapa, foi capturado logo de cara. A cidade era cercada por água, era quase uma ilha, uma imensidão de mar. O centro da vida era a água e, consequentemente, as embarcações. “A biana me chamou a atenção. Ela é a mais simples das embarcações, uma junção entre os barcos que vieram com os colonizadores da região e as embarcações nativas. Tem fundo raso, perfeito para acompanhar as oscilações da maré, fundo de adentrar com tranquilidade os igarapés”, diz o artista à seLecT. Rodando os
FOTO: CORTESIA CHÃO SLZ
sebos da cidade, ele encontrou o livro Embarcações do Maranhão, de Luiz Phelipe Andrés. Ficou surpreso quando encontrou no Estaleiro Escola o próprio autor do livro, que é quem coordena a programação do lugar. MENSAGEM CARREGADA PELO VENTO
Poderíamos imaginar que, ao caminhar pelo Estaleiro, conhecendo e observando o trabalho que estava sendo desenvolvido ali pelos barqueiros, uma música tomasse todo o ambiente. Um reggae, tocado em onda pirateada de estações de rádio jamaicanas. Uma tradição do lugar. É possível imaginar que foi nessa atmosfera que Silveira encontrou o barqueiro que carrega o nome de Juca Marley, o Juca da grande Radiola FM Metanol: a Fabulosa do Brasil. Nas radiolas que são paredões de aparelhagem de som, Juca, barqueiro e tocador, treme mar e terra. A ideia inicial do artista residente era velejar com uma biana pela Baía de São Marcos. Levar na vela
espicha do barco uma mensagem que pudesse ser carregada pelo vento, uma esperança nova diante do desânimo que sentia com a recente eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. “Juca topou fazer comigo o trabalho e fomos produzindo esse acontecimento durante quatro dias, realizando a ação no domingo pela manhã, logo na subida da maré”, conta. Enquanto Juca preparava o barco, que ele mesmo havia feito, Silveira pintava a vela branca com os dizeres “Tempo Haverá”. As trocas entre os dois ganharam profundidade. O barqueiro contou de sua mãe nascida em ventre livre. Falou de Alcântara, onde teriam desembarcado seus ancestrais. Silveira conectava-se também com sua própria história. Sonhava em turbilhões. Dormia entre pedaços de mar, visões recortadas, ondas tocando o casco. Lembrou de quando tomou chá de ayahuasca e das visões de naufrágio que teve, reminiscências dos povos do norte de Portugal, suas origens familiares. O quanto ainda haveria nele da experiência de seus ancestrais? O acontecimento foi a travessia, Juca e ele navegando e registrando a ação. Quando chegou a hora da exposição, a obra trouxe a assinatura dos dois: Alexandre Silveira e Juca Marley. “Por fim, desloquei a vela para o espaço expositivo do Chão Slz e escrevi um texto com areia. Trouxe a projeção do barco no mar e outras imagens do processo”, conta o residente.
Tempo Haverá (2018), performance de Alexandre Silveira em colaboração com Juca Marley, realizada durante residência no CHÃO SLZ, em São Luis (MA)
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PARA PINTAR UM BARCO
É um tema clássico. Barcos no horizonte, no azul, atracados no cais. Um barco protagonizando a luta com uma grande tempestade, uma pintura de Turner. O imaginário ocidental que nos faz acreditar que, no universo pictórico, os barcos vivem como guerreiros ou partes da bucólica paisagem. Espectadores, nos colocamos à margem. Pés enfiados na areia. Há um artista observando, um pintor que atravessa a superfície da paisagem. Chega a ver a pintura dos cascos, dos barcos, a pintura além da imagem. Maurício Adinolfi é um artista que tem como pesquisa a pintura, renovando constantemente sua relação com ela. E se guiando também pela sua relação com o mar. O projeto de intervenção e ação com a comunidade barqueira de Marabá, no Pará, atravessou de muitas formas o artista. BarcoЯ foi realizado em 2013 como trabalho colaborativo com a Associação de Barqueiros de Marabá, juntamente com o construtor naval Antonio Sérgio e os artistas Antônio Botelho e Marcone Moreira. O objetivo era pintar 30 barcos que circulam pelo Rio Tocantins. Os desenhos e as cores eram definidos pelo artista com os envolvidos no projeto, bem como a execução da pintura. Os desenhos partiam do que seria uma estética tocantineira, que reúne padrões representativos para os povos ribeirinhos e indígenas que vivem junto ao rio. Um
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FOTO: CORTESIA ACERVO GAM
BarcoR (2013), performance fluvial de Mauricio Adinolfi com a participação de 30 barcos no Rio Tocantins
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método foi desenvolvido para o processo. Em cada equipe de pintura formada havia sempre um pintor responsável, o Cabeça, organizando a equipe com base nos desenhos iniciais e esboços que foram realizados pelo artista e adaptados, considerando as características específicas do barco e das cores escolhidas por seu dono. Em seu relato sobre a experiência, Adinolfi conta que, para pintar um barco, é preciso conhecer seus componentes físicos e as regras marítimas. Um exemplo é a importância da pintura da linha d’água, que marca o peso de cada embarcação. O conhecimento da estrutura do barco corresponde às etapas do processo de pintura. As etapas acontecem em quatro partes: o casco, a caixa, o interior e a cobertura. O projeto finalizou em uma performance fluvial com os barqueiros realizando um grande desenho no rio, com todos os barcos pintados, celebrando o trabalhador ribeirinho. Era dia 1º de maio. Fruto de um processo colaborativo e com sentido para todos os envolvidos, o legado ficou em Marabá. É uma experiência da comunidade que continua a reverberar. “Nas minhas pesquisas sobre pintura de embarcações, tanto aqui no Brasil quanto em Portugal, me aprofundei nas iconografias e nos símbolos dos construtores, na geometrização das pinturas das partes do barco, sua
estrutura. Formas como círculo, triângulo, cruz, diagonais, e também signos e siglas de comunidades pesqueiras fazem parte da linguagem”, conta. O processo da pintura naval continua reverberando no artista, que leva essa experiência para as telas. “O mar, na poética de Adinolfi, não se apresenta como tema ou assunto da pintura, mas se configura como um exercício de ir e voltar, de confronto incerto com questões específicas do artístico”, analisa a curadora Marta Mestre. O artista tem duas novas intervenções programadas que acompanham o leitmotiv. Uma será montada no Sesc Santos, na coletiva Portos, com curadoria de Ilana Goldstein. A outra será a obra site-specific Caronte-Sete Voltas, no Beco do Pinto, fruto do Prêmio por Histórico de Realizações, do Proac Artes Visuais.
BARCOS ELÉTRICOS
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Atravessamos matas e correntes, lutamos contra o medo do desconhecido para nos deixarmos atravessar pelo ambiente, buscamos novas águas para nos banhar. No movimento de deslocar o eixo para onde a água é centro, vamos deslizando em um barco que margeia o norte para, enfim, adentrar os igarapés. Keyla Sobral nasceu e cresceu em Belém do Pará, região urbana, mas cercada por rios, com muitas ilhas ao redor. “Meu encontro (com a água) sempre se dava nas férias de julho e em alguns fins de semana. Um dos propósitos deste projeto era ficar mais próxima, reconhecer lugares a que ia quando criança”, conta a artista sobre o projeto O Som do Rio Diz o Que Eu Penso, premiado pela Fundação Cultural do Pará, em 2018. A ideia de Sobral era atravessar as águas nas quais se banhava na infância levantando questões sobre o que é visível e o que é invisível no ambiente. “Quem se banha nessas águas? A quem interessa essas águas?” foram algumas das perguntas que dispararam o processo da artista. Ao flutuar com embarcações nos rios acastanhados que margeiam Belém, os barcos seguiam contando estórias, curtas narrativas do invisível que se tornavam visíveis através de letreiros luminosos acoplados nas estruturas dos barcos. Uma momentânea intervenção na paisagem era provocada, sem deixar rastros, somente o registro de uma ação silenciosa. Como se o barco caminhasse sozinho, uma deriva e um passeio, um barco a buscar um bom ponto de mergulho. A visão de que há de existir um lugar onde podemos submergir no passado, na lembrança, ou em outro futuro possível, um rio eletrônico. No movimento de revelar e descobrir seus lugares de afeto, é no Norte que tudo se revela para Sobral. “O Norte é meu ponto de partida, é onde tudo começa, é o meu referencial, é o meu norte no sentido geográfico-afetuoso. Ele é uma das partes de tudo que sou.” A artista trabalha, desde 2009, no cruzamento entre a poesia e as artes visuais. Projetos como este, em que as palavras ganham dimensão tão grande quanto um barco navegando por uma imensa floresta, acessando a memória que é de Keyla, que é do norte, e de todos os seres que já caminharam nessas margens. E o que se revelou ao longo do processo? “Ao embarcar neste projeto, descobri que sempre é possível se debruçar um pouco mais, conhecer um pouco mais”, responde à seLecT. E completa: “Todo dia é tempo de se renovar, como um rio, como um River Phoenix”. VOL. 10 / N. 51
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FOTO: CORTESIA DA ARTISTA
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O Som do Rio Diz O Que Eu Penso (2018), de Keyla Sobral
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AGARAY-BAN
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Never Forget (2021), de Nicholas Galanin, desenvolvido para o Desert X, instalado ao norte do Palm Springs Visitors Center, na Tramway Road, Califórnia; à esquerda, still da videoperformance OQ XIMTALI (2016), de Manuel Chavajay, obra apresentada na 22 a Bienal de Arte Paiz (2021), na Cidade da Guatemala
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J U L I A N A M O N AC H E S I
NUM GIRO PELAS FLORESTAS AO REDOR DO GLOBO, REUNIMOS OBRAS QUE SÃO EXPRESSÃO DA CULTURA COMUNITÁRIA, DE SABERES ANCESTRAIS E DOS ANSEIOS COMPARTILHADOS POR CURA E REPARAÇÃO
CURADORIA
Shadow on the Land, an Excavation and Bush Burial (2020), intervenção pública de Nicholas Galanin na 22 a Bienal de Sydney
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A PALAVRA QUE INTITULA A PRESENTE CURADORIA EDITORIAL SIGNIFICA CURA. Tomamos emprestado o
termo Wiradjuri de um dos segmentos da 22ª Bienal de Sydney, que aconteceu no ano passado na Austrália, mas foi pouco visitada por causa da pandemia. Algumas das obras apresentadas ali, entretanto, já nasceram icônicas, como é o caso de Shadow on the Land, an Excavation and Bush Burial (2000), de Nicholas Galanin, artista Tlingit e Unangax do Alasca. Projetada como a sombra da estátua do capitão James Cook, localizada no Hyde Park, na capital de Nova Gales do Sul, a intervenção realizada em Cockatoo Island representa uma cena do crime, com a sombra escavada na terra cercada por grades de isolamento amarelas. Cook, um capitão da Marinha Real Britânica do século 18 que navegou para a área da Grande Barreira de Corais da Austrália e invadiu muitas ilhas do Pacífico, é um símbolo nacional no país que, assim como outros “heróis” coloniais, o artista gostaria de ver enterrado. Em entrevista à revista New York, Galanin conta que entrou em contato com diversos artistas nativos durante suas pesquisas para a obra da Bienal de Sydney: “Compartilhamos lutas coloniais semelhantes contra o racismo, o apagamento e outras disparidades implementadas e defendidas pelos governos coloniais. A conversa em torno de monumentos e estátuas que hoje representam a história unilateral de homens brancos, principalmente, responsáveis por genocídios, estupros, comércio de escravos etc. tem ocorrido entre nossas comunidades. A sombra sobre a terra pode ser aplicada a quase todas as grandes estátuas coloniais em terras indígenas ou aborígenes e se encaixa bem nos movimentos sociais maiores que acontecem em todo o mundo”, defendeu, referindo-se ao levante Black Lives Matter, em 2020. Galanin é especialista em criar obras-statement. Neste ano, convidado a participar do Desert X, na Califórnia, concebeu uma intervenção na paisagem que emula o letreiro de Hollywood, afirmando que aquela terra é indígena. Essa dupla afirmação, de que os indígenas são os donos originários da terra e de que os monumentos coloniais devem tombar, permeia as inquietações de criadores nativos que seLecT reúne nas páginas a seVOL. 10 / N. 51
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guir, num giro pelo globo em busca de outras florestas, onde também se erguem vozes ancestrais em defesa das mesmas como única salvação para um planeta que agoniza sob pestes, aquecimento global e extinção de espécies dos mundos vegetal e animal. Outra característica comum entre artistas aborígenes australianos e canadenses, indígenas norte-americanos e guatemaltecos é a criação artística como expressão comunitária. Ainda que circulem com a assinatura de seus autores, as obras são sempre expressões da cultura de um povo, de saberes transmitidos pelos ancestrais e dos anseios compartilhados por cura e reparação. O artista Wiradjuri Brook Andrew, curador da 22ª Bienal de Sydney, batizou o evento com a palavra NIRIN, que significa borda em sua língua materna. A bienal tratou de expor que os “estados urgentes de nossas vidas contemporâneas estão carregados de ansiedades do passado não resolvidas e camadas ocultas do sobrenatural”, nas palavras de Andrew, por meio de trabalhos de comunidades indígenas e da diáspora, que em geral estão longe do “centro” do mundo da arte. Na América Latina, assistimos recentemente à 22ª Bienal de Arte Paiz, na Cidade da Guatemala, abordar com igual protagonismo a arte de povos originários, e em breve teremos a Bienal de São Paulo, cuja lista de participantes traz a maior representatividade de artistas indígenas da história da exposição. Com curadoria-geral da chilena Alexia Tala, a exposição reúne, entre os convidados, aproximadamente, 50% de artistas nativos. “Eu os chamo de artistas do altiplano, porque moram nas montanhas e nas planícies”, diz Alexia Tala à seLecT. “Trata-se de artistas indígenas produzindo arte contemporânea, não são artistas populares fazendo artesanato, ainda que eu tenha incluído também alguns nomes da arte popular. Existe uma tradição de arte naïf na Guatemala, especialmente numa área que se chama Comalapa. Já os artistas do altiplano são pesquisadores e pensadores importantes, trabalham sobre suas próprias histórias, suas próprias vivências e suas próprias cosmovisões. O que existe de comum é que suas obras invariavelmente aludem a uma cosmovisão própria, uma experiência própria de vida na comunidade”, diz a curadora. FOTOS: DIVULGAÇÃO BIENAL DA GUATEMALA/BIENAL DE SYDNEY E CORTESIA DOS ARTISTAS
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Desenho de Manuel Chavajay, feito com óleo queimado sobre papel algodão; detalhe da instalação Retaal K’aslemaal (2020/2021), exposta na 22 a Bienal da Guatemala; na página ao lado, Sem Título (2012), aquarela de Chavajay
MANUEL CHAVAJAY E O ANIMISMO NA COSMOVISÃO MAIA
Artista tz’utujil originário de Sololá, na Guatemala, Manuel Chavajay optou por morar e trabalhar em Patzununá (San Pedro La Laguna) para estar perto de sua família e da comunidade. No período em que viveu na Cidade da Guatemala, criou o coletivo Canal Cultural, para seguir trabalhando em projetos comunitários. Na ação que resultou na videoperformance Oq Ximtali (2017), o artista reflete sobre a relação de sua comunidade com o Lago Atitlán. Ele convidou um grupo de pescadores e pediu-lhes que amarrassem seus respectivos barcos uns aos outros e então tentassem remar. A imagem, vista de cima, assemelha-se a uma planta e evoca também uma padronagem circular encontrada nos güipiles tecidos pelas mulheres nos povos indígenas, como uma clareira que forma a imagem do sol e brilha intensamente no meio do lago. Como artista maya-tz’utujil, Chavajay busca
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construir imagens de denúncia e reivindicação de sua cultura. Sua história pessoal, como a de grande porcentagem de habitantes da Guatemala (com 60% de sua população indígena), é atravessada pelas violências do conflito armado. De acordo com Alexia Tala, “a obra do artista permeia a cosmovisão indígena e os imaginários do sagrado, ao apresentar as consequências da modernização desenfreada”. Para a instalação feita especialmente para a Bienal da Guatemala, Retaal K’aslemaal (2021), o artista reuniu objetos em processo de degradação retirados do fundo do Lago Atitlán para questionar sua origem a partir de noções de arqueologia. “Possíveis oferendas à mãe água ou resíduos de um acidente em uma canoa, fazendo um paralelo entre a mudança que o tempo opera nos objetos e a mudança que as doenças operam em nossos corpos, evocando a noção animista da cosmovisão maia”, conclui a curadora.
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA,; HUGO QUINTO / CORTESIA ALEXIA TALA
BENVENUTO CHAVAJAY
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Abaixo, Ladino por Decreto (2020-2021), obra de Benvenuto Chavajay que foi comissionada e exibida pela 22 a Bienal de Paiz; na página ao lado, no alto, foto mostra o documento de identidade de Doroteo Guamuch Flores tatuado nas costas do artista; a obra promoveu alteração do nome do estádio nacional da Guatemala
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Primo de Manuel Chavajay e nascido também em San Pedro La Laguna, Benvenuto carrega, tatuado em suas costas, o documento de identidade de um atleta guatemalteco famoso, Doroteo Guamuch Flores. Até 2015, data da obra do artista, o vencedor da Maratona de Boston de 1952, verdadeiro herói nacional na Guatemala por este feito, era conhecido como Mateo Flores, por uma dificuldade ao noticiarem o nome do maratonista em jornal norte-americano.
CONTRA A VIOLÊNCIA COLONIAL
Com a latente recusa às origens, o país de Doroteo Guamuch viu por bem adotar o nome embranquecido. Após o trabalho de Chavajay, o Estádio Mateo Flores mudou de nome. Em sua obra para a Bienal na Guatemala, Benvenuto encomendou um retrato seu a um pintor de San Pedro Sacatepéquez, que “adaptou” suas feições tz’utujil. Ao lado da tela, ele exibe o decreto de 1876, que tentou ladinizar a população indígena da região, bordado em ponto cruz.
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MANUEL CHAVAJAY E O ANIMISMO NA COSMOVISÃO MAIA
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA; HUGO QUINTO / CORTESIA ALEXIA TALA
CARACTERÍSTICA COMUM ENTRE ARTISTAS ABORÍGENES AUSTRALIANOS E CANADENSES, INDÍGENAS NORTE-AMERICANOS E GUATEMALTECOS É A CRIAÇÃO ARTÍSTICA COMO EXPRESSÃO COMUNITÁRIA. AS OBRAS SÃO SEMPRE EXPRESSÃO DE ANSEIOS COMPARTILHADOS POR CURA E REPARAÇÃO
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ANTONIO PICHILLÁ: PRÁTICAS TÊXTEIS COMO DEPÓSITO DE MEMÓRIA
Pichillá trabalha com sua mãe, que é tecelã, e os dois criaram juntos uma obra têxtil de grandes dimensões com as cores do milho. O milho é muito importante na cultura maia e o artista usa as suas quatro cores para construir a instalação Viento (2020), exibida na 22ª Bienal de Arte Paiz. “Aqui os limites da percepção são ampliados, permitindo que o têxtil seja assumido como uma experiência completa, que visa dar conta do quadro histórico e cultural dos tz’utujil, ao mesmo tempo que faz com que as práticas têxteis sejam vistas como depositárias de uma extensa memória, a partir da qual é importante repensar nosso presente”, escreve Alexia Tala no ensaio do catálogo da Bienal. A produção de Antonio Pichillá está intimamente ligada à cultura a que pertence, a etnia maia-tz’utujil, que evoca por meio de diversos elementos que nos falam de saberes ancestrais herdados, buscando transmitir a densidade cultural contida na tradição têxtil. “Para além dos têxteis, com os quais tem experimentado nos formatos bidimensional e instalativo, trabalha também com uma série de objetos sagrados, glifos e teares, que monta para realçar sua presença objectual ou os utiliza como parte importante de seus vídeos”, completa Tala.
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Abuelos (2017), escultura de Antonio Pichillá, e vista geral da Bienal da Guatemala com destaque para a instalação Viento (2020), do artista
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA; HUGO QUINTO / CORTESIA ALEXIA TALA
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O MANIFESTO DE NICHOLAS GALANIN SOBRE A TERRA INDÍGENA
“Entidades coloniais, a Constituição e o governo atual dos EUA referem-se coletivamente a pessoas indígenas do território continental do país como índios. As deturpações de Hollywood sobre os povos indígenas refletem e tentam jusVOL. 10 / N. 51
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tificar a política norte-americana. O termo índio é uma recusa em reconhecer a soberania e uma tentativa de apagar a diversidade de mais de 500 nações distintas que preexistiam à invasão do continente pelos europeus. Terras indígenas e comunidades indígenas permanecem únicas, resi-
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Architecture of Return, Escape (Metropolitan Museum of Art), obra de 2020 feita com pele de veado, sobre a qual Galanin desenha a rota de fuga para a retirada de artefatos indígenas roubados que se encontram no acervo do museu em Nova York
lientes, complexas e bonitas; apesar de mais de 500 anos de ocupação por violentos estados colonizadores. Never Forget (2021) recusa-se a legitimar a ocupação dos colonos e reformula uma palavra de redução genérica para apelar à ação coletiva. É um convite monumental aos proprietá-
rios de terras: buscar lideranças indígenas para o relacionamento com a terra, centralizar o conhecimento indígena na criação de práticas sustentáveis, contribuir com iniciativas reais de aluguel e transferir títulos de terras e direitos para nações e comunidades indígenas.” FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA
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REBECCA BELMORE CONSTRÓI MEGAFONE PARA MITIGAR A VIOLÊNCIA
Artista Anishinaabe e membro da Lac Seul First Nation, Rebecca Belmore utiliza o próprio corpo para retratar o sofrimento e a invisibilidade das comunidades indígenas no Canadá. Seus trabalhos têm como foco comunidades negligenciadas ou suprimidas, frequentemente tematizando a opressão colonialista, o meio ambiente e os direitos indígenas. Feridas abertas da história de conflitos entre nativos e colonizadores no Canadá são recorrentes em sua trajetória: dos eventos que ocorreram em Thunder Bay, Ontário, onde vários adolescentes das Primeiras Nações desapareceram e foram encontrados afogados no Rio McIntyre [O Corpo d’Água (2019), exposto na 16ª Bienal de Istanbul] ao genocídio de mulheres indígenas em Vancouver [Vigil (2002)]; passando pela Crise Oka, que começou em março de 1990, com a decisão do prefeito da vila franco-canadense de Oka de expandir um campo de golfe de 9 para 18 buracos, gerando protestos da comunidade Kanien’kehá:ka (Mohawk), cujos direitos à terra foram sequestrados desde 1700. As mulheres Mohawk formaram uma linha para proteger as árvores que cresciam em torno dos cemitérios de seus ancestrais. Esse escudo humano se transformou em um protesto de 78 dias, abafado pelo governo australiano. A resposta de Belmore foi construir um megafone monumental, que itinerou pelo país, no ano da “celebração” dos 500 anos da chegada de Colombo, para ser usado por diferentes povos indígenas. [Ayum-ee-aawach Oomama-mowan: Speaking to Their Mother (1991)].
Abaixo, Fringe (2007), instalado em outdoor no Quartier Éphemère, em Montreal; na página ao lado, Tower, Tarpaulin (2018), exposta na Art Gallery of Ontario, Toronto; e Ayum-ee-aawach Oomama-mowan: Speaking to Their Mother (1991), performance com escultura no Johnson Lake, Banff National Park, Canadá, em 2008
FOTOS: HENRI ROBIDEAU; GUY L’HEUREUX; MICHAEL BEYNON / CORTESIA DA ARTISTA
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No sentido horário, a partir da imagem acima, obras do coletivo Iltja Ntjarra / Many Hands Art Centre na 22 a Bienal de Sydney e foto de integrantes do grupo com suas criações; obra de Emily Karaka instalada na Art Gallery of New South Wales, em Sydney, e, no detalhe, a pintura Whakakaiwhare Kaitiaki at Ihumaatao (2020)
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EMILY KARAKA E ILTJA NTJARRA MANY HANDS ART CENTRE NA PINACOTECA
A artista neozelandesa de ascendência maori Emily Karaka é conhecida há 40 anos por suas pinturas suntuosas e coloridas que refletem seu envolvimento de longa data nas questões relacionadas ao movimento Māori Land Rights and Treaty Claims. Na 22ª edição da Bienal de Sydney, suas obras foram expostas na Art Gallery of New South Wales, em meio à tradicional pinacoteca oitocentista que caracteriza os museus nacionais. A série de trabalhos trata da luta política em andamento sobre uma disputa de terra em Ihumātao, onde manifestantes Māori contestaram um projeto de desenvolvimento habitacional em uma área sagrada e um sítio arqueológico, pedindo a devolução da terra. Junto de seu grupo Ahiwaru, Karaka participou das manifestações e retratou, nas pinturas, partes dessa história. No mesmo espaço expositivo, obras do coletivo Iltja Ntjarra / Many Hands Art Centre, dirigido por descendentes e parentes de Albert Namatjira, que mantêm forte a tradição da aquarela de Hermannsburg para as gerações futuras. Representando histórias do país, de deslocamentos e de lutas por habitação, 14 artistas do grupo criaram pinturas sobre sacolas, que também foram instaladas em outros pontos do evento.
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS E BIENAL DE SYDNEY
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DAS MARGENS, DOS
OS WARLPIRI DA AUSTRÁLIA CENTRAL E PATRICK WATERHOUSE AGENCIAM NOVAS REPRESENTAÇÕES
Os Warlpiri da Austrália Central possuem uma relação traumática com a fotografia. No fim do século 19, o cientista britânico Walter Baldwin Spencer (1860-1929) estabeleceu-se como professor de Biologia na Universidade de Melbourne e envolveu-se num ambicioso projeto de expedições pelo interior do país, patrocinadas pelo empresário australiano William Horn, para pesquisar os modos de vida VOL. 10 / N. 51
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dos povos aborígenes. Em suas viagens, conheceu Frank Gillen, com quem desenvolveu um método de trabalho que ficou conhecido como “pesquisa de campo” e que influenciou profundamente a nascente ciência antropológica e passou a ser adotado como modelo de estudo das culturas encontradas nas margens do império colonial. Aos 37 anos, Patrick Waterhouse começou a fotografar e colaborar com artistas Warlpiri, estabelecendo-se no centro de arte Warlukurlangu Artists, Território do Norte, perto de Alice FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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Fotografias da série Restricted Images, de Patrick Waterhouse com o Povo Warlpiri da Austrália Central
S TEMPOS E DA
Springs. “Eu queria criar uma situação em que as pessoas com quem estava trabalhando tivessem um encontro com a fotografia novamente e uma chance de mudar a dinâmica do poder”, afirmou o artista e atual editor da revista Colours, em entrevista ao British Journal of Photography. Foi em uma matéria para a Colours que Waterhouse viajou para a Austrália pela primeira vez, em 2011, e, conhecendo o uso hoje questionável da fotografia etnográfica praticada por Spencer, decidiu que queria oferecer às pessoas daquela
comunidade agência sobre suas próprias representações. “Baldwin Spencer e Gillen foram os pais fundadores da noção de trabalho de campo em antropologia, e seu uso da fotografia foi um aspecto fundamental de sua prática”, diz Waterhouse. Dessas inquietações nasceu o projeto colaborativo Restricted Images, em que Waterhouse devolve as fotografias que realizou dos aborígenes australianos e pede a eles que restrinjam e alterem as imagens por meio do processo de sua tradicional pintura pontilhista.
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FLORESTA:UMA INV A N I TA E K M A N J A X U C A Rio Iratapurú (2011), fotografia da série Amazônia, de Edu Simões VOL. 10 / N. 51
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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VENÇÃO CULTURAL COMO PAISAGENS CULTURAIS EDIFICADAS PELOS POVOS INDÍGENAS, AS FLORESTAS ALTERARAM A HISTÓRIA DO MUNDO ATLÂNTICO E DO CAPITALISMO GLOBAL. SEUS CRIADORES E AS DIFERENTES ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA CRIADAS POR ELES PARA IMPEDIR A DEVASTAÇÃO PERMANECEM COMO O GRANDE PONTO CEGO DO POVO BRASILEIRO
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Performance Ocre (2019), de Anita Ekman com Sandra Nanayna, realizada no Parque Nacional da Serra da Capivara; e Ocre Sambaqui (2005), de Anita Ekman, em fotografias de Maria Clara Diniz; na página ao lado, performance do Projeto Ocre (2019), de Ekman, em parceria com a atriz indígena Sandra Nanayna Tariano, também no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí
VISTA ASSIM DO ALTO, MAIS PARECE UM CÉU NO CHÃO. SEI LÁ, EM MANGUEIRA POESIA FEITO O MAR SE ALASTROU, E A BELEZA DO LUGAR, PARA SE ENTENDER, TEM QUE SE ACHAR QUE A VIDA NÃO É SÓ ISSO QUE SE VÊ, É UM POUCO MAIS.
Este texto começa a ser escrito no dia 27 de maio (data definida por decreto federal, de 21 de setembro de 1999, como o Dia da Mata Atlântica). Dia em que perdemos mais um dos Griôs da cultura popular brasileira: o mangueirense Nelson Sargento, vítima de Covid-19 aos 96 anos. Foi na voz de Nelson Sargento que escutei pela primeira vez os versos deste samba (Sei lá Mangueira, letra de Hermínio Belo de Carvalho e música de Paulinho da Viola), uma das mais belas homenagens a este morro carioca. Embora na floresta de símbolos que compõem a identidade brasileira o samba carioca seja uma espécie de destaque, poucos brasileiros reconhecem a profundidade real de suas raízes, onde verdadeiramente elas tocam: “As primeiras escolas de samba foram fundadas dentro de roça, dentro de terreiro... Eu não chamo de religião, eu chamo de Ancestralidade, isso já vinha lá da África. A ancestralidade, a sabedoria ancestral, a solidariedade, a cidadania e resistência que são as bases da herança africana, ela tem esse poder de reunir, de dar força e é por isso que o samba nasce lá dentro”, ensina o baluarte do samba Rubem Confete, em entrevista com Zé Luiz do Império Serrano à autora. “Com que finalidade as primeiras escolas de samba foram criadas? Foram criadas no sentido de disputar um espaço dentro da cidade do Rio de Janeiro que era negado aos negros”, complementa o sambista, compositor e escritor Nei Lopes, um dos maiores estudiosos brasileiros da história do continente africano. VOL. 10 / N. 51
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Antes mesmo da fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, em 1928, por Carlos Cachaça, Cartola e outros sambistas, em 1910, o morro já descia para desfilar na Praça XI com dois cordões carnavalescos: o Guerreiros da Montanha e o Trunfos da Mangueira, que saíam com uma comissão de frente de índios que apresentavam uma “coreografia indígena”, tendo como estandarte um pau com quase 2 metros de altura. O que poderiam nos ensinar os Guerreiros da Montanha sobre o imaginário de nossas florestas? Embora as relações estabelecidas entre os povos indígenas, africanos e seus descendentes tenham constituído o verdadeiro “trunfo” que tornou possíveis dinâmicas cruciais de resistência em relação ao avanço das fronteiras coloniais em nossas florestas (vale citar como exemplo o caso emblemático do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, onde pesquisas arqueológicas do Dr. Scott Joseph Allen concluíram: “Sabemos agora que o sítio é de fato um assentamento indígena, repleto de evidências de ocas e enterramento em urnas”), as relações afro-indígenas têm sido pouco debatidas no contexto do Mundo Atlântico. Os indígenas e as diferentes estratégias de resistência criadas por eles para impedir a devastação de nossas florestas (o que em última análise também edificou e alterou a história do Mundo Atlântico e, consequentemente, a história do capitalismo global) permanecem como o grande ponto cego do povo brasileiro. FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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POR UMA HISTÓRIA DAS FLORESTAS
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Por essa razão está justamente colocado para a arte contemporânea brasileira esse desafio de não apenas construir outro imaginário acerca de nossas florestas, mas o de ampliar o horizonte do Mundo Atlântico para que dentro dele também caiba o protagonismo histórico dos povos indígenas, assim como o das mulheres (indígenas, negras, mestiças, cis ou trans). Traz esperança pensar que as obras produzidas pelos curadores-curandeiros-artistas indígenas impulsionarão uma possível abertura para que novas linhas de investigação dentro do campo da História da Arte e da própria História Ambiental possam surgir. E que, no futuro próximo (estamos livres para sonhar), a História das Florestas possa ter se consolidado como um campo de produção de conhecimento e de trocas que de fato reúna diferentes epistemologias, redimensionando, inclusive, o próprio conceito de Mundo Atlântico, expandindo-o para que possa abarcar outro marco temporal fundacional: o Tempo de Origem. De acordo com Denilson Baniwa, na obra Tudo É Gente(2020): “Dizem meus avós que, antigamente, Antes de mim, você ou qualquer outro homo sapiens dominar o planeta Tudo era gente: floresta, humanos e não humanos eram gente. Havia a gente-onça, gente-papagaio, gente-árvore, gente-pedra; e a gente-gente Todos, inclusive, falávamos a mesma língua. Nos entendíamos. O tempo também era outro, não havia relógios nem despertadores O trabalho não era uma função acumuladora, mas de coletividade Mas isto foi de um tempo que nem meus avós, nem nós vivemos É do tempo antes do tempo Hoje desconhecemos a língua dos pássaros e plantas Das rochas, riachos e montanhas nem lembramos mais Não nos entendemos nem com nossos vizinhos e moradores do mesmo planeta Sei bem que aquele tempo não podemos ter de volta Mas podemos, hoje, aprender a comunicação perdida Quando começamos a pensar que existe um meio ambiente Diferente de nós, humanos Nestes tempos, enquanto não existe uma máquina do tempo Que nos jogue de volta aos tempos do mundo-ancestral Podemos voltar a entender que somos parte do planeta e não dominantes dele VOL. 10 / N. 51
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A arte, indígena ou não, pode servir como um mecanismo metafísico de tradução Traduções das vozes da floresta, das pedras, da água e de todos os seres vivos A arte indígena pode ser aliada no entendimento de mundos, Pois ela mesma transita entre o ancestral e a plasticidade do mundo moderno Artistas indígenas podem ser arte-xamãs que compartilham Conhecimentos trazidos de todas as vozes FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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Natureza-Morta (2016/2019), de Denilson Baniwa
Inclusive daqueles que nem lembramos mais que existem A arte é o que nos une É a conexão entre o mundo ancestral e o mundo que queremos a partir de agora”. Voltemos ao Morro da Mangueira. Introduzidas pelos colonizadores portugueses primeiramente na Costa Atlântica do continente africano, as
mangueiras só fincaram raízes em nosso solo no século 16. Nos séculos anteriores, no Morro da Mangueira, assim como em toda a costa litoral do Rio Grande do Norte ao do Sul, o que prevalecia na paisagem era uma densa floresta tropical chuvosa, que se caracteriza por ser extremamente florida, com abundância de epífitas, como orquídeas e bromélias, colorindo o exuberante cenário, tantas vezes enaltecido pelo Hino da Velha Guarda da Mangueira: Mangueira teu cenário é uma beleza, que a natureza criou.
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RECENTES ESTUDOS SUGEREM QUE 60% DA AMAZÔNIA É ANTROPOGÊNICA, O QUE SIGNIFICA DIZER QUE A MAIOR FLORESTA TROPICAL DO PLANETA FOI PLANTADA, CULTIVADA E INTENSAMENTE MANEJADA POR MÃOS E MENTES INDÍGENAS VOL. 10 / N. 51
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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Apuí Mamirauá (2011), da série Amazonas, de Edu Simões
A FLORESTA COMO MONUMENTO
A floresta e seus povos são um tema recorrente nos versos de muitos sambas-exaltação, tal como no célebre samba-enredo de Silas de Oliveira para o Império Serrano, em 1965: Nossas verdes matas,/ Cachoeiras e cascatas de colorido sutil,/ E este lindo céu azul de anil,/ Emolduram, aquarelam meu Brasil. Mas o que provavelmente os mestres sambistas não sabiam, assim como até hoje a grande maioria dos brasileiros, que ao olhar para a floresta pensa que ela é uma “mata virgem”, é que esta paisagem natural é também uma paisagem cultural, criada pelos povos indígenas: “Às vezes, os brasileiros acham que os seus povos indígenas não têm monumentos, não têm criações culturais tão impressionantes como as que existem no México, no Peru e em outros países da América Latina, mas essa é uma visão equivocada. Se você começar a ler a arqueologia e a antropologia da Amazônia, o que é muito interessante de perceber é que a mesma floresta que existe até hoje é uma das grandes criações dos povos indígenas brasileiros. Ela foi modificada pelos homens e pelas mulheres que moravam e ainda moram lá até hoje e que têm acrescentado à diversidade biológica, melhorado as terras e as condições para a agricultura, para a coleta e para a caça. Desse jeito, você pode pensar que a própria floresta é uma grande criação cultural e é o maior monumento dos povos indígenas brasileiros. Um monumento cultural que é ao mesmo tempo um monumento ambiental”, escreve o historiador mexicano Dr. Federico Navarrete Linares (Unam) no catálogo da exposição Por Ti América − Arte Pré-Colombiana (2005-2006). O Brasil é o país com a maior riqueza de plantas do
mundo (46.097 espécies, 43% endêmicas, segundo pesquisa da Fapesp). Essa imensa biodiversidade está localizada principalmente nas florestas que compõem o território brasileiro e que são resultado de um manejo ambiental dos povos indígenas. Recentes estudos sugerem que 60% da Amazônia é antropogênica, o que significa dizer que a maior floresta tropical do planeta foi plantada, cultivada e intensamente manejada por mãos e mentes indígenas. Os povos que habitavam a Amazônia entre 9.100 e 8 mil anos Antes do Presente já praticavam uma impressionante coleta de plantas. De acordo com o pesquisador Francisco Javier Aceituno Bocanegra, foram encontrados no sítio arqueológico de Peña Roja (Colômbia) perto de 26.708 restos de sementes, sendo 68% de palmeiras e 32% de frutas silvestres. Marco Pereira Magalhães, no livro Amazônia Antrogênica, editado pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, demonstra que na Amazônia brasileira, na região de Monte Alegre (Pará), onde foram descobertas as evidências mais antigas de presença humana (11.200 anos AP) dentro dessa floresta, comprovou-se que há pelo menos 9 mil anos o manejo de plantas (em que se destacam as palmeiras) já era presente no modo de vida dos habitantes na região. Mas foi por volta dos 8 mil aos 6 mil anos antes do Presente que o cultivo sistemático de plantas se espalhou pelo imenso território da Amazônia. Maracujá, ingá, pequi e diversos outros frutos das palmeiras, assim como raízes, como a mandioca, já faziam parte da cultura alimentar dos ancestrais daqueles que em 1492 Cristóvão Colombo convencionou chamar de índios (por pensar que havia chegado na terra das mangueiras).
SAMBAQUIS
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São, portanto, esses primeiros grupos humanos nômades na Amazônia os responsáveis pela criação da Cultura Tropical e pelas profundas modificações na paisagem deste lado do Atlântico. Foram esses povos que, além de modificarem a paisagem pelo manejo de espécies florestais, também construíram monumentos feitos de conchas denominados sambaquis em tupi (tamba significa conchas, e ki, amontoado). Diferentes povos, ao longo de pelo menos 7 mil anos, construíram numerosos sambaquis na foz e nos estuários dos grandes rios e ao longo da Costa Atlântica (que chegavam a mais de 30 metros de altura). Dentro desses sambaquis são encontrados frequentemente enterramentos humanos, cujos ossos estavam pintados com ocre. Nos sambaquis da Amazônia, além de sementes que comprovam o intenso manejo dos povos indígenas nessas áreas, foram descobertos também fragmentos de cerâmicas, considerados os mais antigos encontrados até o presente nas Américas (datados de 7.600 anos Antes do Presente). Mil anos depois, no Sambaqui de Bacanga, em São Luís do Maranhão, encontramos evidências de carimbos para pintura corporal feitos em cerâmica. Recuperei essa técnica e criei meus próprios carimbos para realizar o Projeto Ocre, de performances rituais colaborativas nos sítios arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado no Piauí (onde foram encontradas as evidências mais antigas de presença humana do continente, de 48 mil anos AP). Na região do Parque Nacional da Serra da Capivara está localizada a Caatinga (em tupi: mata branca), a única floresta genuinamente brasileira, pois é essencialmente formada por espécies de fauna e flora que não existem em nenhuma outra parte do mundo. As performances rituais do Projeto Ocre, realizadas com a atriz indígena Sandra Nanayna Tariano, discutem por meio da relação entre a pintura corporal e a pintura rupestre o protagonismo das mulheres na arte e na história de nosso continente. E a estreita relação que existe para os povos indígenas entre o corpo da terra e o corpo das mulheres (cis). Tenho estabelecido um profundo diálogo sobre esse tema com Sandra Benites (Guarani Nhandeva, antropóloga doutoranda no Museu Nacional e a primeira curadora indígena do Masp), produzindo obras dedicadas a discutir a história das mulheres no Mundo Atlântico: tais como Tupi Valongo – Cemitério dos Pretos Novos e Velhos Índios, Ventres da Mata Atlântica e Tupi Valongo - Kunhangue rekó, este recentemente apresentado na Live C-MAP Entangled Terrains no MoMA. “A pintura corporal é uma arte profundamente conectada ao domínio das mulheres, assim como a cerâmica, em VOL. 10 / N. 51
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que esse vínculo do corpo-terra é muito presente”, diz um trecho do texto “Tupi or Not Tupi. That is the Question? Beyond the Mr. Agassi’s Photographic Saloon: The Rainforest and The Role of Indigeneous and Mestiza Women”, que escrevemos juntas para o Peabody Museum, de Harvard, na ocasião da live Race, Representation, and Agassiz’s Brazilian Fantasy. “A pintura corporal é, na realidade, uma forma de informar, conectar e transcender com o próprio corpo estas outras dimensões do que em guarani é chamado de Ore ypyrã (Tempo de Origem), mas também nos transporta à própria origem dos seres humanos como um todo. Essa ideia de olhar para o corpo e ver através dele o corpo da terra (e vice-versa) é uma grande questão a ser aberta para os não indígenas. De certa forma, o que está pintado no corpo ou no corpo-terra guarda um vínculo profundo e ritual. A própria ideia da existência dessa relação corpoterra através da pintura é muito presente entre os distintos povos indígenas, mas não se limita a eles. Pois a utilização do ocre para pintura corporal e rupestre é uma prática humana de mais de 70 mil anos, que foi realizada em todos os continentes, com exceção da Antártida. Sandra Nanayna, atríz indígena (tukano-tariano) do Rio Negro, no Amazonas, que participou do Projeto Ocre, disFOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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Acima, frame do filme Xapiri (2012), de Gisela Motta e Leandro Lima, em parceria com Laymert Garcia dos Santos, Stella Senra e Bruce Albert; à direita, Porekrô Kayapó, Série Vermelha (2017), de Edu Simões
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ATRAVÉS DO QUE A ARTE É CAPAZ DE TRANSCENDER E DE INTEGRAR EM RELAÇÃO AO CORPO SAGRADO E BELO DA TERRA, EXISTE UMA FORMA DE REIMAGINARMOS OUTRA POSSIBILIDADE DE DEIXAR AS NOSSAS MARCAS NO CORPO DE NHANDECY ETÉ
Still do filme Xapiri (2012)
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se: “Ser como os gente-pedra é o grande sonho”. Ficar na Terra através do que a arte é capaz de transcender e também de integrar em relação ao corpo sagrado e belo da Terra, essa devia ser ao menos uma forma possível de reimaginarmos outra possibilidade de deixar as nossas marcas na Terra, no corpo de Nhandecy eté. Uma das maiores feridas na história do Brasil é a escravidão: indígena e africana. Para de fato compreendermos a história de nossas florestas, é preciso também compreender o papel do Brasil na história da diáspora africana, aliado ao reconhecimento da escravidão indígena. Freg J. Stokes, pesquisador australiano da Universidade de Melbourne, com quem tenho colaborado, junto a outros pesquisadores Guarani, para a construção de um Atlas da História da Mata Atlântica e da resistência Guarani, concluiu que, de 1520 a 1680, entre 90 mil e 170 mil Guarani haviam sido escravizados pelos portugueses, mas foi a resistência construída pelos Guarani que impediu rotas comerciais de europeus, como a da prata no interior do continente, retardando o desmatamento na Floresta Atlântica do Alto Paraná.
Foi dentro dessa mesma floresta, no ventre da Ka’aguy Porã (em Guarani, literalmente, a floresta bela e sagrada) que recobre grande parte da Costa Atlântica brasileira milenarmente habitada pelos indígenas do tronco linguístico Tupi (entre eles os Guarani), onde desembarcou a maior parte dos 12 milhões de africanos escravizados e trazidos para as Américas. Um total de 4,8 milhões de pessoas, mais do que a soma geral de escravizados africanos que chegaram nos EUA e no Caribe juntos. O Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, foi o maior porto de escravos do Planeta Terra, onde chegaram, aproximadamente, 2 milhões de seres humanos. Os africanos escravizados que não aguentavam a travessia ou que morriam no Mercado do Valongo eram jogados à flor da terra perto dali, no Cemitério dos Pretos Novos. Esse local, antes de se tornar o maior cemitério de negros fora do continente africano, era um sambaqui. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888. E foi justamente após a abolição, ali nas proximidades do Valongo, que o samba trazido do Recôncavo Baiano por mulheres negras, como Tia Ciata de Oxum, floresceu na cidade do Rio de Janeiro... E essa região, milenarmente ocupada pelos indígenas Tupinambás.... passou então a ser conhecida como “Pequena África”.... berço do candomblé e do samba carioca.
“A arte é livre e aberta À imagem do ser criador Samba é a verdade do povo Ninguém vai deturpar seu valor Canto de novo Canto com os pés no chão Com o coração, canta meu povo” Candeia (Nova Escola) “Precisamos seguir, cantar e nos pintar com o grafismo do comandá (feijão). O comandá tá no grafismo (desenho de padrão em zigue-zague) da cerâmica e do corpo, ele abre caminho, ele é o caminho na verdade. Ele é uma conexão que não falha, ele é uma espécie que vai embora crescendo, crescendo. Os grafismos trazem cura e são os caminhos que a gente percorre. O grafismo que é de comandá, ele é do caminho ao mesmo tempo que ele é a nossa intensidade da resistência, porque o caminho é longo, mas, se você consegue andar nele, você chega em um nível de espiritualidade e de sabedoria mais profundo”, afirma o pajé Awaete Timei Assurini, no projeto Agenda Awaete − Troca de Saberes e Práticas Assurini do Xingu. Que todas as sementes da resistência deem seus frutos. Aguyjevete.
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P R OJ E T O
#FLORESTAPROTESTA LENORA DE BARROS CRIA CARTAZ PARA A TERCEIRA TEMPORADA DE NOSSA AÇÃO EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE
LENORA DE BARROS PROTESTA. MESMO QUANDO PREGA AS LETRAS DA PALAVRA SILÊNCIO SOBRE UMA PLACA DE MADEIRA ELA SE RECUSA A SILENCIAR. Na performan-
ce Pregação (2016), a negação manifesta-se a cada martelada dada pelos oito braços que compõem a ação coletiva. Convidada a participar do projeto #florestaprotesta, a artista concebe uma obra que reafirma que o protesto está no gesto. A obra pode ser lida na chave de algumas fotoperformances anteriores, em que olhos, boca, nariz e orelhas estão tapados. Ou, até mesmo, em continuidade à série Máscara de Mão (2017), composta de fotografias e objetos de cerâmica esmaltada, reminiscentes da ação. A boca aberta com a língua de fora é um statement em Lenora de Barros. Sua obra fala. O cartaz fala de sufocamento, de aprisionamento, de cegueira e de mudez. E fala alto. Lenora protesta pela floresta usando uma máscara de mão, que é tanto luva de pelica quanto soco-inglês. Nessa ação simbiótica, a folhagem é abraçada pelo gesto e atravessada pela palavra. A floresta grita.
#florestaprotesta, 2021, Lenora de Barros / Foto: Gustavo Machado / Design gráfico: Renata Zincone
SELECT.ART.BR
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P R OJ E T O
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#FLORESTAPROTESTA EM AÇÃO DE ARTE E POLÍTICA, SELECT CONVIDA ARTISTAS A PRODUZIR PÔSTERES EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE E ALINHA-SE AO CAMPO DA GRÁFICA DE PROTESTO, NA LUTA CONTRA O OBSCURANTISMO E OS DISCURSOS DE ÓDIO QUE NUBLAM A REALIDADE BRASILEIRA
O GRUPO APARELHAMENTO ELABOROU UM PÔSTER A PARTIR DE UMA OBRA DO ARTISTA FRANCÊS JEAN-BAPTISTE DEBRET, QUE MOSTRA ÍNDIOS GUARANIS SENDO CAPTURADOS. O grupo traduziu e replicou o título original em uma alusão aos
acontecimentos que se repetem no Brasil desde o período colonial, “como a ânsia extrativista e as formas de exploração do trabalho entre classes, nem sempre distintas”, afirmam. A imagem é de domínio público e faz parte da Coleção Brasiliana da Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Em marcha decrescente, segue o povo supostamente civilizado em sua saga contra a floresta. A imagem feita por Jean-Baptiste Debret em 1834 infelizmente não é um documento anedótico de tempos passados”. Assim os artistas do grupo Aparelhamento definem o verbete da gravura de Debret, que retratou a sociedade brasileira no fim do período colonial, entre 1816 e 1831. O Aparelhamento é uma rede de mais de cem artistas, responsável por ações que “se configuram como críticas contundentes à lógica de retrocesso cultural e social percebida no Brasil desde 2016”, como definem os artistas. Entre elas, a Galeria Reocupa, instaurada dentro da Ocupação 9 de Julho, em 2018, e a Rádio Floresta (2020), que permitiu à comunidade ribeirinha de Careiro Castanho, no Amazonas, instalar e gerir sua própria rádio.
Sem Título, 2021, Aparelhamento
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
PORTFÓLIO
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TEXTURAS DA FLORESTA EM
P I NT U R AS
ACR I ANO
E
H ÉLI O
RO D R Í G U EZ
DESENHOS, MELO
E
R EGISTRA M
O
O
SERINGUEIRO
COLOMB IA N O COMUNIDA DES
A B EL E
FO R M AS DE VI DA EM PROCESSOS DE EXTINÇÃO
LEANDRO MUNIZ
A REPRESENTAÇÃO DA FLORESTA AMAZÔNICA OCUPA TODO O PLANO DO PAPEL OU DA TELA NAS OBRAS DE HÉLIO MELO (VILA ANTIMARI-AC OU BOCA DO ACREAM, 1926 – GOIÂNIA-GO, 2001) E DE ABEL RODRÍGUEZ (CAHUINARÍ, COLÔMBIA, 1944). AMBAS AS OBRAS DESCREVEM A FAUNA E A FLORA DA REGIÃO SOB O IMPACTO DE PERÍODOS DE TRANSFORMAÇÃO.
Hélio Melo, nascido num seringal, em família de seringueiros, viveu a invasão da agropecuária no Acre, bem como a formação de movimentos sociais em defesa do meio ambiente no estado. Abel Rodríguez, da etnia Nonuya-Muinane, vivia às margens do Rio Cahuinarí, na Colômbia, e seu nome indígena é Mogaji Guihu. Em reação aos conflitos armados e o extrativismo predatório na região natal, mudou-se para a periferia de Bogotá, nos anos 1990, onde, em contato com o biólogo Carlos Rodríguez, da ONG holandesa Tropenbos, foi incentivado a desenhar para registrar suas memórias. Melo e Rodríguez desenvolveram suas linguagens a partir da experiência direta com a floresta. Os olhares imersos representados nesses trabalhos falam de relação com o espaço que não é de dominação e distância – como na tradição ocidental da representação da paisagem –, mas de interação e simbiose com o meio ambiente. Na poética do primeiro, há a descrição da ação humana na floresta; no outro, a representação de ecossistemas e seus ciclos. Ambos registram formas de vida em processos de extinção, em um empenho de organizar a memória de seus contextos e comunidades. À dir., acima, pintura de Abel Rodríguez (2020); e Sem Título (1983), de Hélio Melo VOL. 10 / N. 51
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FOTOS: TALITA OLIVEIRA, FUNDAÇÃO ELIAS MANSOUR E ROB HARRIS, BALTIC CENTRE FOR CONTEMPORARY ART, GATESHEAD / USINA DE ARTE DO ACRE
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FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
Entre o fim do século 19 e início do 20, a necessidade de borracha para os produtos advindos da primeira Revolução Industrial fez da extração de látex a atividade central da economia amazônica. No período entre guerras, os seringais receberam trabalhadores do Nordeste e do Sul do Brasil, em uma política migratória incentivada pelo governo, mas em condições de trabalho adversas. Além de enfrentar longas jornadas dentro da floresta, o trabalhador era submetido a um regime de endividamento contínuo, obrigado a comprar mantimentos básicos, a preços impeditivos, das mãos de seu empregador. Mas, desde os anos 1980 – a partir da terceira geração de pessoas nascidas e criadas nos seringais –, eles começaram a se organizar politicamente, em defesa de formas sustentáveis de exploração da floresta, tornando-se importantes agentes na luta contra o desmatamento predatório. Hélio Melo vivenciou essa transformação em sua comunidade, registrando-a em pinturas, músicas e livros. Melo tocava violão e violino e começou a pintar por volta de 1975. Há notícias de mais de mil obras produzidas durante sua vida em Rio Branco (AC), após os anos 1980, mas a maior parte da obra feita na floresta se perdeu. Seus livros são cartilhas sobre os modos de vida dos seringueiros e da história de materiais, como o caucho, um tipo de borracha extraída das árvores. Na pintura, há uma mistura de desenho de observação, elementos imaginários e alegóricos. Algumas simbologias são recorrentes, como a contraposição entre plantas frondosas e outras secas ou pernas de bois e vacas que crescem em troncos de árvores. Burros representam os donos de terra, ironizando as hierarquias sociais, e os caules das árvores se desenvolvem em mapas que marcam o percurso do trabalhador pela floresta. Esta aparece não só como tema, mas na própria materialidade da obra, que é feita de cartolina ou papel cartão, nanquim e pigmentos naturais aglutinados com látex.
ATMOSFERA DOS SERINGAIS
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Na pág. ao lado e abaixo, still do filme e vista da instalação It Hasn’t Happened to Us Yet. Safe Haven (2016), criado pelo Chto Delat em cooperação com o programa Artists at Risk
Na pág. à esq., Utensílios do Seringueiro (1983), de Hélio Melo; acima, pintura de Abel Rodríguez (2020)
A precariedade de materiais da pintura reflete as condições de vida da comunidade, mas também imprime um ponto de vista: há ironia e humor, mas os tons rebaixados – resultado da acidez do papel e da volatilidade dos pigmentos naturais – expressam certa melancolia e descrevem a atmosfera densa e vaporosa da floresta tropical. Em artigo a quatro mãos, o pesquisador Rossini de Araujo Castro e o artista Norberto Stori identificam três fases na obra de Melo: sociologia do trabalho, crítica social e preocupação com o meio ambiente. Outro aspecto destacado pelos autores é a mistura de diferentes perspectivas, que refletem as diversas espacialidades geradas pela interação entre natureza e cultura. Rossini é autor do livro Ambiente Amazônico: A Arte Vivencial do Artista Hélio Melo e alimenta um site com entrevistas, seminários e imagens. A curadora Lisette Lagnado conheceu a obra de Melo durante uma das viagens do Rumos Itaú Cultural, quando percebeu a presença dessas pinturas em diversas instituições públicas no Acre. Apresentou sua obra na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, em cujo catálogo o curador colombiano José Roca explica a importância da borracha entre o fim do século 19 e a primeira metade do 20, não apenas na Amazônia, mas em uma economia global que envolve novas formas de imperialismo. A obra de Hélio Melo está nas coleções do Museu de Arte do Rio, do Museu de Arte de São Paulo, mas predomina em coleções particulares e instituições públicas do Acre. Melo participou do Arte/Cidade III, foi entrevistado para o guia da 27ª Bienal, foi tema de minidocumentário dirigido por Sílvio Margarido e, atualmente, a curadora Kiki Mazzucchelli trabalha em projeto de catalogação e pesquisa de sua obra.
FOTOS: TALITA OLIVEIRA, FUNDAÇÃO ELIAS MANSOUR E ROB HARRIS, BALTIC CENTRE FOR CONTEMPORARY ART, GATESHEAD
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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA E COLEÇÃO PARTICULAR
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Território de Mito (2017), de Abel Rodríguez
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Na pág. à dir, acima, Árbol de la Vida y la Abundancia (2020), de Abel Rodríguez; e O Serrador (1983), de Hélio Melo
Em visita guiada à exposição de Abel Rodríguez no Baltic Centre for Contemporary Art, na Inglaterra, o educador Kelwin Nogueira menciona que o artista não vê sua produção exatamente como arte, mas um “trabalho do conhecimento”. Segundo texto de apresentação da 34ª Bienal de São Paulo, da qual Rodríguez participará entre 4 setembro e 5 de dezembro deste ano, ele foi “treinado desde a infância para ser um ‘nomeador de plantas’, isto é, um depositário do conhecimento da comunidade sobre as diversas espécies botânicas da floresta, seus usos práticos e sua importância ritual”. Sua educação xamânica com um tio que era sabedor (uma espécie de xamã) foi interrompida quando começou a frequentar a escola. Rodríguez também trabalhou como seringueiro, com agricultura familiar, além de guia na floresta para os biólogos da Tropenbos, que o estimularam a desenhar. Em seu desenho, códigos da análise botânica são torcidos e incorporam as funções simbólicas das plantas, com anotações em espanhol e Nanuya. A alternância entre cheios e vazios descreve a luz iridescente entre as copas das árvores; e a heterogeneidade de procedimentos gráficos demonstra a variedade das espécies vegetais, além dos diversos tons de verde que dominam a composição. A repetição dos mesmos pontos vista em diferentes desenhos também é um dado importante, pois marca as diferenças temporais, as cheias e as vazantes das marés ou as mudanças de estações. No minidocumentário Abel (2014), dirigido por Fernando Arias, Abel Rodríguez comenta que tem usado seus conhecimentos e aprendizados para ajudar tanto brancos quanto indígenas, sugerindo o uso estratégico, ainda que não programado, das técnicas e instituições ocidentais para a preservação de sua memória e tradições. Mas, em entrevista para a Red Prensa Verde, afirma que seus desenhos são apenas imagens sem valor algum. A beleza desses trabalhos, portanto, guarda uma tensão. As obras parecem sinalizar os impasses epistemológicos enfrentados atualmente pelos indígenas: marcam a necessidade de utilizar novas formas de transmissão de seus conhecimentos, que não as tradições orais, mas também mostram novas sínteses culturais surgidas desse processo. Rodríguez já participou de exposições de grande porte, como a Documenta de Kassel 14 e as Bienais de Toronto, 2019, e Santa Fé, 2016. Também está escalado para a 23ª Bienal de Sydney, em 2022, com curadoria de José Roca, que é um de seus principais interlocutores no campo da arte. Se escutar os povos originários é uma alternativa para imaginar outras formas de viver em um momento de colapso, a visibilidade que um artista como Abel Rodríguez alcança é algo a analizar. Quais as motivações das instituições ao incorporar essa produção? Que riscos corremos ao ler esses desenhos usando critérios ocidentais e quais contradições o meio artístico enfrenta ao se propor a discutir ecologia?
NOMEADOR DE PLANTAS
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA E FUNDAÇÃO BIENAL/ EDUARDO ORTEGA, MASP
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The Crying Beasts (1993), de Hélio Melo
FOTOS: CORTESIA COLEÇÃO PARTICULAR
PERFIL
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PROFETA D AYA VOL. 10 / N. 51
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COMO MESTRE IRINEU CRIOU UMA COMUNIDADE E UMA RELIGIÃO BRASILEIRA ORIGINAL A PARTIR DE COSMOGONIA AFRO-INDÍGENA TEXTO RONALDO BRESSANE F O T O S M Á R C I O VA S C O N C E L O S
DA AHUASCA
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Nesta e nas próximas páginas, imagens do ensaio fotográfico Ayahuasca (2013-2014), de Márcio Vasconcelos, realizado durante o Festival Ecumênico Estrela Brilhante, em São Luis (MA)
“QUANDO MESTRE IRINEU CHEGOU LÁ NA PRAÇA DE SÃO LUÍS, TAVA AQUELA MULTIDÃO DE GENTE SE INSCREVENDO PARA VIR PARA O ACRE. DISSERAM QUE NO ACRE SE GANHAVA DINHEIRO. ELE SE INTERESSOU E VEIO. CHEGOU EM MANAUS, FOI SORTEADO PRA CORTAR SERINGA, QUE ELE ACHAVA BONITO. CHEGOU EM BOCA DO ACRE, AMAZONAS, CONTRATARAM ELE PARA A COMISSÃO DE LIMITES, AÍ ELE SUBIU PELO RIO PURUS PARA TIRAR O LIMITE DO ACRE COM O PERU. FOI SUBINDO ATÉ A SERRA DO MOA, JURUÁ, DE LÁ ELE CORTOU PARA O PERU, ONDE TOMOU AOASCA PELA PRIMEIRA VEZ COM OS INCAS. DE LÁ, JÁ CORTOU PARA O RUMO DE ASSIS BRASIL, VEIO DESCENDO ATÉ CHEGAR EM BRASILEIA. AÍ FOI QUE ELE COMEÇOU A TOMAR AOASCA NOVAMENTE.”
Parece muito singelo o depoimento de Paulo Serra, filho adotivo de Raimundo Irineu Serra. Mas é cheio de significados. Este pequeno parágrafo condensa uma fabulosa viagem iniciática que originou a mais sincrética das grandes religiões brasileiras. Irineu era um negro de 2 metros de altura, musculoso, carismático, analfabeto, filho de escravos libertos, dono de grande sorriso e silêncio intimidador. Atrás de trabalho na lavoura seringueira, viajou 4 mil quilômetros para, afinal, descobrir com xamãs peruanos a ayahuasca – a substância enteógena que anos depois ele rebatizaria de daime. Os antropólogos Edward MacRae e Eduardo Moreira, autores de Eu Venho de Longe – Raimundo Irineu Serra e Seus Companheiros (EdUfba, 2011), mais alentada biografia do líder religioso, indicam 1912 como o ano em que o maranhense nascido em 1890 lançou raízes no Acre. No extremo ocidente brasileiro, mais exatamente em Alto Santo, começou a contar sua peculiar VOL. 10 / N. 51
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narrativa ayahuasqueira. Criou práticas, vestimentas, cânticos, textos e toda uma cosmogonia. Fundiu artes, técnicas e crenças de matrizes africanas, indígenas e europeias em um templo original. Uma religião que se universaliza pelo mundo de modo silencioso, seguro e sereno – características típicas de Mestre Irineu, ou Juramidam, seu nome no plano astral. Depois de trabalhar no Exército, na demarcação de fronteiras do Acre com a Bolívia e o Peru, Irineu encontrou dois conterrâneos em Xapuri e começou a
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trabalhar para eles como regatão, vendedor de mercadorias a seringueiros. Esses amigos maranhenses, os irmãos Costa, conheciam caboclos que viviam no interior da floresta e estavam em contato com indígenas peruanos. Era corrente a ideia entre os populares de que quem tomasse sua ayahuasca veria “demônios” – generalização cristã para a visão de entidades da floresta. “Pelejei com Deus muitas vezes, vou tomar essa aoasca; não arrumei nada com Deus, vou lutar com o diabo, ver o que é que o diabo vai me dar”, teria dito Irineu.
Numa quarta-feira, tomou, sentou-se, e aí começou o “afluído” (termo criado por Irineu para substituir o regular “borracheira”, sinônimo de embriaguez). Começou a chamar pelo diabo. Cada Cão que chamava era uma cruz que aparecia. Para mil e seiscentos diabos, surgiu um cemitério. Ele disse: “Eu quero o maioral, o chefe dos diabos”. Então viu uma cruz maior que todas. Aí ele pôde compreender que não era “coisa do diabo”.
A INICIAÇÃO DE IRINEU
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Existem muitos relatos que corroboram o mito da fundação do Santo Daime, ou daimismo. Havia entre os populares amazônidas um temor em relação às religiões vegetalistas, cujas práticas remontam a milênios. A imagem da cruz teria aparecido para Irineu em confronto com a visão diabólica. Mas há também uma imagem ainda mais antiga que a do diabo: a serpente – visão comum nas mirações dos usuários mais antigos da ayahuasca. Irineu teria aprendido com os irmãos Costa como juntar o cipó de mariri com a folha da chacrona e cozinhá-los juntos para resultar no chá da ayahuasca. E foi bebê-la sozinho. Esta segunda visão é crucial. “Irineu viu a lua cheia”, relataram. “Dentro da lua cheia representou-se a lua nova e no centro uma princesa. Ela perguntou a ele: ‘O que estais vendo?’ Ele disse: ‘Tô vendo uma princesa que se o mundo todo visse parava’. E começou a ver muita coisa. Ela perguntou pra ele: ‘Tu tem coragem de dizer que essa bebida é o diabo?’ ‘Não.’ ‘Tem coragem de dizer que essa bebida é uma cobra?’ ‘Não.’ ‘Acredita que isso aí que tu tá vendo nunca no mundo ninguém viu? Agora, me diz: quem você acha que eu sou?’ Diante daquela luz, ele disse: ‘Vós sois a Deusa Universal!’ ‘Muito bem. Agora, você vai se submeter a uma dieta. Para poder receber o que eu tenho para te dar...’” Naquele momento, sua guia feminina sugeriu que Irineu reservasse uma dieta: oito dias de abstinência sexual, sem consumir álcool, trigo nem carne – outra prática comum nas religiões vegetalistas antes e depois do consumo da ayahuasca. Quando terminou a dieta, a Rainha apareceu para Irineu. Disse que ele já estava pronto: poderia pedir o que quisesse. E ele pediu para ser o maior curador do mundo. A Rainha disse que a bebida se chamava daime. “Como um pedido a Deus: ‘dai-me saúde’, ‘dai-me amor’.” Em outras mirações, Irineu descobre o nome da princesa: Clara. Anos mais tarde, nos hinos que irá compor, vai passar a chamá-la sucessivamente de Senhora, Mulher, Mãe, Irmã, Rainha – um simbolismo plural que encarna muitas entidades femininas: a encarnação da própria floresta. Em uma miração seguinte, Irineu recebe de Clara uma laranja. O fruto terá o peso simbólico do Mundo, da missão de Irineu, conforme relatos: “Ele olhou na cabeça dela e tinha uma lua nova, e em cima da lua tinha uma águia. E assim ele compreendeu que Clara é a luz. A águia na cabeça dela é a guia”. Eis a origem do símbolo do Santo Daime: uma estrela de seis pontas que envolve uma meia-lua, onde pousa uma águia de asas abertas.
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Clara, a guia espiritual de Irineu, seria a responsável por induzi-lo a se alfabetizar e, em seguida, a abandonar o trabalho como regatão. Irineu permanecia longos períodos na mata em isolamento rigoroso, se alimentando só de mandioca. Em 1917, fundava com os irmãos Costa o Círculo de Regeneração e Fé, pilar da igreja do Santo Daime. Como acontece com todas as religiões nascentes, esta também foi perseguida. Os religiosos faziam reuniões itinerantes por cidades do Acre, Peru e Bolívia – a maior parte dos primeiros seguidores era de homens negros maranhenses e mestiços de negros e indígenas amazônicos. A polícia dispersava essas reuniões, vistas pelas autoridades como agremiações de negros curandeiros, usuários de “substâncias venenosas”.
Nascido de um cruzamento entre misticismos cristãos e vegetalistas, o daimismo adquiriu feições espiritualistas. Nas sessões recebiam-se comunicações de entidades como Rainha da Floresta, Príncipe Aristomundos, Marechal Grujirião, Princesa Tremira, Rainha Delatada da Floresta, Rei Titango, Rei Tituma e Rei Agarrube. Aos títulos nobiliárquicos acrescentavam-se patentes do Exército, com muitos generais e marechais. Os reis lembram certas figuras do tambor de mina maranhense e podem ainda ser relacionados a cultos afro mais antigos, como os reisados negros e o maracatu. No teatro mágico da ayahuasca, ao usar tais títulos da nobreza, os descendentes de escravos ascendiam não só espiritual, mas também socialmente.
A iniciação ayahuasqueira de Irineu e seu ingresso no CRF tornaram-no alvo da perseguição que a polícia movia contra a “feitiçaria”. Curiosamente, anos depois Irineu abandonaria o CRF e a primeira mulher, Emília Rosa, indo viver em Rio Branco, onde se tornaria... um policial. Em 1920, aos 29 anos, retornava ao mundo militar, que não só amoldaria sua perspectiva de mundo como a própria cultura daimista. Na força policial fez amigos a quem apresentou com a ayahuasca – o mais conhecido foi o cearense Manuel Fontenele, futuramente governador do Acre. Donde se percebe que, mesmo periférico, sincrético e perigoso à ordem católica dominante, o daimismo, como qualquer religião, aproximava-se do poder.
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PSICODRAMA PSICODÉLICO
Foi em 26 de maio de 1930 que Irineu realizou a primeira sessão aberta de daime, em um terreno conquistado por meio de suas conexões com o governo acriano, na região de Alto Santo. A sessão começava com um “chamado”, melodia cantada ou assobiada que quase sempre convocava uma entidade de nome africano ou indígena. Foi uma valorização incomum dessas culturas, muito estigmatizadas na época. Os primeiros seguidores de Irineu foram seus colegas. Policiais e militares, sim. O propósito inicial do daimismo era a cura de doenças típicas, como a malária. Os conhecimentos de Irineu abrangiam técnicas medicinais caboclas e indígenas e algum esoterismo aprendido nos tempos de CRF. Mas a terapia não se aplicava somente ao corpo, mas também à alma. De maneira análoga à dos xamãs, Irineu muitas vezes empregava o daime para provocar uma alteração de consciência que levasse o cliente a reviver intensamente a situação a partir da qual o distúrbio se originava e, nesse novo enfrentamento, superá-la, livrando-se assim do incômodo que o afligia – um psicodrama psicodélico. Trabalhando em um contexto pobre como o do Acre, carente de soluções médicas modernas, Irineu adquiriu o status de último recurso: o último curador a quem os desesperados recorriam. Além da cura, o aspecto disciplinador é fundamental para entender a sociedade daimista em seus primeiros anos. A vida militar inspirou não só os símbolos e as vestimentas usados no Santo Daime, como também certo estoicismo sob a provação. Um hino seu demonstra esse valor tão arraigado na religião: “Vou chamar os meus irmãos/ Quem quiser venha escutar/ Se ficar firme apanha/ Se correr vai sofrer mais/ Minha Mãe, minha Rainha,/ Com amor ninguém não quis./ Apanhar para obedecer/ Na estrada para seguir./ Mestre bom ninguém não quis/ Não souberam aproveitar./ Apanhar para obedecer/ Para poder acreditar./ Fica assim a disciplina,/ Quem quiser pode correr/ Se eu falar do meu irmão/ Estou sujeito a morrer”.
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NUMA QUARTA-FEIRA, TOMOU, SENTOUSE, E AÍ COMEÇOU O “AFLUÍDO”. COMEÇOU A CHAMAR PELO DIABO. CADA CÃO QUE CHAMAVA ERA UMA CRUZ QUE APARECIA. PARA MIL E SEISCENTOS DIABOS, SURGIU UM CEMITÉRIO. ELE DISSE: “EU QUERO O MAIORAL, O CHEFE DOS DIABOS”
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E ELE PEDIU PARA SER O MAIOR CURADOR DO MUNDO. A RAINHA DISSE QUE A BEBIDA SE CHAMAVA DAIME. COMO UM PEDIDO A DEUS: DAI-ME SAÚDE ’, ‘ DAI-ME AMOR ’ VOL. 10 / N. 51
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CANÇÕES DE ORDEM EM MEIO AO CAOS
Quase sempre estruturados em quadrinhas de redondilhas maiores (versos de sete sílabas), os hinos são cantados em melodias diretas, em ritmo binário. De construção semelhante aos “ícaros”, cantos típicos dos cultos vegetalistas antigos do Peru, assemelham-se mais aos cantos gospel simplórios do que aos polirritmados pontos das religiões afro. No entanto, a repetição incessante de tais hinos durante a sessão também induz a um transe hipnótico e sustenta a assistência: sugerem a inconsciência propícia à miração proporcionada pela ayahuasca enquanto amarram o ouvinte em um sonoro porto seguro. Uma faceta marcante de Irineu era a sua habilidade com a linguagem – especificamente o silêncio. Embora às vezes se dizia que fosse homem de raras palavras, um mestre do silêncio, existem muitos relatos de momentos em que dominava as conversas com o desfiar de histórias quilométricas. Usando as palavras a seu modo, muitas em desacordo com a norma culta, criou um dialeto próprio, de forte impacto, dotado de um léxico específico, fórmulas, estereótipos e formas de argumentação. O mesmo se dava com as letras de seu hinário. A ambiguidade poética das letras reforçava sua predominância sobre a comunidade: ao engendrar múltiplas interpretações, mascarava diferenças e divergências de interesses. O hinário O Cruzeiro, de Irineu, é o modelo de referência textual e melódica para os daimistas: contém 129 hinos. A construção do pensamento de Mestre Irineu foi codificada em tais hinos, portanto, O Cruzeiro é visto pelos seguidores como “livro sagrado”, fundamento da religião. Lá constariam todos os códigos morais e sociais a serem cumpridos. Aos oito anos de fundação do centro de Daime, começou uma nova fase nos rituais. Irineu introduziu o símbolo central do daime, a Cruz de Caravaca (uma cruz de dois braços), o uso de fardas e um novo formato de ritual para as sessões de festejos: o “Baile”. Além dos hinários e das celebrações em datas de feriados cristãos, outros rituais foram introduzidos, aproximando o daimismo da religião católica: batismos e missas. A conciliação política de Irineu estendia-se a outros cultos: ele foi também participante do Círculo Esotérico Comunhão do Pensamento e da Ordem Rosa-Cruz.
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SINCRETISMOS AFRO E BRANQUEAMENTO: A CONCILIAÇÃO DOS CONTRÁRIOS
Em 1956, Irineu casou-se pela terceira vez e viajou ao Maranhão, para onde nunca havia voltado. Muitos dos vínculos com as tradições afro-maranhenses podem ter se dado através do tambor de crioula, sem desconsiderar o Baile de São Gonçalo e o Bumba Meu Boi. Afinal, foi logo depois de um tambor de crioula, do qual teria participado em São Vicente Ferrer, no começo do século 20, que o jovem Irineu rumou para o Acre. E há quem diga que ele tenha sido frequentador VOL. 10 / N. 51
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do tambor de mina. Apesar do pouco espaço existente na doutrina para os transes de incorporação, típicos nas manifestações afro-maranhenses, existe a “irradiação”, termo empregado para certo tipo de transe em que o sujeito não perde completamente a noção de si ou a memória do ocorrido durante a miração. O Alto Santo era muito longe de Rio Branco. Quem chegava via as maiores autoridades do Acre fazendo reverência a Irineu, pedindo a bênção. Via aquele homem tão grande,
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negro, com a mão enorme, que pegava e engolia a mão de todos, fazendo as maiores autoridades do Estado se curvarem diante de dele. Deputados, políticos, vereadores, governadores. Hoje Irineu segue vivo na memória de Rio Branco: é nome de bairro, museu, avenida, rua, área de proteção ambiental, linha de ônibus... Grande conciliador, nunca se filiou a nenhum movimento negro, sempre se aliou aos governos de situação, não combateu a ditadura e tampouco emitiu comentários contra
a oposição ou contra religiões rivais. Como líder religioso atribuía-se o papel do grande pai. Mas Irineu sempre se encontrava com as lideranças do governo de situação. Embora seu culto continuasse minoritário – poucos políticos tomavam o daime –, tal prestígio ajudou Irineu em sua busca por recursos da prefeitura e do governo estadual. Hoje se dá o oposto: o governo estadual capitaliza a religião daimista como valor cultural acriano de exportação. Desde que o mundo é mundo, religião é política.
LUTAR COM O DIABO
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Durante os transes das mirações, Irineu não negava a possibilidade de um participante ser possuído por um espírito. Mas não buscava a doutrinação dos espíritos (como no kardecismo), nem estimulava a mediunidade, como na umbanda, no candomblé ou no tambor de mina. A dinâmica do daime – assim como a ayahuasca agindo sobre o corpo por meio da indução de vômitos e outras excreções – é a do expurgo da negatividade mental, da expulsão e afastamento do espírito obsessor, o “encosto”. Dinâmica semelhante às fórmulas de exorcismo dos demônios do antigo cristianismo católico ou do protestantismo neopentecostal. O daime é uma religião da ordem. A cor negra de Irineu e da maioria de seus antigos seguidores, bem como a manutenção de ritos afro-indígenas, motivava continuadas desqualificações. Para se protegerem, a solução foi o branqueamento. Esse apagamento transparece tanto na corrosão dos ritos da origem do daimismo como em ilustrações produzidas dentro da comunidade, que retratam um Irineu mais claro, buscando suavizar sua cor e seu cabelo. Em meados de 1970, Irineu começou a sofrer de sérios problemas de saúde, constatando-se estar doente do coração e dos rins. Pressentia seu fim próximo. Pretendendo deixar o grupo em harmonia, em preparação para sua futura ausência, imprimiu mais mudanças nas fardas e no ritual. Um dos principais elementos de seu carisma, essas mudanças eram ao mesmo tempo um recurso para reforçar a ordem, respaldar a hierarquia comunitária ou, na sua busca por legitimação social, ressaltar valores militares. O Brasil vivia uma ditadura a partir de 1964. Irineu faleceu – ou migrou para o plano astral, tornandose Juramidam – em 6 de julho de 1971. Foi-se à noite, de infarto do miocárdio. Uma imensa tristeza abateu-se sobre o Alto Santo. Com a morte de Mestre Irineu, começaram as rivalidades que ramificariam o Santo Daime em inúmeras outras linhagens. O conhecimento de Irineu se espalharia então como uma imensa árvore.
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NO TEATRO MÁGICO DA AYAHUASCA , AO USAR TÍTULOS DA NOBREZA, OS DESCENDENTES DE ESCRAVOS ASCENDIAM NÃO SÓ ESPIRITUAL, MAS TAMBÉM SOCIALMENTE
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REGISTRO DA MIRAÇÃO O FOTÓGRAFO MÁRCIO VASCONCELOS VÊ SEMELHANÇAS ENTRE O DAIME E RITOS MARANHENSES
Autor de livros como Zeladores de Voduns do Benin ao Maranhão e Nagon Abioton, há 30 anos Márcio Vasconcelos, 63 anos, pesquisa e registra de forma ativa os batuques, cantorias, bailados e, sobretudo, o transe dos ritos maranhenses. Mas não se iniciou nos rituais afrorreligiosos nem é um consumidor frequente do daime, embora conheça a fundo a força da planta. “Iniciei uma relação com o Cicebris-MA (Centro de Iluminação Cristã Estrela Brilhante Raimundo Irineu Serra), em São Luís, quando mostrei interesse em participar das atividades e fazer um acompanhamento fotográfico dos rituais”, diz Vasconcelos à seLecT. “Seria o início de uma pesquisa mais profunda com o daime, visando percorrer outras comunidades Brasil afora e, principalmente, no estado do Acre. Acompanhei por dois anos o Festival Ecumênico realizado por eles, em que várias comunidades de outros estados são convidadas a participar, trazendo suas formas e diversidades na prática dos rituais.” Já com os terreiros afro do Maranhão a relação é bem mais profunda e longeva. Essa aproximação o levou ao Benin, onde aprofundou uma pesquisa e documentação entre a origem e o destino do culto aos voduns e a fundação da Casa das Minas, em São Luís, no século 19, por uma ex- Rainha do Daomé. As conexões que viu entre os rituais dos tambores de mina e os de Santo Daime têm a ver com música. “No daime, a predominância na marcação do ritmo é feita pelos maracás, enquanto na mina são os tambores que ditam o andamento. A repetição dos cânticos, das doutrinas e dos bailados, em forma de mantras, favorece a concentração e, consequentemente, o transe, que no caso do daime é acrescentado pelo consumo do chá e, na mina, pela incorporação das entidades espirituais”, conta. RB
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FOTOS: LUIS CARLOS VELHO/ CORTESIA DA ARTISTA
ESTUDO DE CASO
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YUBE INU, YUBE SHANU MAHKU E O MITO DO SURGIMENTO DO NIXI PAE Praticantes do lema “vender tela, comprar terra”, os integrantes do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku) pintam os cantos que conduzem os rituais da medicina xamânica usada por diversos povos ameríndios
PA U L A A L Z U G A R AY
Na página anterior e nesta (em detalhe), Yube Inu, Yube Shanu (Mito de Surgimento da Ayahuasca), 2021, pintura de Cleiber Bane, do Mahku
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FOTO: SAMUEL ESTEVES
À dir., obra Nai Mãmpu Yunekã, em processo, no ateliê de Pedro Maná, em aldeia no município de Jordão, Acre; abaixo, a obra Yame Awa Kawanai (2020), na exposição Véxoa, Nós Sabemos, Pinacoteca do Estado de São Paulo
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FOI MUITO ANTES DA INICIAÇÃO DE MESTRE IRINEU E DA FUNDAÇÃO DO DAIMISMO.
O quanto antes é difícil discernir, dado que aqui entra em conta outra noção de tempo e de espaço. Sabe-se que é do tempo em que homens e animais ainda não eram diferentes, ou de quando o céu ainda estava muito perto da terra. Ou, ainda, do “tempo no qual não existia a angústia da certeza”, como disse certa vez Ailton Krenak sobre o tempo dos mitos. Relata o mito que tudo aconteceu em uma aldeia do povo Huni Kuin (que na língua hantxa kuin, da família linguística pano, significa “gente verdadeira”), também denominado Kaxinawá. Foi nessa aldeia, às margens do Rio Jordão, no atual estado do Acre e território fronteiriço com o Peru, que surgiu há alguns milhares de anos o nixi pae (“cipó forte”), mais conhecido como ayahuasca (em idioma de origem quéchua), a medicina de cura de uso xamânico entre muitos povos ameríndios. Conta o mito Yube Inu Dua Busë que o ensinamento de como preparar o nixi pae veio do fundo de um lago, das mãos de um povo-jiboia e de uma encantadora mulherjiboia, que levou um caçador Huni Kuin chamado Dua Busë pra viver com ela debaixo d’água. A história é cantada em rituais e recontada em pinturas, ou “telas-cantos”, como define o antropólogo e curador Daniel Dinato, traduções visuais dos huni mekas, os cânticos sagrados que conduzem os rituais com o cipó forte. A tela Yube Inu, Yube Shanu (2021), do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), narra com imagens o mito do surgimento do nixi pae. A obra foi apresentada em junho, na exposição Tudo É Perigoso, Tudo É Divino, Maravilhoso, com curadoria de Daniel Dinato, no espaço Carmo Johnson Projects, VOL. 10 / N. 51
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em São Paulo. A história começa a ser contada no canto superior direito do quadro, onde um indígena descansa em sua rede. O acontecimento disparador da experiência iniciatória – o fascínio pela mulher-jiboia que copula com uma anta e depois o atrai para o fundo do rio – se dá no centro da pintura, ao lado de uma grande árvore envolvida por uma enorme jiboia. Em todas a telas-cantos do Mahku, os acontecimentos parecem se dar concomitantemente. Não há, na estrutura do quadro, evidências visuais de ordem cronológica ou qualquer menção à linearidade. Mas isso não necessariamente se relaciona a uma concepção de temporalidades sobrepostas. “Isso tem relação com o fato de a ayahuasca abrir espaço para aquilo que chamamos de sinestesia”, diz Dinato à seLecT. “Acredito que os múltiplos estímulos sensoriais auxiliam a produzir uma espécie de colagem visual, com inúmeras imagens e pequenas narrativas simultâneas, um todo sem começo, meio e fim lineares.” A série recente de pinturas produzida para a mostra apresenta outros huni mekas e detalhes do mito. Todas fazem uso abundante de grafismos, chamados kene, presentes na pintura corporal, roupas e adereços Huni Kuin. O corpo da jiboia é também presença constante, deslocando-se sinuosamente pelas regiões da tela, conectando trechos das histórias e, por vezes, emoldurando as cenas. “Acredito que o principal papel da jiboia é o da transformação”, continua Dinato. “Transformar-se para adaptar-se, viajar entre-mundos e comunicar esses distintos mundos. Nesse sentido, Mahku é Yube, a jiboia mítica, pois constrói caminhos, pontes e se desloca entre-mundos: o mundo dos ‘espíritos’ yuxin, dos Huni Kuin e dos não indígenas. As pinturas do Mahku são a ponta do iceberg de outra ontologia.” FOTOS: ALESSANDRO ISAKA/ LEVI FANAN, PINACOTECA
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À dir., Pedro Maná diante de pintura; Cleiber Bane pintando a obra Yube Nawa Aindu; e Ibã Sales, na aldeia Chico Curumim, município de Jordão, Acre
CORES E MIRAÇÕES O Mahku é formado por 12 artistas, entre eles Isaías Sales (Ibã Huni Ku˜i), Cleiber Sales Kaxinawa (Bane Huni Ku˜i), Pedro Macario Kaxinawa (Maná Huni Ku˜i), Leone Macario Kaxinawa, Acelino Sales e Kássia Borges (Rare Huni Ku˜i) – alguns pesquisadores ligados ao campus Floresta da Universidade Federal do Acre (Ufac). Suas telas – coletivas e às vezes assinadas por algum dos integrantes – são sempre traduções visuais dos cantos cerimoniais (músicas para “chamar a força” ou “chamar a jiboia”; músicas para guiar os participantes nos “caminhos da jiboia”; e músicas para conduzir ao final do ritual). Pintadas com acrílico sobre tela, referem-se também às “mirações”, visões decorrentes do consumo da ayahuasca. Quando seLecT conheceu o trabalho do Makhu, seus integrantes haviam viajado de volta ao Rio Jordão e a dificuldade de comunicação nos impediu de buscar saber mais sobre sua experiência e procedimentos. Sobre o marcante aspecto cromático do trabalho, no entanto, cabe lembrar aqui o depoimento esclarecedor da artista Daiara Tukano, em sua participação no programa Fogo Cruzado da seLecT, em 5/5, sobre “Como expor arte indígena?” Ao referir-se à longa e árdua caminhada de aproximação entre os artistas indígenas e os espaços institucionais da arte, Daiara deu uma “aula” sobre o uso das tecnologias “ocidentais” pelos povos indígenas, incluído aí o emprego das cores. “Quando usamos essa palavra ‘contemporâneos’, é preciso compreender que sempre VOL. 10 / N. 51
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fomos contemporâneos. Nós estamos aqui, no mesmo planeta, ninguém está saindo de um livro de história, ninguém está saindo de uma ópera de O Guarani, ninguém aqui é Iracema. Existem muitos estereótipos colocados nessa formação alegórica da figura do ‘índio’, entre muitas aspas, na cultura ocidental e na cultura brasileira, na qual não nos reconhecemos. Estamos falando de arte indígena e, no meu caso, de arte tukano. Qualquer coisa que eu fizer é tukano. Porque eu sou tukano. Independentemente da tecnologia que é usada”, disse a artista na mesa formada também pelo curador Paulo Miyada e a antropóloga Paula Berbert. “Ao pensar em como é possível descolonizar ou contracolonizar, dentro das nossas práticas e saberes, cabe qualquer tecnologia. Eu tenho dentro da minha arte uma pesquisa que vem muito da nossa cultura com relação à medicina. Nós somos um povo ayahuasqueiro, assim como o povo Huni Kuin (aqui atrás está uma obra da Rita [Sales] Huni Kuin). Nas nossas visões, nós enxergamos todas as cores, enxergamos as mesmas cores que qualquer outro ser humano, então por que vamos nos limitar aos pigmentos que estão no nosso território? A gente pode, sim, usar todas as tintas, todas as cores. O nosso olhar não se restringe apenas ao jenipapo e ao urucum. Não se restringe aos tons das terras. Mas, quando eles vêm, são muito bem-vindos, até porque eles são muito mais do que cor. Eles são proteção, são medicina, são memória, são espíritos vivos. Existem relações diferentes com esses materiais.” FOTOS: ALESSANDRO ISAKA
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HISTÓRIA DO 118
YUBE INU DUA VENDER TELA, COMPRAR TERRA O movimento de “contracolonização” iniciado pelo Mahku data de 2011, quando o coletivo se formou para resgatar saberes roubados das gerações anteriores, submetidas ao trabalho nos seringais do Acre. “Os Huni Kuin, como diversos outros povos daquela região, sofreram com condições análogas à escravidão durante o ciclo da borracha. Eles eram proibidos de praticar sua cultura e, claro, não eram donos das terras onde viviam”, aponta Dinato, que tem uma dissertação de mestrado sobre o Mahku. As demarcações feitas nos anos 1980 e 1990 teriam trazido alguma justiça, mas sabe-se que no Brasil a restituição de terra, além de limitada e parcial, está permanentemente suscetível a invasões. Portanto, além da função de resgate de memória e identidade, há claramente uma visão comunitária de futuro nas práticas do Mahku, na medida em que a verba angariada com a venda de murais, telas e painéis é destinada para a aquisição de terras em áreas próximas às áreas indígenas demarcadas no município de Jordão (AC). “Essas terras, que eram originalmente dos indígenas, são, através da ocupação ou compra, retomadas”, continua Dinato. “Assim, com seu lema de ‘vender tela, comprar terra’, o Mahku insere-se nessa tradição. Mas é fundamental dizer que essas ocupações e compras não substituem as demarcações feitas pelo Estado. As demarcações precisam continuar.” VOL. 10 / N. 51
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O CIPÓ
L I T E R AT U R A
A BUSË
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Do livro Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva (2017, Dantes Editora, Itaú Cultural), que reúne estudos médicos com plantas, de pajés Huni Kuin
Dua Busë morava com a família em uma maloca grande. Uma tarde ele saiu pra caçar e encontrou jenipapo na beira do lago. Tinham muitas caças que estavam comendo o jenipapo, tinha veado, porco, anta... Dua Busë fez tocaia e ficou lá dentro esperando a caça. Lá veio a anta para comer a fruta do jenipapo, quando chegou a anta juntou três frutas e jogou no meio do lago chamando alguém. Veio uma mulher de dentro do lago toda bonita mesmo, trazendo pra anta uma cerâmica desenhada cheia de mingau de banana para a anta beber. Mulher e anta namoraram e Dua Busë ficou olhando da tocaia. Depois a mulher jiboia voltou para dentro do lago e a anta foi embora. Dua Busë voltou para casa e não conseguiu dormir lembrando da mulher com a anta. No dia seguinte, às 5 da manhã, ele pegou a flecha e voltou para tocaia sem avisar a família. Ele fez a mesma coisa, pegou três sementes de jenipapo e jogou no lago. Saiu uma espuma do rio e logo depois saiu a mulher com o vaso de cerâmica com mingau de banana igual que fez com a anta! Dua Busë se escondeu na hora, mas depois agarrou ela sem avisar e até o vaso quebrou. A mulher falava: – Me solta! Quem é você? Ela começou a se transformar em jiboia, transformar em murmuru (uma palmeira que tem muito espinho), onça.
Ele não soltou. Finalmente Dua Busë falou: – Te vi namorando com a anta e quero te namorar também. Ela se transformou em gente e falou: – Vou namorar com você se você estiver solteiro. Dua Busë entrou em um acordo, disse que não tinha mulher e queria casar com ela. A mulher jiboia fez remédio para Dua Busë, pegou medicina para ele, mergulhou com ele e saiu na aldeia do fundo do lago. Encontrou com o peixe arraia que já estava com a lança e o peixe “mandim” com flecha para matar Dua Busë. A mulher falava que não era para matar Dua Busë, que ele era marido dela. Mais à frente encontraram puraquê, um peixe que dá choque, que trazia a borduna dele, mas a pedido da mulher o puraquê também se acalmou. A aldeia do fundo do lago tinha tudo, maloca, roçado, plantas, legumes. Quando chegaram no limite do roçado, a mulher deixou Dua Busë lá esperando para avisar a família que estava trazendo um homem para casar com ela. Os pais concordaram e ela foi buscar Dua Busë. Passou tempo e eles geraram dois filhos, uma filha e um filho. Um dia Huã Karu, sogro de Dua Busë, que estava dentro do lago, começou a preparar ayahuasca. Ele tirou cipó, rainha e foi preparar o chá. Dua Busë perguntou: – O que é isso? – É um chá de cura, respondeu o sogro. Huã Karu preparou o chá à tarde e, à noite, enquanto preparava o ritual, pediu para a filha avisar ao genro para ele não beber. A filha foi avisar ao marido que não era para beber o chá. – Se ele beber podem acontecer algumas coisas e talvez ele não vai aguentar. Mas Dua Busë quis beber e finalmente ele bebeu... A esposa pediu para não beber, mas ele bebeu mesmo assim uma dose grande. Quando estava chegando a força Dua Busë começou a agoniar e foi vomitar.
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Quando ele estava vomitando, ele começou a ver a jiboia engolindo ele. Ele estava vendo o futuro. Aí, quando o sogro viu falou: – Bem que eu avisei que não era para ele beber. Chama ele que vou cantar para ele. Quando o sogro começou a cantar, ele viu que a jiboia estava apertando. Dua Busë começou a gritar muito. Até que amanheceu o dia, fizeram medicina para Dua Busë tomar banho. Dua Busë ficou descansando até que um dia ele levantou para caçar. A mulher não queria deixar, mas ele foi mesmo assim. Foi indo até que chegou no largadouro, o lugar onde chega o igarapé que alimenta o lago, e encontrou o Iskï, o bodó encantado. O Iskï falou: – Seja bem-vindo, meu txai! Queria encontrar contigo mesmo. Iskï estava sem cabelo e sem o rabo. – Olha, txai, você está vivendo bem com a mulher jiboia; a sua mulher está com os seus filhos com fome. Eles me encontraram, tiraram meu nea rani, o cabelo do rabo, então melhor você voltar para sua terra, cuidar da sua família, porque eles estão sofrendo muito. Vem, vou te ajudar! O Iskï foi e pegou a medicina, colocou no olho dele e falou: – Pega meu cabelo e fecha o olho. Saiu com ele descendo o rio até chegar no roçado da família de Dua Busë. Chegando lá, o Iskï jogou ele na terra. Quando virou, olhou e reconheceu o roçado da família. Ele foi entrando na terra dele... a família começou a gritar avisando que Dua Busë estava voltando, veio todo mundo, perguntando e levando VOL. 10 / N. 51
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ele para txitüte, a pequena rede de pajé, e ele ficou deitado lá, contou a história que aconteceu com ele e a família pediu para ele não sair da casa com medo da jiboia. Ele ficou vivendo com a família um tempo e depois de um tempo foi caçar. A esposa do lago estava procurando ele com saudade e raiva. Ele falou que ia matar algumas coisas para fazer caçada, ele não quis ir pelo lago e foi pelo lado da terra, viu o pássaro kushu, cujubim, e deu flechada. A flecha dele caiu na beira do lago, no sangrador do lago, aí flechou de novo e foi lá de novo. Foi catar as flechas no lago e quando chegou para pegar as flechas encontrou com Bari Siri Ika, filha dele. Depois chegou a filha pequena e mordeu o dedão do pé dele. “Sirï sirï sirï...” Ele não fez nada, ficou espantado, olhando. Com o canto da filha chegou o filho maior e atacou ele comendo até o joelho. Ele não falou nada. Daqui a pouco vem a mulher, tinha uma árvore no meio do lago. Dua Busë estava com o braço aberto pendurado na árvore e a mulher comeu até o peito. Aí Dua Busë começou a gritar. Chamando os seus parentes da comunidade. – Venham, meus parentes, a jiboia tá me engolindo! Seguraram Dua Busë e conseguiram tirar ele. Ele ficou com o corpo mole, ficou na rede e falou para seu cunhado: – Quando eu morrer, me enterra. Passando seis meses pode me procurar na minha sepultura. Na parte direita vou virar cipó e na parte esquerda vou virar rainha. Tira o cipó, 1 metro mais ou menos, pega um pau e bate até sair a casca e depois cozinha. Cantando eu fico dentro do cipó e explico para você. Foi explicando para o cunhado dele enquanto morria. Enterraram, passou seis meses e o cunhado dele foi visitar a sepultura. Nessa hora tinha nascido o cipó, nascido rainha. Tirou os dois juntos e fez como ele havia explicado. Fez o nixi pae, tomou e veio a miração. Teve muita explicação. Mostrando o futuro, presente e passado e a verdade. Assim nasceu o nixi pae e essa é a nossa história. (Una Shubu Hiwea, 2017, s.p)
P R OJ E T O
#FLORESTAPROTESTA EM FRAMES DA DESTRUIÇÃO DA MATA, DORA LONGO BAHIA COMPÕE OBRA SERIADA PARA SE REFERIR ÀS CATÁSTROFES EM CURSO
HISTÓRIA E POLÍTICA NORTEIAM A OBRA DE DORA LONGO BAHIA. No campo de
investigação da artista somam-se a violência doméstica, abordada nas séries feministas, a leitura da violência urbana domesticada pela circulação midiática de imagens e a violência política – à qual hoje se aplica, mais que nunca, o ataque deliberado ao meio ambiente. Seu trabalho é uma resposta aos ciclos históricos de violência cotidiana. Para a série ativista da seLecT, Longo Bahia repete o enquadramento da floresta em chamas da videoinstalação Brasil x Argentina (Amazônia e Patagônia) (2018). Três anos depois do projeto que abordava a relação entre o uso político dos mundiais de futebol e a catástrofe anunciada do aquecimento global, os índices de queimadas se adensam, a política alcança níveis inéditos de toxidade e a série #florestaprotesta reinstaura a crítica. A obra insere-se em um corpo de trabalhos que elaboram uma estética da emergência. Com resolução de alto impacto gráfico, visando a comunicação rápida e direta no espaço público urbano ou das redes, os cartazes #florestaprotesta são como os frames de um videoensaio contundente sobre as catástrofes em curso no Brasil.
Floresta Protesta, 2021, Dora Longo Bahia
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FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
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MAR/ABR/MAI 2020
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“REALIDAD SÃO AQUILO PENSAMOS NOSSA CON FALA” 124
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ES O QUE S QUE A NSCIÊNCIA
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PRIMEIRO DIRETOR
ARTÍSTICO INDÍGENA
DA BIENAL DE SYDNEY, O ARTISTA WIRADJURI
(BROOK GARRU ANDREW)
USA ARQUIVOS HISTÓRICOS COMO EVIDÊNCIAS DOS CRIMES PERPETRADOS PELO COLONIZADOR
J U L I A N A M O N AC H E S I FOTO: TIM BAUER/THE SYDNEY MORNING HERALD
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“ÁRVORES DERRUBADAS SÃO LOCAIS DE CERIMÔNIA: IMAGINE IGREJAS, MESQUITAS OU OUTROS TIPOS DE LOCAIS SAGRADOS SENDO DESTRUÍDOS” 127
O JORNALISMO CHEGA SEMPRE ATRASADO. NAS PESQUISAS QUE A SELECT REALIZOU PARA A PRESENTE EDIÇÃO, SOBRE ARTE INDÍGENA INTERNACIONAL, O TRABALHO DE BROOK GARRU ANDREW À FRENTE DA 22ª BIENAL DE SYDNEY FOI O “FATO NOVO” MAIS CITADO PELOS ENTREVISTADOS. Primeiro cura-
dor aborígene da história da celebrada bienal australiana, Andrew é também um respeitado artista interdisciplinar, premiado com uma Smithsonian Artist Research Fellowship e com o Photography Residencies Laureate do Musée du Quai Branly, em Paris. Enveredamos, então, pelo trabalho do artista, “descobrindo” uma exposição individual dele no ano passado, em Sydney, intitulada This Year, que põe em xeque as narrativas dominantes, do colonialismo às histórias modernistas, propondo ainda uma reflexão sobre o fatídico 2020. Notícia atualíssima, certo? Errado. No momento, Andrew trabalha no projeto More Than a Guulany (Tree): Indigenous Knowledge Systems, como professor associado na Monash University, mais precisamente no laboratório de pesquisa Wominjeka Djeembana, da Faculdade de Arte, Design e Arquitetura da instituição em Melbourne. De ascendência aborígene, por parte de mãe, e celta e judia, por parte de pai, Brook Garru Andrew atendeu com generosidade ao pedido de uma entrevista pela seLecT. Mas, de forma muito elegante, nos fez perceber que não está muito disposto a falar sobre a Bienal de Sydney ou sobre “aquele ano”. Isto após responder, por e-mail, a parte da entrevista. O estúdio do artista nos enviou dois documentos, o vídeo de uma conferência na Universidade Monash junto do artista e professor Brian Martin, e uma longa entrevista que concedeu ao diretor-executivo do Artspace Sydney, Alexie Glass-Kantor, por ocasião da mostra This Year na galeria Roslyn Oxley9, nos autorizando a usar trechos da fala de Andrew para complementar a obsoleta entrevista. O jornalismo chega sempre atrasado.
Na página ao lado, acima, Vision of Nuance: Systems of Exposure (2019), site-specific de Brook Garru Andrew para a exposição Art Wuzhen - Now Is The Time, China; abaixo, scan 3D da guulany do Pitt Rivers Museum, Universidade de Oxford, exposto na 22 a Bienal de Sydney, em 2020, ao lado da pintura mural de Eric Bridgeman
SELECT: Trabalhar com arquivos parece ser um interesse recorrente: como você se relaciona com os arquivos institucionais na Austrália e em outros lugares? Eles são fontes confiáveis ou um foco de crítica constante? Brook Garru Andrew: Arquivos são poderosos, são evidências de con-
quistas coloniais e documentos que definem e registram aquilo que, em muitos casos, se perde. Se não fosse pelos arquivos, não poderíamos ter reconstituído a nossa linguagem Wiradjuri do jeito que é agora, nem poderíamos ver fotos de nossos ancestrais que foram tiradas por protoetnógrafos, como Charles Kerry. É assim que os arquivos remontam à nossa história e cultura, documentando especialmente que a Austrália e outros lugares foram invadidos com extrema violência. E muitos hoje ainda negam os direitos e as culturas dos povos indígenas. O arquivo é uma evidência que revela os colonizadores como os perpetradores e, portanto, um novo caminho de cura e de trabalho conjunto pode ser traçado a partir dele. Os arquivos australianos e os internacionais são semelhantes em sua construção e ética de trabalho. As potências coloniais europeias trabalharam juntas (ou contra) e foram ativas em muitas disputas ou acordos comerciais – é sobre essa base que o arquivo é construído. Consequentemente, a conexão entre os arquivos britânicos, australianos e outros arquivos coloniais na Índia, nas Filipinas, no Congo ou no Brasil pode ser interligada às histórias coloniais de portugueses, franceses, espanhóis, italianos etc. Por que você prefere trabalhar com imagens de arquivo em vez de fazer novas?
Faço novas imagens também, mas trabalho com mais frequência com imagens de arquivo existentes. O poder do arquivo é a pura evidência dos muitos que não acreditam ou não confiam nas visões indígenas ou não coloniais, é uma forma de provar os fatos. Além disso, todos eles são objetos poderosos que possibilitam um espelho para olhar para trás e corrigir algumas das devastadoras perseguições coloniais e também revelar que os povos indígenas possuíam e detêm um conhecimento incrível sobre a gestão da terra e outros conhecimentos importantes.
FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA, ART WUZHEN E BIENAL DE SYDNEY
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Poderia comentar o uso do néon em suas peças de parede e instalações? A luz é símbolo de um desejo iluminista?
O néon é uma arquitetura clássica do mundo capitalista – vende, atrai e fornece um espaço de sedução. Descobri que trabalhar com néon me permite escrever em meu idioma aborígene, Wiradjuri, ao lado do inglês, para fazer um comentário político e social sobre as maneiras como culturas se tornam invisíveis ou visíveis e, consequentemente, sobre os problemas com a colonização e suas palavras degradantes e depreciativas, como “primitivo”, que utilizo na minha obra de néon KILL PRIMITIVISM, ou NGAJUU NGAAY NDINDUUGIRR, que significa “eu te vejo”. O uso da luz é puramente sedutor, não tenho certeza se um desejo de iluminação é um objetivo direto, mas acho que isso também poderia ser um resultado, considerando as perspectivas e o racismo, e pensando que as conexões inter-humanas precisam se tornar mais compassivas e conciliatórias.
This Year, Raking Over... (2020)
Quais são as fontes do material utilizado na série This Year (2020)?
São coisas que me interessam. Na exposição (na Roslyn Oxley9 Gallery, em Sydney) havia fragmentos de todos os lugares; uma revista de leilão de Berlim, um recorte da capa de uma revista do Australian Institute of Aboriginal and Torres Strait Islander Studies – e imagens de uma figura de terracota de um livro sobre Bali, que comprei em Genebra. Na verdade, pela combinação desses elementos, busco criar possibilidades e conectar histórias, não apenas iluminando áreas de sombra, mas também fatos que estão conectados, questionando suas relações históricas. Para mim, também se trata de códigos secretos, porque as pessoas verão coisas diferentes, e isso é muito importante. O garoto olhando na direção da luz néon que sobe para a câmera em This Year, Raking Over... (2020), para mim, isso é sobre fotografia, sobre o olhar, a etnografia e a documentação do povo aborígene. Algumas obras também possuem fotografias originais dos séculos 19 e 20 de minha coleção. Portanto, não são apenas revistas que colecionei – algumas delas são fotos muito procuradas em casas de leilão. É muito importante incluí-las como parte de um comentário sobre a cultura internacional da coleção. Um dos meus trabalhos favoritos é This Year, the Bench... A imagem dos juízes é retirada de uma gravura de Hogarth. As molduras são como esculturas – são recipientes para as colagens. Trabalhei com Mark Chapman para criá-las. Quando estava colocando as colagens nas molduras, fui acrescentando elementos. Por ter feito essa exposição logo depois de encerrar a 22ª Bienal de Sydney, onde trabalhei com vários artistas, queria criar e transformar o espaço da galeria branca em algo que realmente refletisse uma espécie de jornada ou narrativa diferente ou algo que realmente subvertesse o que é realidade, porque nossas realidades são aquilo que pensamos que a nossa consciência fala, quando, na verdade, às vezes estamos todos em nossas próprias pequenas espaçonaves.
Em Vision of Nuance: Systems of Exposure (2019), você discute os formatos tradicionais de exibição de fontes etnográficas. Você diria que o museu de arte contemporânea pode ser um lugar alternativo para mostrar e recontextualizar esse tipo de coleção? Ou, se não assim, o que pode ser feito para decolonizar o conhecimento antropológico e etnográfico?
Correr riscos é um gesto da arte contemporânea
VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021 FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
“HÁ MUITO MEDO DA CULTURA DOMINANTE EM PERMITIR UMA RELEITURA DO SAQUE COLONIAL E DO COMPLEXO ARQUIVO ACUMULADO EM TORNO DISSO”
que é apoiado por um olhar ocidental e pela história da arte – embora correr riscos ao permitir que artistas indígenas criem nessas plataformas e trajetórias não seja algo “autorizado” com muita frequência. Há muito medo da cultura dominante em permitir uma releitura do saque colonial e do complexo arquivo acumulado em torno disso. Considero importante que as instituições culturais, como o museu e a galeria contemporânea,
estejam abertas à interpretação, especialmente com as coleções de artistas e comunidades das nações nativas. Assumir esse risco permitirá a cura e novos caminhos de pensamento iluminado para todos – a colaboração também é a chave. Também acho que essas experiências poderiam ocorrer concomitantemente em comunidades. As pessoas em geral precisam ter a mente mais aberta e ser menos estressadas a respeito das interações. Atos de descolonização ou soberania dizem respeito a pessoas que se permitem aliviar a pressão e que não têm medo de olhar para o passado e liberá-lo para o futuro.
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“O NÉON É UMA ARQUITETURA CLÁSSICA E FORNECE UM ESPAÇO DE SEDUÇÃO. DE ME PERMITE ESCREVER EM MEU IDIOMA INGLÊS, PARA FAZER UM COMENTÁRIO P COMO CULTURAS SE TORNAM INVISÍVEIS VOL. 10 / N. 51
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA E ROSLYN OXLEY9 GALLERY, SYDNEY
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A DO MUNDO CAPITALISTA: VENDE, ATRAI ESCOBRI QUE TRABALHAR COM NÉON ABORÍGENE, WIRADJURI, AO LADO DO POLÍTICO E SOCIAL SOBRE AS MANEIRAS S OU VISÍVEIS” This Year, Dealing with It... (2020); na página ao lado, This Year, Future Leaving... (2020)
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Horizon Line II (2020), instalação de Brook Garru Andrew na mostra À Toi Appartient le Regard, no Musée du Quai Branly, Paris; na página ao lado, vista da exposição DIWIL (2021), no Murray Art Museum Albury, NSW, Austrália
Poderia falar sobre a sua pesquisa acerca da história das árvores?
Tive por muitos anos uma relação com uma árvore no Museu Pitt Rivers, em Oxford, por mais ou menos uma década, eu diria. É uma das três árvores que conheço, ou dendroglifos (desenhos ou marcas/sulcos em árvores) de guulany (árvore que contém o dendroglifo) que sei que estão no exterior. Uma em Pitt Rivers, duas no Museu Etnográfico de Genebra. O dendroglifo que hoje está na Universidade de Oxford foi mostrado na Exposição Universal de Paris de 1867 e foi comprado pelo museu. As esculturas nessas árvores são usadas para cerimônias pelos homens Boon Wurrung ou para assinalar pessoas de alto nível, e é muito angustiante em nossas comunidades quando essas árvores são retiradas. Para a 22ª Bienal de Sydney, fizemos um escaneamento em 3D dessa seção da árvore. Esse tipo de experimento é importante para nossa comunidade explorar, e para nós, como artistas, acadêmicos e conectores, investigarmos sobre a cópia, sobretudo quando estamos falando sobre os tipos de histórias realmente carregadas pelas guulany. Não considero essa cópia uma obra de arte, prefiro dizer que esta é uma tomada de posição, um objeto poderoso, e por isso ela foi exposta na NIRIN, onde a coloquei ao lado de uma pintura de parede de Eric Bridgeman, artista australiano de Papua-Nova Guiné, que reflete VOL. 10 / N. 51
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sobre quais as implicações de isso, por exemplo, ser uma árvore funerária. Essas árvores derrubadas ou são lápides ou são locais especiais de cerimônia: imagine igrejas, mesquitas ou outros tipos de locais sagrados sendo destruídos. O tipo de história complexa da proteção dessas árvores ainda existe para as nossas comunidades, tal como, é claro, com outros patrimônios culturais como a arte rupestre e até mesmo o Rio Tinto, onde estão destruindo importantes sítios culturais. O que estamos olhando é mais do que uma árvore, mais do que uma guulany, e acho que é, provavelmente, a primeira vez que o ARC (The Australian Research Council, organização governamental criada para reconhecer os proprietários e guardiões originais da nação em toda a Austrália e sua conexão contínua com a terra, a água e a comunidade) ou a comunidade acadêmica mais ampla realmente olha para esses importantes objetos, que em geral são relegados ao espaço do museu de antropologia. FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
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Sobre a custódia, Poderia falar sobre basta a suaolhar pesquisa para atual, o Rio Whangaem torno da das árvores? nui,história em Aotearoa, onde uma comunidade Maori Tive por muitos finalmente recebeu anosautorização uma relação docom governo uma árda vore no Nova Zelândia Museupara Pittnomear Rivers, aquele em Oxford, rio, como por mais uma ou menos uma identidade real edécada, um lugar. eu diria. Acredito É uma que,das se essa três árvores que conheço, dendroglifos (desenhos lei existisse dentro deouum contexto australiano, aourelação marcas/sulcos com as árvores em árvores) originárias de guulany e muitos (árvooure que tros locais contém mudaria o dendroglifo) e seria absolutamente que sei que o oposestão no do exterior. Rivers, duas no grande Museu to que é Uma hoje. em IssoPitt daria início a um Etnográfico respeito peladecultura Genebra. e euOacho dendroglifo que é umque dilema hoje está nainteressante, muito Universidadeem de que, Oxford como foi indígenas, exibido na nos Exposição Universal encontramos constantemente, de Paris de 1867 porque, e foi comprada sem esse pelo museu. As esculturas nessascolocados árvores são reconhecimento, ainda estamos nousaludas para cerimônias homens Boon Wurrung gar do primitivo, dopelos antropológico, incivilizado, ou para não desenvolvido. assinalar pessoas Esse tipo dede alto hierarquia nível, e édemuiimto angustiante portância dentro emdanossas culturacomunidades é bastante confuso. quando essas árvores Quero dizer, assão casas retiradas. que certas Parapessoas a 22ª Bienal construíde Sydney, fizemos um escaneamento emmas 3D adessa ram ontem são seguradas e cuidadas, casa seçãoosdapovos árvore. Esse tipoconstruíram de experimento que indígenas há 60é immil portante anos não para é. nossa comunidade explorar, e para
nós, como artistas, acadêmicos e conectores, investigarmos sobre a cópia, sobretudo quando estamos falando sobre o tipo de histórias realmente carregadas pelas guulany. Não considero essa cópia uma obra de arte, prefiro dizer que esta é uma tomada de posição, um objeto poderoso, e por isso ela foi exposta na NIRIN, onde a coloquei ao lado de uma pintura de parede de Eric Bridgeman, artista australiano de Papua-Nova Guiné, que reflete sobre quais as implicações de isso, por exemplo, ser uma árvore funerária. Essas árvores derrubadas ou são lápides ou são locais especiais de cerimônia: imagine igrejas, mesquitas ou outros tipos de locais de cerimônia sendo destruídos. O tipo de história complexa da proteção dessas árvores ainda existe para as nossas comunidades, tal como, é claro, com outros patrimônios culturais como a arte rupestre e até mesmo o Rio Tinto, onde estão destruindo importantes sítios culturais. O que estamos olhando é mais do que uma árvore, mais do que uma gullany, e acho que é, provavelmente, a primeira vez que o ARC (The Australian Research Council, organização governamental criada para reconhecer os proprietários e guardiões originais da nação em toda a Austrália e sua conexão contínua com a terra, a água e a comunidade) ou a comunidade acadêmica mais ampla realmente
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O SINO, O DUB E A ESTÉTICA SINCRÉTICA DE LEE “SCRA VOL. 10 / N. 51
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RAMIRO ZWETSCH
ATCH” PERRY RESISTÊNCIA E REPETIÇÃO NORTEIAM INSTALAÇÕES DO PRODUTOR MUSICAL
JAMAICANO, ENTRE OS 91 ARTISTAS SELECIONADOS DA 34ª BIENAL DE SÃO PAULO
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UM SINO QUE INSISTE EM TOCAR, O CANTO COMO METÁFORA DE RESISTÊNCIA DA ARTE EM PERÍODOS DE OBSCURANTISMO E A PRESENÇA DO RENOMADO PRODUTOR MUSICAL JAMAICANO LEE “SCRATCH” PERRY ENTRE OS 91 ARTISTAS SELECIONADOS: A MÚSICA CIRCULA SORRATEIRAMENTE COMO ELEMENTO INSPIRADOR DA CURADORIA DA 34ª BIENAL DE SÃO PAULO, QUE ACONTECE DE 4 DE SETEMBRO A 5 DE DEZEMBRO NO PAVILHÃO CICCILLO MATARAZZO, NO PARQUE DO IBIRAPUERA. Com o título
Faz Escuro, Mas Eu Canto, emprestado de um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, o evento reconhece o som como algo que norteia todo o pensamento desta edição. “Houve bienais com presença maior e menor da música. Nesta, ela tornou-se uma das chaves de leitura que aparecem em vários momentos”, diz o curador-geral Jacopo Crivelli Visconti à seLecT. Um deles está no enunciado que se apropria da imagem do sino da Capela de Padre Faria, em Ouro Preto, o único a badalar em 21 de abril de 1792, dia da execução de Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira. Todas as outras igrejas da cidade obedeceram à ordem oficial de não soarem seus sinos na ocasião. No mesmo dia, em 1960, ele tocou também na inauguração de Brasília. “A ideia de trabalhar com esses enunciados nasceu da maneira que a gente construiu a Bienal. Os curadores trouxeram ideias, obras e artistas que aos poucos foram se juntando em grupos que, na exposição, o público vai reconhecer como conjuntos temáticos”, explica Visconti. O sino e sua história são apresentados ao visitante como elemento que propõe uma interpretação (ou várias) do porquê daquelas obras estarem reunidas em um mesmo grupo. “Um mesmo timbre pode querer dizer coisas completamente diferentes: em um primeiro momento, ele toca de maneira revolucionária, em homenagem a um inimigo do Estado; no outro, ele celebra a inauguração da capital de um país que se tornou livre, mas que continua mantendo práticas coloniais. As obras que estão ao redor do sino podem ser lidas tanto na chave da resistência como da repetição”, completa o curador.
Instalação de Lee ‘Scratch’ Perry no Haus zur Liebe (Suíça), em 2018; nas páginas anteriores, vista do estúdio Black Ark, em Kingston, Jamaica
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FOTOS: CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO E SUNS.WORKS
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FOTOS: CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO E SWISS INSTITUTE NEW YORK
(R)EVOLUÇÃO DE UM ESTILO
Resistência e repetição são fundamentais à obra musical de Lee “Scratch” Perry. O artista de 85 anos é um dos mais importantes nomes da música jamaicana, toda ela muito baseada na hipnose de poucos acordes que resistem e se repetem para criar o transe que envolve o ouvinte. Foi produtor da banda The Wailers (que revelou Bob Marley e Peter Tosh ao mundo) nos anos 1960 e consagrou-se também como um dos inventores do gênero dub – uma variante do reggae, normalmente mais lenta, com efeitos sonoros como ecos e delays, que mais tarde se tornaram fundamentais na gênese do rap e de diversos estilos da música eletrônica. Assina a produção de alguns álbuns indispensáveis à discoteca básica do reggae, como War Inna Babylon (Max Romeo & The Upsetters, 1976), Police and Thieves (Junior Murvin, 1977) e Heart of the Congos (The Congos, 1977). As precariedades dos estúdios de gravação da Jamaica nos anos 1960 e 1970 o instigaram a buscar soluções criativas com os equipamentos que tinha à disposição. Foi assim que desenvolveu técnicas de manipulação do som que caracterizam o dub, uma improvável revolução eletrônica no reggae que, até então, era sustentado pela habilidade dos músicos com seus respectivos instrumentos. Perry percebe o potencial de invenção que havia na distorção de timbres, na criação de algo novo a partir de bases pré-gravadas, no efeito viajante com o uso e abuso de ecos nas vozes e na saturação das notas graves do baixo. O produtor torna-se, assim, protagonista da composição e artista da linha de frente da (r)evolução de um estilo musical. Com rebeldia e improviso, contribuiu para que a malemolência caribenha se infiltrasse e se estabelecesse no mainstream primeiromundista – em geral pouco aberto aos fenômenos da cultura pop surgidos fora dos Estados Unidos e da Europa. Se a obra musical do artista caribenho, reconhecido como figura-chave para a compreensão da genealogia do reggae, pode ser pouco conhecida de grande parte do público, o trabalho visual é ainda menos. As fotografias que mostram seu estúdio nos anos 1970, o conceituado Black Ark, registram algo que se tornaria notável em suas instalações e colagens. Perry trabalhava em meio a um caos de emaranhado de cabos e equipamentos com uma série de imagens e rabiscos que decoravam as paredes. A estética da colagem – que guia tanto os processos criativos do dub como essa ambientação conceitual do seu local de trabalho – aparece também em sua incursão pelas artes visuais, a partir do fim dos anos 1990.
Laptop from Black Ark (2012)
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ESTÉTICA SINCRÉTICA
“A obra visual dele tem um sincretismo, que junta elementos que vêm de âmbitos diferentes. Os desenhos e as escritas, em uma esfera quase mítica, remetem à história de que ele teria coberto as paredes de seu estúdio com frases místicas e delirantes. É um trabalho que carrega a mesma ideia de sobrepor e remixar a partir da justaposição. É um modus operandi muito conhecido no dub e na produção musical dele”, observa Visconti, que relaciona esse processo criativo tanto com os métodos de outros dois nomes do elenco desta Bienal – o angolano Paulo Kapela (morto em 2020, vítima da Covid-19) e do grupo teatral peruano Yuyachkani – quanto com as dinâmicas da curadoria para agrupamento de obras segundo os enunciados e não por temas fechados e explícitos. “É muito próximo ao que Kapela fazia: instalações que podem remeter a altares e à presença religiosa sincrética muito forte. O caso do Yuyachkani é parecido: eles têm lidado de forma direta com a situação política no Peru e as instalações do grupo que a gente vai ter na exposição também justapõem e criam fricções entre objetos que vêm de lugares diferentes. Esse procedimento de se apropriar de algo e transformar a partir de justaposições, em esferas distintas e com resultados estéticos distintos, é próximo de como a gente concebeu a exposição. Esses artistas são quase uma metonímia do processo de construção desta Bienal”, pontua. A relação entre resistência e sonoridade aparece em outros trabalhos da mostra. A abertura do evento, em fevereiro do ano passado, teve show do sul-africano Neo Muyanga, que apresentou a performance Maze in Grace, que se inspira na canção Amazing Grace, hino da luta abolicionista, composta em 1772 pelo inglês John Newton. Já a instalação do jordaniano Lawrence Abu Hamdan investiga qual seria o som de um soco, a partir de depoimentos de ex-prisioneiros torturados na Síria. “A música é algo recorrente, mas ela nunca chega a se impor sobre o resto. Ela vai meio que por baixo influenciando a exposição como um todo”, resume o curador-geral.
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FOTO: ADRIAN BOOT/URBANIMAGE MEDIA
O PRODUTOR TORNASE PROTAGONISTA DA COMPOSIÇÃO E ARTISTA DA LINHA DE FRENTE 141 DA (R)EVOLUÇÃO DE UM ESTILO MUSICAL, CONTRIBUINDO PARA QUE A MALEMOLÊNCIA CARIBENHA SE INFILTRASSE E SE ESTABELECESSE NO MAINSTREAM PRIMEIROMUNDISTA
Lee “Scratch” Perry em seu estúdio, em 1978
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FORMAÇÃO DE 58
Fotovaral da Fotoativa, instalado no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, durante o Fórum Global ECO 92 VOL. 10 / N. 51
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T E X T O E F O T O S M I G U E L C H I K AO K A
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Em 1982, com o objetivo de promover o reconhecimento entre praticantes da fotografia no estado, o Fotoficina implementa o projeto Fotopará – Mostra Paraense de Fotografia. Com base numa ampla convocatória, o processo seletivo dessa mostra foi confiado a uma comissão composta de personalidades atuantes nos campos da cultura e da arte em geral, mas, predominantemente, não fotógrafos, e os trabalhos não selecionados foram colocados na galeria na forma de álbum, para propiciar a leitura do que foi enviado ppor todos os participantes. Por fim, para problematizar os limites do regulamento da mostra e do acesso à galeria, o encerramento é marcado por um ato de retirada das fotografias para fora do local, usando como suportes varais estendidos entre a galeria e o Bar do Parque. Atendendo ao convite feito no anúncio, o varal ainda recebeu a adesão de pessoas motivadas a mostrar seus trabalhos. Esse evento marca a apresentação “oficial” do Fotovaral, enquanto dispositivo autônomo e agregador de ações nos mais diferentes contextos.
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AO CHEGAR EM BELÉM, EM 1980, DECIDIDO A ATUAR COMO REPÓRTER FOTOGRÁFICO NO EMBALO DO FOTOJORNALISMO INDEPENDENTE, ADENTRO NA CENA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS ORGANIZADOS EM TORNO DAS LUTAS PELO FIM DA DITADURA E DO RESTABELECIMENTO DO REGIME DEMOCRÁTICO.
Nesse contexto cruzo com artistas de várias linguagens, que me conduzem ao lugar de encontro de ativistas dos movimentos políticos e culturais emergentes, na Praça da República, demarcado pelo corredor que liga o Anfiteatro, o Teatro Waldemar Henrique, o Bar do Parque e o Teatro da Paz. Entrego-me de corpo e alma à vivência nessa cena plural e, entre tantos atores, encontro o Grupo Ajir, um coletivo de artistas e arte educadores afinados com a luta pela liberdade de expressão e por uma educação transformadora. Além de fotografar as ações do grupo nos espaços públicos, passo a integrá-las, participando com mostras de fotografias usando o varal como dispositivo de exposição. Desse convívio surge o convite para ministrar uma oficina de iniciação à fotografia na Escola de Arte Ajir, sede do Grupo. Desafiado, conduzi a oficina mesclando pensamentos libertários de filósofos e educadores, como Raoul Vaneigem e Paulo Freire, ao meu processo de iniciação, vivenciado num fotoclube de universitários em Nancy, na França, onde residi antes de me mudar para Belém. Ao final dessa oficina, motivados pela reflexão crítica sobre o fazer fotográfico, os participantes resolvem organizar-se para promover trocas e reflexões, convidando fotógrafos que já atuavam na cena local. Nasce então o Grupo Fotoficina, embrião de um movimento que potencializa o desenvolvimento da fotografia na cena cultural paraense ao longo dos anos. VOL. 10 / N. 51
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24 HORAS DE FOTOGRAFIA
Na última edição da Mostra Fotopará, realizada em 1984, surge o Grupo Fotopará, que passa a atuar efetivamente, a partir de 1985, com a Jornada de Fotografia 24 Horas de Belém, na qual a cidade é “revelada” nas suas 24 horas, através de olhares dos fotógrafos. No ano seguinte tem início o projeto Autografias, que consistia na apresentação pública de leituras sobre a vida e a obra de fotógrafos clássicos escolhidos e pesquisados por integrantes do grupo e convidados. Entrementes, o Fotoficina continuou ativo com seu Núcleo de Oficinas, denominado Fotoativa, e o Projeto Fotoativa Cidade Velha, desenvolvido por meio de ações integradas com foco na valorização do patrimônio cultural e urbanístico do bairro da Cidade Velha. Aqui cabe lembrar que, no fim dos anos 1970 e início dos 1980, foram criados o Núcleo de Fotografia da Funarte, as Uniões de Fotógrafos de São Paulo e Brasília, as Agências de Fotógrafos Independentes, como Agil, em Brasília, e F4, em São Paulo. Um “fluxograma de ações” do Fotoficina, desenhado em 1983, indica que seus movimentos e projetos tinham como foco temas amplos, como mercado, direitos autorais, educação, pesquisa e memória, e eram planejados estrategicamente, levando em conta o cenário regional e nacional. A presença nas Semanas Nacionais de Fotografia (SNF), promovidas pela Funarte, sinaliza como o movimento fotográfico paraense articulou conexões que potencializaram seu reconhecimento. Esse protagonismo continuou nas edições seguintes das SNF, produzindo um amplo leque de fluxos que impulsionaram o prestígio do fazer fotográfico paraense na cena nacional e internacional.
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Ato público do Movimento pelo Direito de Morar, na Praça Dom Pedro II, Belém, em 1981
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Em sentido horário, a partir do alto, Eduardo Kalif na V Semana Nacional de Fotografia, Curitiba, 1986; fotovaral do Grupo Fotoficina no Dia da Consciência Negra, na Praça da República, Belém, 1982; e o fotovaral do Projeto Arte na Praça do Grupo Ajir, Belém, 1982 VOL. 10 / N. 51
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Em sentido horário, a partir do alto, fotoperformance Contatos Imediatos, de Abdias Pinheiro, na VI Semana Nacional de Fotografia da Funarte, Ouro Preto, 1987; fotovaral da Fotoativa no Fórum Global ECO 92; e o fotovaral do Projeto Fotoativa Cidade Velha do Grupo Fotoficina, na Praça do Carmo, Belém, 1985
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No alto, reunião preparatória da comissão de fotógrafos paraenses para a IV Semana Nacional de Fotografia da Funarte, no MIS Belém, 1985; à direita, Elza Lima na Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, na VI Semana Nacional de Fotografia da Funarte, 1986; e, acima, fotógrafos paraenses na VI Semana Nacional de Fotografia da Funarte, Ouro Preto, 1987 VOL. 10 / N. 51
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FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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UMA CIDA Fotovaral da Fotoativa, instalado no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, durante o Fórum Global ECO 92
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O PARTE, 151
TEXTO E FOTOS MIGUEL
MONTAGE M DO GRUPO FRÊM IT O DE TE ATRO DISCUT E CONT RADIÇÕES E MOD OS DE V IDA A PART IR DE ARQU E O L OGIA DOCUM EN T AL DA C H I K AO K A SE RRA DO N AV IO, N O AMAPÁ
ADE FICA DENISE SCHNYDER N A T R AJET Ó RI A D E U M FOTOJORNAL IST A, O EM BRIÃO
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Nestas e nas páginas anteriores, imagens utilizadas no processo de pesquisa do Grupo Frêmito de Teatro documentam a vida na cidade de Serra do Navio, no Amapá, e o impacto gerado pela exploração de manganés, em ciclo econômico que buscou transformar indígenas e caboclos em operários e consumidores
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PERCEBE AQUELA SERRA GRANDE, EM FORMATO DE NAVIO? Foi ali que tudo começou. Foi lá, no meio do
território do Amapá, na Floresta Amazônica, que, na década de 1940, um caboclo encontrou uma pedra cinzenta. A descoberta de uma imensa quantidade de manganês fez tudo mudar. A mineradora chegou, a cidade operária inteira se ergueu. Uma miragem de cidade. Um oásis construído, enquanto a visão do navio ia se apagando aos poucos no horizonte e avançava o come-terra da mineradora, que depositava manganês contaminado no solo. O legado para a região: inúmeros casos de intoxicação crônica por arsênio. A Serra do Navio é um vulto de vida e morte que atravessa a biografia amapaense. Como lembrança, revisão e denúncia, o Grupo Frêmito de Teatro, de Macapá, desenterra essa narrativa, com todas as suas contradições. O Grupo Frêmito faz parte de uma nova leva de artistas do Amapá que lutam para superar o contexto de precariedade e marginalidade que é produzir arte nas periferias do Brasil. Estes jovens artistas trazem contrapontos necessários para uma cena artística amazônica que, superando o regional e o folclórico, mobiliza identidades, potências, dilemas e as crises de quem navega entre ruas, pontes, rios, asfaltos e
matas, no século 21. “Somos uma microtrupe composta de corpos amazônicos, mestiços e dissidentes que dedicam suas vidas pro teatro”, diz Otávio Oscar, produtor, diretor e fundador do Frêmito, juntamo com os atores Raphael Brito e Wellington Dias. O grupo iniciou em 2017 com o espetáculo Lugar da Chuva, nome que dizem ser a tradução da palavra Ama’pá. “O nosso foco nesses primeiros anos de trabalho está sendo de retomada, de resgate. Estamos mergulhando em um processo urgente de ‘dessalgar’ a subjetividade colonial desse teatro eurocêntrico e sudestino que aprendemos nas universidades”, diz o diretor macapaense, formado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. O procedimento de construção do espetáculo partiu do objetivo de Oscar de revisitar a história da cidade de Serra do Navio, onde sua mãe nasceu. “É um legado contraditório que acabei herdando”, diz à seLecT. Mas não foi só a vida do diretor que acabou impactada por esse episódio. De acordo com ele, foi no ciclo do manganês, por meio dos lucros e impactos gerados por essa mineradora, que o Amapá ganhou aos poucos uma identidade própria enquanto estado, se separando do Pará, se modernizando e se urbanizando.
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OS CABOCLOS SOMOS NÓS
Na primeira etapa de desenvolvimento da peça, o grupo mergulhou em uma arqueologia documental, coletando objetos de memória e registros encontrados na internet, como textos, depoimentos, fotos, vídeos, reportagens e pesquisas acadêmicas sobre o episódio. Iniciativa adotada por muitos grupos para ter um primeiro feedback do público, a primeira abertura de processo foi nomeada pelo grupo como Serra do Navio (Canteiro de Obras) e realizada por videoconferência. A abertura teve participação da atriz convidada Carla Thaís e narrações da cineasta Rayane Penha, enquanto os dois atores se revezavam nas telas entre frames e imagens documentais. As quatro vozes narram o episódio por diferentes perspectivas. A imagem idílica de uma cidade cenográfica é construída conforme a obra avança. Em determinada cena, a música Vida Boa, do amapaense Zé Miguel, atravessa o espectador. Um portal parece se abrir para a utopia de um outro modo de vida possível em Serra do Navio. Que momentos foram vividos nesse lugar? O que sobrou da história oficial? O que sobrou da vida que margeou essa cidade fantasma? E quem são os caboclos se não nós mesmos? Essas são algumas das perguntas levantadas no espetáculo, onde tudo corre para um desfecho que aponta a urgência por um outro modo de vida. A narrativa envolvente, assustadora e simbólica mantém o encanto da cena, mesmo mediada pelo streaming.
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Para o Grupo Frêmito, Serra do Navio fez parte de um empreendimento intencional de mutação da subjetividade amazônica. Em sua lógica organizacional, a cidade construída pela empresa buscava transformar indígenas e caboclos em operários e consumidores – ou simplesmente em pobres –, reprogramando existências, entendendo a natureza como um recurso a ser explorado e não como um lugar de pertencimento para o ser humano. “Em nossa visão (a questão dos modos de vida) é central. É isso que vai definir o futuro das florestas, dos rios e das comunidades amazônicas”, diz o diretor. Depois de Serra do Navio (Canteiro de Obras), o grupo volta para a sala de ensaio. “Partimos para a escuta dos exmoradores, ex-funcionários, pessoas afetadas, descendentes e moradores atuais da cidade, mergulhando nas histórias orais e nessas micronarrativas que orbitam em torno da história maior”, diz Oscar. O grupo também planeja uma vivência in loco em Serra do Navio, uma arqueologia emocional e concreta em busca de evidências e rastros do ciclo do manganês. “A experiência do documento bruto revelou-se muito dura para a poética cênica. Surgiu esse desejo por mais estados líquidos, líricos e fluviais”, completa. É que na distópica paisagem da Serra do Navio, as crateras deixadas pela exploração do minério podem transmutar-se em grandes lagos para a imaginação. Atores da peça Serra do Navio (Canteiro de Obras), transmitida por videoconferência
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R E P O R TA G E M
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Entregadores Antifascistas fazem o delivery das quentinhas de domingo, no projeto Lute Como Quem Cuida, da Cozinha Ocupação, Centro de São Paulo
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ARTE-EM
MERGÊNCIA
L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O Eyyyyyyyyyyygica, Eddddddddddalif nxxxxxxxxxxx
AG EN TE S D AS VI SU AI S C OL OCAM EM CAMPO AÇÕES EM ERGENCI A I S V O L TAD AS A ARTI STAS E À POPUL AÇÃO AT INGIDA PEL A PANDE M I A FOTO: EDOUARD FRAIPONT
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Ilustração com imagens de Pisco Del Gaiso, Daniele Queiroz, Carol Quintanilha, Amanda Perobelli, Leo Caobelli, Danilo Arenas, Victor Moriyama, Guto Garrote, Grasi Barbaresco, Murilo Salazar, Índio, Joelington Rios e Georgia Niara (em ordem cronológica), do projeto 150 Fotos para São Paulo e 150 Fotos pela Bahia
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FOME DE QUÊ? A HISTÓRIA É RECENTE E CONHECIDA. MAL COMEÇOU 2020 E AS DIFICULDADES ECONÔMICAS DO PAÍS FORAM AO LIMITE: CHEGAVA AO BRASIL O CORONAVÍRUS. Com
a necessidade de isolamento social, o meio cultural, que já tivera seu ministério rebaixado a secretaria, teve de deixar o palco. Museus e galerias fecharam as portas de suas mostras no lockdown. A crise sanitária e econômica sem precedentes nos últimos cem anos levou muitos ao desespero – e artistas e agentes do meio cultural à ação. De instituições privadas e públicas a coletivos e espaços independentes, iniciativas sociais espalharam-se pelo país. Grandes instituições, como Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles e diferentes Sescs pelo Brasil, quase imediatamente criaram editais voltados para múltiplas vertentes artísticas. Destinados à exibição na internet, fosse nas redes sociais ou por streaming, os produtos dessas chamadas buscavam suprir a abstinência de programação em casa e abrir possibilidades de expansão de público e criação de conteúdos on-line. “Diante do cenário que a pandemia pintou para a classe artística e os profissionais da cultura, com o fechamento de cinemas, casas de espetáculo e museus, o Itaú Cultural procurou agir rapidamente. Três semanas depois do início da suspensão social, lançamos Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência, por meio do site, para acolher e abrir frentes de trabalho”, diz Eduardo Saron, diretor da instituição, à seLecT. Com prêmios no valor de R$ 3 mil, a iniciativa teve 1.100 projetos contemplados e exibidos on-line. O Instituto Moreira Salles criou o #Quarentena, com um braço que vem convidando artistas a produzir especialmente para seu site, como forma de incentivar a produção, que já apresentou obras de nomes como Grace Passô e Denilson Baniwa. Já o Sesc lançou o edital Poti-Cultural, no Rio Grande do Norte, que teve duas edições no ano passado, premiando e exibindo ao todo 80 trabalhos digitais. VOL. 10 / N. 51
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Depois, começaram a surgir no Instagram campanhas de doação de obras revertidas em auxílio monetário e alimentos para a população carente. Uma das pioneiras foi a #ArtChallengeCestou. “O Eduardo Lyra, da ONG Gerando Falcões, fazia toda sexta-feira um post chamando as pessoas a doarem cestas básicas, com a #Cestou”, diz a artista Graziella Pinto. “Ele me convidou a participar, e como eu tinha um trabalho lindo parado no ateliê, resolvi vendêlo e doar o dinheiro para o projeto. Aí me veio a ideia de desafiar outros cinco artistas a fazerem doações, incluindo Sandra Cinto e Albano Afonso. Eles aceitaram na hora e começaram a chamar outros nomes, e viralizou”, completa a artista, organizadora da empreitada que arrecadou mais de R$ 400 mil com a venda de obras. Além da Gerando Falcões, o projeto ajudou também artistas necessitados, que tinham a opção de resgatar até 50% do valor da venda, doando a outra parte para a ONG. Na mesma pegada, campanhas como 150 Fotos para São Paulo e 150 Fotos pela Bahia venderam imagens a preços camaradas para a compra de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade nesses estados. Fotos para Rondônia destina sua verba líquida “à articulação de suporte ao enfrentamento à Covid-19 pelos povos indígenas de Rondônia, sul do Amazonas e noroeste de Mato Grosso”, como diz o site do projeto. Da parte das galerias, espaços de pequeno e médio porte de vários estados uniram-se no projeto P.ART.ILHA, que teve cinco edições desde abril de 2020. Nelas, quem comprar um trabalho ganha 50% do valor para adquirir outra obra na mesma galeria, ajudando a aquecer o mercado. Parte das vendas é destinada a uma ONG diferente a cada edição. “É uma ação que surgiu com o objetivo de auxiliar e apoiar o setor e acabou por introduzir uma mudança de paradigma nas relações do mercado de arte: galerias de vários estados do Brasil trabalhando de mãos dadas, com um objetivo único”, diz Niura Borges, dona da Mamute. FOTOS: DIVULGAÇÃO
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AÇÕES NO TERRITÓRIO
Outro exemplo é o Fundo Colaborativo para Artistas e Criadores, que se apropria da expertise de seis espaços independentes para enviar recursos para artistas de todo o país. “A pergunta que nos levou a criar o Fundo foi: ‘O que podem fazer as instituições de arte diante de situações extremas como uma pandemia?’ Espaços autônomos trabalham próximos aos artistas, o que nos torna lugares de experimentação, pesquisa, troca, aprendizado. Trabalhamos em rede naturalmente”, diz Bernardo Mosqueira, diretor artístico do Solar dos Abacaxis (RJ), à seLecT. A primeira iniciativa do Fundo é o Brotar, programa que começou com a seleção de seis artistas, como Letícia Barbosa (Carnaíba, PE) e Sallisa Rosa (Goiânia). Eles recebem R$ 800, são divulgados no Instagram do projeto e indicam outros seis artistas, até chegar ao total de 36 contemplados. Além do Solar, integram o Fundo o Chão SLZ (São Luís), Galeria Maumau (Recife), JA.CA (BH), Pivô (São Paulo) e Casa do Povo (São Paulo). Se já era ativa antes da pandemia, esta última intensificou ainda mais suas iniciativas em diversas frentes, que vão desde a distribuição de alimentos frescos à população de seu entorno, o bairro do Bom Retiro (SP), até informações para obtenção do auxílio emergencial e produção e VOL. 10 / N. 51
distribuição de máscaras. “Desde abril de 2020, a Casa do Povo deu uma guinada para priorizar ações no território. Reafirmamos nossa vocação como instituição aberta ao bairro e passamos a escutar melhor o que os nossos vizinhos precisavam para nos tornar mais úteis. Acabou sendo uma oportunidade para formar uma rede de solidariedade com as organizações culturais e sociais dos arredores, comerciantes e moradores. Isso dificilmente teria acontecido com essa potência não fossem essas trágicas circunstâncias”, explica a organização do espaço, que reafirma sua vocação coletiva e social no trabalho com parceiros como Lanchonete<>Lanchonete (RJ), Jamac (SP) e Ocupação 9 de Julho, que também aumentou o ritmo durante a pandemia. A Cozinha Ocupação fazia um almoço mensal com insumos orgânicos de produtores locais. Com a pandemia, passou a ser semanal. Todo domingo um chef é convidado para cozinhar e trocar seus saberes com a equipe de moradorxs militantes que forma a Cozinha Ocupação 9 de Julho. “Hoje, nos almoços de domingo, são produzidas cerca de 600 quentinhas por semana, das quais 200 são oferecidas pelo delivery dos Entregadores Antifascistas, ao valor de R$ 30 cada, o que viabiliza a doação das outras 400 para os moradores das ocupações e das comunidades periféricas parceiras”, conta o coletivo à seLecT.
JUL/AGO/SET 2021 FOTO: ROBSON GONZAGA
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O projeto Cesta Aberta, da Casa do Povo, promoveu a distribuição de alimentos frescos à população do entorno, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo
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À dir., acima, o projeto Cesta Aberta, da Casa do Povo; à dir., cozinheiros da Cozinha Ocupação
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NO FLUXO
Um epicentro da atuação de diversos coletivos artísticos é a Cracolândia, região no entorno da Estação da Luz onde vive um aglomerado da população de rua consumidora de crack, o chamado fluxo. Experimentado na redução de danos na região e trabalhando no terceiro setor há 15 anos, o artista Raphael Escobar teve de repensar estratégias junto aos coletivos com os quais trabalha, como o Tem Sentimento, de costureiras cis e trans, e a Cia. Mungunzá de Teatro, entre muitos outros. “Logo que a pandemia começou, primeiro nos isolamos, pelo medo de contaminar o pessoal da rua. Mas, com o tempo, vimos que precisaríamos voltar a agir”, diz Escobar. Além da distribuição de quentinhas, os agentes da região passaram a distribuir os materiais de prevenção à Covid-19, com máscaras confeccionadas pelo Tem Sentimento. Todo o trabalho é remunerado, seja com verba pública, doações ou parcerias com instituições da região, como o Sesc Bom Retiro e o Museu da Língua Portuguesa, “menos a Pinacoteca e o Memorial da Resistência, que nunca se ofereceram para nenhuma atividade”, conta Escobar. “A gente busca uma economia solidária, com todo mundo recebendo pelo trabalho que faz, e todos os trabalhos são feitos pelos coletivos da região”, continua o artista. Para garantir uma renda mais consistente a cada seis meses, o artista juntouse a outros 40 nomes, que vão de Renata Felinto a Dentinho e Jaick MC, no coletivo Birico, que vende impressões fine art de obras produzidas por seus integrantes. No momento atual, os coletivos e espaços independentes são aqueles que mantêm viva a rede de solidariedade, e o P.ART. ILHA é das poucas iniciativas encampadas por galerias e ainda em curso. O #ArtChallengeCestou prossegue, mas num ritmo mais lento. As instituições voltaram à política anterior de editais, mais esporádicos. “Parece que, no início da pandemia, muitas doações foram feitas como forma de aplacar uma culpa burguesa, e depois o pessoal esqueceu”, diz Raphael Escobar. No âmbito público, a Lei Aldir Blanc destinou R$ 3 bilhões para agentes de cultura de todo o Brasil, mas de forma ultrapulverizada, abarcando tanto o auxílio emergencial para trabalhadores da cultura quanto o subsídio a projetos e instituições. Para a Casa do Povo, “talvez a pergunta seja menos ‘quem’ precisa se colocar mais para que o auxílio à população seja ampliado, mas ‘como’ cada instituição de arte – e não só de arte – pode, dentro dos seus propósitos e da sua missão, colaborar de alguma forma”. Tempos difíceis pedem mobilização.
FOTOS: ROBSON GONZAGA, CAMILA SVENSON, EDOUARD FRAIPONT
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RE C OPMOURNTA I CG AEÇM ÃO
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JORNALISMO DE COMBATE: ATÉ O ÚLTIMO GUERREIRO
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Protesto contra o PL-490 em ocupação que a comunidade Guarani da Terra Indígena do Jaraguá realizou no Pico do Jaraguá no fim de junho
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J U L I A N A M O N AC H E S I E PA U L A A L Z U G A R AY
A ECOL OGIA M IDIÁT ICA DA AM AZÔN IA E DA S COMUN IDADES IN DÍGENAS DE N ORT E A S U L
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FOTO: ELINEUDO MEIRA/IG MÍDIA GUARANI MBYA
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Flyer de abertura do site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil; na página ao lado, infográfico da Amazônia Real mostra a “quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970”
O GUERREIRO GUARANI PROTESTA, EM REDE NACIONAL, CONTRA A MOTOCIATA DO EX-CAPITÃO-ATUALPRESIDENTE-FUTURO-RÉU: “ESTAMOS NESTE MOMENTO PEDINDO AJUDA E APOIO. A polícia ameaçou entrar aqui
na aldeia por causa do protesto que nós fizemos contra a passeata da boiada do B•\£•#?\•, dos racistas do B•\£•#?\•. Estão querendo entrar na aldeia, estão ameaçando, mas, se entrar aqui, nós vamos morrer, podemos perder a vida, podemos ser presos, mas não vamos deixar barato; se entrar aqui, vai ter confronto, não vamos deixar, porque aqui nós somos guerreiros. A terra é nossa. Nossa terra foi cortada no meio pela Bandeirantes, por uma rodovia que ainda por cima tem esse nome! Nome de genocida! Se entrar aqui na aldeia, a gente vai resistir até o último guerreiro, certo?”, encerra a transmissão Wera Trap Guarani, já dirigindo a sua fala à aldeia, não mais à câmera. O grito é ouvido em tempo real e, em seguida, multiplicado em redes nacionais paralelas. A mídia utilizada por Wera é um perfil de Instagram, e as emissoras retransmissoras são outros perfis de Instagram. A notícia alastra-se como fogo, e 13 dias depois os Guarani-Mbya e Nhandeva da Terra Indígena Jaraguá, na Zona Noroeste de São Paulo, ateiam fogo na mesma Bandeirantes, bloqueando a rodovia, desta vez em protesto contra o PL-490/2007. O público da @midiaindia, da @midiaguaranimbya e de todos os canais que reproduzem novamente o conteúdo, VOL. 10 / N. 51
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toma conhecimento do novo protesto. Em duas semanas, multiplica-se exponencialmente o que começou como uma nanoaudiência. E isto é só o começo. A repercussão também é extensa entre os veículos da chamada grande mídia que noticiam o bloqueio. Mas a questão é justamente essa: apenas noticiam o bloqueio. É claro que não se podia esperar mais da Agência Brasil, mídia oficial do governo, além de reportar as barreiras de fogo, os pneus queimados, o tumulto, o congestionamento e o horário em que a rodovia foi liberada. Porém, outros veículos tradicionais, ainda que não se esquivassem de instruir o leitor sobre o principal motivo do protesto – a validação no STF de um critério jurídico que limita a demarcação de territórios dos povos originários, a partir de um marco temporal – e de apontar outro fator crítico envolvido – a disputa da família do novo ministro do Meio Ambiente pela posse da Terra Indígena do Jaraguá –, não demonstram interesse em enfatizar questões de fundo. Como o fato de que os Guaranis-Mbya possuem a menor terra indígena do Brasil e que o processo de demarcação de suas terras pode ser completamente revogado com o PL-490. Os fatos veiculados são soterrados pelas notícias do dia seguinte, sem aprofundar o que importa: o uso de ferramentas jurídicas para a perpetuação de uma política de genocídio aos povos indígenas.
FOTOS: REPRODUÇÃO/APIB E AMAZÔNIA REAL
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JORNALISMO CIDADÃO
Não ao Marco Temporal, a Nossa História Não Começa em 1988, campanha do Mídia Índia Oficial
É justamente diante da percepção da falta de interesse por parte da grande imprensa sobre temas relacionados aos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e defensores ambientais, sobretudo no Norte do país, que as jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias criaram a agência de notícias Amazônia Real, em 2014. Para garantir às comunidades tradicionais maior acesso à mídia (como leitores e como assunto das reportagens), a agência criou uma pequena rede de jornalistas remunerados por meio de bolsas de escrita e fotografia nos estados do Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Pará e Tocantins. Hoje, a Amazônia Real conta com mais de 40 profissionais em sua rede, o que possibilita coberturas de fôlego, como a série Ouro do Sangue Yanomami, sobre a extração ilegal de ouro na terra indígena de Roraima, que reúne reportagens, denúncias e registros em fotografia e vídeo alarmantes da devastação pelo garimpo criminoso nesta que denominam de a “quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970”, que envolve poderosas joalherias. A agência alinha-se à lógica de outras publicações independentes da Amazônia, como O Boto, que funciona como um site comunitário, sediado em Alter do Chão, no sudeste do Pará, reunindo e respostando notícias locais produzidas por uma rede de colaboradores que inclui jornalistas independentes, jornalistas antifascistas e entidades de grupo como o Comitê Popular de Santarém. O site possui ainda um “banco de pautas”, uma espécie de reunião de pauta digital, para conversas sobre assuntos que podem virar reportagens investigativas, ensaios e perfis biográficos. “De revoluções que se iniciaram pela internet (Primavera Árabe) a movimentos que cresceram muito através dela (Junho de 2013), a etapa em que vivemos está marcada pela comunicação instantânea”, anotam os editores do portal/ jornal Balaiada, cujo título homenageia a Revolta dos Balaios, movimento de escravos e sertanejos no Maranhão do século 19 contra a exploração das oligarquias do Norte e Nordeste. “A partir da necessidade de construir uma ferramenta que realmente democratize as lutas e divergências das diferentes organizações de esquerda, dos movimentos sociais do campo e da cidade, sindicais, estudantis e de combate às opressões, é que decidimos organizar um portal que cumpra esse papel.” O projeto editorial prevê a cobertura dos fatos cotidianos a partir da visão de explorados, oprimidos e de uma esquerda revolucionária, convocando a todos a construir “um jornal classista, combativo e independente das empresas e dos patrões”. FOTO: SCOTT HILL E PABLO ALBARENGA/MÍDIA ÍNDIA OFICIAL
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COMUNIDADE DIGITAL
“Nossa história não começa em 1988” é a mensagem da campanha da @midiaindia nas redes sociais contra o PL-490. O @midiaindia, projeto de comunicação formado por jovens indígenas da comunidade APIB, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que também mantém perfil no Instagram, ganhou visibilidade com postagens de relevância política e humanitária. Sua principal demanda é “demarcação, desintrusão e proteção das terras indígenas”, e a APIB sublinha, entre seus objetivos estratégicos, o desenvolvimento de um “Programa de Informação e Comunicação sobre a realidade dos direitos indígenas, junto às bases do movimento indígena, o Estado e a opinião pública nacional e internacional”. O movimento indígena também comunica suas pautas e demandas em perfis como @midiaguaranimbya (da comunidade Guarani-Mbya), @342amazonia e @casaninjaamazonia, que têm divulgado fatos que passam ao largo da grande imprensa e seus desdobramentos, como os ataques de garimpeiros a comunidades Yanomami em Palimiú, em Roraima, e ao povo Munduruku, no Pará; o Levante Pela Terra, que levou representantes de 40 povos indígenas a Brasília, em junho, para protestar contra a votação do PL-490, que quer ressuscitar a ideia de “marco temporal” para definição da propriedade de reservas indígenas, restringindo o direito à terra apenas às comunidades que tivessem a posse garantida na data de promulgação da Constituição de 1988, invalidando todos os processos de demarcação posteriores.
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Manifestação dos Guarani da Terra Indígena do Jaraguá interdita a Rodovia dos Bandeirantes no dia 25/6, data em que estava em pauta em Brasília o PL-490
FOTOS: RAFAEL VILELA / MÍDIA NINJA
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Selo da série de reportagens da Amazônia Real sobre o caminho do ouro. Na página ao lado, capa do número 3 do Jornal Pessoal
UM PRECURSOR
Na primeira quinzena de setembro de 1987, a manchete: “Um crime bem planejado”, na primeira edição do Jornal Pessoal, uma experiência-solo do jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto, que à época do crime trabalhava na redação de O Liberal e como correspondente de O Estado de S. Paulo em Belém do Pará. A vítima: um ex-deputado, advogado fundiário, defensor de posseiros e “o mais combativo dos representantes da esquerda”, diz o texto da primeira página. O fato: o “Caso Fonteles”, um crime envolvendo milicianos, ruralistas e pecuaristas como mandantes, poderia perfeitamente ter ocorrido hoje, sob a prática de acobertamento de crimes ambientais implantada pelo ex-ministro Ricardo Salles. O Jornal Pessoal foi lançado em resposta à falta de espaço na grande mídia para a publicação de reportagens investigativas. Censura e violência foram os principais eixos de investigação do semanário, que circulou durante 32 anos – entre 1987 e 2019 –, com tiragem de 2 mil exemplares. “Quando surgiram os blogs, e eu não tinha um, fui homenageado por fundar um blog pioneiro... impresso em papel”,
diz Lúcio Flávio à seLecT. “O Pessoal nunca aceitou publicidade nem subsídios. Vivia da venda avulsa em bancas e livrarias. Fui processado 34 vezes na Justiça. Nenhum dos autores dessas ações tentou se defender pelo direito de resposta. Sempre publiquei as cartas dos leitores, na íntegra, inclusive as ofensivas. E 19 ações foram propostas pelos irmãos Rômulo Maiorana Jr., Ronaldo Maiorana e Rosângela Maiorana. Foram 15 pelos dois primeiros, depois que Ronaldo me agrediu fisicamente, juntamente com dois PMs que atuavam como seguranças dele. Portanto, é publicação mais do que alternativa”, desabafa Lúcio. Depois de outras publicações alternativas, como o Informe Amazônico e o Bandeira 3, o jornalista estabeleceu, finalmente, um blog homônimo, definido como “a agenda amazônica de um jornalismo de combate”. Mas seu Jornal Pessoal é considerado entre as mais importantes e longevas experiências alternativas do jornalismo amazônico, tendo contribuído para abrir caminho à diversidade da ecologia midiática amazônica e indígena contemporânea. FOTOS: CORTESIA LÚCIO FLÁVIO PINTO E AMAZÔNIA REAL
P R OJ E T O
#FLORESTAPROTESTA PALAVRAS SÃO ATOS DE RESISTÊNCIA NA OBRA GRÁFICA DE GUTO LACAZ E EM SEU CARTAZ-MANIFESTO PARA O PROJETO DE ATIVISMO AMBIENTAL DA SELECT
GUTO LACAZ É UM ARTISTA QUE ELABORA E EXERCITA A IDEIA DO HUMOR COMO ATO DE RESISTÊNCIA. MÍDIA, CONSUMO, POLÍTICA E MUITAS OUTRAS QUESTÕES DELICADAS E COMPLICADAS NÃO PASSAM INCÓLUMES PELA PONTA DE SEU LÁPIS, GANHANDO INTERPRETAÇÕES ÁCIDAS, VORAZES E DIVERTIDAS.
O cartaz é a plataforma que acolhe com generosidade todo o alfabeto gráfico de Lacaz, composto de logotipos, ilustrações, tipografia etc. Adepto da gráfica como “nobre ofício”, o artista coleciona referências que vão da Bauhaus à gráfica popular, como cartões comerciais, catálogos, bulas, panfletos, tíquetes, postais, cartas de baralho etc. Sua poética perpassa então o vasto universo da efêmera – qualquer matéria impressa ou escrita, de caráter transitório, que não é feita com a intencionalidade de ser guardada. Para o projeto #florestaprotesta, o mestre da comunicação visual compôs uma frase usando apenas uma palavra: floresta. Com o tombamento da letra T, desabam as frágeis estruturas políticas e sociais que mantêm as florestas de pé. Empilham-se árvores, como tábuas de madeira sobre a página. A imagem tem o peso de cada reserva que é invadida, de cada centímetro desmatado, de cada vida indígena arruinada. Na base do cartaz, como o mato que insiste em crescer, a palavra protesta.
Floresta Protesta, 2021, Guto Lacaz
SELECT.ART.BR
JUN/JUL/AGO 2020
P R OJ E T O
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#FLORESTAPROTESTA EM AÇÃO DE ARTE E POLÍTICA, SELECT CONVIDA ARTISTAS A PRODUZIR PÔSTERES EM DEFESA DA AMAZÔNIA E DO MEIO AMBIENTE E ALINHA-SE AO CAMPO DA GRÁFICA DE PROTESTO, NA LUTA CONTRA O OBSCURANTISMO E OS DISCURSOS DE ÓDIO QUE NUBLAM A REALIDADE BRASILEIRA
O GRUPO APARELHAMENTO ELABOROU UM PÔSTER A PARTIR DE UMA OBRA DO ARTISTA FRANCÊS JEAN-BAPTISTE DEBRET, QUE MOSTRA ÍNDIOS GUARANIS SENDO CAPTURADOS. O grupo traduziu e replicou o título original em uma alusão aos
guto lacaz
acontecimentos que se repetem no Brasil desde o período colonial, “como a ânsia extrativista e as formas de exploração do trabalho entre classes, nem sempre distintas”, afirmam. A imagem é de domínio público e faz parte da Coleção Brasiliana da Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Em marcha decrescente, segue o povo supostamente civilizado em sua saga contra a floresta. A imagem feita por Jean-Baptiste Debret em 1834 infelizmente não é um documento anedótico de tempos passados”. Assim os artistas do grupo Aparelhamento definem o verbete da gravura de Debret, que retratou a sociedade brasileira no fim do período colonial, entre 1816 e 1831. O Aparelhamento é uma rede de mais de cem artistas, responsável por ações que “se configuram como críticas contundentes à lógica de retrocesso cultural e social percebida no Brasil desde 2016”, como definem os artistas. Entre elas, a Galeria Reocupa, instaurada dentro da Ocupação 9 de Julho, em 2018, e a Rádio Floresta (2020), que permitiu à comunidade ribeirinha de Careiro Castanho, no Amazonas, instalar e gerir sua própria rádio.
Sem Título, 2021, Aparelhamento
p r o t e s t a
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE
CRÍTICA LIVERPOOL
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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A REVISTA COMO ORGANISMO VIVO Enzyme #2, de Jorgge Menna Barreto e Joélson Buggilla, cultiva o pensamento coletivo e pensa sistemas digestivos como mecanismos de leitura
Enzyme #2 Acesse aqui a página da Bienal de Liverpool Site da revista: enzymemagazine.com Capa-envelope da revista Enzyme #2; na página ao lado, cadernos-biomas que integram a publicação
PAULA ALZUGARAY
O projeto periódico de Jorgge Menna Barreto e Joélson Buggilla nasce da insatisfação dos artistas com os limites do formato expositivo. Enzyme #1 surgiu em março de 2020, como desenvolvimento da pesquisa que relaciona sistemas digestivos e sistemas culturais, iniciada com a escultura ambiental Restauro (2016), e VOL. 10 / N. 51
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como espaço para sustentar relações a longo prazo. A temporalidade expandida de revista é o elemento irrigador dos processos de negociação em que os artistas estão interessados. Se Restauro, apresentada na 32ª Bienal de São Paulo (2016), propôs um sistema de regeneração cultural e biológica, articulando a superfície da terra (o que se planta) à superfície da mesa (o que se consome), Enzyme – “uma revista para digerir” – agrega nova camada (ou pele) a esse sistema: a
Nos destaques, aqui e nas próximas páginas da seção Review, adesivos de detalhes dos “biomas” interferindo e somando sentidos a temas afins
superfície da página (o que se digere). A primeira edição teve como tema Page, Table & Earth [Página, Mesa & Terra] e foi produzida durante residência dos dois artistas na Academia Jan van Eyck, na Holanda. A segunda, Life Systems [Sistemas de Vida] é uma obra comissionada ao duo pela Bienal de Liverpool de 2021. Surgiu como acompanhamento do “prato principal”, que seria a itinerância de Restauro, a partir de pesquisa sobre a política alimentar do entorno de Liverpool, caso o mundo não tivesse parado com a pandemia. Mas, com o profundo processo de autoanálise a que o mundo – não apenas o da arte – foi submetido com a crise do coronavírus, Enzyme pôde realizar de modo integral sua vocação de se oferecer como alternativa ecológica aos modelos de negócio e formatos expositivos do sistema da arte. “As páginas tornaram-se nosso campo comum e um potencial de criarmos uma comunidade nas ruínas do que foi, um dia, um
projeto de restaurante”, escrevem no editorial da #2 Jorgge Menna Barreto e Sarah Kristin Happersberger, curadora e editora convidada. A comunidade de Enzyme #2 é formada por artistas, educadores, curadores, pesquisadores e estudantes, cujos debates se materializam em obras denominadas “biomas”. Cada bioma é um caderno solto e todos são envoltos por um invólucro comum, uma capa em formato de envelope, integrando um sistema-revista. “Por que nossos corpos devem terminar na pele, ou no máximo incluir outros seres encapsulados pela pele?”, é a frase de Donna Haraway destacada pelo artista Cos Ahmet, em um dos eventos on-line que marcaram o lançamento do projeto, em junho. Seu bioma consiste em, além de páginas produzidas com bioplástico, uma série de páginas que reproduzem os cadernos-biomas dos outros artistas, na forma de stickers. “Os adesivos possibilitam transições matéricas entre superfícies, e diálogos entre temas, contaminando outros corpos”, diz Ahmet, propondo a dissolução das peles que delimitam e separam os trabalhos. O leitor-participante é aqui envolvido na tarefa de operar essas articulações entre cadernos-biomas, contaminando outras superfícies, inclusive além do corpo da própria revista. Contribuindo, assim, ao projeto editorial dos artistas de fazer do periódico um sistema de vida, per se. FOTOS: REPRODUÇÃO/CORTESIA DOS ARTISTAS
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Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Experimentando o Vermelho em Dilúvio, 2016, de Musa Michelle Mattiuzzi e, na página seguinte, Mama Goma, 2014, de Deana Lawson
Páginas da publicação Des-Habitat, de Paulo Tavares
P U B L I C AÇ ÃO
MODERNISMO COLONIAL Intervenção sobre fac-símiles de Habitat é a principal arma do arquiteto Paulo Tavares para desconstruir a ideologia impregnada nas páginas da revista de Lina Bo Bardi JULIANA MONACHESI
A gana bandeirista de Getúlio Vargas com seu programa Marcha para o Oeste, de colonização dos “vazios demográficos” do território brasileiro, e a hipostasia modernizadora da VOL. 10 / N. 51
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construção de Brasília por Juscelino Kubitschek, melhor adjetivada como colonizadora, dada a continuidade pelo “bandeirante moderno” em relação à marcha para o Oeste do seu antecessor. Eis a ponta do iceberg das relações nefastas entre o projeto modernista no Brasil e suas raízes deliberadamente firmadas no projeto colonial. A ousada tese chega a público em livro que não descende de uma pesquisa atual de História do Brasil nem de uma investigação decolonial advinda de um Departamento de Estudos Culturais ou Sociologia, mas de uma análise, empreendida por um estudioso de arquitetura, das páginas de uma revista de artes. Paulo Tavares escrutina os 84 números publicados ao longo dos 15 anos de existência da revista Habitat, com interesse particularmente clínico na gestão de Lina Bo Bardi, que a dirigiu desde a fundação, em 1950, até 1954. A principal arma do arquiteto e pesquisador é a forma que escolheu para desconstruir a ideologia impregnada Des-Habitat, nas páginas de Habitat: uma intervenAutor: Paulo Tavares ção visual e textual sobre fac-símiles Editora: n-1 Edições da própria revista. Assim nasce DesPáginas: 98 -Habitat, que convoca para cada reprodução de um artefato indígena na publicação de vanguarda um arsenal de repertórios críticos para comprovar FOTOS: DIVULGAÇÃO
a cumplicidade subjacente ali com a violência colonial que perpassa todo o projeto moderno. A indexação ilegítima de bens culturais vernaculares, indígenas e afro-brasileiros ao léxico do modernismo brasileiro, concluímos da leitura, é mais uma apropriação violenta e discricionária travestida de intelligentsia pela elite colonizadora, alinhada, à época, com o nacionalismo fascista italiano. Em paralelo à expropriação de terras e bens naturais e ao cerceamento dos modos de vida da população indígena por um Estado desenvolvimentista e racista, vemos na política editorial de Habitat, como que espelhada, a expropriação de imagens e saberes dos povos originários do Brasil. Tavares encerra seu ensaio narrando detalhadamente a Operação Ilha do Bananal, que oprimiu e dizimou os Karajá, e o desfile de retratos etnográficos estampados na revista, sem qualquer contextualização sobre as condições sociais dos indígenas. Tudo muito purista e modernamente higienizado para consumo das elites. FOTOS: LEVI FANAN
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Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Desabamento do céu / O fim do mundo, da série Sonhos Yanomami (2002)
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A VIRTUALIDADE HUMANA NA FORMA ANIMAL Claudia Andujar propõe a interpretação imagética dos Sonhos Yanomami, em uma das mais recentes séries de manipulação de seu acervo fotográfico Disse certa vez Claudia Andujar, em entrevista, que Sonhos Yanomami (2002) constituiu um ponto de virada em sua experiência com os Yanomâmi. O grau de “interpretação imagética” alcançada por essa série de 20 fotomontagens de fato parece chegar muito perto dos tecidos sensíveis do sonho, do delírio, da doença ou do transe. Na fatura resultante das sobreposições de cromos e negativos revela-se muito daquilo que Andujar diz presenciar nos processos ritualísticos Yanomâmi: a dissolução de fronteiras entre os seres VOL. 10 / N. 51
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humanos, seus deuses e a natureza, e a Sonhos Yanomami, integração de tudo em um fluxo contínuo. Claudia Andujar, Sonhos Yanomami é um dos mais recentes Até 3/7, Galeria trabalhos de manipulação e reprocessaVermelho, Rua Minas mento da fotógrafa sobre seu monumenGerais, 350 tal acervo de imagens, construído desde São Paulo 1971. Aqui, as sobreposições técnicas não são um artifício de pós-produção ou de experimentação de linguagem, mas têm correspondência conceitual direta com a sobreposição de mundos das cosmovisões indígenas. Contam os tradutores de mundos – entre eles artistas e antropólogos como Andujar e Eduardo Viveiros de Castro – que nas metafísicas ameríndias não há distinção entre sociedade e meio ambiente. O argumento de Viveiros de Castro, no premonitório Há Mundos Por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins (2015), de que “não humanos são ex-humanos que preservam um lado humano latente ou secreto, imperceptível para nós em condições normais”, ganha perfeita manifestação visual em Sonhos Yanomami. Após décadas de convivência e ativismo pela causa indígena, Andujar aprendeu o suficiente para propor interpretações aos seus sonhos. No trabalho, ela mostra que, diferentemente dos brancos, que “dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”, como Davi Kopenawa aponta em A Queda do Céu (2015), os Yanomâmi sonham com as existências humana e “ex-humana”. A série é, portanto, composta de representações individuais ou coletivas, humanas ou ex-humanas (na forma de coruja, garça, macaco etc.), sobrepostas a paisagens e elementos como água, terra, pedra e céu, dando forma ao que no ensaio sobre os medos e os fins se define como a “virtualidade humana na forma animal”. PA FOTO: CORTESIA DA ARTISTA E GALERIA VERMELHO
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Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
Vista da exposição
Terra e Temperatura, Até 31/7, Almeida e Dale Galeria de Arte, Rua Caconde, 152 almeidaedale.com.br
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IRRADIAÇÃO DE CALOR E URGÊNCIA Terra e Temperatura propõe lógica fractal para a leitura de relações entre 90 obras de 30 artiste brasileira Com as revoluções das políticas identitárias e das lutas por igualdade – indígenas, racializadas, hiperpotencializadas hoje –, qualquer tentativa de reelaboração da história brasileira a partir de uma ficção de identidade nacional é redutora e anacrônica. Partimos dessa premissa ao discorrer com surpresa e interesse pelos múltiplos vieses da abordagem que Terra e Temperatura, com curadoria de Germano Dushá, faz do imaginário social brasileiro, na Almeida e Dale Galeria de Arte. Comecemos pelo texto curatorial, uma obra literária per se, que faz as palavras borbulharem na página do folder da mostra como água em ebulição. Entre cadeias de sentidos enlaçados, os conceitos se organizam e desorganizam
como as massas, as formas e as cores do corpo de obras expostas: “Viram plantas, viram bichos, viram gente ou logo ascendem em encantaria”. O texto de Dushá sugere a leitura da exposição como um desenho de fractais. Aplicado esse princípio geométrico à curadoria, entendemos que as cerca de 90 obras de 30 artistas de diferentes épocas e regiões se relacionam aqui como ecos umas das outras; partes individualizadas que repetem traços e padrões de um todo discursivo. O princípio de “complexidade fractal” proposto por Dushá equivaleria, a distância, ao pathosformel (fórmula do pathos ou fórmula da emoção), do historiador Aby Warburg para a análise da história da arte, aproximando eventos distantes no tempo e no espaço a partir da carga emocional empregada na formulação das obras. Assim, não existe em Terra e Temperatura nenhum conceito que abarque de imaginário tão heterodoxo, mas é possível discernir as qualidades de êxtase, urgência e calor nas relações entre as obras. Há irradiações, por exemplo, entre as matérias moles que compõem os Transportáveis (2002-2003), de Artur Barrio; a escultura da série Cobrinhas (2013), de Anna Maria Maiolino; a escultura de costuras, amarrações e arames (2004), de Sonia Gomes; e o bordado de lã em estopa (s.d), de Madalena dos Santos Reinbolt. Esse trajeto leva a novas bifurcações de sentidos quando toca a pintura Manacá (1927), de Tarsila do Amaral; a escultura em pedra-sabão da série Mimesmas (2016), de Solange Pessoa, que elabora a forma do caracol; a escultura em ferro fundido de Paulo Monteiro (2015), que alude à densidade matérica da tinta a óleo; à escultura Boomerang (1979), de Ivens Machado, em concreto armado e caco de vidro; ou aos corpos torcidos dos animais esculpidos em madeira por Artur Pereira (s.d). Das amizades e desafetos resultantes desses encontros, compreendemos a “ultravitalidade” de nosso imaginário social. PA FOTO: CORTESIA GALERIA ALMEIDA E DALE
CRÍTICA
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
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Capa do single, criada pelo artista espanhol-croata Filip Ćustić, retrata Lil Nas X como Adão e Deus em uma reinterpretação de A Criação de Adão, de Michelangelo
VIDEOCLIPE
DO COUNTRY AO QUEER Com pole dance vertiginoso e lapdance com o demônio, o novo clipe do jovem músico Lil Nas X de Old Town Road constrói uma alegoria queer poderosa e afrofuturista A “Na vida, escondemos a parte de nós mesmos que não queremos que o mundo veja. Nós a trancamos num lugar seguro, lhe dizemos não, nós a banimos, mas aqui não fazemos isso. Bem-vindx a Montero”, anuncia Lil Nas X na abertura do videoclipe de seu novo single, Call Me by Your Name (2021), referência ao filme Me Chame pelo Meu Nome. De uma imagem celeste de nuvens com forma de estalagmites que emolduram, ao fundo, a silhueta de um ser de luz, identificável pelo halo dourado, um travelling leva o espectador VOL. 10 / N. 51
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para baixo das nuvens e, em velocidade alucinada, por uma paisagem que exibe ruínas greco-romanas, até ganhar a forma de uma serpente, que entra em cena quando o rapper termina de dar as boas-vindas a Montero. Tocando violão, sentado ao pé de uma árvore sintética − caule de mármore e folhas-frutos de plástico −, Lil Nas canta em tom melancólico I caught it bad just today / You hit me with a call to your place / Ain’t been out in a while anyway / Was hopin’ I could catch you throwin’ smiles in my face [“Fiquei mal hoje / Você me surpreendeu com um convite para a sua casa / Faz tempo que não saio / Esperava que você pudesse colocar sorrisos no meu rosto”], enquanto a serpente desce lasciva e fluorescente pelo tronco pálido. A baladinha e as palavras doces duram exatos 30 segundos. Assim como a paz do rapaz ao violão, que começa a ser perseguido pela cobra transmutada em homem-serpente-mutante sob acordes nervosos de guitarra e percussão que mesclam electropop, hip-hop e techno flamenco, enquanto, na letra, Lil Nas X demole o romantismo, diz que o cara pode ser interessante para uma noitada, mas detona o uso de drogas e bebedeiras do crush como negacionismo [Lookin’ at the table, all I see is weed and white / Baby, you livin’ the life, but nigga, you ain’t livin’ right / Cocaine and drinkin’ with your friends / You live in the dark, boy, I cannot pretend / I’m not fazed], e sem dizer o que ele deve Montero (Call Me by ou não fazer, sem lição de moral, declaYour Name), de Lil ra: “Ligue quando quiser, ligue quando Nas X, 278.778.065 precisar, ligue de manhã, estarei a cavisualizações em 3 meses minho”. Depois de Adão ser seduzido pela serpente, a câmera retorna à árvore do conhecimento para focalizar uma inscrição em grego, atribuída a Platão, FOTOS: DIVULGAÇÃO
que vaticina que “após a divisão, as duas partes do homem” vagarão “desejando sua outra metade”. Segue-se uma mudança de cenário: Lil Nas X está acorrentado numa espécie de Coliseu, onde os participantes do julgamento (todos interpretados pelo próprio cantor) usam peruca à Marie Antoinette, enquanto a multidão enfurecida nas arquibancadas apedreja o mártir. Em uma entrevista concedida na véspera do lançamento do single, X afirmou ter descoberto uma autoconfiança inaudita ao conseguir se expressar tão livremente na nova música e, em revista publicada em maio, narrou o conflito vivido entre a própria sexualidade e sua educação cristã. Filho de um cantor gospel, Lil Nas X classificou a música e o videoclipe de “rebeldes”, por inaugurar uma nova narrativa sobre si, deixando para trás a popularidade viral construída com o rap country Old Town Road (2019), que ficou 19 semanas em primeiro lugar na Billboard. No dia em que o clipe foi lançado, escreveu na sua conta do Twitter que desejava “abrir portas para muitas outras pessoas queer simplesmente existirem”. Acadêmicos ouvidos pela revista Time afirmam que o clipe de Montero é profundamente pesquisado e constrói uma narrativa histórica poderosa que centra a identidade queer em espaços históricos e religiosos de
onde costuma ser apagada. “Assistindo a este vídeo, fiquei um pouco chocado com a quantidade de repertório que você precisa ter para desvendar alguns desses elementos”, afirma Roland Betancourt, professor da Universidade da Califórnia em Irvine e autor de Byzantine Intersectionality: Sexuality, Gender, and Race in Middle Ages. “O vídeo mostra que a institucionalização da homofobia é uma coisa aprendida − e que existem outros mitos de origem disponíveis para nós que não estão enraizados nessas ideias.” Na sua subida aos céus, depois de morto, momentos antes de chegar muito perto de um anjo, o nosso herói escolhe o caminho inverso. Lil Nas X escolhe descer ao inferno, performando a pole dance mais longa e vertiginosa da história da cultura pop. Aterrissa pleno em seu poder, com longas tranças ruivas, botas de cano alto e salto agulha, vestindo apenas uma samba-canção Calvin Klein. O inferno tem ar de Wakanda, paraíso perdido nos confins do mundo, o segredo mais bem guardado da mitologia afrofuturista convocada constantemente na estética do videoclipe. O performer vai diretamente ter com Satã, seduzindo o ser infernal ao performar uma lap dance para deixar qualquer um sem fôlego. Satã fica sem reação (e nós, espectadores, idem), o que permite que Lil Nas X torça o pescoço do demo e tome para si seu chifre, proclamando-se rei. Do outro lado das telas, para além da alegoria construída com requinte, o artista recebeu muitas críticas pelo conteúdo explícito da letra e do vídeo de Call Me by Your Name. Do alto de seus 23 anos, vem respondendo a cada uma delas com categoria, como em post recente nas redes sociais, onde responde: We are four months in and people are still acting surprised that I am being gay and sexual in performances of a song about gay and sexual shit. [“Faz quatro meses e as pessoas continuam se mostrando surpresas por eu estar sendo gay e sexual em performances de uma música sobre coisas gays e sexuais”]. É sobre isso. JM FOTOS: LEVI FANAN
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NO VENTRE DO MATO, O MODERNISMO MORDE AS RAÍZES Escrita em Belém do Pará, na década de 1920, a epopeia Cobra Norato continua indigesta quando classificada como modernista
Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues
Frames Vênus em Escorpião(2020), de Gaby Amarantos
DENISE SCHNYDER
Treme a úmida terra amazônica e o tremor vem se espalhando por todo o Brasil. Tremem os alicerces que estruturaram por tantos anos o modernismo. E, ao balançar essa palha seca que o movimento de 1922 se tornou, é possível que caia no solo uma obra ainda pouco compreendida, uma grande cobra que serpenteia no subsolo da terra. Submergindo da água turva e barrenta da literatura brasileira moderna, Cobra Norato, o épico-dramático de Raul Bopp, ainda gera debates. Considerada uma das mais importantes obras da geração modernista, é um símbolo da Antropofagia e se mantém em eterna deglutição. Antes mesmo da famosa viagem de descoberta do Brasil, empreendida em 1924 pelos mais emblemáticos modernistas, Raul Bopp vinha se embrenhando sozinho, com sua maleta, em inúmeras viagens pelo país. Sua estada em Belém do Pará se prolongou por mais de um ano. Bopp sustentava as perguntas que os modos de vida e as encantarias amazônicas suscitavam e, embrenhando-se na mata, escrevia Cobra Norato. Nesse ponto, sua escrita estava influenciada pela última viagem à Europa, mais precisamente à Espanha, onde tomou contato com o Ultraísmo, movimento que se opunha ao modernismo e tinha Jorge Luis Borges como principal nome na literatura. Para os Ultraístas, o modernismo vivia em uma oposição pouco produtiva entre deixar-se abandonar e tomar pelo ambiente, ou tomar o ambiente como instrumento de ação individual. Essa lógica precisaria ser superada. Para os Ultras, o poeta deveria simplesmente dizer o que é VOL. 10 / N. 51
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o ambiente, por meio de uma poética que trouxesse do espaço sua pulsação, seu ritmo e seu sentimento, usando metáforas precisas. Assim, tendo o ambiente como principal voz, o poeta intervém sobre ele, transmutando a realidade em imagens-sensações. Em um dos muitos relatos deixados por Raul Bopp sobre a Amazônia, ele descreve a experiência: “Inconscientemente, fui sentindo uma nova maneira de apreciar as coisas. A própria malária, contraída em minhas viagens, acomodou meu espírito na humildade, criando um mundo surrealista, com espaços imaginários”. O autor gaúcho, de origem germânica, relatava ter sido o encontro com a Amazônia o ponto de virada para a compreensão de uma totalidade mágica que seria o Brasil. A primeira versão da obra não foi publicada, perdida ficou entre outros papéis amassados na maleta de Bopp. Somente depois da publicação do Manifesto Antropofágico, o autor retomou o processo, adicionando a Cobra Norato seus primeiros cantos, que se referem diretamente ao procedimento anCobra Norato tropofágico. O narrador, ao invés de se (Brasil, 1931) deixar engolir, estrangula a lendária coAutor: Raul Bopp bra e, por sua própria vontade, adentra Editora: José Olympio sua boca. Usando sua pele como armaPáginas: 90 dura, percorre os outros 32 cantos ritmados, melódicos, percussivos, em uma aventura poética pela floresta amazônica, em busca da filha da Rainha Luzia. FOTO: DIVULGAÇÃO
EM CONSTRUÇÃO
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BRASIL Com superpedido de impeachment e abertura de inquérito por prevaricação, o país em brasas entra em franca reconstrução DA R E DA Ç Ã O
EXUBERANTE EM SEU ESTOQUE INFINITO DE TINTA, VERMELHA COMO BRASA, NEGOCIANTES INSCREVERAM NESTE TERRITÓRIO, EM 1505, UMA MARCA: BRASIL. E ESCREVERAM COM SANGUE. Desde então, o povo da terra Brasil
Foto de Victor Moriyama, na manifestação #29M, na Avenida Paulista
era só, e somente, quem trabalhasse nessa empreitada derrubando e carregando, por toda a mata, o ouro escarlate, a madeira do pau-brasil. Ser brasileiro, para todos que já viviam ou que aportaram aqui, nunca foi uma escolha. O sufixo, que determina atividade e profissão, mantém o país preso e refém de um ciclo infinito de extração. Brasileiros, poderíamos ter sido chamados canavieiros, garimpeiros, seringueiros e madeireiros. Com o tempo, o território passou por diferentes denominações: Império do Brasil, República dos Estados Unidos do Brasil, República Federativa do Brasil. Enquanto muitos ainda entendiam que o Brasil poderia ser chamado somente de Confederação Brasileira de Futebol, Seleção Brasileira, ou Sul-Sudeste. Pois a verdade é que, nas últimas décadas, enquanto democracia federativa, estávamos ainda em construção. Eleito por um sistema que hoje define como facilmente fraudável, miliciano, garimpeiro, exaltador da tortura e da ditadura militar, e responsável pela marca avassaladora de mais de 520 mil brasileiros mortos pela Covid-19, o coiso-presidente coleciona o maior número de pedidos de impeachment já feitos na história e é alvo agora de um superpedido de impedimento, redigido por alas de esquerda, centro e direita, listando os 23 crimes de responsabilidade cometidos por ele. No último dia de fechamento da presente edição, a Procuradoria-Geral da República pediu abertura de inquérito contra o makadawalitsa (em Baniwa, pessoa considerada sem valor) por crime de prevaricação no caso da vacina Covaxin, superfaturada em 1.000%. Seríamos outros tivesse o nome deste país Brasil sido escolhido pelos povos que já habitavam e respeitavam o território? Pindoranos ou pindorenses, palmeirianos ou palmeirenses, papagaianos ou papagaienses, hoje vivemos juntos e precisamos lutar também juntos por um projeto de reconstrução. Destruído, arrasado, devastado e enlutado o Brasil já está. Que país os jovens retratados por Victor Moriyama na imagem icônica da manifestação de 19J em uma Paulista quase irreconhecível vão construir depois do fim? Símbolo exuberante da tinta vermelha como brasa, que palavras vão inscrever neste imenso território? FOTO: VICTOR MORIYAMA
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NÚCLEO SELECT DE ARTE E COMUNICAÇÃO O braço educativo da revista seLecT, hospedado da Plataforma Zait, cria pontes entre estudos visuais e práticas em crítica de arte, produção editorial e jornalismo cultural.
E M AG OSTO
CRÍTICA DE ARTE AGORA COM A PROFESSORA ANA AVELAR O curso teórico-prático propõe a análise e a produção de textos de crítica de arte, objetivando a instrumentalização dos alunos, a composição de um panorama de referências da crítica brasileira e o auxílio na constituição de uma voz crítica. Quartas-feiras 25/8, 1º/9, 8/9, 15/9, 22/9 Das 16 às 18h00, via Zoom Inscreva-se em www.zait.art
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