DOZE HISTÓRIAS
SOBRE A UFRGS :
a pesquisa como resistência ao esquecimento
Dóris Bittencourt Almeida
Carla Beatriz Meinerz
Fabiana Pinheiro da Costa
Marcos Luiz Hinterholz
Organizadores
a pesquisa como resistência ao esquecimento
Dóris Bittencourt Almeida
Carla Beatriz Meinerz
Fabiana Pinheiro da Costa
Marcos Luiz Hinterholz
Organizadores
© Autores, 2022
Organização
Dóris Bittencourt Almeida
Carla Beatriz Meinerz
Fabiana Pinheiro da Costa
Marcos Luiz Hinterholz
Produção Editorial
Aline Pereira de Barros | Letra1
Revisão
Aline Pereira de Barros
Luísa Hall
Paulo de Toledo
Capa e Projeto gráfico
Marta Zimmermann
Diagramação
Ronaldo Machado
Imagem da Capa
Leandro Selister
Impressão
Printstore
Conselho Editorial
Adriana Dorfman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Anderson Zalewski Vargas
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Hernan Venegas Marcelo
Universidade Federal da Integração Latino-Americana
Marcelo Jacques de Moraes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Márcio Silveira Lima
Universidade Federal do Sul da Bahia
Miriam Gárate
Universidade Estadual de Campinas
Regina Coeli Machado e Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
D755 Doze histórias sobre a UFRGS: a pesquisa como resistência ao esquecimento / Organizadores Dóris Bittencourt Almeida... [et al.]. – Porto Alegre, RS: Editora Letra1, 2022 284 p. : 16 x 23 cm
Inclui bibliografia ISBN 978-65-87422-22-0
1. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – História. I. Almeida, Dóris Bittencourt. II. Meinerz, Carla Beatriz. III. Costa, Fabiana Pinheiro da. IV. Hinterholz, Marcos Luiz CDD 378.1554
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
DOI: 10.21826/9786587422220
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ao esquecimento
Dóris Bittencourt Almeida
Carla Beatriz Meinerz
Fabiana Pinheiro da Costa
Marcos Luiz Hinterholz
Organizadores 2022
Olhar para o passado é um ato de autorreconhecimento. Na sucessão de dias, meses e anos, o tempo em aceleração tende a turvar o que passou. Como numa luta contra o esquecimento, buscamos preservar o mínimo indispensável para um saber sobre nós mesmos. Narrativas de memória, álbuns de fotografia, diários e objetos revestidos de simbolismo servem como precários antídotos contra um apagamento iminente. Mas quando o assunto são as nossas instituições, quantas memórias e histórias nos têm escapado? E o que temos feito a este respeito?
Perguntas como essas nos mobilizaram a organizar a presente coletânea, que reúne pesquisas sobre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Entendemos que as instituições possuem suas permanências e continuidades, assim como seus ritmos e sentidos partilhados, para os quais os trabalhos com memórias e as investigações historiográficas são de fundamental importância. Refletir sobre o passado institucional possibilita uma maior compreensão desse espaço do qual somos partes constituintes, além de enriquecê-lo e fortalecê-lo a partir de sua própria trajetória. Nesse sentido, a iniciativa de disponibilizar ao público esse conjunto de artigos científicos também tem como pretensão inspirar pesquisadores – jovens ou experientes – a empreender novos estudos sobre a UFRGS que, dada a sua grandeza, ainda pode ser explorada pela historiografia.
Amada e odiada, defendida e atacada, a Universidade já soma mais de oito décadas de atuação. E, mais do que nunca, se faz necessário lançar sobre esse longo percurso um olhar crítico, analisando as bases da sua construção e consolidação na estrutura acadêmica brasileira. Com uma história rica, mas profundamente marcada por silêncios, consideramos que é
preciso observar e questionar quem historicamente teve direito a esse espaço e a quem ele foi negado. Dialogar sobre quais os saberes científicos ela fez frutificar e para os quais se fechou, sem deixar de ressaltar e valorizar seu patrimônio e personagens, notáveis e anônimos, que permitiram essa vívida existência até os dias de hoje.
Assim, apresentamos ao leitor os eixos em que a obra foi dividida. O primeiro deles, intitulado “Itinerários de professores”, congrega artigos que revisitam, por meio de fontes variadas, os percursos de antigos docentes, três deles atuantes na Faculdade de Educação e uma no Instituto de Artes. De maneira geral, os pesquisadores procuraram demonstrar como a formação desses intelectuais não se limitou à obtenção da titulação acadêmica, mas comportou uma vasta rede de sociabilidades e de experiências acumuladas ao longo de uma vida. Ao seu modo de escrita, cada autor discorreu sobre a atuação profissional desses professores e analisou seus engajamentos – diretos ou indiretos – na Universidade e na esfera pública.
O eixo “Educação e Relações Étnico-Raciais” faz ecoar escritas capazes de relacionar passado e presente num movimento contínuo de narrar histórias sobre a UFRGS, povoadas por memórias de pessoas negras cujas presenças demarcaram pesquisas como atos de resistência ao esquecimento. Oferece três ensaios sobre a espacialidade da Faculdade de Educação como lugar de relações raciais, numa temporalidade que permeia os anos 70, 80 e 90 do século XX e invade o século XXI através da experiência das Ações Afirmativas na graduação e na pós-graduação. Promover um espaço seguro de escuta e registro autoral negro é um incitamento que os artigos ensejam ao provocar a leitura.
Em “Práticas e Cultura Universitária” foram reunidos textos que abordam desde os impactos da Ditadura Civil Militar nos currículos universitários até a história da moradia estudantil. O primeiro ensaio apresenta o resultado de uma investigação sobre a implantação da disciplina Estudos de Problemas Brasileiros (EPB) na UFRGS, demonstrando os movimentos de resistência e adesão a essa imposição feita pelo Regime Militar. Os dois trabalhos na sequência tematizam a história e a memória das Casas de Estudante e sua íntima relação com a democratização das condições de acesso e permanência na Universidade, além de construir novas leituras sobre esses espaços de sociabilidade, política e cultura estudantil.
Por fim, o eixo “Colégio de Aplicação”, centra-se no movimento de buscar em papeis amarelados, frequentemente esquecidos e considerados sem importância, práticas e sujeitos da história dessa instituição. A tônica dos textos está em valorizar as margens, inquirir os fragmentos ou verbalizar, por meio de entrevistas
de história oral, as reminiscências esmaecidas pelo tempo. Foi no demorar-se sobre o corriqueiro e o ordinário que os autores entreviram, em antigos testes de admissão e questionários, os ideais da Escola Nova reverberando no CAp, discorreram sobre a experiência da implementação das classes experimentais em 1959 e analisaram o mito do aluno gênio que circundou o imaginário do colégio entre as décadas de 1950 e 1980.
Nesta obra, são apresentados doze textos que não pretendem abarcar a totalidade da história da Universidade. É preciso dizer que, embora organizados em núcleos narrativos, os estudos possuem sua autonomia. São diferentes e sem ordem hierárquica entre si ou em relação a outros trabalhos que já foram desenvolvidos. Reconhecemos, de antemão, o caráter parcial, localizado e provisório desta coletânea, que deve ser entendida como um retrato de pesquisas finalizadas ou em andamento e, mais do que isso, deve ser encarada como um esforço de demonstrar que é possível e necessário produzir conhecimento sobre o passado da UFRGS.
Afinal, quantas outras histórias ainda aguardam por serem contadas?
Dóris Bittencourt Almeida
Carla Beatriz Meinerz
Fabiana Pinheiro da Costa
Marcos Luiz Hinterholz
Não poderia ser mais oportuna a publicação deste livro neste momento em que o Brasil atravessa uma conjuntura marcada pelo retrocesso político e por ataques sistemáticos à universidade pública, à ciência, à educação e aos direitos sociais historicamente conquistados, consubstanciando ameaças constantes à democracia. Isto porque o livro não somente reconstitui aspectos da história de uma das mais conceituadas instituições de ensino superior no país – a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como demonstra, de inúmeras formas e em perspectiva crítica, a relevância social, política e cultural da Universidade. Jacques Verger, no notável livro As universidades na Idade Média , adverte para as várias formas de se escrever a história das universidades, entre elas considerando-as como instituições vivas e como agrupamentos humanos contextualizados em suas múltiplas relações com a sociedade e onde se conectam diferentes pessoas envolvidas na produção e disseminação de ideias e na transmissão e aprendizagens de saberes.
Essa indicação potente atravessa este livro que, eivado de imensa sensibilidade, reconstitui trajetórias de professores e estudantes da UFRGS, provocando o leitor para problemáticas candentes na universidade brasileira. No profícuo entrelaçamento entre memória e história, a coletânea reúne 12 estudos fundamentados em pesquisa rigorosa, em dados empíricos consistentes e em abordagens atuais e instigantes. Um bom exemplo é o uso das fontes orais que enriquecem as análises com as marcas da história vivida pelos membros da comunidade universitária, dando vazão a seus sentimentos, experiências significativas, cicatrizes e esquecimentos.
Cada um dos eixos temáticos que compõem a obra é um convite à reflexão. O primeiro deles, intitulado Itinerários de Professores, lança o leitor nos meandros da tecitura da trajetória profissional de quatro intelectuais que, atuando em diferentes áreas do conhecimento, muito contribuíram para a história da Universidade. Pois se é certo que as instituições produzem as pessoas constituindo suas subjetividades, também é verdadeiro que elas são construídas por aqueles que nelas atuam. Muito válida, portanto, é a noção de “intelectual mediador” mobilizada no livro, para reconstituir dados biográficos e percursos de formação e trabalho de professores universitários. A pulsante vida desses intelectuais transborda em cada página, conduzindo o leitor pelas iniciativas engajadas, articulando pesquisa e docência em modos plurais de intervenção social. Dessa maneira, salta aos olhos a atuação de Arabela Campos Oliven em sua defesa intransigente da democratização do ensino superior por meio das ações afirmativas, o protagonismo de Olga Reverbel na constituição do campo da pedagogia do teatro no país, a incansável batalha de Alceu Ravanello Ferraro pela educação, enfrentando a perseguição do Regime Militar, e o exercício sensível e humano de Merion Campos Bordas nas lides cotidianas da gestão acadêmica.
O segundo eixo temático do livro, Educação das Relações Étnico-Raciais, problematiza a questão candente da exclusão dos negros no ensino superior no Brasil, especialmente nas universidades públicas. Operando com o binômio interdependente ausência-presença, o livro traz subsídios para se compreender as ressonâncias do Movimento Negro no meio universitário. Os três capítulos que compõem esse eixo temático incidem sobre memórias de estudantes, professores e servidores negros(as) na Faculdade de Educação da UFRGS. Sobressaem tanto as lutas para a institucionalização de espaços de reflexão e investigação sobre a temática pela criação de grupos de pesquisa quanto as políticas de ação afirmativa no Programa de Pós-Graduação em Educação e as reminiscências afetivas das trajetórias de estudantes negros nessa unidade universitária. Nesse aspecto, não é facultado ao leitor a indiferença, posto que somos provocados a questionar o racismo estrutural enraizado em nossa sociedade, a perspectivar as políticas de equidade social e racial e, como bem postulou a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, em um dos seus depoimentos, a “pensar que mundo e universidade queremos”. Sem dúvida, questões pertinentes para uma discussão abalizada sobre a crise da universidade brasileira e seu futuro. Em relação ao terceiro eixo, Prática e Cultura Universitária, vale assinalar a originalidade dos temas abordados pouco explorados na historiografia das universidades. Em torno da cultura universitária, tão diversa e instigante, o livro
chama a atenção para alguns aspectos de enorme atualidade como as lutas do movimento estudantil pela moradia, as representações sobre a qualidade dos Colégios de Aplicação e mudanças curriculares atendendo a projetos políticos autoritários. Começando por esse último aspecto, vale ressaltar o capítulo muito interessante sobre a introdução da disciplina Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB) no contexto da Ditadura Civil |Militar correspondendo a uma intervenção direta do Governo Federal no currículo do ensino superior colocando a disciplina claramente a favor de uma dada ideologia e finalidade política. Introduzida na UFRGS em 1971, veiculando valores cívicos com base na segurança nacional, a trajetória da disciplina EPB foi marcada por questionamentos e resistências, particularmente no período da redemocratização do país, quando as batalhas para a eliminação da disciplina dos currículos se articularam em torno da defesa mais ampla da democracia.
Outra temática de inegável relevância abordada no livro diz respeito às moradias estudantis, cujos aspectos investigados assinalam a complexidade que circunda essas instituições que se apresentam tanto como espaços de sociabilidade estudantil como de disputas. A reconstituição histórica das Casas de Estudantes de Porto Alegre é singular, pois entrevê os atores envolvidos e as diferentes iniciativas levadas a termo para a assistência aos estudantes como política de democratização do ensino superior. Um dos capítulos, com enorme ousadia, problematiza os embates em torno da aceitação social e dos próprios estudantes em relação às mulheres como moradoras legítimas dessas instituições universitárias.
Por último, o livro oferece interessantes rememorações sobre o Colégio de Aplicação da UFRGS. Fundado em 1954 junto à Faculdade de Filosofia dessa universidade e vinculado ao Departamento de Educação, a trajetória desse Colégio é abordada no livro a partir das representações da sociedade e da comunidade acadêmica sobre a importância dessa escola. De um lado, a questão da excelência e mérito dos alunos selecionados por processos competitivos, exames de admissão, provas classificatórias e testes psicológicos; de outro lado, a vitalidade da experiência das classes experimentais introduzidas nesse estabelecimento de ensino como inovação educacional. Dessa maneira, o livro desvela parte importante da história da UFRGS, evidenciando o Colégio de Aplicação como centro de pesquisa e experimentação da educação básica.
Por todas as razões assinaladas acima, este livro merece ser lido, pois ele se inscreve como uma excelente contribuição para a história da educação e para a história do ensino superior no país, além de se constituir em um inegável tributo à história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O
título da obra, tão apropriado, Doze histórias sobre a UFRGS: a pesquisa como resistência ao esquecimento, sintetiza não só a natureza da contribuição do livro, mas a sua perspectiva sociocultural. Trata-se, sem dúvida, de uma envolvente problematização acerca das finalidades cruciais da Universidade no passado e no presente, isto é, sua vocação política e científica comprometida com a sociedade.
Araraquara – SP, 2022.
Abril esperançoso face aos sinais de recrudescimento da trágica pandemia pela Covid-19 que ceifou a vida de mais de 660 mil pessoas no Brasil.
Rosa Fátima de Souza Chaloba
Presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação
Tainá Martins de Barros
Luciane Sgarbi Santos GrazziotinIntrodução
A utilização da memória como documento, da história oral como metodologia e a mobilização do conceito de trajetória como possibilidade de escrita da história permitem construir narrativas que colocam em foco histórias individuais e/ou coletivas que visibilizam espaços e tempos pretéritos.
Nessa investigação, procuramos vestígios e fios que possibilitam tecer uma cena para esses inúmeros fragmentos e percebemos a possibilidade de deslocar os pontos de vista comumente adotados e mudar, assim, as escalas de observação. Nesse sentido, sujeitos comuns também vão compor a história indicando narrativas alternativas que não serão mais ignoradas, pois aparecem nesse contexto e irão resistir. Com esses pressupostos de pesquisa, nos debruçamos, em 2021, em estudos que articularam memórias, trajetórias e o pensamento intelectual.
O obscurantismo, a pós-verdade 1 e a desvalorização do meio acadêmico, da ciência como um todo e das Ciências Humanas em especial impactou a sociedade brasileira de forma perversa. Por conta disso, Claudia Alves (2019) traz reflexões quando menciona sua perplexidade sobre os novos contornos da representação dos intelectuais de nossos tempos, em que o conceito de “intelectuais” perde força para figuras anticientíficas e polemistas presentes nos grandes meios de comunicação, a exemplo de personagens como Olavo de Carvalho 2 e seus seguidores, reforçando os contornos dessa pesquisa.
Segundo Alves (2019), desde as décadas finais do século XX crescia um debate acerca do fim dos intelectuais. Hoje, os limites de sua representação podem ser ambíguos, girando em torno de figuras portadoras de um “lugar ético” impregnado de extremismos e ideias desagregadoras com o objetivo de manipular as massas intelectualmente e politicamente. O autor Jean-François Sirelli aponta que estamos vivendo uma “mutação cultural sem precedentes, do qual convém avaliar os desafios e os efeitos induzidos para se tentar deter a espiral perniciosa” (SIRINELLI, 2010, p. 11 apud ALVES, 2019, p. 2). Se observarmos esse panorama geral criticamente, historicizar e construir investigações acerca das trajetórias de intelectuais torna-se uma tarefa importante e de cuidado com a geração e o campo intelectual contra essa onda de conspiração da realidade, da educação e da ciência que vem sendo sintonizada.
A ampliação da categoria “intelectual” como objeto de estudo dos historiadores da educação possibilita superar análises vinculadas apenas à exposição das ações e feitos dos “grandes personagens” de um lado, e apagar a ação dos sujeitos de outro. Desse modo, pretendemos operar com o conceito de “intelectual mediador” a partir de Ângela de Castro Gomes e Patricia Hansen. De acordo com as autoras, um intelectual mediador é um “sujeito da produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político social” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 10). É com essa perspectiva que buscamos identificar elementos do percurso intelectual da
1 Segundo o dicionário virtual “dicio.com.br”, pós-verdade é “um conjunto de fatos ou informações que, sem fundamento e propagados de maneira repetitiva, são tidos como verdadeiros. […] Contexto em que se desvaloriza a verdade objetiva, comprovada pelos fatos, aceitando qualquer discurso como correto”.
2 De acordo com a matéria de Sara Baptista para o site “Último Segundo”, Olavo de Carvalho nasceu em Campinas, no interior de São Paulo em 1947. O autoproclamado filósofo definia-se como “apenas um véio lôco” em seu perfil no Facebook. Nunca se formou e não teve nenhum diploma universitário, ainda que tenha chegado a estudar filosofia na PUC-Rio. Olavo já trabalhou como jornalista em diversos jornais do país e foi considerado um influenciador digital. Foi astrólogo, ministrou cursos que misturavam filosofia, política e esoterismo e tem mais de 30 livros publicados. Apesar de já ter sido filiado ao Partido Comunista na Ditadura Militar, atualmente suas ideias representam o conservadorismo no Brasil. Foi uma figura que defendeu o presidente Jair Bolsonaro, mas também usa sua sinceridade para criticar seu governo. Sempre foi anticientífico. Faleceu em 24 de janeiro de 2022. Mais informações disponíveis no site da matéria que estará disponível nas referências.
Profa. Dra. Arabela Campos Oliven no sentido de produzir uma trajetória que possibilite conhecer determinados elementos no processo de constituição da formação, docência e pesquisa em Ciências Sociais entre os anos de 1960-2012, analisando sua trajetória a partir do conceito de “intelectual mediador”. Esse processo só foi possível por meio do acesso aos documentos e às narrativas de memória oral salvaguardadas no Arquivo Memória Faced 3 .
O recorte temporal refere-se ao marco de início de sua formação acadêmica na graduação em Ciências Sociais, no início da década de 1960, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o limite, no ano de 2012, pela sua aposentadoria nas funções de docência na graduação na mesma instituição, aplicando este conceito à sua trajetória.
Os estudos que se dedicam a compreender a história em um processo de microanálise foram, por muito tempo, desconsiderados em nível acadêmico. A micro história, aqui entendida no sentido de uma produção acadêmica, compreende a importância das pesquisas que se dedicam a análise de um indivíduo, de uma localidade e de determinadas práticas em uma escala menor. De acordo com Revel (1998), a abordagem micro histórica entende que, alterando as escalas de observação, é possível se dedicar a uma análise de um indivíduo, de uma localidade, de determinadas práticas em uma outra escala, uma escala menor, produzindo efeitos de conhecimento. Ao alterar as escalas de observação e “(…) variar a focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho no visor, e sim modificar sua forma e sua trama”. Para o autor, a escolha de escala de representação “(…) não equivale a representar em tamanhos diversos uma realidade constante, e sim transformar o conteúdo da representação mediante a escolha do que é representável”.
Nesse estudo, para compor a análise micro histórica, lançamos mão de outras ferramentas metodológicas e teóricas, dentre elas o conceito de trajetória. De acordo com Pierre Bourdieu:
[…] tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio,
é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. (1996, p. 189-190).
Para o autor, a trajetória do sujeito entrevistado precisa estar situada em seu contexto social, para que se construa uma narrativa a partir das condições concretas a qual ele se insere – por isso a analogia ao metrô e a estrutura da rede ao qual ele se relaciona. Ainda segundo Bourdieu, não podemos compreender uma trajetória “sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado”. (BORDIEU apud ALVES, 2019, p. 9-10). É nesse sentido que entendemos que a análise em uma perspectiva micro histórica se apresenta como uma possibilidade de construção para o percurso acadêmico da professora Arabela.
A micro história se mostra como um aporte teórico para as pesquisas no campo multifacetado da história da educação que se situa na intersecção entre a História e a Educação. De acordo com Cynthia Greive Veiga (2003, p. 19):
[…] a história da educação está sendo entendida aqui enquanto um campo de investigações em que se toma cada vez mais necessário dar visibilidade aos seus diferentes objetos: a escola, o professor, os alunos, materiais escolares; processos e formas de aprendizagem, entre tantos outros. Nesse sentido, também se toma cada vez mais necessário dar visibilidade aos procedimentos metodológicos e referenciais teóricos que produzem tais objetos como objetos da história cultural, política, econômica e social.
É com a mesma percepção que esse estudo articulou a história da educação como campo investigativo; com a micro história, como escala de análise; com a História Cultural, como sustentação teórica; e com o conceito de intelectual, como matriz interpretativa da vida da professora Arabela. Assim, conduzimos a pesquisa a partir de duas metodologias de produção de dados: a entrevista compreensiva (KAUFMANN, 2011; DUARTE, 2004) e a história oral (POLLAK, 1989; VIDAL, 1998, GRAZZIOTIN, 2016).
De acordo com Rosália Duarte (2004), as entrevistas nas pesquisas qualitativas são importantes quando se deseja mapear crenças, valores e universos sociais específicos. O prefácio escrito por Bruno César Cavalcanti para o livro
A entrevista compreensiva, de Jean-Claude Kaufmann, destaca que a entrevista compreensiva não surge apenas a partir da construção do roteiro: deve-se valorizar a boa sociabilidade entre o pesquisador e pesquisado, encorajando
Arabela Campos Oliven: um percurso de docência e pesquisa nas ciências sociais (1960 – 2012)
que devemos, inclusive, dar atenção à reflexividade do entrevistado instigada pelo entrevistador. A partir dessa autorreflexão que o pesquisado faz de si, damos a ele espaço e possibilidade para que pense e processe explicações de si “num movimento de autoconhecimento […] que também é autoconstrução” (KAUFMANN, 2011, p. 16).
Quanto às questões éticas vinculadas à essa pesquisa, o nome da professora Arabela será mantido, uma vez que a investigação tem cunho historiográfico e trata de uma trajetória de vida, com base no referencial de egodocumento 4 . Para isso, os seguintes cuidados éticos foram observados: a) a professora Arabela assinou um termo de consentimento livre e esclarecido; b) foi feita a devolutiva da transcrição da entrevista para sua apreciação e eventual exclusão do que não achasse adequado. c) com base em Mainardes e Carvalho (2019) foi feito, ainda, uma autodeclaração de procedimentos éticos. Mesmo optando pelo modelo contratual do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), atento para nosso comprometimento com a sensibilidade às particularidades da pesquisa social. Com essas considerações que entendemos como fundamentais, será explicitado o percurso metodológico com relação ao arquivo em que foi localizada a documentação.
No Arquivo Memória Faced existem diversos registros empíricos feitos por professores que podem demonstrar tanto os elementos das instituições educativas, quanto reflexos educativos da época. As aspirações da investigação se voltavam para conhecer essas outras empirias – e achar entre elas documentos relacionados ou diretamente vinculados à professora Arabela. Com efeito, garimpar planos de aula, diários, sistematizá-los para uma análise com leitura integral com transcrição de trechos considerados interessantes, organização de quadros para realizar um cruzamento de dados ao relato da professora a partir da entrevista compreensiva eram o objetivo. Contudo, a pandemia do Covid-19, que iniciou no Brasil em meados de março de 2020 e segue até 2021, impossibilitou a visita física ao espaço, pois tudo estava fechado de acordo com os procedimentos sanitários que não autorizavam visitação. Desse modo, tivemos a necessidade de repensar a estratégia metodológica. Escolhemos,
4 As autoras Ana Camargo e Silvana Goulart definem o egodocumento “como aqueles documentos não tradicionais de procedência administrativa, isso é, documentos oriundos do espaço doméstico e que contêm elementos da personalidade do autor” (BRITTO; CORRADI, 2018, p. 99). O egodocumento contém a presença materializada do “eu” do autor no texto. Esses são documentos que formam os Arquivos Pessoais e diferenciam-se dos documentos institucionais. Ver mais sobre o conceito em BRITTO, Augusto César Luiz; CORRADI, Ana Laura. Egodocumentos: Os documentos que expressam a personalidade, intimidade e motivações dos titulares de Arquivos Pessoais , disponível nas referências.
então, trabalhar com a análise da narrativa oral, já transcrita e disponibilizada online, e outra realizada em 2020 no percurso da pesquisa.
A entrevista obtida por meio do projeto foi realizada em 2017. Refere-se ao projeto “Memória Faced”, que reúne as memórias dessa instituição e um pouco da constituição da formação e docência da professora Arabela na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Já a entrevista realizada em 2020, via remota pela plataforma Zoom, foi feita de forma a ampliar as informações contidas nesse primeiro documento. Esta entrevista contou com um roteiro semiestruturado com perguntas voltadas para atingir os objetivos desta pesquisa.
Dos relatos, tratados como documento oral, emergiram as memórias que se configuraram em aspectos, por vezes singulares, da trajetória de Arabela e, por vezes, fazendo parte de um contexto econômico e social comuns a uma geração. Pollak (1989) evidencia a dimensão dos ditos e dos não-ditos para a construção de uma memória, seja ela coletiva ou individual.
Em muitos casos, esses rastros revelam interpretações adversas daquelas que podem ser consideradas oficiais. Ainda sobre a memória, Grazziotin (2016, p. 166) salienta que “[…] a memória é movediça e subjetiva; não se encontra previamente organizada; […] em uma gaveta ou em um armário e, embora tenha grande potencial como fonte histórica, precisa ser produzida e organizada pelo pesquisador”.
Para a autora, quando se trata dos acervos de memória, não podemos organizar diretamente a narrativa oral, pois só temos acesso ao documento produzido por outro historiador – e interpretado por ele – não levando em conta expressões, pigarreios, entonação de voz, silêncios e outras coisas que aparecem quando essa narrativa oral se transforma em documento. Contudo, “a legitimidade na utilização de arquivos orais está relacionada à riqueza de informações que alargam a vida dos sujeitos”. (GRAZZIOTIN, 2016, p. 171).
Ter essa memória arquivada possibilita retomar o relato transcrito a partir da entrevista realizada com Arabela, o qual mobilizamos e ampliamos alguns aspectos elencados por ela nessa outra oportunidade.
Ao tratar da trajetória da professora Arabela, analisando suas entrevistas, entendemos que no seu percurso o conceito de intelectual se aplicaria. O conceito de intelectual partiu de uma referência ao debate público e político, das ideologias e da secularização dos valores (LECLERC, 2005). Tal categoria social, hoje, a partir do olhar sociológico, precisa passar por um estudo das relações criadas a partir deste conceito, bem como um estudo dos diferentes trabalhos intelectuais, uma vez que a categoria tem ligação evidente com certas profissões (professores,
escritores, universitários, jornalistas, etc). De acordo com Leclerc, o intelectual é aquele “[…] no exercício de uma profissão intelectual e que participa ativamente das atividades das redes intelectuais” (2005, p. 74).
Para somar essa discussão, Sirinelli (1998) buscou parâmetros para delimitar as categorias que circundam o meio intelectual. Sob o ângulo da História Cultural, focando “no circuito de produção, divulgação e recepção dos produtos culturais” (ALVES, 2019, p. 3), o autor também chegou à noção do engajamento político e seus desdobramentos. No percurso da pesquisa, a ideia de mediação e criação vinculada às definições de Sirinelli foi observada na trajetória de Arabela de modo que operar com esse conceito se configurou em uma alternativa potente para as análises.
Ao longo de suas produções científicas vinculadas às políticas afirmativas, Arabela apreendeu os estudos que estavam sendo desenvolvidos acerca do tema nos Estados Unidos e na Europa para, a partir desse contato, dessa aprendizagem e dessas experiências, mediar e criar suas próprias investigações e trazê-las ao Brasil.
Ainda de acordo com Sirinelli, o intelectual é caracterizado pelo engajamento, mas também com as formas de produção, circulação e recepção de produtos culturais. De acordo com Alves (2019), existem duas formas de sua manifestação: o engajamento direto e indireto. O engajamento direto é quando os intelectuais se apresentam como atores e testemunhas de acontecimentos, no objetivo de interpretá-los, descrevê-los e intervir de forma direta no debate e na ação política. Já o engajamento indireto é quando existe uma atitude mais passiva quanto a ação política, mas os resultados do trabalho dos intelectuais nessa categoria repercutem no objetivo de uma reflexão geral. É por isso que, para o autor, o engajamento precisa ser analisado no meio intelectual com uma pesquisa detalhada, para evitar generalizações, mitificação de intelectuais e outras premissas. A trajetória de Arabela pode ser vista pela noção de engajamento indireto, pois seus trabalhos produziram uma reflexão geral sobre as mudanças das políticas afirmativas de instituições educativas norte-americanas e europeias. Isso para que, de alguma maneira, suas análises repercutissem no Brasil trazendo o tema para introduzi-lo à cena, contribuindo no debate acadêmico e no debate público.
De acordo com Gomes e Hansen (2016), aderir a uma concepção mais ampla de intelectual implica em algumas mudanças na forma de abordar e perceber os sujeitos históricos e sua relação com a sociedade. O campo intelectual, embora possua uma autonomia, caracteriza-se, entre outros aspectos, por contornos
porosos capazes de trocas e de influências com outras esferas da vida, tanto políticas quanto culturais e sociais.
As autoras enfatizam a importância da desconstrução da imagem do intelectual como “gênio criador”, isolado em seu campo e em determinadas dimensões estabelecidas da vida social a partir desse campo. Essa desconstrução colabora para a ruptura entre a percepção de possíveis visões antagônicas de “criadores”, que corresponde a “alta cultura” e os “divulgadores”, que são considerados, muitas vezes, como meros “transmissores” de conteúdo para o público. Com isso, o intelectual mediador passa a ser considerado como um sujeito ativo, envolvido e articulador nos processos de criação. Segundo Gomes e Hansen (2016), aquilo que o intelectual mediou se torna, de forma efetiva, outro produto; o mediador agrega valor ao produto cultural do qual se apropria para difundir.
Percebemos a trajetória de Arabela representativa do conceito de “intelectual mediadora” por algumas razões. Primeiramente, chamamos a atenção para o recorte das práticas de mediação e produção cultural realizadas pela professora. Desde 1980, Arabela produz artigos científicos, entrevistas e capítulos de livros acerca do sistema universitário brasileiro, fazendo comparações com outros países e discutindo seus desdobramentos. Quando Arabela parte para a Europa e depois para os Estados Unidos para continuar sua formação acadêmica, tem contato com essas discussões latentes.
Nos Estados Unidos, por conta das questões emergentes e dos desafios do ensino superior eram debatidas a importância da mobilidade social com ações afirmativas e as relações raciais e política de cotas nas universidades. Vivenciando e aprendendo sobre o assunto, Arabela voltou ao Brasil sendo uma das primeiras intelectuais da universidade a produzir conhecimento científico voltado às ações afirmativas e cotas (principalmente raciais). Seus estudos também se voltaram para as primeiras produções que problematizaram como o ensino superior se deu no Brasil, se foi algo mais voltado para a massificação ou se realmente era uma democratização. Seus estudos também foram publicados em capítulos de livros, em textos para jornais e revistas e voltadas ao público jovem estudante e não estudante. Isso tudo faz parte da memória da UFRGS, demonstrando o quanto o trabalho de Arabela foi relevante para a instituição,
transformando as práticas educativas da época e trazendo discussões que seguem sendo importantes até os dias de hoje.
Segundo Gomes e Hansen (2016), o trabalho precisa de muita dedicação e empenho para se especializar em escrever/falar/fazer/gerir/organizar, movimentar-se entre criador e mediador. É nesta cena que a trajetória da professora Arabela se insere: uma intelectual mediadora que teve como profissão a docência e se envolveu na produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social – e essa produção de conhecimentos e comunicação de ideias está ligada à sua docência e pesquisa.
A respeito de sua produção científica, desde 1980 pode-se perceber que inicialmente seus artigos tinham como objetivo analisar os sistemas de educação e modelos de mobilidade social, expansão do ensino superior, autoritarismo e despolitização estudantil e diversas outras produções voltadas para a Sociologia da Educação e comparações de sistemas universitários de países como Inglaterra, Estados Unidos e Brasil. Até que, em 1996, retoma o assunto da política de ingresso nas universidades dos Estados Unidos.
Arabela teve seu primeiro contato com as ações afirmativas e políticas de cotas para ingresso no ensino superior (principalmente as cotas raciais) em Berkeley. Quando começou a discorrer sobre esse assunto, Arabela (2021) diz que: “ […] na questão do modelo, pelo que eu entendi de intelectual mediador, eu me vejo agora como um modelo que sempre teve coerência, por que eu sempre fui a favor da democratização, sempre fui a favor de uma sociedade mais igualitária, mais solidária”. E acrescenta:
Sou a favor de cotas e sempre fui, a partir da minha experiência lá nos Estados Unidos; e cotas raciais. Não que eu seja contra as cotas sociais. Eu vejo em segundo lugar. Se tivesse que escolher uma, eu escolheria as raciais. Então eu tenho essa coerência. Quando eu cheguei nos Estados Unidos e vi a experiência, eu me interessei, eu falei com os professores, eu observei. E eu disse: eu quero divulgar uma coisa que está sendo muito discutida aqui e não tanto no Brasil (ARABELA, 2021).
Quando Arabela apresentou o artigo sobre as ações afirmativas intitulado Multiculturalismo e a política de ingresso nas universidades dos Estados Unidos, em 1996, para a revista Educação e Realidade, os pareceristas disseram que era muito interessante, mas que “o título não podia ter ação afirmativa, pois ninguém sabia o que era” (ARABELA, 2020). Nesse sentido, Arabela foi uma das intelectuais pioneiras em trazer essa discussão para a universidade e produzir
conhecimento científico voltado às ações afirmativas e cotas raciais. Mas não só para seus pares, pois difundiu o assunto em capítulos de livros, textos em revistas, jornais e até em entrevistas. Selecionamos para discussão alguns, entre os inúmeros artigos publicados ao longo de sua carreira.
Analisando suas produções mais antigas, percebemos que começou a constituir seus primeiros estudos voltados para os sistemas de educação e modelos de mobilidade social a partir de uma comparação com a Inglaterra, os Estados Unidos e o Brasil. Depois, voltou-se para pesquisas sobre a expansão do ensino superior e a problemática da democratização do ensino ou cooptação. Arabela (2021) diz que, a partir de 1968, houve um processo de privatização do ensino que teve dois lados da moeda, “tanto o lado positivo, deu capilaridade ao sistema, porque antes para estudar você tinha que ir para a capital […] e, paralelamente, grandes ofertas de cursos de baixo custo, que possibilitou a essas instituições lucros altos”. Nesse sentido, Arabela acredita que o setor privado de ensino precisa de certa supervisão para que não perca a qualidade. Somado a isso, se perguntou se o que aconteceu foi uma democratização da educação superior ou uma cooptação de cunho mercadológico.
Suas produções seguintes vão variar os assuntos, partindo para os aspectos sociológicos da alfabetização, depois para autoritarismo e despolitização estudantil e o estudo da classe média na Sociologia da Educação. Infelizmente, esses trabalhos não estão disponíveis em formato digital para leituras integrais.
Após essas publicações, Arabela converge sua atenção para o ensino superior novamente. Sua produção intitulada Universidade brasileira: indústria do conhecimento’ ou ‘consciência das comunidades, Arabela trata sobre as reformas universitárias durante o governo militar que procuraram associar as modificações do ensino superior com as diretrizes de desenvolvimento econômico da época, pensadas pela perspectiva de formação de recursos humanos, progresso técnico e pelo prisma do capitalismo norte-americano. Para ela, a principal causa da reforma universitária foi a necessidade de cooptação da classe média que reforçou o movimento de 1964, já que o diploma de ensino superior constituía uma garantia de acesso dessa classe média ao mercado. Nesse sentido, a modernização estimulada pela reforma era interessante para os empresários, para as empresas multinacionais e para a burocracia estatal, sem apresentar custos altos ao Estado.
Cabe ressaltar que a Reforma Universitária ocorreu em 1968 a partir de uma série de leis que modificaram o ensino superior no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. De acordo com Martins (2009), para aqueles à frente da Reforma, a educação superior deveria ter objetivos práticos e adaptados às metas do desenvolvimento nacional.
O forte controle político que pesava sobre o meio acadêmico do ensino público mobilizou os estabelecimentos educacionais particulares. Ainda de acordo com Martins (2009), a adesão dos proprietários dessas instituições educativas privadas era de acordo com os valores do regime autoritário, facilitando então a ampliação de seus negócios. Arabela sempre manteve uma postura de forte crítica aos desdobramentos educacionais e políticos dessa época, e podemos ver esse reflexo no contexto de suas produções.
Retomando seus estudos, Arabela publicou sua pesquisa a respeito da democratização do ensino ou do processo de cooptação no Canadian Journal Of Latin American And Caribbean Studies, abrindo o leque das suas redes de sociabilidade ao longo do seu itinerário. Passando para seus próximos trabalhos, volta-se para o desenvolvimento da Sociologia da Educação dos Estados Unidos e da Inglaterra em uma análise comparativa. Nesta investigação, ressalta os fatores sociais que influenciaram as questões teóricas e os tipos de respostas que lhes foram dados em alguns períodos. Um dos teóricos utilizados em seu trabalho é Bernstein, que fala sobre classificação e enquadramento do conhecimento a partir de visões elitistas de ensino, como era o caso do sistema inglês da época, que separava os estudantes a partir de testes e os alocava em um sistema tripartido de ensino: A gramar school (a mais seletiva), a modern school (destinada às massas) e a technical school (sendo o que Arabela chama de “escola tampão”, voltada para amenizar as fronteiras entre o ensino de elite e o de massas). Já o sistema norte-americano oferecia uma cobertura mais ampla. Como dito anteriormente, Bernstein foi um dos intelectuais que influenciou teoricamente o seu trabalho acadêmico.
No trabalho O desenvolvimento da sociologia da educação em diferentes contextos históricos , Arabela segue seus estudos comparados entre Estados Unidos e Inglaterra no que diz respeito a características de seus sistemas educacionais e ao desenvolvimento da Sociologia da Educação, reforçando as informações anteriores.
Chega-se, então, ao Multiculturalismo e a política de ingresso nas universidades dos Estados Unidos , em 1996, publicado na revista Educação e Realidade da UFRGS. Neste artigo, ela investiga a crescente presença de minorias, até pouco tempo praticamente excluídas, das instituições de ensino superior mais seletivas nos Estados Unidos, o que gerou diversas polêmicas.
Cabe ressaltar que as políticas de ação afirmativa aqui no Brasil só começaram a acontecer depois da experiência dos Estados Unidos. De acordo com Erica Caetano, em 2000 a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovou uma lei que reservava metade das vagas das universidades
estaduais para estudantes de escolas públicas. No ano seguinte, uma nova lei determinou que 40% dessas vagas deveriam ser destinadas à autodeclarados negros e pardos.
Em 2004, o vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) reservou vagas para estudantes de escolas públicas e para negros e pardos, configurando-se como a primeira universidade do país a adotar um sistema de cotas. Depois foi a Universidade de Brasília (UnB), que, no mesmo ano, implantou uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular. Depois da UnB, várias outras universidades federais passaram a reservar vagas para estudantes de escolas públicas e candidatos negros, pardos e indígenas. No entanto, ainda de acordo com Erica Caetano, não existia uma padronização sobre esses processos e cada instituição definia seu critério. Por conta disso, iniciaram discussões sobre a criação de uma lei federal de cotas. A chamada Lei de Cotas, conhecida também como Lei nº 12.711, foi aprovada apenas em 2012. Com ela, todas as instituições de ensino superior federais do país precisaram, obrigatoriamente, reservar parte de suas vagas para cotas sociais e raciais.
Com isso, é possível ressaltar que Arabela foi pioneira em trazer essa discussão para o Brasil. Neste artigo de 1996, produziu críticas construtivas sobre as ações afirmativas com base na experiência norte-americana. Para ela, a definição de minorias discriminadas nas ações afirmativas se baseia numa categorização formal que facilita a operacionalização do conceito, mas que acaba essencializando o pertencimento a um grupo de origem.
Outro fator é que, embora oferecendo mecanismos de incentivo para grupos previamente marginalizados e discriminados, as ações afirmativas não questionavam a orientação individualista e meritocrática da sociedade norteamericana. Nesse sentido, os grupos são cooptados para participar das esferas econômica, acadêmica, política e, na medida em que eles são bem-sucedidos, passam a servir de exemplo aos demais num processo competitivo. Isso, claro, foram pontos discutidos por Arabela com base nas primeiras experiências dos Estados Unidos. Arabela evidencia também que as políticas de ação afirmativa favoreceram a mobilidade social de certos segmentos da população negra e de outros grupos discriminados. Ela abriu as portas da universidade para minorias. Se as primeiras iniciativas foram em 2000, quatro anos antes Arabela proporcionava subsídios com estudos sobre as experiências de ações afirmativas norte-americanas, dos bônus e dos ônus, justamente para enfatizar sua necessidade. Como intelectual mediadora, demonstrou-se ativa, envolvida e articuladora nos processos de criação dessa área de estudo.
O artigo chamado Ações afirmativas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o seu significado simbólico analisa como as desigualdades de renda, educacionais e raciais no Brasil se traduzem em privação de oportunidades para grande parte da população, reforçando o ciclo de exclusão em nossa sociedade. Apresenta o debate sobre as políticas de ação afirmativa, principalmente o referente a cotas nas universidades, a partir de quatro manifestos públicos. Discute o significado simbólico da implementação dessas políticas tomando o caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como exemplo, mobilizando a discussão para a universidade na qual ministrava aulas.
O estudo de nome Expansão da Educação Superior e Arquiteturas Acadêmicas: tensões e desafios foi o primeiro escrito com outras autoras, realçando suas redes de sociabilidade novamente. Trata da expansão da educação superior brasileira na relação com arquiteturas acadêmicas surgidas pós Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (lei que visava ampliar os direitos educacionais, a autonomia de ação das redes públicas, das escolas e dos professores e deixar mais claras as atribuições do trabalho docente), analisando os marcos regulatórios e as estatísticas oficiais. São identificados dois movimentos expansionistas, suas arquiteturas, tensões e desafios: o primeiro relacionado à inclusão social pela via da diversidade e estratégias de diversificação como o Programa Universidade para Todos (PROUNI) e o Programa de Apoio a planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI); e o segundo relacionado à inclusão internacional pela via da referência em padrões desdobrados da globalização. As autoras indicam que os desafios convergem para a importância de uma política de Estado que ultrapasse governos e facções políticas e que a internacionalização seja indutora de uma expansão orientada para o social e para a qualidade da universidade pública brasileira.
Prosseguimos para suas publicações, em português e inglês, sobre as ações afirmativas na UFRGS e a ocupação de negros e indígenas nesta instituição. Na pesquisa, as autoras refletem que as universidades costumam ser redutos da branquidade. No período de 2008 a 2012, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul implementou uma política de ação afirmativa que aumentou as oportunidades de alunos pretos, pardos e indígenas para que adentrassem em cursos de graduação. Nesse sentido, o artigo discute essa política – sua aprovação, características, implantação, avaliação e reformulação, assim como seus resultados. Analisa a experiência do primeiro grupo de universitários negros e indígenas a ingressar na UFRGS por meio da reserva de vagas. No fim, aponta os significados das políticas de inclusão de negros e indígenas nas universidades públicas brasileiras e os desafios que elas representam para essas instituições.
Sua última publicação, tanto em formato digital quanto em formato impresso, se chama Educação superior e políticas de ação afirmativa no Rio Grande do Sul: desigualdades e equidade . Foi escrito com Célia Elizabete Caregnato. O artigo compara os níveis de informação, aceitação e julgamento de políticas de ação afirmativa na educação superior brasileira com base em uma pesquisa realizada no ano de 2015 com a população do Rio Grande do Sul. A análise se baseou na comparação de duas leis: no setor privado, a Lei nº 11.096/2005, que criou o PROUNI, e a Lei nº 12.711/2012, conhecida como a Lei de Cotas, implementada no setor público federal. Constatou-se grande familiaridade com o PROUNI e alta aceitação do Programa. Por outro lado, praticamente um terço desconhecia a Lei de Cotas e quase 10% dos entrevistados posicionaram-se contra ela. Em vista desse resultado, analisaram-se as razões e consequências da pouca informação sobre a Lei de Cotas e sua aceitação.
Temos ainda as publicações de textos em jornais e revistas informativas, no entanto não os localizamos em formato digital e não foi possível saber se as versões impressas se encontram em algum arquivo institucional. É notável que, em quase todos os casos, existe a informação de que foi publicada no “jornal da universidade” – possivelmente na UFRGS. Esses impressos circulavam na universidade entre os professores, os estudantes e a comunidade acadêmica e escolar como um todo. Em todos eles os temas principais giram em torno das políticas de ação afirmativa e a luta pela inclusão. Isso propicia a hipótese de que Arabela também mediava suas práticas culturais e estudos científicos para além de seus pares – para além de doutores e pesquisadores especializados, já que a comunidade escolar pode abarcar um largo público.
Na composição desse corpus analítico, localizamos as entrevistas que Arabela concedeu a jornais e programas, bem como citações e comentários realizados na mídia sobre ela. Das três entrevistas, conseguimos acessar apenas uma, intitulada “Fraternidade separa líderes e perdedores nos EUA”, realizada em 2007 e publicada na Folha de São Paulo, em formato digital. De acordo com Arabela, existe um sentimento de pertencimento ao participar de fraternidades nas universidades norte-americanas. Em matéria de residência no campus, pertencer a uma fraternidade é um sinal de distinção social, pois elas são espaços de sociabilidade e acabam ampliando o capital social do estudante por meio de redes de contato com colegas de outras universidades e ex-alunos. Arabela também foi citada em uma entrevista de 2018 sobre as ações afirmativas, e isso pode atestar o quanto seu trabalho acadêmico sobre este conteúdo contribuiu de maneira significativa.
A larga produção científica de Arabela aponta para a possibilidade de entendermos seu percurso por meio do conceito de intelectual mediador, uma vez que a centralidade de sua produção cultural foi dedicada às práticas voltadas para projetos de mediação cultural que envolveram a divulgação de conhecimento e de valores – estando ligada direta e indiretamente a uma dimensão pedagógica e política em sentido mais amplo.
De acordo com Gomes e Hansen (2016), a categoria de “intelectual”, dentro dos estudos sociais da História Cultural, ajuda a compreender o quadro geral das condições de produção e circulação político-sociais de ideias. Por isso, como categoria de análise, o intelectual aparece como elemento fundamental da mediação cultural. Olhar para a trajetória da pesquisadora e docente em questão é visualizá-la como uma intelectual não só emissora ou condutora isenta, mas alguém que interage e agrega ideias, valores e discursos ao produto cultural que media; no seu caso, trata-se do conhecimento acerca do sistema universitário brasileiro, inglês e norte-americano, bem como seus desdobramentos que orbitam em torno da política de cotas, das ações afirmativas e da problemática da mobilidade social.
Arabela, nesse sentido, é uma intelectual ativa e produtora de sentidos, ainda que de mediação. Sua pesquisa e docência movimentou-se entre mediação e criação, articulando essas duas formas de intelectualidade. Isso porque teve contato e absorveu conteúdos e temáticas quando estava fora do Brasil a partir dos autores e dos projetos socioculturais e políticos vigentes presentes nessas universidades. Arabela criou, a partir de seu aprendizado, novos produtos culturais – ou seja, produções científicas acerca dos temas já mencionados. Isso acarretou num aspecto importante do intelectual mediador, que é a “transmissão cultural” para sociedade mais ampla, a partir dos seus processos de criar e mediar. Outro fator é seu pioneirismo nas discussões sobre as ações afirmativas e políticas de cotas. Antes mesmo de elas serem se quer consideradas no Brasil, Arabela já discutia seus pontos negativos e positivos a partir de análises sobre o sistema de ensino superior norte-americano.
Somado a isso, a docência de Arabela foi coerente com sua larga produção científica; foi engajada e mobilizadora. Seu objetivo pedagógico visava desenvolver uma sensibilização nos alunos, um objetivo que faz parte das Ciências Sociais desde sua criação. Na sua visão, a Sociologia estuda a desigualdade, estuda a exclusão, estuda os problemas sociais, mas precisa provocar no aluno, para além desse processo apenas indagador, uma sensibilidade social. Como docente, sempre frisou que acreditava na capacidade criativa do estudante. O aluno, a partir de metodologias que envolvem a criação de projetos, vai entendendo
a complexidade das pesquisas sociais e dos desafios de se fazer estudos com rigor teórico e metodológico. É sobre se perguntar “o porquê” e “o como das coisas”, mas também de ser interessado em, para além de descobrir a resposta dessas perguntas, tentar mobilizar suas ações e seus estudos para além delas.
Iniciamos esta pesquisa convidando o leitor a explorar o percurso acadêmico da Prof.ª Dra. Arabela Campos Oliven no período entre 1960-2012. Visando identificar elementos da trajetória intelectual da professora e pesquisadora em questão no campo das Ciências Sociais, no processo apresentamos e debatemos alguns dos pressupostos teórico-metodológicos da história da educação, demonstrando como a abordagem micro histórica apresenta possibilidades interessantes no estudo das trajetórias individuais.
Na pesquisa aqui construída, optamos por analisar a trajetória de Arabela a partir do conceito de “intelectual mediador”. Com isso, pudemos fazer uma reconstituição da sua caminhada, identificando os elementos que permearam os encontros, as leituras, as posições institucionais e sua participação em diversos espaços. A partir de uma análise sobre as produções científicas de Arabela, pudemos conhecer a intelectual no âmbito de sua trajetória, aspectos que consideramos relevantes, a partir de critérios por nós arbitrados, na constituição de sua formação, nas suas escolhas e nos seus estudos. Pudemos compreender um recorte histórico circunscrito a determinadas transformações culturais e acadêmicas que deram novos aspectos as práticas intelectuais. Nesse aspecto destacamos sua produção a respeito das políticas afirmativas e políticas de cotas. Arabela foi vanguardista neste debate no cenário acadêmico brasileiro e seus estudos tiveram ressonância na comunidade escolar de onde lecionava e pesquisava.
Foi possível produzir a trajetória de Arabela a partir de elementos que apareceram ao longo do processo de sua narrativa da constituição de sua formação, docência e pesquisa. Isso porque amparamos este estudo não só a partir de uma análise sobre suas produções científicas, mas também pela entrevista compreensiva que Arabela concedeu e o documento oral disponibilizado. Nesses dois documentos, foi possível conhecer os rastros significativos ao longo de sua história de vida, que de certa forma foram pontos de referência para este estudo de cunho historiográfico.
Para finalizar retomamos a perspectiva de intelectual mediador. De acordo com Angela de Castro Gomes (2020), existia uma clara hierarquia pela qual os intelectuais mediadores não eram vistos como “verdadeiros intelectuais”. Porém, a mediação envolve processos complexos de criação cultural, pois também é um trabalho que cria algo específico e original, porque o faz para um público amplo.
Tão importante quanto produzir conhecimentos é divulgar esses conhecimentos e saberes, alcançando diversos círculos públicos, em diversos tamanhos e formas. As práticas culturais de Arabela voltaram-se exatamente para estas propostas. Com muita coerência e engajamento político-pedagógico, foi vanguardista, professora, pesquisadora. Nesta pesquisa, não temos a intenção de generalizar os resultados aqui apresentados, uma vez que trabalhar com o conceito de intelectual mediador requer aproximação dele ao objeto de estudo, para que então tenhamos a chance de reconhecê-lo por meio da pesquisa. A intenção é ampliar o debate e fomentar que mais pesquisadores se voltem para as narrativas não-oficiais de docência e entendam a importância delas na busca à resistência ao esquecimento.
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Olga Reverbel e o teatro na educação no Brasil
Cristiano GoldschmidtEste artigo apresenta parte dos resultados de minha pesquisa de mestrado, intitulada O protagonismo de Olga Reverbel no ensino de Teatro no Brasil: um percurso biográfico, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação da professora Vera Lúcia Bertoni dos Santos. Nessa pesquisa, revisito aspectos da vida e da carreira da professora Olga Garcia Reverbel (São Borja, RS, 1917 – Santa Maria, RS, 2008), protagonista do ensino de teatro em âmbito escolar no Rio Grande do Sul e uma das teóricas pioneiras no que se refere às relações entre teatro e educação no Brasil.
O meu interesse pela trajetória de Reverbel não é recente e tem me conduzido a uma investigação mais ampla, que vem sendo desenvolvida desde 2004, ano em que iniciei a realização de entrevistas com pessoas que conviveram com Reverbel e cujos depoimentos possibilitaram vislumbrar uma história relevante no campo da pedagogia do teatro que precisava ser registrada e compreendida.
Desde então, tenho desenvolvido estudos, produzido e armazenado dados de diversas fontes, que incluem livros, documentos e entrevistas diretas realizadas com a própria Reverbel, com quem estabeleci uma relação de colaboração. Mas foi a partir de uma série de entrevistas realizadas com ex-
alunos, colegas de trabalho, amigos e familiares de Reverbel que a pesquisa que deu origem a minha dissertação se delineou com mais nitidez.
Na busca por compreender o que essa pensadora, escritora e professora representa na formação de uma geração de profissionais que atuam na área das artes, na academia ou fora dela, e na formação de um público frequentador de teatro, em minha dissertação privilegiei não apenas os depoimentos de profissionais que atualmente se dedicam ao ensino do teatro em instituições de educação básica ou de ensino superior, mas também aqueles que, influenciados por Reverbel, seguiram carreira artística e outros, ainda, que reconheceram a importância da atuação dela para a consolidação do campo que, atualmente, denominamos Pedagogia do Teatro. Para o presente artigo, apresento um recorte com depoimentos de profissionais ligados ao ensino das artes e do teatro na educação formal brasileira.
O objetivo da minha pesquisa, muito mais que investigar a trajetória profissional de Reverbel, foi evidenciar a importância da sua contribuição, na medida em que se trata de uma professora de teatro que desenvolveu um trabalho pioneiro sobre as artes cênicas na sua dimensão educacional, num tempo não apenas de muitas dificuldades para as mulheres nos mais diferentes campos do conhecimento, mas também de restrição à busca por uma formação mais profunda nessa área artística e pedagógica fora de centros como Rio de Janeiro e São Paulo, quando não no exterior.
Como o leitor verá nas páginas que seguem, além de ser responsável por um trabalho precursor no Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre, a partir 1969 Reverbel passa a integrar o corpo docente do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lecionando as disciplinas de Evolução do Espetáculo e Improvisação e Direção no Teatro Infantil, vinculando-se mais tarde à Faculdade de Educação da mesma Universidade, onde assume a disciplina de Didática e Prática de Ensino de Arte Dramática. Leciona, ainda, literatura dramática e dramaturgia no Instituto de Letras da UFRGS, mantendo, paralelamente, seu trabalho com estudantes de 1º e 2º graus (correspondentes aos atuais Ensino Fundamental e Ensino Médio) no Colégio de Aplicação da UFRGS.
Olga Reverbel tem sua trajetória profissional ligada à história da UFRGS, por isso considero de suma importância apresentar parte de minha pesquisa de mestrado sobre sua vida nesta obra intitulada Histórias sobre a UFRGS: a pesquisa como resistência ao esquecimento. A partir desta publicação, busco contribuir para que a atuação de Reverbel seja sempre lembrada, oportunizando que novas pesquisas acerca de seu trabalho possam surgir.
Ao lado de Maria Clara Machado (Belo Horizonte, 1921 – Rio de janeiro, 2001), o Brasil teve em Olga Garcia Reverbel uma das teóricas pioneiras do teatro na educação. Nascida em São Borja, a jovem Olga viveu em Santana do Livramento de 1928 a 1939, onde concluiu seus estudos de magistério (em nível secundário) no ano de 1936.
Aos 19 anos, Olga recebeu a sua primeira classe de alfabetização. A turma era composta por 64 alunos; desses, com sua “ciência pedagógica”, ela conseguiu ensinar apenas quatro alunos a ler. Reverbel refere-se a esse “fracasso” como motivador da sua busca por novos caminhos para ensinar. Precocemente, de forma autodidata, sem qualquer experiência e com poucas referências, a jovem professora descobriu no teatro um campo fértil de possibilidades educacionais, que passou a experimentar intuitivamente na sua sala de aula.
Em 1939, na companhia de sua irmã, Maria de Garcia, Olga transfere-se para Porto Alegre, onde são recebidas pelo irmão, Amílcar de Garcia, residente na capital desde 1935. Estabelecida na cidade, Olga é convidada a lecionar no Instituto de Educação General Flores da Cunha, instituição da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul das mais respeitadas e tradicionais, onde a sua carreira docente e o interesse pelo teatro tomariam outra dimensão.
Responsável pela disciplina de teatro na educação, oferecida em caráter optativo a estudantes do curso normal, contando inicialmente com um grupo de 18 normalistas, a professora passa a pôr em prática suas atividades teatrais. O sucesso das aulas eleva consideravelmente a procura pela disciplina, que, no ano seguinte, atinge um total de 200 inscrições. A expressiva quantidade de participantes motiva a então diretora da instituição a inserir regularmente a disciplina no currículo do curso.
Plenamente ambientada na capital, onde frequenta o meio artístico e intelectual, Olga é apresentada ao jornalista e escritor Carlos Reverbel (19121997), profissional de reconhecida carreira, com quem se casa, em 1941. Em 1947, Olga e Carlos viajam a Paris, onde ela realiza estudos em dramaturgia e literatura na Université Paris – Sorbonne, recebendo também convite para lecionar em cursos de graduação e pós-graduação, e vincula-se, na condição de observadora, a grupos de teatro, ampliando o aprendizado de variados aspectos da prática teatral, o que lhe possibilita desenvolvê-los, posteriormente, em sala de aula.
Com a morte da mãe de Carlos Reverbel, em 1946, o casal recebe uma pequena herança, que, somada ao dinheiro arrecadado com a venda de móveis, livros e quadros, possibilita-lhes a compra das passagens na terceira classe de um navio espanhol sob bandeira panamenha, o Philippa, no qual viajam por 29 dias, até aportarem em Marselha.
No dia primeiro de fevereiro de 1947, com seu característico humor irônico, Reverbel (2001, p. 49-50) anota em seu diário: “[…] vou conhecer a França do vovô – Le jour de gloire est arrivé –, vontade de dizer obrigada à minha querida sogra. De sua morte recebemos um dinheiro que pagará a viagem. Sempre os vivos trapaceando os mortos”.
Em 22 de maio de 1947, Reverbel (2001, p. 50) anota em seu diário: “Aqui estamos nós, os dois em Paris. Paris tranquila, entrando em nosso hotelzinho de filme de Jean Gabin1. Pássaros cantando nas árvores. Dá pra fazer uma redação, tal como nos meus tempos de escola primária, lá na fronteira: ‘Primavera em Paris’”.
O casal dedica-se, diariamente, aos estudos: enquanto Carlos segue os ciclos de conferências feitas por grandes figuras da época no Colège de France, Olga frequenta as aulas na Sorbonne, sempre rodeada de amigos de diferentes nacionalidades. Paralelamente, eles mantêm um belo e heterogêneo círculo de amigos, formado por jornalistas, escritores e artistas brasileiros e estrangeiros. Mesmo com recursos financeiros limitados, não perdem os concertos em Notre Dame nem deixam de frequentar os cafés parisienses famosos do momento, como o Flore e Les Deux Magots. Outro local frequentado pelos Reverbel em Paris é a Mutualité, sala de conferências onde têm a oportunidade de ver e ouvir personalidades como Jean-Paul Sartre e Albert Camus.
Reverbel (2001, p. 75) lembra que ninguém deixava de passar umas horas no Café de Flore, em Saint Germain des Près. O dinheiro que tinham mal dava para uma xícara de chá. Ela e Margot, uma amiga americana, costumavam ir ao Flore após as duas da tarde, acossadas pelo frio, e numa tarde, com o café quase vazio, Sartre estava lá, “com seus grossos óculos de míope e sua cara de batráquio sábio” (REVERBEL, 2001, p. 75). Olharam sem atrever-se a pedirlhe um autógrafo. Segundo ela, o garçom, que parecia o dono da celebridade
1 Jean Gabin (Paris, 17 de maio de 1904 – Neully-sur-Seine, 15 de novembro de 1976), nascido Jean-Alexis Morcongé, iniciou sua carreira cinematográfica em 1931 e por mais de trinta anos foi considerado o maior ator do cinema francês. Estrela de filmes de suspenses policiais, interpretava tanto papeis de gângster como de policial.
“e cercava o escritor, fazendo mesuras existencialistas”, não resistiu, chegou-se à mesa das moças e foi contando: “Ele vem sempre a essa hora, tomar seu chá bem forte e escrever” (REVERBEL, 2001, p. 75). Ela teve vontade de perguntar ao “garçom-guarda-de-museu” se Sartre escrevera ali La nausée .
Olga e Carlos vibravam com os filmes franceses. Ele adorava ir ao Circo Medrano e aos zoológicos, e ela preferia teatro. O casal ia ao teatro sempre que tinha dinheiro ou convites. Se gostava, ela via a mesma peça mais de uma vez. Assistia aos espetáculos de Marionetes e Guignol nos parques, tudo com o objetivo de aprender para desenvolver a aprendizagem dos alunos em seu retorno ao Brasil. A rotina de estudos, as mudanças, a vida social e até mesmo as investidas de alguns pretendentes também foram apontados em seu diário no dia 26 de maio de 1947:
Se o amor abre portas, quantas já terei fechado, nestes primeiros dias de Paris? Mudamos para um vasto apartamento de uma família de um velho general da 1ª Guerra. É divertido cozinhar no quarto, numa espiriteira […]. Leio muito. Estudo com grande entusiasmo na Sorbonne. […] (REVERBEL, 2001, p. 50).
Em 1947, a descentralização teatral estava em curso na França, e o país vivia o seu florescimento cultural, com a fundação do Festival de Cinema de Cannes e do Festival de Teatro de Avignon. Embora a vida social se mostrasse intensa, Reverbel (2004) recorda que mesmo que Carlos tenha viajado como correspondente internacional do Correio do Povo – não ganhava um centavo a mais pelo posto –, o dinheiro era pouco e a fome estava sempre rondando, entre outras dificuldades. Quando alguém do grupo era convidado para um jantar, o felizardo dava seus poucos francos para um ou mais amigos poderem comer. As dificuldades do cotidiano do pós-guerra na França, com falta de dinheiro, racionamento e tíquetes de alimentação, eram comuns e não de exclusividade do casal. Sempre atenta às possibilidades de driblar as intempéries e render um dinheiro extra ao casal, em determinada oportunidade Olga descobrira que os ex-soldados americanos recebiam dos Estados Unidos travelers cheques e que a troca, no câmbio oficial, rendia-lhes poucos francos. Informada por um amigo da existência de um câmbio clandestino em Montmartre, na Place Pigalle, dirigiu-se ao local, onde encontrou um cambista, de quem se tornou amiga, passando a intermediar a venda dos travelers, lucrando com isso alguns trocados.
O dinheiro conquistado com essas transações era geralmente utilizado para aquilo que ela considerava a sua “festa maior”, a compra de ingressos e idas ao teatro. Para Olga, uma noite de grande emoção foi quando assistiram a O processo, obra de Franz Kafka de 1925, adaptado ao teatro por André Gide
e Jean-Louis Barrault em 1947. Vibraram muito quando, do alto das galerias, avistaram Gide, o de Les norritures terrestres, dos diários e de tantas obras que haviam lido em seu pequenino apartamento.
A corrida aos teatros, quando conseguia alguns magros francos nas transações feitas na Place Pigalle para os americanos. […] Inesquecível a estreia de “O Processo”, de Kafka, adaptado por André Gide e Jéan Louis Barrault. O Théâtre Marigny estava lotado, sentado à frente, o velho Gide, envolto em mantas de lã xadrez, com sua fascinante cara de Buda. Também a estreia da “Putain Respectuese”, de Sartre, no Théâtre Atélier. Mon Dieux! Como a vida podia ser bela! (REVERBEL, 2001, p. 76).
Além do câmbio clandestino, Olga descobriu que podia vender café, na Place de Ternes, a uma velha senhora polonesa. Então, arranjava café na Unesco, ou deixava secar a borra do café em seu quarto, e partia para negociar. Um dia, não tendo café, levou as malas de um amigo jornalista. A polonesa interessou-se pela nova mercadoria, mas pagava muito pouco. Olga não aceitou a oferta e teve início uma discussão, mas notou que, na mesa ao lado, estava um forte companheiro polonês. Olga saiu correndo com as malas rumo ao metrô, com o homenzarrão correndo atrás. Trêmula, conseguiu embarcar no metrô e, assim, chegou ofegante ao Boulevard Raspail, até perto da esplêndida escultura de Balzac, de Rodin. Mal conseguiu chegar ao hotel do amigo dono das malas, que desanimou com seu fracasso no negócio.
Em suas memórias, Carlos Reverbel comenta as dificuldades vividas pelo casal e registra a desenvoltura de Olga para os negócios, o que muitas vezes lhes facilitava a vida:
A Olga imediatamente se tornou especialista nas artes cambiais. Além de fazer a tal triangulação da moeda, ainda descobria os produtos em alta no troca-troca do mercado negro. Assim, um dia ela descobria um restaurante que trocava borra de café por biscoitos. No dia seguinte, o achado era um lugar que pagava bem por mercadorias de couro usadas. E nas horas vagas […] ela ainda encontrava tempo para intermediar transações cambiais para os americanos – separando uma pequena comissão pelo negócio, é claro. Mas nem sempre conseguíamos fundos para incursionar livremente no maravilhoso mercado negro do dólar. Quando isso acontecia, as coisas ficavam pretas, havendo noites em que se ia para a cama de barriga vazia. Segundo dizem, o sono também alimenta, o que talvez seja verdade, mas não impedia, naquelas circunstâncias, que se sonhasse com as mais finas iguarias (REVERBEL; LAITANO, 1993, p. 143).
A vida do jovem casal Reverbel na Paris do pós-guerra foi de estudo intenso e de muitas aventuras. Não sem algumas dificuldades, mas de constante aprendizado. Dificuldades que, considerando o período em que lá viveram, era comum a estudantes estrangeiros em geral. E quando se julgavam plenamente inseridos na cultura local, ambientados, chegou a hora de voltar. Com a aproximação do retorno ao Brasil, as conversas sobre a volta e suas implicações tornaram-se frequentes. Certa noite, quando estavam juntos à mesa de um bistrô, conversando e bebendo um cálice de vinho, Carlos mostrara-se reticente à ideia do retorno. Passados alguns dias, concordaram que era o melhor que tinham a fazer.
Do bar foram para o apartamento. Lá, junto à lareira, enquanto a água fervia para o chá, seguiam conversando, fazendo mil planos para a volta. Ele não queria voltar, queria vender o campo e continuar em Paris pelo resto da vida. Ela, ao contrário, pensava que voltar era fundamental; sentia-se comprometida com os que ficaram, devia levar-lhes um pouco do que tinha visto e aprendido (REVERBEL, 2001, p. 84).
A viagem de volta, assim como a ida, aconteceu na terceira classe de um navio, então francês, e, segundo Reverbel (2001), foi plena de perspectivas: ideias de novos trabalhos, mais aprimorados, mais capazes de sucesso e, sobretudo, mais bem pagos.
De volta a Porto Alegre, em 1948, as primeiras semanas do casal foram de euforia. Havia muito o que contar à família e aos amigos. Embora Carlos demonstrasse inicialmente um desencanto, característico dos que passam longos períodos fora, Olga encontrara um campo fértil entre os jovens alunos, com quem poderia compartilhar o que aprendera. Os primeiros dias foram marcados pela busca de um lugar para ficarem até as coisas se ajeitarem. Sabiam das dificuldades que enfrentariam nos primeiros meses. O espaço que conseguiram não diferia muito em tamanho daqueles do último ano em Paris. Mas a situação era outra: estavam entre os seus, muito embora recomeçassem do zero:
Como não havia recursos para alugar um apartamento, aceitaram o convite da ARI (Associação Riograndense de Imprensa). Não era propriamente o que se podia chamar de apartamento, apenas uma sala espaçosa com janelões dando para o rio e um banheiro comum ao andar. Um ou outro amigo emprestou-lhes alguns móveis: uma mesa, duas cadeiras, um pequeno fogão a gás e uma cama larga. O resto foi comprado mais tarde. Em cada um dos andares moravam jornalistas, todos amigos, em apartamentos mais confortáveis. Reuniam-se, à noite, depois do jornal, lá pela uma da manhã, e discutiam sobre tudo – arte,
política, escândalos, religião, futuras revoluções, culinária e educação dos filhos (REVERBEL, 2001, p. 120 -121).
Na capital gaúcha, a professora logo reassume suas atividades no Instituto de Educação (IE) (Figuras 1 e 2), onde, em 1956, cria o Laboratório de Teatro e Didática, programa considerado pioneiro no Brasil, cujo objetivo era formar professores para a escola primária. O sucesso da experiência resulta na criação do Teatro Infantil Permanente do Instituto de Educação (TIPIE), uma agremiação de cunho didático, dirigida por estudantes do curso normal que, coletivamente, se ocupavam de todos os detalhes da encenação, desde os preparos iniciais até as apresentações finais.
O ano de 1956 também foi marcado pela estreia de Reverbel na dramaturgia. Sua primeira peça, intitulada A chave perdida , foi concebida na intenção de contemplar as primeiras 18 normalistas do IE que cursaram a sua disciplina como optativa.
A professora Vera Lúcia Potthoff da Silva, que estudara com Reverbel no IE a partir de 1960, recorda suas primeiras experiências: “Os cenários, a trilha sonora e os figurinos de todos os espetáculos apresentados pelo TIPIE eram
preparados por nós mesmas. Cada uma era responsável por tudo o que dizia respeito a sua personagem”. 2
Na entrevista concedida à pesquisa, Potthoff (2007) comenta que o TIPIE incentivava a prática do teatro na escola em estreita ligação com as demais disciplinas do conhecimento:
Era o teatro contextualizado nas disciplinas de história, geografia e línguas. Fomos aprendendo contando também com o interesse dos professores da maioria das disciplinas. No curso normal já tínhamos um currículo e uma metodologia de trabalho na disciplina de teatro. No primeiro ano, prática educativa; no segundo ano, técnicas dramáticas aplicadas à escola; e no terceiro ano, técnicas dramáticas a serviço da psicologia. No último ano também tínhamos noções de psicodrama, teatro na educação e didática do teatro (POTTHOFF, 2007, informação verbal).
Os espetáculos do TIPIE eram anunciados nas colunas de teatro semanais dos jornais de Porto Alegre, que contribuíam para reunir um público de crianças e jovens vindos de diversas instituições de ensino. Nesse sentido, Potthoff lembra que esses espetáculos tinham, inicialmente, a comunidade do IE como plateia, mas que aos poucos outras escolas, até mesmo de outras 2 Entrevista concedida ao autor em 26 de abril de 2007, na residência da entrevistada, Porto Alegre.
cidades, foram conhecendo o trabalho de Reverbel e procuravam o IE em busca de material pedagógico e, principalmente, para conhecer a professora que estava revolucionando a educação a partir de uma disciplina “polêmica e maravilhosa”: o teatro.
Todas as quartas-feiras à tarde, centenas de crianças reunidas, sentadas no chão do ginásio de esportes do IE, formavam uma plateia vinda das escolas locais e dos municípios vizinhos. Essas crianças assistiam teatro pela primeira vez em suas vidas, e antes de cada apresentação, Olga conversava muito com elas, numa linguagem própria, falando da importância do teatro (POTTHOFF, 2007, informação verbal).
Desde o começo da carreira, Reverbel recebeu o apoio de diversos amigos intelectuais e famosos: “Jamais vou esquecer a tarde que passamos na casa de Erico Verissimo, quando fomos encenar para ele As aventuras do avião vermelho, texto de sua autoria”, relata Potthoff (2007, informação verbal).
Fazer o caminho inverso, a partir do presente, voltando no tempo para investigar a trajetória de Reverbel e trazer à tona o seu legado não significa ir na contramão da história. Significa, justamente, o contrário: evitar a diluição de dados e informações que tendem a desaparecer no espaço e no tempo.
O traçado percorrido que nos permite agora apontar os passos que a conduziram para uma bem-sucedida carreira acadêmica como professora de teatro contribuiu também para encontrarmos algumas características marcantes de sua personalidade e obra e para reafirmarmos a existência de outras: o protagonismo de sua atuação e a significação das suas publicações na área, as influências na sua formação e em suas práticas profissionais e a sua contribuição na formação de artistas e professores de artes e de teatro. Larrosa (2004) compreende a perspectiva de buscar essas informações a partir do que nos acontece agora, das experiências do presente:
[…] quando o ensaísta adota a máscara do historiador, o tema de suas histórias não é o passado, mas o presente. O que interessa ao ensaísta-historiador é a história do presente: não a verdade de nosso passado, mas o passado de nossas verdades; não a verdade do que fomos, mas a história do que somos, daquilo que, talvez, já estamos deixando de ser (LARROSA, 2004, p. 33).
Em 1958, ano da criação dos cursos de teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Reverbel passa a integrar a primeira turma de estudantes do curso de cultura teatral. Sua formação em artes cênicas merece destaque devido ao seu envolvimento contínuo com a dramaturgia contemporânea e à participação ativa em eventos teatrais, como palestras e espetáculos de expressão local e internacional. Outro aspecto considerado é o seu permanente interesse pelo trabalho de colegas, estudiosos e profissionais do teatro brasileiro e mundial que protagonizaram ou contribuíram com mudanças e inovações significativas em suas respectivas áreas de atuação.
A partir 1969, Reverbel passa a integrar o corpo docente do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, lecionando as disciplinas de Evolução do Espetáculo e Improvisação e Direção no Teatro Infantil. Anos depois, ela se vincularia à Faculdade de Educação da mesma Universidade, onde assumira a disciplina de Didática e Prática de Ensino de Arte Dramática. Lecionaria, ainda, Literatura Dramática e Dramaturgia no Instituto de Letras da UFRGS, mantendo, paralelamente, seu trabalho com estudantes de 1º e 2º graus no Colégio de Aplicação da UFRGS.
Ao pensar a educação a partir do par experiência/sentido, Larrosa (2002, p. 21-26) considera: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca […]. Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão”. A experiência de Reverbel, relatada em mais de uma dezena de obras da sua autoria, revela paixão pelo fazer teatral e pela docência. Paixão e experiência que nos permitem explorar e compreender sua concepção de teatro e de educação e acompanhar as distintas fases do seu relevante trabalho.
Seu primeiro livro, Técnicas dramáticas aplicadas à escola, de 1971, apresenta os resultados do trabalho no TIPIE com estudantes de diferentes níveis do ensino. A obra é considerada pelo escritor Erico Verissimo uma série de aulas vivas de “admiráveis qualidades lúdicas” (REVERBEL, 1971, orelha do livro), destacando-a como um livro útil tanto para estudantes como para professores, no qual a autora resume a experiência profissional dos 10 anos (1956-1966) que o antecederam. Segundo Verissimo, Reverbel mostra como a arte teatral pode ser ensinada sem teorias rígidas ou posturas preconceituosas, refletindo sobre o teatro como um recurso didático para a aprendizagem de diversas disciplinas do conhecimento.
Como normalistas, as alunas do Instituto de Educação General Flores da Cunha faziam parte de um importante grupo de meninas que logo iriam passar a colaborar com a formação de milhares de crianças e adolescentes. Desde o início, Reverbel levou para aquele grupo de futuras professoras o objeto primeiro de seu trabalho: as crianças.
Na época em que Reverbel inicia suas atividades, os textos dramáticos escritos especificamente para o público infantil eram escassos. Nesse cenário, a obra de Maria Clara Machado cumpre um importante papel, a exemplo da peça Pluft, o fantasminha, escrita em 1955 e traduzida para uma dezena de países, que foi uma das peças mais encenadas pelas normalistas do TIPIE. Potthoff recorda que a turma da qual era aluna estava na fase dos Jogos Dramáticos e Improvisações e que todas, assim como ela, esperavam a hora de entrar no seleto grupo de atrizes de peças infantis. Quando chegou sua vez, começou a atuar, conquistando o tão sonhado papel:
Um dia, depois de uma ferrenha disputa, em que todas queriam o papel principal, eu consegui a minha personagem dos sonhos: eu era Pluft, aquele “com medo de gente”, que falava 116 vezes. Eu me sentia muito importante! Ainda hoje lembro com carinho de algumas plateias especiais que tivemos, como as detentas do Presídio Feminino ou quando fomos numa Escola para Cegos e uma menina pediu a bonequinha que eu usava na peça e eu lhe dei. Lembro quando apresentamos para crianças surdas e também quando fomos numa pequena escola que, para podermos ser vistas pelas crianças, juntamos várias classes e jogamos um tapete em cima. Era o nosso palco, que às vezes se mexia um pouco, mas tudo bem, Teatro também é improvisação. Nunca tivemos um palco tão pequeno, mas isso não nos impediu de fazer uma bela apresentação. E uma apresentação é bela quando vemos todas aquelas crianças com os olhos brilhando, de boca aberta, participando. Também tivemos a alegria de poder apresentar para cinco mil pessoas na inauguração do Auditório Araújo Viana, no Parque da Redenção. Essa peça é tão importante para mim, que em todas as escolas que eu trabalhei, sempre dei um jeito de encená-la com meus alunos. E sempre me emociono quando vejo que ‘a menina está derramando o mar todo pelos olhos’. Agora, com as apresentações das peças infantis, tínhamos plateia, aplausos e autógrafos (POTTHOFF, 2007, informação verbal).
O relato emocionado de Potthoff permite estimar o impacto e o valor significativo das experiências proporcionadas pelas aulas de Reverbel, decisivas na posterior escolha profissional e na atuação da professora de teatro junto às diversas instituições de ensino de Porto Alegre.
Outra entrevistada, a professora e pesquisadora Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP), conviveu com Reverbel em dois períodos: o primeiro, entre 1978 e 1981, quando residente em Porto Alegre; e o segundo, entre 1985 e 1988, quando docente da Universidade Federal de Pelotas/RS, em visitas frequentes à capital. Ela afirma que a contribuição de Reverbel na formação de professores de teatro é fundamental e que poucas pessoas são capazes de equacionar hoje com profundidade sua influência no ensino do teatro no Brasil.
Segundo Pupo (2012), o trabalho de Reverbel é citado ainda hoje por seus alunos, estudantes do curso de licenciatura em teatro da Universidade de São Paulo, que aparecem em aula com suas publicações, perguntando sobre o trabalho da gaúcha, “e aí sempre é uma ocasião para fazer um histórico, situar a contribuição dela”. 3 Em função das estadas na França, conta Pupo, Reverbel adquiriu conhecimento e assumiu filiação a princípios de Léon Chancerel, discípulo de Jacques Copeau: “Ela foi uma grande admiradora do Copeau, via Chancerel, que foi ‘o’ homem das relações entre teatro e educação na França” (PUPO, 2012, informação verbal).
A partir dessas relações, é possível inferir que Reverbel foi uma das teóricas responsáveis pela adoção do termo e da prática do Jogo Dramático no Brasil. Na sua prática pedagógica, a professora desenvolveu atividades teatrais no TIPIE na perspectiva do Jogo Dramático, que, grosso modo, consiste numa interpretação de princípios de Chancerel acerca do trabalho de Copeau, que enfatizava a improvisação na formação do ator. Conforme Pupo (2012, informação verbal):
Você tem o Copeau que, historicamente, de alguma maneira, institui ou propõe a noção de improvisação como o grande veio da formação do ator, a improvisação teatral. E entre os inúmeros discípulos que ele teve, ele teve esse que foi o Léon Chancerel, que, bebendo na fonte do Copeau, se coloca um desafio: se propõe a trabalhar os princípios de Copeau vinculados à formação dos jovens. Então Chancerel vai inventar aquilo que ele mesmo batizou como Jogo Dramático, que nada mais é que ter bolado princípios de improvisação dentro de uma moldura lúdica, daí o nome Jogo Dramático. E o Chancerel trabalhou com escoteiros num primeiro momento. E a Olga Reverbel bebeu nessas referências, de primeiríssima mão, ou diretamente com o Copeau, ou com o Chancerel, ou com discípulos dos dois.
O depoimento de Pupo leva a considerar que Reverbel seja a primeira pesquisadora a trabalhar sob a ótica de Chancerel no Brasil, o que a caracteriza como herdeira do trabalho de Copeau e pioneira da difusão da vertente francesa
do Jogo Dramático ( Jeu Dramatique), que, posteriormente se difundirá a partir da obra de Jean-Pierre Ryngaert. Essa constatação corrobora a certeza de que o trabalho desenvolvido de forma criteriosa por Reverbel junto às estudantes do TIPIE torna-se ainda mais relevante por trazer à tona a ideia de que qualquer indivíduo, se bem conduzido, é capaz de improvisar em teatro e obter resultados altamente satisfatórios.
Outra ideia central difundida por Reverbel é que a regra é um elemento fundamental para se fazer teatro. Segundo ela, improvisar implica regras, alguns procedimentos, alguns passos importantes, e implica a visão do outro.
As propostas inspiradas em Chancerel partem da formulação de temas para a dramatização de histórias, pedaços de narrativas e situações dramáticas, que podem ter começo, meio e fim ou um final em aberto. Pautados por algumas regras, os alunos organizam-se em grupos, colocam-se em acordo e improvisam o tema, alternando-se na função de “atores” e de “espectadores”, a quem cabe avaliar o que se apresenta.
A perspectiva pedagógica do Jogo Dramático, conforme praticada e difundida por Reverbel, traz embutida a ideia de valorização do processo e de superação de dificuldades no jogo – princípios inovadores na época. Suas publicações a esse respeito são importantes também porque atingem um amplo público em todo o Brasil. Saber que aquela professora era capaz de fazer teatro com normalistas, de montar espetáculos teatrais de qualidade e atrair um vasto público infantil desperta a atenção de profissionais de diversas regiões do país.
A partir da década de 1970, com a ampliação das pesquisas em artes cênicas em nível nacional, o teatro e a educação transformam-se radicalmente, em função do conhecimento de novas teorias e práticas nesse campo, o que exige compreendermos a trajetória e a obra de Reverbel numa perspectiva histórica.
A análise da trajetória de Reverbel leva a pensar que a sua obra se torna conhecida a partir das suas diversas publicações e das muitas relações profissionais e pessoais por ela estabelecidas. Ou seja, pela importância da escrita naquele momento histórico, em que os livros circulavam de forma majoritária em relação às formas contemporâneas de pesquisa e estudo e pela maneira acessível como a autora organizava as suas ideias e fazia questão de compartilhá-las generosamente com alunos, colegas e demais interessados. Como sugere Pupo, talvez nem a própria Reverbel pudesse avaliar o alcance da sua contribuição.
E se hoje eu tivesse a oportunidade, perguntaria pra ela melhor como é que ela vê a relação entre aquilo que ela viveu, aprendeu, conheceu na França e os desafios no Brasil de hoje. Eu acho que eu bateria um papo no sentido dela me contar
melhor como é que é isso. Que relação ela vê, se ela está dando algum tempero nacional para aquilo que ela viveu na França ou não. E acho que eu diria pra ela alguma coisa assim: Você não tem ideia do peso da sua contribuição (PUPO, 2012, informação verbal).
Para a professora Ana Mae Barbosa, referência nos estudos em educação e arte no Brasil, não restam dúvidas que o movimento denominado Teatro e Educação tem o pioneirismo de Reverbel. Questionada sobre possíveis lacunas, ou continuidades, no trabalho precursor de Olga Reverbel, Barbosa observa que, atualmente, as abordagens metodológicas em arte se multiplicam, proporcionalmente à diversidade de manifestações artísticas que se proliferam. Não se trata de continuidade ou ruptura, mas de diversificação de caminhos.
Para Barbosa, o trabalho de Reverbel é importante e pode ser usado até hoje:
E eu diria que a Olga Reverbel trabalhou a vida toda pelo teatro na educação e não foi em vão. Ela ficaria feliz com o desenvolvimento do teatro hoje para crianças e pelas crianças. Os profissionais de teatro e educação nas universidades estão fazendo um grande trabalho de formação de professores. Os mestrados e doutorados estão produzindo ótimos livros e excelentes projetos, proporcionando análises importantes e diversificadas (BARBOSA, 2012, correspondência eletrônica).
Tendo escrito o prefácio do livro Um caminho do teatro na escola , cuja primeira edição é de 1989, Barbosa afirma que essa obra de Reverbel é importante na atualidade porque inicia uma abordagem metodológica que ela chama de “pós-moderna”, que relaciona a liberdade de expressão ao desenvolvimento da consciência cultural.
Fiquei muito feliz, principalmente porque ela destacou uma frase minha do prefácio e usou como epígrafe do livro “Acertar em educação sem pedagogizar”. Ela se interessava em levar os alunos para conhecerem teatro e fazerem teatro. Explico isso no prefácio do livro (BARBOSA, 2012, correspondência eletrônica).
A professora Sandra Regina Ramalho e Oliveira, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), rememora seu primeiro contato com a obra de Reverbel, que se deu através do livro Teatro na sala de aula: “Saída de uma graduação polivalente (Licenciatura em Educação Artística), em 1976, as escolas me exigiam atuação também polivalente, daí o fato de interessar-me pelos livros da Olga” (Oliveira, 2012, correspondência eletrônica). A entrevistada conta que foi apresentada a Reverbel em 1981, pelo professor Dante de Laytano. As duas professoras encontraram-se pela primeira vez no Colégio de Aplicação
da UFRGS e, daquele momento em diante, passaram a conviver quase que diariamente, estabelecendo uma relação de amizade e coleguismo.
Olga acolheu-me como uma colega, amiga. Frequentava quase diariamente seu sótão-biblioteca, dominado pelo “grande pijama”, que era um armário velho que ela mandara revestir com um tecido listrado. Às 17 horas, religiosamente, Carlos vinha, da outra biblioteca, […] que ficava no fundo do quintal da casa branca de janelas azuis, na Rua Coronel Bordini. Nós descíamos do sótão e então tomávamos chá juntos, os três. […] Meus filhos a chamavam de Vó Olga: era uma vó divertida, brincalhona. Fomos juntos mais de uma vez a Gramado, onde ela tinha uma simpática casinha de madeira. Mais tarde, ao passar por lá, sequer consegui identificar o local (OLIVEIRA, 2012, correspondência eletrônica).
Oliveira atribui a Reverbel o fato de ter ingressado na pós-graduação. Num tempo em que as possibilidades de cursar o mestrado em artes visuais eram muito restritas e distantes de Porto Alegre, Reverbel apontou-lhe a alternativa de cursar o mestrado em educação na UFRGS (cuja avaliação pelos órgãos competentes já era bastante satisfatória na época), o que lhe permitiu aliar dois campos de conhecimento do seu interesse. Dois anos depois, Oliveira titulou-se Mestre em Educação pela UFRGS.
A parceria com Reverbel também rendeu a Oliveira a coautoria do livro Vamos alfabetizar com jogos dramáticos? (1994), cujas atividades foram criadas ou adaptadas para serem executadas num projeto de pesquisa encaminhado à UFRGS que não chegou a ser concretizado.
Os títulos publicados por Reverbel demonstram a sua incrível força de trabalho e capacidade criadora, pois resultam de inúmeras anotações, pedacinhos de papel manuscritos e aulas planejadas e executadas ao longo dos anos. Oliveira lembra ter passado a limpo e organizado muitos desses papéis, anotações que Reverbel, por falta de tempo, não conseguia organizar pessoalmente. O resultado dessa organização foram dois livros, Jogos teatrais na escola – atividades globais de expressão (1996) e Um caminho do teatro na escola (1989). “Lembro que a Olga queria que fosse ‘O caminho’, e eu consegui convencê-la de que não era o único, mas um dos, que ‘Um caminho’ seria mais adequado”, recorda a entrevistada (2012), referindo-se à escolha do título do livro.
Segundo ela, Reverbel fazia questão de esclarecer que era uma “professora alfabetizadora” e que lançou mão das “atividades dramáticas”, como ela as chamava, para motivar seus alunos. “E isto não é demérito, ao contrário, daí o fato de ser tão surpreendente sua trajetória” (OLIVEIRA, 2012, correspondência eletrônica). Conforme a pesquisadora, o importante é considerar a relação do
trabalho de Reverbel com seu respectivo momento histórico, bem como as condições que se apresentavam naquele contexto.
As entrevistas realizadas possibilitam afirmar que a produção e o trabalho de Reverbel alcançaram resultados excelentes, contribuindo para a ampliação dos espaços políticos e profissionais da área de artes no sistema escolar. Ainda que se deva reconhecer que, passados quase 50 anos da Lei nº 5692/71, a obrigatoriedade do ensino de artes ainda se encontra ameaçada, e que os seguidores de Reverbel tenham ainda muitos desafios a enfrentar na luta por melhores condições de ensino e pela devida valorização das disciplinas artísticas no contexto da Escola Básica.
Sob essa perspectiva, o trabalho de Reverbel é, sem dúvida, precursor, e sua contribuição é histórica: inaugural ao estabelecimento das relações entre as áreas do teatro e da educação no Brasil, processadas atualmente no campo denominado Pedagogia das Artes Cênicas, que vem se ampliando consideravelmente em função do crescente número de festivais, encontros e congressos, bem como do aumento exponencial da produção e da pesquisa acadêmica em artes.
Tendo lecionado por mais de seis décadas e publicado dezenas de livros, Reverbel contribuiu de forma única para a formação de artistas e de espectadores ávidos por teatro na cidade de Porto Alegre. Trabalhou em ritmo intenso até meados do ano 2000, quando se transferiu para a cidade de Santa Maria, na região central do Estado. Desejava ficar mais perto da única filha, Elizabeth Reverbel de Souza, do genro, Osvaldo de Souza, e dos três netos.
Na última entrevista que concedeu à pesquisa, ao ser indagada sobre as razões do seu constante silêncio, e sobre o fato de permanecer tanto tempo calada, Reverbel (2004) responde: “Eu penso! […] Eu penso constantemente no Carlos”. E encerrou a conversa: “obrigada, Cristiano. Já falamos o suficiente por hoje”.
Os resultados da minha investigação demonstram que Olga Reverbel goza de respeito e credibilidade para além das fronteiras do Rio Grande do Sul. Não bastasse o fato de ser referência para os artistas que vinham ao Estado, que encontravam nela, e em sua casa, um porto seguro, Reverbel era constantemente convidada para palestrar em eventos sobre educação e arte, ministrar cursos e integrar comissões julgadoras de festivais e mostras de teatro. Os convites surgiam muito em função do sucesso de seus livros sobre o ensino do teatro,
que foram referência por muito tempo, num período em que eram poucos os profissionais e pesquisadores que se dedicavam ao assunto.
Os depoimentos apresentados, fornecidos por profissionais reconhecidos e atuantes na academia ou fora dela, atestam o protagonismo da professora gaúcha. Manifestações que não deixam dúvidas sobre a contribuição de Reverbel para o ensino do teatro no Brasil e, principalmente, para que a área se consolidasse ao longo dos últimos anos, apesar das muitas dificuldades ainda enfrentadas. Importante ressaltar o reconhecimento da influência de Reverbel não apenas na formação de profissionais da área, mas também na construção das políticas públicas voltadas ao ensino das artes no Brasil.
O exemplo de disponibilidade das pessoas que se propuseram a falar sobre suas relações pessoais e profissionais com a professora Olga Reverbel é indício também do seu alto nível de formação e de consciência crítica. De uma forma ou de outra, os que com ela interagiram, num ou noutro momento de suas vidas, trouxeram exemplos de experiências que contribuíram para suas escolhas e para a consolidação de suas trajetórias profissionais.
Apesar de termos poucas referências sobre o que de fato a fez se interessar pelo teatro ainda na segunda metade da década de 1930, utilizando-o em suas primeiras aulas na cidade de Santana do Livramento, tudo leva a crer que, muito provavelmente, Reverbel tenha sido influenciada pelas publicações que chegavam até ela, em sua maioria, vindas do exterior.
Em Porto Alegre, a partir de 1939, a professora iniciou suas atividades teatrais no Instituto de Educação General Flores da Cunha e, embora não tenhamos respostas que indiquem para suas primeiras referências (a própria Reverbel não forneceu dados precisos que possam preencher essa lacuna), o professor José Ronaldo Faleiro, por ocasião da banca de qualificação do meu mestrado, apontou para o fato de que o Rio Grande do Sul, em períodos anteriores e próximos ao início da atuação da professora, recebeu visitas teatrais que também tinham objetivos pedagógicos, como as de Álvaro Moreyra e Renato Viana. Embora não possamos descartar a hipótese de uma possível influência de ambos, a partir da análise das publicações de Reverbel e das entrevistas realizadas, não conseguimos depreender se essas visitas deixaram ou não rastros que se prolongassem até ela.
Constata-se que foi após o período de estudos em Paris que a carreira da professora tomou outra dimensão, o que se evidencia pelas inúmeras atividades desenvolvidas quando ela de lá retornou, com destaque para a criação do TIPIE, em 1956, no Instituto de Educação, iniciativa pioneira no Brasil. A partir do trabalho desenvolvido com as alunas do TIPIE, Reverbel passou a organizar seus
jogos dramáticos, dando início a uma bem-sucedida carreira, estendendo sua atuação para o território nacional por meio de suas publicações que alcançam um número expressivo de professores e estudantes de teatro, levando-a a ser reconhecida e convidada para ministrar palestras e cursos em diversas cidades.
Certamente, há outros pontos da trajetória de Reverbel que não foram aqui mencionados, a exemplo da sua passagem pela direção do Teatro de Arena, em Porto Alegre, na década de 1980, oportunidade em que, ao que consta, ela desenvolveu um excelente trabalho. Esse período também merecerá a devida atenção na continuidade de minhas pesquisas.
O exercício proposto para que os entrevistados contribuíssem com seus depoimentos considerou o princípio fundamental da liberdade, que propiciou que narrassem suas experiências no seu devido tempo e sem qualquer restrição, o que facilitou bastante o andamento da pesquisa. Além de um importante documento, sempre parcial e inconcluso, que registra uma pequena parte da história do teatro na educação no Brasil, fica a certeza da necessidade da continuidade do meu trabalho.
Concluo – ou interrompo – essa escrita tomando emprestada a ideia de Becker (1992, p. 88) “de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado”.
Assim, como “toda história depende finalmente de seu propósito social” (THOMPSON, 1992 apud PRINS, 1992, p. 192), o propósito do meu trabalho é entregar ao leitor um registro, o mais generoso e cuidadoso possível, dos caminhos percorridos pela autora e professora Reverbel, que a colocam, assim entendo, no lugar de precursora do campo que atualmente se denomina Pedagogia do Teatro, no Rio Grande do Sul, e uma das pioneiras no Brasil.
BARBOSA, Ana Mae. [Entrevista]. Entrevistador: Cristiano Goldschmidt. Respondida via e-mail, concedida mediante termo de consentimento livre e esclarecido. Set. 2012 (Arquivos da pesquisa).
BECKER, Fernando. O que é construtivismo? Revista de Educação AEC, v. 21, n. 83, abr./ jun., p. 7-15. 1992. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_20_p087093_c.pdf.
LARROSA, Jorge. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 29, n. 1, jan./abr., p. 27-43. 2004.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, Jan/Fev/Mar/Abr. 2002.
OLIVEIRA, Sandra Regina Ramalho. [Entrevista]. Entrevistador: Cristiano Goldschmidt. Respondida via e-mail, concedida mediante termo de consentimento livre e esclarecido. Set. 2012. (Arquivos da pesquisa).
PRINS, Gwin. História Oral. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita Da História. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. [Entrevista]. Entrevistador: Cristiano Goldschmidt. Realizada na residência da professora Blanca Brites, Porto Alegre. Nov. 2012. (Arquivos da pesquisa).
REVERBEL, Carlos; LAITANO, Cláudia. Arca de Blau: memórias. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1993.
REVERBEL, Olga. Técnicas dramáticas aplicadas à escola. São Paulo. Editora do Brasil, 1971.
REVERBEL, Olga. Teatro na sala de aula Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1978.
REVERBEL, Olga. Teatro: uma síntese em atos e cenas. Porto Alegre: L&PM, 1987.
REVERBEL, Olga. A chave perdida. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1995.
REVERBEL, Olga. Jogos teatrais na escola: atividades globais de expressão. São Paulo: Editora Scipione, 1996.
REVERBEL, Olga. O texto no palco. Porto Alegre: Kuarup, 1997.
REVERBEL, Olga. Verdade inventada. Santa Maria: [S.n], 2001.
REVERBEL, Olga [Entrevista]. Realizada nos dias 17, 18, 21, na residência da entrevistada em Santa Maria/RS Jun. 2004.
REVERBEL, Olga. Um caminho do teatro na escola. 2. ed. São Paulo: Scipione, 2007.
REVERBEL, Olga.; OLIVEIRA, Sandra Ramalho. Vamos alfabetizar com jogos dramáticos? Porto Alegre: Kuarup, 1994.
SILVA, Vera Lucia Potthof da Silva. [Entrevista]. Entrevistador: Cristiano Goldschmidt. Realizada na residência da entrevistada, Porto Alegre, abr. 2007. (Arquivos de pesquisa).
VERISSIMO, Érico. Orelha. In: REVERBEL, Olga. Técnicas dramáticas aplicadas à escola.
São Paulo: Editora do Brasil, 1971.
Este artigo representa a retomada de uma pesquisa instigadora de sensibilidades e reflexões acerca de nosso passado recente, a partir da figura de um professor, sociólogo, pesquisador, mas, sobretudo, um humanista engajado na defesa da educação que, por esse motivo, passou boa parte de sua vida na mira dos agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) – aparato de vigilância da Ditadura Militar brasileira (1964-1988).1 Sua trajetória e contribuição ao campo da educação e à própria história da Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS, por outro lado, não podem ser reduzidas a seu contraponto na atuação dos órgãos de vigilância e repressão ditatoriais. A personagem
1 A cronologia da Ditadura Militar brasileira é objeto de debate historiográfico. Embora a vigência de facto de mandatos presidenciais militares compreenda a clássica cronologia de 1964 a 1985, concordamos com Adriano Codato (2005) que o primeiro governo da Nova República, presidido por José Sarney, manteve em operação boa parte da estrutura autoritária do governo ditatorial, e é passível de inclusão na cronologia. Isto é reforçado pela própria interferência do SNI nas eleições reitorais da UFRGS (e outras IES, como a UFBA) em 1988, conforme veremos.
protagonista desta pesquisa foi, afinal, o primeiro reitor democraticamente eleito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Em tempos assolados pelo descalabro institucional e pela hecatombe pandêmica alimentada por retrocessos políticos e sociais de toda sorte, revisitar a trajetória de um homem como Alceu Ravanello Ferraro (1935-2019) pode ser um exercício profundamente instigador de esperança. Tal inspiração deriva, certamente, de nosso espaço compartilhado: a cinquentenária Faced, onde o professor Ferraro construiu uma carreira na docência e na pesquisa; a Faced da qual foi diretor, e pela qual concorreu no pleito para reitor da UFRGS em abril de 1988 – sendo golpeado por uma canetada de José Sarney, o “presidente acidental” nas palavras do historiador Jorge Ferreira (2018); a Faced que se levantou em defesa de Alceu Ferraro contra a arbitrariedade do Governo Federal, protagonizando em agosto e setembro de 1988 uma mobilização de estudantes, servidores e docentes como não se via desde a época dos expurgos na UFRGS, 2 ao final dos anos 1960. A Faced se constitui, portanto, em entremeio de vivências, um “lugar memorável” (ALMEIDA; LIMA, 2016), um verdadeiro lieu de mémoire construído por trajetórias como a de Alceu Ferraro – com a qual tive o primeiro contato enquanto bolsista do Projeto Histórias e Memórias da Faculdade de Educação/UFRGS, coordenado pela Profa. Dra. Dóris Bittencourt Almeida, em meados de 2018.
Nesta condição, vi-me em meio a múltiplas e distintas trajetórias docentes perpetuadas no Arquivo, que continuamente bifurcavam numa miríade de possibilidades de pesquisa a um jovem universitário – desembocando, igualmente, em muitos becos sem saída. Acaso nos permitamos a metáfora aquática de Arlette Farge (2009, p. 11), o primeiro contato com o arquivo se aproxima de algo como uma experiência de “mergulho, de imersão, e até de afogamento”. Em meio à infindável burocracia funcional materializada em papel, no entanto, resplandeciam joias as quais eu teria o privilégio de considerar enquanto fontes históricas a minha pesquisa. Fato curioso foi descobrir que a maior parte da documentação acerca do sujeito de tal investigação – o professor Alceu Ferraro – residiria não na caixa destinada ao próprio, mas sim na documentação do professor Balduíno Andreola3, por muitos anos companheiro de departamento de Alceu, vindo a sucedê-lo na direção da Faced de 1988 a 1992, e que gentilmente
2 Cf. Averbuck et al ., 2008.
3 Balduíno Antonio Andreola é Professor Emérito da UFRGS, além de ter sido Diretor da Faculdade de Educação (1988-1992). Doutor em Ciências da Educação pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica (1985), centrou seus estudos ao longo de sua carreira acadêmica em torno dos temas educação popular e da educação do campo. Em 2019, realizou a doação de documentos pessoais ao Memória Faced que subsidiaram a pesquisa aqui descrita.
doara seus arquivos pessoais ao projeto em 2019. Tal documentação se constituiu em essencial repositório através do qual pude ter contato com a materialidade dos panfletos, cartazes, informes estudantis, sindicais e diversos recortes de jornal do período eleitoral da UFRGS de 1988 – que foi o ponto focal de minha abordagem. O verdadeiro ato de guardar deste docente certamente carrega sentidos subjetivos cuja intenção se aproxima da ideia de “recordar e tirar lições do passado, para preparar o futuro, mas sobretudo para existir no cotidiano” (ARTIÈRES, 1998, p. 21). Reside no não esquecimento dos acontecimentos de 1988, e na expectativa sobre a posteridade de seus registros - incluindo eventuais estudos que se debruçassem sobre aquele contexto específico. Minha pesquisa, por sua vez, buscou dar uma resposta a tal expectativa.
Com a finalidade supracitada, precisei articular documentações de naturezas distintas. Para além do acervo do professor Balduíno Andreola – essencial à reconstrução contextual dos acontecimentos de 1988 na UFRGS – os desafios teórico-metodológicos se apresentaram perante a inclusão de campos tão distintos como a biografia (BOURDIEU, 2006; SCHMIDT, 2012), a história oral (SILVA, 2003; ALBERTI, 2005; VENSON; PEDRO, 2012), a análise de arquivos repressivos (PADRÓS, 2009; FICO, 2012) e o recurso à história política 4 como chave de interpretação. E o problema de pesquisa? Compreender como a trajetória de Alceu Ravanello Ferraro estava intimamente entrelaçada ao desfecho da eleição reitoral de 1988. Na ocasião, tivera sua nomeação impedida pela atuação de inúmeras forças sub-reptícias – notavelmente, o SNI na produção de relatórios de inteligência reportados ao Gabinete da Presidência da República; e a coalizão de setores conservadores da Universidade junto a políticos de partidos como PMDB e o PFL, a fim de boicotar a nomeação de Ferraro, primeiro colocado no voto direto da comunidade universitária.
O trabalho de pesquisa em abordagem biográfica e a história oral – esta última compreendida como uma metodologia para constituição de fontes voltadas a um problema de pesquisa específico (ALBERTI, 2005, p. 155) –, caminharam de forma indissociável. O próprio Projeto Memórias e Histórias da Faced/UFRGS realiza, desde 2010, um trabalho de coleta de relatos orais de docentes ligados à Faculdade de Educação, constituindo importante acervo. Nele, pude acessar valiosas entrevistas de professores como Renita Allgayer (2012), Fernando Becker (2011), Alfredo Veiga-Neto (2016), Roberto Costa Fachin
4 Desta última, não tratarei no presente capítulo. Esta análise contextual dos acontecimentos relativos à eleição reitoral de 1988 na UFRGS, que leva em consideração o conceito de cultura política conforme descrito por Serge Berstein – e com aproximações ao escopo brasileiro pelo prof. Rodrigo Patto Sá Motta – está descrita no Capítulo 2 de minha monografia (cf. GIACOMAZZI, 2019).
(2011), além de Balduíno Andreola (2011). Não obstante a existência de uma prévia entrevista ao próprio professor Alceu Ferraro (2011a), considerando as especificidades de meu foco de análise, tive a oportunidade de entrevistá-lo, em nome do Projeto, no dia 10 de abril de 2019 – seis meses antes de seu falecimento.
A reconstrução biográfica da trajetória e dos percalços do professor Ferraro também envolveram o recurso a arquivos repressivos, ora chamados documentos sensíveis (FICO, 2012). Trata-se de inédita documentação obtida após extensiva pesquisa no Banco de Dados Memórias Reveladas do Arquivo Nacional 5 , consistindo em dossiês, relatórios, pedidos de busca (PBs) e outros documentos produzidos no âmbito do SNI, do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e da Comissão Geral de Investigações (CGI), órgãos centrais na coordenação estratégica da repressão ao longo da Ditadura Militar. Esta documentação atesta não somente uma atenção redobrada destes órgãos sobre a eleição reitoral de 1988, 6 mas um igual interesse nos movimentos de Alceu Ferraro desde 1969,7 aproximadamente. Naquele ano o professor, então vigário em Frederico Westphalen/RS, fora preso pela repressão política, conforme veremos mais adiante.
O conjunto destas fontes me permitiram construir, na forma de uma monografia (GIACOMAZZI, 2019), uma análise crítica do contexto no qual ocorreu a eleição reitoral de 1988 na UFRGS, aliada a uma abordagem biográfica do professor Ferraro a partir da documentação repressiva, do acervo pessoal de Balduíno Andreola e das fontes orais disponíveis no Arquivo da Faculdade de Educação/UFRGS. Com o presente capítulo, pretendo trazer um abreviado relato desta pesquisa, no intuito permanente de reafirmar a trajetória do professor Ferraro como um exemplo de resistência ao avanço do autoritarismo na Universidade.
Alceu Ferraro: escrevendo uma vida
O primeiro desafio da pesquisa depreendeu, certamente, dos cuidados relativos à própria abordagem biográfica. Afinal, não estaria a produzir uma biografia
5 O acervo do Banco de Dados Memórias Reveladas está disponível em: http://pesquisa.memoriasre veladas. gov.br/mrex/consulta/login.asp
6 Como o exemplo do dossiê catalogado na Agência Central do SNI pelo Arquivo Cronológico de Entrada (ACE) 68330/88, de impressionantes mais de 60 páginas, apresenta um parecer sobre os “riscos” da nomeação de Alceu Ferraro para o cargo de reitor, avaliando as estratégias e possíveis consequências e reações dos setores de esquerda da universidade frente à negativa da sua nomeação.
7 É o que atesta o PB nº 83/1969 do III Exército, reproduzido no prontuário SNI nº 32.459, de 1988.
propriamente dita, mas sim a utilizar a reconstrução da trajetória do professor Alceu Ferraro – por meio do recurso às memórias produzidas nas fontes orais –como um aporte analítico indispensável à compreensão dos acontecimentos de 1988. Esta relação da biografia com a metodologia da história oral é intrínseca:
ambos os tipos de entrevista de história oral pressupõem a relação com o método biográfico: seja concentrando-se sobre um tema, seja debruçando-se sobre um indivíduo e os cortes temáticos efetuados em sua trajetória (ALBERTI, 2005, p. 175).
Neste sentido, aproximei-me das considerações de Benito Schmidt, segundo o qual a abordagem biográfica é relevante na medida em que permite aceder a uma visão sobre o próprio passado histórico. Em outras palavras, a partir da formulação de um “problema de pesquisa histórico formulado a partir de referências conceituais e de fontes documentais apropriadas”, interessa questionar: “que dimensões do passado são possíveis de se conhecer pesquisando a trajetória de determinado personagem?” (SCHMIDT, 2012, p. 195). A trajetória de vida de Alceu Ferraro, tomada nesta perspectiva, permitiu uma melhor compreensão dos aparatos de inteligência e contrainteligência da Ditadura Militar, sua presença nas universidades e, sobretudo, sua continuidade pós-1985, interferindo diretamente no processo eleitoral de 1988, meu objeto de análise. Por outro lado, também permitiu compreender as razões pelas quais o regime ditatorial temia o professor Ferraro – vigiando-o desde a redação de sua tese de doutoramento, finalizada em 1968 – às vésperas do Ato Institucional nº 5, e que versava sobre o Movimento de Natal, organização eclesiástica de base com atuação no Rio Grande do Norte a partir da década de 1940, e grande vinculação a entidades representativas camponesas e sindicais. 8
O cuidado maior, neste sentido, deveria ser o de evitar o que Pierre Bourdieu nomeou de “ilusão biográfica”, qual seja, a ideia de que “a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto […]” (BOURDIEU, 2006, p. 184). Minha abordagem da trajetória de vida do professor Ferraro, portanto, teria a precaução de não se tornar uma narrativa que conduzisse, numa espécie de encadeamento linear e teleológico, a um suposto clímax contido no desfecho da eleição de 1988 na UFRGS. Evitá-lo envolveria o controle de minha própria subjetividade enquanto pesquisador politicamente
8 FERRARI, Alceu Ravanello. Igreja e desenvolvimento: o Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto, 1968. A tese viu uma reedição em 2019, organizada pelo professor Renato Amado Peixoto (cf. FERRARO; PEIXOTO, 2019).
posicionado e, principalmente, envolvido numa pesquisa que dizia respeito a espaços com os quais eu construíra uma relação própria – a Universidade e, enfim, a Faced. Trata-se de uma problemática da pesquisa biográfica em si, na medida em que o biógrafo tende a realizar uma projeção “de suas emoções, de seus próprios valores e necessidades” (BORGES, 2009, p. 232) em seu trabalho.
Munido dessa consciência, tomei como ponto de partida a realização de uma entrevista de história oral com o professor Alceu Ferraro, o que se concretizou, como já mencionado, no dia 10 de abril de 2019. Já estudava a trajetória de Ferraro há pelo menos quatro meses, mas o momento da entrevista seria nosso primeiro – e, infelizmente, único – diálogo. Ainda acompanhado de certa “ilusão biográfica”, esperava me encontrar não com Alceu Ferraro, mas sim com Alceu Ferrari, grafado com “i”9, reitor eleito da UFRGS em 1988.
Enquanto aguardava, às 9 horas e 30 minutos daquela amena manhã de abril, à portaria da residência do professor Ferraro, na esquina das ruas Dona Laura e Coronel Bordini, em Porto Alegre, percorriam minha mente as expectativas do repórter e jornalista Ney Gastal, do antigo Jornal do Jockymann, quando, em maio de 1988 – um mês após as eleições reitorais na UFRGS –, dirigiu-se ao nono andar da Faculdade de Educação no intuito de entrevistar o reitor eleito: Alceu Ferrari. Exibindo talentos de cronista, Gastal demonstra uma relação que diz respeito à sua própria percepção do que seria o cargo de reitor:
Lá em cima, cercado de vista por todos os lados, fui até um ‘aquário’ de vidro e perguntei ao funcionário qual a sala do diretor. ‘Um momento’, respondeu, sem levantar os olhos dos envelopes que estava agrupando em maços. Esperei. Depois de um longo momento, e ainda sem levantar os olhos, ele indicou: ‘Sala 913’. Não entendi a razão da espera, mas a vida há muito me ensinou a não discutir com funcionários recém-chegados ao que pensam ser o poder. Afinal de contas, o diretor da Faculdade de Educação é o professor Alceu Ferrari, eleito em votação pela comunidade universitária, para ocupar o cargo de reitor da UFRGS. Cargo, como se sabe, cheio de poder (GASTAL, 1988).
9 Ferrari foi, até 1992, a grafia do sobrenome de Alceu Ferraro. Em entrevista a Renato Peixoto, o professor explica: “O que houve foi retificação, em 1992, do sobrenome nos registros civis do meu avô paterno, do meu pai e meus, com retorno ao sobrenome correto do meu avô, Giovanni Ferraro, nascido em Cittadella, Província de Pádua, Itália, em 22 de fevereiro de 1875, que migrou ainda criança para o Brasil junto com a família” (FERRARO; PEIXOTO, 2019, p. 626).
O paralelo com o relato de Gastal cessou, porém, no momento em que fui gentilmente recepcionado por Marlene Ribeiro, professora aposentada da Faculdade de Educação e esposa de Alceu Ferraro, e conduzido a um pequeno e aconchegante escritório, lotado de livros. Portava eu apenas dois gravadores,
o esboço de um roteiro para nossa conversa e, principalmente, fotocópias de alguns materiais que encontrara no acervo de Balduíno Andreola, além de uma cópia da tese de Ferraro, Igreja e desenvolvimento, que felizmente localizara na biblioteca da Faced. Meu intuito com todo esse material, certamente, era o de que servissem como instrumentos mnemônicos para “reavivar a lembrança sobre acontecimentos passados” (ALBERTI, 2005, p. 179) ao longo da entrevista. Esta, por sua vez, iniciou-se logo após a chegada da figura de aspecto alto e fisionomia curiosa e tranquila, que prontamente identifiquei como Alceu Ferraro. Após breves apresentações, o professor aposentado me narrou um pouco de sua experiência de vida, na perspectiva de minhas indagações.
Nasceu no ano de 1935 como Alceu Ravanello Ferrari, na chamada Vila Barril, interior de Júlio de Castilhos/RS. Tendo crescido numa família de clérigos – seus quatro irmãos se dedicaram ao sacerdócio católico –, tão logo concluídos os estudos primários, Alceu ingressou no seminário em Santa Maria e, mais tarde, Viamão. Além de seu interesse, estava em voga uma questão de ascensão social ante a difícil vida no campo (FERRARO, 2011a, p. 72; Idem, 2019, p. 1).10 Com apoio da Diocese de Santa Maria, foi para Roma estudar na Pontificia Università Gregoriana (PUG) onde, entre 1956 e 1963, sob a orientação de Émile Pin11, bacharelou-se em teologia e ciências sociais, finalizando também um mestrado nesta última área. Em 1964, voltou ao Brasil para redigir sua tese de doutorado, desembarcando em Santos em 19 de março; praticamente às vésperas do golpe militar perpetrado em 1º de abril daquele ano. No mesmo dia, em São Paulo, testemunhou as mobilizações conservadoras da Marcha da Família com Deus pela Liberdade (FERRARO, 2019, p. 1). Encontrar-se perigosamente próximo às movimentações dos militares viria a ser algo recorrente na trajetória do professor Ferraro, como quando a publicação de sua tese veio a coincidir com a outorga do AI-5, em dezembro de 1968 (FERRARI, 1968, P. 11; FERRARO, 2019, p. 1-2; PEIXOTO, 2019, p. 6).
A redação da tese de Alceu Ferraro, Igreja e desenvolvimento: o movimento de Natal marcou, justamente, o primeiro ponto de inflexão do regime em relação à sua pessoa. Sua temática tratava, afinal, de um movimento social: o Movimento de Natal e sua atuação de base junto às comunidades do Rio Grande do Norte, e
10 Para um pujante relato de sua infância, cf. FERRARO, 2011a.
11 Émile Pin, sociólogo e teólogo jesuíta, além de um importante teórico da teologia da libertação.
cujo estudo interessara ao professor a partir de uma palestra proferida por Dom Eugênio Sales durante o Concílio Vaticano II, ainda em Roma (FERRARO; PEIXOTO, 2019, p. 627). Ferraro já tinha essa consciência dos riscos de sua pesquisa: “na época, só falar em ‘movimento social’ já despertava desconfiança” (FERRARO, 2019, p. 1). Especialmente quando o Estado ditatorial imposto em 1964, sob a égide do anticomunismo e da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), estava atento aos mínimos sinais do que acreditava ser indícios de subversão promovida pela “guerra revolucionária” do comunismo internacional (COMBLIN, 1978, p. 44). Marco dessa vigilância foi a rápida organização do SNI, logo em 1964, apesar de ainda sem toda a impressionante estrutura constituída nos Anos de Chumbo. 12
O trabalho sociológico de campo realizado por Alceu em Natal/RN, “uma das regiões mais explosivas do mundo” (FERRARO, 2019, p. 1), entre 1964 e 1966, ocorreu de forma relativamente tranquila – muito devido a sua discrição: “tive apoio durante toda a pesquisa, mas também trabalhando meio no silêncio. Não dando entrevista pra jornal nem nada, não dei uma entrevista nos três anos em que estive lá pesquisando” (FERRARO, 2019, p. 3). O apoio a que o professor se referia foi o da Fundação José Augusto, cuja gráfica ficou a cargo da impressão da tese. E com a publicação se aproximando, tornavase cada vez mais difícil manter seu trabalho em segredo: “estava com receio, porque […] tinha certeza que eles [os militares] estavam a par da tese que estava sendo publicada…” (FERRARO, 2019, p. 4). Era, afinal, o ano de 1968 – um dos mais turbulentos e repressivos do período ditatorial, que marcou o início do fechamento do regime; seria, de fato, muito difícil que um trabalho da envergadura do de Alceu passasse incólume. Foi, portanto, necessária uma solução, se não cômica, decerto inusitada:
Pra ter o título [de doutor, pela Pontifícia Universidade Gregoriana], eu precisava não só imprimir minha tese feita aqui, mas mandar cinquenta exemplares pra Roma. E eu estava vendo que a coisa tava azedando aqui pro Brasil. Eu estava prevendo que ia dar alguma coisa muito séria, então eu prometi um barril de chope e um churrasco pro pessoal da gráfica, se me entregasse a tese na sextafeira, 13 de dezembro, de manhã, oito horas da manhã. Os caras viraram a noite pra conseguir me imprimir duzentos exemplares… (FERRARO, 2011b, p. 7).
Os 200 exemplares da tese de Alceu foram, de fato, finalizados na manhã de 13 de dezembro de 1968, poucas horas antes do AI-5. Ardilosamente, evitando
O SNI passaria por uma primeira expansão e fortalecimento apenas entre 1967 e 1968, com a chegada dos militares da “linha-dura” ao poder (SAMWAYS, 2013, p. 88).
as principais rodovias, Alceu conseguiu levar 50 cópias ao Rio de Janeiro onde, com o apoio de contatos nos Correios, manejou seu despacho para a Pontifícia Universidade Gregoriana (FERRARO; PEIXOTO, 2019, p. 17).13 Quanto às demais cópias, Ferraro providenciou a elas “um lugar seguro, um porão de uma igreja lá de Natal”, onde teriam permanecido escondidas por cerca de 15 anos (FERRARO, 2019, p. 4).
Os arquivos repressivos demonstram que os militares descobriram, em determinado momento, a existência da tese. É o que demonstra o PB (Pedido de Busca) nº 83,14 expedido pelo 3º Exército em 17 de março de 1969, no qual um agente do SNI registrou: “Professor de Sociologia e vigário de Frederico Westphalen/RS, autor da obra Igreja e desenho [sic]”.15 O que teria atiçado a curiosidade do regime a respeito da obra seria o “embasamento, algum embasamento em Marx e uma faixa vermelha na capa” (Figura 1, na página seguinte). O elemento curioso, que é percebido pelo professor Ferraro, é que a tese apresenta, em verdade, uma crítica ao filósofo alemão Karl Marx: “nesse livro, eu faço uma crítica a Marx, e eu rejeito uma tese de Marx, que é a tese de que toda religião é o ópio do povo. Eu disse: ‘não, pode também não ser. Pode também ser o contrário’” (FERRARO, 2019, p. 3).16
Não é de se surpreender, no entanto, que agentes que confundiram desenvolvimento com desenho, no título da obra, compreendessem a profundidade da crítica. Naquele mesmo ano de 1969, em Frederico Westphalen, sua terra natal, Ferraro seria preso pelos militares.
13 A tese de Alceu se encontra catalogada até hoje na biblioteca da PUG, em Roma. A entrada pode ser consultada em https://oseegenius.unigre.it/pug/resource?uri=259006BIB&v=l . Acesso em 22 out. 2021, 21h11min. O idioma está curiosamente indicado como espanhol.
14 Os PBs eram um dos instrumentos de ofício dos órgãos de informação da Ditadura Militar, e consistiam em um documento “por meio do qual um setor do sistema de controle solicitava, a um órgão de vigilância específico, dados sobre um indivíduo, grupo, organização ou entidade” (MANSAN, 2014, p. 113).
15 Este PB está reproduzido no prontuário SNI nº 32.459, dossiê sobre o professor Alceu produzido em 1988. O equívoco na reprodução no nome da tese reflete apenas o notório desconhecimento que alguns dos agentes do “Serviço” possuíam acerca dos temas que investigavam.
16 “Segundo Karl Marx, haveria uma radical oposição entre religião e desenvolvimento. Sua teoria, porém, ressente-se de graves limitações metodológicas. A primeira reside no método meta-histórico seguido pelo autor. A segunda, consequência deste mesmo método, está na falta de distinção entre formas de religiosidade diversas. Talvez a história fizesse eco a certas afirmações de Marx, tivesse-as ele circunscrito à forma concreta de religiosidade cristã encontrada na Prússia de seu tempo. (…)” (FERRARI, 1968, p. 21).
O dia em que Alceu encarou a guarda17
Alceu Ferraro foi detido por um tenente do Exército em 18 de novembro de 1969. Os registros oficiais – nominalmente, o Informe nº 300, 1ª DC, 21/11/69, também reproduzido no prontuário SNI nº 32.459 – informam que Alceu, que regressara a Frederico Westphalen para servir como cúria da catedral da cidade e trabalhar como professor numa nova unidade da então Universidade de Santa Maria, teria desacatado ordens de entregar às autoridades policiais as cópias
17 Este subtítulo é referência ao curta-metragem O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), dirigido por Jorge Furtado e José Pedro Goulart.
de um panfleto intitulado Crescei e viver [sic],18 de teor considerado subversivo. A razão política da prisão era nítida para Ferraro:
Uns dizem que foi pela tese, outros que foi por ter enfrentado os representantes das três forças da polícia, né, da Civil, Polícia Militar e do Exército… Mas eu não sei, porque tem muita coisa que aconteceu que a gente não sabe o motivo, e os motivos aparentes não parecem explicar muito. Eu tenho a impressão que havia um interesse em achar uma situação em que eu pudesse ser preso (FERRARO, 2019, p. 5).
A prisão do pároco da cidade interiorana gerou uma comoção sem precedentes na população, que se mobilizou pela soltura de Ferraro: “virou […] um baita incômodo pro pessoal do Exército”, evitando, inclusive, que fosse transferido para um quartel na cidade de Ijuí, onde o pior poderia acontecer (FERRARO, 2019, p. 6). É inevitável relacionar o evento da prisão de Ferraro com a de outro clérigo, exatamente uma semana antes, a 11 de novembro de 1969: Frei Betto, detido pela repressão em São Leopoldo/RS, e enviado para interrogatório e tortura no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo.19
Com efeito, um agente do SNI registrou a respeito de Ferraro, no Informe nº 312, 1ª DC, 27/11/69: “é considerado como líder na cidade”. Esse status, que poderia resultar numa imagem potencialmente negativa para o Exército caso algo acontecesse a Alceu, fez com que o clérigo fosse solto em 4 de dezembro daquele ano, após cumprir breve prisão domiciliar. O desfecho do caso causou certa surpresa a Alceu, que reconheceu, na entrevista:
Houve sempre muita cautela em relação a mim. Até me pergunto por que, quando em relação a outros houve muita violência, senão física, psicológica, né? Como por exemplo um ex-professor meu, o Padre Valiente, praticamente… Perturbado mentalmente pela… Pela pressão, pela… Exercida pelos militares do Exército (FERRARO, 2019, p. 6).
Apesar disso, o registro de sua prisão figuraria de forma permanente nos arquivos de inteligência e repressão dos militares, especialmente em dois
18 Possivelmente, Crescei e vivei , constituindo assim mais um equívoco de ordem ortográfica de um datilógrafo do SNI.
19 “Terrorista dominicano preso no RGS”. Folha de São Paulo, 11 nov. 1969. https://www1.folha.uol.com.br/ banco-de-dados/2019/11/1969-acusado-de-ligacao-com-a-aln-frei-betto-e-preso-no-rio-grande-do-sul.shtml>.
Acesso em: 23 out. 2022, 12h40min.
momentos distintos: quando Alceu concorreu a uma vaga para docente na UFRGS, em 1974; e na eleição reitoral daquela Universidade, em 1988.
É incerto, a partir dos relatos analisados, o momento em que Alceu abandonou a vida e as atividades eclesiásticas para se dedicar exclusivamente à docência universitária. Há, no entanto, indícios, e estes podem apontar tanto para uma saída traumática quanto para uma mera decisão pelo silêncio que pode ou não estar relacionada a isto. Em dado momento da entrevista, Ferraro menciona: “Uma acusação que deve ter contra mim é que eu pertencia a um grupo de 11. Mas é pura mentira: o grupo era de 17, e não tinha nada a ver com o dos 11. 20 Era coisa interna da própria Igreja” (FERRARO, 2019, p. 7). Embora o professor não faça em nenhum outro momento menção a este grupo, a documentação repressiva produzida pelo SNI traz algumas informações a respeito desse momento.
O Informe nº 57/1972/APA-SNI, do ano de 1972, cita um suposto conjunto de padres ditos subversivos, denominados simplesmente como “Grupo”, e que se reuniriam periodicamente em Frederico Westphalen sob a liderança de Alceu Ravanello Ferrari. Ao “Grupo” é atribuída uma mobilização contra a nomeação de um certo Dom Bruno Maldaner, à diocese do município – bem como a prática da “doutrina maoísta, oriunda da Itália”. Em muitos momentos, Alceu, bem como outros nomes de clérigos citados – Domênico Battocchio e Henrique Oddenino – são qualificados como “ex-padres”, como no prontuário SNI nº 1099, de João Ferrari Manfio, outro suposto membro do “Grupo”. Isto porque a mobilização dos sacerdotes resultou no seu desligamento, compulsório ou voluntário, da Igreja Católica. O Informe nº 183 do III Exército, de 26 de julho de 1971, afirma, sobre Ferraro: “Em 14 nov. 71, foi punido (…) por ser clérico [sic] romano ligado à subversão”.
Nenhuma das informações acima, no entanto, foi proferida por Alceu Ferraro em nossa entrevista, salvo pela categórica afirmação: “Era coisa interna da própria Igreja” (FERRARO, 2019, p. 7). No entanto, em se tratando de um relato oral, o dito e o não-dito possuem a mesma importância para o pesquisador – afinal, não se trata de “uma retirada de informações, mas de interpretar como a pessoa que nos fala reconstrói a própria subjetividade […]” (VENSON; PEDRO, 2012, p. 136). Neste sentido, a fim de compreender a reticência de Ferraro, cabe recorrer ao conceito de “gestão do indizível”, proposto por Michael Pollak (1992) e compreendido por Dácia Ibiapina da Silva (2003) como desenvolvimento de
20 Referência aos “Grupos dos Onze” de Leonel Brizola. Sobre este tema, ver o verbete temático do CPDOC/FGV. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/grupos-dos-onze. Acesso em: 21 out. 2021.
outro conceito, o de “gestão do silêncio”. Tal ideia diz respeito a como narradores de suas memórias lidam com lembranças de eventos considerados traumáticos – como, digamos, um desligamento forçado da vida eclesiástica por razões políticas, em meio a uma Ditadura de Segurança Nacional. Segundo a autora, “os próprios narradores, a seu modo, têm plena consciência de que são sujeitos de suas memórias e de seu silêncio, que podem e devem geri-lo, dependendo da confiança que depositam nos interlocutores e do decorrer do tempo” (SILVA, 2003, p. 76).
Assim, é possível que o silêncio de Alceu em relação a esses acontecimentos tenha sido deliberado – o que prontamente percebi no momento da entrevista, não insistindo nos acontecimentos de 1971. Com o mesmo intento de evitar a mobilização de sensibilidades indesejadas, fruto de acontecimentos traumáticos, evitei levar aos olhos de Alceu materiais de cunho sensível 21 como seu prontuário do SNI 22 ou sua ficha no DOPS de Porto Alegre (Figura 2, na página seguinte) – esta última apresentada a Ferraro de forma um tanto descuidada pelo jornal Zero Hora, em 2013 – forma da qual visei me afastar o máximo possível. 23 Em 1971, após seu afastamento da vida eclesiástica, Ferraro passou a se dedicar exclusivamente à docência universitária, lecionando na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Ironicamente, ministrava a disciplina de estudos de problemas brasileiros, a famosa EPB – um instrumento ideológico da Doutrina de Segurança Nacional. 24 Neste momento, Alceu já percebia os olhos e ouvidos da comunidade de informações25 nos corredores e salas de aula da universidade:
Mais de uma ocasião tem gente, tinha gente da… Da Segurança Nacional em sala de aula. Tem um que chegou pra mim e mostrou: ‘ó, eu sou do SNI. Tô
21 Compreendemos aqui como sensíveis documentos capazes de “trazer de volta imagens e sensações de dor, humilhação, constrangimento; talvez, a exposição da fragilidade, da claudicação” (PADRÓS, 2009).
22 O prontuário nº 32.459, de 1988, que contém a ficha de Alceu Ferraro no SNI, e ao qual me referi anteriormente.
23 Em junho de 2013, por exemplo, o jornal Zero Hora publicou uma reportagem na qual entrevistou pessoas identificadas em fichas do antigo DOPS gaúcho, localizadas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Dentre os entrevistados, estava o próprio professor Alceu Ferraro, que declarou não ter conhecimento de sua ficha até então. Trata-se da reportagem “Os fichados do Dops: o padre autor de uma cartilha subversiva”. Zero Hora , 1º jun. 2013. Disponível em: Os fichados do Dops: o padre autor de uma cartilha subversiva | GZH (clicrbs.com. br). Acesso em: 23 out. 2021, 18h00min.
24 Sobre a EPB, cf. Koch, 2019.
25 Expressão que designava, na linguagem dos próprios militares, a totalidade do sistema de informações e espionagem da Ditadura Militar, compreendendo todo o contingente de militares e civis colaboracionistas, pagos ou voluntários, que constituíam o aparato de vigilância da Ditadura Militar, e cuja “cabeça” era o SNI. Cf. Lagôa, 1983, p. 33.
fazendo o curso aqui, mas o que senhor disse é verdade. Segurança Nacional é isso mesmo’ (FERRARO, 2019, p. 9).
Esta presença viria a se tornar um entrave na vida de Ferraro em 1974, quando concorreu a uma posição de docente na Faculdade de Educação da UFRGS, que implementara seu Programa de Pós-Graduação dois anos antes (ALMEIDA E LIMA, 2016). Apesar de aprovado em primeiro lugar, Alceu percebeu uma estranha demora na formalização de seu contrato com a Universidade. O motivo, certamente, era a malha fina autoritária da Ditadura, representada pela Assessoria Especial de Segurança e Informações (AESI) da UFRGS. As AESIs – mais tarde, renomeadas para ASIs – eram órgãos de atuação independente na estrutura das instituições de ensino superior brasileiras, reportando diretamente à Divisão de Segurança e Informações (DSI) do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Tais aparatos, subordinados ao SNI, foram instituídos pelo ditador Arthur da Costa e Silva em 1967, como parte do fechamento autoritário sobre as instituições públicas e, em especial, autarquias como as universidades (LAGÔA, 1983; MOTTA, 2014a).
Quem comandava a AESI da UFRGS, criada em 1971, era o Coronel Natalício da Cruz Corrêa, 26 ocupando posição privilegiada na Universidade. Com efeito, como o próprio Ferraro observa, “antes do gabinete do reitor ficava exatamente a sala do Coronel Natalício” (FERRARO, 2011b, p. 1). Os chefes das AESIs/ASIs reportavam à DSI/MEC sem passar por instâncias da Universidade, exercendo praticamente um poder paralelo ao dos reitores – o que envolvia a triagem ideológica das contratações, realizada a partir da elaboração de LDBs27 e relatórios a respeito dos pleiteantes a cargos públicos (LAGÔA, 1983, p. 22). Na prática, ninguém ingressava na Universidade sem a opinião do chefe da “segurança”, embora esses agentes não tivessem pleno poder de veto (MOTTA, 2014a).
Mais do que ligado ao identificável rosto do chefe da ASI, este era um sistema que operava pelo medo. A mera presença de um Coronel do Exército já suscitava a inquietude e o desconforto no campus, mas fato era que qualquer um poderia ser um membro da comunidade de informações, e o mistério envolto no funcionamento do SNI nas instituições lhe conferia ainda mais poder (MOTTA, 2014a). Isso era percebido pela comunidade universitária, como no relato do professor Fernando Becker ao documentário Com dor (2008): “havia um mal-estar permanente, a gente sentia uma paranoia coletiva que chegávamos a dizer: em quem se pode confiar? ”. A professora Merion Bordas compartilhava de semelhante sentimento: “Nós éramos sujeitos a ter sempre ‘alguém’ na sala de aula, principalmente aqui, porque, além de tudo, era Faculdade de Educação.” (BORDAS; ANDREOLA, 2010, p. 307).
Apesar disso tudo, Alceu Ferraro encarou a guarda . A seu colega de departamento, Fernando Becker, declarou: “vou à toca do leão” (BECKER, 2011, p. 1); e contou-me, em nossa conversa, sobre quando se dirigiu ao gabinete do Coronel Natalício a fim de questioná-lo sobre seu contrato:
E como não saía meu contrato, eu fui pedir pra falar com o coronel, e ele aceitou. Aí eu perguntei: ‘bom, eu estou aqui, preciso falar com o senhor porque… Eu preciso achar um meio de viver. Se eu não posso entrar na universidade, assinar o contrato do concurso que eu me classifiquei em primeiro lugar, eu precisaria ter certeza, porque então eu vou achar… Ver se acho outro trabalho’. Aí ele me disse: ‘e o senhor acha que tem alguma coisa contra o senhor?’. Eu digo: ‘tem… E tem da parte, da sua parte, ou de alguém do seu lado, e de alguém do meu lado’.
26 Segundo Motta (2014), no entanto, o Coronel Natalício já atuava na UFRGS pelo menos desde 1968 – no auge dos expurgos de professores.
27 Levantamento de Dados Biográficos (LDB): uma ficha de avaliação ideológica, elaborada a partir de informações coletadas pelo SNI.
Aí comecei a conversar e tal, e tal, e virou numa conversa, até… Rimos muito, os dois. No fim, ele parou: ‘bom, já conversamos bastante. Se não tiver saído o seu contrato dentro de 48 horas, o senhor volta aqui. Tá bom?’. ‘Tá bom’. Tchau, pronto. E realmente saiu o contrato. (FERRARO, 2019, p. 7).
A conversa acima relatada não apenas confirmou as suspeitas de Ferraro, mas também revelou um traço marcante das relações de força exercidas pelas estruturas autoritárias na Universidade. Ao passo que o incauto poderia perceber certa complacência do chefe da ASI para com Alceu Ferraro, há de se vislumbrar uma estratégia vertical de “escamotear e conciliar conflitos” como forma de “reduzir tensões sociais e, com isso, manter o poder político e privilégios sociais, facilitando a manutenção do status quo” (MOTTA, 2014b, p. 80). Em outras palavras, a manutenção dos aparatos autoritários perpassava não apenas a repressão, mas também a pacificação e o silenciamento, a fim de evitar a perda do controle em determinada situação. Em ambos os casos, o SNI era esfera atuante, e continuaria a sê-lo na década seguinte – mesmo com a ascensão da chamada Nova República, em 1985.
A eleição reitoral de 1988: a persistência do “entulho autoritário”
Em 1988, o contexto brasileiro era muito distinto: após a transferência de poder aos civis pela via indireta em 1985, iniciava-se a chamada Nova República, comandada por José Sarney. Uma transição assaz marcada por contradições e incompletudes, liderada por um Presidente “ex-aliado do regime ditatorial e [que] tinha em seu governo figuras fortes, como o Ministro Leônidas Gonçalves e a permanência intocável do Serviço Nacional de Informações (SNI) no cenário nacional” (DUARTE, 2018, p. 74). Ex-arenista convicto, Sarney apresentava uma postura leniente em relação ao período com o qual deveria romper, mas com o qual possuía mais afinidades do que diferenças (FERREIRA, 2018).
Em que o contexto acima se relaciona com nosso escopo? Certamente, a manutenção das elites antidemocráticas no poder, além de sua ainda presente ideologia conservadora na raiz do Estado brasileiro, estão por trás da operância, ainda no final da década de 1980, de aparatos como o SNI, e sua influência direta nos procedimentos democráticos. É digno de nota que o grosso da documentação repressiva e sensível analisada na pesquisa aqui retomada foi constituída, principalmente, no pós-1985. No caso da UFRGS, sua ASI, comandada pelo Coronel Natalício, operou até 1979, quando esses órgãos foram formalmente
extintos pelo ditador João Figueiredo. Isso, no entanto, “não significou o fim da vigilância” (MOTTA, 2014a, s/n, Cap. 8), pois esta atribuição de vigilância sobre a Universidade foi simplesmente transferida para outros órgãos. Não é à toa que a farta documentação dos órgãos de informação recolhida para esta pesquisa possui o registro de diversas instituições: a APA (Agência Porto Alegre do SNI), o Comando Militar do Sul (CMS) e a Secretaria de Segurança Pública (SSP/RS).
Em pleno 1983, por exemplo, Alceu Ferraro voltou à pauta dos agentes de informação e contrainformação, conforme relatório produzido pelo Centro de Informações do Exército a respeito de sua participação no seminário Educação e movimentos sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 28
A Doutrina de Segurança Nacional ainda se encontrava inculcada nas instituições, apesar de movimentos em sentido contrário, como forma de resistência, terem ganhado espaço. No início daquela década, ante o ethos da redemocratização representado pela incompleta Lei de Anistia, o fim do bipartidarismo, a retomada dos movimentos grevistas e o fortalecimento de reivindicações como as eleições diretas para Presidente, iniciou-se um processo, cuja pioneira foi a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no sentido de delegar a escolha dos reitores à comunidade universitária, por meio do voto.
A nomeação de reitores, até então, era feita diretamente e de forma autoritária pelo Presidente da República, sendo regulada pela Lei nº 6.420/77 que, por sua vez, derivava da famigerada lei da Reforma Universitária de 1968, a Lei nº 5.540/68. 29 Em ambas, era estabelecida a elaboração, no âmbito dos órgãos superiores das universidades, de uma lista de seis nomes – a lista sêxtupla – a ser encaminhada ao MEC para apreciação e escolha de “alguém adequado” (MOTTA, 2014a, s/n, cap. 8), ou seja, sem ligações com a “subversão” e, preferencialmente, alinhado à dita “Revolução de 64”. As eleições para reitor nas IES operaram, portanto, como resistência a esse arbitrário sistema, visando maior representatividade no comando daquelas instituições.
Dessa forma, ainda que fosse necessária a constituição de uma lista com seis nomes, a eleição possuía o intento de referendar que o primeiro nome de
28 Informe nº 1528-S/102-A4-CIE, registrado na AC/SNI sob a identificação AC ACE 35698/83. É interessante observar, neste documento, a colaboração entre os diferentes órgãos da comunidade de informações , e a forma como o agente do CIE interfere junto à pró-reitoria de extensão da UFRN a fim de boicotar a realização do evento – que contou com a presença, além de Alceu Ferraro, do educador Paulo Freire.
29 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 6.420, de 3 de junho de 1977. Altera a Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, que fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979 /L6420. htm#art1. Acesso em: 24 out. 2021.
tal lista – o mais votado – assumisse como reitor; constituindo, assim, um processo democrático. No entanto, este novo procedimento foi sumariamente ignorado pelo Governo Federal em vários momentos: especialmente nos casos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA), nas quais, em 1983, o governo nomeou o candidato mais conveniente (MOTTA, 2014a). Por outro lado, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no ano seguinte, o candidato referendado pela comunidade veio a ser, de fato, nomeado. Foi, portanto, um processo de democratização marcado por avanços, retrocessos e, sobretudo, muita luta – como no caso da UFRGS, em 1988.
A UFRGS aderiu às eleições reitorais de forma relativamente tardia; o reitor à época, Francisco Luís dos Santos Ferraz, fora nomeado pelo ditador Figueiredo em 1984, ao passo que outras IFES já haviam garantido pleitos democráticos – o que era motivo de indignação em diversos setores da Universidade, não sendo à toa que o movimento estudantil lhe conferisse, adequadamente, o epíteto de “último reitor da Ditadura”. 30 Em 1988, portanto, a reitoria da UFRGS simbolizava as continuidades do “entulho autoritário”, e as eleições reitorais eram inevitáveis.
Com ligações ao PDS, especialmente através do deputado federal Victor Faccioni (PDS-RS), Francisco Ferraz buscou viabilizar legalmente sua candidatura à eleição, não se podendo falar, em seu caso, em reeleição, 31 a tempo do pleito, que ficara marcado, após deliberações dos conselhos superiores da Universidade, para 12 de abril de 1988. Como a tramitação do projeto não o permitiu, foi apontado como candidato situacionista o professor Walter Otto Cybis, concorrendo pela chapa Compromisso com a Universidade ao lado de outros docentes: Hélgio Trindade, José Carlos Grijó, Pedro Gus e Mercedes Loguercio Cánepa.
A primeira chapa a ser inscrita, no entanto, denominava-se Novos rumos; pretendia-se oposição ao reitor Ferraz e era composta por Almiro Couto e Silva, Waldomiro Manfroi, Vera Beatriz Chiká Petersen e José Serafim Gomes Franco, além de ser capitaneada pelo professor Gerhard Jacob, do Instituto de Física – que era então, curiosamente, o vice-reitor. Em minha entrevista com Alceu Ferraro, o professor observou, com bom humor: “o vice-reitor, que era o
30 Conforme panfleto produzido pelo DCE/UFRGS, e distribuído no início de 1988, constante do acervo pessoal do professor Balduíno Andreola (Arquivo da Faculdade de Educação/UFRGS).
31 Por meio da tramitação do PL 313/88 que permitiria a recondução de reitores a seus cargos – diretamente ou após consulta à comunidade universitária. O texto e suas alterações estão disponíveis em: Erro! A referência de hiperlink não é válida. . Acesso em: 24 out. 2021.
maior oposicionista do reitor, [risos] a partir de uma altura, porque ele queria ser o próximo reitor, e queria se apresentar como um candidato de oposição, achava que [eu] somava, então… Eu devia estar nessa chapa, e coisa e tal.” (FERRARO, 2019, p. 11). De fato, Ferraro teria sido sondado por Gerhard Jacob a fim de compor a chapa Novos Rumos; porém, teria sido justamente a presença de Jacob – aos olhos de Alceu, uma mera continuidade em relação a Ferraz – que o fez declinar o convite: “o grupo quis colocar dentro da lista sêxtupla o vicereitor, (…) não tem cabimento, daí acabei concorrendo sozinho com o apoio do movimento docente, dos alunos, dos funcionários…” (FERRARO, 2011b, p. 3).
À época, Alceu já cumpria quase 15 anos de docência na UFRGS, lecionando e pesquisando na Faculdade de Educação – sendo, inclusive, desde 1984, seu diretor. Era um rosto conhecido não somente de seus colegas, mas também dos estudantes e docentes da Universidade. Seu período à frente da Faced marcou o início de um processo de democratização e politização daquela unidade, até então apartada da efervescência política do resto da UFRGS (ALMEIDA; LIMA, 2016, p. 1355); e isso se deu através de sua própria gestão democrática da Faculdade de Educação, na qual “tudo era discutido, tudo era votado” (ALLGAYER, 2012, p. 12). Este ímpeto lhe renderia o apoio maciço dos setores de esquerda da Universidade, que viam em sua figura um forte índice de renovação ante as velhas práticas da reitoria; e se refletiu, enfim, no resultado do pleito: uma grande vitória de Alceu Ferraro.
A vitória de Ferraro se deu com expressiva votação nos três segmentos da Universidade: funcionários (1178 votos), discentes (5494 votos) e docentes (568 votos). 32 Os demais candidatos que compuseram a lista sêxtupla formada após o pleito ficaram colocados na seguinte ordem: Waldomiro Manfroi, Gerhard Jacob, Walter Otto Cybis, Hélgio Trindade e Ludwig Buckup – sendo que os dois últimos abdicariam de suas posições mais tarde, em favor da nomeação do primeiro colocado, Alceu Ferraro (Figura 3, na página seguinte).
No entanto, apesar da vitória na eleição, os problemas estavam apenas começando para Alceu Ferraro, reitor eleito. A insegurança jurídica pairava sobre sua eventual nomeação, especialmente após o acontecido na UFBA em março daquele ano: o Presidente Sarney não nomeara a professora Eliane Azevedo, primeira colocada no pleito daquela universidade. 33 Fora, inclusive, a
32 Números obtidos por meio de diversas fontes consultadas, dentre as quais o jornal ASSUFRGS Informa (Edição especial, 14 abr. 1988), presente no acervo de Balduíno Andreola, e o dossiê do SNI 5116/88, de 5 mai. 1988, registrado na Agência Porto Alegre (APA) no ACE 66804/88 (Banco de Dados Memórias Reveladas/AN).
33 Fato denunciado no Informativo do ANDES de março/88 (nº 34, ano VIII). Acervo do prof. Balduíno Andreola.
partir desse precedente que os candidatos – à exceção de Walter Otto Cybis –34 firmaram um pacto verbal, às vésperas da eleição de 12 de abril, de somente aceitar a nomeação do primeiro colocado. Possivelmente não esperavam, ao firmarem esse pacto, que o vitorioso na eleição fosse Alceu Ferraro.
Quem primeiro manifestou desapreço pela vitória do então diretor da Faculdade de Educação foi a comunidade de informações, cujos olhos e ouvidos ainda se encontravam presentes na Universidade. O documento de teor mais forte que localizei em minha pesquisa, com efeito, se refere a um relatório produzido por um agente anônimo, de denominação “M76”, datado de 6 de maio de 1988, declarando o seguinte:
Outro fato marcante neste período pós-votação é o do Prof. Alceu Ravanello Ferrari já estar se apresentando como se Reitor fosse, visitando unidades, constituindo grupos de trabalho com vista à reforma (marxista) da Universidade, escolhendo já seus assessores (embora não divulgando seus nomes), declarando pouco importar-se com as notícias veiculadas pela imprensa de que seu nome
34 Segundo o Informativo da ADUFRGS (edição de 23 abr. 1988), Cybis teria declarado: “Peço que respeitem minha posição de silêncio sobre o meu posicionamento quanto à decisão do Presidente da República”.
estaria sendo vetado por fortes grupos do Ministério da Educação, usando assim uma típica estratégia leninista de tentar uma situação de ‘ fato consumado’. 35
É interessante observar o esforço na caracterização do professor Ferrari como uma ameaça, por sua associação ao espectro da esquerda: termos como marxista, leninista, ou mesmo a atribuição maoísta a ele feita em 1971, em registro que certamente foi consultado pelos agentes nos anos 1980. Na Nova República, embora aparentemente anacrônica, a “caça” aos comunistas ainda era política de Estado, enquanto ainda estivesse na ativa o SNI. Não é à toa a observação de Borges (2007, p. 41): “Em pleno governo Sarney (…), a política norteamericana da Doutrina de Segurança Nacional trabalhava, ainda, com a figura do inimigo interno”. E a atuação do SNI, reportando, lembremos, diretamente ao Gabinete da Presidência da República (LAGÔA, 1983), certamente foi cabal para a decisão de Sarney em não empossar Ferraro como reitor. No entanto, o órgão de vigilância não operou sozinho.
A partir de maio de 1988, observou-se uma ampla atuação dos candidatos Walter Otto Cybis e Gerhard Jacob a fim de, mais do que garantir que seus nomes fossem emplacados como possíveis reitores, que a nomeação de Ferraro fosse boicotada. O fato é notado pelos agentes do SNI, que reportam: “os simpatizantes da candidatura de Walter Otto Cybis, sob a alegação do perigo que a escolha de Ferrari representaria para aquela Instituição de Ensino, intensificaram a mobilização na defesa de sua nomeação”. Para tanto, segundo o mesmo informe36 , “estabeleceram contatos com representantes de vários segmentos da sociedade, tanto em nível estadual quanto federal”. Seguindo esse exemplo, o professor Gerhard Jacob teria feito o mesmo: “[Jacob] vem estabelecendo contatos em nível federal, notadamente junto ao Ministério da Educação (MEC) e ao Ministério da Justiça (MJ)”. 37
As notícias dessas movimentações levaram a um processo de resistência por parte da comunidade universitária, na forma de manifestações em defesa da nomeação de Alceu Ferraro. Em 16 de agosto, cerca de 150 pessoas protestaram na Reitoria, a favor do professor. 38 Dois dias depois, 18 de agosto de 1988, estava
35 Informe 527 A1, M76, 6 mai. 88, reproduzido no Prontuário SNI nº 32.459.
36 Informe 8325/88, catalogado na Agência Central dentro de AC ACE 16085/88.
37 Em 21 de julho de 1988, o Diário do Sul publicou notícia intitulada Uma batalha de lobbies pela reitoria da UFRGS , na qual foi relatada uma viagem de Gerhard Jacob a Brasília, no dia anterior, para tentar uma audiência com Ibsen Pinheiro, líder do PMDB na câmara, a fim de fortalecer as possibilidades de sua nomeação; e também as relações próximas de Walter Otto Cybis com o deputado Luís Roberto Ponte, do mesmo PMDB de Sarney.
38 O relato produzido pelo SNI acerca desta manifestação revela a presença ostensiva de seus agentes durante a mesma, registrando falas e pessoas presentes (Informe 2178/88, APA ACE 16503/88).
publicada no Diário Oficial a nomeação, por parte de José Sarney, do novo reitor: Gerhard Jacob, terceiro colocado na votação direta.
Imediatamente, como resposta, foi deflagrada uma greve geral envolvendo os três segmentos da Universidade – servidores, discentes e docentes unidos em prol da nomeação de Ferraro. O movimento, que paralisou a UFRGS nos dias 24 e 25 de agosto, 39 chegou a reunir 600 pessoas que ocuparam o prédio da Reitoria a fim de entregar um documento exigindo a renúncia de Jacob.40 No dia seguinte, uma passeata foi realizada até a residência do professor nomeado por Sarney, ocasião na qual os estudantes levaram “um boneco, simbolizando um ‘Reitor Judas’, e um caixão mortuário, contendo uma faixa com a inscrição: ‘aqui jaz a democracia’” (Figura 4, a seguir).41
A resistência mais intensa, no entanto, ocorreria poucos dias depois, em 1º de setembro, quando Gerhard Jacob seria oficialmente empossado no cargo de reitor da UFRGS. Cerca de cem estudantes ocuparam a Sala dos Conselhos, no
39 “Professores da UFRGS em greve contra reitor”. Zero Hora, 23 ago. 1988.
40 Este número é dado pelos documentos repressivos e, por esse motivo, pode ser tanto menor, num intuito do agente em desqualificar a adesão ao movimento, quanto maior, a fim de maximizar a “ameaça” representada pelos estudantes a fim de justificar seu próprio trabalho de espionagem (Cf. SAMWAYS, 2013, p. 90).
41 Conforme relatado no Informe SNI nº 2277/88, presente no APA ACE 16503/88.
edifício da Reitoria, mantendo presos o reitor – chamado de “interventor” pelos manifestantes – e mais uma dúzia de membros do alto escalão da Universidade até que Jacob renunciasse. E este último, como primeira medida como reitor empossado, convocou a ação da Brigada Militar, que agiu com truculência na retirada dos estudantes, incluindo o uso de gás lacrimogêneo.42 Era a primeira vez, desde a redemocratização, que a polícia intervinha no campus, fato observado pelo próprio jornal Zero Hora;43 e muito insigne das continuidades autoritárias representadas pela nomeação daquele reitor, em desfavor de Alceu Ferraro, que de fato vencera a eleição.
Quando redigi a monografia na qual baseei este artigo, a presença de “interventores” nas IFES era uma memória distante, um marco da Ditadura e dos primeiros anos da Nova República. No entanto, o governo de Jair Bolsonaro demonstrou rapidamente sua pulsão autoritária ao transformar em norma o desrespeito ao voto da comunidade universitária em inúmeras universidades –inclusive, diga-se, a UFRGS, em 2020. Infelizmente, ao fazê-lo, o atual governo pisa no legado de homens como Ferraro, pioneiro reitor eleito da UFRGS, e invalida as palavras que o professor me disse, ao final de nossa entrevista de história oral: “nunca mais o governo deixou de nomear o mais votado” (FERRARO, 2019, p. 15).
Contudo, a experiência de vida de Ferraro, a qual tive a honra de percorrer ao longo de minha pesquisa, como disse no início, é inspiradora; trata-se da trajetória de um homem que, ante inúmeras atribulações ocasionadas por aqueles que, quando no poder, não hesitam em suprimir direitos e liberdades básicas, perseverou na esperança de dias melhores. Como professor emérito da Faculdade de Educação da UFRGS – reconhecimento que lhe foi conferido a muito tardar, post mortem, em 2019 –, seu nome é imortalizado na memória da Universidade, nexo de tantas experiências de vida, de identificações e, sobretudo, de resistências.
42 “Confusão e tumulto na posse do reitor da UFRGS”. Zero Hora, 2 set. 1988. Arquivo pessoal do prof. Balduíno Andreola (Arquivo da Faculdade de Educação/UFRGS).
43 A última vez fora em 1980, quando estudantes da UFRGS se levantaram contra a visita do ditador argentino Jorge Videla a Porto Alegre (Cf. FERNANDES, 2017).
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(1965 - 2013)
Ana Paula Rodrigues de Oliveira
Perscrutando um novo caminho
Trabalhar com a possibilidade de biografar um período da vida de uma professora universitária foi um grande desafio. Comecei esta viagem por um caminho sinuoso, cujo destino final era desconhecido, mas apostei na perspectiva de que enveredar por ele seria significativo porque, assim como Nóvoa (1995, p. 15), acredito na importância de “recolocar a vida dos professores como centro dos debates educativos e das problemáticas de investigações”. Nesse sentido, inscrevo esse estudo no campo da história da educação, elegendo como temática a trajetória profissional de Merion Campos Bordas, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Para realizar esta investigação, acessei diferentes documentos: uma entrevista com Merion Bordas e Balduino Antonio Andreola, publicada na Revista Educação e Realidade (2010); uma entrevista de história oral desenvolvida em 2012
com Merion1; entrevistas com docentes da Faculdade de Educação, em que observei a recorrência a seu nome; uma reportagem do Jornal da UFRGS que narra genericamente sua trajetória e diversos materiais salvaguardados no Arquivo da Faculdade de Educação.
Algumas perguntas guiaram o processo inicial de pesquisa: quem foi Merion Campos Bordas? Quais seus itinerários até se envolver com o ensino superior? Quais as trilhas percorridas na UFRGS? Quando ingressou na Faculdade de Educação e como foram as relações que estabeleceu com os colegas de trabalho e com os estudantes? Na busca por ampliar as respostas a essas questões, também produzi quatro narrativas com pessoas que, em diferentes situações, cruzaram suas vidas com a dela. Como Kaufmann (2013, p. 37), entendo que a entrevista é “um instrumento flexível nas mãos de um pesquisador atraído pela riqueza do material que está descobrindo”, portanto, o critério principal de seleção foi a convivência com Merion nos anos em que ela esteve presente na Universidade, conforme pode ser visto o quadro a seguir.
Quadro 1 – Entrevistados na pesquisa
Entrevistado Nível de proximidade com Merion Bordas
Balduino Antonio Andreola Professor e colega de longa data
Eunice Aita Isaia Kindel Professora e colega mais jovem
Giovani Lock Técnico administrativo da Faced
Leni Vieira Dornelles Professora, ex-aluna, colega e amiga Fonte: produzido pela autora.
O primeiro que se dispôs a narrar suas memórias referentes à professora foi Balduino Andreola, professor emérito da UFRGS entre 1978 e 1996 e diretor da Faculdade de Educação no período de 1988 a 1992. Para ele, Merion foi “[…] uma pessoa que soube fazer a síntese entre o cérebro e o coração”. Já Eunice não conviveu diretamente com a biografada por ser mais jovem, porém, ainda assim, foi perceptível a admiração com que a mencionou: “[…] ela circulava, falava com todo mundo, sempre muito braba, mas no sentido de combativa”. O diálogo com Leni Dornelles foi marcado pela emoção, possivelmente pelas intensas relações que elas nutriam uma com a outra. Quando lhe pedi
1 As entrevistas estão no Acervo de Memória Oral no Arquivo da Faced e fazem parte do projeto de pesquisa criado no ano de 2011, pela professora Dóris Bittencourt Almeida, que vendo que os documentos históricos da Faculdade de Educação estavam mal armazenados e se deteriorando com o passar do tempo, criou este projeto a fim de preservar as memórias e as histórias da Faced.
que
Merion fora do espaço acadêmico, houve um momento de profunda comoção: “Ela me faz falta! Sabe quando tu eleges alguém para ser o teu suporte intelectual, de vida? De alguma forma nós nos elegemos”. É preciso dizer que não apenas as relações entre os professores se mostraram fecundas. Para Giovani Lock, técnico administrativo da UFRGS, a convivência entre os dois também foi importante “[…] ela era uma pessoa completamente livre de preconceitos”. Eles trabalharam juntos por oito anos, enquanto Merion ocupou o cargo de diretora da Faculdade.
Ao avaliar essas memórias orais, percebo o quanto elas foram fundamentais para compor esse estudo biográfico. O uso da metodologia de história oral na produção das entrevistas me possibilitou entrever uma docente atuante, comprometida politicamente com a educação e à frente de inúmeros projetos ao longo da sua carreira.
Compreender a biografada como “produto e produtora da Universidade” foi algo proposto por Merion em uma entrevista concedida ao acervo de memórias orais da Faculdade de Educação, no ano de 2012 (Figura 1).
Então, a partir das entrevistas realizadas e de uma revisitação aos documentos, elenquei os eixos de discussão deste estudo. Primeiro, apresento ao leitor os momentos que considerei importantes de sua vida, procurando contextualizá-los na temporalidade em que aconteceram. Na sequência, demonstro os rastros deixados por ela como docente, colega, amiga e gestora da Faculdade. Por fim, analiso sua atuação no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEdu/UFRGS), destacando os diferentes projetos que ela elaborou em seu tempo de atuação.
Filha de Ana Maria Schmidt Campos e Pedro Campos, Merion nasceu em 20 de julho de 1933, na cidade de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul. Além dela, o casal teve mais quatro filhos: Marise, Maria de Lourdes, Patrícia e Sérgio. Merion destacou-se desde muito cedo por conta do seu encanto pelos livros “[…] eu realmente adorava ler, sempre fui uma leitora voraz, depois que aprendi nunca mais parei” (BORDAS, 2013).
Seu pai era jornalista e, com frequência, necessitava mudar de cidade. Devido a isso, parte da infância de Merion foi vivida entre Pelotas e Porto Alegre, até que, em 1943, a família se fixou definitivamente na capital do RS. O emprego de Pedro foi afetado em muitas circunstâncias pela ditadura do Estado Novo. Em Pelotas, entre os anos de 1939 a 1943, ele foi diretor do Diário Popular, principal jornal da cidade. Por motivos políticos, e em função de sua integridade profissional, ele se desentendeu com o proprietário e com o prefeito da região. Merion (2012) relembrou esse momento como:
[…] uma situação tensa, complicada […] estávamos em meio à Segunda Guerra Mundial, e meu pai liderou movimentos populares contra o Eixo e a favor da entrada do Brasil no grupo dos Aliados, o que não era do agrado das autoridades constituídas, afinal vivíamos em pleno Estado Novo. Ele ficava ouvindo as notícias no rádio, pela BBC de Londres. Nunca me esqueci de ter ouvido o relato da entrada dos alemães em Paris, numa transmissão ao vivo feita da catedral de Notre Dame, quando as pessoas rezavam para que a cidade não fosse invadida.
A influência paterna e as experiências vividas na infância fizeram com que ela alimentasse o desejo de ser jornalista ou escritora, sonho que persistiu até o fim de sua adolescência. Em 1949, ela concluiu o curso ginasial no Colégio
Cruzeiro do Sul e, dentre os seus documentos arquivados, estava o convite da formatura com seu nome como oradora (Figura 2). Infiro que esta pode ser uma das razões pela qual tenha guardado esse documento ao longo de tantos anos, provavelmente lhe trazia boas lembranças!
Em 1950, aos 17 anos, ela começou a trabalhar de dia e estudar à noite para auxiliar nas finanças da família. Cursou o Clássico no Colégio Júlio de Castilhos , conhecido como Julinho. Relembrou que quando ingressou nesta instituição foi em uma turma pioneira “[…] eu era muito jovem na época, era tipo a Benjamin do grupo” (BORDAS, 2012). Naquele período, eram poucas as pessoas que trabalhavam e estudavam à noite, seus colegas eram mais velhos e, na maioria, casados. Foram amizades que duraram longos anos.
A escolha de Merion por fazer o Curso Clássico provavelmente se deu pela vontade que tinha de ser jornalista ou escritora. Esta modalidade de ensino secundário fomentava uma formação voltada para certa intelectualidade.
Entretanto, considerando a legitimidade do Curso Normal para as filhas da classe média, reflito sobre os seus caminhos profissionais, porque, apesar de ter decidido pelo Clássico, acabou dedicando-se integralmente à docência. Possivelmente, nesse tempo, o interesse pela filosofia e pelo Direito começou a ser despertado porque, na sequência de seus estudos, aprofundou-se nos conhecimentos dessas áreas.
Aos 20 anos de idade, ela foi aprovada para o curso de ciências jurídicas e sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A escolha se deu porque o curso tinha frequência livre e isso era importante, já que conseguiria continuar trabalhando. “Fiz Direito. Não que me desagradasse o curso, mas não poderia estudar se não tivesse frequência livre. Eu trabalhava como secretária de diretoria em uma empresa que produzia lã, não poderia assistir às aulas” (BORDAS, 2012). Nesta época, a Faculdade de Direito era diferenciada e os alunos podiam estudar em casa para realizar as provas orais e dissertativas na Universidade. Merion contou com uma grande amiga, que era sua colega, e a mãe dela. De tudo que li, acredito que sem estes apoios, provavelmente não conseguiria seguir cursando a faculdade, pois não tinha dispensa do serviço para que frequentasse as aulas.
Ao longo do curso, teve como professor Armando Câmara, que trabalhava as questões da filosofia no Direito. Para Merion (2012), ele era “mais filósofo do que professor de Direito”. Esse pequeno encontro com a filosofia corroborou para a escolha que ela faria quando se formasse, pois destacou na entrevista seu encantamento com esta disciplina.
Entre os documentos arquivados por Bordas, estavam o diploma de conclusão do curso de Direito (Figura 3).
A professora também guardou alguns recortes de jornal (Figura 4). Estes estão relacionados ao período em que Merion cursou Direito.
Por meio da observação dessas materialidades, concluo que Merion chegou a prestar concurso para “Pretor”. Atualmente, isso corresponderia a um concurso para juíza temporária. Também percebo que ela não chegou a atuar, pois na entrevista que concedeu, informou que não exerceu a magistratura.
Após concluir a Faculdade de Direito, permaneceu um ano sem estudar, sendo aquele um momento crucial para seu futuro, pois, conforme o que disse, pôde pensar em qual direção seguiria sua vida profissional. Acreditava que se seguisse no campo do Direito “teria sido, não uma juíza, mas uma teórica do Direito, isso eu teria gostado… professora de Filosofia do Direito” (BORDAS, 2012). Em seguida, posteriormente a esse ano sabático, pensou: “tô’ pra Filosofia”.
Figura
Diploma de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais.
Fonte: Documento pessoal de Merion/Arquivo de Memórias da Faced/UFRGS.
de Jornal.
Fonte: Documento pessoal de Merion/Arquivo de Memórias da Faced/UFRGS.
Então, em 1959, quando estava com 26 anos, prestou vestibular para a Faculdade de Filosofia, novamente na UFRGS. Ela contou que o concurso era específico, cada unidade fazia sua prova. Merion (2012) também disse que o curso tinha um currículo diferente: “Bom, eu fui para a Faculdade de Filosofia e lá era diferente. Era o modelo três em um, ou seja, três anos de bacharelado e um ano para a formação pedagógica”.
Num encontro de amigos, em 1962, conheceu Marc Pierre Bordas, um engenheiro francês que concluiu sua tese de doutorado no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. Dois meses depois, se casaram e decidiram que a Europa seria seu lugar de moradia. Merion trancou a matrícula na faculdade para acompanhar o marido. Permaneceram durante um ano na França, na cidade de Toulouse.
Quando retornaram para o Brasil, no ano de 1964, o casal se inscreveu em um curso de línguas para aprender russo, que consideravam muito bonito. Mas, apenas a beleza do idioma justificaria a escolha por estudá-lo? É preciso não perder de vista o contexto daquela temporalidade. Provavelmente, o período que moraram fora do país colaborou para que tomassem essa decisão. O mundo passava pelo período da Guerra Fria (1945 – 1991). Suas posições políticas identificadas às ideologias de esquerda possivelmente provocavam uma atração pela língua falada em boa parte da União Soviética.
Entretanto, ao concluírem o curso, em 1964, começaram a ser perseguidos pelo Regime Militar. Para Merion (2012), isso aconteceu por dois motivos: “primeiro porque a gente era estrangeiro, depois estudando russo, o que era aquilo?”. É possível que ela e o marido fossem considerados espiões. Eram recém-chegados da Europa e poderiam, nesta estada, terem se aproximado da União Soviética, induzindo as pessoas com quem conviviam a serem contra a Ditadura Civil Militar.
O ano de 1964 foi marcante para o país, pois se instaurava o período da Ditadura Civil Militar (1964 –1985). Os militares controlavam a população, aqueles considerados suspeitos eram retirados de circulação para averiguação pelas forças de repressão do Estado. Esse contexto marcou a trajetória de Merion durante este momento de exceção vivido no país. Quando já lecionava no Colégio de Aplicação, e também no ensino superior, teve a presença de observadores em suas aulas:
[…] na Faculdade, tínhamos alunos de todos os cursos, e as turmas eram grandes. Então era um lugar propício para aparecerem os “observadores”. No Colégio de Aplicação também. Nós tivemos alunos do segundo grau que foram presos (BALDUINO; BORDAS, 2010, p. 307).
Alguns temas eram considerados impróprios de serem trabalhados em sala de aula e era função dos “observadores” avisarem as autoridades se isso ocorresse. Foi um tempo delicado, Merion e os demais colegas precisavam cuidar o que abordavam com os alunos para não serem expurgados da Universidade.
Também em 1964, com 31 anos, retornou à Faculdade de Filosofia para concluir a licenciatura. Era necessário que ela cursasse o último ano, o de formação pedagógica, que era dividida em dois semestres. No primeiro ciclo, relembrou Bordas (2012), eram cursadas “4 ou 5 disciplinas”. Teve como professora Graciema Pacheco , diretora do Colégio de Aplicação (CAp) de 1954 a 1981.
No segundo semestre, foi convidada pela Professora Graciema para realizar seu estágio no Colégio de Aplicação. De acordo com Lima (2016), essa era uma prática de Graciema Pacheco, diretora da instituição, que escolhia entre as melhores alunas aquelas que poderiam fazer o estágio no CAp. A razão por ser convidada, nas palavras de Bordas (2012), foi a seguinte: “eu era boa aluna e gostava, e Dona Graciema me convidou para fazer lá, e era uma honra”. Este é um ponto importante na trajetória profissional de Merion. Pode ser definido como uma guinada que lhe aproximou da educação, por meio do ingresso como docente no Colégio de Aplicação e que a conduziu ao curso de pedagogia e, na sequência, à Faculdade de Educação, lugar em que permaneceu como docente até sua aposentadoria.
As escolhas dos cursos de graduação feitas por esta docente demonstram que apostou em uma formação para intelectualidade. Desde sua infância, é possível perceber isso. A partir do momento em que aprende a ler, tornando -se uma leitora voraz, até o instante que ingressou na Faculdade de Filosofia. Os caminhos que percorreu a aproximaram das salas de aula na educação básica e, posteriormente, da docência e da pesquisa no ensino superior. Sobre o ingresso como docente, Merion explica: “Em agosto (1965), eu comecei a dar aula no Aplicação. E, logo em seguida, pra Faculdade também […], que na época ainda não era a Faculdade”. Portanto, em sua fala indica que começou a lecionar no ensino superior para o curso de pedagogia, quando este ainda fazia parte do Departamento de Educação que pertencia à Faculdade de Filosofia. A Faculdade de Educação (FACED) foi criada na UFRGS em 1970. 8 Interessa ressaltar que essa não é uma prerrogativa apenas desta Universidade, pois, comumente, os cursos de pedagogia estavam atrelados às faculdades de filosofia. De acordo com Celeste Filho:
[…]as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) tiveram a incumbência de se tornarem pólo aglutinador das universidades brasileiras. Esta faculdade deveria conferir unidade à universidade. Esta concepção de universidade integrada
pela FFCL foi descartada na década de 1960 pelos principais intelectuais que formularam a Reforma Universitária. O que fazer com as FFCL era, portanto, a questão básica de como se reformar a universidade (2004, p. 162).
Um dos objetivos da Reforma Universitária era desmembrar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criando novas unidades. A discussão sobre essa reforma iniciou em 1960, mas o início da Ditadura Civil Militar atrasou os debates e ela foi ocorrer somente no final da década de 1960. Na UFRGS, a criação da Faculdade de Educação ocorreu em 1970. Até esse momento, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras incluía o Departamento de Educação e era nele que estava lotado o curso de pedagogia.
Até o ano de 1969, o curso de pedagogia formava bacharéis. Estes podiam atuar na administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação escolar. Não era função do pedagogo ser professor. Atribuo que este foi o motivo pelo qual Merion não quis fazer o curso de pedagogia, pois não era comum a atuação em sala de aula na educação básica. Para que pudesse ser professora ela deveria ter feito Curso Normal, ao invés do Clássico.
A partir de 1969, o curso passou a atribuir o título de licenciado a todo formando. Estes eram “[…] especialistas em Administração Escolar, Inspeção Escolar, Supervisão Pedagógica e Orientação Educacional, ao lado da habilitação para a docência nas disciplinas pedagógicas dos cursos de formação de professores” (VIEIRA, 2008, p. 7). Merion atuou na Faced desde sua criação, no ano de 1970, quando tinha 37 anos.
A Faculdade de Educação foi uma das primeiras do país a ter o curso de mestrado. Isso aconteceu no ano de 1972. Bordas (2010, p. 303) rememora: “eu lembro muito bem como foi complicado instalar o Mestrado, devido à resistência de alguns setores da administração central da UFRGS”.
A criação dos cursos de pós-graduação também faz parte da Reforma Universitária. No documentário Com dor (2008), produzido por Giancarla Brunetto, alguns docentes rememoram o período da Ditadura Civil Militar. Duas professoras falaram especificamente sobre este tema, Maria Beatriz Luce e Merion Campos Bordas. Para Luce (2008) este foi um momento em que
[…] apresentaram pro nosso país um desafio de investimento importante na área das universidades, em ciência e tecnologia, diferente do que já acontecia em outros países latinoamericanos que aconteceram um pouco antes […]podemos ver claramente que a reforma universitária, teve um sentido, era central neste processo desenvolvimentista, modernista ela foi uma reforma modernizante.
Foi uma fase complicada, mas ao mesmo tempo, logo em seguida veio a criação da Pós-graduação, porque isso é uma coisa que não pode ser esquecida, que foi só depois da posse dos militares no governo que se instaurou a pós graduação como uma política, que era uma política de defesa nacional.
Assim, o seu ingresso como aluna da pós-graduação aconteceu no ano de 1972. Fez parte da primeira turma, composta, basicamente, por professores do CAp e da Faculdade. Os primeiros professores orientadores do programa eram estadunidenses, o que exigia uma maior dedicação dos discentes, pois os artigos eram todos em língua inglesa. Este era um idioma que Merion conhecia.
Ao longo do mestrado, continuou trabalhando como docente do CAp e da Faculdade. Naquele momento, seus três filhos já eram nascidos: Jean Marc, que hoje é engenheiro agrônomo, Francis, que é advogado e pai de Hugo, e Marie Ange, que é fotógrafa e artista plástica. Ao avaliar as falas de Merion, vejo que aquele foi um período atarefado, eram muitas as atividades que ela precisava dar conta. Sobre esta etapa, assim rememorou:
Eu atuava como professora e tinha três filhos pequenos. Então eu só podia trabalhar pro meu mestrado à noite. Aí eu fiquei duas noites virando […] Eu tive uma crise mental, eu não conseguia mais nem pensar, nem escrever […] Mas isso é só para dar o exemplo de como se pode chegar a concluir, como eu concluí: “Não preciso ser mestre… não quero ser nada” (BALDUINO; BORDAS, 2010, p. 305).
No ano de 1977, Merion adquiriu a titulação de Livre Docente (Figura 5). Para concorrer a ele, era necessário realizar uma prova e também defender uma tese. Bordas (2012) lembra que defendeu seu trabalho na UFRGS. Após ser-lhe concedido a livre docência, também foi considerada apta à titulação de Doutora em Educação (Figura 6). Foi por meio da análise dos documentos arquivados por Merion e de seu currículo lattes que consegui compreender este momento.
Entre 1981 e 1991, Merion participou ativamente do Programa PERICAMPUS e seus desdobramentos na Faculdade. No próximo item, aprofundo as explicações referentes a este Programa. É importante destacar que a professora ocupou o cargo de Pró-Reitora de Graduação da UFRGS, entre os anos de 1992 e 1996. A Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) tem como função acompanhar o andamento permanente da Universidade. Em seu mandato, umas das ideias que apresentou foi a de extinguir os departamentos. Essa posição foi exposta por ela em uma das reuniões do Conselho Universitário
Fonte:
Fonte: Documento pessoal de Merion/Arquivo de Memórias da Faced/UFRGS.
(CONSUN). Sobre este assunto, Bordas (2010, p. 301) afirmou que “havia uma divisão que se conserva até hoje, sem nenhum sentido válido, porque na verdade é absurda”. A divisão por departamentos é marca que restou da Ditadura Civil Militar e se mantém até o presente momento. Naquela época, Merion já os questionava, pois tinha consciência de que eram outros tempos e era necessário repensar essa divisão. Defendia que o trabalho dentro da Faculdade é interdisciplinar, as disciplinas interagem entre si, propiciando que os professores se aproximem, mesmo sendo de setores diferentes. Portanto, em seu entendimento, não cabiam mais essas divisões departamentais. No final do ano de 1996, Merion tinha sido recém-eleita diretora da Faced. Neste mesmo período, também, foi eleita diretora do Fórum de Diretores. O Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros e Departamentos de Educação ou equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (FORUMDIR) foi criado no ano de 1992. No início, participavam apenas as melhores faculdades de educação do país e, como exceção, a Universidade de São Paulo.
Ao assumir o cargo de diretora, em dezembro de 1996, Merion convocou todas as faculdades de educação das universidades públicas para que participassem do encontro. Então, entre 1996 e 1997, o Fórum tomou uma proporção nacional. O que era um evento desconhecido pela maioria das instituições, passou a ter visibilidade. Esteve neste ofício ao longo de quatro anos (1996 – 2000). Este foi um período importante. Nas palavras de Bordas (2010, p. 313) “[…] a Faced tornou-se conhecida e reconhecida pelo Fórum, e em outros lugares”. Atribuo a Merion esta projeção nacional que a instituição ganhou. Ela possuía uma visão de que as pessoas adquiriam mais saberes quando estavam em contato/ conexão. Foi o que ela tentou estabelecer nos anos que esteve à frente do Fórum. Portanto, concomitantemente ao compromisso com o Fórum de Diretores, tomou posse do cargo de diretora da Faculdade de Educação. Este fato aconteceu entre os anos de 1997 – 2000 e 2000 – 2004. Foi a primeira vez que um mesmo diretor, uma mulher, foi reeleita na Faculdade. Até este instante já haviam sido eleitos sete diretores e nenhum exerceu o cargo pela segunda vez. Infiro que Merion foi a primeira a exercer o segundo mandato, pois priorizava a relação com os colegas e também estabeleceu parcerias. O período dela como diretora foi, para Lock (2017) “um período de muito trabalho, muita reforma, então a gente teve reforma de espaços físicos, de organização interna” (LOCK, 2017). De acordo com Lock, Merion reinseriu a unidade no cenário nacional.
Diante das pesquisas que realizei, percebi que era uma profissional da educação nacionalmente conhecida, uma verdadeira intelectual da educação. Apresento alguns trabalhos vinculados ao Ministério da Educação (MEC)
que esteve à frente: foi presidente da Comissão de Especialistas em Pedagogia da SESu/MEC entre 1999 – 2001; entre 2000 e 2008 assessorou o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais na área de avaliação de cursos e avaliação institucional, como membro de Comissões Assessoras para os Exames Nacionais – ENC (Provão) e ENADE. Por suas atuações, concluo que era uma profissional engajada que buscava fazer o melhor nos trabalhos que se propunha a participar.
Merion se aposentou em 2003, aos 70 anos. É válido salientar que esta foi uma aposentadoria compulsória. Dornelles (2017) relembra que “ela recebeu a cartinha dos 70 (anos), apresentou o projeto no outro dia e continuou ligada à Instituição via pós-graduação”. Ela continuou fazendo parte do quadro permanente de professores-orientadores do PPGEDU/UFRGS como colaboradora, orientando dissertações de mestrado e teses de doutorado. Para que continuasse com este vínculo, apresentou um projeto de pesquisa intitulado A polissemia do curso de pedagogia e os processos avaliativos do Estado: resistência e busca de uma identidade . No ano de 2005, esta proposta foi reelaborada e desenvolvida.
A Universidade concedeu a ela o título de Professora Emérita no ano de 2007. Esta é considerada a maior honraria atribuída a um professor no meio acadêmico. Expressa o quão significativo foram os trabalhos realizados dentro da instituição. A professora Merion foi uma figura marcante, como parte integrante do corpo docente da UFRGS. Elaborou projetos e exerceu funções importantes, o que a identificou como uma figura notável na comunidade universitária.
Sua trajetória, escolar e a acadêmica, sempre esteve ligada a instituições públicas. Estudou no Colégio Júlio de Castilhos e, após, ingressou na UFRGS, trabalhando no CAp e após seguindo a carreira acadêmica, lecionando no ensino superior. Bordas (2012) se considerava “realmente produto e produtora da UFRGS”. Após concluir seus estudos na UFRGS, continuou trabalhando na mesma instituição. Contribuiu com o ensino, pesquisa e extensão, pois atuou em sala de aula, elaborou projetos e orientou diversos trabalhos na PPGEDU.
[…] foi uma profissional, uma mulher muito dedicada à Universidade, ela entrega a vida dela pra UFRGS. Então, vai participar muito das questões administrativas da UFRGS, sem abandonar a sala de aula, ela passa a investir muito na questão administrativa, na criação de projetos, na participação de projetos.
Ao analisar as entrevistas que realizei, constatei que Merion nunca quis se afastar de fato da Universidade. O fator que colaborou para que isso acontecesse foi o tratamento de saúde que estava realizando.
Ao longo de sua carreira, foram 17 teses de doutorado e 30 dissertações de mestrado orientadas e aprovadas. Aos 82 anos, no dia 1º de setembro de 2015, ela partiu. Após sua morte, restaram muitas lembranças referentes a ela. Foi responsável por formar gerações de pesquisadores e docentes.
No item anterior, apresentei alguns elementos que permitem identificar como ocorreu a construção da trajetória profissional de Merion dentro da Faced/ UFRGS. Nesta seção, debruço-me nos rastros deixados por ela na Universidade e em quem conviveu com ela. Para isso, revisitei os documentos a que tive acesso, principalmente as entrevistas, da Revista Educação e Realidade (2010), as que compõem o Arquivo da Faced (2012) e as que produzi.
A professora Merion, como relembra Andreola (2010), “sempre foi muito boa de briga” (p. 313). Para os entrevistados, ela lutava pelo que acreditava ser correto, “ela militava com leveza” (LOCK, 2017). Para Kindel (2017), Bordas era “muito atuante e circulante” dentro da Faculdade, isso, em sua opinião, a caracterizava como uma pessoa combativa. Tinha suas exigências, mas ao mesmo tempo sua afetividade. Sabia cobrar, mas de uma maneira que não magoava seus colegas e alunos, “tinha uma coisa da franqueza muito forte”, como rememoraram Dornelles e Lock (2017).
Ao analisar as falas dos entrevistados, percebi que Andreola, Dornelles e Kindel (2017) falam sobre o “horário da comunidade”. Estes aconteciam uma quarta-feira por mês e “era ela [Merion] que coordenava esse encontro” (KINDEL, 2017). Era o momento em que a comunidade se reunia para debater sobre os assuntos/problemas que ocorriam no campo da educação. Para Dornelles (2017), “a discussão teórica mais genial que teve […] foi o debate sobre o construtivismo, entre o professor Fernando Becker e Tomas Tadeu […]”, este encontro também foi citado por Andreola. Dornelles (2017) também relembra que com estes encontros era possível que os professores deixassem seus departamentos de lado e interagissem, passando a estabelecer outros vínculos e, para ela, “Merion conseguia fazer isso muito bem”.
Ao longo de sua vida profissional, Merion foi se construindo como docente. Valho-me das palavras de Dornelles (2017) quando diz que “em todo esse
processo, ela foi criando sua professoralidade da escuta do outro”. Isso, para os entrevistados, era uma de suas marcas. Quando perguntei a Andreola (2017) se Bordas gostava de dar aula, ele respondeu que ela não gostava, “ela adorava dar aula, a Merion era uma professora apaixonada […] ela era muito competente, uma pessoa muito culta”. Na opinião de Lock (2017), Merion era uma pessoa fácil de conviver no dia-a-dia. Ele considera que a maior marca de Bordas estava relacionada com
[…] essa busca pelo novo, a paixão pelo trabalho, a facilidade de relacionar-se e de estabelecer vínculos que não eram apenas profissionais, eram vínculos também de afetividade e uma super seriedade com o trabalho, ela era uma gestora nata.
No período em que Merion ocupou o cargo de diretora da Faculdade, Lock (2017) relembra que “ela estava sempre com o gabinete aberto, recebia todos, ouvia todos”. O entrevistado a considera uma gestora nata, Bordas conseguia resolver as divergências que aconteciam “de uma forma muito civilizada, muito cordial e muito respeitosa” (LOCK, 2017). Ele relembra que Merion era uma pessoa que dificilmente se desesperava.
Outro aspecto que merece ser discutido é a inserção de Merion Bordas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU/UFRGS), com o propósito de analisar as ressonâncias de sua atuação como professora pesquisadora, pois foi responsável pela formação de uma quantidade considerável de mestres e doutores em educação, no tempo em que esteve atuante como orientadora no referido Programa.
O primeiro curso de pós-graduação na Faculdade de Educação, como relembra Bordas (2010), iniciou-se no ano de 1972. Em 1977, aos 44 anos, Merion (2010) rememora a defesa de sua tese de doutorado, defendida no PPGEDU/ UFRGS. Logo depois, inicia sua trajetória como professora da pós-graduação.
Ao analisar as entrevistas, constatei que, na década de 1980, os currículos dos cursos de mestrado e doutorado passaram por grandes mudanças em sua estrutura. Foi na entrevista com Dornelles (2017) que consegui entender o que significou a presença de Bordas no PPGEDU/UFRGS. Quando questionada sobre como havia sido a atuação da professora Merion na pós-graduação, relembrou que “[…] foi muito genial porque ali começou a se instalar a marca de uma mudança radical no currículo da pós-graduação e Merion encabeçou essas mudanças”. Também relembra que foi um momento muito proveitoso para o Programa, pois “[…] ela trazia projetos nacionais e internacionais, levando o PPGEDU para outro nível”.
Segundo Dornelles (2017), a principal ruptura que ocorreu foi na primeira reorganização do currículo do Programa. Até aproximadamente 1985, os alunos não tinham flexibilidade para escolher as disciplinas que desejavam cursar. A partir deste período, os discentes passaram a ter liberdade de organizar o currículo como melhor entendessem. Neste momento, foi decentralizado o poder de decisão e alunos e professores passaram a dialogar, estabelecendo uma nova relação.
Vejo como uma marca da professora Merion este “extramuros” (ALMEIDA; LIMA, 2016, p. 1364). Assim, como idealizou em programas que elaborou, conseguiu fazer o mesmo com o PPGEDU, lançando-o para além da Universidade. Concluo que o desejo pelo novo, como relembra Lock (2017), era a “mola propulsora” que movia suas ações.
Essa incansável busca pelo novo iria se esgotar rapidamente se o Programa de Pós-Graduação continuasse restrito aos saberes presentes na instituição. Dornelles (2017) relembra que foi nesta busca que Merion fortificou o movimento dos professores saírem do país para fazerem seus mestrados e doutorados. Assim, poderiam trazer as questões que estavam sendo discutidas nos outros lugares para dentro da Universidade.
O primeiro aluno de mestrado da professora Merion foi Maurivan Güntzel Ramos. Defendeu sua dissertação no ano de 1981. Atualmente, trabalha na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). A maioria dos orientandos de Merion são professores e atuam no ensino superior, grande parte, em instituições federais, alguns são aposentados. Bordas formou gerações de mestres e doutores em Educação, colaborou na construção de muitos pesquisadores. Esta intelectual da educação estimulava em seus alunos “esse amor pelo público, esse respeito pelo institucional” (LOCK, 2017), via neles futuros servidores públicos.
Destaco os professores que atuam na UFRGS e que foram orientados por Bordas: Raimundo Helvécio Almeida Aguiar, Sotero Serrate Mengue, Lucia Helena Marques Carrasco, Leni Vieira Dornelles, Maria Isabel Dalla Zen, Maria Bernadette Castro Rodrigues, Rosa Maria Hessel Silveira, Elizabeth Diefenthaeler
Krahe , 2 Maria Luiza Rodrigues Flores, Nelton Luis Dresch, Tânia Ramos Fortuna 3 . Esta foi sua última orientanda. Nos conjuntos de entrevistas que compõem o Arquivo da Faced, uma das entrevistadas foi justamente ela. Sobre a orientadora rememorou:
2 O itálico sinaliza os professores que já estão aposentados.
3 Tânia Ramos Fortuna é Doutora em Educação e atualmente atua como docente na Faculdade de Educação.
[…] Merion foi a nossa paraninfa. E é interessante que eu a tenha reencontrado em tantas outras voltas da minha vida nessa faculdade. Finalmente ela voltou a ser essa figura de referência importante quando ela veio a ser a minha orientadora do doutorado.
A professora Tânia defendeu sua tese em 2011. Naquele momento, Merion já estava com a saúde bem debilitada. Para Kindel (2017) foram “duas mulheres excepcionais” que tiveram a oportunidade de se encontrar e desenvolver um trabalho juntas.
Outro aspecto que merece ser discutido foram os projetos que Merion elaborou na UFRGS. Ao analisar o conjunto de entrevistas que produzi, constatei que, para os entrevistados, foram três os principais Programas idealizados por ela. Estes são: Programa de Integração Universidade e Escolas de 1º Grau de Periferia Urbana da Grande Porto Alegre (PERICAMPUS), Programa de Atividades de Aperfeiçoamento Pedagógico (PAAP) e o Projeto de Educação à Distância (PEaD) na Faced.
O primeiro que apresento é o Programa PERICAMPUS. Este aconteceu entre os anos de 1981 a 1991 na Universidade. Definido como “proposta de ação interdisciplinar que integrava o ensino, pesquisa e extensão” (ALMEIDA, 2015, p. 133), ia ao encontro do que a Universidade se propunha naquele contexto de final do Regime Militar. Inicialmente, integrava o Programa de alunos do curso de medicina. Após, discentes de outros cursos se envolveram: odontologia, psicologia, educação física, letras e engenharias. Pela idealização da professora Merion, a Faculdade de Educação foi a última a integrá-lo. Participar deste projeto foi uma marca importante para Faculdade. Faço uso das palavras de Almeida e Lima quando falam que Talvez esta tenha sido a ação mais contundente da Faculdade de Educação nos anos 1980. O PERICAMPUS é um ícone da FACED, representa os movimentos próprios de um tempo em que era preciso dizer não ao passado recente e apostar em um futuro melhor para a Universidade e para o país (2016, p. 1364).
Dentro da Faculdade de Educação, existiam três subprojetos do Programa PERICAMPUS. “Os subprojetos do PERICAMPUS levavam para as salas de aula possibilidades de um ensino interdisciplinar, voltado especialmente para o desenvolvimento de saberes próprios da Língua Portuguesa e da matemática” (ALMEIDA & LIMA, 2016, p. 1361). O Programa promoveu uma aproximação das escolas e da sociedade. Bordas acreditava “que as pessoas deveriam ter voz e ter lugar para suas vozes” (DORNELLES, 2017). Para
Dornelles (2017), “o PERICAMPUS foi um momento em que a Faced foi pra dentro das comunidades, foi pra dentro das escolas […] foi um dos momentos mais bonitos que a faculdade teve”.
O PERICAMPUS, enquanto programa (Universidade) e projeto (Faculdade), assemelha-se ao que hoje é o PIBID. Ambos têm o mesmo princípio, que é o de aproximar os alunos da Universidade das escolas públicas. A diferença entre os dois é que o PIBID se destina especificamente para alunos das licenciaturas e é um Programa que atinge universidades de todo o país, enquanto o PERICAMPUS constituiu-se em uma ação da UFRGS. No momento em que foi criado, o país estava nos últimos anos da Ditadura Civil Militar. Foi significativo para a Universidade que esse Programa acontecesse neste período. Era o instante de se aproximar da comunidade. Deve ter sido essa uma das motivações que levaram Merion Bordas a trazê-lo para a Faculdade de Educação. A perspectiva do novo era motivadora para ela (LOCK, 2017). O Programa teve duração de 10 anos e acabou porque, segundo Bordas (2012), “tudo tem um tempo, e eu não queria mais né, não tava mais a fim…”. Para ela, os últimos anos do PERICAMPUS foram cansativos, acabou acumulando muitas funções. A dedicação de Merion não era exclusiva para este projeto, também tinha outras atribuições com a Faculdade, o que acabava assoberbando-a de trabalhos. Isso, a meu ver, ocasionou na desmotivação inicial que ela tinha.
A professora Merion também participou da criação do Programa de Atividades de Aperfeiçoamento Pedagógico (PAAP). Isto ocorreu a partir do período que ocupou a Pró-Reitoria de Graduação (1992 – 1996). Nas palavras de Dornelles (2017), Bordas idealizou este Programa “porque se entendia que os professores das outras graduações precisavam estar mais atentos às questões da educação, as questões metodológicas e didáticas”. O objetivo do PAAP era possibilitar aos novos professores que conhecessem a Universidade como um todo, além de suas unidades. Atualmente, este Programa ainda está em atividade. Todos os professores que ingressam na UFRGS devem cursá-lo. É dividido em três módulos e os docentes que participam tem até 30 meses para conclui-lo. No último mandato como diretora da Faced, mais especificamente no ano de 2003, Merion envolveu-se na elaboração do Projeto de Educação a Distância (PEaD) na Faculdade de Educação. Lock (2017) relembra que foi Bordas “que articulou o primeiro curso, o primeiro oferecimento de Pedagogia à distância”. Este projeto ele considera como um vestígio da presença de Bordas na Faculdade. Na entrevista, a professora Merion (2012) compartilhou suas memórias referentes ao início do PEaD na Faculdade. Lembrou que, no início, esta unidade
não queria aceitar o curso e, portanto, “forçou um pouco a barra” (BORDAS, 2012) para que aceitassem. Para ela, como poderia a Faculdade de Educação ficar fora deste Projeto, por receio de não saber como funcionaria? (BORDAS, 2012). Dornelles (2017) relembra que este foi “a menina dos olhos” de Merion.
Penso que, por “sempre buscar o novo” (LOCK, 2017), Merion entendia que aquele era o momento da Faculdade se inteirar deste processo diferente de se fazer educação. Para conseguir instalar este projeto foi necessário que Bordas fizesse alianças (DORNELLES, 2017).
Pude sentir, ao longo das entrevistas realizadas e também após a análise das que constam no Arquivo da Faced, que são muitas as lembranças que perpassam esta intelectual da educação. Constatei o que Pacheco (2010, p. 222) fala sobre o ser humano existir “somente dentro de uma rede de relações”. Enquanto as pessoas que conviveram, direta ou indiretamente, com Merion existirem suas memórias também continuaram perpetuando-se.
Esta pesquisa teve por objetivo construir movimentos de aproximação do percurso profissional percorrido por Merion Campos Bordas na UFRGS, sobretudo dentro da Faced. Assim, vejo que produzi uma primeira biografia sobre esta intelectual da educação.
Ao longo da graduação, estive inserida na Faculdade de Educação. Foram quatro anos, nos quais não me aproximei do passado desta instituição. A partir das pesquisas e leituras que realizei, consegui compreender os movimentos que envolveram a constituição da FACED, entre eles, alguns efeitos da Ditadura Civil Militar.
Ao trabalhar com o gênero biográfico, foi importante compreendê-lo, pois, facilmente poderia cair na armadilha de apenas engrandecer a docente Merion Bordas. Trago aqui, mais uma vez, as palavras de Pintassilgo e Teixeira, pela sua relevância no processo desta pesquisa:
Não se trata de descrever um percurso de vida tido como transparente em correspondência plena com a suposta realidade de sua existência. Somos sim confrontados com o desafio de reescrever, num certo sentido, uma vida, de reinterpretar o sentido de uma existência, sabendo, à partida, que esta assume uma pluralidade de sentidos, os quais lhe são atribuídos pelo próprio biografado, por aqueles que com ele conviveram e agora, num outro plano, por todos aqueles que, a partir de diferentes pontos de observação, procuram
compreender o mistério dessa vida, mesmo sabendo que nunca conseguirão penetrar totalmente na sua interioridade (2015, p. 63-64).
É preciso apresentar a vida do biografado e contextualizá-la com o tempo histórico. Foi isto que tentei fazer ao apresentar os caminhos percorridos por Bordas na UFRGS. Este foi apenas um primeiro movimento de escrita sobre Merion Bordas. Há muitos desdobramentos que podem ser feitos a partir deste trabalho inicial. Assim, como Pintassilgo e Teixeira (2015) afirmam, nunca conseguiremos adentrar totalmente na vida do biografado. Sempre restarão pontos, os quais podemos nos ancorar para realizar uma nova pesquisa.
A principal marca que caracteriza esta docente é sua incansável busca pelo novo. Ao longo da escrita deste trabalho, sinto que esta perspectiva acompanhou todo o processo de pesquisa. Durante sua trajetória profissional, esteve à frente de diferentes trabalhos na Universidade (PERICAMPUS, PAAP e PEaD). Também participou de comissões vinculadas ao MEC. Era uma professora reconhecida nacionalmente.
Depois de examinar cuidadosamente a documentação da pesquisa, percebo que as marcas deixadas pela biografada na Faculdade de Educação projetaram esta instituição nos cenários estadual e nacional. Merion criou uma espécie de identidade para esta unidade da UFRGS. Durante os 43 anos em que esteve na UFRGS, lutou pela educação pública de qualidade, defendeu a ampliação das possibilidades de acesso à formação docente, lutou pelo fortalecimento da democracia em todas as instâncias. Afetividade e combatividade são atributos que definem a pessoa de Merion Bordas.
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Duan Kissonde
Sabe, quando aquela dor no fundo do peito Traz cheiro, gosto, sentimentos e vozes… Aquela dorzinha que também é alegria do reencontro da memória com a sensação que não dá para descrever?
A dor que é puro afeto, mas que não tem nome certo! Será que um dia ela some?
Ou nos consome?
Ou se traduz em um nome?
(SOARES, 2019, p. 79).
A tentativa de traduzir em um nome as memórias compartilhadas nos diálogos de pesquisa sobre a Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), considerando sua relação com o movimento social negro, é o mote da escrita que aqui compartilhamos. Desejamos tematizar e nomear a presença negra e sua potencialidade educadora e transformadora na Faced, rememorando a existência do Grupo de Estudos Cultura Negra/Faced nas décadas 80 e 90 do século XX. O encontro com documentos do arquivo pessoal do professor Balduino Antonio Andreola, localizado no Arquivo da Faculdade de Educação/UFRGS, fez eclodir o presente ensaio.
Tal encontro ocorre no contexto da pesquisa1 e do grupo de estudos que congrega essa autoria conjunta, entre uma docente branca e um estudante negro. O enlace metodológico entre revisão bibliográfica, entrevistas e documentação proporcionou a seleção de algumas categorias para a análise, nomeadas como negro e nossa comunidade negra .
A palavra anuncia ontologias e epistemologias, reconfigura corpos, mentes e espíritos. Na forma escrita ou na forma oral, ela produz vida, dor e afeto. O que provoca a expressão negro? E o termo comunidade negra? Conclama para a resistência ao esquecimento? Evoca sofrimento e afeição? As respostas a essas questões é o que almejamos encontrar na totalidade de composições desta obra, para a qual dedicamos o presente capítulo, na medida em que inventoriamos histórias negras sobre a UFRGS, marcadas por registros de resistência que se anunciam como projeto diferenciado de educação e de humanidade. Registros que subvertem os esquecimentos, testemunhos guardados por duas pessoas entrevistadas e componentes do Grupo de Estudos Cultura Negra/Faced: um docente branco e uma técnica administrativa negra, ambos com doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu/UFRGS).
Poeticamente, tentamos ver a dor que é puro afeto, invocando primeiramente o termo nossa comunidade negra . Cuti (2010) nos propôs pensar o racismo correlato ao medo do emprego da palavra negro e defendeu a reverberação positivada de tal vocábulo. Para o autor, “[…] se a palavra lembra e faz lembrar questões que a sociedade brasileira precisa superar, então é ela, a palavra ‘negro’, que precisamos empregar” (CUTI, 2010, p. 11).
O termo negro aparece entre aspas num documento do tipo ofício destinado ao professor doutor branco, Balduino Andreola. A expressão nossa comunidade negra se apresenta na escrita autobiográfica de uma professora doutora negra, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2011), primeira coordenadora do Grupo de Estudos Cultura Negra/Faced. Ambos confluem para a observação analítica de como a categoria raça opera nos registros documentais e solicita um olhar diferenciado e atento no processo de pesquisa. Comecemos pela expressão nossa comunidade negra, assim empregada nas memórias de Petronilha B. G. S.:
1 O projeto de pesquisa objetiva investigar os impactos da relação estabelecida entre a Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Movimento Negro (MN) organizado em Porto Alegre, observando rupturas e permanências nas práticas educativas e nos saberes construídos, dentro e fora do espaço institucional da universidade. Sob coordenação de Carla Beatriz Meinerz, intitula-se Faculdade de Educação e Movimento Negro Educador: relações construídas antes e depois do marco legal das ações afirmativas na graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul .
[…] somente quando defendi a tese de Doutorado, compreendi que o êxito de um negro não pertence somente a ele, mas a toda a comunidade. Na ocasião da defesa, um dos porteiros da Faculdade de Educação era um rapaz negro, de idade aproximada da minha, que trabalhava nos serviços gerais da UFRGS desde meus tempos de aluna do Colégio de Aplicação. Sendo velhos conhecidos, nos tratávamos por tu. Na manhã seguinte após a defesa, ao entrar na Faculdade, ouvi alto e bom tom, a saudação de meu velho conhecido: ‘Bom dia, doutora Petronilha!’. Respondi com alegria e me aproximei dele: ‘Por favor, continua me chamando simplesmente pelo nome’. Ele respondeu com um sorriso. Na próxima vez que passei pela portaria da Faculdade, veio a mesma sonora saudação, levando as pessoas que aguardavam o elevador a se virarem para ver quem era a doutora. Então, compreendi que com aquela saudação não era somente eu a valorizada, também ele e toda a nossa negra comunidade. (SILVA, 2011, p. 143, grifos nossos).
Destacamos aqui o aspecto solidário e comunitário das práticas cotidianas experimentadas pelas pessoas negras que ocuparam a Faced. Ele se evidencia nas entrevistas que realizamos. Ressalta-se que optamos por entrevistar pessoas negras que estudaram na Faced e o fizemos numa forma de leitura e de diálogo a partir do texto por elas produzido em seus processos de formação. Uma das entrevistadas, doutora em educação e primeira negra pesquisadora a tratar da exclusão da cultura afro-brasileira dos currículos escolares, em 1987, salientou que seus estudos se vinculam ao que compreendemos como negra comunidade , porque resultam dos modos de pensar dos que vieram antes e se completam nos escritos dos que virão. Vejamos:
[…] Minha tese está incompleta… quem completará são os que virão, jovens negros e negras que vão completá-la. Onde estão esses jovens? Alguns ainda não ingressaram no Ensino Superior, alguns estão cursando o Ensino Médio, outros o Ensino Fundamental, milhares estão sendo gestados […] todas virão e executarão sua parte, vão completar o que está por fazer (Entrevista com Maria Conceição Lopes Fontoura, realizada em 24/06/2021).
Tal ideia de comunidade, capaz de se configurar num tempo inconcluso, já vinha sendo considerada pela historiadora Beatriz Nascimento (2021). Para a pensadora, os grupos negros ou afro-americanos
[…] apoderam-se da cidade, reproduzindo o modo dos antigos quilombolas, tornando-se, como aqueles, visíveis ao regime. Fazendo deste um espaço descontínuo no tempo, em que as ‘frinchas’ provocam linhas de fuga e são elementos de dinamização que geram um meio social específico. (NASCIMENTO, 2021, p. 251).
Nossa investigação considera que as pessoas negras possuem uma forma de se aproximar e de buscar seus pares que é também uma prática pedagógica específica. Consideramos que a estratégia de buscar aproximação àqueles que despertam o sentido de proximidade cria identificações e comunidades (hooks, 2017). Tais comunidades geram o que compreendemos como meio social específico, capaz de impactar e provocar mudanças nas relações raciais e sociais em que se desenvolvem. No caso do Grupo de Estudos Cultura Negra/ Faced, observamos os impactos dessa comunidade negra para o então diretor da Instituição, fazendo com que ele guardasse e doasse a documentação relativa ao grupo. Tal efeito é o que abordaremos como projeto educativo emancipatório do Movimento Negro (GOMES, 2017).
O projeto educativo do Movimento Negro na Faced/UFRGS em documentos entrelaçados
O que compreendemos por Movimento Negro (MN) se ancora na proposição de Nilma Lino Gomes (2017) e agrega tanto os movimentos sociais civilmente organizados quanto as pessoas atuando em espaços de poder, mas conectadas com suas coletividades ou comunidades. Para a autora, o MN apresenta as mais diversas formas de organização e articulação de sujeitos negros “[…] politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam a superação desse perverso fenômeno na sociedade” (GOMES, 2017, p. 23).
A definição associa coletivo grupal e militante individual, conforme Jorge Manoel Adão (2002, p. 13):
Os militantes ganham existência e tornam-se sujeitos, na medida em que são partícipes de uma entidade ou grupo, ao mesmo tempo que as entidades e grupos são e estarão sendo constituídos como sujeitos coletivos, na medida em que dinamizados e processados pelos militantes. Faço um exercício de análise indo dos militantes para as entidades e grupos, e vice-versa, tendo presente que um não se esgota no outro, mas, ao contrário, a ação individual e o processo de ação coletiva se dão pela imbricação, interação, movimentos de ambos, onde os militantes constituem-se, adquirem identidade nas entidades e grupos.
Atentamos para as ressonâncias do projeto educativo configurado nas ações do MN, enfatizando a capacidade de criar comunidades e observando o fato de que os mesmos documentos encontrados no Arquivo da Faculdade de Educação estão registrados na tese de Maria Conceição Lopes Fontoura (2017), da qual tomamos emprestado o termo ocupação para tratar da presença negra na
Faced e na UFRGS. Destacamos que, em entrevista com o professor Balduino, ele reiterou citações da tese de Fontoura (2017) como registro valioso do Grupo de Estudos Cultura Negra. A autora afirma que “[…] a UFRGS há tempos é invadida/ocupada pelo movimento social negro e pelo movimento social de mulheres negras” (FONTOURA, 2017, p. 77). Ressaltamos a narrativa acerca da ocupação na Faced:
Um dos passos importantes da invasão/ocupação da UFRGS por pessoas negras acontece na Faced. A Faculdade de Educação da UFRGS durante a gestão do professor Balduino Antonio Andreola, período de 1988 a 1992, presenciou a invasão/a ocupação do movimento social negro e do movimento social de mulheres negras. Registre-se o surgimento do Grupo de Estudos Sobre Cultura Negra criado na Faculdade, durante a sua gestão como diretor. Ressalte-se que a inspiradora foi a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, primeira coordenadora do grupo. Com sua ida para exercer o magistério na Universidade de São Carlos, em São Paulo, passei a ocupar a função. (FONTOURA, 2017, p. 78).
O entrelaçamento dos documentos e das memórias evocadas por eles, no que tange ao protagonismo negro nas ações educativas da Faced, move nossa escrita. Observamos que os cruzamentos praticados nas vidas pessoais e institucionais se fazem em trajetórias tanto no passado quanto no presente. Esse cruzo que permanece faz-nos pensar que a história não é feita de indivíduos isoladamente, mas de pessoas em interação. Nesse sentido, defenderemos que, no projeto educativo das pessoas negras em movimento na Faced/UFRGS, destaca-se o aspecto solidário e não o vulto solitário. Roberto dos Santos (2007) cunhou o termo pedagogias da negritude para explicitar algumas estratégias formativas que contribuíram na constituição das subjetividades e dos modos de ser das pessoas negras em Porto Alegre, por meio do estudo da imprensa negra organizada nos anos 70 e 80 do século XX.
A seguir, apresentaremos a presença negra conservada no Arquivo da Faculdade de Educação, destacando o achado da expressão negro num documento específico.
Negra/Faced no arquivo pessoal de Balduino Antonio Andreola
A documentação encontrada no acervo pessoal do professor Balduino Antonio Andreola, diretor da Faced entre 1988 e 1992, localizado no Arquivo da Faced/UFRGS, resulta de uma doação em vida. Dóris Bittencourt Almeida (2021)
escreveu sobre esse arquivo como uma “produção de si” e “[…] reconhecendo, em seus gestos de guardar e de doar, indícios sensíveis de um intelectual, movido pelo desejo de manter vivas lembranças de suas ações na UFRGS” (ALMEIDA, 2021, p. 111). Entre os documentos doados, estão bilhetes, correspondências, ofícios, reportagens e panfletos. Para a historiadora, é possível que o professor “tenha feito escolhas entre os papéis antes de cedê-los” (ALMEIDA, 2021, p. 111) e destacadamente ele optou por oferecer os registros do Grupo de Estudos Cultura Negra/Faced. Esses materiais estão juntos de outros papéis relativos à educação e relações étnico-raciais.
Um dos documentos, doados pelo professor Balduino Andreola ao Arquivo da Faced, despertou-nos uma série de reflexões. Trata-se de um ofício com data de 18/11/1993, no qual, no canto inferior direito, foram anotadas, com uma caneta esferográfica de tinta azul, as seguintes palavras “Ao professor Balduino Andreola, que tem se constituído como solitário batalhador na questão do ‘negro’ […]”. Trata-se de um ofício do então Ministério da Educação e do Desporto emitido pelo diretor do Departamento de Políticas Pedagógicas para o presidente do Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB), encaminhando cópia da “Ajuda Memória da Reunião Técnica: ‘O Resgate e a Preservação da Cultura Negra na Educação Brasileira’ […] na qual vossa senhoria participou”. O registro nos faz inferir que o professor participou de tal reunião técnica, mas não sabemos exatamente por que e por quem foi encaminhado a ele. Não sabemos quem escreveu o manuscrito que o cita como solitário batalhador na questão do “negro”. Refletimos, então, a partir dos vestígios que temos e da entrevista com o professor Andreola.
Cremos que a autoria da anotação provavelmente representava a visão hegemônica e própria da branquitude (CARDOSO, 2014), presente na instituição, a respeito das ações que estavam sendo protagonizadas naquele momento pelo movimento negro educador (GOMES, 2017) dentro da Faced: a visão de que o mérito deveria ser tributado a uma pessoa que batalhava de forma solitária. Ao confrontar esse testemunho com a entrevista do professor Balduino, obtivemos uma resposta que caminhava no sentido contrário, pois ele afirmou que o Grupo de Estudos era uma inciativa de pessoas negras que estavam na Faced e que ele apoiara e incentivara por meio da função na direção que ocupava. Destacamos que o próprio sujeito se compreende na relação de solidariedade com os movimentos sociais e não em condições de protagonismo solitário ou isolado, em autonarrativa que questiona a própria definição dele no registro arquivado. Vejamos suas palavras:
Se não fosse com Petronilha, eu sozinho não teria criado o Grupo de Estudos […] E depois a coordenação ficou com Conceição. Daí surgiu o Seminário com estudantes africanos, não foi documentado. Pena que a gente não se articulou, estávamos tateando em fazer […] não gravamos, não registramos (Entrevista com Balduino Antonio Andreola, realizada em 17/02/2021).
Observamos que a anotação está impregnada de uma narrativa própria ao discurso da branquitude (CARDOSO, 2014) e da colonialidade do ser e do saber (QUIJANO, 2005). Por exemplo, os adjetivos que caracterizam o professor Balduino como solitário e batalhador induzem a uma compreensão de que ele foi o único responsável pelas articulações da questão do negro na Faculdade de Educação. Reafirmamos que a ideia de uma luta solitária não dialoga com os valores civilizatórios de matriz africana (TRINDADE, 2010), na medida em que o histórico das lutas negras na diáspora africana (MACEDO, 2016) demonstra o quanto são processos atravessados pelas dinâmicas da coletividade.
Nesse sentido, essa anotação também nos trouxe a possibilidade de refletir sobre outro aspecto importante, a saber, as dinâmicas coloniais muitas vezes presentes na produção de um documento. Existe nessa anotação uma carga de negacionismo que atua por meio de um apagamento sutil, que, de certo modo, pode passar despercebido aos olhos de alguns pesquisadores. Contudo, ocorre uma mudança da chave de leitura desse documento quando é lido sob o olhar e a perspectiva de jovens pesquisadores negros, uma vez que a reflexão surgiu da observação de um estudante e bolsista de Iniciação Científica, Duan Kissonde, no contato com a documentação.
Consideramos que a relação entre os aspectos da colonialidade e da branquitude são fundamentais para compreender as distintas miradas de pessoas brancas e negras sobre a vida contida na documentação e nos fenômenos históricos em geral. O principal vínculo observado nessa relação é o fato de que a permanência da colonialidade faz com que o poder do branco e de suas formas de ser permaneçam em destaque de superioridade, quase naturalizadas, reforçando imagens sobre negritude e branquitude como padrões singulares.
Lourenço Cardoso observa tal vínculo da seguinte forma:
[…] a imagem do branco resultado do colonialismo é de ‘senhor’, leia-se de empresário e de trabalhador […] Diferente do branco senhor do período colonial, sua imagem persistirá como senhor do período capitalista, na condição de empresário. A concepção gloriosa de branco é recolocada, reforçada quotidianamente pela comunicação social que a supervisibiliza, apresentando-a como padrão estético desejado preferido de ‘brasileiro’. (CARDOSO, 2014, p. 83)
que o
com
do professor Balduino, influenciado pela observação apenas documental e por leituras prévias, fez com que os bolsistas imaginassem que se tratava de um professor negro. Essa inferência foi explicada pelas experiências dos jovens negros, que, em geral, observam que pessoas engajadas na luta antirracista não são brancas. A imagem do branco está pouco associada à luta coletiva das pessoas negras, ao mesmo tempo em que está muito vinculada ao padrão universal da docência universitária. Foi no momento de preparação da entrevista que houve a descoberta da cor da pele do professor Balduino, o que gerou outras análises, inclusive comparativas. De fato, os demais entrevistados(as) foram todos pessoas negras. Uma importante observação de cotejamento foi acerca da rápida trajetória de ascensão acadêmica do professor branco em comparação com a de outras mulheres intelectuais negras contemporâneas na Faced. A reflexão foi aprofundada a partir da categoria racismo estrutural , popularizada no Brasil especialmente por meio de Silvio Luiz de Almeida (2018).
Destacamos nossa compreensão de racismo:
[…] como prática social que resulta de processos históricos relacionados com a colonização, a supremacia branca e a escravização, opera em diferentes estruturas e sistemas, o que faz com que se mantenha com o apoio de engrenagens que se renovam no presente. Essas engrenagens se articulam por diferentes aspectos sociais de nossas vidas, fazendo com que a raça se torne uma construção objetiva e determinante para o estabelecimento e manutenção das estruturas individuais e sociais desiguais que se intersecionam com classe e gênero. (MEINERZ; SANTOS; PEREIRA, 2021, p. 117).
Reiteramos que dificilmente uma luta é solitária, ao menos na perspectiva que aqui destacamos, como própria da maneira de interagir dos povos da diáspora africana no Brasil. O cruzamento das trajetórias das pessoas cria a dinamicidade dos processos históricos e impacta institucionalidades e subjetividades. O cruzamento de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Maria
Conceição Lopes Fontoura e Balduino Antonio Andreola, entre outros, efetiva avanços significativos e transformações nas relações da Faced com os movimentos sociais. Essa rede é também uma constelação de afetos. Na análise de Dóris Almeida (2021), há um destaque para esse aspecto da subjetividade do doador do arquivo em questão, pois
[…] praticamente todo o conjunto documental evidencia a presença de uma rede de afetos, como uma dimensão distintiva da identidade de Balduino, que reverbera no presente, ou seja, o arquivo é constituído por fragmentos de presença de um tempo que se foi e que ficaram esses signos sensíveis. (ALMEIDA, 2021, p. 152).
É importante atentar ao fato de
primeiro contato
o nome
Enfatizamos que as ressonâncias das relações estabelecidas em tempos passados permanecem reverberando nas memórias, nos registros e nas ações do presente. Na continuidade, destacaremos o projeto educativo do movimento social negro nomeado no termo nossa comunidade negra, enfocando, também, a própria configuração da Faculdade de Educação como uma comunidade.
Considerações sobre a comunidade Faced e a comunidade negra
Deve-se considerar, ademais, a comunidade Faced dentro da UFRGS no período em perspectiva. Tratava-se de uma comunidade de pesquisadores que pode ser nomeada como sendo de maioria branca, assim como ainda é o conjunto da Universidade. Tal observação foi destacada num registro informado e repassado a nós pelo professor Balduino: o texto escrito por ele, em 1990, na seção Minorias , do Boletim ADverso/30 da Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ADUFRGS), intitulado O negro na UFRGS (o apartheid é – também – aqui). Dessa escrita, destacamos dois aspectos, o primeiro é concernente ao fato de que o professor, após relatar uma experiência de escuta acerca do racismo operando na vida de jovens estudantes africanos, registra “Confesso que meu sentimento foi de vergonha de ser branco”. O segundo enfoque é relativo à denúncia do racismo presente na instituição, por meio das seguintes palavras:
A exclusão quase total do negro no acesso à Universidade e a sua discriminação no interior da mesma, são partes dos aspectos do problema racial. […] Quando haverá espaço para o problema da negritude nas nossas discussões? Ou o clamor desse povo não chegou ainda às altitudes de nossos monólogos acadêmicos?
(ANDREOLA, 1990).
O texto acima é repleto de citações de pessoas negras que estavam na ou em relação com a UFRGS naquele momento, tais como Vera Triumpho, Marilene Paré, Maria Conceição Lopes Fontoura, Roseli da Rosa Pereira, Márcia Amaro Santos, Carlos A. Menezes Soares.
Reconhecendo a Faced como uma comunidade de maioria branca, podemos questionar os impactos desse fenômeno no que tange ao tratamento dos conhecimentos e dos corpos negros que se colocam na Universidade. Conseguimos superar as relações que ainda ressoam entre nós e são fundadas no colonialismo, no racismo e na crença da superioridade branca e europeia?
Miremos brevemente o histórico da Faced, expresso em sítio na internet:
A Faculdade de Educação/FACED foi instituída em 1970 como uma nova Unidade de Ensino da UFRGS. Desde 1936, entretanto, a então Universidade de Porto Alegre já atuava na formação de professores. Primeiro, através da Faculdade de Educação, Ciências e Letras e, depois, em 1942, por meio da Faculdade de Filosofia. Em 1972 iniciou-se o curso de mestrado em Educação, sendo este credenciado em 1974, quando também foi criada a Biblioteca Setorial da FACED. A expansão da Pós-Graduação em Educação ocorreu em 1975, com a apresentação do projeto do curso de doutorado. O PPGEDU – Programa de Pós-Graduação em Educação – foi credenciado em 1982 pelo CFE – Conselho Federal de Educação (Faced, 2020).
Atualmente, a Faculdade reconhece que seu princípio é “[…] construir conhecimentos a partir da articulação do ensino, da pesquisa e da extensão, levando em consideração as demandas sociais” (Faced, 2020), o que pressupõe uma relação com os movimentos sociais organizados da sociedade civil e da própria instituição universitária.
Os princípios da Faced, porém, são motivo de debates no interior de sua comunidade desde sua fundação, segundo Merion Campos Bordas e Balduino Antonio Andreola (2010). Observa-se, em texto redigido por ambos, em 2010, que o professor Balduino expressa um lamento sobre o fato de que ninguém estaria trabalhando com a temática afro-brasileira na Faced, no final da primeira década do século XX. Nesse mesmo texto, o autor cita a relação com o MN e a criação do Grupo de Estudos Cultura Negra na Faced, nos anos 1990.
Como os documentos do arquivo pessoal de Balduino Antonio Andreola são centrais no ensaio aqui apresentado, urge destacar sua inserção na Faced. Em 1975, Andreola fez mestrado em educação no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu)/UFRGS; em 1978, ingressou como professor assistente de Filosofia da Educação, sendo diretor da unidade entre 1988 e 1992, período de realização do Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) na UFRGS, destacadamente período inicial das atividades o Grupo de Estudos Cultura Negra/Faced.
O período que marca temporalmente nossa análise relaciona-se com a gestão do professor Andreola, condicionada pela relação da Faced com movimentos sociais organizados do período pós Ditadura Civil-Militar, como o Movimento Negro e o Movimento Sem-Terra. Essa assertiva se faz pela análise exploratória realizada no arquivo pessoal do professor Balduino Antonio Andreola. Do
contexto da Universidade denominado como tempos difíceis, de luta por eleições diretas e paritárias para a Reitoria, o professor Andreola afirma que:
O compromisso com os movimentos populares e com os setores mais excluídos da sociedade foi sempre um ponto alto na Faculdade de Educação. Além dos projetos de alfabetização de adultos e de assessoria aos sem-terra, cabe lembrar atividades e projetos que se ocuparam ou se ocupam até hoje de educação indígena, de meninos e meninas de rua, e os movimentos negros, tendo existido, durante vários anos, na FACED, o Grupo de Estudos Cultura Negra, que promoveu, na Reitoria, um seminário de uma semana com estudantes africanos que realizavam diferentes cursos na UFRGS (BORDAS; ANDREOLA, 2010, p. 309-310).
Na sequência da rememoração, o professor lembra que sugeriu ao Reitor que retirasse a polícia e os inquéritos policiais correlatos ao período da ditadura de dentro da vida cotidiana da Universidade, explicitando seu posicionamento político e sua relação com os movimentos sociais desse momento.
Sobre as origens do Arquivo da Faced, espaço de guarda dos documentos pessoais analisados, resumidamente ressaltamos sua origem:
Em 2010, ao vasculhar uma pequena sala no sexto andar do prédio, encontraramse muitas caixas com inúmeros papéis, dispostas em estantes coladas umas nas outras, sem possibilidade de deslocamento. Percebeu-se a urgência de uma ação que preservasse o quase esquecido arquivo documental, que se constitui em um testemunho da instituição. Na continuidade da ordenação do Arquivo, iniciou-se a produção de um acervo de memória oral, tendo como narradores professores de longa data da Faculdade. Assim, produziram-se dezessete entrevistas e uma Roda de Memórias (ALMEIDA; LIMA, 2016, p. 1349).
O corpus documental guardado nesse espaço arquivístico é fundamental para uma pesquisa acadêmica no campo da educação que busque introspecções e autorreflexões, pois possibilita pensar os movimentos internos da instituição que habitamos. Pensemos no projeto educativo do MN e sua relação com a Universidade, a partir de Gomes (2017):
O projeto educativo emancipatório do Movimento Negro, do ponto de vista institucional, tem como foco a educação básica e o Ensino Superior. Porém, ele não se reduz à educação formal. Ele visa a educação como processo de formação humana, vivido por todos nós. Visa, ainda, promover um processo social, cultural, pedagógico e político de reeducação do negro e da negra sobre si mesmos e sobre seu lugar de direito na sociedade brasileira. E reeduca os outros segmentos étnico-raciais e sociais na sua relação com o segmento negro da população, suas lutas por direitos e suas conquistas (p. 130).
As lutas dos movimentos sociais ensinam que a dimensão política e a dimensão educativa não se separam em termos de pressupostos, pois o MN reeduca a si mesmo, ao Estado, à sociedade e às instituições. No caso da documentação em análise, evidencia-se que o MN reeduca a Universidade, na relação com a Faculdade de Educação/UFRGS. Um dos aspectos desse projeto educativo é a coletividade ou o comunitarismo, aqui observados no estudo da expressão nossa comunidade negra, nomeada como solidária, em certa oposição à ideia de luta solitária, referenciada e examinada em registro documental ao longo do ensaio.
A emancipação exige afetividade, efetividade, ação reparadora e transformadora das instituições e das pessoas, no caso específico do debate das relações étnico-raciais. Lembremos que o professor Balduino destacou suas aprendizagens impactadas pelas presenças de pessoas negras em sua vida e na Faced.
Recordemos igualmente que as lutas do Movimento Negro no Brasil proporcionaram um projeto educativo inédito nomeado como Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER), inaugurando o contexto das ações afirmativas no campo dos currículos da Educação Básica e Superior. Tal contexto principiou com a promulgação da Lei nº 10.639, em janeiro de 2003, e da Lei nº 11.645, em 2008, inseridas no conjunto das políticas afirmativas de promoção da igualdade racial. É historicamente inovador, pois traz ao embate público, na forma do debate político e da regulação jurídica, as práticas do racismo, do preconceito e da discriminação, tradicionalmente mantidos no plano privado em nosso país. Os estudos de Kabengele Munanga (1999) e de Beatriz Nascimento (2021) observam as singularidades com que opera o racismo no Brasil, estruturandose num tempo que exige criatividade nas lutas pelo seu combate. Reside aí parte dos paradoxos trilhados na aplicação e recepção das leis e políticas que tensionam tais mentalidades e práticas culturais nos espaços acadêmicos: o fato de que publicamente, em geral, não reconhecemos a existência da desigualdade racial (MEINERZ, 2017).
A universidade, como espaço público, vive os dilemas da consolidação desse difícil enfrentamento das práticas racistas, discriminatórias e preconceituosas, uma vez que, como espaço institucional, tende a reconstruir a informalidade pautada no racismo. A nova pauta pública que queremos viver é justamente a construção da universidade como espaço para experimentações no que diz respeito à convivência plural e às práticas de diálogos equitativos e interculturais, capazes de fazer sua comunidade refletir sobre seus próprios modos de agir, sentir
e pensar, sobretudo reconhecendo indígenas e negros como pares necessários e interlocutores legítimos indispensáveis (MEINERZ, 2017).
Reiteramos o que Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, redatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER) e docente universitária indicada pelo Movimento Negro ao Conselho Nacional de Educação, repete incansavelmente:
Por vezes, a universidade mantém uma mentalidade de apadrinhamento, própria do século XVI, quando o sistema mundo era fundado no colonialismo, no racismo e na crença na superioridade branca e europeia. Isso significa pensar que o negro só vai ter oportunidade de escola e trabalho quando um padrinho lhe abrir as portas. Nessa mentalidade, as Ações Afirmativas são concessões. Mas não é a universidade que abre as portas, são as pessoas negras, em seus múltiplos agenciamentos que forjam sua entrada, galgam seus espaços de poder (SILVA, 2017, relato oral).
O projeto pedagógico freireano da educação libertadora e as políticas de Ações Afirmativas, que caminham no sentido de desmantelar esse sistemamundo do século XVI, citado por Petronilha B. G. S., inspirou-nos na análise dos documentos pessoais de Balduino Antonio Andreola, quando na direção da Faced, uma vez que tal intelectual é uma referência nos estudos de Paulo Freire.
O presente ensaio resulta também de uma continuidade da pesquisa realizada entre 2014 e 2020, aprovada na Comissão de Pesquisa da Faced (COMPESQ/Edu) e na Plataforma Brasil, intitulada Trajetórias da educação das relações étnico-raciais no Rio Grande do Sul, com ênfase no ensino de história e na recepção das leis 10.639/03 e11.645/08. Tal investigação considerou a contribuição das práticas pedagógicas do ensino de história no combate ao racismo. No processo de longa duração da pesquisa, os resultados parciais relacionaram o que acontece no Rio Grande do Sul com estudos realizados em outros locais e que não determinaram grandes diferenciações. Observou-se as responsabilidades sociais dos professores de história diante da recepção do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que seriam: estudar, fundamentar e ensinar as raízes filosóficas e as visões de mundo, originariamente indígenas e africanas, hoje expressas como heranças das ancestralidades daqueles que, nesse território, reconstruíram seus pertencimentos étnico-raciais. Tais narrativas não privilegiam uma única maneira de ser e de estar no mundo, como
referência e padrão, mas exploram as diferenças na perspectiva do diálogo e da pluralidade. O professor de história pode contribuir com o processo atual de reparação histórica, criando visibilidade e positividade para as histórias e culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras. Como são temas marcados por tempos de silenciamento e dor, é possível compreender que são atravessados também pela presença de ressentimentos. Há uma discussão em andamento sobre a nomeada História Pública: a história partilhada por outros difusores que não a comunidade de historiadores. Difusores relacionados às mídias sociais e aos movimentos organizados.
Cabe lembrar que, no caso específico da Lei nº 10.639/03, o texto das DCNERER e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana representa um exemplo nessa perspectiva. Pergunta-se: como preservar patamares de qualidade sem criar relações de preconceito? Como dialogar? De que forma esse tema aparece no ensino de história? As representações do conhecimento histórico a ser ensinado não dependem somente da produção historiográfica, mas igualmente se relacionam com as representações sociais construídas no imaginário popular, a partir de diversificadas fontes de informação, como grupos sociais, familiares, mídias, movimentos organizados, entre outros. Destaca-se o valor das narrativas orais acerca de fatos narrados ou não pela historiografia, construídas por sujeitos sociais considerados guardiões vivos de memórias: griôs, anciãos, mestres, lideranças negras e indígenas. Nesse sentido, as narrativas orais e todo o universo material das culturas indígenas e negras podem ser considerados para a aprendizagem histórica, uma vez que a história oficial pouco tem a oferecer sobre esses povos. AERER exige uma interação com temas socialmente vivos e estruturantes das relações sociais, com eventos traumáticos como a escravização, o genocídio dos povos originários, a desigualdade pautada nas relações étnico-raciais, as lutas contemporâneas e as ações afirmativas inscritas na agenda pública das políticas da diferença. A abordagem desses temas controversos necessita de docentes que atuem de maneira compartilhada, dividindo preocupações, dúvidas e descobertas com seus pares. O isolamento não combina com essa revolução curricular e pedagógica. Por isso, a pesquisa conclui-se na relação de encontro com os saberes das pessoas negras da Associação Comunitária Amigos e Moradores do Bairro Cidade Baixa e Arredores, a Mocambo, por meio de atividades de ensino – disciplina Encontro de Saberes – e de extensão – curso de formação Territórios Negros: patrimônios afro-brasileiros em Porto Alegre 2 .
2 Curso desenvolvido no Laboratório de Ensino de História e Educação (LHISTE) da UFRGS, institucionalizado como programa de extensão, originando-se de uma demanda trazida de fora da universidade pelos sujeitos e grupos
A presente proposição analítica deu seguimento às investigações anteriores, na medida em que objetivou registrar a relação da Faced com os movimentos sociais, especificamente aqueles agregados no que se concebe como MN. Tratase de avançar para um olhar que mescla o que é endógeno e o que exógeno, buscando “[…] reconhecer e tornar credíveis os saberes produzidos articulados e sistematizados pelo MN para a prática e para o pensamento educacional” (GOMES, 2017, p. 137-138).
Ressaltamos o valor epistemológico intrínseco relativo aos movimentos sociais, em geral, e ao MN em específico, um tipo próprio e singular de conhecimento, nem sempre com pretensão de validade universal. Pontuamos que não realizamos uma anuência direta com uma única entidade representativa do Movimento Negro, uma vez que este é múltiplo e plural, e o pressuposto teórico-metodológico da pesquisa é a categoria “pessoas negras em movimento” (GOMES, 2017).
Entre os anos 1980 e 1990, período de nossa análise, o Rio Grande do Sul apresentava uma efervescência no que concerne ao pensar negro sobre a educação. Agentes da Pastoral do Negro, vinculada à perspectiva da Teologia da Libertação, associados às agremiações negras, como a Associação Floresta Aurora, foram os primeiros a tratar da ideia que hoje se consolidou como Educação das Relações Étnico-Raciais. Entre os anos de 1984 e 1985, realizouse um encontro nacional de educação dos negros, coordenado por Vera Regina Santos Triumpho. Tal encontro não teve caráter apenas acadêmico, mas, por meio dele, muitas pessoas negras de todo o país se conheceram e puderam construir pautas conjuntas. Intelectuais e personalidades de extrema relevância social que acabaram indicadas pelo MN para a redação das DCNERER, em 2004. A história desses encontros pode ser acessada no estudo de Jorge Manoel Adão (2002).
Nesses últimos anos, externamente, a Universidade está sob suspeição, pois vivemos tempos de questionamento da ciência e das políticas de equidade social e racial, igualmente nomeado de difíceis por alguns pensadores. As Ações Afirmativas sofrem questionamentos internos e externos, pois demonstram a responsabilidade política, social e acadêmica da Universidade, no sentido da transformação social, projeto que coincide com ações do MN.
envolvidos com o projeto da Prefeitura Municipal de Porto Alegre intitulado Territórios Negros, um percurso de ônibus que atravessava pontos específicos da cidade, passando por regiões historicamente reconhecidas como territórios de moradias, trabalhos, lutas, sociabilidades e religiosidades vinculadas à negritude. Disponível em: https://www.ufrgs.br/lhiste/extensao/territorios-negros/. Acessado em: 20 mar. 2022.
Pressupõe-se que a interação com o MN gera impactos na Universidade, notadamente relativos ao que se concebe como excelência acadêmica, na qualidade de competência para lidar com a pluralidade de maneiras de pensar, viver, escrever e narrar os fenômenos da educação como prática cultural. Segundo Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2017), significa o “esforço de aprender com o outro”. Para a pensadora,
[…] O esforço é de incluir estudantes e pesquisadores, sem afastá-los de seus grupos comunitários, suas ancestralidades africanas, que aportam a ideia de aprender para levar para a comunidade e não de aprender para levar para si mesmo, para uma trajetória carreirista ou individualista. Para pensar Ações Afirmativas precisamos pensar que mundo e que universidade queremos. (SILVA, 2017, relato oral).
A escrita dos negros e indígenas se faz a partir do genocídio, no passado e no presente. Experimenta séculos de epistemicídio (CARNEIRO, 2011) e racismo, operando, inclusive, nos testemunhos documentais, como intentamos refletir aqui. É uma escrita diferenciada, por vezes emergencial, de urgências, na margem de uma situação concreta de vida no abismo. Para autores como Frantz Fanon (1978), o cotidiano é impossível de ser escrito. Por isso, a análise da presença e da escrita desses negros e negras na Faced/UFRGS é fundamental, na medida em que apontam as aprendizagens que herdamos da relação com elas. Foram processos e projetos pedagógicos desenvolvidos pela resistência e pela persistência, começando por poucos corpos individuais, que hoje transbordam em comunidades em emancipação e crescimento.
Concluímos, reiterando que o Grupo de Estudos Cultura Negra/Faced gerou aprendizagens dentro da Faced, na relação conduzida coletivamente pela comunidade negra que nela adentrava, destacadamente no período em que a direção da faculdade esteve alinhada com uma abertura para os movimentos sociais. O fato de o diretor da Instituição ter guardado e doado a documentação relativa ao grupo é aspecto de distinção. Os efeitos da relação da Faced com o MN é o que abordamos como projeto educativo emancipatório do Movimento Negro (GOMES, 2017), capazes de impactar e provocar mudanças nas relações raciais e sociais nas quais desabrocham.
Memórias do “negro” e da “nossa comunidade negra” na Faculdade de Educação/UFRGS
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Greice de Quadros Alves
A que lhes fala…
Graduada em pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde ocupei espaços jamais permitidos sonhar durante a minha infância, tracei novos caminhos e, em uma das rotas, me deparei com uma amiga que inconscientemente já me intrigava há anos, a História da Educação. Esse reencontro se deu na disciplina História da Educação na Europa e nas Américas, ministrada pela professora Dóris Bittencourt Almeida de quem, posteriormente, tive a oportunidade de ser bolsista de Iniciação Científica. A Iniciação Científica foi fundamental durante minha trajetória no curso de pedagogia; por meio dessa experiência tive o privilégio de entrar em contato com outras leituras, pessoas e compreendi a importância da pesquisa na graduação.
Aqueles que conhecem a história da luta da população negra brasileira pelo acesso à escolarização diriam que a presença de mulheres negras nas décadas passadas no Ensino Superior em uma Universidade Federal, era, no mínimo, rara. Ao compreender a importância das contranarrativas, com base nas minhas experiências como mulher negra que ousou estudar, enxerguei a potência na produção de histórias que narram a resistência de memórias que parecem estar fadadas ao esquecimento. Por este motivo, escolhi abordar o assunto presente em meu Trabalho de Conclusão de Curso de Pedagogia. Então, para começo de história, preciso contar como tudo começou…
No ano de 2017, iniciei a pesquisa sobre as antigas estudantes negras da Faculdade de Educação (Faced/UFRGS). No Arquivo Histórico da Faculdade1, há um acervo de memórias orais, no qual se encontram entrevistas com professores, servidores técnicos e estudantes egressos. Meu interesse emergiu justamente ao escutar uma narrativa deste acervo, de uma estudante negra do curso de pedagogia, dos anos de 1990. Na entrevista, ela questionava o currículo eurocêntrico do curso em que não havia espaço para os saberes produzidos pelo povo negro. Enquanto escutava o relato, percebia que, naquele momento, eu estava entrando em contato com autores de pensamento decolonial, como Frantz Fanon, Lélia Gonzalez, Aníbal Quijano, Djamila Ribeiro, entre outros, que mobilizaram meus pensamentos e me fortaleceram.
Aquela estudante de outro tempo parecia conversar comigo e eu compactuava com muitas de suas falas. Assim, desenvolvi a pesquisa com muito afeto, pois ela trata de mulheres negras que são antecedentes à minha entrada no ensino superior. O cenário no qual eu ingressei na Universidade é bastante distinto ao delas, embora alguns aspectos não tenham se modificado como deveriam. No ano de 2016, graças à política de Ações Afirmativas2 , consegui ingressar na UFRGS, assim como alguns amigos meus. Apesar das inúmeras dificuldades, fui a primeira da família a entrar no Ensino Superior. O sentimento era de vitória, eu nunca havia experimentado tamanha emoção, pois, finalmente, havia atestado para as pessoas, e especialmente para mim, que era inteligente . Isso era importante provar. Pensava desta forma, pois na
1 Para maiores informações sobre o Arquivo Histórico da Faculdade de Educação/UFRGS, ver Almeida (2021).
2 Em 2005, houve uma forte mobilização para implantação de cotas raciais na UFRGS. Diversos debates foram realizados promovidos por estudantes, técnicos e professores, juntamente com os movimentos sociais e principalmente com os movimentos negros e indígenas. O ano de 2007 foi um marco na luta contra a histórica exclusão de estudantes negros, indígenas e oriundos de escolas públicas: a proposta do ingresso por reserva de vagas foi aprovada pelo Conselho Universitário com vigor a partir do processo seletivo de 2008/1.
sociedade a qual estamos inseridos, somente enxerga inteligibilidade no sujeito negro e suburbano mediante a constantes provas, com a intenção de validar a nossa intelectualidade.
Portanto, desenvolver uma pesquisa com narrativas de mulheres negras que, assim como eu, estudaram na UFRGS, especificamente na Faculdade de Educação, teve/tem um sentido importante para mim. Para melhor aclarar minha relação com o estudo desenvolvido, uso das palavras de Elisa Lucinda, uma poetisa que concedeu entrevista a um projeto chamado de “Diálogos ausentes” (2017)3 , no qual ela diz a seguinte frase, “Eu sou recorrente em alguns temas porque a vida também é recorrente comigo em alguns temas. Eu sou mulher, eu sou negra e sou brasileira. O impacto dessa realidade escorre na minha literatura”. Assim como Elisa Lucinda, posso dizer que alguns assuntos também me são recorrentes.
Há temas que simplesmente transbordam da nossa subjetividade. Nossas experiências individuais são marcadas, do mesmo modo, por vivências coletivas. Posso dizer que as falas dessas mulheres na investigação que será aqui apresentada, não dizem respeito somente a elas, mas sim, de diferentes modos, têm relação com um grupo social que historicamente foi marginalizado e invisibilizado, não somente na historiografia.
Como dito anteriormente, a realização da pesquisa teve seu início a partir de uma entrevista localizada no acervo de documentos orais do Arquivo da Faced/ UFRGS. O registro da fala de Patrícia foi o ponto de partida da investigação, consequentemente era importante buscar outras mulheres negras que pudessem me contar suas memórias das experiências vividas na Faculdade.
Imediatamente, começaram os desafios. Deparei-me com a pergunta “como vou saber se a estudante é negra?”. Nas listas de matrícula encontradas no Arquivo Histórico, não havia informações que levassem ao conhecimento sobre o pertencimento étnico-racial das estudantes. Então, comecei a investigação perguntando a antigos servidores se lembravam de outras mulheres negras na Faculdade. A grande maioria relatou que não recordava, e os poucos que lembravam da presença dessas estudantes não sabiam nenhuma informação sobre elas.
3 Exposição “Diálogos Ausentes” promovida pelo Itaú Cultural, que reuniu trabalhos realizados por artistas negros ligados aos campos das artes visuais, do teatro e do cinema brasileiros.
Essas questões, se por um lado dificultaram, por outro me mobilizaram, apontando para tamanha importância dessa investigação. Onde estariam as estudantes negras nas décadas de 1970, 1980, 1990? Por onde andavam? E como encontrá-las? Como teria sido o cotidiano delas na Universidade?… Era preciso continuar a busca. Finalmente, encontro na própria Faculdade, especificamente na secretaria da Pós-graduação em Educação (PPGEDU) a primeira mulher que poderia ser entrevistada. Assim, conversei com Roseli Pereira4 , técnica administrativa da Faculdade de Educação, atualmente doutoranda do PGEDU/ UFRGS. Roseli, na sequência, indicou a sua cunhada, Rosangela Souza, que, assim como ela, cursou pedagogia nos anos de 1980. Desse modo, foi possível localizar outras mulheres, por meio da indicação das primeiras entrevistadas.
Em seguida, conversei com Leni Dornelles5 , que foi minha professora na disciplina de Infâncias de 0 a 10 anos, no primeiro semestre da graduação. Lembrava dela comentando, em uma das aulas, que havia sido aluna do PPGEDU. Pensei que seria interessante entrevistá-la, almejando uma perspectiva sobre as estudantes negras na pós-graduação. Além disso, Leni já tinha sido vice-diretora na Faculdade de Educação. A última entrevistada, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, não é licenciada em pedagogia, mas sim em letras. Porém, assim como Leni, foi estudante do PPGEdu, embora nos anos 1970. Assim, produzi cinco narrativas de memórias de estudantes negras, três delas da graduação e duas da pós-graduação, constituindo o corpus empírico da pesquisa.
A pesquisa ancorou-se na história oral, uma metodologia de pesquisa de caráter interdisciplinar, em que são produzidos documentos orais, por meio de entrevistas. O uso dessa metodologia reconhece a singularidade de cada narrativa, embora contemple uma dimensão da memória coletiva (HALBWACHS, 2004). Desta maneira, apoio-me nos estudos de Portelli (1997), Alberti (2008), Amado (1995), Almeida (2009) e Errante (2000). Na sequência, apresento aos leitores e leitoras, um panorama de como esta metodologia conquistou seu espaço na historiografia.
No momento atual, sabe-se que fontes escritas e orais não são mutuamente excludentes (PORTELLI, 1997), cada uma tem as suas características. Mas, nem
4 Entrevista realizada em 22 de março, 2018.
5 Entrevista realizada em 09 de maio, 2018.
sempre foi assim. Até meados do século XX, os documentos escritos, sobretudo os de caráter oficial, eram privilegiados no campo historiográfico para afirmar a história como ciência. Opondo-se à história positivista produzida no século XIX, a história oral emerge na esteira dessas transformações, passando por um processo de legitimação para, por fim, se afirmar enquanto metodologia de pesquisa nas ciências humanas.
Durante este percurso, foi forte a impressão que a história oral poderia favorecer uma espécie de história vista pelos de baixo, que, se não houver cuidado, pode reproduzir preconceitos sociais, por se acreditar na ideia de dar a voz a pessoas que, durante muito tempo, estiveram excluídas da cena historiográfica ou eram representadas em suas estereotipias. Outro risco é confundir a memória que é narrada na entrevista com a história que, depois, será contada pelo pesquisador. A narrativa que emerge pelo uso da história oral é fonte para o estudo do passado e do presente e não uma revelação do real, como explica Verena Alberti (2008). Contudo, se antes essa metodologia era vista por muitos com olhos desconfiados, a partir de 1970, passou a ganhar credibilidade entre os historiadores e outros cientistas sociais por sua potencialidade em tentar abraçar zonas silenciosas da historiografia. A grosso modo, pode-se dizer que, após essa guinada, que conferiu valor aos documentos orais, a metodologia de pesquisa em questão adquiriu legitimidade acadêmica.
A memória é fundamental para o trabalho com a fonte oral, na verdade, sem memória não haveria história oral. Ao trabalhar com essas narrativas, podese observar que a dimensão do coletivo se faz presente. Algumas memórias se confundem com situações as quais não vivenciamos, porém, as herdamos dos grupos sociais nos quais estamos inseridos. Isto nos leva a outras dimensões temporais.
Diante de tudo que estudei sobre memória e história oral, há muito que poderia ser dito. Entretanto, faço alguns destaques: aprendi que as narrativas de memória representam diferentes identidades dos sujeitos que falam. Em outra perspectiva, Janaina Amado (1995) nos diz que, por meio da história oral, é possível transitar livremente entre os tempos passado, presente e projetar o futuro. Ainda, aprendi que a memória é complexa, possui as dimensões da lembrança e do esquecimento. Segundo Almeida (2009), apoiada nos estudos de Thomson (1996, 2001, 2002), construímos narrativas de memória com as quais possamos conviver, suportar. Muitas vezes, se não podemos esquecer o passado dolorido, o idealizamos para melhor lidar com a dor. Logo, ao trabalhar com memórias orais, o investigador deve estar atento a todas essas questões.
O trabalho com a história oral exige conhecimento e sensibilidade de quem se propõe a fazê-lo (ALMEIDA, 2009).
Há um paradoxo que se faz presente nos trabalhos com história oral: a transcrição das entrevistas. Capturamos, por algum tempo, a voz dos sujeitos e, depois, tentamos transportar suas palavras para a escrita. Pode-se dizer que o trabalho da transcrição torna mais acessível a análise do documento oral. Assim, a escrita da entrevista funciona como um suporte ao trabalho do historiador. Além disso, são muito importantes as anotações que se faz durante a entrevista, pois, desse modo, se consegue perceber outras formas do entrevistado se comunicar, como seus gestos e olhares. A riqueza das narrativas orais, como as entonações, repetições e reações, não podem ser renunciadas.
Mas, e a gravação da entrevista? Sem dúvida, ela é importante, mas é preciso lembrar que nem sempre os entrevistados estão dispostos a aceitar que sua voz seja gravada. O trabalho com memórias orais é complexo e exige preparação do investigador. Em vista disso, há dois movimentos preparatórios antes da entrevista: a elaboração de uma espécie de projeto de pesquisa e, consequentemente, a construção do roteiro de perguntas.
Durante a investigação, optei por um roteiro único, visto que entendi que a pergunta poderia ser igual para todas as entrevistadas, porém as respostas podem divergir ou convergir sobre o mesmo evento, conforme o leitor e a leitora acompanharão mais tarde. Desenvolvi um roteiro semiestruturado, de modo que as perguntas funcionaram como evocadoras do passado, no qual as entrevistadas foram se remetendo a acontecimentos longínquos, como a infância e a juventude. Esse tipo de roteiro não é engessado, como um questionário, muitas vezes as perguntas são respondidas sem fazê-las, visto que a evocação da memória não corresponde a uma linearidade de acontecimentos. A seguir, apresento a sequência de questões utilizadas na pesquisa:
• Relate sua história de vida até chegar à Faced
• Fale sobre a sua formação acadêmica. Quais foram os maiores desafios enfrentados?
• Como era o movimento estudantil na sua época? Participava de algum coletivo?
• Qual o seu vínculo com a Universidade hoje?
• Comente as maiores dificuldades enfrentadas pela Faced ao longo dos anos.
• Como era a Faculdade no tempo em que fez a sua graduação?
• Havia estudantes negros estudantes na pedagogia? Professoras(os)?
• Como era a sua relação com os colegas e professores?
• Havia preconceito velado por parte dos docentes e estudantes?
• Fale sobre pessoas que, no seu entender, fizeram/fazem a diferença na Faced
• Como você avalia a Faced no cenário brasileiro atual? Quais as perspectivas para o futuro?
• Pode falar sobre os significados da Faced na sua história de vida?
• Lembra-se de alguns rituais que aconteciam no seu cotidiano na Faced?
• Tu tens alguma recordação material da época de escola? Cadernos, provas, boletins?
Conforme exposto, no roteiro ocupei-me das questões da investigação, que são os percursos de vida dessas mulheres, sempre com a expectativa que falassem sobre sua experiência, como estudantes e/ou servidoras públicas negras, nas décadas passadas, no ambiente universitário. Mulheres negras, trabalhadoras e estudantes, essas eram características análogas ao perfil de estudantes que, via de regra, frequentavam a UFRGS. Posso dizer que, imbricado ao roteiro, estão as interrogações emergentes no estudo. Dito isto, agora apresento as mulheres protagonistas do trabalho desenvolvido.
Nome Ocupação dos Pais Idadea Ingresso na Faced Formação
Leni Dornelles Mãe: costureira
Pai: gráfico
Patricia Pereira Mãe: enfermeira
Pai: mecânico
65 anos 1988 Graduação em Pedagogia (FAPA); Mestrado; Doutorado (UFRGS); Pós-Doutorado (Universidade do Minho)
48 anos 1989 Graduação em Pedagogia (UFRGS); Mestrado em Educação (ONDE?)
Atividades Profissionais
Professora aposentada na Faculdade de Educação da UFRGS
Professora da Rede Municipal de Porto Alegre; Coord. de tutores do UNIAFROb
Rosangela de Souza Mãe: do lar
Pai: aeroviário
56 anos 1985 Graduação em Pedagogia (UFRGS); Especialização em E.E e EJA (ONDE?)
Professora da Rede Estadual do RS
Roseli Pereira Mãe: doméstica
Pai: marceneiro 55 anos 1988
Graduação em Pedagogia (UFRGS); Mestrado em Educação (UFRGS)
Técnicaadministrativa da Faculdade de Educação da UFRGS
Petronilha Silva Mãe: professora
Pai: pedreiro 77 anos 1976
Graduação em Letras Português e Francês (UFRGS); Especialização em Planejamento e Administração da Educação (Institut International de Planification de L’éducation); Mestrado em Educação (UFRGS); Doutorado em Educação (UFRGS); PósDoutorado (UNISA)
Professora aposentada da UFSCar
a Idade das entrevistadas no momento da entrevista.
b UNIAFRO (Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior) – Por meio da Resolução CD/FNDE nº 14, de 28 de abril de 2008, o Ministério da Educação estabeleceu critérios para assistência financeira às instituições de educação superior com o objetivo de fomentar ações voltadas para a formação inicial e continuada de professores da educação básica e para a elaboração de material didático específico no âmbito do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior (Uniafro).
Quem eram essas mulheres?
O quadro apresenta informações que trazem pistas para que se possa construir aproximações dessas narradoras. A partir disso, analisei esses dados. Primeiramente, considerando a ocupação das mães e dos pais, pode-se perceber que as profissões exercidas carregam as marcas de uma sociedade sexista, pois se observa uma separação social, predominantemente por gênero e raça. Os pais exercem profissões construídas socialmente como masculinas, como: aeroviário, marceneiro, mecânico, gráfico e pedreiro. Da mesma forma, as mães desempenham trabalhos historicamente identificados ao mundo feminino, como: cuidadora do lar, empregada doméstica, enfermeira, costureira e professora. Das atividades de trabalho desenvolvidas pelas mães das entrevistadas, podese dizer que duas carregam maior valor social e econômico: a mãe de Patricia era enfermeira e a mãe de Petronilha, professora. Importante destacar que são duas profissões identificadas ao cuidado com o outro. Talvez, em vista disso, tenha sido possível para as filhas o acesso a níveis mais elevados de formação,
sobretudo pensando na trajetória acadêmica construída por Petronilha, professora universitária, há muitos anos, reconhecida por seu trabalho e engajamento nas questões da educação étnico-racial.
Em relação à temporalidade de ingresso na UFRGS, observa-se que a estudante mais antiga é Petronilha. Sua história com a Universidade iniciou em 1954, quando ingressou na primeira turma do Colégio de Aplicação (LIMA; ALMEIDA, 2018), provavelmente influenciada por sua mãe, professora do Instituto de Educação General Flores da Cunha. Na Faculdade de Educação, ingressou no curso de mestrado, em 1976, no recente Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEDU/UFRGS). Naquela época, as dificuldades educacionais estavam postas para grande parte da população brasileira, mas sempre lembrando que os obstáculos historicamente são mais agravados para a população negra. Segundo um dado de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) sobre o nível de instrução das pessoas com 25 anos ou mais de idade no Brasil, revela-se que apenas 17,4 % 6 da população brasileira possui Ensino Superior completo. Ou seja, se este é um número chocante, mesmo com todas as políticas educacionais de incentivo à educação, fico a pensar como seria no tempo em que Petronilha estudava no PPGEDU. E este não é um dado racializado. Pode-se dizer que Petronilha é, sim, uma mulher negra que foi precursora ao acessar o curso de mestrado, nos anos 1970, levando-se em conta que raros eram aqueles que chegavam à Universidade, ainda mais em cursos de pós-graduação. Naquele período, a Ditadura Militar ainda se fazia presente no Brasil, o que provocava forte impacto nas universidades. Com base nisso, pode-se dizer que a Faculdade em que Petronilha cursou o seu mestrado sofreu grandes mudanças, distinguindo-se da realidade encontrada pelas demais entrevistadas que entraram nas décadas de 1980 e 1990. No que se refere à formação das narradoras, das cinco, somente Rosangela não cursou a pós-graduação, mas realizou cursos de especialização. Duas delas possuem pós-doutorado no exterior, Leni e Petronilha, ambas professoras universitárias aposentadas. Por último, referente à formação, apenas Petronilha não possui graduação em pedagogia, entretanto sua graduação também é uma licenciatura, em letras. Todas elas formaram-se como professoras.
Acerca da ocupação atual das entrevistadas, observa-se que, das cinco, Patricia e Rosangela exercem a docência em escolas públicas. Leni e Petronilha são professoras universitárias aposentadas. Ambas atuaram em programas de
6 Ver: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18317-educacao.html. Acessado em 26 out. 2020.
pós-graduação, respectivamente na UFRGS e na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Roseli é a única que não exerceu a docência, mas seu trabalho como servidora técnica na UFRGS a mantém próxima do ambiente universitário. Após esta explanação para que se tome conhecimento de indícios que sugerem quem são essas antigas estudantes que fazem parte da história da Faculdade de Educação, em seguida, apresento um conjunto de memórias orais referentes às suas experiências na Universidade.
O que diziam as estudantes negras da Faculdade de Educação nas décadas passadas?
Início apresentando os temas recorrentes que emergiram na análise das entrevistas. Assim, no decorrer dos relatos, essas temáticas foram se manifestando. Conclui que, ao falar sobre as vivências das estudantes negras no ensino superior em tempos pretéritos, há uma relação que se estabelece entre presença, ausência e enfrentamento. Ao mesmo tempo em que elas ocupam o lugar de estudantes na Faculdade, fazendo-se presentes, o sentimento de ausência dos seus pares, por se sentirem invisíveis, também se coloca, pois, muitas vezes, foram as únicas pessoas negras nesse espaço de formação docente. Portanto, pode-se dizer que essa presença causa uma espécie de ruptura em uma lógica social universitária previamente estabelecida, gerando enfrentamentos de diversas ordens.
Foi necessário um trabalho quase detetivesco, em que procurei pistas de um caso. Fui atrás de evidências de que as mulheres negras estavam na Faculdade de Educação, e estavam, como bem se confirmou. A duras penas, concluíram seus estudos, em uma época de poucas possibilidades educacionais para aqueles que não faziam parte de uma elite social e econômica.
As mulheres, sujeitos da pesquisa, por sua diminuta presença na Faculdade, pode-se dizer que foram precursoras, vivenciaram um espaço no qual os negros eram atípicos, raras exceções. Naquele contexto, era uma prerrogativa do perfil de estudantes da UFRGS, pessoas abastadas que conseguiam dedicar-se exclusivamente aos estudos, sem necessidade de trabalhar para pagar as passagens, alimentação, livros, sustentar família, pagar aluguel, entre outras dificuldades. Tais adversidades podem acarretar exclusão daqueles que não possuem condições de permanecer. Se essa ainda é uma realidade presente na Universidade, imagine nas décadas passadas. Logo, em meio às carências, enfrentamentos, preconceitos, as antigas estudantes, por meio de muita persistência, adentraram pelas portas
da Universidade pública, servindo como uma referência para aqueles que não tinham perspectivas educacionais.
Mulheres negras, estudantes de graduação e pós-graduação entre as décadas de 1970, 1980, 1990, vivenciaram o Regime Militar e a abertura política, em meio aos seus percursos formativos. Essas características em comum desse conjunto de entrevistadas, fez com que se pudesse perceber uma relação estabelecida entre suas narrativas. Em certa medida, pode-se atribuir isto ao caráter educador das instituições educativas, como é a Faced.
É claro, cada narrativa comporta sua singularidade e indica traços da personalidade daquela pessoa que narra. Alguns eventos podem ser vivenciados pelo mesmo grupo de pessoas e apenas uma delas pode vir a significar memórias em relação a um determinado acontecimento. A recorrência de algumas temáticas pode se fazer mais presente em algumas narrativas e não em outras, isto traz um aprofundamento maior para a pesquisa, que permite diversas perspectivas de análise.
Levando-se em conta que o tempo da memória é o presente, as entrevistadas evocaram o passado a partir de quem são no momento atual. Em vista disso, cada uma assimilou, à sua maneira, as questões raciais vivenciadas na UFRGS. Ao analisar as entrevistas, percebi que Roseli, Patricia e Leni construíram um discurso racial bastante forte, pode-se dizer que suas falas estão, de certa forma, ancoradas em suas vivências passadas e atuais no movimento negro.
As palavras ditas libertam7
Neste momento, trago algumas falas que emergiram nas narrativas com enfoque na questão racial. As antigas estudantes trouxeram, em seus relatos, a pessoalidade de ser quem são, de viver em uma sociedade racista. A partir das entrevistas, foi possível fazer o trabalho historiográfico de análise com base em referenciais epistemologicamente antirracistas. Na sequência, indicamos trechos potentes a serem discutidos posteriormente.
[…] Qual o problema desta universidade que não quer discutir as questões negras? Não bastam só cotas […] não adianta depois na semana da África ou nos salões perguntar por que os alunos negros não estão aqui, por que eles não fazem parte da vida acadêmica? Porque essas pessoas trabalham! (grifo meu). (Patricia em 08/09/2017)
— Havia preconceito velado por parte dos professores e estudantes? Com certeza! Tanto que não se falava nos tabus da educação, preconceito (grifo meu) em sala de aula nunca se falou, mas tinha preconceito de professor comigo, como eu era funcionária, técnica-estudante. Eu faltava aula e eles me cobravam e eu dizia “Lá, eu sou técnica administrativa, aqui dentro eu sou aluna! Eu sei meus limites de falta.” Então, o ruim de tu estudar no mesmo local que tu trabalhas é isso, as pessoas te colocam uma responsabilidade muito maior”. (Roseli em 22/03/2018).
[…] Quando eu fui da Direção da Faced, com a professora Malvina Dorneles, muitas vezes assumia a direção sozinha e, muitas vezes, frequentei o Conselho Universitário, na época os negros ali presentes, era eu e o fotógrafo da UFRGS. Nessa época, iniciou a discussão sobre as Ações Afirmativas, sobre as cotas raciais e sociais e o ingresso de alunos cotistas na UFRGS. Eu estava ali, junto, na discussão e na luta que se teve que travar para se chegar ao que temos hoje na Universidade. Foi quando tudo veio à baila, e quando a posição de muitos diretores veio à baila, ali alguns diretores e representantes demonstravam ser extremamente preconceituosos. O preconceito estava presente em todos os níveis da UFRGS (grifo meu). Mas isso não foi um impedimento para que não chegássemos a um consenso do que seria melhor para UFRGS naquele momento. Claro que tinham horas que saía arrasada, muito braba, com o que ouvia na reunião, mas havia também outro lado da discussão e acabamos implementando, às vezes abaixo de muita luta, as Ações Afirmativas que temos. (Leni em 09/05/2018)
Pode-se dizer que o discurso dessas mulheres evidencia a indignação ao identificar um sistema racista reproduzido fortemente pela Universidade, na medida em que não racializa o público de alunos mais ou menos envolvidos nas atividades acadêmicas, não se fala sobre preconceito, especificamente o racial e, por último, resiste fortemente à implementação das políticas de ações afirmativas. É notável que a fala de Patricia se apoia em uma situação a qual ainda está sendo vivenciada no presente, pois esta é estudante de Direito na UFRGS e frequenta alguns espaços enquanto aluna, trazendo questionamentos atuais, como foi citado por ela. Já Roseli, que frequenta a UFRGS há mais tempo, revela que havia uma espécie de cobrança dupla, por ser estudante de pedagogia e secretária da pós-graduação. Pode-se inferir que, por vezes, essa exigência maior, quase um olhar de soslaio, talvez seja uma desconfiança por ocupar dois lugares na Universidade, deveria mostrar serviço. Neste sentido, o rapper Mano Brown faz uma reflexão necessária sobre esta cobrança feita aos sujeitos negros para serem impecáveis nos seus lugares de atuação, principalmente aqueles historicamente reservados às pessoas brancas na sociedade.
Desde cedo a mãe da gente fala assim – Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor. Aí, passaram alguns anos e eu pensei: Como é que eu vou fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado. Pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses. Por tudo o que aconteceu (grifo meu). Duas vezes melhor como? Ou melhor, ou você é o pior de uma vez, sempre foi assim! […] Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso daí? (RACIONAIS MC’s, DVD 1000 trutas, 1000 tretas, 2006).
Em concordância com a fala de Mano Brown, entendo que essa espécie de atraso social provoca desvantagens para a população negra, conhecida pela desigualdade social. Quando os sujeitos negros ocupam espaços que historicamente foram reservados aos brancos, provocam sentimentos inquietantes causados por este verdadeiro abalo sísmico, no sentido que desacomoda estruturas antes já consolidadas. Podemos atribuir esse efeito a um racismo epistêmico, pois se sabe que grande parte do conhecimento validado socialmente e academicamente é produzido por um grupo social dominante. Logo, podese dizer que vivemos em uma sociedade centrada no branco, no pensamento produzido por este. Isto acarreta consequências para ambos.
O sentimento de inferioridade emerge no indivíduo negro por reflexo de uma sociedade epistemologicamente branca que duvida da intelectualidade do negro, acreditando que este só serve para o trabalho braçal. E o segundo é o de incômodo, no qual há a sensação de invasão territorial, mas, ao mesmo tempo, como há o domínio deste território, não se torna uma ameaça, porém é bom enfatizar o lugar social de cada sujeito. Assim, fazendo a manutenção do sistema racista. Maria Aparecida Silva Bento (2002) colabora para a ideia apresentada, uma vez que aponta a defesa dos sujeitos brancos dos seus privilégios sociais como um “Pacto Narcísico da Branquitude”. Esta relação também se estende ao depoimento de Leni, quando diz que pessoas de diversos segmentos da UFRGS se sentiram acuadas ao se deparar diante da possibilidade de aprovação das Ações Afirmativas. Pode-se fazer uma analogia entre essa história e a de Narciso. Assim como este personagem na mitologia grega, a branquitude, vaidosa, centrada em si mesma, defende uma Universidade com a sua cara .
A respeito da narrativa construída pelas entrevistadas, cada uma apresentou importantes apontamentos sobre o trato das questões raciais na Faced/UFRGS, em suas diversas temporalidades. Sabemos que a temática racial, aos poucos, vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas, inclusive no ano de 2019, foi implantada uma disciplina de Educação das Relações Étnico-Raciais no currículo do curso de pedagogia. A Faculdade de Educação, em consonância
com a Universidade, segue dando passos para que se discuta a questão racial em todos os seus segmentos. É claro que o mérito desse movimento se deve principalmente aos estudantes, professores e técnicos negros da Universidade que se ocupam da temática. As entrevistadas, além de trazerem considerações sobre o modo como a questão racial estava colocada, também falam acerca das marcas que a Faculdade deixou em suas memórias. Vejamos:
[…] A Faced para mim, eu sempre digo para as gurias, que é a minha casa com todos os problemas e parece a casa da gente mesmo(grifo meu), com todos os problemas que ela tem, é tipo família sabe que é linda no retrato, quando a gente tira foto e todo mundo sorrindo na frente, na entrada do saguão, coisa mais linda do mundo tirar foto, mas quando entra para dentro, nossa, a gente tem problemas, mas é igual a casa da gente e igual a gente volta para casa. Eu digo que é um vício vira e mexe eu estou aqui dentro, é como estar umbilicalmente ligada à esta Faculdade. (Patricia em 08/09/2017)
[…] Fui bolsista voluntária da Mérion Bordas no Projeto Pericampus. Então, eu sempre me senti acolhida na Faced (grifo meu). Sempre tive ajuda. Posso dizer que todos e todas foram fortes na minha vida, […] teve muita gente que me acolheu que ajudou, que lutou junto. (Leni em 09/05/2018)
[…] Aqui na Faced eu gosto de falar da Rosa Hessel que fez diferença na minha vida, se ela não tivesse na Pedagogia eu ia desistir (grifo meu), estava pesado pra eu trabalhar e estudar, a vida cotidiana é difícil em família, a permanência na universidade. Eu queria sair e ficar só trabalhando e a Rosa Hessel falou “Não, tu vais ficar, só diminui o ritmo, vai devagar! (Roseli em 22/03/2018)
[…] Era um pouco difícil de separar porque nós que erámos professoras do Colégio de Aplicação, a gente participava da formação das licenciaturas […] Então essa é minha ligação primeira na Faced […] A minha ligação com a Faced se dá sempre pelo Colégio de Aplicação (grifo meu) e depois no mestrado e doutorado. (Petronilha em 05/02/2020).
[…] Ah, foi minha história de final de adolescência, vida jovem e adulta (grifo meu). Tanto é que eu tenho o maior orgulho de ter estudado na UFRGS. (Rosangela em 05/04/2018).
As vivências na Faculdade de Educação deixaram marcas nas memórias das entrevistadas, reminiscências afetivas de um tempo que já não existe mais,
porém, que se manifestam no presente, por meio das lembranças. Em todas as narrativas, foi possível perceber uma grande emoção no que se refere ao significado da Faculdade de Educação na história de vida de cada uma delas. Patricia se emociona ao comparar a Faculdade com uma família. O sentimento de lar se expressa fortemente em seu relato. Talvez seja por isso que as antigas estudantes constantemente voltam para a Faced, seja para participar de bancas, palestras ou cursos. Das narradoras, a mais distante da Faculdade é Rosangela que revelou em sua entrevista a vontade de voltar a ser estudante no mesmo lugar em que se formou como pedagoga. Pode-se inferir que é em consequência disso que ela se utiliza de poucas palavras para demonstrar o significado da Faculdade de Educação na sua história de vida. Conforme a narrativa expressa, acredito que este seja um sentimento de muitas outras estudantes, as quais constituíram-se enquanto mulheres em meio a seus percursos educacionais. A narrativa de Leni engloba diversas dimensões que foram especiais durante sua trajetória. Cita a professora Mérion Bordas8 como alguém que oportunizou um espaço em seu projeto acadêmico, o PERICAMPUS9 (Programa de Integração Universidade e Escolas de 1º Grau de Periferia Urbana da Grande Porto Alegre). Essa foi uma importante experiência educacional na qual a entrevistada ocupou o lugar de bolsista voluntária com ênfase na Educação Infantil. Roseli também cita uma pessoa, Rosa Hessel, a professora que a apoiou em seus estudos, na medida em que o esgotamento de ser estudante trabalhadora se fazia presente. Por último, Petronilha enfatiza a indissociação de suas memórias do Colégio de Aplicação e da Faculdade de Educação. Podese inferir que isto se deve primeiro à relação antiga entre a Faced e Colégio de Aplicação, tendo em vista que, durante muitos anos, estiveram juntos no mesmo prédio (GRIMALDI; ALMEIDA, 2018). E segundo, por seu passado enquanto aluna e professora do Colégio. O elo da narradora com a Faculdade aumenta posteriormente ao ingressar como estudante da pós-graduação. Portanto, a
8 Merion Campos Bordas – Esteve presente e atuante na UFRGS desde 1965, antes mesmo da constituição da Faculdade de Educação. Seu primeiro vínculo profissional com a Universidade foi como docente do Colégio de Aplicação, após lecionou no Curso de Pedagogia, quando este ainda pertencia à Faculdade de filosofia, ciências e letras. Em 2013, desligou-se oficialmente da Universidade, por meio da aposentadoria. Intelectual marcante da educação, esteve à frente do primeiro projeto popular da FACED, o PERICAMPOS (Programa de Integração Universidade e Escolas de 1º Grau de Periferia Urbana da Grande Porto Alegre). OLIVEIRA, Ana Paula Rodrigues de. “Se Merion estivesse aqui…”: Biografando a história de uma docente da FACED/UFRGS (1965-2013). Trabalho de Conclusão de Curso (Pedagogia) – Faculdade de Educação, UFRGS. Porto Alegre, 2017.
9 PERICAMPUS (Programa de Integração Universidade e Escolas de 1º Grau de Periferia Urbana da Grande Porto Alegre): Foi um projeto de extensão da UFRGS que durou de 1981-1990. Tinha uma proposta de ação interdisciplinar com foco no ensino, pesquisa e extensão. Focado em melhorar a qualidade da educação básica o Projeto contava com diversos cursos como: psicologia, odontologia, medicina, educação física, letras, engenharias. A Faculdade de Educação também se engajou.
história do Colégio de Aplicação se entrelaça a história da Faced, assim como nas memórias de Petronilha.
Nos encaminhamos para as considerações deste estudo, por hora fica registrado um esboço sobre a presença negra na Faculdade de Educação nos períodos de 1976 a 1991. Ao analisar as cinco narrativas de memória, pude construir uma inteligibilidade acerca da história da presença negra na Faced/ UFRGS. Consideraram-se as experiências individuais e coletivas dessas mulheres, as quais trouxeram sentimentos doces e amargos do momento em que estiveram como estudantes ou servidoras na Instituição. Apesar das dificuldades, constituíram-se enquanto docentes em um tempo de poucas possibilidades educacionais.
Para desenvolver esta investigação, foi necessário produzir documentos orais, por meio de entrevistas de história oral, que se transformaram no corpus empírico da pesquisa. Esses documentos analisados permitiram a construção de uma narrativa historiografia acerca da presença negra na Faculdade de Educação, na temporalidade de 1970 a 1990.
Devo dizer que alguns desafios documentais são colocados para aqueles que escolhem trabalhar com a História da Educação dos Negros. O maior obstáculo encontrado no empreendimento deste estudo foi a busca pelas estudantes. Não havia uma lista de matrículas disponível no Arquivo da Faculdade sobre as alunas que se declaravam negras entre as décadas de 1970 e 1990, da graduação ao PPGEDU, creio que esse tipo de informação não existia na época. Portanto, fui atrás de pessoas que era de conhecimento geral terem cursado a graduação e ou pós-graduação na Faculdade de Educação. Para muitos, fiz a pergunta: “Recorda-se de alguma colega negra?”. Houve indicações de ex-alunas que se formaram a partir dos anos 2000. Mas, para esta pesquisa, eu gostaria de ir buscar respostas em outras camadas do tempo, mais próximas do início da constituição da Faced/UFRGS. Acredito que em pesquisas futuras, podem-se realizar novas investidas, buscando compreender a presença negra nos anos 2000, que trouxeram novas caras para a Universidade pública.
Pretendeu-se, na pesquisa, trazer as vozes das cinco mulheres negras como narradoras das memórias da Faced, demarcando suas presenças em um lugar historicamente atribuído à branquitude. Procurou-se cotejar as narrativas com o que dizem autores e autoras que falam sobre a subjetividade e enfrentamentos
do ser negro em uma sociedade ideológica e estruturalmente branca. Ainda se observam silêncios no que se refere à História da Educação dos Negros, é preciso repensar as produções historiográficas em uma perspectiva epistemologicamente descolonizada.
Como resultados da pesquisa, observa-se que, embora em períodos diferentes, todas indicam a pouquíssima presença de pessoas negras nos espaços da instituição, tanto na condição de estudantes, como de professores. Nesse sentido, pode-se dizer que essas cinco mulheres, cada uma à sua maneira, foram precursoras na Faculdade de Educação. Em relação às questões raciais, dizem que, naquela temporalidade, não havia discussões epistemológicas sobre esse tema, invisibilizado na formação docente. Entretanto, as cinco percebem na Faculdade um lugar de oportunidades e afetos que as acolheu durante seus processos formativos. Por fim, ficou registrada uma necessária narrativa historiográfica que demarcou a presença de mulheres negras na história da Faculdade de Educação.
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Nada de nós sem nós é um lema capaz de expressar desejos e reivindicações de grupos que resistentemente protagonizam seu direito à autodeclaração, livre representação e plena participação na elaboração e implementação de políticas públicas, projetos sociais ou ações institucionais que os envolvam. Esses grupos, em geral formados por pessoas com deficiência, membros da comunidade surda, quilombolas, indígenas, negros, LGBTQIA+, organizam-se civilmente para romper com as consequências excludentes de padrões normativos hegemônicos que os violentam cotidianamente, lutando pelo acesso equitativo aos benefícios da cidadania e contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade democrática e plural. O lema popularizouse ao ser adotado em documento do Ministério da Saúde da Grã-Bretanha, em 2001, referente às estratégias de inclusão das pessoas com dificuldades de aprendizagem em diversos serviços públicos essenciais à cidadania plena (SASSAKI, 2007). O ativismo social das pessoas com deficiência deixou um legado para a comunicação direta da afirmação dos direitos civis de
forma equitativa e com respeito às diferenças. A política de Ações Afirmativas (AF) no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tematizada no presente ensaio pelo viés da eclosão das epistemologias negras, está coadunada com o objetivo de conquistar a excelência acadêmica por meio da equidade do acesso e permanência de grupos comumente minorados e excluídos nas instituições educativas. A defesa da pesquisa engajada como expressão do direito às formas diferenciadas de manifestar pensamento é o eixo argumentativo da escrita ora iniciada e considera a importância do registro dos caminhos percorridos pelas pessoas negras na Faculdade de Educação da UFRGS. Como eclodem e se registram as epistemologias negras no PPGEdu/UFRGS? A busca de resposta para essa pergunta é a contribuição almejada para a obra – Histórias sobre a UFRGS: a pesquisa como resistência ao esquecimento – em que se insere o presente capítulo, na medida em que objetiva reconstruir a memória do processo de implementação das Ações Afirmativas no PPGEdu/UFRGS, sua importância para a produção do conhecimento engajado desenvolvido por pesquisadores(as) negros(as) e quilombolas. Essa coletividade de investigadores(as) protagoniza estratégias metodológicas e epistemológicas próprias, pautadas na defesa de que nenhum conhecimento sobre seus atores seja produzido sem eles e garante que sua memória não ficará no esquecimento. O registro máximo de consolidação deste processo, no que tange às pessoas negras e quilombolas, está expresso na escrita e organização do livro Reafirmando direitos: cotas, trajetórias e epistemologias negras e quilombolas na pós-graduação (DORNELES et al., 2020), aqui relatado como resultado de um processo coletivo das pessoas negras que os antecederam nas lutas por políticas educativas equânimes. No caso da UFRGS, Maria Conceição Lopes Fontoura (2017) registra os antecedentes das lutas por ocupação, acesso e permanência das pessoas negras na Universidade. Desejo fazer ecoar, no registro aqui cunhado, o lema nada de nós, sem nós.
O projeto social construído para as instituições educativas, entre elas a Universidade, não pode ser compreendido dissociado do contexto econômico, político, social e cultural da estrutura societária em que se desenvolve.
A intensificação das desigualdades e das contradições no modelo capitalista contemporâneo se acirra e exige a defesa de plataformas sociais mínimas e óbvias do ponto de vista humanitário. Torna-se necessário, primeiramente, defender o caráter público da escola e da universidade, diante da intensificação do empresariamento, privatização e mercadorização de ambas. O fortalecimento das instituições de ensino superior de caráter particular, inclusive por meio de parcerias entre Estado e grupos empresariais, somado à lógica privatizante que adentra
Nada de nós sem nós: epistemologias negras na pós‑graduação em Educação e a produção da pesquisa engajada
o imaginário social e as diretrizes governamentais na administração pública, ameaçam o direito à escolarização como dever estatal e direito da cidadania.
A partir de uma perspectiva gramsciana, compreende-se a Universidade como um espaço de disputa de hegemonia, na qualidade de uma ação de classe e não de um ato partidário. A hegemonia política está relacionada com a forma como o poder é exercido e, nesse sentido, a sociedade civil possui uma função importante na disputa e consolidação de tal supremacia. A organização das classes populares é fundamental para que essa hegemonia não se desenvolva a partir de sua exclusão, garantindo seu caráter público e acessível aos grupos historicamente empobrecidos. O contexto vivido a partir da primeira década do século XXI, no âmbito do Ensino Superior, mostrou-nos a possibilidade de tensionar, embora não sem limites, as estruturas históricas da universidade brasileira, até então instituída num modelo elitista e excludente. A implementação das políticas de Ações Afirmativas e o ingresso de estudantes de origem popular, oriundos da escola pública, negros, quilombolas, indígenas, camponeses, vem causando uma desacomodação na conformação da Universidade. Com a inclusão de novos atores sociais, até então ausentes no espaço universitário, configura-se uma disputa por um novo ordenamento na produção social da educação superior, uma vez que a presença da diversidade étnico-racial e da classe trabalhadora evidencia as contradições no cotidiano institucional.
As Ações Afirmativas, como elemento fundamental para a construção de um ordenamento com justiça social nas instituições educativas, podem ser entendidas por meio da perspectiva de uma política de redistribuição ou de uma política de reconhecimento. Nancy Fraser (2006) sustenta que políticas de justiça social possuem uma bidimensionalidade, demandando tanto a redistribuição quanto o reconhecimento. Isoladamente, nenhum dos dois elementos seria suficiente, pois é necessária uma integração entre as perspectivas de igualdade social e de reconhecimento das diferenças. Na terminologia filosófica, redistribuição e reconhecimento têm origens divergentes, sendo a primeira advinda da tradição liberal, em especial anglo-norte-americana das décadas de 1970 e 1980 do século XX. Tradição sobre a qual os filósofos analíticos como John Rawls e Ronald Dworkin elaboraram complexas teorias de justiça distributiva, justificadas a partir da redistribuição econômica. Já as políticas de reconhecimento provêm da tradição da filosofia hegeliana, que designa uma relação recíproca ideal entre sujeitos, em que cada um vê ao outro como seu igual e como separado entre si. Portanto, o reconhecimento implica a tese hegeliana, considerada em oposição ao individualismo liberal, no qual as relações sociais são anteriores aos indivíduos e a intersubjetividade é anterior à subjetividade. Fraser (2006) sustenta que
apesar de suas origens filosóficas serem divergentes, ambas perspectivas de justiça social são complementares e andam lado a lado. Defende-se que não basta política de redistribuição e de reconhecimento isolada ou separada uma da outra. Os grupos socialmente minorados possuem caráter bidimensional e de subordinação, por isso necessitam de ambas e, no plano da teoria política, segundo Fraser (2006), deve-se construir estratégias de reformas concretas que possam reparar simultaneamente a má distribuição e o reconhecimento precário. Para a pensadora, debemos optar por una política de redistribuición que pretenda abolir los diferenciales de clase o debemos abrazar una política de reconocimiento que trate de celebrar o desconstruir las diferencias de grupo? Por lo visto no podemos apoyar ambas. Sin embargo, ésta es una antítesis falsa. (FRASER, 2006, p. 89).
As políticas de AF no Ensino Superior partem do reconhecimento da existência de grupos politicamente excluídos na sociedade brasileira, levando em conta também seu caráter de classe num país com extremos índices de desigualdade social. Assim, estas políticas se constituem numa dupla dimensão não opositora e requerem reconhecimento e redistribuição de renda.
As AF ganham visibilidade no cenário nacional a partir de sua implantação no início do século XXI, resultando de acordos e pressões internacionais e respondendo às lutas internas por garantias de direitos de grupos historicamente excluídos da cidadania plena, num país marcado por potentes diferenças culturais e extremas desigualdades sociais. Gomes (2001) define as AF como
um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate da discriminação de raça, gênero etc., bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado. (GOMES, 2001, p. 6-7).
Segundo o autor, um dos objetivos de tais políticas é
induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, visando a tirar do imaginário coletivo a ideia de supremacia racial versus subordinação racial e/ou de gênero; coibir a discriminação do presente; eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar e que se revelam na discriminação estrutural; implantar a diversidade e ampliar a representatividade dos grupos minoritários nos diversos setores. (GOMES, 2001, p. 6-7).
Nada de nós sem nós: epistemologias negras na pós‑graduação em Educação e a produção da pesquisa engajada
No Brasil, o sistema de cotas para ingresso ao ensino superior público é uma política de ação afirmativa, implantada na primeira e segunda décadas deste século, como resultado das lutas de vários movimentos sociais. No ano de 2007, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) instituiu o Programa de Ações Afirmativas por meio da reserva de vagas para estudantes oriundos do sistema de ensino público, autodeclarados negros, e candidatos indígenas (Decisão 134/ 2007 – Conselho Universitário). Após cinco anos do programa na UFRGS, inicia-se, em 2012, o processo de avaliação e revisão do sistema de cotas, coadunado com o amplo debate sobre esta política em distintos espaços da sociedade, especialmente na arena do poder judiciário. Segundo a decisão de número 268/2012 do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, permanece a reserva de 30% das vagas de cada curso de graduação, em vigor por um período de 10 anos, podendo ser prorrogada a partir de uma nova avaliação. Além destas, são destinadas anualmente 10 vagas para estudantes indígenas, com normas específicas de ingresso. Ainda neste documento, afirma-se que o acompanhamento dos estudantes ingressantes pelo Programa de Ações Afirmativas é de responsabilidade da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas – ligada à Pró-Reitoria de Coordenação Acadêmica –, que deverá realizar esse acompanhamento junto à Pró-Reitoria de Graduação e às Comissões de Graduação de cada curso da UFRGS. No mesmo ano é aprovada a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), reservando 50% das vagas das universidades federais e institutos federais de educação para estudantes de origem popular.
Há uma considerável e recente produção acadêmica sobre a política de AF no Ensino Superior, considerando os impactos, assim como observando dados acerca do ingresso e permanência dos estudantes cotistas nas universidades. Para Arroyo (2014), tais estudantes que se constituem enquanto diferentes geram incômodo pois propõem um outro projeto de sociedade e de universidade. Vejamos as palavras do autor:
A diversidade de lutas e de ações coletivas e populares e de movimentos sociais mexem nas estruturas e relações mais brutais de dominação/subordinação dos trabalhadores, dos setores populares. Trazendo as lutas para o direito à terra, teto, moradia, trabalho, vida, escola, universidade, instalam os direitos nos núcleos estruturantes das relações políticas de dominação/subordinação. Da produçãoreprodução das desigualdades. A reação política a esses movimentos expõe a radicalidade política que eles trazem para as relações políticas e econômicas, culturais e pedagógicas. (ARROYO, 2014, p. 122).
A reação à presença de novos atores sociais e a inclusão da diferença viabilizada pelas AF desafia a capacidade de tensionamento social da Universidade, destacadamente impulsionada pelos estudantes que a ela adentram e nela se fazem coletivo, afirmando suas origens, histórias, demandas, e trazendo saberes que secularmente ficaram apartados dos currículos escolares e universitários.
A partir dessa breve contextualização acerca do contexto em que se insere a análise, sigo a escrita que enfoca a experiência da implementação da política de AF no PPGEdu/UFRGS, narrando na sequência a trajetória percorrida para a implementação da política e finalmente relatando a experiência inédita da publicação do livro Reafirmando direitos: cotas, trajetórias e epistemologias negras e quilombolas na pós-graduação (DORNELES et al., 2020).
Políticas Afirmativas no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS: caminho trilhado
Boaventura de Souza Santos (2011) aponta para uma reinvenção da Universidade, a partir de um novo paradigma emergente, que questiona acima de tudo a forma como vem sendo produzido o conhecimento científico. Este conceito de emergência corrobora para pensar o papel que os novos atores sociais que estão adentrando o Ensino Superior cumprem na esfera institucional e no cenário da educação pública brasileira. O autor afirma que existem cinco áreas de ação no domínio do paradigma emergente: “acesso; extensão; pesquisa-ação; ecologia de saberes; universidade e escola” (SANTOS, 2011, p. 6). O acesso é uma área de ação fundamental para que a Universidade reconquiste a sua legitimidade frente à sociedade contemporânea, pois é elemento fulcral para a democracia e a justiça social. O ingresso de novos públicos e as novas formas de gestão universitária são respostas aos atuais desafios presentes na sociedade contemporânea. Para romper com a exclusão social, corroborada historicamente pelas próprias instituições educativas, urge o desenvolvimento de novos modelos explicativos e epistemologias capazes de articular referenciais tradicionais e aportes teóricos emergentes. Para Santos (2011),
a universidade não só participou na exclusão social das raças e etnias ditas inferiores, como teorizou a sua inferioridade, uma inferioridade que estendeu aos conhecimentos produzidos pelos grupos excluídos em nome da propriedade epistemológica concedida à ciência. As tarefas da democratização do acesso são, assim, particularmente exigentes porque questionam a universidade no seu todo, não só quem a frequenta, como os conhecimentos que são transmitidos a quem a frequenta. (p. 72).
Nada de nós sem nós: epistemologias negras na pós‑graduação em Educação e a produção da pesquisa engajada
As estratégias metodológicas e epistemológicas construídas pelas pessoas negras no processo de implementação das AF no PPGEdu/UFRGS, fundamentadas no reconhecimento dos saberes diferenciados construídos por sua ancestralidade diaspórica africana, são capazes de incluir novos e profundos conhecimentos e compor de fato a excelência acadêmica sob base plural e com dever de memória a todos os grupos sociais que compõem a população brasileira. Nesta mesma dimensão, a ecologia de saberes (SANTOS, 2007) se sintoniza com a perspectiva de uma racionalidade aberta e sensível. A valorização dos diferentes saberes e experiências constitui a Universidade como um lugar para o diálogo crítico, o debate das grandes questões sociais, mas também como um espaço de apreciação de experiências alternativas que emergem dos projetos sociais protagonizados pelos excluídos da modernidade. Todo esse processo pode fazer eclodir uma Universidade capaz de potencializar as demandas colocadas mais recentemente pelas classes populares.
As práticas pedagógicas escolares e universitárias, inclusive na pósgraduação, historicamente têm sido marcadas pela inferiorização dos sujeitos minoritários politicamente, visto que se apresentam currículos eurocentrados numa racionalidade ocidental concebida pelo projeto da modernidade. Para Eschenhagen (2013) a Universidade, como lugar privilegiado de construção de conhecimento, tem legitimado as políticas socioeconômicas atuais que têm gerado grande parte dos problemas existentes.
O paradigma da modernidade, fundado na ideia de sujeito capaz de conhecer o mundo de maneira objetiva e universal por meio da razão, provoca também a divisão entre homem e natureza, corpo e mente, e assim a fragmentação do conhecimento, a coisificação/objetificação do mundo e a aceitação e naturalização desse próprio paradigma como único. A perspectiva eurocêntrica que descarta outras racionalidades epistêmicas, estabelecendo valores de validação, inunda nossos currículos de formação centrados em conhecimentos colonizadores, brancos, falocêntricos e heteronormativos. A Universidade tradicionalmente pensa a partir deste cientificismo moderno, que legitima uma ideia de universalidade e validez, instituindo parâmetros de avaliação e validação de publicações e a fragmentação do conhecimento por Faculdades ou Departamentos. A Universidade que apoia, reforça e retroalimenta o sistema liberal capitalista marginaliza outros conhecimentos e saberes, deslegitimando, assim, os saberes populares e tradicionais dos povos que vêm adentrando às universidades públicas (ESCHENHAGEN, 2013).
O ingresso das camadas populares na Universidade tem tensionado esse projeto educativo hegemonicamente institucionalizado, por meio do
desenvolvimento de um conhecimento transgressor à lógica predominante produzido com estes sujeitos que trazem consigo suas visões de mundo e seus saberes oriundos de suas comunidades. A lógica das práticas extensionistas tem sido problematizadora da relação entre universidade e sociedade, questionando para que e para quem vem servindo o conhecimento produzido mediante tantas pesquisas acadêmicas em diferentes áreas do conhecimento. Porém, é necessário pensar qual projeto de universidade, de educação e de sociedade queremos.
O estudo de outros conhecimentos, para além do currículo instituído e normatizado existente, como fenômenos de expressão e organização social desde um marco teórico moderno, continua seguindo a lógica da colonialidade do saber. Segundo Eschenhagen (2013), uma ruptura radical com este paradigma estaria em conceber outras bases filosóficas e epistemológicas de maneira horizontal para dialogar com as diferentes disciplinas e admiti-las como uma base possível para construir novas epistemologias. A Universidade precisa aprender a escutar, praticar a humildade e a revisão de suas próprias falências, reconhecer e dialogar com a pluralidade metodológica e teórica para além das epistemologias de base europeia e branca. Não se trata de incluir o indígena, o negro, o filho de trabalhador na Universidade e na lógica do mundo ocidental, tampouco refere-se um ajuste para resolver problemas socioambientais, sociopolíticos e socioculturais, mas de afirmar que é possível conviver de forma equânime com as diferenças. Estes fatores devem ser levados em conta para planejar alternativas ao projeto de universidade vigente.
Eschenhagen (2013) propõe reconstruir e reconsiderar a própria episteme dominante no ethos universitário, com fins de desenvolver um “bem viver”, retomando o compromisso da academia com a sociedade. Vejamos, nas palavras da autora, a definição de “bem viver”:
[…] si la universidad es el lugar em el cual se construye y reproduce el conocimiento de la cosmovisión moderna que se basa em el individuo y em la fragmentación del conocimiento, resulta necessário em un contexto de búsqueda de alternativas como el “buenvivir”, y en un contexto de querer comprender una cosmovisión como el sumakkawsay y suma qamaña, explicitar y revisar el papel que cumplen las universidades como semejantes lugares. (ESCHENHAGEN, 2013, p. 95).
O “bem viver” tem origem nas cosmovisões indígenas andinas e se apresenta como um paradigma comunitário baseado na vida em harmonia e em equilíbrio com o entorno, como alternativa ao desenvolvimento centrado na produção e consumo desenfreado impostos pela lógica do capital. Inspira a valorização das formas de resistência à lógica do capital, como ação pedagógica, entendendo
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o significado político das presenças afirmativas na Universidade, repensando currículo e políticas educacionais para a democracia no acesso e permanência ao Ensino Superior. Assim, para pensar uma outra pós-graduação possível é preciso que nos interroguemos sobre a Universidade que temos e a Universidade que queremos. Refletir acerca do papel desempenhado pelo conhecimento produzido na pós-graduação e principalmente qual o papel da erudição produzida por essas intelectualidades-outras.
O debate sobre as cotas raciais, na qualidade de ações afirmativas e reparatórias, insere-se dentro do campo de defesa dos direitos de minorias, embora os dados demográficos no Brasil apontem as pessoas negras como maioria numérica. Hoje dispomos de um grupo de dispositivos que legalizam as cotas raciais e estabelecem parâmetros sobre quem são os sujeitos de direitos das cotas raciais e sociais. Dentre os dispositivos legais podemos destacar o Decreto nº 4.876/03 que institui o Programa Diversidade:
Art. 1º O Programa Diversidade na Universidade, inserido no âmbito do Ministério da Educação, tem a finalidade de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros (BRASIL, 2003).
Tal decreto tem como base a Lei nº 10.639/03, que cria o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira (BRASIL, 2003). Este decreto gerou uma série de polêmicas as quais questionaram a legalidade das cotas raciais, porém em 2012 a Lei nº 12.711/12 dispôs sobre o ingresso por tal modalidade nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Vejamos o texto da lei:
Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. (BRASIL, 2012).
Outro fato que se faz marcante no debate sobre cotas raciais é o Estatuto da Igualdade Racial, no qual o Estado se compromete a construir dispositivos ou estratégias para diminuir a desigualdade a partir do critério racial. A institucionalização do debate se concretiza a partir da Conferência de Durban
(2001), coordenada pela Organizações das Nações Unidas (ONU), a partir da aprovação em assembleia geral da Resolução Unidos contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância. O Brasil é signatário desta Resolução e, por isso, deve-se comprometer com a efetivação de ações de combate e reparação ao racismo e crimes correlatos.
A Conferência de Durban tornou-se um marco nas lutas por justiça social, pois até aquele evento, segundo Santos (2013)
[…] não existia o reconhecimento por parte das Nações Unidas da existência dos milhões de afrodescendentes que viviam na região das Américas, nem tão pouco se admitia a existência do racismo (p. 227).
No parágrafo 42 da Resolução consta que:
Consideramos essencial que todos os países da região das Américas e todas as zonas da diáspora africana reconhecemos a existência de sua população de origem africana e as contribuições culturais, econômicas, políticas e científicas dadas por essa população, e que admitam a persistência do racismo, descriminação racial, a xenofobia e as formas conexas de intolerância que afetam de maneira específica, e reconheçam que, em muitos países, a desigualdade histórica no que diz respeito, entre outras coisas, ao acesso à educação, a atenção à saúde, à habitação tem sido uma causa profunda da disparidades socioeconômicas que a afeta. (ONU, 2002).
Após a Conferência de Durban, no Brasil, desenvolveu-se um processo com avanços e retrocessos, culminando na Portaria Normativa nº 13, de maio de 2016, que recomenda a adoção de Ações Afirmativas nas pós-graduações.
Segundo a Normativa:
Art.1° As Instituições Federais de Ensino Superior, no âmbito de sua autonomia e observados os princípios de mérito inerentes ao desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, terão o prazo de noventa dias para apresentar propostas sobre inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência em seus programas de pós-graduação (Mestrado, Mestrado Profissional e Doutorado), como Políticas de Ações Afirmativas.
Art. 2° As Instituições Federais de Ensino deverão criar comissões próprias com a finalidade de dar continuidade ao processo de discussão e aperfeiçoamento das Ações Afirmativas propostas. (BRASIL, 2016).
Tal regramento leva em consideração os antecedentes legais: Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial; Lei nº
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12.711, de 29 de agosto de 2012, e regulamentada pelo Decreto nº 7.824, de 2012, que explicitamente coloca em seu art. 5º, § 3º, que “as instituições federais de educação poderão, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir reservas de vagas suplementares ou de outra modalidade”; Parecer de 2012, em que o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade das políticas de Ações Afirmativas; Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, que estabelece reserva de 20% das vagas aos negros/às negras nos ingressos no Serviço Público Federal. Tais antecedentes legais demostraram que a adoção de políticas de Ações Afirmativas na graduação não foi suficiente para reparar ou compensar efetivamente as desigualdades sociais resultantes de passivos históricos ou atitudes discriminatórias no presente. Igualmente, ratificaram a experiência de alguns programas de pós-graduação que já adotavam reserva de vagas para negros, indígenas e pessoas com deficiência, ampliando, assim, a diversidade étnica e cultural em seu corpo discente.
Ressalta-se a importância das cotas raciais na pós-graduação como parte de uma política de visibilidade que busca garantir a pluralidade de grupos e epistemes dentro da Universidade, conforme prefaciado por Nilma Lino Gomes:
A presença de estudantes negros e negras, quilombolas, indígenas nos cursos de pós-graduação do nosso país ilumina o campo acadêmico como outras epistemologias, culturas, vivências e corporeidades. Coloca o estudante de diferentes grupos étnico-raciais, idades, localização regional, gênero, diversidade sexual e experiência de vida, lado a lado na construção de um lugar democrático e de direito no campo da produção de conhecimento. E mais, possibilita outras formas de interpretar, analisar a realidade brasileira. (GOMES, 2020, p. 13).
A garantia da pluralidade implica no rompimento com o caráter elitista da universidade brasileira, cujo objetivo estabelecido tem sido o de sustentar a elite brasileira, a partir de conhecimento eurocêntrico e da monocultura do saber (SANTOS, 2007). Para Gládis Kaercher,
a universidade, na qualidade de instituição acadêmica, se crê universal. Não apenas na denominação linguística, mas na episteme dominante que atravessa e na pretensão de acolher, na completude, o humano em suas diversas dimensões. Com essa presunção, as Ciências, as Artes, as culturas das diferentes matrizes étnico-raciais sempre fingiram coabitar, de modo plural e democrático, os intramuros dos estabelecimentos de Ensino Superior. (KAERCHER, 2020, p. 23).
As ações de ruptura com a episteme dominante no espaço acadêmico, realizadas especificamente na Faculdade de Educação da UFRGS, possuem precedentes registrados, como considera-se a seguir:
[…] no caso do PPGEdu/UFRGS, destaca-se que o Programa já possuía uma prática de acolhimento, expressa na presença de estudos realizados por pessoas surdas, pessoas com deficiência, negras/os e indígenas. (MEINERZ; KARNOPP; BERGAMASCHI, 2020, p. 34).
A narrativa da história recente evoca o ano de 2016 como marco temporal em que a Coordenação do PPGEdu/UFRGS e a Comissão de Pós-Graduação em Educação (COMPÓS) instituíram um comitê que tinha como principal atribuição elaborar uma proposta de política de AF para ingresso e permanência de indígenas, negras(os) e pessoas com deficiência nos cursos de mestrado e doutorado. Neste primeiro momento, nomeou-se tal grupo como Comissão de Acompanhamento do Sistema de Reserva de Vagas do PPGEdu e designou-se funcionários, professores e estudantes para a sua composição. A Comissão iniciou o seu trabalho a partir do diálogo inicial com estudantes indígenas, negras(os), pessoas com deficiência “– em curso ou que já haviam concluído doutorado e mestrado em educação – bem como com os orientadores, que aportaram sugestões importantes para criar e implementar a política afirmativa” (PPGEdu/UFRGS, 2018). O grupo realizou intercâmbios e estudos de editais com programas de pós-graduação que já haviam implementado a política de reserva de vagas dentro e fora da UFRGS. Igualmente, estabeleceu um diálogo sistemático com os programas de pós-graduação da UFRGS que também estavam no processo de implementação da política afirmativa, destacadamente os grupos vinculados aos departamentos de antropologia social, história e sociologia.
A metodologia de trabalho da Comissão incluiu a realização de reuniões frequentes com estudantes e professores do PPGEdu, com o objetivo de elaborar uma política afirmativa de modo coletivo e ampliado. Registra-se a ocorrência de um painel para discutir a temática da AF na pós-graduação, que contou com a presença dos professores Dr. Sergio Baptista da Silva (PPGAS/UFRGS); Dr. Rogério Réus Gonçalves da Rosa (PPGA/UFPel) e Dr. Gabriel Banaggia de Souza (PPGAS Museu Nacional/UFRJ), no dia 23 de maio de 2016, com convite especial à comunidade acadêmica vinculada ao Programa (PPGEdu/ UFRGS, 2018).
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Após esse intenso trabalho, em 24 de outubro de 2016, em reunião ordinária do Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi aprovada por unanimidade a Resolução 01/2016 que instituiu o sistema de reserva de vagas. Segundo essa resolução, no mínimo 30% das vagas de cada linha de pesquisa seriam reservadas para candidatas(os) autodeclaradas(os) negras(os), indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, pessoas travestis e transexuais, para ingresso nos cursos de mestrado e doutorado.
O trabalho da comissão continuou durante a elaboração do Edital de Seleção do ano de 2017 juntamente com a COMPÓS, bem como durante o processo seletivo, intensificando a divulgação e realizando, em 2 de março de 2017, um seminário para assessorar, individual e coletivamente, candidatas e candidatos cotistas em suas possíveis dúvidas em relação às etapas do processo seletivo, às vagas de cada linha de pesquisa e professor(a) orientador(a).
No quadro de reserva geral de vagas disponível do site do PPGEDU/ UFRGS pode-se observar que o Programa fez a reserva de 38 vagas (11 para o doutorado; 27 para o mestrado), correspondendo a 31,9% das vagas ofertadas. Destaca-se que se inscreveram especificamente para sistema de reserva de vagas 78 candidatas(os): 16 para doutorado e 62 para mestrado, sendo que todas as linhas receberam inscrições. Foram selecionados 27 estudantes (5 DO; 22 ME) de todos os segmentos para os quais as vagas foram reservadas (PPGEdu/UFRGS, 2018).
Após esse primeiro edital,
[…] mudanças nos encaminhamentos ocorreram em função de debates e ajustes, provocados por embates de forças e restrições administrativas de uma instituição que prevê poucas aberturas para acolher diferenças. (MEINERZ; KARNOPP; BERGAMASCHI, 2020, p. 35).
A assertiva acima exige leitura atenta e retoma o argumento da disputa submetido no início do ensaio, referente ao fato de que a Universidade é um espaço de contestação da hegemonia e que tal atitude é protagonizada pelos grupos historicamente excluídos ou precariamente integrados a ela.
Reitera-se a necessidade de vigilância e continuidade dos embates para o avanço das políticas de Ações Afirmativas no PPGedu/UFRGS, em específico, e na pós-graduação de forma generalizada. A seguir, apresento a experiência inédita da organização e publicação do livro Reafirmando direitos: cotas, trajetórias e epistemologias negras e quilombolas na pós-graduação (DORNELES et al. 2020).
Registro agora a memória recente do processo de produção coletiva de um livro que surge da ação protagonista de um grupo de estudantes negros e negras, egressos do primeiro edital de ações afirmativas do PPGEdu/UFRGS. O grupo tinha como principal objetivo a escrita de uma obra que contasse as trajetórias dos indivíduos e as suas pesquisas, como meio de ressaltar a importância das políticas de AF na pós-graduação e contribuir para a sua manutenção e fortalecimento. Igualmente, desejava registrar a produção de uma pesquisa que se diferenciava pelos seus aportes teóricos, metodologias e epistemes próprias daqueles que se engajaram nas lutas por emancipação social por intermédio da educação.
A ideia do livro surgiu com o encontro de duas estudantes negras em uma sala de aula no PPGEdu/UFRGS. Inspirada em Paulo Freire (2016), defendo que tal encontro fez eclodir a potência necessária para transformar o inédito-viável em percebido-destacado. Vejamos, nas palavras do autor, o significado desses termos:
O “inédito-viável” é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um “percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade. (FREIRE, 2016, p. 279).
A partir desse primeiro encontro novas conversas foram amadurecendo a ideia de organização de um registro escrito como dever de memória, igualmente outros estudantes se incorporaram no processo. O resultado foi a consolidação de uma proposta para a publicação de um livro que versasse sobre as trajetórias dos(as) estudantes cotistas negros(as) e quilombolas do primeiro edital de seleção do PPGEdu/UFRGS/2017. A primeira reunião realizou-se em dezembro de 2018 e, a partir desta, com encontros periódicos, chegou-se até a conclusão do projeto e a frutificação por meio do lançamento do livro Reafirmando direitos: cotas, trajetórias e epistemologias negras e quilombolas na pós-graduação, com apoio da comissão de AF e da coordenação do programa.
A publicação apresenta as trajetórias de vida e de produção acadêmica destes cotistas, bem como seus estudos, pesquisas e vivências no campo da educação e das relações raciais no Brasil, marcando o impacto e importância das políticas de AF na pós-graduação. A publicação do livro tornou-se também um instrumento de comunicação e visibilidade das ações e debates sobre cotas na pós-graduação da UFRGS.
Nada de nós sem nós: epistemologias negras na pós‑graduação em Educação e a produção da pesquisa engajada
A obra tem como foco as escritas do primeiros cotistas negros(as) do Programa, com vistas a marcar este relevante passo inicial no avanço das políticas afirmativas, refletindo sobre a primeira experiência no PPGEdu/ UFRGS. Deseja-se que tal registro incentive futuros estudantes negros(as), quilombolas e de outros segmentos a ingressarem nos próximos editais de seleção, bem como realizarem pesquisas e publicações acerca do impacto das políticas de ações afirmativas na sua avaliação, manutenção e aprimoramento.
A qualidade acadêmica do livro foi algo que sempre esteve no horizonte do grupo, que assumiu para si a condução de sua produção. Assim, foi pensada uma estrutura de artigos que colocassem em evidência duas esferas: a trajetória do pesquisador e da pesquisadora e o relato da pesquisa realizada. Para atingir tal propósito, o grupo de trabalho estipulou orientações para a escrita dos artigos destacadas a seguir:
Parte I – Quem é, de onde veio, quais os caminhos que percorreu, como chegou até aqui.
• Introdução: apresentação da trajetória de vida e acadêmica, de quem fala.
• Como se sentiu ao ser contemplado com a vaga na pós-graduação por meio das Ações Afirmativas?
• Sobre o processo seletivo, as entrevistas, ser cotista, bolsista.
• Acolhimento da Universidade.
Parte II – seu estar enquanto pesquisador(a), sua pesquisa, sua relação com a pesquisa, como chegou até ela
• Sobre a pesquisa.
• Breve apresentação do tema da pesquisa.
• A pesquisa de campo (se houver).
• Trajetória, dificuldades encontradas, mudanças inesperadas (se houver).
Parte III – perspectivas futuras de pesquisa e vida, a importância das Ações Afirmativas, o que é estar neste primeiro edital
• A sua pesquisa provocou mudanças em você? Como? Por quê? (Dificuldades enfrentadas, etc.).
• O que mudou em você (consciência política, aprendizagens pessoais) desde sua entrada no mestrado/doutorado? Como se sente atualmente, sendo “quase mestre/doutor”?
• O que representou para si ser um(a) negro(a) cotista?
• Perspectivas (da vida pessoal e acadêmica) a partir da experiência vivida na pós-graduação como cotista.
• Envolvimento: a importância ou relação junto aos movimentos sociais.
• Considerações finais. Desejos, sentimentos sobre essa etapa.
A partir da recepção dos textos formulados pelas pesquisadoras e pesquisadores, buscou-se compartilhar iniciativas capazes de redefinir saberes em diferentes espaços da sociedade, engajados em movimentos sociais de combate ao racismo e discriminações correlatas. Tais pesquisas provocam o dever de memória, pois não relegam ao esquecimento importante experiência realizada na pós-graduação, tornando visíveis práticas sociais e conhecimentos não críveis a partir da perspectiva das monoculturas hegemônicas (SANTOS, 2007). O livro está comprometido com o combate ao que o autor chamou de epistemicídio, definido como
[…] a morte de conhecimentos alternativos. Reduz realidade porque “descredibiliza” não somente os conhecimentos alternativos, mas também de povos, grupos sociais cujas práticas sociais são construídas nesses conhecimentos alternativos. (SANTOS, 2007, p. 27).
A obra, por trazer textos que refletem a trajetória de estudantes em um programa de pós-graduação em Educação,
[…] convida o leitor a refletir a Educação, o que ocorre em diferentes lugares e de variadas formas. Visa pensá-la de modo amplo, profundo e inerente à vida. Tem como foco desfazer muros e romper paradigmas ao relacionar os conhecimentos ancestrais aos contemporâneos, que compõem os modos afro-brasileiros de ser. Nesse sentido, os textos publicados além de serem plurais em suas proposições, disposições e linguagens, visam sobretudo, fundir as milenares letras e narrativas à grafia dos mais jovens com o desejo de novas autorias, histórias e registros. (DORNELES, et al. 2020, p. 17).
Durante a organização do livro se tornou evidente a articulação entre a trajetória de vida dos autores com os seus temas de pesquisa . Ou seja, o engajamento das pesquisas com a concretude do cotidiano dos investigadores
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está registrado de forma a evidenciar o que considero como sendo pesquisa engajada. Fundamento-me em Gomes (2020) ao definir
[…] a produção engajada da intelectualidade negra como integrante do pensamento que se coloca contra os processos de colonização incrustados na América Latina e no mundo; movimento e intelectualidade negra que indagam a primazia da interpretação e da produção eurocentrada do mundo e do conhecimento científico. Questionam os processos de colonização do poder, do ser e do saber presentes na estrutura, no imaginário social e pedagógico latino-americano e de outras regiões do mundo. (p. 15).
Tal engajamento faz parte do entendimento gerado sobre a academia, o que implica uma responsabilidade com ele. Exige, igualmente, um compromisso com as comunidades de pertencimentos dos acadêmicos. Na visão de Marcos Terena (2013), por exemplo, “o doutor indígena será valorizado não por ter formação superior, mas por exercitar essa conquista dentro de uma ação de valorização de seu povo e perante seu povo” (p. 11).
A pesquisa engajada necessita de outras ferramentas teórico-metodológicas que tragam uma consonância entre meios e fins do ato investigativo. Se a metodologia está intimamente ligada com o fazer científico – da ciência moderna, da ciência hegemônica–, o modelo de construção de saber que conhecemos e por vezes fazemos uso é o modelo epistemológico dos vencedores (SANTOS, 2019). Evita-se uma visão reducionista da ciência moderna, mas considera-se sua validade na disputa, observada e questionada a violência com que já foi utilizada para descredibilizar outras maneiras de viver e de pensar, na busca pela hegemonia de um único modelo de rigorosidade científica. Tal hegemonia está desequilibrada pelo paradigma emergente e pelas epistemologias nascidas nas lutas por emancipação social, destacadamente protagonizadas por pessoas negras em movimento (GOMES, 2017).
A ciência busca meios de explicar e representar o mundo por meio de modelos de conhecimento que igualmente constroem os projetos de humanidade e de sociedade possíveis e em movimentos contínuos de transformação. Conhecer o mundo pode ser obter as condições materiais e subjetivas para transformálo num espaço equânime e democrático. As epistemologias dos vencedores por muito tempo criaram formas que nos impediram de representar o nosso mundo, ao não reconhecer como nossas as representações de mundo, as nossas narrativas sobre nós, ceifando, assim, as possibilidades de transformação da sociedade. Por isso reitera-se o lema nada de nós, sem nós.
A objetividade e a rigorosidade em nossas pesquisas como estudantes negros(as) significam representar a realidade que se está pesquisando, de maneira adequada, o que nada tem a ver com ser neutro, pois não existe neutralidade possível em uma sociedade imersa em tantas desigualdades. Tão logo, representar uma sociedade desigual de forma adequada requer uma pesquisa engajada que não negue o rigor metodológico, mas que saiba indicar onde está localizada ética e politicamente.
Considerações finais: resistência e dever de memória
Defendo as cotas raciais na pós-graduação no cumprimento de uma dupla função: a de reparação histórica e a de representatividade. Reparação histórica no que se refere ao passado de escravização e de racismo correlato ao colonialismo, assumida como dever do Estado e responsabilidade da sociedade civil comprometida com a diminuição e possível extinção das desigualdades sociais demarcadas pela racialização. Representatividade imputa diretamente o aumento da quantidade de pessoas não brancas em espaços de poder, ou seja, em espaços de decisão e de produção de conhecimento. Tais ações no âmbito da pós-graduação contribuem para o combate às desigualdades sociais e raciais e para a produção de conhecimento diversificado e plural do ponto de vista epistêmico. Diversificado tanto nos objetos estudados quanto nos sujeitos que estudam, trazendo olhares e referenciais distintos para consolidação da excelência acadêmica. Independente do objeto estudado, a pessoa negra tem um lugar de enunciação e um corpo diretamente ligado a ela, com uma subjetividade característica e diferente daquela experimentada pela branquitude.
É preciso entender a Educação como um bem público que contribui para a promoção da justiça e da equidade social, sobretudo quando realiza suas políticas com ética e respeito às culturas e ao meio ambiente. Pensar em democratização do Ensino Superior passa por pensar a democratização do acesso ao conhecimento e da gestão das instituições educativas, o que inclui debates como o da inclusão, o respeito à diversidade e as Ações Afirmativas.
Nesse sentido, a busca de novas experiências sociais e políticas de enfrentamento às múltiplas formas de dominação e exclusão significa um projeto político na perspectiva da dignidade humana. A Universidade, enquanto instituição social (Chauí, 2003), tem o compromisso de imaginar e experimentar outras configurações políticas e sociais, tendo como pressuposto repensar novas estruturas institucionais.
Nada de nós sem nós: epistemologias negras na pós‑graduação em Educação e a produção da pesquisa engajada
Encerro essa escrita afirmando que a reserva de vagas na pós-graduação não pode ser uma ação isolada e esperançando com o fato de que no ano de 2021 a Faced/UFRGS, por meio do Departamento de Estudos Especializados (DEE), aprovou em reunião plenária a criação da área de Educação das Relações ÉtnicoRaciais. Tal fato amplia a oferta da disciplina Educação e Relações Étnico-Raciais para distintos cursos na graduação da UFRGS, comprovando que a disputa pela equidade permanece pulsando em cada pessoa e grupo comprometido com o dever de memória e com a resistência ao projeto hegemônico A pesquisa engajada eclode das epistemologias negras nos registros da Faculdade de Educação e nos demais espaços ocupados esperançosamente pelos que lutam por democracia, justiça social e equidade racial.
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A EPB (Estudos de Problemas Brasileiros), como disciplina obrigatória nos cursos nas universidades brasileiras teve o seu ciclo. Foi inserida cinco anos após o Golpe de 1964 e sobreviveu por muitos anos. Começou em 1970 e se estendeu até 1993, em um total de 23 de existência, sendo que 15 anos foram durante a Ditadura Civil-Militar brasileira. A Comissão Nacional de Moral e Cívica (CNMC) foi fundamental para a existência da disciplina durante a Ditadura. Porém, mesmo com a extinção da Comissão, logo após o fim da ditadura em 1986, a disciplina de EPB manteve-se nas universidades. A EMC, Educação Moral e Cívica, e a OSPB, Organização Social e Política do Brasil, também permaneceram nos currículos das escolas, ainda durante os governos civis dos Presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. Essas disciplinas obrigatórias apenas foram eliminadas dos currículos no último governo mencionado, ou seja, em 1993. Isso indica que a EPB não era um projeto só de militares, mas também de civis vinculados a esse projeto da ditadura brasileira.
A trajetória da EPB iniciou no Brasil e na UFRGS no tempo da consolidação da “Revolução de 64”, que foi no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970. Na ótica da Ditadura Civil-Militar havia uma preocupação com os costumes dos brasileiros, em especial os que envolviam o civismo. Também tivemos o início
de um novo ciclo repressivo, que se aprofundou com o governo de Emilio Garrastazu Médici (1969-1974). Nesse contexto, a juventude nas universidades tornou-se o alvo do ensino de civismo e valores morais. Era o tempo da Guerra Fria, da orquestração de projetos para a América Latina por parte da política externa norte-americana, visando combater o inimigo interno que poderia estar simpatizando com o comunismo. Sob essa perspectiva, o cidadão brasileiro “precisava” ser educado nas escolas e universidades para tornar-se um cidadão “bem-comportado” dentro dos moldes da segurança e desenvolvimentismo nacional. Era necessária, na preocupação da ditadura, uma educação política que envolvesse também valores tradicionais como a pátria, a família, a religião e incluísse a moral cristã. Para tanto, foi criada a Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC) em 12 de setembro de 1969 (Decreto-Lei no 869/69), a qual só foi extinta por intermédio do Decreto no 93.613, de 21 de novembro de 1986, no período da Nova República.
No entanto, as disciplinas Moral e Cívica, EPB I e EPB II continuaram funcionando nas escolas e universidades, respectivamente, até 1993, quando a Câmara dos Deputados derrubou a obrigatoriedade delas com a Lei no 8663, de 14 de junho. Esta extinção aconteceu por intermédio de um substitutivo do deputado Raul Pont do PT do Rio Grande do Sul e abrangeu, inclusive, a disciplina de OSPB (Organização Social e Política Brasileira). A extinção desta última, ao que tudo indica, acabou ocorrendo de última hora, pois não tinha relações diretas com a proposta da Comissão Nacional de Moral e Civismo. A OSPB havia sido criada em 24/04/1962 por meio da Indicação n° 1 do CEF (Conselho Federal de Educação), no período em que o governo do país era parlamentarista e Tancredo Neves ocupava o cargo de Primeiro-Ministro do então Presidente João Goulart, e tinha como objetivo ensinar cidadania, princípios e valores políticos aos estudantes nas escolas (VIEIRA, 2016, p. 1).
Adesões, resistências e também indiferenças em relação à EPB aconteceram durante a ditadura, mas após, a EPB teve, de certa forma, a sua presença de forma inercial. Essa inércia deve-se ao fato de a disciplina interessar a uma fração conservadora da sociedade brasileira. Esse conservadorismo priorizava o civismo e restringia a cidadania, e, além de enaltecer as realizações da ditadura, atendia parâmetros conservadores e tradicionais da sociedade brasileira. Entre 1986 e 1993, nesse período inercial da EPB, procurava-se remover o chamado entulho autoritário, o que aconteceu de forma gradual.
Na Ditadura Civil-Militar brasileira, o civismo foi levado ao cidadão como um ingrediente muito importante pelo fato de ter nessa ditadura a necessidade de procurar sua legitimidade devido a sua excepcionalidade e o seu cunho
autoritário. Via Doutrina de Segurança Nacional, trazida pela ESG, Escola Superior de Guerra, para o contexto da educação, procurava-se dar organicidade ideológica por meio do ensino do civismo e da moral, processo que se desenrolava concomitantemente à restrição à cidadania. Na medida em que se incentivava o civismo, a ditadura impunha restrições à cidadania de uma forma obscura, como se o civismo fosse cidadania. A pergunta que vem à tona sobre esse aspecto na Ditadura Civil-Militar brasileira é se poderia haver um equilíbrio entre o civismo e cidadania, quer dizer, formar cidadãos no civismo sem restringir a sua cidadania. Possivelmente, o ingrediente moral incluído via decreto-lei teve muita força para a criação dessa restrição à cidadania brasileira.
O civismo, por sua vez, era incentivado como um componente moralizante e, assim, era valorizado o cidadão que se enquadrava na cartilha ditada pelo Decreto-Lei no 869/69, que criou esse ensino. O civismo tornou-se seletivo, definindo um bom cidadão ou “cidadão de bem”, sem considerar, em seus direitos, a cidadania como fundamental. Não se estimulava a cidadania substantiva, mas considerava-se a formal, que era o civismo. Assim, a cidadania – que implica em que o Estado reconhecesse que o cidadão tem o direito de ter direitos, sejam eles civis, políticos ou sociais – teve pouca importância no ensino da EPB. Por sua própria natureza, o ensino de EPB veio pronto, como uma cartilha programática ditada ao estudante, restringindo assim os direitos do estudante nas universidades. A EPB foi um projeto que procurou mostrar as realizações da ditadura no contexto de intensificação da repressão política, perseguições ideológicas, falta de liberdade de expressão, censura à imprensa, à cultura, à música, no teatro, no cinema, etc. Propunha estudar a realidade nacional, levando em conta princípios religiosos, de democracia e liberdade, na versão da ditadura, de formação moral e cívica do brasileiro. Essa abordagem do Brasil, levada para ser problematizada em salas de aula nas universidades, gerou indiferenças, resistências e, também, consentimentos. Mas também gerou um sentimento de “esperar deixar passar”. Esse sentimento, no fundo, foi uma indiferença silenciosa e beirava o querer esquecer, que também pode ser chamado de “zona cinzenta”, e teve reflexos na inércia da existência da EPB nos governos civis pós-ditadura. Por que não considerar os reflexos dessa tendência ao esquecimento, resultado do deixar passar, uma indiferença, para as dificuldades que a consciência do cidadão possui até hoje?
Questionamentos existiam em torno da EPB na UFRGS. Também resistências contra esse ensino. Ao lado da organização dessa disciplina como um setor junto ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), e inclusão dela nos currículos dos cursos de
graduação e oferecimento a turmas de pós-graduação, existia outra universidade que se matriculava na EPB e precisava cursá-la para se formar, além de uma certa negação desse ensino no meio universitário de forma geral. Ao lado de resistências, a EPB também teve adesões e existiam também indiferenças. Na adesão, havia a consideração da importância do estudo da atualidade brasileira, e a resistência acontecia principalmente no campo político, tendo em vista que se tratava de uma disciplina do projeto educacional da ditadura em vigor. E a indiferença ficava no lugar de que não adiantava resistir, pois era importante esperar deixar passar o que veio de cima. Assim, a EPB esteve cercada de duplicidades, sendo inclusive a indiferença uma forma de resistir.
No universo ditatorial brasileiro de 1964 a 1985, a cidadania sofreu restrições e o civismo teve incentivo. Ambos, obviamente, não iniciaram nesse período histórico, mas tiveram suas características próprias nesse período. A “problematização” dos estudos brasileiros era feita a partir de uma ótica cívica e moral, evidenciando, nas universidades, um caráter de obediência ao que vinha de cima e suscitando diferentes reações como resistências, consentimentos e indiferenças. Livros e artigos que já foram publicados em torno desse período trazem aspectos que retratam a vida acadêmica nas universidades e o contexto universitário da EPB e de suas práticas educativas. No entanto, a cidadania teve seu exercício limitado por uma política de civismo que tinha objetivos políticos vinculados à Ditadura Civil-Militar implantada desde 1964.
O Decreto-Lei no 869 de 12 de setembro de 1969 (BRASIL, 1969), que inseriu obrigatoriamente a EMC em todos os currículos com a criação da CNMC, foi resultado de estudos de um Grupo de Trabalho da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra e assinado pela Junta Militar, que havia assumido provisoriamente a Presidência da República no lugar do General Costa e Silva (BRASIL, 2016). Este Decreto-Lei surge no contexto da Reforma Universitária de 1968, instituída por meio da Lei no 5.540, que, no seu artigo 40, dispõe sobre a formação cívica (BRASIL, 1968). Já os currículos, programas e regras para os professores de EMC foram definidos em 1971 pelo Decreto-Lei no 68.065/71 (e pela Resolução no 94/71 do Conselho Federal de Educação), vinculados à preocupação com a segurança nacional, seus valores morais e cívicos (BRASIL, 1971).
Com a criação da Comissão Nacional de Moral e Civismo, em 1969, foram estabelecidas suas finalidades e as recomendações para a educação cívica e moral. Estas recomendações estão nos Decretos-Lei no 869-69 e no 68.065, de 14 de janeiro de 1971, o último regulamenta o primeiro:
Artigo 1° – É instituído, em caráter obrigatório, como disciplina, e também como prática educativa, a Educação Moral e Cívica nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no país.
Artigo 2° – A Educação Moral e Cívica apoiando-se nas tradições nacionais tem como finalidade:
a) A defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;
b) A preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos de nacionalidade;
c) O fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;
d) O culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos vultos de sua história.
e) O aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade.
f) A compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o reconhecimento da organização sócio-política-econômica do País;
g) O preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;
h) O culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade.
§ Parágrafo único. As bases filosóficas de que trata este artigo, deverão motivar:
a) A ação nas respectivas disciplinas, de todos os titulares do magistério nacional, público ou privado, tendo em vista a formação de consciência cívica do aluno;
b) A prática educativa da moral e do civismo nos estabelecimentos de ensino, através de todas as atividades escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas brasileiros, atos cívicos, promoções extraclasse e orientação dos pais.
Art. 3° §2° No sistema de ensino superior inclusive na pós-graduação a Educação Moral e Cívica será realizada como complemento sob a forma de “Estudo de Problemas Brasileiros, sem prejuízo de outras atividades culturais visando ao mesmo objetivo. (BRASIL, 1969; 1971).
A EPB foi inserida como um complemento em um contexto educacional mais amplo, que foi o do ensino da moral e civismo como disciplina e prática educativa. Os parâmetros estabelecidos se referiam às tradições nacionais e princípios democráticos e religiosos, valores éticos e espirituais vinculados ao nacionalismo, visando o fortalecimento da unidade nacional e o sentimento de culto à pátria. O cidadão é inserido nessa decretação de lei e lembrado no
contexto da compreensão dos seus direitos e deveres e também no exercício de atividades cívicas vinculadas à moral e ao patriotismo.
A proposta da EPB como um ensino vinculado ao projeto da Ditadura Civil-Militar brasileira na área da educação foi marcada pela verticalidade, inclusive com programa de conteúdos a serem cumpridos. Aconteceu uma sobreposição de sistemas, desde o âmbito federal, com a Comissão Nacional de Moral e Civismo, até a organização de seu ensino em sala de aula.
Na UFRGS, não se percebeu que houvesse autonomia dos professores nos conteúdos que trabalhavam em sala de aula. A seleção de seus professores era feita via análise de currículos vitae na Superintendência Acadêmica (SUPAD), que já avaliava quem estava apto para ser professor de EPB na Universidade. Houve uma significativa rotatividade de professores. Alguns ficavam por poucos semestres e outros por longo tempo. O papel do coordenador, Professor Richter, no início da EPB na UFRGS era centralizado e a sua atuação junto à SUPAD determinava os rumos da EPB. O perfil inicial da disciplina na instituição se manteve depois com a implantação da EPB em 1972, como disciplina do 1° Ciclo. Foi desdobrada em duas disciplinas, a EPB I e a EPB II e funcionou assim até a sua eliminação. Ainda em 1992, por exemplo, nas súmulas do catálogo de cursos da UFRGS, as EPBs tinham conteúdos da Ditadura, como: introdução doutrinária; desenvolvimento integral e segurança nacional; campo psicossocial; campo técnico-científico; campo militar; as forças armadas, entre outros temas.
A tese que apresentei na pós-graduação da UFRGS, em 2019, com a qual conclui o doutorado em história, reconstitui a trajetória da EPB na UFRGS.
A tese está disponível no SABI – Sistema de Automação de Bibliotecas da UFRGS – junto à BIBICSH – Biblioteca de Ciências Sociais e Humanidades da UFRGS – com o título A disciplina de EPB – Estudos de Problemas Brasileiros na Ditadura Civil-Militar brasileira – 1970/1993: o caso da UFRGS . Nesse artigo, trago alguns temas da tese (UFRGS, 2019).
A disciplina de EPB foi implantada na UFRGS por um grupo-tarefa no ano de 1971. Os professores que fizeram parte desse grupo se basearam nos Decretos-Lei no 869/69 e no 68.065/71 do Governo brasileiro e no Parecer no 94/71 do Conselho Federal de Educação, para inserir e planejar a EPB na UFRGS. Esse grupo-tarefa, organizado pela Superintendência Acadêmica, escolheu a experiência do ensino de uma disciplina na Faculdade de Engenharia,
A EPB (Estudos de Problemas Brasileiros) na UFRGS
a disciplina de Humanidades, vinculada a Henrique Richter, professor desta disciplina, para implantar a EPB na UFRGS. O professor se tornou protagonista da EPB na UFRGS, pelo menos até 1979. Na Faculdade de Filosofia, havia uma disciplina com o nome de Estudos Brasileiros, que poderia servir de modelo para essa implantação. Mesmo a EPB tendo sido incluída como setor e disciplina no Departamento de Ciências Sociais do IFCH, o ponto de partida veio da Faculdade de Engenharia, o que revela que a EPB, mesmo tendo sido incluída no IFCH pelos seus professores e como disciplina, não teve muita organicidade nessa unidade universitária.
Assim, na sequência, atendendo ao Decreto-Lei, a SUPAD criou, pela Portaria no 5 de 22/3/1971 (UFRGS, 1971), um grupo-tarefa para planejar a disciplina de EPB na UFRGS. Fizeram parte deste grupo-tarefa os professores Henrique Richter, Luiz Carlos Mesquita Rothmann, Luiz Alberto Cibils e José Francisco S. Felice. Como uma das primeiras iniciativas, a disciplina de Humanidades da Escola de Engenharia foi modificada para EPB, com aval de sua Comissão de Carreira. Durante o ano de 1971, a EPB na UFRGS funcionou com atividades, palestras e cursos junto à Reitoria e às Unidades Acadêmicas. Foram realizados cursos de emergência que se consolidaram como disciplinas em 1972, com a criação do 1° Ciclo (ou Ciclo Básico). Esse foi criado em dezembro de 1971 e começou a funcionar no 1° semestre de 1972, no qual foi inserida a disciplina “Pre-102-EPB”, ao lado das outras disciplinas do ciclo inicial na Universidade. Ainda em novembro de 1971, no contexto dos cursos de emergência, foi realizada a primeira exposição de trabalhos sobre EPB no 2° andar da Reitoria com uma seleção de 600 trabalhos de mais de dois mil alunos da UFRGS. Foi realizada também uma 2ª exposição em 1972, a “Expo72” (UFRGS, 1972).
A Coordenação de EPB foi vinculada ao Departamento de Ciências Sociais, uma vez que o seu coordenador, Prof. Richter, pertencia a este departamento. Mas, ao mesmo tempo, existia a Comissão de Moral e Civismo, vinculada à SUPAD, coordenada também pelo mesmo professor. A primeira executava o ensino junto aos cursos e a segunda se preocupava, além do ensino, com demandas cívicas e morais e com atividades fora da sala de aula. A atuação do Prof. Richter era decisiva em ambas as frentes. Ele registra, em tom de desabafo, a dificuldade que a disciplina encontrava na UFRGS. Refere-se à “oposição que a disciplina possui na sua finalidade na educação moral e cívica”, atribuindo isto a “suspeita de intenção política do governo através da EPB”. Richter também lembra, em relatório, que isto acontece devido “ao sentimento de falso pudor que caracteriza a maioria dos brasileiros de reconhecerem o amor a uma pátria
invejada por tantos povos”. O coordenador também reclama que foi difícil conseguir professores para a disciplina, assim como a adesão dos estudantes. No geral, os alunos reclamavam por maior profundidade nas aulas e mais conhecimento dos professores. Mas, ainda de acordo com Richter, o legislador teria conseguido a maior meta, que foi conscientizar os alunos para a importância do estudo dos problemas nacionais (UFRGS, 1972).
Em 31 de março de 1971, no 7° aniversário da “Revolução”, conforme consta no ofício do grupo-tarefa (UFRGS, 1971) assinado pelos seus membrosprofessores Luiz Carlos Rothmann, Luiz Alberto Cibils, José Sanchotene Felice e Henrique Richter, são divulgadas as regras para a implantação da EPB na UFRGS. Destacam os professores que essas regras deveriam começar para os cursos de graduação e pós-graduação em 07/04/1971. Nos cursos de graduação, as disciplinas deveriam funcionar em dois semestres, com uma carga mínima de duas aulas semanais, sendo para os demais cursos apenas um semestre, como para a pós-graduação. Nenhum aluno poderia se formar sem a comprovação de ter cursado a EPB. Seria lançado um livro-agenda segundo a técnica analíticainteracional de autoria do Prof. Henrique Richter para servir de suporte para as aulas. Ficou pendente, conforme o ofício do grupo-tarefa, a instalação do Centro Cívico, o qual aguardaria uma ordem superior (UFRGS, 1971).
No 1° Ciclo, (prédio do Ciclo Básico), a EPB assumiu a sua trajetória como disciplina regular, a partir de 1972. Tendo sido incluída nos currículos dos cursos de graduação, foi institucionalizada a sua obrigatoriedade para fins de obter diplomação em curso de graduação. A partir dessa data, o estudante da UFRGS deveria cursar a EPB I no primeiro semestre dos cursos de graduação (que no início tinha o código de “Pre-102”) e a EPB II no último semestre dos cursos, sendo a primeira EPB pré-requisito da outra. Era facultado ao estudante adiantar a EPB II na sua seriação semestral do curso. Nas pós-graduações, eram formadas turmas a partir das demandas dos cursos, mas também se exigiam a EPB I e a EPB II. Legalmente, a formação de duas disciplinas não era uma exigência, sendo essa uma escolha da UFRGS.
Paralelamente ao ensino de EPB, foi criado o Centro Superior de Civismo na UFRGS, no contexto das comemorações do Sesquicentenário da Independência brasileira, no ano de 1972 (UFRGS, 1972). O Decreto-Lei no 68.065 estabeleceu que caberia à CNMC estimular a criação de centros cívicos nos estabelecimentos de ensino de todos os níveis, públicos e particulares. O papel de tais centros, realça Motta:
Seria destinado à centralização no âmbito escolar e à irradiação na comunidade local das atividades de educação moral e cívica, e à cooperação na formação ou aperfeiçoamento do caráter do educando. Seu papel era de estimular a comemoração das datas patrióticas e a observação de rituais cívicos, entre outras iniciativas do gênero. (MOTTA, 2014, p. 187).
Na busca de memórias em torno da EPB na UFRGS, entrevistas realizadas junto à minha tese, referida anteriormente, trouxeram aspectos relevantes sobre a disciplina na UFRGS. Os entrevistados (René Ernaini Gertz, Flavio Borella, Maria Izabel Saraiva Noll, Lorena Holzmann, Ondina Fachel Leal, Raul Pont), relataram aspectos como: que cursar a EPB como aluno foi uma obrigação desnecessária; que a EPB não precisaria ser tão adesista ao projeto educacional da ditadura; que o Projeto Rondon, que acontecia paralelamente à EPB, foi muito importante para a formação, no caso, do entrevistado; que as aulas da EPB eram palestras; que se ouvia falar muito pouco da EPB e dos conteúdos que ela ensinava; que era importante resistir à EPB no meio estudantil e que a EPB, como um ensino, seria importante na formação do estudante desde que não excluísse a cidadania do seu conteúdo. A escolha dos entrevistados foi feita a partir de informações recebidas do arquivo da EPB da UFRGS, em seus relatórios e registros, e também a partir de conversas acontecidas em torno da EPB no decorrer da pesquisa e estudo da tese. Uma característica que chamou a atenção é que os entrevistados afirmavam, já no primeiro contato e depois na própria entrevista, que não tinham muito a trazer para o tema. Mas, à medida que a conversa avançava, com um pequeno roteiro e livre conversa, as memórias foram despertadas, e aconteceram ricas entrevistas.
A EPB na UFRGS tinha, de certa forma, várias “realidades” que prevaleceram até a sua eliminação no ano de 1993, que puderam ser exploradas por intermédio das entrevistas. Quando da sua eliminação na UFRGS, a EPB seguiu um percurso de poucas resistências, sendo quase unânime a sua extinção da Universidade. Em especial, porque a EPB ainda carregava o peso de ser parte de um entulho autoritário vindo dos anos de 1970. E isso também apareceu muito bem nas entrevistas.
O livro-agenda (Figura 1) foi utilizado em aula nos anos de 1970, com conteúdos da realidade brasileira, de moral e de civismo. O olhar segue a orientação para tópicos, como a metodologia em sala de aula, as avaliações, a prática educativa, os conteúdos ensinados, o ensino de EPB numa instituição militar, e os livros de EPB publicados por diferentes editoras. Em relação ao trabalho em sala de aula, devido à grande quantidade de estudantes, uma questão enfatizada pelo coordenador no relatório do primeiro semestre de 1972 foi a adaptação de um “livro-agenda”, que seria prático, tanto para as classes numerosas, no caso do primeiro ciclo, quanto para grupos reduzidos, como acontecia na pós-graduação, que utilizaram a técnica analítica-interacional. Ela combateria o hábito de longas anotações, obrigaria a uma síntese mental e permitiria atender ao espírito do legislador. Justificando o uso do livroagenda, Richter (UFRGS, 1971) afirma no relatório que “o estudo não é apenas disciplinas, mas também deve realizar uma prática educativa”.
Com isso, o livro-agenda seria uma alternativa segura de ensino para entender os assuntos da problemática brasileira. Esse livro foi usado nos primeiros anos do ensino da EPB na UFRGS, sendo, aos poucos, abandonado. Por ter sido elaborado pelo coordenador da disciplina e publicado pela UFRGS, o livro teve reconhecida a sua oficialidade complementar no ensino obrigatório da EPB na UFRGS. O livro, editado pela editora da UFRGS, “URGS” na época, trazia conteúdos selecionados pelo seu autor, o próprio coordenador da EPB na Universidade. Havia também o destaque de uma folha para respostas a partir do assunto da aula, que era entregue no final da aula. Essa rotina possivelmente afetava o cotidiano das aulas de EPB, deixando os alunos apreensivos para adquirir o livro e para cursar as EPBs.
Os professores da EPB eram selecionados junto à Superintendência Acadêmica (SUPAD), que equivale à atual Pró-reitoria de Gradução (PROGRAD), com análise de currículos. A formação dos selecionados era bem diversificada, e estava presente na escolha a seleção de professores que pudessem cumprir os propósitos definidos para o ensino da EPB, pelo decreto-lei, dentro dos parâmetros cívicos e morais. O setor da EPB, junto ao Departamento de Ciências Sociais, era coordenado pelo Prof. Henrique Richter, do Departamento de Ciências Sociais, nos seus anos iniciais, e consta nas atas do Colegiado do Departamento de Ciências Sociais do IFCH que o último ano de participação de Richter como coordenador do setor da EPB foi 1978, quando se aposentou na UFRGS. Em 1979, um oficio encaminhado pela Profa. Lirian Furtado possui um “de acordo” do Professor Richter, porém, nas mesmas atas, consta que o Professor Luis Alberto Cibils (que era professor do Departamento de Ciências Sociais e não da EPB) atuou como coordenador da disciplina em 1979, ficando nessa coordenação até 1985. Cibils foi substituido pela profa. Lirian Furtado, que exerceu o cargo de 1985 a 1992. Em 1992, assumiu o Professor Egon Frederico Steyer, ficando no cargo até a extinção da EPB na UFRGS, em 1993 (UFRGS, 1992).
Enquanto coordenador, Richter assumiu amplas funções vinculadas à EPB, como a de coordenador da Moral e Civismo, junto à SUPAD; professor e membro do colegiado do Departamento junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) no Departamento de Ciências Sociais; e na criação do Centro Cívico na UFRGS, no contexto das comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil, em 1972.
No Arquivo da EPB, Richter registrou documentos para fins profisssionais, que constam uma parte de sua formação, tanto em artes, sociologia e educação. Chama a atenção que, fora da Universidade, o professor destacou ter exercido
a presidência da Juventude Católica da Arquiocese de Porto Alegre. O que tem relevância em torno do que realmente foi exigido junto à proposta legal vinda para a EPB, de uma formação, além de cívica, igualmente religiosa. Também aparece sua vinculação, além da UFRGS, com a PUCRS e sua inserção na UFRGS via Departamento de Ciências Sociais, mas atuando junto à SUPAD com atividades cívicas e na Faculdade de Engenharia com a disciplina de Humanidades (UFRGS, 1972).
Provavelmente, havia alguma exigência e avaliação por parte da Reitoria e da CNMC para a escolha de quem preencheria a Coordenação Geral do Setor de Moral e Civismo junto à SUPAD. Diz o Professor Richter em relatório datado de 15 de julho de 1972, “se o Brasil foi chamado ‘País do Futuro’, aqui caberá dizer, também, que o futuro chegou”.
O processo da
A EPB fez parte do contexto mais amplo, que foi a transição da Ditadura
Civil-Militar brasileira para os governos civis, a partir de 1985. As políticas educacionais da ditadura foram consideradas parte do chamado “entulho autoritário” e, portanto, precisavam, junto com esse, ser removido. Assim, o governo do Presidente José Sarney (de 15 de março de 1985 a 15 de março de 1990) atuou nesse sentido, em 1986, extinguindo a CNMC em 21 de novembro por meio do Decreto-Lei no 93.613. A comissão foi extinta numa remoção de órgãos da estrutura do MEC por meio desse decreto, com justificativas vinculadas ao MEC.
No entanto, a extinção da CNMC e a eliminação das disciplinas de EMC, OSPB e EPB em nível nacional não andaram juntas. A extinção da comissão não se estendeu para a eliminação das disciplinas de Educação Moral e Cívica, OSPB e EPB, existentes nas escolas e universidades. Essas tinham sido regulamentadas como disciplinas por meio do Decreto-Lei no 68.065 de 1971 e foram desdobradas em disciplinas nos vários níveis de ensino pelo Parecer nº 94, de 4 de fevereiro de 1971, do CFE, com fundamento no Decreto-Lei no 869/69. Estas decretações e regulamentações trouxeram longevidade para a EPB, para além do período da Ditadura Civil-Militar, mesmo nos governos civis, ficando até 1993. Algumas universidades, entre elas UFRGS, UFV, UFMG, UFRJ e UnB, eliminaram a EPB antes da decisão do Congresso Nacional, em 1993. Tal decisão se deu apoiada na nova Constituição Brasileira de 1988, que, no seu
artigo 207, define a autonomia universitária dizendo: “As Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988). Na consideração desse argumento, houve também o questionamento da imposição do caráter de disciplina da EMC, OSPB e EPB, uma vez que as Diretrizes Gerais do Ensino apenas definem a matéria e não disciplina. Assim sendo, a imposição ocorrida feria a autonomia das universidades, uma vez que estas assim poderiam ensinar e/ou inserir os conteúdos propostos como matéria e não como disciplina. Houve, no processo de extinção, tanto da CNMC como das disciplinas, pouca mobilização, sem consultas ou pesquisas de opinião, por exemplo. Apenas o Conselho de Reitores de Universidades Brasileiras (CRUB) manifestou a sua repulsa à EPB, conforme os registros junto ao parecer, questionando a falta de autonomia e a existência de uma disciplina compulsória nas universidades.
O impacto efetivo desse ensino da EPB, conforme Motta, é difícil de avaliar: “no caso das universidades, o mais provável é que tenham tido alcance limitado, graças à impopularidade do Regime Militar e à atração dos valores de esquerda, que seguiram marcantes até os anos 1980” (MOTTA, 2014, p. 192).
O autor também se refere a jogos de acomodação:
Para os dirigentes e demais membros da comunidade universitária, entre os dois polos, resistência ou adesão, havia possibilidades intermediárias. Muitos procuraram maneiras de se acomodar ao novo sistema de poder, sem que isso significasse, a seus olhos, qualquer compromisso com a ditadura. (MOTTA, 2014, p. 310).
Assim, em 14 de junho de 1993, o Presidente Itamar Franco assinou a Lei n° 8.663, que revoga o Decreto-Lei n° 869 de 12 de dezembro de 1969. A trajetória da EPB se encerra legalmente nesses 23 anos, seis meses e dois dias, o que trouxe um certo alívio às universidades, pelo menos naquelas que já tinham se antecipado a essa eliminação, nos termos da autonomia universitária, baseados no artigo 207 da Constituição de 1988. A Lei n° 8.663/93, assinada pelo Presidente da República Itamar Franco, diz:
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art 1°. É revogado o Decreto-Lei n° 869 de 12 de dezembro de 1969, que dispões sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País e dá outras providências.
Art 2°. A carga horária destinada às disciplinas de Educação Moral e Cívica de Organização Social e Política do Brasil e Estudos de Problemas Brasileiros, nos currículos do ensino fundamental, médio e superior, bem como seu objetivo formador de cidadania e de conhecimento da realidade brasileira, deverão ser incorporados sob critério das instituições de ensino e do sistema de ensino respectivo às disciplinas da área de ciências humanas e sociais. Art. 3°. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 4°. Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 14 de junho de 1993, 172° ano da Independência e 105° da República. Itamar Franco. (BRASIL, 1993).
A eliminação da EPB na UFRGS aconteceu antes da Lei nº 8.663/93, referida acima. Tal eliminação teve o seu início em 12 de julho de 1990, com a abertura do Processo n° 23070.025477/90-75, que foi encaminhado pela PROGRAD ao Reitor, e professor. Tuiskon Dick, que o encaminhou ao COCEP solicitando o exame da proposta de eliminação da obrigatoriedade universal das disciplinas de EPB nos cursos de graduação e pós-graduação da UFRGS a partir de 1991. Ainda em 1992, as disciplinas de EPB I e EPB II na UFRGS tinham súmulas com conteúdos que vinham da Ditadura Civil-Militar brasileira. Por exemplo, nos catálogos de cursos da UFRGS de 1992 constam as seguintes súmulas da EPB I e da EPB II: HUM 464-EPB I – Introdução doutrinária: desenvolvimento integral e segurança nacional. A constituição. Política e valores transitórios. Justiça social. Problema educacional qualitativo. Visão global da cultura brasileira. Campo político: características da política externa. As instituições: ONU, OEA, Defesa civil e proteção comunitária; HUM 401 –EPB II: campo econômico: a economia brasileira, estrutura e funcionamento. As estruturas econômicas contemporâneas. Campo técnico-científico: a ciência e a tecnologia no desenvolvimento integral. Educação e desenvolvimento, campo militar: as forças armadas. Mobilização e informação. Defesa territorial. Soberania, integridade e unidade nacional (UFRGS, 1992).
Paralelamente a esta eliminação, aconteceu a reestruturação do Departamento de Ciências Sociais. O pró-reitor de graduação, professor Darcy Dillenburg, sob Ofício n° 0528/90, e por meio do Processo n° 23078.023291/8901, encaminhou ao Reitor Tuiskon Dick, em 06 de julho de 1990, a solicitação dessa reestruturação. E, em 09/08/1990, o Reitor encaminhou esse pedido também ao COCEP. Nesse pedido, no ofício referido acima, o Prof. Dillenburg
faz referência ao Instituto de Ciências Humanas que, ao discutir a reestruturação do Departamento de Ciências Sociais em três Departamentos (Sociologia, Antropologia e Ciência Política), tem dificuldade em relação à definição do Setor de Estudos de Problemas Brasileiros, que integra o atual Departamento, conforme declarou Dillenburg no ofício:
O problema levantado nesse contexto enseja o exame da questão sob outro ângulo, a saber: o da relevância da disciplina obrigatória de Estudos de Problemas Brasileiros (EPB) nos currículos de graduação e de pós-graduação da UFRGS […] hoje em dia, questiona-se fortemente a disciplina de EPB como espaço adequado à reflexão crítica sobre os problemas do país e constata-se acentuado desinteresse dos estudantes por ela. Do ponto de vista acadêmico, a disciplina ressente-se do fato de não constituir uma área de conteúdo intelectual próprio, o que se reflete, por exemplo, na dificuldade de encontrar canais adequados de qualificação do corpo docente. (UFRGS, 1990).
O professor enfatizou, ainda, que existem na UFRGS outras formas de promover a formação dos estudantes sobre as questões nacionais, isto é, por meio de disciplinas já existentes e atividades de extensão. Enfatiza, também, a autonomia didático-científica da Universidade, aludindo que a eliminação da obrigatoriedade universal das disciplinas de EPB também contribuiria para o descongestionamento da carga horária dos alunos e da demanda de espaço para aulas, entre outras coisas. Quanto aos professores da EPB, poderiam ser lotados em outros departamentos, de acordo com a sua qualificação. Essa proposta, no COCEP, foi encaminhada à Comissão de Diretrizes Gerais e Prioridades do Ensino e Pesquisa (CDGPEP), que, levando seu Parecer ao Plenário do COCEP, com a Resolução n° 09/92, de 27 de maio de 1992, decidiu pela criação dos três novos departamentos, ficando a EPB como residual no Departamento de Ciências Sociais.
A decisão sobre a eliminação da obrigatoriedade universal da EPB na UFRGS aconteceu em 17 de abril de 1991, por meio da Resolução n° 08/91 do COCEP, antes da decisão sobre a reestruturação do Departamento de Ciências Sociais. O processo foi aberto antes do processo da eliminação da EPB e ficou em compasso de espera de uma decisão em torno da eliminação. Assim, eliminou-se antes a EPB como disciplina no Departamento de Ciências Sociais, para depois resolver o que fazer com os professores da EPB que estavam lotados nesse departamento.
O Parecer dessa eliminação foi aprovado por unanimidade em 17 de abril de 1991, sendo formulada a seguinte Resolução:
RESOLUÇÃO N° 08/91
O Conselho de Coordenação do Ensino e da Pesquisa em sessão de 17.04.91, tendo em vista o constante no processo n° 23078.025477/90-75, nos termos do Parecer n° 49/90 da Comissão de Legislação, Regimento e Recursos
RESOLVE:
1 – que ESTUDOS DE PROBLEMAS BRASILEIROS integre como matéria, e não mais como disciplina, o currículo dos cursos superiores da UFRGS;
2 – que a definição das disciplinas ou atividades que atendam às exigências de discussão e vivência de problemas brasileiros deve ser atribuída a cada Comissão de Carreira e às Comissões Coordenadoras dos Cursos de Pós-Graduação, com a aprovação das respectivas Câmaras.
Porto Alegre, 17 de abril de 1991
Tuiskon Dick – Reitor. (UFRGS, 1991).
Na sessão do COCEP de 17 de abril de 1991, conforme consta na Ata n° 341, a situação dos alunos que já cursaram ou que estão cursando as disciplinas de EPB ficaria inalterada até que as Comissões de Carreira decidissem diferentemente. Fachin sustentou que cada curso poderia decidir em torno do que achasse mais conveniente e lembrou que a autonomia universitária se tornara fato de acordo com a Constituição, mas já existia com a Lei no 5.540. O Reitor, Tuiskon Dick, esclareceu, em relação aos professores, que a situação ficaria se adequando com o desenrolar do processo de decisão das Comissões de Carreira e que a matéria não precisaria conter o nome de Estudos de Problemas Brasileiros, mas as Comissões de Carreira teriam que submeter às Câmaras informando em quais as disciplinas que, dentro de seu currículo, atenderiam o requisito de discussão dos problemas brasileiros. Quando perguntado à Comissão de Legislação, Regimento e Recursos, a professora Victória Elnecave Herscovitz esclareceu que um grande número de cursos de pós-graduação gostaria de extinguir a disciplina e que outros conseguiram dar à disciplina um caráter mais ligado ao próprio curso. Lembrou da maior facilidade para adaptar a EPB na pós-graduação. Foi trazido, também, que o Departamento de Ciências Sociais, que possuía a lotação dos professores de EPB, estava discutindo a divisão do Departamento em três setores: Antropologia, Sociologia e Ciência Política, com a colocação dos professores sendo feita por área ou conforme a sua formação de graduação. Ainda, foi colocado pela professora Victória que a solução desse problema deveria passar por uma fase de transição. O Parecer foi aprovado por unanimidade (UFRGS, 1991).
Paralelo à eliminação da obrigatoriedade universal da EPB na UFRGS, ocorreu o processo de reestruturação do Departamento de Ciências Sociais, com a criação dos Departamentos de Sociologia, Antropologia e Ciência Política. Essa iniciativa envolvia diretamente o setor de EPB junto ao Departamento de Ciências Sociais, como já vimos anteriormente. O Departamento de Ciências Sociais decidiu, em reunião de 5 de outubro de 1989, dividir em três setores. Em 6 de junho de 1990, a PROGRAD recebeu a comunicação da decisão do Departamento e a reestruturação ficou à espera da decisão em torno da eliminação da EPB, que efetivamente ocorreu em 17 de abril de 1991. Assim, a solicitação de reestruturação e criação dos Departamentos de Sociologia, Antropologia e Ciência Política veio ao Plenário do Conselho de Coordenação do Ensino e da Pesquisa (COCEP) em 16 de abril de 1992. Conforme consta na Ata da parte II da sessão 351 do COCEP, Processo n° 23078.023291/89-01 do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, o Professor Adolar Koch procedeu a leitura do Parecer n° 05/92 da Comissão de Diretrizes Gerais e Prioridades do Ensino e Pesquisa (UFRGS, 2019).
Após várias sessões do seu plenário, o COCEP definiu o destino dos professores da EPB na UFRGS, publicando a Resolução n° 09/92 em 27 de maio de 1992:
O Conselho de Coordenação do Ensino e da Pesquisa, em sessão de 27/05/92, tendo em vista o constante no processo n° 23078.023291/89-01, nos termos do Parecer n° 05/92 da Comissão de Diretrizes Gerais e Prioridades do Ensino e da Pesquisa e de acordo com o aprovado em Plenário
RESOLVE:
1– aprovar, no mérito, a criação de três Departamentos: departamento de Sociologia, Departamento de Ciência Política e Departamento de Antropologia, junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
2 – que o Departamento de Ciências Sociais permanecerá em situação residual até que haja nova decisão sobre o assunto.
Porto Alegre, 27 de maio de 1992.
Tuiskon Dick Reitor. (UFRGS, 1992).
Houve resistências da coordenação do setor de EPB da UFRGS para evitar a eliminação da disciplina junto ao COCEP e ao Congresso Nacional.
A coordenação se mobilizou fazendo um parecer com o recurso em 13 de maio de 1991, a ser encaminhado ao Conselho da Universidade (CONSUN), instância recursal do COCEP. O parecer foi elaborado pelo Dr. Couto e Silva, advogado, pedindo a revogação da decisão do COCEP, que seria, no caso, a anulação da Resolução n° 08/91. O parecer foi dirigido ao Reitor da UFRGS com a argumentação que a obrigatoriedade da EPB é assegurada por lei e por decisões do CFE, proferidas mesmo depois da Constituição de 1988. No entanto, essa resistência não foi levada aos conselhos superiores pelo Reitor. Os seus documentos constam dos registros no arquivo da EPB da UFRGS.
A experiência em torno da elaboração da minha tese sobre o caso da EPB na UFRGS foi uma oportunidade para resgatar memórias da UFRGS da época da Ditadura Civil-Militar brasileira, e também memórias minhas como estudante e professor, não só da UFRGS, mas da minha vida escolar. Esta me remeteu, inclusive, para os tempos quando tive aulas de OSPB, isto nos anos de1960. Esse ensino teve uma etapa de 1962 a 1969, sendo apenas a OSPB, e depois a OSPB ficou junto com a EMC e a EPB até 1993. A própria OSPB só foi extinta em 1993, junto com a EMC e a EPB. No entanto, teve, após 1969, menos valor, sendo ofuscada pela EMC. A partir de 1969, a proposta de ensino vinda de cima, via decreto-lei da EMC e EPB, trouxe no próprio decreto um conteúdo a ser ensinado em sala de aula. A OSPB também definiu conteúdos em 1962, mas não foram ditados via decreto, mas via indicativo do CFE. Por uma razão específica, possivelmente relacionada à realidade em sala de aula, o professor tinha uma certa autonomia em termos de escolha de bibliografia, conteúdos e formas de abordagem. Foi isto que eu vivi, por exemplo, ao ensinar EMC. E também senti ao ser aluno da UFRGS-COCEP.
O valor cívico e de cidadania da EPB, com certeza, trouxe e traz questionamentos. A tese sobre a EPB não me trouxe conclusões no sentido restrito do termo. Há muito a dizer sobre esse tema e muito a fazer, e não quero encerrar esse artigo sem fazer a pergunta: como cheguei a esse tema para essa tese? Ter tido aulas de OSPB na minha adolescência, ter sido professor de EMC e aluno de EPB nos anos de 1970 e ajudar no processo de eliminação da EPB na UFRGS foram situações que me colocaram em contato com a EPB e me ajudaram como mais uma possibilidade na minha trajetória cidadã.
Quando da discussão da eliminação da EPB no Conselho de Coordenação do Ensino e da Pesquisa, atual Conselho de Ensino e Pesquisa da UFRGS (CEPE), no início dos anos de 1990, a EPB era mais conhecida do que hoje em dia, uma vez que esta ainda funcionava como disciplina nos cursos. Mas, no período da escrita da tese, entre os anos de 2015-2019, e até aqui pelo menos, ao conversar com pessoas, poucos se lembram da EPB, mesmo aqueles que cursaram a disciplina. Quando fui aluno, nos anos de 1970, o meu sentimento em relação à EPB era de esperar e deixar passar, como se fosse uma resistência silenciosa. Depois, no período de sua eliminação da UFRGS, no início dos anos de 1990, essa indiferença silenciosa se transformou na percepção de que “já é possível mudar. Já se podia mudar”. Quero dizer que, a partir da Constituição de 1988, com a autonomia universitária, a EPB como disciplina poderia ser removida e eu poderia ajudar nesse sentido.
Hoje em dia, ao comentar algo sobre o ensino de EPB nas aulas da disciplina de História e Cidadania, que é disciplina do Departamento de História da UFRGS, oferecida para sete cursos na área de humanas, surge, com facilidade, por estudantes a pergunta: “o que é isso, EPB?” Ao explicar, como professor, vem na sequência um “[…] ah!!” Alguns começam a se lembrar de algo relativo à disciplina como algum conteúdo, isso, dos que tiveram uma experiência naquela época antes de 1993, se estudaram em outro curso na Universidade, ou se lembram de alguém que havia cursado a disciplina. Com mais facilidade, lembram ainda da Educação Moral e Cívica, talvez pelo seu nome, com as palavras: moral e cívica. Os jovens estudantes do período mais recente, após 1993, depois da eliminação da EPB, não conseguem entender como foi possível existir uma disciplina com esse perfil e indagam de uma forma perplexa em torno do ensino da EPB. Colegas, professores da Universidade, contam, com interesse e entusiasmo, passagens suas junto à disciplina como alunos. Entusiasmo no sentido de gostarem de conversar sobre suas lembranças em torno da EPB. Quase todos com quem conversei sobre a EPB, devido ao tema usado nesse trabalho, vinculam o que era a disciplina na época da Ditadura Civil-Militar brasileira e comparam com o momento atual brasileiro, a partir de 2015. A ruptura institucional, chamada de golpe, e a retomada conservadora são vinculadas ao passado, ao período da ditadura, e a disciplina de EPB surgiu com muita facilidade como parte dessa retomada.
Nesse contexto, me vem mais um questionamento: o que a EPB e também a EMC têm a ver com isso? Uma onda verde-amarela, a partir de 2015, começou a servir de manto para princípios tradicionais em torno da pátria, Deus e família, vindos da tradicional cultura brasileira, muito presente também nos conteúdos
propostos pela EPB e também na EMC, no seu período de existência. Várias gerações estudaram nas escolas e universidades na época da Ditadura Civil-Militar brasileira e hoje potencialmente são cidadãos ativos em termos políticos. Hoje em dia, um civismo verde-amarelo, expresso em bandeiras e símbolos, é manifestado como brasilidade verdadeira que salvaria moralmente e civicamente a pátria, com estímulo ao ódio aos ameaçadores dessa pátria, que seriam os chamados vermelhos ou comunistas. É certo que vivemos num novo contexto histórico, sem a Guerra Fria. No entanto, uma herança em torno do nosso imaginário e identidade brasileira está emergindo não só como algo esquecido, mas também necessário para se ter visibilidade e assim ser transformado.
KOCH, Adolar. A disciplina de EPB-Estudos de Problemas Brasileiros na Ditadura Militar e Civil Brasileira – 1970/1993: O Caso da UFRGS. SABI-Sistema de Automação de Bibliotecas. BIBICSH- Biblioteca de Ciências Humanas. UFRGS. Porto Alegre, 2019.
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UFRGS–COCEP. Arquivo de Atas, Resoluções do Conselho junto à sua Secretaria. 1991. Conselho de Coordenação do Ensino e Pesquisa. Térreo da Reitoria.
UFRGS–COCEP. Arquivo de Atas, Resoluções do Conselho junto à sua Secretaria. 1992. Conselho de Coordenação do Ensino e Pesquisa. Térreo da Reitoria.
Pode-se dizer que a moradia estudantil é um fenômeno intrínseco à educação superior e remonta às primeiras universidades medievais. Dentro dessa lógica, podemos associar a gênese desses espaços de habitação coletiva no Brasil à fundação da Faculdade de Medicina na Bahia, em 1808, e, mais de meio século depois, em 1876, da Escola de Minas, em Ouro Preto, MG. Como se sabe, uma expansão mais significativa do sistema universitário brasileiro se daria somente na década de 1930, na esteira dos ideais de modernidade e das sucessivas reformas institucionais do governo de Getúlio Vargas. No que diz respeito às Casas de Estudante, embora as nascentes universidades tenham ensejado um aumento na demanda por alojamentos, nem sempre foram as responsáveis diretas por supri-las. É o caso da UFRGS, que, muito tardiamente, chamou para si a responsabilidade sobre a questão da moradia estudantil.
Nas investigações historiográficas que venho realizando sobre o tema, tem sido possível perceber a diversidade de grupos políticos e sociais que se dedicaram tanto à defesa desta pauta, como a criar e manter as Casas. Destacam-se desde iniciativas individuais até as promovidas por entidades estudantis, ou, ainda,
São organizações de estudantes nem sempre reconhecidas como movimento estudantil no sentido mais estrito do termo (e de todos os imaginários que o cercam), tampouco inscritas na história oficial da Universidade, embora tais moradias tenham acolhido muitos de seus alunos.
Em Porto Alegre, a história das residências para estudantes remonta a 1933, um ano antes de fundação da Universidade,1 quando um grupo de acadêmicos ligados à Faculdade Livre de Direito2 liderou o movimento PróCasa do Estudante , que viria a dar origem à primeira organização de moradia estudantil do Estado (hoje Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida – CEUACA). Nas décadas seguintes, observam-se outros movimentos de criação de Casas, ora de modo independente, ora por iniciativa da própria Universidade, conforme o Quadro 1:
Quadro 1. Casas de Estudantes de Porto Alegre.
Partindo dessa sistematização preliminar, e sabendo que a marcha fugaz do tempo traz consigo a ameaça do esquecimento, o presente trabalho procura contemplar desde as mobilizações do movimento estudantil do início dos anos 1930 (que viriam a dar origem a CEUACA), até a situação atual das Casas, em 2021. Igualmente, serão trazidas à discussão as organizações autônomas listadas
1 Em Porto Alegre, as origens do Ensino Superior datam do final do século XIX e início do XX. Em 1896, foi criada a Escola de Engenharia, e, em 1898, a Faculdade Livre de Medicina e Farmácia (junto a qual, no mesmo ano, passa a funcionar a Faculdade de Odontologia). Ainda, em 1900, a Faculdade Livre de Direito e em 1910 foi criado o Instituto de Agronomia e Veterinária. Em 1934 essas escolas isoladas passariam a integrar a Universidade de Porto Alegre (UPA).
2 A Faculdade Livre de Direito foi fundada em Porto Alegre em 17 de fevereiro de 1900 e, conforme dito na nota anterior, foi encampada pela Universidade de Porto Alegre (UPA) em 1934.
no Quadro 1, que, embora não formalmente vinculadas à Universidade, sempre atenderam aos seus estudantes. Na perspectiva de que a história da UFRGS é carregada de elementos que falam ao contemporâneo, e entendendo as Casas de Estudante como um dos principais pilares das políticas de assistência estudantil e da consequente democratização do acesso ao Ensino Superior, o objetivo deste artigo é lançar luz sobre os tortuosos caminhos das políticas de moradia na Universidade ao longo de sua história. Trata-se, portanto, de inventariar e escriturar um passado, buscando assim oferecer subsídios para diagnósticos do presente.
Uma ideia mobilizadora: a Casa do Estudante Pobre
Regressa hoje, às 18h30min, pelo trem de Santa Maria, a caravana de acadêmicos de Direito que percorreu o interior do Estado, com o nobre objetivo de angariar fundos para a construção da Casa do Estudante Pobre. Sob a presidência do acadêmico Ruben Cachapuz de Medeiros, estiveram nas cidades de Pelotas, Rio Grande, Bagé, Dom Pedrito, São Gabriel, Alegrete, Uruguaiana, Livramento, Passo Fundo e Santa Maria, realizando festivais. (A FEDERAÇÃO, 23/08/1933).
No ano de 1933, junto às discussões sobre a formação de uma Universidade em Porto Alegre, constitui-se, entre os estudantes da Faculdade Livre de Direito, o movimento Pró-Casa do Estudante Pobre, do qual a epígrafe anterior é testemunha. Para melhor compreender esse processo, faz-se necessário lançar luz sobre dois importantes personagens políticos do início da década de 1930: Aparício Cora de Almeida e Waldemar Rippol (Figura 1).
Amigos, Almeida e Rippol tinham muito em comum. Ambos nasceram no ano 1906, em Quaraí (RS) e foram colegas tanto no Colégio Militar, como na Faculdade de Direito, em Porto Alegre. Partilhavam dos mesmos ideais políticos socialistas e engajaram-se em propósitos semelhantes. Naquela Faculdade, foram presidentes do Centro Acadêmico e presidentes da Federação Acadêmica de Porto Alegre (FAPA), na qual promoveram discussões sobre o modelo de Universidade a ser implantado no Rio Grande do Sul, por meio do Movimento Pró-Universidade. Suas propostas estavam alicerçadas nos ideais da Reforma Universitária de Córdoba (1918), reconhecendo a importância da autonomia e da democratização da Universidade e enfatizando a necessidade da participação dos estudantes nos diferentes segmentos institucionais e seus órgãos diretivos. Entendiam que, desse modo, a Universidade cumpriria sua função formativa de cidadãos socialmente engajados (SOUZA; GENRO, 2018).
Naquele contexto de idealização de um modelo universitário, Waldemar e Aparício também se empenharam para que, em Porto Alegre, houvesse uma moradia para os estudantes. Como dito, em 1933, o Centro Acadêmico da Faculdade de Direito assumiu a mobilização para construir o que então pretendiam chamar de Casa do Estudante Pobre (SILVA, 2004). Com a finalidade de angariar fundos para a obra, organizaram uma caravana que percorreu diversas cidades do interior do Estado encenando uma peça de teatro, conforme citação trazida na epígrafe. O movimento ampliou-se e outros segmentos sociais da época mobilizaram-se em favor da causa. É o que inúmeros anúncios e convites nos jornais do período indicam, como o convite para o Grande Concerto da Casa do Estudante Pobre, realizado no Teatro São Pedro, o mais tradicional da cidade de Porto Alegre (A FEDERAÇÃO, 1933).
A despeito de todos os esforços, o objetivo de construir uma sede própria não foi alcançado, e as obras sequer iniciaram. Porém, uma comissão formada pelo Centro dos Estudantes de Direito conseguiu, junto à Prefeitura de Porto Alegre, a cedência de um imóvel situado na Rua Demétrio Ribeiro nº 1145, que passou a abrigar a Casa do Estudante, inaugurada em 1º de agosto de 1934 (Figura 2). Por liderar e dar início ao Movimento Pró-Casa, o Centro dos Estudantes do Direito foi, neste primeiro momento, também o responsável pela sua gestão.
O prédio possuía dois pavimentos e tinha capacidade para abrigar cerca de 40 estudantes. No andar inferior, estava localizada a sede da Federação dos Estudantes Universitários de Porto Alegre (FEUPA) e, na parte superior, havia uma biblioteca (Figura 3) e dormitórios (Figura 4). Um detalhe que não
deve passar despercebido: no letreiro que encimava a fachada do prédio, lia-se apenas “Casa do Estudante”. O adjetivo “pobre”, utilizado durante a campanha de levantamento de fundos, não foi incorporado ao nome da instituição. Esta nomenclatura parece ter funcionado apenas como estratégia para a sensibilização de potenciais doadores, do poder público e para conquista de espaço na imprensa do período.
Outro aspecto a considerar é que, desde os seus primórdios, a Casa do Estudante sempre extrapolou a finalidade da moradia, servindo como ponto de encontro e sociabilidades diversas, como reuniões da Federação dos Estudantes Universitários de Porto Alegre (FEUPA)e de outras entidades estudantis. Recebia, ainda, inscrições para os campeonatos esportivos e abrigava eventos do Clube Universitário (A FEDERAÇÃO, 1935). Assim, pode-se dizer que sua dimensão como espaço social sempre foi maior do que poderia fazer supor o número moradores. Importante mencionar ainda que, em seus anos iniciais, a organização mantinha-se com o auxílio de pequenas subvenções públicas e de auxílios que partiam de iniciativas individuais, como as do professor Francisco Rodolfo Simch, catedrático de Economia e Finanças da Faculdade de Direito, que colaborava mensalmente com o custeio, destinando parte dos seus vencimentos para este fim (REVISTA DO GLOBO, 1944).
Contudo, sem uma fonte determinada e fixa de recursos financeiros para a manutenção da instituição, era necessária uma busca permanente por fundos, a fim de manter a estrutura funcionando, razão pela qual as estratégias de articulação, junto ao poder público, à imprensa, às empresas e às famílias da “melhor sociedade” precisaram continuar. O excerto abaixo dimensiona esta ampla articulação:
Será satisfeita amanhã à noite a ansiedade com que em nosso meio social está sendo aguardado o grandioso baile promovido pela classe acadêmica em benefício da Casa do Estudante Pobre. A linda festa, conforme temos noticiado, terá lugar na pitoresca e aprazível sede do Country Club, à qual afluirão inúmeras famílias da nossa melhor sociedade. (…) Para o êxito desta festa, em vista do fim nobre a que se destina, concorrem com sua valiosa cooperação, a Cervejaria Continental, Fábrica Thofehrn e a firma Luiz Antunes e Cia. É de se esperar que outras firmas tenham igual gesto, visto tratar-se de uma noitada que reverterá em benefício de tão benemérita instituição como é a Casa do Estudante Pobre (A FEDERAÇÃO, 21/12/1934).
Menos de um ano após a fundação, em assembleia de junho de 1935, o Diretório dos Estudantes do Direito decidiu que a Casa do Estudante seria entregue, com todo o seu patrimônio, à FEUPA. Cabe ressaltar que, neste momento, a Casa consta como um departamento desta entidade e era administrada pelo que chamavam de “provedoria”. Nestes períodos iniciais da história da instituição, o elemento autogestional ainda não se fazia presente, estando, inclusive, a seleção dos moradores e a aferição da condição de estudante pobre dos candidatos ao encargo da Federação Acadêmica.
Outro importante aspecto a destacar é que, nem aquele movimento em favor de uma Casa de Estudantes (composto somente por homens), nem a imprensa levantaram a possibilidade de uma moradia para as mulheres. Tampouco este tema parece ter sido pautado pelo Diretório Acadêmico do Direito ou pela FEUPA no processo de organização da Casa naqueles primeiros anos da década de 1930. Há que se atentar para os possíveis significados deste silêncio acerca de um espaço para a moradia feminina neste período, questão que viria a ser enfrentada em Porto Alegre somente a partir de 1956, como veremos adiante.
Com relação ao movimento que deu origem a Casa inaugurada em 1934, o seu objetivo inicial de construção de um prédio próprio, embora tenha resultado infrutífero num primeiro momento, não foi abandonado. Em 1937 ocorreu o lançamento do chamado Plano de Ação Pró Desenvolvimento da Casa do Estudante, composto por 10 pontos. É possível notar a amplitude da articulação (ou ao menos das intenções) em favor da Casa do Estudante, que buscou envolver
Plano de Ação Pró-Casa do Estudante Pobre:
1. Tratar de obter, por doação do Município de Porto Alegre, um terreno destinado a servir para a construção da Casa do Estudante.
2. Obter do Governo do Estado uma contribuição inicial a título de auxílio, e pela Assembleia Legislativa de uma verba no próximo orçamento destinada a atender as despesas da instituição.
3. Obter do Poder Municipal de Porto Alegre uma outra contribuição também com o fim de aquisição de fundos iniciais para o levantamento da Casa do Estudante.
4. Procurar obter a colaboração da Universidade e Ginásios e propor a instituição de uma taxa “Casa do Estudante”, anexa à taxa de matrícula.
5. Procurar captar os esforços dos estudantes de cursos secundários e conseguintemente pedir o apoio dos ginásios e Institutos da capital e do interior do Estado a obra da Casa do Estudante.
6. Apelar aos médicos, advogados, dentistas, por meio das Instituições de Classe, no sentido de que criem uma taxa módica de contribuição à Casa do Estudante e de modo que todas as classes liberais fiquem interessadas na obra que se pretende iniciar.
7. Procurar por todos os modos possíveis difundir a ideia da Casa do Estudante, e assim tratar da propaganda pela imprensa, rádio e pelo cinema.
8. Promover festas de benefício, festivais, chás de sociedade e concessões dos empresários de cinemas e teatros.
9. Obter de todos os municípios do Estado uma contribuição para os fundos iniciais da Casa do Estudante.
10. Continuar na iniciativa de obter recursos por meio do livro de ouro da Casa do Estudante. (A FEDERAÇÃO, 27/07/1937).
Em 1938, apesar de todas essas intenções, a Casa sofreu o seu primeiro grande revés. Isso porque, a partir da administração municipal de Otávio Rocha (1924 – 1928), Porto Alegre viveu uma política de abertura e modernização urbana, o que implicou em grandes reformas e numa reorganização do espaço global da cidade (MONTEIRO, 1995). Essa remodelação, inspirada em ideais modernistas, foi mantida nas administrações seguintes, de Alberto Bins (19281937) e José Loureiro da Silva (1937–1943) (MARONEZE, 2007). É neste contexto que deve ser entendida a abertura de uma praça em frente ao Cinema Capitólio, justamente onde estava o prédio da Casa do Estudante,
os poderes públicos municipais e estaduais, a Universidade, as instituições secundaristas e os profissionais liberais.
que seria demolido. Após negociações com a prefeitura, os estudantes foram realocados para o Parque da Redenção, no pavilhão construído para expor os produtos típicos do Estado do Paraná (Figura 5), utilizado na exposição do Centenário Farroupilha, de 19353 .
Sobre essas instalações, o jornal Correio do Povo trouxe, na época, uma reportagem intitulada “A Casa das Vigas Gementes”, na qual descreve a precaríssima condição na qual os seus moradores se encontravam: “o pavilhão mede 240m², seu forro é de aniagem, as paredes são de stuck e estão todas esburacadas; as divisões internas, algumas de taboa, outras de papelão, são feitas em forma de baias” (CORREIO DO POVO, 1938). Além disso, a iluminação era mal distribuída e não havia água encanada. Ante à dramática situação, em 1942 a Federação Universitária de Porto Alegre, por meio de mobilizações, alugou um prédio na Rua Duque de Caxias nº 1707, para onde a Casa se transferiu. Note-se o quanto esta situação de itinerância e fragilidade da única moradia estudantil então existente é emblemática do descaso do poder público e da Universidade quanto ao tema.
3 Feira de caráter internacional ocorrida em Porto Alegre no ano de 1935, entre os dias 20/11/1935 e 15/01/1936. Além de buscar avanços tecnológicos pelos quais o Estado do Rio Grande do Sul e o Brasil passavam, buscou celebrar aspectos da história sul-rio-grandense, em especial a assim chamada Revolução Farroupilha.
Em 1944, dois anos mais tarde, a Casa foi novamente transferida, agora de forma definitiva, para o Edifício Almeida, na Rua Riachuelo, 1355 (Figura 6). O prédio foi doado pelo casal Israel Almeida e Maria Antônia Cora como homenagem à memória do filho Aparício Cora de Almeida, personagem que, conforme já citado anteriormente, teve destacada atuação no cenário político da primeira metade da década de 1930. Aparício morreu no ano de 1935, em circunstâncias nunca muito bem esclarecidas, porém com fortes suspeitas de assassinato político. Familiares e correligionários acreditavam que a morte teria sido encomendada pelo então Governador do Estado, Gen. Flores da Cunha, de quem Aparício, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Secretário da Aliança Nacional Libertadora (ANL), era ferrenho opositor. Seus pais, inúmeras vezes, buscaram reabrir o caso, além de conduzir investigações paralelas, pois jamais se conformaram com a versão oficial que apontou como causa da morte um acidente decorrente de uma brincadeira de Aparício com sua própria arma de fogo.
É na chave de elaboração do luto que parece ser possível entender a doação do prédio pela família Almeida, em 1944, nove anos após a morte de Aparício. Um gesto com vistas à construção de significados para a perda do único filho do casal. Há uma bela linha em Koselleck (2014) na qual se lê que a “necessidade de encontrar um sentido para a morte violenta é tão antiga quanto a capacidade de os homens se matarem uns aos outros” (KOSELLECK, 2014, p. 256). No caso em questão, estamos diante de um ato simbólico que reverberaria na vida de muitos estudantes e no movimento estudantil sul-rio-grandense.
Isso porque o novo endereço no centro da cidade resultou numa significativa ampliação na assistência aos universitários, pois, além de ver sua capacidade de vagas aumentada para 120 leitos, o espaço passou a contar com restaurante, ambulatório (Figura 7), no qual trabalhavam estudantes de medicina em final de curso, consultório odontológico, mantido por estudantes de odontologia, serviço de lavanderia, biblioteca, salão de festas, além de dormitórios. Todos os serviços eram sustentados pelos moradores (por meio de pequenas mensalidades), pelos cooperativados (pessoas que usufruíam de todos os benefícios da Casa, com exceção da moradia), pelas festas, almoços e jantares com a finalidade de arrecadar recursos, além de aportes eventuais da UFRGS e de instâncias governamentais diversas.
No ano de 1959, a Casa foi reconhecida como entidade de utilidade pública estadual, ato referendado pelo então governador do Estado, Leonel de Moura Brizola (PTB). O nome de Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida (CEUACA) lhe foi conferido em 1962. Um ano depois, foi reconhecida como entidade de utilidade pública federal.
Outro aspecto a ser considerado é que a CEUACA foi palco de atividades estudantis intelectuais e políticas, fato, em boa medida, decorrente de sua localização em área central da cidade, próxima dos poderes do Estado (Palácio Piratini, Assembleia Legislativa, etc.), do poder religioso (Catedral Metropolitana) e de importantes equipamentos culturais (Teatro São Pedro, Biblioteca Pública, etc.). Somam-se a isso as amplas condições de acesso a esse espaço urbano pelos meios de transporte coletivo. Os excertos dispostos na sequência, obtidos por meio de levantamentos junto a fontes jornalísticas e testemunhos orais, dão conta de que por ali passaram figuras expressivas da cena política e cultural do Estado, como o próprio Leonel Brizola, Érico Verissimo e Mário Quintana.
(…) A política era feita através dos diretórios acadêmicos. Na Casa do Estudante, que era ali na Rua Riachuelo, nós fazíamos muitas reuniões. De repente, comecei a ouvir alguns comentários, de que estava participando de algumas reuniões lá, um jovem, muito interessado em política, que dava muito palpite… Chamava-se Leonel de Moura Brizola.4
Uma vez, numa manhã, apareceu uma pessoa desconhecida dormindo na cama de um determinado quarto… e ninguém sabia quem era. E foram perguntar para o Décio Escobar, que era estudante de direito e poeta, tem até livros escritos:
“Décio, tu que anda na noite, quem será essa pessoa que está aí?”. Aí ele respondeu:
“pois é, eu vou ter que confessar, eu saí de noite, para ir numa festa e tal, e lá pelas tantas, eu encontrei essa pessoa lá, e a gente se enturmou, começou a beber, e depois ele não tinha como ir para casa, então eu trouxe ele aqui para a Casa do Estudante, e ele acabou dormindo aqui”. Vocês imaginam quem era? Ninguém mais, ninguém menos que o maior poeta gaúcho, Mário Quintana. Estava ali, o Mário Quintana, todo espichado, no quartinho, passando a noite. (IBARRA, 2018).
A diretoria social e cultural da Casa do Estudante do Rio Grande do Sul convida a sociedade porto-alegrense e especialmente os estudantes universitários e secundários para assistir em sua sede à Rua Riachuelo 1355, a palestra do consagrado escritor gaúcho Erico Verissimo, sob o título “Aspectos dos Estados
Unidos e México em paralelo com a cultura sul-americana”. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 17/12/1955).
Ainda a respeito da Casa como espaço de sociabilidade, deve-se considerar que, por necessitar captar recursos financeiros para a manutenção da instituição, semanalmente, aos sábados e domingos, eram promovidas reuniões dançantes, momentos nos quais a instituição se abria para um vasto público exterior. O mesmo pode-se dizer do restaurante universitário, que atendia a uma comunidade estudantil bem mais ampla do que os moradores da Casa, pois existia a figura do cooperativado, ou seja, o estudante que, embora não residente, era um associado, e, portanto, tinha direito a fazer suas refeições no local. Apenas a título de exemplo, durante o ano de 1970 foram servidas 180 mil refeições, entre cafés da manhã, almoços e jantares. 5 Como visto até aqui, a CEUACA nunca possuiu uma fonte fixa de recursos, de modo que sempre precisou captá-los de distintas formas, por meio de articulações com o poder público, busca por emendas parlamentares, por meio dos eventos que organizava e das contribuições diretas dos próprios moradores, através dos chamados “rateios”. Os valores arrecadados, no entanto, supriam apenas as despesas básicas, não sobrando recursos para melhorias naquele que seria o principal ativo da instituição: o prédio sede na Rua Riachuelo nº 1355. A construção sofreu a ação implacável do tempo e deteriorou-se ao longo dos anos. A situação chegou ao extremo nos anos 2000, quando a entidade passou a sofrer inúmeros processos judiciais, algumas resultando em interdições parciais do prédio.
A partir de 2009, a situação agravou-se ainda mais, e a Casa passou a ser alvo de ações de despejo. Houve mobilizações dos moradores junto ao Estado, mediadas pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS). Em 2014, quando a Casa completou seus 80 anos, em negociação com o Governo e o MPRS, chegou-se a um acordo sobre a reforma, e os estudantes foram realocados para diversos imóveis na região central de Porto Alegre, com pagamento de aluguel social.
Passados mais de sete anos da evacuação, as promessas de reforma não se efetivaram e o Governo do Estado deixou de pagar os aluguéis dos imóveis que alocavam os estudantes, resultando em novas ações de despejo. Além disso, a instituição corre o risco de perder o prédio que a abrigou, e que fora doado
pelos pais de Aparício Cora de Almeida com cláusula pétrea, prevendo que sua única finalidade de uso deveria ser o da moradia estudantil.
No dia 13 de dezembro de 2015, a Casa foi ocupada durante um dia, como forma de protesto, por um grupo de estudantes da UFRGS, que reivindicaram do Governo do Estado uma posição com relação à reforma do edifício (Figura 8). Após negociação com o poder público, ficou acertada a reabertura de diálogo, o que ocorreria de forma tortuosa e sem encaminhamentos efetivos. Passaram-se mais seis anos e nada aconteceu.
Em 2021, a Secretaria de Obras do Governo do Estado e o MPRS retomaram o diálogo com os ex-moradores da Casa que seguem mobilizados na causa da reforma. Nesse ano, comitivas do Governo e do MPRS realizaram uma visita técnica no dia 4 de novembro, prometendo novas reuniões e articulações políticas no sentido de viabilizar a recuperação do prédio. A UFRGS, por sua vez, embora intrinsecamente ligada à história dessa organização estudantil, sempre se ausentou do debate.
Católica Casa 7 (JUC-7)
Conforme o apontado no Quadro 1, além da CEUACA, existem atualmente, em Porto Alegre, outras cinco Casas de Estudante ativas e uma extinta . Seguindo no propósito de inventariar as diferentes experiências de organização das Casas de Estudante na cidade e seu atendimento às demandas não supridas pela UFRGS, passo a tratar agora da Associação Casa de Estudantes Juventude Universitária Católica Casa 7 (JUC-7).
Sua fundação data de 1949, no contexto das mobilizações da Juventude Universitária Católica por moradia estudantil. Em Porto Alegre, essas ações deram-se a partir da Associação da Juventude Católica (AJUC). Foram criadas em todo país, com a participação direta da Igreja Católica, 23 Casas para servirem de moradia a estudantes universitários. A última Casa que mantinha o modelo inicial de organização foi fechada em 1975. A JUC-7, contudo, sobreviveu.
A história da JUC-7, assim como a história da CEUACA, é marcada por sucessivas trocas de sede. Em 1974, seus moradores já haviam sido despejados do chamado “Castelinho”, situado na Rua Mostardeiro, onde residiam 53 estudantes. Diante desta situação crítica, a direção vendeu o telefone e, com esse dinheiro, pagou a caução para o aluguel da sede na Rua da República, onde ficaram por algum tempo, até serem movidos para o Bairro Partenon, na Vila Intercap, local afastado da região central da cidade, porém próximo à Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Lá se abrigaram em uma construção de madeira por alguns anos, quando se intensificaram as mobilizações por um espaço próprio.
Em 21 de setembro de 1987, a prefeitura, por lei municipal, fez a doação do terreno onde hoje está situada a sede da JUC-7 (Figura 9). Por volta deste período, os juquianos 6 também receberam do Estado do Rio Grande do Sul o valor de Cz$ 1 milhão (um milhão de cruzeiros). Em posse do dinheiro e do terreno, os estudantes foram retirados pela prefeitura do imóvel na Intercap, indo morar na sede própria, na Rua Rivadávia Correia, nº 8, no mesmo bairro.
O prédio encontrava-se inacabado, com janelas faltando, sem boa parte do teto e com todo o acabamento por fazer. A despeito da filiação religiosa quando da sua fundação, a JUC-7, ao longo dos anos, passou a acolher alunos de todas as instituições de Ensino Superior, inclusive da UFRGS. Ainda hoje em funcionamento, passa pelas mesmas dificuldades das demais instituições autônomas, que não contam com nenhum aporte de recurso financeiro externo.
Outra moradia que originalmente possuía vinculação a uma entidade religiosa é a Casa Estudantil Universitária de Porto Alegre (CEUPA). Foi criada por iniciativa de um grupo da Associação dos Ex-Alunos do Colégio Sinodal (AEACS), de São Leopoldo, que, em 1950, decidiu alugar um prédio em Porto Alegre, na Rua General Vitorino e fundar a Casa do Ex-Aluno do Colégio Sinodal, que tinha por objetivo abrigar os estudantes oriundos deste estabelecimento de ensino. No princípio, contava com apenas 20 vagas. Em 1954, adquiriu prédio próprio, onde hoje fica uma das atuais sedes, na Rua Sarmento Leite nº 1053 (Figura 10), por meio de uma campanha de arrecadação de fundos, numa ação entre amigos que contou com o sorteio de um automóvel (ALMEIDA, 2018). Com o tempo, a entidade sofreu algumas transformações, passando a chamar-se Casa do Estudante Evangélico do Rio Grande do Sul (CEERGS), abrigando, a partir de então, não somente os ex-alunos do Colégio Sinodal, mas estudantes de todos os estabelecimentos evangélicos do Estado. Em 1960, nova alteração na nomenclatura, quando passa a se chamar Centro Evangélico Universitário do Rio Grande do Sul (CEURGS). Igualmente nesse período, com o aumento da demanda por moradia estudantil, foi locado um prédio na
mesma rua, Sarmento Leite, nº 631, que funcionou como uma extensão da Casa original, ampliando a capacidade da instituição em 21 vagas.
Em decorrência de uma ação de despejo movida contra os moradores da Casa II (Rua Sarmento Leite, nº 631), e a necessidade de uma residência para as estudantes do sexo feminino, em 1968 foram adquiridos dois novos prédios, com recursos aportados pelo Sínodo Rio-Grandense (ligado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil), que passaram a abrigar a Casa II na Rua José do Patrocínio nº 648 (Figura 11), e a Casa III na Rua Luiz Afonso nº 347 (Figura 12).
Atualmente, a CEUPA mantém a estrutura de três casas localizadas em Porto Alegre, todas no Bairro Cidade Baixa, próximas umas das outras, com capacidade para abrigar 65 moradores efetivos, e possuindo ainda espaço para alojar temporariamente cerca de 20 moradores que estejam na cidade para participação de congressos ou seminários. Os moradores do CEUPA são estudantes oriundos das mais diversas instituições de Ensino Superior da região metropolitana de Porto Alegre, independente de filiação religiosa.
Entre as Casas que tiveram na UFRGS a sua mantenedora, está a Residência das Alunas da Escola de Enfermagem, já extinta. Sua origem relaciona-se à criação da Escola de Enfermagem de Porto Alegre, em 1950, que, em seu projeto, previa a questão da moradia estudantil, visto que as alunas fazerem o curso em regime de internato. A professora Maria de Lourdes Verderese, primeira diretora da escola, vinda de São Paulo para criar o curso, destacou neste documento o que a Casa deveria oferecer:
[…] uma vida sadia e equilibrada, com alimentação racional, repouso, recreação em convívio social e gozo estético em interiores harmoniosos; facilidade de moradia perto das áreas de trabalho da escola, economia de tempo, local apropriado para estudo distanciado das solicitações sociais da teia da vida da família; oferecer um lar onde haja vida “em família”, com o necessário controle social para aquelas estudantes que não tenham lar na cidade sede da escola; consciência da aluna como ser social provendo doce afeição, verdadeira amizade, sentimentos que deverão ser o fundamento, a pedra angular da residência (Plano de Organização da Escola de Enfermagem apud SILVA, 2004, p. 42).
Assim, a Reitoria da Universidade locou dois prédios para que servissem de moradia às estudantes, ambos na Rua Florêncio Ygartua, nos números 162 e 314. Já em meados da década de 1950, com a desapropriação da área onde hoje está localizado o Campus Saúde da UFRGS, foram preservados dois prédios, que viriam a abrigar as estudantes: um na Avenida Protásio Alves, nº 297 (Figura 13) e outro na Rua São Manoel nº 573 (Figura 14). Conforme Silva (2004), no ano de 1959, foi criado o curso de auxiliar de enfermagem e o endereço acabou sendo destinado a abrigar estas estudantes. Atualmente, este prédio é sede da CEUFRGS, que fornece moradia a cerca de 42 estudantes. Já as alunas do curso de enfermagem seguiram morando no prédio da Avenida Protásio Alves, que hoje abriga o Departamento de Atenção à Saúde (DAS-UFRGS).
Em 1977, a Universidade viria a encampar uma Casa autônoma: a Casa da Estudante Universitária do Rio Grande do Sul (CEURGS), que passou a chamar-se Casa da Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEUFRGS), ocupando o lugar da residência das alunas da Escola de Enfermagem, que foi extinta. É sobre essa Casa incorporada pela UFRGS que passo a discorrer agora.
As origens da CEURGS remontam ao início da década de 1950, quando, à exceção da Residência das Alunas da Escola de Enfermagem, não havia em Porto Alegre uma moradia que abrigasse as estudantes. Foi naquele contexto que as universitárias Dirce Caputo, Henriqueta Morais e Cecy Schimitz iniciaram, em 1954, um movimento para a criação da Casa da Estudante. Esta viria a ser fundada em 1 de agosto de 1956, mesmo ainda não tendo uma sede. As primeiras reuniões ocorreram nas dependências da CEUACA e tratavam basicamente das formas de como conseguir um prédio para a concretização do projeto que empreendiam.
O seu endereço inicial foi um apartamento na Rua Riachuelo, nº 1263 (Figura 15), locado em nome da Federação dos Estudantes Universitários do Rio Grande do Sul (FEURGS). Segundo Silva (2004), a maior dificuldade das moradoras foi a de manter em dia o aluguel. Boa parte da mobília era emprestada, algumas inclusive da CEUACA, localizada em um prédio bastante próximo. A Reitoria da UFRGS também prestava algum auxílio por meio de bolsas para as moradoras e a quitação de dívidas da Casa, razão pela qual era oferecido anualmente, nas suas dependências, um jantar ao Reitor (Figura 16). Algumas
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figuras públicas e entidades da época colaboravam de forma esporádica com a realização de torneios de futebol, peças de teatro e reuniões dançantes que tinham a arrecadação revertida em prol da Casa (SILVA, 2004).
Com o tempo, esta instituição passou a ocupar também o terceiro andar do mesmo prédio da Rua Riachuelo, ampliando a sua capacidade de 12 para 23 moradoras. Contudo, em 1965, as universitárias sofreram uma ação de despejo por não conseguirem manter em dia o aluguel. Foram promovidas novas campanhas para arrecadação de fundos e mobilizações junto ao poder público, com o objetivo de captar recursos para saldar a dívida ou realizar aquele que era o maior desejo das moradoras: comprar um imóvel para a CEURGS. Não obtendo sucesso neste sentido, iniciou-se a busca por uma nova locação.
As estudantes acabaram alugando uma residência na Av. Getúlio Vargas, nº 1526, no Bairro Menino Deus, localizado nas imediações da região central de Porto Alegre e da Universidade. Em 1977, porém, ocorreu novo despejo. Naquele momento, a UFRGS interveio, cedendo o prédio da Rua São Manuel, nº 573, que havia servido de moradia para as alunas da Escola de Enfermagem. Após esta última e definitiva mudança, a CEURGS tornou-se um órgão da Universidade, passando a chamar-se Casa da Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEUFRGS).
Em 1988, após longas discussões em assembleias, com o apoio da União Nacional dos Estudantes e as demais Casas, a CEUFRGS deixou de ser exclusivamente feminina e passou a admitir moradores do sexo masculino, passando a chamar-se Casa do Estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, possui vagas para 42 moradores e conta com autonomia administrativa, embora dependa financeiramente da Universidade.
Outra moradia mantida pela UFRGS é a Casa do Estudante das Faculdades de Agronomia e Veterinária (CEFAV), inaugurada em 1960, em um prédio especialmente construído para esta finalidade junto à Faculdade de Agronomia, na Avenida Bento Gonçalves, nº 7712 (Figura 17). Uma região bastante afastada do centro da cidade, porém próxima ao chamado Campus do Vale, maior unidade da UFRGS e que concentra um número expressivo de cursos, departamentos, laboratórios e bibliotecas. Originalmente destinada apenas aos estudantes do sexo masculino, realizou, em 1978, uma assembleia geral extraordinária com a
finalidade de discutir a admissão de estudantes do sexo feminino. Após grandes debates, aprovou-se a pauta que, contudo, foi barrada pela Reitoria, que manteve a vedação do acesso de mulheres. Foi somente no ano de 1982 que a CEFAV passou a permitir o ingresso das estudantes, numa tendência que se observaria nas demais casas da UFRGS.
O ano de 1983 foi marcado por um incêndio de grandes proporções no prédio desta Casa. Mais de 50% das instalações foram consumidas pelas chamas. Organizou-se, então, uma grande mobilização por parte dos moradores e moradoras pela reforma. Mesmo bastante danificado, os estudantes não desocuparam o imóvel, temerosos de que a CEFAV fosse definitivamente fechada pela Reitoria. A reforma concluiu-se somente em 1985.
Atendendo atualmente cerca de 106 moradores, a Casa, embora seja um órgão da UFRGS, tem garantida a sua autogestão, com realização de assembleias, eleições para a diretoria e constituição de departamentos internos que mantém a sua organização (PRAE, 2001). O processo seletivo de novos ingressantes também é realizado pelos moradores.
Por fim, a última e a maior das moradias criadas em Porto Alegre, conhecida como Casa do Estudante Universitário (CEU), foi inaugurada em 1971 (Figura 18), com estrutura e condições de habitação que chamavam a atenção pela boa qualidade (SILVA, 2004). Junto ao prédio, passou a funcionar também um restaurante universitário. Todo o processo de construção e planejamento foi conduzido pela UFRGS, com recursos federais, sendo a Casa considerada um órgão da Universidade. A despeito das boas condições de moradia oferecidas aos estudantes, há uma queixa recorrente desde sua inauguração: a ausência de autonomia administrativa.
Ao longo da sua história, a Casa vem sendo dirigida por um conselho administrativo, formado por quatro integrantes escolhidos pela Reitoria e três escolhidos pelos moradores. Este modelo tende a favorecer a implementação das decisões tomadas pela Universidade. Por este motivo, desde a sua criação ocorreram inúmeras manifestações que reivindicavam autogestão, além do acesso das estudantes do sexo feminino à moradia, já que, a exemplo da CEFAV, também a CEU era destinada apenas aos estudantes homens (SILVA, 2004).
Em 1980, após a realização de uma assembleia geral, os moradores decidiram pela abertura da Casa às estudantes. Esta decisão, contudo, foi suspensa e reprimida pela Reitoria, que, em retaliação, cortou bolsas dos alunos envolvidos. Isto acabou por aumentar ainda mais a mobilização estudantil, de modo que se organizou, com ampla divulgação, para o dia 29 de abril de 1980, uma invasão feminina ao prédio. A Administração Central, ciente das intenções dos estudantes, publicou no dia anterior um documento em que liberava o acesso das mulheres à CEU. Mesmo assim, o evento ocorreu, como um ato simbólico (COSTA, 2020).
Atualmente, o prédio da CEU tem capacidade para acomodar cerca de 400 moradores, contando com nove pavimentos, 204 dormitórios, cozinha e lavanderia coletivas, sala de estudos e salas multimídias. Os estudantes também podem vincular-se à Associação dos Moradores da Casa do Estudante Universitário (AMCEU), na qual são discutidas questões relevantes da Casa (PRAE, 2021).
O presente inventário das Casas de Estudante de Porto Alegre nos dá a ver a diversidade de concepções e atores envolvidos na criação e manutenção destas moradias. Oriundas de mobilizações que nasceram a partir dos próprios estudantes, de entidades religiosas católicas e evangélicas de confissão luterana, ou ainda de políticas de assistência estudantil da UFRGS, cumprem um significativo papel social e dizem muito sobre a história da Universidade. É importante atentar para o fato de que, até o final da década de 1950, a UFRGS ainda não havia chamado para si o compromisso com a moradia estudantil universitária, deixando a questão relegada a iniciativas individuais, como aquelas dos pais de Aparício Cora de Almeida. Passados mais de 87 anos da criação da CEUACA, o atendimento da demanda por vagas ocorre de forma muito aquém das necessidades, sendo um testemunho disto o fato de que três organizações autônomas seguem suprindo essa carência, em situações, na maioria das vezes, precárias.
Em tempos nos quais o debate sobre a democratização do acesso ao Ensino Superior e as garantias de permanência de estudantes de baixa renda ganha destaque na Universidade, o trabalho historiográfico pode contribuir na complexificação desta pauta e, consequentemente, para os diagnósticos e a elaboração de políticas no presente. O que se tem observado como regra, no
entanto, é que, apesar de serem uma necessidade fundamental para universitários oriundos de estratos sociais empobrecidos, as Casas de Estudante têm sido duplamente invisibilizadas. Por um lado, temos a omissão quanto à garantia de necessidades básicas para a manutenção da salubridade e das estruturas físicas destes espaços. Basta uma mirada rápida para perceber a precariedade do estado de conservação dos prédios e instalações, até mesmo representando riscos para seus habitantes. Por outro, observa-se o não reconhecimento destas entidades na sua dimensão de patrimônio histórico educativo. Podemos nos interrogar, a partir de Escolano Benito (2017), como a história dessas organizações pode ser transmutada em informação, em aporte de conhecimento, em legado instrutivo a ser socializado. Entendo que a história das Casas de Estudante deva ser inscrita na história da Universidade como uma expressão das práticas estudantis e como um meio de, enquanto instituição, aprendermos acerca de nós mesmos, por meio das coisas que nos foram legadas pelo passado.
Foi este o espírito que orientou a organização deste breve histórico das moradias estudantis existentes em Porto Alegre, localizando-as na história da UFRGS. Gesto de escrituração de um passado; gesto que buscou contemplar os atravessamentos do tema com as políticas de assistência aos estudantes e suas urgências, os modos de organização e mobilização, e, por fim, seu valor patrimonial. Apagadas ou situadas fora da história oficial da Universidade, cumpre voltar o olhar para o universo das Casas de Estudante, construindo novas leituras sobre esses espaços de sociabilidade e cultura estudantil, bem como seu caráter fundamental para a democratização do acesso ao ensino de nível superior.
ALMEIDA, Dóris Bittencourt. “Eu sou do interior… eu vim estudar em Porto Alegre”: memórias de experiências sensíveis em uma moradia estudantil (1974-1983). Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 71, p. 259-278, set./out. 2018.
COSTA, Fabiana Pinheiro da. Em busca de um teto todo seu: A presença feminina na Casa do Estudante Universitário da UFRGS na década de 1980. Dissertação (Mestrado em educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2020.
ESCOLANO BENITO, Agustin. A Escola como Cultura: experiência, memória e arqueologia. Editora Alinea: Campinas, 2017.
Escriturar um passado, diagnosticar um presente: a UFRGS e a história da Moradia Estudantil (1934 2021)
HINTERHOLZ, Marcos Luiz. O lugar onde a casa mora: Memórias sobre a Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida – CEUACA (1963-1981). Dissertação (Mestrado em educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014.
MARONEZE, Luiz Antônio Gloger. Porto Alegre em dois cenários: a nostalgia da modernidade no olhar dos cronistas. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
SILVA, Ângelo Ronaldo Pereira da. (org.). As Casas de Estudante da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
SOUZA, Cidara Loguercio; GENRO, Maria Elly Herz. Memorias de académicos del sur de Brasil en perspectiva de un “ideal universitario en América”: ¿otro legado de los estudiantes?. In: VII Jornadas de Estudio y Reflexión Sobre el Movimiento Estudiantil Argentino y Latinoamericano, 7, 2018, Santa Fé, Argentina. Anais… Santa Fé: Facultad de Humanidades y Ciencias –Universidad Nacional del Litoral, 2018. p. 1-20.
IBARRA, Luiz Alberto. Entrevista com Luiz Alberto Ibarra [Entrevista concedida a Marcos Luiz Hinterholz]. Porto Alegre: UFRGS, 2018.
Filme
Brizola –Tempos de Luta. Direção: Tabajara Ruas. Brasil, 2007 (95 min).
Fontes Primárias
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A FEDERAÇÃO, 21 dezembro 1934.
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SUPERINTENDÊNCIA DE INFRAESTRUTURA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – SUINFRA/UFRGS. Disponível em: http://www.ufrgs.br/suinfra/. Acesso em: 17 out. 2021.
Em julho de 2016, o jornal Sul21 divulgou a notícia “Mulheres da Casa do Estudante da UFRGS pedem socorro”1, cujo tema central era a crescente onda de assédios sofrida pelas estudantes na maior habitação oferecida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O assunto ganhou destaque na imprensa regional e em diferentes esferas do meio acadêmico, reacendendo o debate em torno da presença feminina nas moradias estudantis.
A Casa do Estudante Universitário (CEU), inaugurada em julho de 1971, tem um longo histórico de embates em torno da aceitação de mulheres como moradoras legítimas. Por mais de uma década, elas foram proibidas de frequentar esse espaço, inclusive como visitantes dos moradores homens. Nem mesmo as mães eram autorizadas a adentrar o local para ver os filhos. Foi somente após a organização dos estudantes para a “invasão feminina” 2 , ocorrida em abril de 1980, que as barreiras para
1 Disponível em: https://www.sul21.com.br/areazero/2016/07/mulheres-da-casa-doestudante-da-ufrgs-pedem-socorro-apos-casos-de-violencia. Acesso em: 08 out. 2021
2 O termo invasão era utilizado nos anos de 1980 pelos movimentos organizados por estudantes e militantes sociais. Atualmente, a ideia de invasão foi substituída pelo termo
o ingresso das mulheres começaram a ser desarticuladas. Entretanto, mesmo com toda repercussão que esse episódio gerou, ainda se passaram três anos para que a UFRGS modificasse as normas e legalizasse a candidatura feminina às vagas.
O presente estudo tem por objetivo contribuir com uma análise das vivências estudantis nos primeiros anos de abertura da CEU como moradia mista. Para tanto, foram feitas investidas no Arquivo da Casa, porém as fontes privilegiadas foram as entrevistas realizadas com antigas moradoras a partir da metodologia de história oral. Tomei como premissa a reflexão de Ricoeur (2007), para quem as memórias de um lugar estão associadas às memórias do corpo que o habitou. A temporalidade se inicia em 1984, data do ingresso de duas entrevistadas, e estende-se até 1989, ano em que uma delas deixou a habitação.
É importante frisar que a memória oral – aqui transformada em documento histórico – evoca o passado, mas a pessoa incitada a rememorar está situada no tempo presente e, por essa razão, é afetada por inúmeras circunstâncias emocionais, culturais e sociais. O futuro também transparece nas falas a partir das projeções em que estão contidos os anseios, as dúvidas e os desejos. Koselleck (2012) fez uma valorosa contribuição à historiografia ao conceituar que a experiência (da ordem do passado) e a expectativa (da ordem do futuro) são duas dimensões do tempo histórico que estão sempre entrelaçadas ao presente. A exposição desses conceitos evidencia ao leitor que as narrativas de memória podem sofrer alterações conforme a época em que são elaboradas.
Explicitadas essas considerações, esclareço que procurei examinar como essas mulheres foram recebidas em um local ainda majoritariamente masculino, de que maneira se dava a participação delas na dinâmica administrativa desse ambiente e a forma como recordaram a experiência do tempo vivido na CEU.
Cabe dizer que essa narrativa historiográfica foi elaborada a partir de interrogações que emergiram após a manifestação de 2016, comentada anteriormente. Tal acontecimento foi um convite a olhar para o passado mais remoto da moradia, com o objetivo de encontrar possíveis explicações em torno da relação entre homens e mulheres em um espaço coletivo que se entrelaça diretamente à Universidade. Pode-se dizer que são as dúvidas cotidianas que nos impulsionam a buscar respostas, muitas delas envoltas em diferentes camadas do tempo. Nesse sentido, a mirada para o pretérito serve como um bom fio condutor de análise. Pontuo, ainda, que a proposição do estudo não é produzir
“ocupação”. Para maiores informações sobre esse episódio é possível consultar o artigo de Fabiana Pinheiro da Costa e Dóris Bittencourt Almeida, disponível em: https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/ view/25105. Acesso em: 8 de out. 2021
uma verdade absoluta, mas apontar alternativas de debate que possam trazer maior inteligibilidade ao tema.
É preciso deixar claro que compreendo o espaço da Casa de Estudante como um ambiente que impulsiona o sujeito a produzir novas visões de mundo e no qual o exercício da alteridade e da relação com o outro é constante. Assim, a CEU é pensada e tecida ao longo desta escrita a partir da noção de instituição educativa. Magalhães (2004) alarga o entendimento desse conceito, não o restringindo a escolas ou universidades e abrangendo-o a lugares em que ações – pessoais e coletivas –acontecem. Esses locais envolvem um processo de subjetivação em que as relações acontecem por meio de negociações, não só entre os sujeitos que neles convivem, mas entre eles e as normas que os regem.
Partindo do pressuposto de que a moradia estudantil é também um lugar educativo, trago à discussão Gaston Bachelard (1978, p. 200) que na obra A poética do espaço, afirma que quando recordamos nossa casa “aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos”. Esse morar a que ele se refere deriva das memórias dos lugares que habitamos e do tempo permanecido neles. Esse tempo, ainda que comum a mais de uma pessoa, contempla uma dimensão que é sentida individualmente. Habitar uma casa, no sentido proposto pelo autor, significa alojar nesse espaço os sentimentos, sejam eles bons ou ruins. Portanto, é por entre os caminhos das lembranças e deslembranças, das emoções e afetos daquelas que um dia habitaram a CEU que este artigo se desenhou.
Dito isso, apresento as narradoras que comparecem na pesquisa: Araeci Carvalho da Luz, licenciada em ciências sociais; Gorete Losada, licenciada em matemática; e Roselaine Aquino da Silva, licenciada em ciências sociais. Ao narrarem suas memórias estavam na faixa etária dos 55 anos, eram professoras da Rede Municipal de Ensino da Prefeitura de Porto Alegre e vinculadas ao campo político da esquerda.
As entrevistadas têm uma proximidade para além da Casa do Estudante. São amigas desde os tempos de convivência na UFRGS. Foram indicadas umas pelas outras e, por isso mesmo, se narraram entre si. O leitor pode sugerir que o fato de terem uma amizade e pertencerem a uma rede em comum seja problemático, uma vez que apresentam perfis semelhantes, fazendo com que as dissonâncias tornem-se quase imperceptíveis. Em certa medida, é verdade, todavia isso não diminui a qualidade investigativa. Logo, o que me coube foi atentar aos detalhes sutis e às pequenas curvas que aparecem nas falas individuais sobre suas vivências, já que a experiência do morar é ressignificada para cada uma delas.
O processo de entrada das mulheres na CEU foi concedido após embates e a desobediência permanente das estudantes às normas institucionais da Universidade. Até a data da aprovação do regimento interno, em 1983, muitas moças estabeleceram-se de forma clandestina, sendo, por essa atitude, julgadas por moradores e servidores.
Gorete e Roselaine ingressaram em 1984 por processos diferentes. O fator decisivo para buscar a moradia foi a necessidade de se estabelecerem em um local de fácil acesso aos principais pontos da cidade, quesito atendido pela CEU, localizada junto ao Centro Histórico de Porto Alegre. Na época, ambas trabalhavam e residiam em regiões distantes e com difícil mobilidade. Gorete, moradora da Vila Farrapos3 , mencionou que chegar à noite em casa, após o trabalho, gerava muitos transtornos por ser uma localidade em que a criminalidade crescia. Roselaine enfrentava problema semelhante. Exercia o cargo de professora em uma escola na cidade de Alvorada, mesclando suas aulas entre o Campus Central e o Campus do Vale, esse último situado próximo a Viamão.
O modo como cada uma chegou à Casa permite inferir que a burocratização em torno da presença feminina ainda existia, posto que muitas mulheres não estavam devidamente cadastradas no Departamento de Benefícios e Assistência Estudantil4 . Gorete se mudou graças a uma amiga de curso que lhe informou sobre um quarto vago: “[…] nessa época, ainda havia uma tendência de as pessoas entrarem assim, primeiro clandestinamente e depois se regularizava. Foi como entrei”. 5 Já Roselaine participou do processo seletivo via Pró-Reitoria Universitária. No entanto, descreveu que a tramitação para conseguir uma oportunidade foi dificultada pelos servidores e por processos administrativos:
3 Localizada na zona norte da cidade, faz divisa com os Bairros Humaitá e Navegantes. O Bairro Farrapos foi oficializado pela Lei nº 6218 de 17/11/1988. Conhecido desde antes da oficialização como Vila Operária Farrapos, o bairro é uma das regiões mais carentes da cidade. Os habitantes são de origem humilde e muitos vivem em precárias condições de moradia. A ocupação da região está ligada ao processo de crescimento populacional da cidade. Informações obtidas em:http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/ historia_dos_bairros_de_porto_alegre.pdf Acesso em: 08 out. 2021.
4 O Departamento de Benefícios e Assistência Estudantil é responsável por orientar o planejamento e coordenar os projetos e ações de seleção, concessão e acompanhamento dos benefícios da assistência estudantil no âmbito da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, em consonância com as diretrizes institucionais para o acompanhamento discente da UFRGS. Informações obtidas em: https://www.ufrgs.br/prae/a-prae/. Acesso em 5 de dezembro 2021.
5 Gorete Losada, entrevistada por Fabiana Pinheiro da Costa, em 2018.
“[…] eles não diziam no edital que tinha vaga para mulher, mas quando havia inscrições permitiam que concorrêssemos”. 6
Essas mulheres enfrentaram as adversidades que a vida apresentou. A dificuldade de se locomover pela cidade à noite, o fato de trabalharem e, ao mesmo tempo, conciliarem um curso de graduação numa universidade pública marcam suas construções discursivas. O ingresso em uma Casa de Estudante foi uma das garantias para que pudessem dar segmento aos estudos. Contudo, o cotidiano facilitava a permanência delas?
Gorete comentou que sua primeira experiência foi com uma moradora mulher e entre elas não houve parceria. Os conflitos se davam por conta da divisão do espaço e de como ele era ocupado. Ela trabalhava à noite e estudava pela manhã, precisava de tempo para dormir e colocar as leituras em dia, o que não era respeitado por sua colega, pois “[…] a menina estava sempre com o namorado, muitas vezes eu chegava e tinha que ficar do lado de fora esperando”.7
Essa situação durou pouco tempo e, em seguida, ela trocou de companheira, fato que rememorou como uma experiência maravilhosa, dado que as duas conseguiram se acertar no convívio diário.
Roselaine destacou que, na seleção para o ingresso, perguntaram se havia preferência em dividir o quarto com homem ou mulher. Sua predileção inicial foi por outra estudante. Cabe salientar que, em 1982, época em que iniciaram os trâmites para a regularização da presença feminina, uma proposta feita pela Associação dos Moradores da Casa do Estudante Universitário (AMCEU) à Pró-Reitoria Universitária previa que a integração delas deveria ser efetiva, não havendo isolamento do restante dos moradores.
Ainda assim, esse agrupamento aconteceu de forma não planejada, porque as moças optavam umas pelas outras. Segundo as entrevistadas, o quarto andar se tornou conhecido por uma maioria feminina. Roselaine afirmou que isso ocorria por conta da privacidade: “[…] é óbvio que tu vai querer morar com outra mulher para ter mais liberdade”. 8 É provável que elas compartilhassem quartos com os homens, mas as narrativas indicam que isso acontecia de forma mais frequente quando ambos se relacionavam amorosamente. No caso de dois estranhos, a separação era mais acentuada. Todas as narradoras deste estudo, em
algum momento, moraram com seus namorados, sendo que Araeci conseguiu entrar de forma fortuita em 1986, justamente porque ele lhe facilitou a vaga.9
Diante dessa estrutura organizacional, é importante analisar como se enfrentava o assédio, uma vez que nem todas se relacionavam sexualmente/ amorosamente com algum morador. Em um depoimento cedido ao jornal Liberta10 , em agosto de 1982, é possível entrever que havia estudantes que sofriam por viver em um ambiente com maioria masculina:
[…] dentro da concepção que eles possuem de que toda mulher que tem a “falta de ética e moral” para morar com uma centena de homens, dividindo corredores e banheiros com eles só pode ser vadia, vagabunda. O caso é que quando eles veem que as coisas não são bem assim, que a gente nem dá bola para eles e que temos coisas mais importantes para fazer que corresponder aos seus ataques eles vem até a minha porta e descarregam o spray com “puta” numa tentativa de substituí-lo por seu esperma.11
Segundo Alemany (2009, p. 271), as violências praticadas contra as mulheres assumem múltiplas formas, atingindo-as em sua integridade física e em sua subjetividade. Para a autora, os atos violentos infligidos pelos homens são causadores de sofrimentos físicos e psicológicos e têm a intenção de intimidar, punir e humilhar. Tais ações são expressões de um modelo de masculinidade e constituem aquilo que ela denomina “aprendizagem da virilidade”, sendo essa normalmente aceita e legitimada pela sociedade. Na década de 1980, as teorias feministas ampliaram as análises sobre violência, abordando as relações existentes entre militarismo, nacionalismo e violência de Estado com a agressão e a violência contra o público feminino. Foi constatado que em culturas de exaltação à virilidade havia maior incidência de atos violentos.
No ano do episódio narrado no Jornal Liberta , a Casa do Estudante Universitário ainda estava inserida dentro do contexto social e político da Ditadura Militar, cujo poder era centralizado nas mãos de homens que cultuavam ideais de moralidade e de família, nos quais as mulheres deveriam estar enquadradas. A presença em um espaço que não foi inicialmente pensado para elas poderia ser entendida por alguns moradores como um rompimento
9 Araeci Carvalho da Luz, entrevistada por Fabiana Pinheiro da Costa, em 2019.
10 Em 1980, um grupo de estudantes da UFRGS fundou o Liberta , grupo que tinha como objetivo discutir as pautas do feminismo. No decorrer de seus anos de existências, as participantes realizaram inúmeras atividades e criaram um periódico para se comunicar com a comunidade acadêmica.
11 Jornal Liberta , agosto de 1982, nº 6.
a esse modelo idealizado e, por isso mesmo, alvo da agressão física, moral e psicológica.
Da época desse depoimento para a entrada de Gorete se passou mais de um ano e meio. Ela apresentou uma perspectiva muito diferente da CEU no tocante ao comportamento masculino, afirmando que era um local de amizade em que moravam pessoas de diferentes lugares, o que proporcionava acolhimento. Pontuou também que o fato de ser mulher não incomodava os porteiros ou faxineiras, acreditando que a vigilância sofrida era relacionada à sua militância política e não pelo fato de morar com outros homens. Roselaine fez um relato semelhante, mas salientou algumas diferenças que cabem ser examinadas. Para ela, o assédio não acontecia, porque, ao chegarem a esse novo ambiente, elas formavam casais e seus companheiros exerciam certa liderança dentro da CEU. Assim como os homens, as mulheres logo se tornaram representantes estudantis e passaram a se destacar, tornando-se conhecidas pelos membros da coletividade: “[…] tínhamos uma visão de mundo feminista e de se impor. Eu me lembro das minhas vizinhas, colegas de andar, tu não via aquela menina mais quietinha, sem posicionamento”.12
No entanto, a relação com os funcionários era mais complexa. Ela crê que houve um processo de sucateamento e represália às Casas de Estudantes a partir do momento em que a Universidade abriu as portas para as mulheres. Relembrou o boicote constante das faxineiras que trabalhavam no local. “[…] Elas diziam assim: ‘agora tem mulher, elas que limpem’. Eu entrei no quarto e elas nunca mais limparam. Já os homens diziam: ‘varre aqui para mim’ e elas faziam sorrindo”.13
Por sua vez, Araeci afirmou que o assédio existia, mesmo que não o tenha sentido de forma acentuada, já que, ao ingressar na CEU, estava namorando e permanecia constantemente na presença do companheiro. Foi a sua experiência de sofrer uma tentativa de estupro na Casa dos Estudantes das Faculdades de Agronomia e Veterinária (CEFAV), quando ainda era solteira, que a fez supor que muitas mulheres podem ter vivido situações semelhantes e permanecido em silêncio por medo ou vergonha. Diferentemente das demais, ela percebia o público feminino como muito diverso, afirmando que nem todas as estudantes conseguiam se posicionar. Considerou que havia jovens quietas com tendência a se afastar de grupos maiores, permanecendo sozinhas dentro do ambiente.
Araeci rememorou a CEU como um edifício grande, onde as conversas se diluíam de forma rápida, o que dificultava caso alguém precisasse de ajuda. Outro ponto que ressalto de sua entrevista diz respeito à ideia das mulheres sobre o que, de fato, era assédio. No seu entendimento, as jovens da época não tinham o mesmo discernimento de hoje, pois a palavra assédio ainda era recente e existia uma naturalização em relação ao comportamento masculino. Suas colegas não compreendiam como violência sexual um homem tocar em suas amigas sem consentimento justamente porque existia esse vínculo de amizade entre eles.
Sobre o assunto, Céli Pinto (2003) afirma que os anos de 1980 trouxeram à cena uma série de novos temas a serem debatidos na sociedade. As eleições de 1982 permitiram que muitas feministas começassem a ocupar cargos estaduais e federais, principalmente após a criação do Conselho Nacional das Mulheres, que teve um papel decisivo na construção da Constituição de 1988. Para a historiadora, o tema da violência era tratado como um tabu e ficava restrito à esfera privada. O homem ainda era considerado o portador de todo e qualquer direito sobre as pessoas que residissem sob seu teto. Desse modo, intimidar, agredir e até mesmo assassinar uma mulher era um direito concedido pela legislação.
Ainda segundo Pinto (2003), foi no início da década de 1980 que surgiram as primeiras organizações de apoio às vítimas de violência e somente em 1985 ocorreu a criação da primeira delegacia da mulher, fato que alterou os rumos da história, uma vez que elas passaram a ser, ao menos legalmente, compreendidas como vítimas e não mais como culpadas. Sendo assim, é possível compreender que a Casa do Estudante estava inserida dentro dessa temporalidade, cujas noções sobre assédio e violência sexual ainda estavam sendo construídas. As narrativas de Roselaine, Araeci e Gorete apresentam visões que ora se assemelham, ora são distintas sobre esse tema. Embora ocupassem lugares de destaque e fossem jovens com formação, militantes vinculadas a partidos políticos, suas memórias e experiências são distintas, logo, as formas de relembrar o passado também o são. Para Roselaine, as mulheres que entravam na CEU tinham um perfil libertário, voltado para o campo da esquerda e, por isso mesmo, sabiam dizer aquilo que queriam: “[…] no grupo que eu convivia, nós éramos muito fortes do ponto de vista de intervenção, de colocação, nenhum cara iria chegar para nós e nos molestar, impossível! Impossível porque éramos muito fortes de argumentos”.14
Gorete também afirma que as investidas, tanto morais quanto sexuais, não ocorriam porque elas eram jovens que possuíam um ativismo dentro e fora da instituição, o que lhes dava poder em relação aos homens. Ainda assim, citou reuniões em que os moradores as tratavam de forma pejorativa, com frases do tipo “as feministas são feias”, “as gurias daqui [CEU] são só para sexo”.15 Examinado sua narrativa, interpreto que o desdém masculino pode ser compreendido como uma forma de silenciar a voz dessas jovens que ocupavam um espaço ainda pouco usual para elas. Perrot (2005, p. 10) discute que o silenciamento das mulheres foi um mandamento reiterado por séculos pelo patriarcado. Segundo a autora, a aparição feminina em assembleias políticas e ambientes públicos era atrelada à histeria e a um alarido semelhante ao atribuído às prostitutas. Nessa direção, entendo que mesmo numa convivência mista e aparentemente democrática, o resguardo – tanto do corpo quanto da voz – era idealizado por alguns moradores, sendo manifestado em frases e insinuações como as mencionadas por Gorete.
Já Araeci afirmou que o assédio contra as mulheres era frequente, mas muitas não sabiam nomear a situação, permanecendo caladas. “Ninguém pensava nisso porque a gente não tinha essa consciência.”16 Ela relata que, na época em que foi agredida na CEFAV, não soube como agir e não registrou queixa na UFRGS, sendo que a única coisa que lhe ocorreu foi tentar sair de imediato do local.
[…] Se fosse hoje eu teria denunciado o cara, mas na época isso não ocorria. Uma porque ninguém iria dar bola. Dois porque ninguém iria acreditar em mim. Três porque se alguém acreditasse, não ia ter para onde recorrer. Não quis morar com um bando de homem, era isso que iam me dizer.17
Há que se levar em consideração que as estudantes que habitaram a Casa nesse período de transição – saindo de um modelo masculino e iniciando um misto – podem ser consideradas precursoras. Elas buscavam na assistência um meio de permanecer no ensino superior. Todavia, não se pode generalizar que fossem todas voltadas para a atuação política e militante. É possível que muitas jovens não se interessassem por esse tipo de assunto e apenas precisassem de um local para morar enquanto davam sequência aos estudos. Além disso, a fala de Araeci é um indício de que, independente da posição política e formação, havia, sim, muitas formas de assédio/violência, sendo ela mesma uma das vítimas. É
17 Idem .
provável que Roselaine sequer soubesse o que ocorreu com a amiga, uma vez que afirmou que jamais aconteceria algo do tipo com as mulheres do seu meio.
Cumpre evidenciar que Araeci, ao concordar com a entrevista para a pesquisa, não pensava em enveredar por esse episódio, mas os caminhos que a memória percorre são complexos e um assunto leva a outro. Quando mencionou o tema, perguntei-lhe se sentia tranquilidade para falar, considerando que é um assunto delicado e, mesmo após muitos anos transcorridos, poderia evocar um trauma. Sua resposta foi taxativa: “Consigo!”.18 Parece-me que ela não só sentiu necessidade de contar, talvez liberando um sentimento preso, como encontrou alguém que pudesse acolher sua fala. Pollak (1989, p. 6) discute que algumas memórias traumatizantes esperam o momento propício para serem expressas, sendo importante para o sujeito que relata seus sofrimentos “encontrar, antes de tudo, uma escuta”. Pode-se inferir que a realização de uma entrevista abrangendo o tema da Casa do Estudante foi o estopim para que essa memória pudesse ser reativada e expressada oralmente.
Outro aspecto que chamo atenção é para a narrativa de Roselaine sobre a construção do passado. Sua fala foi marcada pela noção de que as mulheres da sua época eram mais independentes, tinham maior liberdade sexual e paridade com os homens. Essa construção parece ir de encontro à própria situação que a CEU enfrentou poucos anos antes da sua entrada, quando elas sequer podiam dividir a mesma habitação com o público masculino. Suas memórias me remetem ao estudo de Thomson (1997), quando esse afirma que o modo como identificamos quem éramos no passado está diretamente relacionado àquilo que somos no presente e ao que gostaríamos de ser.
Roselaine é uma pessoa ativa. Trabalhou como educadora na rede pública municipal por muitos anos, trilhando um percurso importante na promoção da educação de jovens e adultos. Foi a única que fez doutorado fora do Brasil, se projetando a partir dele para diferentes esferas, inclusive a acadêmica. É importante ter em vista que a forma como ela compõe suas reminiscências passadas valoriza seus percursos e promove um sentido à sua vida.
Examinando as três narrativas, entendo que não necessariamente as mulheres tivessem maior liberdade que as de hoje, mas que, ao seu modo, construíram espaços de fala, adentrando locais antes não ocupados e atuando em cargos de liderança. Esses movimentos foram construídos gradativamente, por meio de disputas que emergiam à medida em que elas cruzavam novas fronteiras. A CEU, nesse ínterim, parece exercer um papel importante nas suas
vivências, uma vez que dentro da Casa algumas se engajaram na gestão, sendo reconhecidas por suas contribuições. Por isso, uma análise da participação delas nesse local implica produzir uma inteligibilidade acerca dos possíveis significados do morar.
“Tudo é disputa”: a participação feminina na gestão administrativa da CEU
[…] Gostaríamos de deixar claras duas coisas: 1º a nossa chapa é uma chapa ampla, onde não se fez (e não se faz) restrição alguma em se tratando de partido político ou qualquer outro aspecto, ao contrário do que dizem alguns malinformados ou mal-intencionados. Todos temos, individualmente, um partido, o que não significa que seja o mesmo para todos da chapa. 2º a posição machista, antiquada e absurda de afirmar que mulher não pode ocupar os primeiros cargos (presidência, 1ª e 2ª secretárias) não nos atinge em absoluto, e é por isso que nossa chapa é “encabeçada” por mulheres, as quais conquistaram um direito que lhes cabe: igualdade (CEU-UFRGS, 1986).
O excerto acima está no verso de um documento encontrado no Arquivo da CEU. Intitulado “Manifesto”, ele tinha como objetivo ser lido na assembleia de moradores, de 1986, convocada para o debate entre as chapas que concorreriam à diretoria. Rasurado, marcado pelas manchas do tempo e com partes ininteligíveis, esse pedaço de papel escrito à mão em folha timbrada é um vestígio das disputas travadas entre homens e mulheres e permite um vislumbre de como a ascensão delas aos cargos mais elevados provocava incômodo.
Ainda que o documento demonstre uma insatisfação na maneira como estavam lidando com a participação feminina, algumas entrevistadas consideram que havia possibilidade de debate. Gorete, por exemplo, relembra que logo após ingressar na CEU, começou a namorar e a formar grupos. Ela e os colegas entendiam que havia uma necessidade de modificar a maneira como o local estava sendo gerido, descentralizando o poder por parte da Reitoria. Foi nesse período que começaram a discutir critérios para ingresso e permanência, o que ocasionava muitas divergências de pontos de vista.
Quando questionada se as mulheres eram ouvidas nas reuniões de moradores, visto que ainda estavam em minoria, ela considerou que sim: “tínhamos espaço para se colocar […] a gente já tinha uma militância, éramos
No entanto, em determinados momentos, deixava escapar que os homens tratavam-na de forma desdenhosa, por vezes infantilizando as suas colocações nas assembleias. A CEU foi de extrema importância para Gorete em razão das dificuldades que encontrava para conciliar seu trabalho e seus estudos, o que me leva a refletir se, em algumas ocasiões, não há certa idealização na forma com a qual ela concebe as relações ali construídas. Destaco seu relato sobre um episódio do morador que dava choques elétricos na namorada e o fato de rapazes andarem sempre empunhando facas, criando um clima de tensão contra as mulheres.
Para Roselaine, o período em que habitou a CEU foi de intensa participação feminina. Muitas se evidenciavam por atuarem no Diretório Central de Estudantes (DCE), diretórios acadêmicos e sindicatos, o que dava uma forte referência para se posicionarem. Ainda assim, afirmou que tudo era disputado, embora considere que muito mais pelas vertentes políticas do que pelo machismo: “[…] coordenar uma assembleia na CEU era difícil. Tinham grupos muito distintos dentro da Casa do Estudante”. 20
Os embates surgidos no âmbito da moradia mista podem ser examinados a partir da ótica de Louro (2004, p. 479), para quem as representações de feminino e masculino foram construídas historicamente, demarcando as posições que cada sujeito deveria ocupar na sociedade. Se por um lado essas construções tornaram-se legitimadas e até mesmo naturalizadas socialmente, por outro a autora defende que as mulheres não eram simplesmente subjugadas e dominadas, considerando que mesmo “nas situações em que mais se pretendia silenciá-las e submetê-las, elas foram capazes de engendrar discursos discordantes, construir resistências e subverter comportamentos”, o que é bastante perceptível na fala das narradoras.
Roselaine relembrou que um dos grupos com mais conflitos eram os ligados à corrente política do anarquismo, em sua maioria formada por homens. Eles reclamavam que os “novos” moradores estavam transformando a CEU em um “hotel de luxo”, em razão das melhorias realizadas. Ela mencionou a disputa pelo bar situado no primeiro andar, o qual seu grupo fez uma reformulação, ampliando o buffet, e, por isso, foram acusados de estarem “capitulando para a sociedade burguesa”. 21 Do ponto de vista do machismo, deu a entender que havia
21 Idem .
respeitadas nas nossas colocações, era bem democrático nesse aspecto”.1919 Gorete Losada, entrevistada por Fabiana Pinheiro da Costa, em 2018. 20 Roselaine Aquino da Silva, entrevistada por Fabiana Pinheiro da Costa, em 2019.
concentrações por andar, sendo o das engenharias o mais problemático, mas, ainda assim, justificou que havia sempre uma postura democrática para todas as decisões “[…] é tipo reunião de condomínio, têm pessoas que se impõem, são mal-educadas e querem ganhar no grito”. 22
Em 1985, ela e os amigos retomaram a Associação dos Moradores, que estava abandonada. Com isso, começaram a organizar e mobilizar novas pautas para qualificar o ambiente. Realizaram melhorias na estrutura, principalmente nos banheiros que eram de uso coletivo. Segundo a entrevistada, foi aberta uma nova licitação para o bar que, mais tarde, tornou-se um lugar importante para os estudantes por ser um espaço de reuniões políticas. Além disso, houve uma negociação para que o circuito elétrico da moradia fosse revisto, possibilitando o uso de eletrodomésticos de pequeno porte nos quartos “eu tinha uma geladeirinha e até feijoada fiz no quarto da Casa do Estudante. Foi toda uma retomada estrutural”. 23
O Departamento de Cultura da CEU, dirigido por Roselaine, elaborou o Projeto “Nova Casa – Nossa Biblioteca”. Em um rascunho encontrado no arquivo, são explicitadas as dificuldades que os jovens encontravam para se acomodar e estudar. Não encontrei vestígios sobre os resultados das assembleias e da organização dos moradores em prol da nova biblioteca, mas um documento datado de 14 de agosto de 1986, dia da inauguração, indica a lista de presença, constando as assinaturas de Roselaine e Gorete. Tal vestígio demonstra que havia uma participação ativa das mulheres na gestão administrativa e que elas conseguiam, mesmo com múltiplos entraves, levar adiante os projetos.
Uma das formas que os organizadores da Associação encontraram para se comunicar com os moradores foi criar um boletim que circulasse internamente. Nesse informativo, eram apresentadas as pautas a serem discutidas nas reuniões e as projeções futuras. Localizei um exemplar de 12 de setembro de 1985, época em que tanto Roselaine quanto Gorete eram integrantes. Com o título AMCEU Novo Tempo, o documento lista uma série de procedimentos a serem executados para melhorar o funcionamento cotidiano. Dentre esses itens, destacam-se a instalação de máquinas de lavar roupa, a campanha de conscientização para o cuidado com os móveis, a formação de uma comissão de imprensa destinada a redigir notas e divulgar as decisões tomadas pela diretoria, as negociações das bolsas de estudos e a tentativa de organizar um arquivo com todo material produzido.
Como mencionado anteriormente, havia muitos embates em torno dos cargos. Um indício desses desentendimentos pode ser vislumbrado no rascunho de uma carta que deveria ser endereçada aos moradores. Com o título “Avaliação da gestão Novo Tempo”, o documento faz uma crítica à forma como eram concebidos os projetos dentro da CEU e acusa a administração de exclusão e autoritarismo. Consta também que os diretores da AMCEU não organizavam as atas das reuniões e tampouco prestavam contas dos recursos destinados, inviabilizando a confiança. Por fim, há um questionamento ao “barulho” das conquistas que afirmavam serem obras de sua gestão, pontuando que a maior parte dos benefícios era proveniente do orçamento da Universidade, portanto, aquilo que comunicavam ao público como conquista era, na verdade, algo que aconteceria independente deles estarem no poder.
Se, por um lado, Roselaine e Gorete participavam ativamente das decisões, por outro lado, Araeci, que ingressou dois anos mais tarde, não tinha interesse em como acontecia a administração. Para ela, as reuniões tinham pouca praticidade e a votação para todo e qualquer projeto inviabilizava a realização de melhorias. Ela escolheu participar de uma militância que fosse mais “prática” e com resultados significativos, como a construção do Diretório Acadêmico das Ciências Sociais e o próprio DCE. Todavia, chegou a se envolver em algumas comissões dentro da CEU. Quando questionada sobre o papel da mulher nessas reuniões, avaliou que, por ser muito jovem, não conseguia identificar que o fato de os homens infantilizarem suas opiniões era por machismo e por conta disso deixou tais situações ocorrerem. Também relembrou que, na época, as moças não se organizavam para discutir demandas específicas do feminismo, o que hoje considera como uma experiência prejudicial.
Isso é pra depois da revolução! Até que viesse a revolução, discutir feminismo era uma coisa burguesa e egoísta. Não era o momento da discussão das mulheres, primeiro tinha que libertar os trabalhadores do jogo capitalista e todo o resto tinha que esperar. Discussão étnica, discussão feminista só ia desviar do verdadeiro assunto. É mais recente essa coisa de não existir escala entre as diferentes lutas. 24
Sobre esse assunto, Gorete tem posição semelhante e considerou que as estudantes entravam na Casa assimilando a sua forma de funcionamento. Como era um período incipiente de conquistas, não havia espaço para as demandas “específicas” do público feminino. Ela citou o exemplo do banheiro coletivo, que era um problema, mas nunca chegaram a tecer esse tipo de comentários em
assembleia porque “pareceria egoísta”, 25 Araeci também relembrou o fato de os banheiros serem complexos pela quantidade de importunação que recebiam dos homens. Por fim, comentou sobre a situação das jovens que engravidavam na CEU e acabavam sendo rejeitadas.
Uma vez tinha uma guria que teve filho e quis ficar. Aí os homens se juntaram e disseram que ia ser o fim da Casa do Estudante. Tinha a discussão que crianças pertenciam às mulheres. […] A Universidade achava que as Casas do Estudante não eram para mães e elas tinham que dar algum outro fim. O entendimento dos moradores da Casa é que então as mulheres fossem cuidar coletivamente das crianças, que isso não competia aos homens, iria atrapalhar a concentração masculina. 26
Em 2005, o Jornal da UFRGS fez uma entrevista 27 sobre o primeiro bebê da Casa do Estudante Universitário. Vivian Camila Dall’Alba, nascida em 1985, comentou que seu pai era graduando do curso de engenharia e namorava sua mãe, ainda secundarista, quando ela engravidou e foi viver com ele. Os moradores, ao descobrirem a gravidez, realizaram uma assembleia para decidir a permanência da jovem, que não tinha vínculo com a Universidade. Optaram pelo aceite e Vivian acabou nascendo e vivendo seus primeiros oito meses de vida em coletividade. Na época da reportagem, a responsável pelo Departamento de Serviço Social comentou que, embora o regimento interno não proibisse a presença de bebês, procurou esclarecer que a CEU não era um local adequado para a formação de um recém-nascido.
O debate sobre a presença de crianças na Casa do Estudante Universitário se estende há anos, não havendo um consenso a respeito do assunto. Nesse sentido, é importante refletir como a maternidade colaborou historicamente para limitar as mulheres. Segundo Biroli (2014, p. 115), a partir do momento em que elas engravidam há uma “restrição a determinadas atividades e formas de vida que são consideradas conflitivas com a divisão sexual do trabalho”, o que as retira do trabalho e impede sua ascensão econômica e social. Ainda hoje, a Universidade tenta remover as estudantes grávidas de um ambiente que lhes
25 Gorete Losada, entrevistada por Fabiana Pinheiro da Costa, em 2018.
26 Araeci Carvalho da Luz, entrevistada por Fabiana Pinheiro da Costa, em 2019.
27 Jornal da Universidade , novembro de 2005, p. 7. Disponível em: https://issuu.com/jornaldauniversidade Acesso em: 20 out. 2021.
garante a continuidade aos estudos, o que nos mostra como as barreiras para a presença feminina na CEU ainda permanecem vigentes. 28
Em um ensaio publicado em 1929, Virginia Woolf escreveu que para uma mulher se estabelecer intelectualmente seria necessário que ela tivesse um quarto, um espaço livre de interrupções, alheamentos e desatenções, ou seja, tempo suficiente para se dedicar ao pensamento. Ainda assim, esses itens não seriam suficientes sem recursos financeiros ou validação social, dois fatores quase inexistentes na vida feminina até início do século XX. A partir dessa premissa, seria possível cogitar a CEU como um ambiente que proporcionaria a liberdade física e intelectual às estudantes da UFRGS? Em parte sim, em parte não. Como demonstrado no decorrer dos outros subtítulos, a moradia estudantil está longe de ser um espaço individual e calmo, funcionando sob um aspecto muito distinto do preconizado por Virginia. Por outro lado, há elementos importantes na sua oferta ao público feminino que podem ser pensados a partir da ótica da escritora.
Um dos principais temas de Um teto todo seu é a educação das mulheres. Durante séculos, o direito de usufruir de instrução formal foi destinado quase que exclusivamente aos homens. Assim, é preciso se transpor ao cenário deste estudo e entender que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul construiu um grande edifício para moradia, possibilitando somente aos rapazes dar sequência aos seus estudos. Por mais 10 anos esse espaço foi vetado às moças. A partir do momento em que a Casa se transforma em um ambiente misto, abre-se um leque de oportunidades a elas. O pressuposto de Virginia Woolf dialoga com essa moradia, uma vez que a possibilidade de assistência estudantil permitiu às mulheres maiores chances de concorrerem a um diploma de nível superior, aumentando a competitividade por salários e por reconhecimento social e profissional. Sendo assim, considero importante discutir como a CEU é significada nos itinerários de vida dessas antigas moradoras.
É preciso explicitar que suas memórias se relacionam a outras dimensões de suas vidas. São narrativas elaboradas a partir dos locais que ocupam no presente, mas também dos seus lugares e experiências do seu passado. Eclea Bosi (2016) afirma que os sentimentos nostálgicos são importantes na análise
28 Em 2013 houve uma grande mobilização entre os moradores da CEU quando a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade encaminhou uma nota de despejo para uma estudante quatro dias após o nascimento do seu filho.
historiográfica, pois são intrínsecos à condição humana. A memória permite perceber a complexidade de um acontecimento, carregando-o de sentidos e de uma função importante na elaboração das representações que cada um constitui.
As mulheres que comparecem neste estudo afirmaram a importância da moradia para a sua formação no nível superior. Sem a assistência estudantil não teriam conseguido concluir essa etapa de suas vidas. Uma boa estrutura para morar permitiu que as três conciliassem a universidade e o trabalho. Os vínculos afetivos que formaram e o aprendizado de uma convivência coletiva também marcaram suas falas.
Araeci, por exemplo, afirmou que sem a Casa não teria finalizado a graduação, já que sua família se mudou para Belo Horizonte na época em que ela foi aprovada no vestibular. Seu desenvolvimento intelectual aconteceu porque houve garantia pública para isso e sua melhoria financeira é atribuída às oportunidades de estudo. Ao falar sobre o tema, suas palavras deixam clara a relevância da UFRGS:
Não foi importante, foi o único jeito. Se não tivesse a casa do estudante, isso é coisa que digo para todo mundo, eu não teria estudado. Se não tivesse passado na UFRGS eu não teria feito uma graduação, se não tivesse a casa eu não teria frequentado a UFRGS. Eu iria trabalhar em uma loja ou teria ficado como professora de alguma creche para o resto da vida, porque não teria como dar prosseguimento. Eu iria ficar trabalhando em escolinha ganhando salário-mínimo e iria estar assim até hoje. 29
Ela entende que a CEU foi seu lar porque a acolheu mais que a CEFAV (Casa dos Estudantes das Faculdades de Agronomia e Veterinária), encontrando nesse ambiente melhores condições de vida. Foi onde se casou pela primeira vez e ficou grávida desse relacionamento. Araeci e o ex-marido mantêm vínculos afetivos que perduram até os dias de hoje, não só em razão da filha, mas pelo laço de amizade que construíram desde os tempos da moradia estudantil. Suas palavras permitem entrever que havia cumplicidade entre os grupos que se formavam na Casa, havendo um sentimento de pertença entre alguns deles. “A gente era uma família que nem adolescente que diz que vai morrer pelo amigo, éramos assim porque estávamos longe da própria família.”30 Para ela, existiam situações que os aproximavam de uma maneira distinta em função da intimidade construída, mas principalmente por conta da juventude.
30 Idem .
Gorete tem posição semelhante à sua antiga colega. A CEU foi para ela um espaço de crescimento em diferentes aspectos e lembrada com entusiasmo. Nela, encontrou oportunidade de investir nos estudos, principalmente no tocante aos quartos que ocupou: “[…] sem a Casa não teria concluído o curso de matemática. Lá eu tinha mais condições para estudar. A estrutura do quarto era boa. Tinha uma mesa, uma escrivaninha, uma luz adequada”. 31 Além disso, considerou que viver com diferentes grupos a fez crescer como pessoa. Os laços de parceria também foram mencionados como importantes nas marcas que a moradia estudantil deixou: “[…] a gente teve essas convivências, até porque muitos não tinham famílias aqui em Porto Alegre, era um jeito de se aproximar mais. Éramos uma referência para a gurizada, acolhíamos uns aos outros”. 32
Para ela, o convívio coletivo foi um dos maiores aprendizados. Respeitar o tempo do outro e negociar a ocupação de um quarto foi algo que lhe deixou lembranças que ressoaram na vida. Sua primeira experiência foi com uma moradora com a qual não conseguiu viver em harmonia, ainda assim foi obrigada a administrar a situação até que pudesse estar com alguém que tivesse maior afinidade. Gorete afirmou que tudo era negociado porque a Casa pertencia a ela, mas também aos outros.
Muita coisa tem que partir de ti. Se tu deixares um banheiro sujo, o teu colega não vai gostar de tomar banho nesse banheiro. Eu convivi com muitos estudantes da física, biologia, sociologia, engenharia e cada um com suas ideias e pensamentos. É conhecer as pessoas. Por incrível que pareça tu acaba convivendo muito. 33
Roselaine, assim como sua colega, ressaltou a importância da infraestrutura que a Casa oferecia, salientando que houve muito trabalho dos moradores para que novas conquistas e melhorias fossem feitas. O local oportunizava às jovens, principalmente as de baixa renda, ter um ambiente exclusivo para se dedicar aos estudos, algo que muitas não tinham. “A Casa viabiliza porque tu tens uma escrivaninha montada, é só sentar e ler. É uma estrutura boa para poder ter uma disciplina de leitura.”34 Mesmo com as dificuldades, a CEU era o seu lar. Era onde podia assistir televisão, receber amigos e cozinhar. No entanto, essas atividades não vieram de forma espontânea, foram necessárias lutas e negociações para o quarto de dormir se transformar em uma Casa de verdade.
“Nós tivemos que batalhar para que fosse feita uma reforma elétrica, ajustes. Hoje, imagino que todos tenham televisão, wifi , mas foi luta, tudo foi luta.”35
No aspecto afetivo, Roselaine também construiu ligações que perduram até os dias de hoje. Foi na CEU que conheceu seu marido, com quem é casada há mais de 35 anos e boa parte de seu atual grupo de amigos um dia compartilhou com ela a moradia. Contudo, ainda que considere a vivência e as conquistas importantes, destacou, ao longo de sua narrativa, que sempre quis sair. Uma das primeiras sinalizações sobre isso foi ao afirmar que seu “sonho de consumo” era o quarto individual, restrito a pouquíssimas pessoas. Nunca chegou a conquistar um só para si, sendo toda sua estadia compartilhada. Entretanto, quando começou a namorar, conseguiu mais privacidade, tendo em vista que seu colega era seu parceiro amoroso.
Do ponto de vista da individualidade, é um espaço coletivo e que tu tens que aprender a viver. Enquanto estava ali eu gostava, mas estava louca para sair. Eu queria poder ter a minha casa, cozinhar sem pensar que a luz vai cair. Queria chegar e receber as pessoas que viessem me visitar sem negociar a hora para que elas saíssem. Queria tomar um banho de mais de 20 minutos. Queria ir ao banheiro fazer minhas necessidades sem pensar que estou incomodando a pessoa que está lavando as mãos. Coisas do dia a dia que são difíceis ali. 36
Das ex-moradoras entrevistadas, Roselaine foi a única que mencionou sua vontade de deixar a Casa e falou de forma explícita sobre suas dificuldades em morar com muitas pessoas. Ao serem questionadas, tanto Gorete quanto Araeci mantiveram o discurso das redes familiares e da importância de viver na coletividade, talvez imbuídas de uma nostalgia da juventude. Ainda assim, Roselaine afirmou que as marcas positivas foram fortes e lhe permitiram viver a experiência de uma Casa de Estudante mais uma vez, quando cursou seu doutorado na Espanha.
As narrativas apresentadas por essas ex-moradoras permitem perceber que o investimento na formação educacional por meio do acesso e permanência no ensino superior era entendido como uma forma de ascensão social e uma possibilidade de disputar vagas no mercado de trabalho com os homens. A necessidade de um local para morar que oferecesse uma estrutura, ainda que mínima, deu a tônica de seus relatos. Permeando isso, as relações de trabalho, afeto e parcerias amorosas, bem como a aprendizagem de novas formas de se
relacionar e se deparar com dificuldades de diferentes ordens são situações que ressoaram na constituição das subjetividades dessas mulheres. Ademais, estar na Casa foi uma possibilidade de transgressão a um determinado modelo feminino ainda atrelado a uma sociedade machista. A conquista da moradia mista vem ao encontro do desejo de emancipação feminina no âmbito social, político e econômico e demarca essa nova ocupação delas em espaços que até então lhes era negado.
No princípio deste artigo, procurei demonstrar como as inquietações do tempo presente nos impulsionam a buscar o passado. Estender o olhar para um período que não é mais o nosso e procurar possíveis explicações é uma tarefa difícil, ainda que necessária. As recentes investidas contra as universidades públicas e as tentativas de barrar os diferentes grupos que hoje acessam o ensino superior demonstram a urgência das pesquisas historiográficas. O passado não dará todas as respostas, mas pode sugerir caminhos a percorrer.
No ano de 2020, no contexto da pandemia da Covid-19 que atingiu o mundo, a Universidade lançou uma pesquisa 37 por meio do Comitê HeforShe em parceria com o Projeto Meninas na Ciência sobre a percepção do assédio sexual e moral no tocante ao gênero no ambiente universitário. Os primeiros resultados desse trabalho apresentam dados importantes, já que as mulheres foram a maioria das respondentes em todas as categorias: professoras, estudantes e técnicas-administrativas. Foi possível constatar que um número elevado já sofreu os dois tipos de assédio, ainda que os índices de subnotificação sejam altos. Essas “zonas mudas” (PERROT, 2005, p. 9) são vestígios do quanto o tema ainda está carregado de tabus e há uma dificuldade em lidar com o assunto nas instâncias responsáveis.
A Casa do Estudante Universitário é um ambiente integrado à UFRGS, embora, muitas vezes, pareça estar à margem de suas políticas. O fato das moradoras, em 2016, terem denunciado os assédios que sofreram e uma série de entraves erguerem-se para que uma medida legal fosse estabelecida, leva a pensar que muito passado ainda habita o presente dessa instituição. Nessa direção, o que procurei evidenciar ao longo do texto é como a CEU é um lugar necessário para que as jovens tenham assegurado um espaço para viver enquanto
cursam o ensino superior, tendo em vista que a formação é um, entre tantos fatores, que pode lhes impulsionar a uma melhoria na qualidade de vida. Desse ponto de vista, é necessário se perguntar e refletir como as vivências nesse (e em todos os espaços acadêmicos) estão colaborando para que elas tenham o direito de estar sob esse teto.
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WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014.
O presente estudo1 examina o Colégio de Aplicação (CAp), uma escola de educação básica do município de Porto Alegre/RS, fundada e mantida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e que, nos primeiros trinta 30 de existência, esteve fortemente ligada à Faculdade de Educação (Faced) da mesma Universidade. O corpus documental que embasa esta análise é um conjunto de narrativas de professoras2 , exames de admissão e provas de seleção para ingresso na instituição. Estes documentos estão localizados no Arquivo da Faculdade de
Educação da UFRGS (Faced)3 e no Arquivo da Comissão de Ensino (COMEN) do Colégio de Aplicação.
1 O presente artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS, em 2016.
2 Realizei, durante o Curso de Mestrado, entrevistas com cinco professoras que atuaram no CAp/UFRGS ao longo dos seus primeiros 30 anos. Também foram consultadas entrevistas de professoras aposentadas que compõem os documentos do Arquivo da FACED, bem como publicações de Graciema Pacheco e Isolda Holmer Paes, primeiras diretora e vicediretora da instituição, respectivamente.
Neste texto, a narrativa de memória é compreendida como um documento com valor informativo obtido por meio da história oral. Este procedimento metodológico busca, pela construção de documentos orais, registrar “interpretações sobre a história em suas múltiplas dimensões” (DELGADO, 2010, p. 15). A opção por trabalhar com a representação do passado pela rememoração de cinco professoras foi uma forma de valorizar suas trajetórias profissionais e suas percepções acerca das práticas educativas vivenciadas.
O caminho metodológico desta pesquisa, que entrelaçou narrativas orais e documentos escritos, assumiu contornos que foram “da memória para o arquivo e do arquivo para a memória” (MAGALHÃES, 1999, p. 2), buscando a complementaridade entre os fatos rememorados e os discursos presentes nos papéis guardados nos arquivos. Na perspectiva de Justino Magalhães, ao utilizarmos os documentos memorialísticos e arquivísticos, podemos construir uma narrativa coerente sobre a identidade histórica da instituição e compor um mosaico que evidencie os múltiplos aspectos daquele passado escolar. Compreende-se, assim, que “o estudo interpretativo das escolas, deriva, […] da compreensão da singularidade” (SARMENTO, 2003, p. 145) da instituição, que não está isolada em sua comunidade, mas inserida em diferentes esferas.
Temos, então, uma pesquisa inscrita no campo temático da história da educação e conectada à história das instituições educativas. António Nóvoa (2005) nos alerta que a produção historiográfica da educação não deve se limitar a simples descrição de pessoas e acontecimentos relacionados às escolas. Pelo contrário, deve procurar compreender, por meio da construção de problematizações, o papel dos sujeitos e de suas identidades como agentes desta mesma história. Deste modo, uma narrativa verossímil sobre o percurso da instituição escolar não deve ser um processo laudatório, mas de compreensão acerca daquele espaço onde se produzem culturas que, ao longo de sua história, estiveram em constante movimento.
Nesta direção, Gatti Jr. (2002) enfatiza que as pesquisas no interior da instituição educativa são investigações que ocorrem pela “apreensão daqueles elementos que conferem identidade às escolas, ou seja, daquilo que lhes confere um sentido único no cenário social, mesmo que elas tenham se transformado no
3 Neste arquivo estão guardados papéis produzidos na Faculdade de Educação/UFRGS, no Colégio de Aplicação da Universidade, documentos de diferentes temporalidades oriundos dos Departamentos da FACED e de setores administrativos de ambas as unidades acadêmicas, bem como papéis, cadernos, agendas e outros documentos doados por professores. Sobre o Arquivo da FACED ver Almeida, 2021.
4 A Comissão de Ensino (COMEN) é um órgão consultivo responsável, entre outras ações, por propor ao conselho de unidade, a organização curricular e atividades correlatas no Ensino Fundamental e Médio. https://www. ufrgs.br/colegiodeaplicacao/ensino/
decorrer dos tempos” (GATTI JR., 2002, p. 20). Para o autor, vários dispositivos5 constituem uma instituição deste tipo, dentre eles se destacam aspectos como a ação educativa em si e os sujeitos que dela fazem ou fizeram parte.
Este estudo, que une sujeitos e práticas, busca destacar um elemento que esteve presente no mosaico que compôs o Colégio de Aplicação da UFRGS, o imaginário sobre o “mito do aluno gênio” (PACHECO, 1974, p. 9) que, entre 1950 e 1980, sugeria que os alunos do CAp figuravam entre os melhores e os mais inteligentes estudantes da cidade. Devido a esta ideia ter sido emblemática quando se fala desta instituição, a presente pesquisa objetiva compreender a emergência e a manutenção de tal mito nas décadas selecionadas, ao mesmo tempo em que confere visibilidade às pessoas que possibilitaram que o Colégio fosse uma escola-laboratório, conectada especialmente à Escola Nova.
A Escola Nova ou Escola Progressista, iniciada na Europa nas últimas décadas do século XIX, propunha-se a ser um movimento de renovação do ensino e visava, entre outras ações, à introdução de métodos ativos, a substituição das provas tradicionais e a valorização das experiências pessoais dos estudantes no processo de aprendizagem. Em tese, deveria fundamentar o processo educacional para uma escola integral, ativa, prática e autônoma (SAVIANI, 2008). As então designadas escolas novas foram, gradativamente, ganhando espaço em instituições da America do Norte e do Brasil, no começo do século XX. Para Lourenço Filho (2002), a Escola Nova não se referia “a um só tipo de escola, ou sistema didático determinado, mas a todo um conjunto de princípios tendentes a rever as formas tradicionais de ensino” (p. 58).
Importante destacar que a função dos Colégios de Aplicação, instalados nacionalmente em Universidades Federais, era constituir-se em campo de experimentação pedagógica, ou seja, uma escola-laboratório destinada à promoção de testagens de experiências de ensino-aprendizagem que dariam ao Ministério da Educação subsídios para rever as propostas escolares (LIMA, 2016). A elaboração deste tipo de instituição educativa iniciou-se na esteira dos estudos escolanovistas, que colocavam o educando, ao menos teoricamente, no centro da ação educativa e difundiam um pensamento pedagógico diferenciado. Cabe dizer que a influência da Escola Nova na educação brasileira pode também ser observada se levarmos em consideração o aumento dos debates sobre a igualdade
5 O conceito de dispositivo em Foucault está vinculado aos aspectos genealógicos de sua obra e se relaciona à discussão de poder. Uma definição possível de dispositivo afirma que “dispositivo é a rede de relações que podem ser estabelecidas entre elementos heterogêneos: discursos, instituições, arquitetura, regramento, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. o dito e o não dito. o dispositivo estabelece a natureza do nexo que existe entre esses elementos heterogêneos” (FOUCAULT, 2001, p. 301).
e democratização do ensino, que resultaram desde o início do século XX em diferentes ações, como a implantação de reformas educativas regulamentadoras dos diferentes níveis e modalidades de ensino (NUNES, 2010).
Contudo, essa democratização do acesso ao ensino, no Brasil, parece ter sido uma questão mais teórica do que prática, pois entre 1931 e 1971 realizavam-se exames que selecionavam os estudantes mais aptos a ingressar no ensino secundário. Fato que gerava uma espécie de peneira que barrava a chegada de muitos estudantes àquele nível de ensino (BASTOS; ERMEL, 2014). Neste cenário, embora o Colégio de Aplicação da UFRGS intencionasse ser uma instituição diferenciada, não podia se furtar de também realizar anualmente exames de admissão ao Ginásio. Esta prática possuía uma legislação específica e podemos pensar que fosse executada de modo semelhante em todos os estabelecimentos de ensino oficiais. Entretanto, somente após a imersão no corpus documental da pesquisa, constatou-se que, no CAp, havia outro elemento que compunha a totalidade do processo seletivo: o teste psicológico ou de inteligência. A repercussão sobre a aplicação deste tipo de avaliação está no cerne da rememoração de algumas entrevistadas que o relacionam diretamente ao mito do aluno gênio.
Para este estudo, não é demais reforçar, os relatos das entrevistadas são compreendidos como representações do vivido em diferentes épocas, compartilhadas pelo uso da história oral como metodologia que nos conduz a reflexões sobre a cultura escolar presente no Colégio de Aplicação da UFRGS décadas atrás.
Antes de partir para a análise dos documentos em si, faz-se necessário conceituar o Colégio de Aplicação da UFRGS, pois, de acordo com Justino Magalhães (2004), para traçar o itinerário pedagógico de uma instituição educativa é preciso atentar para os aspectos que a compõem, em termos jurídicos, físicos e pedagógicos. A normatização, o espaço escolar e seu organograma, por exemplo, definem não apenas o modo como ela se apresenta à sociedade, mas também os sujeitos que a constitui e por ela são formados. Trata-se de uma dimensão que a contextualiza e regula localmente.
Cumpre destacar que o Colégio de Aplicação da UFRGS é fruto de uma política nacional que, a partir de1946, possibilitou a instalação de estabelecimentos de Ensino Secundário junto às “Faculdades de Filosofia Federais […] destinados
à prática docente dos alunos matriculados no curso de didática” (BRASIL, 1946, p. 1). Esta política parece ter iniciado com o estudo de educadores brasileiros, como Anísio Teixeira e Lourenço Filho que, após se aprofundarem no movimento da Escola Nova, iniciado nas últimas décadas do século XIX, principalmente na Europa, voltaram suas atenções para as propostas de organizações como o Instituto Jean-Jacques Rousseau, de Genebra, e o Teachers College da Columbia University, nos EUA (NUNES, 2010). Estes estabelecimentos se concentravam na investigação pedagógica com classes de experimentação para o estudo da infância. Seus professores, voltados à área da psicologia, defendiam uma prática pedagógica que valorizasse, ao mesmo tempo, aspectos racionais, emocionais e físicos para levar os alunos a uma aprendizagem satisfatória.
As tendências do pensamento educacional europeu e norte-americano podem ser consideradas as bases para a elaboração de uma escola experimental brasileira, os Colégios de Aplicação. Neste sentido, o Cap/UFRGS, desde sua instalação, apresentava à sociedade características de um estabelecimento de ensino considerado de vanguarda, fortemente influenciado por discursos educacionais que vinham do exterior.
Fundado em 1954, na então Faculdade de Filosofia/UFRGS e vinculado ao seu Departamento de Educação, o CAp tinha, entre outros, o objetivo de promover a prática docente de estagiários dos cursos de licenciatura da Universidade e legitimar-se como campo de investigação pedagógica (SCHÜTZ, 1994).
Enquanto esteve no campus central da Universidade, o Colégio ocupou salas no prédio da Faculdade de Filosofia (1954-1955), sendo de lá transferido 6 para um “pavilhão de madeira da Divisão de Obras da Universidade” (HESSEL; MOREIRA, 1967), que ocupou de 1956 a 1959. No início de 1960, como estava em franca expansão do número de matriculados, foi realocado em dois pavilhões de madeira, identificados como Brizoletas7, erguidos por convênio com a prefeitura, onde hoje é o estacionamento atrás da Rádio Universitária8 .
No ano de 1971, por força da implantação da Reforma Universitária9, a Faculdade de Filosofia, que até então oferecia mais de 15 cursos de graduação,
6 Esta transferência ocorreu devido a problemas gerados pelo barulho das crianças em um ambiente no qual os adultos estudavam. Para maiores informações sobre o tema ver LIMA, 2016.
7 Durante o governo de Leonel Brizola no Estado (1959 a 1963), o projeto educacional “Nenhuma criança sem escola no Rio Grande do Sul” construiu inúmeros prédios escolares que ficaram conhecidos como Brizoletas (QUADROS, 2003).
8 As rememorações acerca dos diferentes espaços ocupados pelo CAp no campus central são discutidas por Grimaldi e Almeida, 2018.
9 Reforma Universitária de 1968, Lei 5.540 (28/11/1968).
entre eles educação, história, letras e química, teve seus cursos desmembrados. Esse processo deu origem à nova estrutura da UFRGS, constituída de várias unidades universitárias, sendo uma delas a Faculdade de Educação (Faced). O Colégio de Aplicação, que fazia parte da Faculdade de Filosofia, passou a ser um órgão anexo à Faced e com ela dividiu, até 199610 , um prédio que fora construído com recursos do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP)11, no mesmo campus (LIMA, 2016).
Durante as primeiras décadas de funcionamento, estiveram à frente da gestão do CAp as professoras Graciema Pacheco (1910-1999) e Isolda Holmer Paes (1911-2002), diretora e vice-diretora, respectivamente. Ambas formadas pela Universidade do Rio Grande do Sul12 , sendo que Graciema graduou-se em Filosofia, em 1946 e Isolda em Letras Neolatinas, em 1947 (UFRGS, 1967).
As trajetórias pessoais das diretoras, apresentadas por elas em entrevistas nos anos 1990, dão pistas sobre o percurso que trilharam ao longo da vida profissional e que foram determinantes para a organização do CAp dentro da UFRGS. De acordo com os documentos, as gestoras mantiveram uma agenda permanente de estudos relativos às inovações no campo educacional, bem como contatavam13 sistematicamente educadores da capital, Minas Gerais, Uruguai, França14 entre outros países (HACKMANN, 2004; GOMES, 2003). Devido à relevância destes intercâmbios culturais para a dinâmica do colégio, este assunto voltará a ser abordado.
Após contextualizar a instituição, objeto desta análise, faz-se necessário apresentar o corpus documental que subsidiou minha aproximação com essa ideia dos alunos considerados geniais. As narrativas são compostas por cinco
entrevistas com professoras15 , hoje aposentadas, que estiveram no CAp entre os anos 1950 e 1980 e serão apresentadas individualmente a seguir (Quadro 1).
10 Desde então, o Colégio de Aplicação está sediado no bairro Agronomia, no Campus do Vale da Universidade.
11 O INEP possuiu diferentes nomes desde sua criação: Instituto Nacional de Pedagogia (1937), Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (1972) e, por fim, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2001), em reconhecimento pelos anos que o professor Anísio Teixeira esteve à frente do Instituto, proporcionando a expansão e privilegiando o desenvolvimento da pesquisa educacional.
12 Foi federalizada em 1950, quando adotou o nome atual de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
13 Ofícios e correspondências localizados no Arquivo da FACED mostram que Graciema Pacheco integrava um grupo de estudiosos ligados ao Ministério da Educação, que realizava missões em países estrangeiros e se reunia periodicamente para debater melhorias no sistema educacional. Em entrevistas concedidas (HACKMANN, 2004; GOMES, 2003), as educadoras traçam seus itinerários formativos.
14 Isolda Holmer Paes, durante a estruturação do CAp viajou à França para estudar no Centre International d’Études Pédagogiques (CIEP), de Sêvres. O Centro de Sèvres, como também é conhecido, foi criado por Gustave Monod, em 1945, e sucedeu à L’École Normale Supérieure , destinado a formar professoras (HACKMANN, 2004).
As entrevistas aconteceram entre novembro de 2014 e setembro de 2015 e elas narraram fatos relativos ao período em que estiveram no Colégio de Aplicação na condição de estudantes e/ou professoras.
O envolvimento destas docentes com a narrativa de histórias das quais fizeram parte evidencia que o trabalho da memória não é um exercício para “reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado” (BOSI, 2015, p. 55). Pois, no momento em que lembra, o sujeito reconstrói situações, imagens, sentimentos e atribui novos significados às experiências vividas. O que temos então não é o passado ipsis litteris, mas uma representação sobre ele com base nas experiências do sujeito que no presente recorda. As narradoras desta pesquisa reelaboraram o passado, tecendo lembranças e esquecimentos para produzir uma espécie de trama, capaz de descrever suas experiências profissionais e, em alguma medida, de vida. Essas tramas produzidas por elas não são simples, possuem marcas de distintas relações em seus percursos e são analisadas a partir do conteúdo discursivo expresso. No caso destas mulheres, são suas experiências, não só enquanto professoras do CAp, mas como pesquisadoras da educação, que, ao longo da carreira, influenciaram na composição do que disseram. Elas são ao mesmo tempo filhas, inclusive todas são filhas de professoras, esposas, mães e oriundas de famílias que proporcionaram uma estrutura favorável a que chegassem aos mais altos níveis de instrução, todas cursaram pós-graduação. Podemos dizer que pertencem a uma determinada camada da sociedade, ou mesmo a uma elite intelectual da época que talvez tenha lhes garantido o acesso a esta cultura “de ascensão social e esforço, na qual a educação é fundamental, como provaram no curso de suas próprias vidas” (SARLO, 2009, p. 134).
Duas das entrevistadas, Bem-te-Vi e Rouxinol, foram estudantes do CAp. A primeira iniciou o Curso Ginasial no ano de 1954 e a outra o fez a partir de 1966, no Curso Clássico do Colegial. O conteúdo de suas narrativas englobou aspectos da vida discente e docente e isso enriqueceu o diálogo. Suas memórias, embora buscassem um passado vivido tantos anos atrás, foram bastante distintas, talvez pela diferença de década e idade na ocasião do ingresso como alunas do CAp. Enquanto Bem-te-vi parecia traçar uma narrativa que, de certo modo, elevava pessoas e fatos pelo ineditismo das propostas realizadas naquele tempo, Rouxinol procurava abordar o passado do colégio refletindo acerca dos processos que o transformaram ao longo de sua trajetória.
15 A identidade das entrevistadas foi substituída por pseudônimos de pássaros Pardal, Rouxinol [entrevistadas em 2014], Bem-te-vi, Cardeal e Sabiá [entrevistadas em 2015], por inspiração no Projeto Memórias e Histórias da FACED que utilizava nomes de árvores como pseudônimos para os entrevistados.
As demais entrevistadas ingressaram no colégio como professoras, convidadas pela diretora para uma prática docente ao final da graduação. Pardal ressalta que, logo após o ato da formatura no Ensino Superior, a professora Graciema convidava as alunas de maior destaque da UFRGS e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul para participarem de um ano de experiência como professoras-pesquisadoras no Colégio.
Quando a gente era convidada, sabíamos que era uma honra e que teríamos um ano bastante fértil com aprendizagens importantes, por que nós seríamos multiplicadores na rede, nas escolas privadas ou no estado, onde a gente pudesse trabalhar. […] Era fantástico, porque ao mesmo tempo tu eras professor e aluno, era aprendiz de pesquisa. E isso fazia com que a gente tivesse outra condição perante os alunos.
Nos dizeres desta narradora, durante essa experiência de um ano, as docentes eram avaliadas e um dossiê gerado com informações que subsidiariam a decisão da diretora sobre a manutenção ou desligamento da professora do quadro funcional. Tanto ela quanto as demais entrevistadas apontam para o fato de que o Colégio de Aplicação era uma escola experimental não apenas nas práticas voltadas aos estudantes do ensino ginasial e colegial, mas também para a formação continuada das professoras. Considerando a fala de Pardal, não se sabe até que ponto o CAp de fato intencionava formar “multiplicadores” para as redes de ensino, pois tal dossiê parecia servir para identificar as professoras que tivessem os melhores resultados em sala de aula, ou tivessem incorporado os ideais e referenciais teóricos do Colégio. Será que esse era o principal processo seletivo para contratação de professoras efetivas?
Voltando ao ideal de escola de experimentação pedagógica, é preciso que se diga que o convite às docentes não se restringia apenas às recém-formadas. Ele podia ser feito a professores lotados na rede pública de ensino que iam para o CAp cedidos pela Secretaria de Educação, órgão estadual do qual Graciema nunca se desvinculou completamente (PILLA, 1956). O objetivo de trazer docentes da ativa, segundo Rouxinol, era para favorecer a disseminação de práticas de ensino-aprendizagem em voga, que inspirariam a revisão dos processos escolares pela formação continuada oferecida a estas profissionais.
Embora a gestão do Colégio de Aplicação pareça ter procurado diferenciá-lo das demais instituições de ensino na seleção dos professores, por ser uma escola de Ensino Secundário oficial, não poderia propor uma forma de ingresso ao Ginásio que fosse incompatível com a legislação educacional da época. A partir da Lei
Francisco Campos16 , de 1931, o acesso a este nível escolar estava subordinado à aprovação do candidato em provas escritas e orais, os temíveis exames de admissão ao Ginásio. A avaliação cobrava conhecimentos de aritmética, língua portuguesa, redação e ditado. Em relação aos demais campos de conhecimento, as questões deveriam englobar “rudimentos de geografia, história do Brasil e ciências naturais” (BRASIL, 1931). Ao longo das quatro décadas enquanto vigeram, os exames de admissão sofreram pequenas alterações em relação aos conteúdos cobrados dos estudantes.
Nacionalmente, o exame de admissão reduzia significativamente a parcela de alunos que conseguiria frequentar o Ensino Secundário que, naquele período, não era obrigatório e possuía um caráter elitista e enciclopédico. As vagas em escolas secundárias pareciam ser conquistadas por aqueles que melhor se preparassem, talvez os que tivessem condições socioeconômicas mais favorecidas ou que tivessem passado por reconhecidos cursos e estudado com os melhores manuais preparatórios (BASTOS; ERMEL, 2014).
Durante esta pesquisa, localizei no Arquivo da Comissão de Ensino no CAp dois conjuntos de documentos. O primeiro contém os “Relatórios da Comissão de Seleção sobre o andamento do processo seletivo”, relativos aos anos 1967, 1968, 1971, 1972, 1973, 1974, 1976, 1978, 1979, 1981; e o segundo possui 23 exemplares dos exames de admissão aplicados de 1954 a 1971, provas classificatórias e testes psicológicos aplicados entre 1972 e 1981. Este segundo conjunto documental será aqui discutido separadamente na sequência. Infelizmente, os anos de 1961, 1966, 1968, 1976 e 1978 não foram localizados.
Os Relatórios da Comissão de Seleção são folhas datilografadas, algumas com anotações a caneta, que descrevem a elaboração do edital, as salas que seriam utilizadas, os critérios sobre o comportamento dos candidatos a serem analisados durante a prova e outras informações objetivas sobre o processo com espaço para anotação das observações do professor aplicador. O conjunto dos exames de admissão, provas classificatórias e testes psicológicos se apresentam na materialidade papel branco tamanho ofício 2. Alguns exemplares estão datilografados e outros mimeografados e trazem textos, mapas, figuras, gráficos e perguntas de múltipla escolha ou dissertativas. De alguns anos, as amostras guardadas estão respondidas pelos candidatos e possuem marcas de correção com vistos de certo ou errado, outras estão em branco. Tais arquivos podem indicar que foram guardados para servir como modelo para inspirar a escrita
de novas questões ou para comprovar, caso necessário, que os exames haviam sido realizados como a legislação previa até 1971.
Sobre o conteúdo cobrado nos exames do CAp, Pardal recorda que o Ministério da Educação orientava que as avaliações deveriam possuir questões alinhadas com o rol dos conteúdos mínimos17 . Estes conteúdos também estavam expressos nos manuais didáticos de circulação nacional que, segundo Ermel e Bastos (2012), tinham a função de preparar os alunos para o exame. As autoras identificaram alguns tipos de manuais utilizados no último ano do ensino primário, que englobavam “todas as disciplinas, questões e/ou exercícios” (ERMEL; BASTOS, 2012, p. 7) para estudo. Podemos pensar que, para a parcela dos candidatos que tinha acesso a esta literatura, existia certa familiaridade entre o estudado e o cobrado na prova, o que lhes garantia maiores condições de aprovação no CAp ou em outras escolas secundárias da cidade.
A partir de 1971, com a publicação da Lei nº 5.692/71, o ensino primário e Ginasial foi unificado tornando o 1º Grau um único ciclo obrigatório, com oito anos de duração, extinguindo a exigência de uma prova classificatória. Nesse momento, na contramão das demais instituições, o Colégio de Aplicação da UFRGS passou a realizar um processo seletivo próprio, por meio de provas classificatórias e testes psicológicos, para ingresso na 6ª série do 1º Grau e na 1ª série do 2º Grau.
Resta a dúvida sobre qual a finalidade de manter uma avaliação como essa para que os estudantes ingressassem no CAp. Talvez resida nesta prática o início do mito de que no “Aplicação só estudam os gênios” (Pardal). De acordo com Sabiá (2015), nos anos 1970 a direção optou por continuar “selecionando por provas por que era a maneira que parecia mais justa para selecionar apenas 30 ou 60 alunos” por ano, visto que eram muitos candidatos. Os documentos localizados na COMEN tornam este aumento mensurável, ao indicar que entre 1956 e 1963, havia anualmente cerca de 120 inscrições de candidatos para as 30 vagas de cada turma da primeira série do Ginásio e do Clássico/ Científico. Porém, a partir de 1964, esse número mais que dobrou: foram 254 inscritos para as mesmas 30 vagas. Isso forçou o colégio a oferecer duas turmas para cada nível de ensino.
Diante desse aumento pelo interesse das famílias no Colégio de Aplicação, cabe ainda investigar o que levou as famílias da sociedade porto-alegrense a essa opção por uma instituição relativamente nova e que ainda submetia os interessados a um processo seletivo, mesmo após a extinção da prova
classificatória para acesso à escola básica. Bem como, resta saber de quais escolas estes estudantes eram oriundos ou qual teria sido o aproveitamento escolar destes estudantes durante o primário ou a qual círculo familiar pertenciam. No Colégio de Aplicação da UFRGS, a partir dos anos 1970, o processo seletivo era composto por provas classificatórias e testes psicológicos. Conforme o relato das entrevistadas, os professores que elaboravam estas provas estavam preocupados em apresentar um exame que, efetivamente, diagnosticasse os conhecimentos individuais dos candidatos. Para Sabiá, desde a seleção era importante verificar o que, de fato, o estudante conhecia, quais eram suas experiências linguísticas, matemáticas e sociais. Seria o momento de propor uma avaliação que não estivesse baseada apenas nos conteúdos dos manuais, mas na aprendizagem que o aluno trazia do primário e de casa. Os relatos indicam que a diretora Graciema tentava orientar o corpo docente a querer mais dos alunos, em matéria de resultados e que para ela era necessário conhecer bem o estudante, “[…] não só como aluno, mas como pessoa, para que pudéssemos oferecer uma escola que fosse efetivamente atingi-lo” (Sabiá). Outra narradora diz que é preciso considerar que aqueles candidatos pertenciam a uma elite intelectual e que traziam de casa uma experiência imersa em uma cultura letrada. De acordo com ela, os alunos “liam o jornal Estado de São Paulo e os jornais daqui antes de irem para a escola. Era um hábito da família” (Pardal), que, talvez, não fosse identificado em famílias de crianças e adolescentes de outros contextos. Conforme sua rememoração, isso não podia ser ignorado quando se planejava uma avaliação que buscava selecionar os alunos com mais potencialidades para estudar em uma escola que os faria alcançar outros níveis intelectuais.
A narrativa proferida pelas professoras indica que havia uma preocupação da gestão do Colégio de Aplicação em ser uma instituição interessada em um público de certo modo bem específico, aqueles com maior capital cultural e social. O discurso que sugere que os estudantes do CAp vinham de famílias intelectualmente mais favorecidas já havia sido identificado em outras entrevistas salvaguardadas no Arquivo Histórico da Faced, alguns anos antes. Em uma dessas entrevistas, a narradora conta que quem estudava no Colégio de Aplicação da UFRGS era “a elite, da elite, da elite. A maioria que passava era filho de professor universitário, […] porque estudar no CAp era o pedigree do pedigree” (Mimo-de-vênus18) e estas crianças demonstravam potencial para acompanhar as metodologias propostas.
Em relação a este lugar socialmente ocupado pelos estudantes do Cap, parece pertinente nos aproximarmos da teoria do sociólogo Pierre Bourdieu quando destaca que “[…] a ação do meio familiar sobre o êxito escolar da criança é quase exclusivamente cultural” (BOURDIEU, 2008, p. 42). Neste sentido, o capital cultural presente no contexto familiar expresso pelas referências culturais, conhecimentos considerados apropriados e legítimos, bem como o domínio da língua culta que compõe a herança familiar, facilitaram a desenvoltura dos estudantes e beneficiaram o aprendizado dos conteúdos escolares. Pensando nas influências desse grupo familiar sobre o futuro do estudante, temos que levar em consideração também o papel do capital social, que lhe permite acessar de modo mais facilitado às conexões de uma rede a que está vinculado por meio da família a que pertence. É possível inferir, pela análise das narrativas, que muitos candidatos fossem filhos de professores que conheciam pessoalmente a diretora Graciema, ou mesmo filhos de famílias que consideravam a proposta do colégio uma possibilidade de formar os próximos expoentes culturais, empresariais ou políticos da cidade. Ou seja, mesmo que não houvesse um favorecimento explícito para o ingresso de determinado segmento de estudante, os considerados “gênios”, a instituição almejava receber aqueles que demonstrassem poder atingir os maiores índices de sucesso.
Assim, a aprovação na prova classificatória ao CAp verificava conhecimentos linguísticos, matemáticos e sociais que o estudante trazia consigo, e também utilizava testes de inteligência que “pretendiam mensurar o nível cognitivo dos alunos” (Sabiá) para oferecer um ensino adequado às suas aptidões. A escolha do teste que seria aplicado a cada ano era orientada pela diretora do CAp, considerando o objetivo que cada um oferecia. Segundo Murilo Braga (1948), diretor do INEP, as escolas se valiam de testes de inteligência desde os anos 1920 para avaliar sensibilidade, inteligência, aptidão, maturidade, fadiga, emoção e níveis psicológicos.
Os movimentos de pesquisa e disseminação do conhecimento, promovidos pela diretora Graciema, parecem ter sido importantes na adaptação ou construção de testes psicológicos no âmbito do Colégio de Aplicação. Embora tenha deixado poucos escritos, uma entrevista concedida a Willliam B. Gomes em 1991 indica que, desde muito jovem, como aluna da Escola Complementar19, aproximou-se das ideias de Édouard Claparède e Edward Lee Thorndike. Nesta
mesma instituição, foi aluna de Natércia Cunha Veloso e Olga Acauan Gayer20 , que ministravam as disciplinas de psicologia e pedagogia, respectivamente (ALMEIDA; LIMA, 2015). Na condição de docente, na mesma instituição, assumiu a regência das cadeiras de Psicologia da Criança e Psicologia Educacional do Curso de Formação de Professores Primários. Anos mais tarde, enquanto professora universitária, passou a ocupar “outros cargos importantes para a área de psicologia na UFRGS, como a Coordenação da Câmara de Ensino de Ciências Humanas em 1972” (GOMES, 2003, p. 32).
Sob orientação de Graciema Pacheco, a partir dos anos 1970 as professoras do Serviço de Orientação Educacional (SOE) passaram a inserir no processo seletivo para ingresso no Colégio de Aplicação questões elaboradas para diagnosticar o nível de raciocínio lógico verbal, numérico e abstrato dos candidatos que buscassem lá ingressar (SANTAROSA, 1983). Para Rouxinol (2014), na época o teste do Quociente de Inteligência (Q.I.) “garantia a manutenção da excelência do ensino do colégio, pois selecionava os mais capacitados”, visto que a correta resolução das questões estava na mobilização de diferentes operações mentais, como simetria, alternância, adição e subtração. O teste de Q.I. avaliava a capacidade imediata para observar e pensar com clareza, aferir o desenvolvimento intelectual, a capacidade de aprendizagem do candidato.
Embora a aplicação de testes padronizados de inteligência fosse uma tendência da época (GOMES, 2003), é preciso questionar que tipo de estudante se enquadrava no conceito de “mais capacitado”, que estaria apto a ingressar neste colégio, que mantinha sua “excelência” devido ao rigoroso processo seletivo. Não parece haver uma relação direta entre ser ou não aprovado nos testes e pertencer à determinada classe social. Podemos apenas imaginar que os aprovados possuíam maior familiaridade com o conteúdo talvez porque treinassem para ele, ou pelo fato do teste avaliar conhecimentos das ciências exatas e não aplicar apenas testes e subtestes padronizados ou adaptados que medissem a capacidade de raciocínio de um indivíduo. Nos anos 1980, os estudos de Howard Gardner nos mostrariam que as pessoas são dotadas de mais de um tipo de inteligência, o que lhes confere melhor desempenho em uma área, ao invés de outra. Talvez, ao longo do percurso escolar, estas outras inteligências pudessem ser mobilizadas pelas práticas educativas do CAp, mas durante a seleção, o que se percebe é que eram negligenciadas.
20 Natércia Cunha Velloso, poeta, membro da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul e professora regente das disciplinas de Psychologia e Direito Pátrio no curso Complementar, a partir de 1925 (GOMES, 2003). Olga Acauan Gayer foi regente da cadeira de Pedagogia na Escola Complementar, cargo que ocupou simultaneamente com a função de diretora geral da Instrução Pública do estado.
As narradoras indicam que todos os instrumentos avaliativos eram analisados pelo SOE, que iniciava um dossiê para cada aluno. Bimestralmente, em uma reunião denominada Conselho de Classe, os docentes se reuniam para “[…] avaliar o aproveitamento dos alunos e da turma como um todo e chegar a um conhecimento mais profundo do aluno” (ROCHA, 1982, p. 9). De acordo uma entrevistada, a prática de manter registros sistemáticos sobre os estudantes levou a elaboração dos pareceres descritivos21, “pois veja, é mais fácil escrever sobre alguém que tu tens um acompanhamento periódico […] e que sabe quais são as dificuldades e os avanços dos alunos, bem como quais estratégias poderiam ser utilizadas para que ele avançasse” (Sabiá). Em tese, este era um processo de avaliação, de certo modo, mais democrático, pois exigia que os professores chegassem a um consenso sobre cada aluno para a escrita dos pareceres. Podemos dizer que essa ideia de compartilhar as decisões sobre o futuro dos estudantes rompia com a centralização do poder na mão de um único professor, abrindo espaço para o diálogo que considera as múltiplas dimensões do estudante.
Os anos 1980 levaram o Colégio de Aplicação da UFRGS a um novo período, no qual muitas mudanças foram empreendidas. A década iniciou com a aposentadoria compulsória da diretora Graciema Pacheco e com a instalação dos Conselhos de Classe Participativos, atendendo as reivindicações dos estudantes que desejavam participar das discussões. A partir deste momento o colégio se abria a novas práticas e também novos públicos, pois “o ingresso tinha que ser mais democrático, fazendo seleção por sorteio” (Pardal). Será que um novo tipo de processo seletivo romperia com o mito do aluno gênio ou essa ideia permaneceria no imaginário da sociedade? Que paralelos podem ser feitos entre as mudanças do CAp e as mudanças políticas que se mostravam iminentes e necessárias no país? O fim de um período fortemente regulador nunca é algo pacífico e tranquilo, muitos movimentos precisam ser ensaiados para que o novo se instale. É possível que, guardadas as proporções, haja uma aproximação entre o término da Ditadura Civil-Militar no Brasil e as mudanças de perspectivas vivenciadas no CAp. O país redescobriu os sentidos da democracia e o Colégio se reinventou, apostando em outras práticas pedagógicas.
As práticas avaliativas para ingresso no CAp demonstram a cultura escolar de um tempo e são importantes para estudar os processos que permitem a
21 Documento avaliativo que informa a aprovação ou reprovação do estudante. Era construído ao final dos bimestres e entregue aos pais no final do ano. Nesta ocasião, o Colégio oportunizava o diálogo, a troca de informações e, se preciso fosse, intervinham no plano pessoal de formação elaborado pelo aluno, conforme propostas das Classes Experimentais (LIMA, 2016).
transmissão de conhecimentos e a proposição de condutas circunscritas a um espaço como a escola. A cultura escolar presente na aplicação desses testes evidenciava o poder regulador da escola, uma instituição considerada modelo na proposição de práticas pedagógicas inovadoras, na qual estagiar era uma distinção para as jovens professoras. Porém, ao mesmo tempo em que se destaca por esta característica de vanguarda pedagógica, apresenta à sociedade uma escola que disseminava um ideal de perfeição.
Enfim, esse conjunto de provas, expressas pelos exames de admissão ao Ginásio, provas de seleção e testes psicológicos e de inteligência, mesmo que sem adentrar nas minúcias de seus conteúdos, evidenciam os movimentos empreendidos pelo estabelecimento de ensino na intenção de cumprir seu papel de escola de experimentação pedagógica, se afirmar enquanto instituição de excelência, formar aqueles com maiores aptidões intelectuais/sociais e entregálos à sociedade em condições de se tornarem expoentes do que quer que fossem atuar profissionalmente.
Podemos inferir que o Colégio de Aplicação assumiu este papel socialmente atribuído a ele por seguir a legislação vigente, pela forte relação com os discursos escolanovistas em circulação, além das proximidades com as discussões empreendidas na Faculdade de Filosofia (1954-1970) e na Faculdade de Educação (1971-1981).
Considerações finais
Este estudo objetivou, principalmente, investigar a emergência e a manutenção da ideia de que os estudantes do Colégio de Aplicação da UFRGS eram sujeitos diferenciados se comparados a estudantes com idades semelhantes de outras escolas ao longo das três primeiras décadas após sua instalação. Pela análise dos vestígios obtidos nas narrativas de memórias, arquivos da Comissão de Ensino/CAp e no Arquivo da Faced, percebe-se uma instituição preocupada em qualificar seus processos pedagógicos, selecionar os professores mais identificados com seu conjunto de valores institucionais, bem como selecionar os alunos que verdadeiramente tivessem condições de acompanhar as práticas que os levariam àquilo que a direção considerava como sucesso escolar. Vê-se, ainda, uma instituição que buscava se afirmar como um qualificado centro de pesquisa educacional que fazia jus aos investimentos financeiros do Instituto Nacional de Estudos Pedagógico (INEP) e do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRPE).
Para compreender esta instituição singular, onde se produziram culturas que estiveram em constante movimento, foi preciso considerar o Colégio em sua complexidade, integrado a um contexto mais amplo, pois o Cap não era uma ilha isolada. Ao contrário, estava inscrito em uma rede discursiva que envolvia a circulação de estudos estrangeiros que chegavam ao Brasil por meio de educadores, como aqueles com quem Graciema Pacheco e Isolda Holmer Paes mantiveram contato. Assim, formou-se um intercâmbio, favorecido pela realização de viagens para estudo de ambas e pela participação em reuniões em outras Universidades, no Ministério da Educação ou em Centros de Pesquisa Regionais. Portanto, os movimentos de ambas as educadoras, aliados aos ideais de um novo tipo de educação, parece ter sido um dos principais responsáveis por favorecer a difusão de uma forma diferenciada de se pensar a escola e suas práticas educativas dentro da Faculdade de Educação e da UFRGS.
A gestão do Colégio de Aplicação sempre contou com o suporte da estrutura acadêmica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, juntos, empreenderam um colégio que se tornaria uma referência para as demais instituições de ensino. Para este “colégio diferente, com práticas diferentes” (Bem-te-vi), eram esperados estudantes muito qualificados, selecionados por testes classificatórios que iam além dos exames de admissão convencionais. Esses procedimentos avaliativos evidenciam os movimentos realizados pelo CAp, na intenção de cumprir seu papel de escola experimental, na qual buscava selecionar apenas os estudantes melhor preparados, notadamente aqueles pertencentes a uma camada intelectualmente favorecida, aqueles de melhor capital cultural e social, na perspectiva de Pierre Bourdieu.
Desta forma, legitimou-se a concepção do Colégio de Aplicação como uma escola exemplar que apostava no sucesso dos estudantes, contava com professores de excelente formação pedagógica e também com o apoio das famílias que se identificavam com um determinado ethos intelectual, próprio de uma escola que anunciava uma vanguarda pedagógica. Diante destes achados, percebe-se o quanto quem organizava a instituição se preocupava com o ideal de perfeição e com o propósito de entregar à sociedade um estudante egresso que estivesse em nível de excelência. Este ideal parece ter sido facilitado por esta peneira chamada processo seletivo, que levava para seus bancos escolares aqueles alunos que se destacassem nas avaliações, alunos que eram capazes de acompanhar as propostas educativas ao longo da escolarização e que saíriam do CAp para ser tornar aqueles intelectuais, políticos, educadores ou outros líderes dos quais o Rio Grande do Sul precisava.
Diante dos materiais analisados, procurei fazer sucessivas aproximações para identificar aquilo que me permitisse refletir sobre a pluralidade de discursos que influenciaram no modo como o CAp se constituiu. Podemos dizer que o colégio aqui apresentado é fruto de um período histórico e que reflete os valores daquela época, do mesmo modo que materializa as crenças das gestoras da instituição em um determinado ideal educacional e pedagógico. Talvez, naquele cenário, o “mito do aluno gênio” tenha sido muito mais consequência de um tempo em que o Ensino Secundário era para poucos, ou fruto do desconhecimento sobre as práticas educativas e avaliativas do Colégio de Aplicação, do que propriamente uma seleção intencional de apenas os melhores estudantes secundaristas.
Este estudo pretendeu contribuir na produção do conhecimento em História da Educação ao entrelaçar narrativas de memórias e documentos que apresentaram uma de tantas histórias da UFRGS, da Faculdade de Educação e do Colégio de Aplicação. Pesquisas deste tipo demonstram a resistência ao esquecimento e ao apagamento das histórias deste “lugar memorável” (RICOEUR, 2007) e plural, de forma a dar visibilidade a uma experiência pedagógica que corporificava um modo de pensar o fazer educacional. Além disso, busquei compreender e dar visibilidade a esta instituição de ensino, suas professoras, gestoras e sua cultura escolar que tanto contribuiu para a difusão de importantes práticas educativas e para a formação de incontáveis docentes gaúchas. Ainda há muito o que ser dito, pois sabemos que a memória é composta por “pedaços do passado” (ALBERTI, 2004, p. 15) e feita tanto de lembranças quanto de esquecimentos.
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Érico Espíndola
Escolas com maior liberdade, com propostas curriculares diversificadas, focadas em metodologias inovadoras, que valorizam a participação ativa dos estudantes, e que se buscam parcerias com as famílias. Todas essas características, até certo ponto comuns nas práticas pedagógicas contemporâneas, são herdeiras de um tempo em que se difundiram as classes experimentais secundárias no Brasil, a partir de 1959.
O Colégio de Aplicação (CAp/UFRGS) consolidou- se como escola experimental em Porto Alegre. Neste texto, discutem-se, em um primeiro momento, as condições que promoveram a emergência deste modelo no Brasil. Na sequência, a análise incidirá sobre a implementação dessa proposta de ensino na referida instituição, a partir do exame de um conjunto documental constituído de questionários que foram apresentados às famílias dos estudantes do primeiro ano ginasial, em 1959. A partir de um exame minucioso desses papéis, procuramos nos
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aproximar das práticas desenvolvidas no Colégio e analisar o modo como mães e pais avaliaram os primeiros meses do trabalho desenvolvido na escola.
Magalhães (1999) defende que a compreensão da historicidade de uma instituição educativa carrega a necessidade de inscrevê-la nas políticas educativas vigentes, de acordo com os contextos temporais em questão. Nessa perspectiva, o autor reconhece a memória como elemento estruturante das pessoas, comunidades e instituições, como uma ancoragem que promove sentidos ao presente e é capaz de idealizar o futuro. Pensando na identidade de cada instituição, importa indagar: qual contexto que fomentou sua emergência, de qual legado é herdeira e qual sua projeção para os tempos que virão? Neste sentido, Magalhães (1999) alerta para a importância da constituição dos arquivos institucionais, pois permitem, por meio da salvaguarda documental, a construção de uma determinada arqueologia do lugar.
Voltando para o tema dos Colégios de Aplicação, sabemos que, contemporaneamente, eles são muitos, estão espalhados pelo Brasil e são estreitamente vinculados às universidades, sobretudo as públicas, de âmbito federal ou estadual. Desempenham, historicamente, um papel importante na formação de professores, construção de concepções pedagógicas e difusão de metodologias de ensino.
O Decreto-Lei n o 9053/1946 criou os Ginásios de Aplicação1, vinculados às Faculdades de Filosofia, tendo em vista que essas faculdades abarcavam os cursos de licenciatura.
Em 1948, criou-se o primeiro Colégio de Aplicação, chamado Colégio de Demonstração, no Rio de Janeiro (CORREIA, 2017).
O Colégio de Aplicação da UFRGS foi o segundo efetivado
1 O Decreto no 9053/1946 traz a nomenclatura Ginásios de Aplicação. No final dos anos 1960 e 1970, as instituições passaram a ser denominadas Colégios de Aplicação.
no Brasil, em 1954, vinculado à Faculdade de Filosofia e ao Departamento de Educação. Teve como idealizadoras as professoras Graciema Pachedo (19101999) e Isolda Holmer Paes (1911-2002), respectivamente primeiras diretora e vice-diretora da instituição, estudiosas dos temas relacionados à psicologia da educação e dos fundamentos piagetianos aplicados na educação (LIMA, 2016). Nesse sentido, é importante considerar o papel que o Centre International d’Études Pédagogiques/CIEP 2 , em Sêvres, França, teve na concepção das classes experimentais no Brasil, tendo em vista que muitas professoras lá buscavam novos conhecimentos e traziam o que aprendiam para seus espaços de atuação docente. Isolda Paes, por exemplo, esteve em Sèvres em 1953, um ano antes da criação do Colégio de Aplicação em Porto Alegre (HACKMANN, 2004). Portanto, devido à circulação de educadores entre Brasil e França, pode-se dizer que as classes experimentais brasileiras são apropriações3 das Classes Nouvelles francesas. Sobre o implemento das classes secundárias experimentais/CSE, ainda cabe destacar a parceria entre o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos/ INEP e a UNESCO 4 , em 1955, com vistas a construir uma renovação do ensino secundário no Brasil (DALLABRIDA, 2014). A UNESCO e o Centre Internacional d’Études Pédagogiques/CIEP, em Sèvres/França, trabalhavam juntos desde os anos 1940, promovendo atividades em comum, e, assim, possibilitavam aos professores de diferentes países conhecer outras realidades internacionais. Antes de avançar no texto, cabe explicar o que foram efetivamente essas classes experimentais secundárias no Brasil e como se constituíram, oficialmente, a partir de 1959. Para tanto, tomamos como documento a edição de 1963 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), que faz uma avaliação dos primeiros quatro anos de atividades das classes experimentais no país. Por meio da leitura do texto, produzido por Nadia Cunha, do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e Jayme Abreu, do Centro Brasileiro de
2 O Centro de Sèvres, como também é conhecido, foi criado por Gustave Monod, em 1945, e sucedeu à L’École Normale Supérieure , destinada a formar professoras.
3 O conceito de apropriação, aqui utilizado, toma por base especialmente os estudos empreendidos por Roger Chartier (2004). Para o autor, tal conceito refere-se aos modos pelos quais o sujeito interpreta informações e as reelabora no sentido de fundamentar ações futuras. Compreende-se, então, que os Colégios de Aplicação brasileiros, amparados pelas articulações dos estudiosos do INEP, ressignificaram práticas e concepções educativas que circulavam em outros países e lhes conferiram novas roupagens, adequadas às necessidades nacionais.
4 Essas atividades eram realizadas, inicialmente, pelo Bureau International d’Éducation/BIE, fundado em Genebra em 1925 como uma organização não-governamental. O BIE é criado pela iniciativa dos colaboradores do Instituto Jean-Jacques Rousseau, fundado em Genebra, em 1912, pelo médico e psicólogo Édouard Claparède. Durante quase 40 anos foi dirigido por Jean Piaget. Depois de 1969, passa a ser parte integrante da UNESCO – Organização das Nações Unidas/ONU para a ciência, a educação e a cultura. Em 1999, o BIE é o responsável pelos conteúdos e métodos pedagógicos (BIE, 2007, p. 4).
Pesquisas Educacionais (CBPE), toma-se conhecimento das particularidades das classes experimentais e de sua rápida disseminação por diferentes Estados do Brasil. Os autores afirmam que a concretização dessas classes “representou acontecimento rico em virtualidades no sentido de abrir brechas no monopólio educacional, restituindo à escola autonomia, capacidade de autoafirmação e diversificação no processo educativo” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 92). E, assim, informam suas principais características, “métodos ativos, com participação viva do discente no processo de aprendizagem e abolição das aulas meramente expositivas” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 113).
Postulava-se a construção de novos tipos de currículo, com prática de atividades fora do ambiente escolar e prestando atenção às individualidades dos estudantes e às suas “aptidões” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 118). Para tanto, as turmas teriam, no máximo, 30 alunos. Pensando no atendimento às diferenças individuais, cabe ressaltar a efetivação do Serviço de Orientação Educacional (SOE), considerado “indispensável” nas classes experimentais (CUNHA; ABREU, 1963, p. 97). Caracterizava-se por procurar oferecer um cuidado a todos os discentes, tanto no aspecto individual como grupal. A Orientação Educacional deveria avaliar a “maturidade emocional” dos educandos, por meio de entrevistas, questionários, testes de inteligência e de personalidade, desenvolver “sondagem de aptidões e vocações” e promover o preenchimento de fichas de autoavaliação, denominadas “autojulgamento”. Na perspectiva do cuidado, criaram-se também os Conselhos de Classe com o objetivo de “estudar e discutir, em conjunto, os problemas de funcionamento da Classe” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 114). Na avaliação feita desses quatro anos de implemento das classes experimentais, constata-se que houve variação desses Conselhos, muitas vezes com maior ou menor formalidade, mas, de acordo com os autores, “pode-se sentir que houve bem maior preocupação quanto à existência de certo esprit de corps nessas classes experimentais, em relação ao isolacionismo habitual das classes comuns” (CUNHA; ABREU, 1963). Todas essas premissas não são propriamente invenções das classes experimentais, mas remontam aos fundamentos da Escola Nova, e, antes disso, às concepções de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, entre outros, considerados “pedagogos intuitivos”, precursores do escolanovismo (VIDAL, 2007).
Voltando ao texto em questão, Nadia Cunha e Jayme Abreu explicam que o Colégio Pedro II e os Colégios de Aplicação, estes vinculados às Faculdades de Filosofia, seriam “especialmente recomendáveis” para o recebimento dessa modalidade de ensino. Segundo a posição dos autores, os CAps seriam instituições preferenciais pela “natureza de escola experimental” (CUNHA; ABREU, 1963,
p. 115), atrelados às universidades, pelas possibilidades de desenvolvimento de pesquisas educacionais no meio acadêmico. Seriam, portanto, uma espécie de laboratório para o fomento de práticas pedagógicas, desenvolvimento de pesquisas, bem como para os estágios dos alunos dos cursos de licenciatura.
O texto publicado na RBEP faz uma série de críticas ao ensino secundário de caráter tradicional, livresco, que constituía as referências pedagógicas até então. Condena o número excessivo de disciplinas curriculares, a falta de flexibilidade dos currículos, o ensino marcadamente verbalista, a pouca atenção aos interesses dos alunos, o “excesso de provas”, a “sobrevalorização de notas”, e a “falta de articulação com os ensinos primário e superior” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 97). Então, pode-se dizer que as escolas experimentais vinham com o propósito de romper com uma estrutura entendida como arcaica e conservadora do ensino secundário no país, apoiadas pelo que se fazia na França nas Classes Nouvelles. Assim, em 2 de janeiro de 1959, o Ministério da Educação e Cultura expediu a Portaria nº 1, depois de dois anos de muita discussão, autorizando o funcionamento das classes experimentais. Em Porto Alegre, foram cinco instituições que investiram nesse modelo de escola secundária naquele ano, tendo um total de 138 alunos matriculados, com 24 professores: Colégio Americano, escola ligada à Igreja Metodista, Colégio de Aplicação/UFRGS, e três escolas da rede estadual de ensino – Colégio Estadual Infante Dom Henrique, Colégio Estadual Pio XII e Colégio do Instituto de Educação Flores da Cunha. Até 1963, o RS contou com mais duas escolas experimentais, uma no Município de Passo Fundo, Colégio Nicolau Vergueiro, e outra em Santa Maria, Colégio Centenário. Cabe ressaltar a posição de determinado destaque do RS em relação à quantidade de escolas experimentais, considerando o restante do país. Em 1959, mais três Estados adotaram esse modelo de ensino: São Paulo e Rio de Janeiro contavam, cada um, com nove instituições e, em Minas Gerais, havia uma. Passados dois anos, em 1961 observa-se um incremento do modelo experimental no país, pois, Rio de Janeiro e São Paulo passaram a ter 17 instituições, o Rio Grande do Sul aumenta para sete o número de escolas, Minas Gerais permanece com uma. Além disso, dois novos Estados passam a contar com escolas nessa modalidade de ensino: Espírito Santo e Pernambuco. A normatização das classes experimentais indicava cautela, prescrevia como exigência um “número reduzido de autorização e funcionamento para ir se controlando gradativamente o êxito da experiência” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 101). Mesmo assim, observa-se que, até 1963, houve expansão em seis Estados do país, sobretudo nas regiões Sudeste e Sul (Rio Grande do Sul), regiões sabidamente de maior desenvolvimento econômico naquela temporalidade (CUNHA; ABREU, 1963).
Em termos contextuais, convém recordar alguns pontos que facilitaram a implantação das classes experimentais naquele Brasil de fins da década de 1950. Na esteira do pensamento renovador da educação da primeira metade do século XX, diferentes ações aconteceram, especialmente a partir da década de 1930. Entre elas, a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), da própria criação dos Colégios de Aplicação, bem como do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e dos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais (CRPE)5 . Estes institutos congregavam o pensamento educacional da época, com vistas a promover o desenvolvimento nacional. O Centro de Sèvres, na França, como já comentado, se destacava por incentivar a pesquisa e o intercâmbio entre intelectuais ligados à educação e pode ser considerado como um dos embriões para a fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e seus Centros Regionais. Entre as ações incentivadas pelo CBPE, estava a implantação das classes experimentais secundárias no Brasil como um campo próprio para novas matrizes curriculares.
Primeiro em um galpão, depois as brizoletas: assim instala-se uma escola experimental
O Colégio de Aplicação da UFRGS, como dito anteriormente, foi fundado em 1954 pela Faculdade de Filosofia, vinculado ao Departamento de Educação. Entre seus objetivos, buscava promover a prática docente de estagiários dos cursos de licenciatura da Universidade, bem como legitimar-se como campo de investigação pedagógica (SCHÜTZ, 1994). Em 1971, logo após a Reforma Universitária6 , a Faculdade de Filosofia foi desmembrada, fato que promoveu a constituição de diferentes unidades acadêmicas, entre elas a Faculdade de Educação/Faced. À nova Faculdade coube o Colégio de Aplicação, como um órgão anexo, com o qual dividiu, entre 1971 até 1996, um prédio no campus
5 O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais foi criado pelo Decreto nº 38.460 de dezembro de 1955, tendo como localização a cidade do Rio de Janeiro e mais cinco Centros Regionais de Pesquisa Educacional: São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia. Estes órgãos, subordinados ao INEP, tinham o objetivo de investigar e realizar pesquisas e experiências educacionais em nível nacional e regional. Havia também o propósito de reestruturar a educação nacional a partir de um caráter científico e técnico (NUNES, 2000).
6 Reforma Universitária de 1968, Lei nº 5.540 (28/11/1968).
central da UFRGS, construído como sede para o Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (INEP)7, mas nunca por ele ocupado.
Embora, a partir de 1971, o CAp passasse a integrar a Faced, ambas as instituições operavam de modos distintos; apenas dividiam o mesmo edifício de nove andares e, muitas vezes, as mesmas docentes. Um aspecto interessante é que, enquanto a Faced fazia eleições para direção a cada quatro anos, o Colégio teve a presença constante de Graciema Pacheco, por 27 anos à frente da instituição. Ao lado dela, estava Isolda Holmer Paes, como vice-diretora, por cerca de 20 (ALMEIDA; LIMA, 2015). Durante o período desta primeira gestão, um conjunto de inovações educacionais, já comentado anteriormente, foi empreendido após os convênios firmados com o INEP.
Mas, voltando aos primeiros anos de funcionamento do CAp/UFRGS, cabe destacar que sua idealização emerge em um contexto de muitas reflexões acerca de referências pedagógicas. A partir de 1959, o CAp, assumiu, oficialmente, o cunho de “colégio experimental”, expandiu/sistematizou algumas medidas que já estavam em prática, pois passaram a contar com amparo legal. Assim, o Colégio organizou a estrutura pedagógica de acordo com os postulados das classes experimentais, promovendo a construção de um novo ambiente escolar, apresentado à sociedade da época.
Neste sentido, é interessante localizar onde estava, espacialmente, o Colégio em 1959. Nos primeiros anos, ocupou salas no prédio anexo à reitoria, junto à Faculdade de Filosofia. Essa divisão do espaço entre crianças e adultos deve ter gerado problemas e, assim, as diretoras precisaram buscar outro lugar dentro do campus da UFRGS. De acordo com Isolda Paes (1983), havia um galpão utilizado para guardar materiais de manutenção e foi justamente esse galpão que foi minimamente adaptado para sediar o Colégio, entre 1956 e 1960. Com a eleição de Leonel Brizola (PTB) como governador, a Reitoria firmou uma parceria com o Estado para erguer duas brizoletas8 no campus central da Universidade e, portanto, o Colégio esteve nesses pavilhões de madeira até 1966, quando se transferiu para o grande edifício de nove andares recém-construído que, depois, também foi ocupado pela Faculdade de Educação (GRIMALDI;
7 O INEP possuiu diferentes nomes desde sua criação: Instituto Nacional de Pedagogia (1937), Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (1972) e, por fim, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2001) em reconhecimento pelos anos que o professor Anísio Teixeira, esteve à frente do Instituto, proporcionando a expansão e privilegiando o desenvolvimento da pesquisa educacional.
8 Durante o governo de Leonel Brizola no Estado (1959-1963), o projeto educacional “Nenhuma criança sem escola no Rio Grande do Sul” construiu prédios escolares que ficaram conhecidos como Brizoletas (QUADROS, 2003).
Desse modo, quando o CAp se estabeleceu como escola experimental, em 1959, estava ainda nesses galpões, embora logo se transferisse para os edifícios escolares idealizados por Brizola. Mas foi naquela estrutura precária que o Colégio se destacou como uma escola diferente das demais no contexto de Porto Alegre.
E foi no mês de agosto de 1959, um semestre após a adoção oficial do modelo experimental, que os pais dos estudantes do primeiro ano ginasial receberam um questionário em que foram instados a registrar, por escrito, suas primeiras impressões acerca da escola, sobretudo em relação a concepções didáticas e desenvolvimento metodológico dos diferentes componentes curriculares. É sobre esse questionário que falaremos a seguir.
Entre muitos elogios e poucas críticas: o que disseram as famílias dos estudantes?
Em um momento do texto da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, reforçase a importância de as classes experimentais promoverem uma “articulação estreita entre pais e professores” (CUNHA; ABREU, 1963, p. 95). Com base na documentação analisada, pode-se inferir que as professoras do Colégio de Aplicação/UFRGS e suas diretoras estavam seguindo à risca essa orientação ao aplicarem o questionário às famílias em agosto de 1959, ou seja, seis meses após a adoção do modelo experimental.
Importa destacar que os estudantes do CAp vinham de famílias abastadas, pertencentes às elites culturais e/ou econômicas de Porto Alegre, situação que contrastava drasticamente com a maioria da população brasileira, ainda alijada da escola9. Estamos a falar de pessoas brancas10, dotadas de capital cultural e social11 que, coerente aos discursos da segunda metade do século XX, acreditavam na força da escola pública para seus filhos e filhas, entendendo que era o que havia de melhor para uma formação de alto nível de escolarização. No fim da década de 1950, o Brasil ainda experimentava os ganhos da continuidade dos princípios democráticos traduzidos na Constituição Federal de 1946. O país avançava
9 Alfabetização por raça e sexo no Brasil: evolução no período 1940-2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv1425.pdf. Acesso em 20 mar. 2022.
10 Em entrevista, um dos estudantes da turma afirmou que não havia na turma nenhuma pessoa negra.
11 Por capital social, entende-se a existência de redes duráveis de relações dos agentes individuais, relações essas muitas vezes institucionalizadas, vinculadas a determinados grupos, fundadas em trocas materiais e simbólicas. O capital cultural, para Bourdieu, seria, depois do capital econômico, a segunda mais importante expressão do capital, pois compreende a escolarização. Para o autor, a educação escolarizada constitui-se em um princípio de diferenciação quase tão poderoso como o capital econômico, tendo em vista que reproduz a estrutura da distribuição de capital cultural herdada da família (BOURDIEU, 2015).
em seu processo de urbanização e modernização. Naquele contexto, em que emergiram as classes experimentais, assistia-se a uma defesa da escola pública, que atingia as camadas burguesas da sociedade, bem como a classe média em seu desejo de ascensão social. Observa-se que a escola pública, nos anos 1950, 1960, e mesmo antes, era mantida pelo poder público estatal, mas de fato, era apropriada pelas elites econômicas (BUFFA, 2005). Ainda, ressaltamos que para o ingresso no Colégio de Aplicação, era necessário ser aprovado em exames de seleção e testes psicológicos (Exame de Admissão ao Ginásio), havendo cotas para filhos de professores da Universidade (LIMA, 2016).
Esses questionários, produzidos em folhas mimeografadas, tinham outra funcionalidade no passado, porém, aqui são tomados como documentos para a pesquisa historiográfica, por permitirem movimentos de aproximação das camadas temporais que constituem a memória da instituição. Foram localizados no Colégio de Aplicação, que hoje ocupa um prédio próprio distante geograficamente do campus universitário em que esteve durante mais de 40 anos. No atual edifício, em uma sala que começa a ser organizada como Arquivo Histórico, em 2019, identificamos esses questionários, em meio a muitos outros impressos, ainda sem higienização e catalogação. Portanto, não sabemos se a escola manteve a prática de seguir enviando perguntas deste tipo às famílias. Não sabemos também por que esses foram guardados, embora tenhamos algumas inferências, que, posteriormente, serão discutidas no texto.
Enquanto manuseávamos os papéis, especulávamos o que teria motivado as diretoras e professoras a enviarem essas questões às famílias em agosto de 1959, ou seja, não havia se passado nem um ano de adoção do modelo pedagógico experimental e elas queriam saber como os pais estavam percebendo as mudanças em curso. Podemos pensar que foram corajosas em abrir espaço para as famílias se posicionarem. Por outro lado, podemos também pensar que estavam confiantes que receberiam respostas positivas, pois acreditavam no trabalho que desenvolviam. Tais suposições são reforçadas pelo fato das respostas, em sua maioria, manifestarem-se favoravelmente à escola escolhida para os filhos. Mesmo as pequenas críticas apontadas são cuidadosas, contextualizadas e aparecem em meio a comentários elogiosos. Cellard (2008), ao explicar os procedimentos da análise de documentos escritos, alerta para a importância de refinarmos o olhar, com vistas a aguçar a criticidade das fontes que elegemos para pesquisar. Mirar, confiar e, ao mesmo tempo, desconfiar. Não os entender como espelhos da realidade e sim produções, em meio a determinados contextos, interferências, intenções, autorias e expectativas. Por outro lado, é preciso saber “contentar-se com o que tiver à mão” (CELLARD, 2008, p. 301), aceitar
os documentos como se apresentam, quase sempre como fragmentos que, por alguns motivos, conseguiram escapar do descarte/esquecimento e, assim, tomá-los em suas incompletudes e imprecisões, valorizando suas potências e reconhecendo seus limites.
Ao analisar os números desse instrumento de consulta às famílias, chegamos a observações interessantes. Foi direcionado a 30 pais de estudantes do primeiro ano ginasial, ou seja, toda a turma, conforme as regulamentações para as classes experimentais, que não deveriam exceder esse número. Considerando o material em sua íntegra, verifica-se que a turma era composta por muitos meninos, 20, sendo o dobro das meninas, que eram apenas 10. Por que essa diferença? Teria sido algo aleatório? A classe experimental, naquele ano, atrairia mais os pais de meninos?
Sobre os registros, constata-se que foram escritos por 16 mães, nove pais e outros cinco responsáveis (nos quais não foi possível identificar o grau de parentesco). O que explicaria esse número elevado de mulheres a preencher um questionário enviado pela escola? Essa seria (talvez ainda seja) uma tarefa comumente atribuída às mães? Observa-se que as respostas dos pais, em geral, parecem mais elaboradas, contam com um vocabulário mais sofisticado. Levando em conta a época, fim dos anos 1950, é compreensível essa diferença entre os textos escritos por homens e mulheres, pode-se dizer que o acesso à formação escolar, sobretudo superior, era mais negado às mulheres, mesmo as de posição social elevada. Outro aspecto a ser destacado, ainda que de ordem subjetiva, é a possibilidade de a condição masculina permitir uma maior liberdade de expressão nas respostas em relação às mulheres. Neste sentido, chama a atenção o questionário respondido pelos pais de uma estudante, pois é o único em que se percebem duas grafias diferentes, identificadas como sendo do pai e da mãe, pois ambos assinam o documento. Bem, a maior parte das respostas foi redigida, caprichosa e organizadamente, pela mãe, em grande parte com comentários elogiosos ao Colégio. Entretanto, na pergunta sobre aspectos desfavoráveis à classe experimental, entra em cena o pai. Ele contesta o fato da escola “exigir da criança trabalhos que requerem a cooperação de pessoa adulta, por exemplo, trabalhos de datilografia”. Interessante que, na última pergunta, em que se solicita contribuições aos pais, escreve assim: “pudemos constatar que, especificamente, à direção da aprendizagem em música, parece não ter conduzido a nenhum progresso em relação ao desenvolvimento nesta
área” (questionário 8)12 . Indagamos se ela teria se encorajado a escrever esse comentário desfavorável depois da interferência do marido. Na verdade, ela não escreveu uma contribuição, conforme indicado, e sim faz uma crítica a um componente curricular específico.
O questionário (Figura 1) foi elaborado da seguinte forma: após a identificação do estudante, tem-se três itens elencados por 1, 2 e 3. Dentro dos dois primeiros itens, constam duas perguntas em cada, sinalizados pelas letras “a” e “b”. No último item, consta um espaço de texto, em que se solicita que a família estabeleça uma comparação entre as classes experimentais e as não experimentais, imaginando que muitas famílias tinham filhos que frequentavam diferentes estabelecimentos de ensino. Por último, há espaço para sugestões e críticas que possam não ter sido contempladas pelas perguntas, finalizando com a identificação do responsável pelo preenchimento das respostas. Assim, a primeira questão é: “Na sua opinião, a classe que seu filho frequenta está correspondendo ao que V.Sas. esperava e desejava quanto: a) à orientação seguida pela escola? b) à orientação dada ao ensino das diversas matérias? (poderá responder atendendo as matérias separadamente)”. Vê-se a intenção de verificar se a modalidade experimental estava correspondendo aos desejos familiares, como uma estratégia de fazer um levantamento de possíveis falhas da proposta pedagógica recentemente efetivada. A questão também permite que os pais se posicionem diante da proposta nos diferentes componentes curriculares. Verifica-se que todas as respostas são positivas, afirmam que a orientação da escola estava, portanto, atendendo às expectativas.
A pergunta seguinte é direta e solicita que se indiquem os méritos e fragilidades da classe experimental. Assim, o questionário indaga, “Qual sua opinião sobre o trabalho que vem executando seu filho na classe experimental? a) Que aspectos favoráveis poderia V.Sa. indicar nesse trabalho, para o desenvolvimento do seu filho? b) Que aspectos desfavoráveis apresenta esse trabalho?”. Em relação a essa questão, 22 respostas foram positivas. Portanto, quantitativamente, é possível dizer que a maioria daqueles que responderam, o fizeram de modo assertivo.
Chama a atenção que a metodologia da classe experimental e o Serviço de Orientação Educacional tiveram uma aprovação quase unânime entre os pais. Assim, reconhecem que o Colégio proporcionava ampliação de conhecimentos, “dando a criança uma cultura geral útil ao conhecimento humano”, “uma boa dose
de estímulo” (questionário 9), “desembaraço, facilidade de expressão”, “aumento de vocabulário”, desenvolvimento de “imaginação e raciocínio”: (questionários 5, 9, 13, 22, respectivamente). Um pai sintetiza os aspectos positivos: “é sempre crescente o entusiasmo pelo ensino em geral” (questionário 15). Ainda, uma mãe diz “as lições, as práticas, os passeios, o interesse despertado por diversas matérias, o desenvolvimento do espírito de iniciativa” (questionário 18). Um aspecto favorável importante diz respeito à percepção das famílias do que significa aprender, pois avaliam como favorável não ter que memorizar conteúdos, bem como não ter um acúmulo de disciplinas, “notamos progresso em sua capacidade de raciocinar, análises e pesquisas” (questionário 16). Também é recorrente a valorização aos trabalhos em grupos, “onde o aluno se sente responsável como participante do trabalho em equipe” (questionário 8). Neste sentido, essa mesma família valoriza o “contato direto com a realidade”, bem como “a participação do aluno no planejamento das atividades”.
Dentre os aspectos desfavoráveis, apenas em sete questionários elencaramse algumas questões, mas todas elas podem ser entendidas como críticas pontuais ao trabalho da escola. Por exemplo, uma mãe solicitou que a escola fosse mais exigente em relação ao “capricho com o material”, dizendo que o filho costuma atender com mais presteza as ordens dos professores e menos quando as orientações vêm de casa (questionário 14). Ainda nesse tema da higiene, outra mãe de menino pede que a escola seja mais atenta em relação às “unhas cortadas e orelhas limpas” (questionário 12). Interessante que essas cobranças são feitas por mães e não por pais, possivelmente pelo fato desses cuidados estarem relacionados ao papel social de muitas mulheres dos anos 1950. Outra crítica isolada diz respeito à pouca quantidade de temas de casa, mas, mesmo assim, divide a responsabilidade ao dizer que “[Meu filho] não se ocupa em casa com os trabalhos da escola, o que em parte deve ser inatividade dele por ser esquecido.” O mesmo pai avalia a importância de o filho produzir mais redações escolares nas aulas de língua portuguesa, aponta o que chama de “dificuldades do menino em redigir bem”. Sobre esse componente curricular, outro comentário se refere à diminuta presença do ensino da gramática, sendo mais valorizadas as produções textuais, que, segundo o pai, não eram devidamente corrigidas pela professora. Ainda, questionou a quantidade excessiva de leituras para casa, considerando-as, sobretudo as de história, “leituras difíceis para alunos de 11 anos”. Por fim, avalia como um “enigma” o programa curricular de língua portuguesa. Entretanto, neste mesmo questionário, o pai congratula a professora de matemática “pela proficiência quase milagrosa com que soube transformar uma matéria detestada por nosso filho numa das quais ele, atualmente, mais aprecia”. Sobre o ensino de história, a crítica incide na falta de organização temporal dos conteúdos (questionário 17). Encerrando os “aspectos desfavoráveis” indicados pelas famílias, destacamos a “rispidez” da professora de artes e a exigência da escola, ao afirmar que observa “demasiado esforço para um aluno da primeira série ginasial” (questionários 16 e 24).
O terceiro item das perguntas se apresenta como um dos mais interessantes para análise, exatamente por solicitar uma comparação entre o ensino desenvolvido no CAp e o ensino nas escolas regulares. Apenas responderiam aqueles que tivessem filhos nas duas situações. Assim, redigiu-se a pergunta “Algum filho de V.Sas. frequentou ou frequenta classes de 1ª série ginasial não experimental? Em caso afirmativo, poderiam nos fornecer algumas indicações sobre a comparação entre esses dois tipos de trabalho?” Observa-se que poucos foram os que não fizeram a comparação, possivelmente pelo fato das famílias, naquela temporalidade, terem mais filhos que, como regra, frequentavam
instituições de ensino regular. As análises evidenciam verdadeiras discrepâncias entre os modelos de escolas. Um pai afirma que, na escola experimental, o aluno é “mais independente e cônscio de suas obrigações. Desaparece a preocupação com a nota e a classe marcha mais ou menos em igualdade de condições” (questionário 11). Os professores da classe experimental são percebidos como responsáveis, e se distinguem pela “maneira delicada com que assistem os alunos” (questionário 9). Cabe destacar esse depoimento:
consideramos superior o método adotado pela classe experimental, pois o aluno tem a oportunidade de ler mais, consultar o dicionário, colher depoimentos nas fontes, entrar em contato com autores, historiadores e mesmo com o público. O aluno sente o trabalho que realiza e executa com prazer (questionário 12).
Constata-se, em muitas respostas, uma espécie de percepção de superioridade do Aplicação em relação às demais instituições, não experimentais. O método de ensino é considerado “didaticamente insuperável” (questionário 5). Os relatos comparativos entendem a escola como um ambiente onde o aluno tem prazer em frequentar, com diferenças metodológicas relevantes que impactam na autonomia e disposição para o aprender. Assim, avalia este pai:
“consideramos superior o método adotado pela Classe Experimental, pois o aluno tem a oportunidade de ler, mas consultar o dicionário, colher elementos na fonte, estar em contato com autores, historiadores e mesmo com o público. O aluno sente o trabalho que realiza e executa com prazer (questionário 13).”
Além desses pontos, um fator recorrente que aparece nessa comparação é a oferta de atividades alternativas no CAp, como excursões, visitas a museus e saídas de campo, entre outras atividades supostamente não contempladas em escolas tradicionais. Uma mãe assim se posiciona: “as pesquisas e entrevistas estimulam o aluno a procurar as respostas para as suas próprias perguntas, e as excursões dão uma ideia exata ao que a mostra lhe extrai.” Seguindo a proposta da comparação, uma família diz que, se por um lado é mais fácil controlar os filhos na escola regular, em função das constantes “sabatinas”, por outro, observam “entusiasmo e alegria” na escola experimental. Nesta perspectiva da regulação, no questionário 19, o pai entende que é mais fácil o acompanhamento do filho na escola regular, pois nesta recebiam os resultados das avaliações mensalmente.
As questões apresentadas encerram com um espaço para críticas e sugestões, nomeado “contribuições dos pais”, assim descrito: “Acolheríamos, com prazer, quaisquer outras contribuições que possam trazer algum auxílio
no desenvolvimento do nosso plano de ação educativo.” Provavelmente, por se tratar de um item aberto, o conteúdo variou conforme as demandas trazidas, mas, no geral, constata-se que diversos elementos foram elencados, a maioria em forma de elogios e validação das classes experimentais como algo aprovado pelos pais. Em alguns casos, houve sugestões especificas ao método de ensino e com relação a melhorias nas instalações do Colégio:
“o aluno não deve cansar, porque existem crianças que gostam de determinadas matérias, e, caso contrário, ficará desejosa que termine a aula. A escola deveria ter uma biblioteca bem ampliada de onde os alunos menos favorecidos pela sorte pudessem obter dados necessários”.
Essa sugestão explicita algo que possivelmente afetava o Colégio, a falta de estrutura necessária e um espaço com mais recursos para o funcionamento ideal, por se tratar de uma instituição recém-inaugurada, que, em 1959, ocupava, precariamente, um galpão no campus da Universidade, como dito no início do texto. Porém, via de regra, neste espaço as famílias aproveitaram para expressar sua satisfação com o Colégio de Aplicação e as suas professoras.
Avaliando os 30 questionários em sua íntegra, infere-se que devem ter sido instrumentos importantes para legitimar o implemento no CAp do modelo experimental, tendo em vista a quantidade de elementos positivos apresentados pelas famílias. Dentre todas as respostas assertivas, foi possível notar certo padrão, pelos enunciados recorrentes nas respostas de mães e pais. Assim, o CAp é percebido como um lugar que estimula o desenvolvimento do “espírito de pesquisa”, da capacidade de “iniciativa”, que contribui para a formação de um “aluno ativo” (questionários 18, 25, 28). Assim, um exemplo: “minha opinião é a melhor possível, dado que minha filha já desenvolve um espírito de pesquisa, auxiliando em trabalhos rotineiros de pesquisa” (questionário 25). O elogio ao desenvolvimento pessoal do estudante, atrelado às classes experimentais como elemento potencializador em diversos aspectos, também é identificado nas respostas, como nesta observação: “notamos que no Colégio de Aplicação o aluno adquire melhor desenvolvimento, tanto cultural como social” (questionário 19). Além de falas referentes ao desenvolvimento dos alunos e aspectos fomentados pelas classes experimentais, há diversas narrativas positivas sobre os métodos de ensino, com elogios aos professores envolvidos.
Dentre as respostas, nota-se a menção a alguns elementos desfavoráveis em relação às classes experimentais. Entretanto, esses comentários negativos foram específicos e, por vezes, direcionados a aspectos pontuais. A única resposta que apareceu em mais de um questionário que relatava a mesma situação, foi
a desaprovação sobre o grau de exigência da escola, sobretudo as dificuldades dos filhos em realizarem alguns trabalhos, que implicavam no auxílio dos pais (questionários 5, 8, 12, 21). Uma família condena o tempo demasiado de permanência na escola, considerando “excessivo o número de visitas a museus, fábricas, praças, lugares pitorescos, etc. As tarefas para o dia seguinte impõem as crianças, nessas ocasiões, atividades exaustivas, que se prolongam” (questionário 24). Também há relatos que cobram da escola encontros mais frequentes com os pais para “retorno do desempenho dos alunos” (questionário 23).
Assumindo os riscos de um olhar anacrônico, não deixa de impactar que essas famílias, em 1959, tenham buscado para os filhos uma escola que, naquele momento, ocupava instalações deficientes, contrastando com a monumentalidade dos outros edifícios da UFRGS e mesmo de outras instituições escolares públicas e privadas em Porto Alegre. Talvez o que mais lhes chamasse a atenção era exatamente a vinculação do Colégio à Universidade, em tempos que o ensino superior público no Brasil era para muito poucos afortunados. E talvez essas pessoas, pelos capitais acumulados, buscassem um modelo de escola que, em alguma medida, se afastasse dos parâmetros pedagógicos até então vigentes, considerando a promessa de excelência de ensino difundida pela instituição. Muitas famílias demonstram, em seus argumentos, uma espécie de encantamento com uma nova escola, em que se investe na pesquisa, na construção da autonomia, no prazer pelo aprender, nas atividades em grupos, entre outros aspectos. A frase de um pai sintetiza a aposta no Colégio de Aplicação: “meu filho gosta muito do colégio, sendo assim, estou contente” (questionário 11).
O exame desses instrumentos de consulta às famílias permitiu que nos aproximássemos de outro tempo do Colégio de Aplicação/UFRGS, especificamente o ano de 1959, um momento importante, de implemento do modelo pedagógico experimental na instituição. Por meio da leitura das respostas de 30 questionários que sobreviveram por tantas décadas, tomamos conhecimento, pelas escritas de mães e pais, de uma série de práticas desenvolvidas no Colégio que começava a trilhar um caminho pedagógico como classe secundária experimental.
Como dito no início do texto, não sabemos se, nos anos seguintes, a escola manteve essa prática de consulta às famílias. O fato é que apenas foram localizados estes materiais, aqui operados como documentos raros que permitem identificar
a percepção dos pais acerca dos seis primeiros meses do trabalho desenvolvido na escola experimental. Na busca pelo exercício da crítica das fontes, evidente que esses papéis não podem ser tomados como uma verdade em si, mas se constituem em documentos que trazem indícios, como representações acerca do que pensava aquela comunidade de pais da escola.
As classes secundárias experimentais como uma política de educação autorizada pelo Ministério de Educação e Cultura era algo, até então, desconhecido e inovador para a maior parte da população brasileira. Com relação às famílias respondentes, podemos supor que escolheram colocar os filhos naquela instituição, justamente porque ali seria efetivado o modelo experimental. É possível que muitas práticas experimentais já fossem comuns no Aplicação, mesmo antes da autorização oficial. Talvez, por isso, essas mães e pais se posicionaram tão entusiasticamente, ou seja, o que acontecia no cotidiano escolar estava, de modo geral, correspondendo ao que buscavam como escola para os filhos.
A identificação do CAp como um colégio experimental afirma-se por diversos pontos citados nas respostas dos pais, por citações à frequência menor de avaliações, incentivo à busca pelo conhecimento, proposição de atividades alternativas fora da sala de aula, promoção de alunos mais responsáveis pelo aprender. Todos estes fatores elencados se sobressaem no primeiro semestre de institucionalização do novo modelo de ensino, que propiciou um ambiente diferente e, provavelmente, melhor para os alunos do primeiro ano do ginasial, aspectos que futuramente seriam incorporados por todas as escolas e hoje em dia ditam os parâmetros das práticas escolares. Ademais, é notável que, depois de seis meses em efetivo funcionamento no modelo experimental, o Aplicação tenha se arriscado a escutar uma avaliação das famílias acerca do que se fazia no Colégio. A elaboração de tal instrumento de coleta de dados nos dá a ver uma certa confiança e convicção dos gestores e professores da instituição no que estavam propondo.
E o que aconteceu nos anos que se seguiram? Qual o futuro das classes experimentais secundárias no Brasil? Sabe-se que tiveram, do ponto de vista oficial, uma existência efêmera. No contexto da Ditadura Civil-Militar, com o advento da Lei nº 5692/71, deixaram de ter previsão legal. Podemos pensar que escolas desse feitio pouco combinam com autoritarismo. Entretanto, muitas das práticas semeadas a partir de 1959 permaneceram presentes nos Colégios de Aplicação e, paulatinamente, foram adotadas nas demais escolas do país. Em maior ou menor intensidade, os ecos dos postulados das escolas
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Lembrar e escrever como forma de resistência e existência
Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma História muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente.
Conceição Evaristo Becos da memória, 2013.
As lições sobre lembrar, esquecer e voltar a lembrar me foram ensinadas principalmente por histórias de boca e ouvido. Aquelas compartilhadas nas rodas regadas por chimarrão, tão comuns pelas bandas do sul do Brasil e que em muito se aproximam das que Maria-Nova, personagem de Becos da memória, se depara no romance de Conceição Evaristo, imerso em crônica social e testemunho. Foram testemunhos como os que Maria-Nova escuta no livro e que eu me deparava em minha trajetória que receberam o invólucro teórico nas aulas de história quando me deparei com os cânones do pensamento branco ocidental em torno das discussões sobre história e memória.
As discussões que partem principalmente de um trauma, a saber, aquele advindo dos horrores do Holocausto, por vezes individual, por vezes coletivo, permitiram que a memória adentrasse de forma magistral no campo ainda tão restrito da história. Fazia-se necessário resistir ao esquecimento. E ainda se faz. A grande mudança é o alargamento dos campos de conhecimento que abrangem essa discussão e incorporam as perspectivas como aquelas tão caras a Maria-Nova. Afinal, Conceição Evaristo tem como uma de suas tão importantes características reverberar em sua escrita aquilo que encontra sentido em um mundo mais amplo. São as vivências coletivas – as escrevivências.
A resistência ao esquecimento por meio de vivências compartilhadas em testemunhos se fez presente em cada uma das 12 histórias que deram corpo aos capítulos do livro que ora finda. No entanto, finda não colocando ponto final, mas ampliando horizontes de pesquisa e salientando a importância de escrever sobre vivências tão diferentes.
Ainda que todas as histórias se unifiquem por meio da instituição que as acolheu, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cada uma evidenciou caminhos outros a serem explorados não enquanto possibilidade, mas enquanto dados concretos observados nas experiências em torno da docência e seus itinerários; de uma afirmação pautada em identidade racial negra conscientemente afirmada; do gênero aliado as práticas e culturas universitárias e as relações em torno do Colégio de Aplicação.
Toda pesquisa exige recortes, e nestas aqui reunidas não foi diferente. Por vezes identificou-se e explicitou-se os becos de uma história institucional, e simultaneamente foi necessário observar aquilo que não estava acobertado ou de difícil acesso, mas meramente obliterado pelas artimanhas do tempo cronológico que se encarrega de esmaecer a nitidez daquilo que se afasta do presente. Não obstante, fez-se necessário definir contornos e recortes cronológicos e isso inevitavelmente traz consigo exclusões e por vezes silenciamentos.
O silenciamento, por sua vez, é algo que compõe a matéria memória e é um assunto que ainda permanece abordado de forma tangencial, o que é compreensível em um trabalho que objetiva demarcar as presenças. Assim, abre-se mais uma frente de pesquisa a partir dos testemunhos analisados visto que se configura como um beco dessas memórias ainda não apresentadas ao grande público.
Saliento que apenas a contribuição de Gabriel dos Santos Giacomazzi problematizou o silêncio ao abordar a relação com uma temática bastante cara ao estudo do silêncio, a saber, a Ditadura Civil-Militar no Brasil, no texto
“Alceu Ravanello Ferraro (1935-2019): nos passos do primeiro Reitor eleito da UFRGS”. Há aqui, sem dúvidas, o dado da autorização para tratar o assunto, não a autorização formal, mas da temática, visto tratar-se de algo já vastamente abordado na historiografia. O que encontra alguma correspondência, ainda que em sentido oposto, nos textos “Olga Reverbel e o teatro na educação no Brasil”, de Cristiano Goldschmidt, “Narrativas de memória: no rastro da presença de mulheres negras na Faculdade de Educação/UFRGS (1970-1990)”, de Greice de Quadros Alves, e “Escriturar um passado, diagnosticar um presente: a UFRGS e a história da moradia estudantil (1934-2021)”, de Marcos Luiz Hinterholz. Nestes, há também a sinalização do silêncio, mas não o adensamento. Não obstante, e incorrendo no risco de parecer contraditória, a obra Doze histórias sobre a UFRGS: a pesquisa como resistência ao esquecimento é uma contribuição imensa que vai de encontro ao apagamento e ao silenciamento da história de sujeitos que lutaram e lutam para manter a Universidade como um espaço do livre pensar. Bem como de luta contra o desmonte da educação pública e em defesa do pensamento crítico de forma geral.
Trata-se de uma obra científica de caráter coletivo em que as professoras e pesquisadoras Dóris Bittencourt Almeida, Carla Beatriz Meinerz, Fabiana Pinheiro da Costa e o professor e pesquisador Marcos Luiz Hinterholz organizam, e por vezes também contribuem com textos, de forma a ofertar ao público informações que permitem acessar, a um só tempo, elementos fundamentais em torno da história institucional e que inspiram pesquisadores de hoje com alto rigor científico. Enfatiza-se ainda a pluralização de referências, desde um escopo mais amplo até uma vasta utilização de artigos de livre acesso, o que sem dúvida é um dos reflexos dos tempos pandêmicos em que estamos restritas aos acervos privados e aqueles disponíveis na internet.
Para finalizar, não poderia deixar de frisar a importância do contexto em que esta obra foi concebida e vem a público. Vivemos um desses momentos de tempo acelerado e de grande transformação, em que o presente é ainda mais incerto do que o habitual. Tudo se acelerou e nós tivemos de mais uma vez nos adaptar. Mantivemos hábitos de um passado recente projetando um futuro extremamente incerto. A finitude fez-se presente de forma incontornável.
No entanto, o fazer pesquisa exigiu continuidade. E é exatamente nesse tempo acelerado que a memória também cria becos, logo, o escrever exige ainda mais atenção. O método da pesquisa fez-se nossa bússola inseparável, mas uma bússola que exigia a inserção de outros elementos no mesmo método. Para alguns e algumas fez-se métodos novos. Tratava-se do cuidado. Aquele mesmo
cuidado que alguns textos desse livro referiram quando relataram o ato da coleta do testemunho em momento que o assunto era bastante sensível para quem lembrava. Por vezes foi preciso parar. Fez-se necessário atentar para o afeto. Fomos todos e todas afetados e afetadas. O afeto fez parte de nosso método.
Então, é possível pensar em termos de lição das 12 histórias no contexto em que elas vêm a público reunidas, eu sugeriria que possamos resistir aos esquecimentos adotando como método aquilo que a ciência nos ensinou. Sem que esqueçamos o que ela nos ensinou no tempo presente e somente então, evidentemente, estamos racionalizando e incorporando ao nosso fazer acadêmico científico: afeto/cuidado com o outro e conosco. Nesse sentido, ainda sejamos cuidadosas com os becos que se forjam em tantas memórias, por vezes de indivíduos, por vezes institucionais, e que possamos escrever as memórias desses becos adotando métodos atentos a cada processo, a cada contexto, a cada marca… a cada atravessamento que também nos forja e que mais que resistência compõe a existência que nos move.
Vimos muito disso nos fragmentos das histórias que acompanhamos por meio das escolhas metodológicas e temáticas em torno das 12 histórias e certamente veremos muito mais no avanço dessas pesquisas e consequentemente no avanço da história dessa casa que nos acolhe – e que tanto se transforma a partir das nossas mudanças – chamada Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Fernanda OliveiraPrograma de Pós-Graduação em História Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Adolar Koch
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de história, com ênfase em história do Brasil República, história e cidadania, cultura de paz, ética, transpessoalidade, construção de valores humanos e polícia cidadã.
Ana Paula Oliveira
Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educação/UFRGS. Durante a graduação, participou como bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência/PIBID anos iniciais. Em 2017, ingressou no serviço público como professora de educação básica na Prefeitura Municipal de Canoas. Cursou a Pós-Graduação em “Psicopedagogia clínica e institucional”, na Universidade Unilasalle, concluindo a mesma em 2019. Atualmente, é diretora de uma escola municipal de educação infantil no Munícipio de Canoas.
Carla Beatriz Meinerz
Doutora em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. Professora do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua junto ao coletivo de professores da disciplina Encontro de Saberes/UFRGS, vinculada ao NEAB/UFRGS.
Cristiano Goldschmidt
Doutorando e mestre em artes cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. Nesta instituição, também cursou especialização em pedagogia da arte na Faculdade de Educação. Graduado em jornalismo e pedagogia. Desenvolve pesquisas sobre teatro e educação. Na imprensa, contribui com pautas sobre artes, cultura, educação e política. Desde 2019, é conselheiro de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
Dóris Bittencourt Almeida
Doutora em educação, com ênfase em história da educação, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. Professora associada III de história da educação da Faculdade de Educação/UFRGS e do Programa de PósGraduação em Educação/UFRGS. Líder do Grupo de Pesquisa Arquivos Pessoais, Patrimônio e Educação (GARPE/CNPq).
Duan Kissonde
Graduando do curso de história da UFRGS, bolsista de iniciação científica/ CNPq, pesquisador das territorialidades negras em Porto Alegre.
Graduando do curso de história, foi bolsista de iniciação científica/FAPERGS, vinculado ao projeto de pesquisa Memória Faced: entre tempos, espaços e culturas da educação no RS .
Fabiana Pinheiro da Costa
Doutoranda e mestre pelo de Pós-Graduação em Educação da UFRGS na linha de pesquisa “Educação, Culturas e Humanidades”. Seus estudos são voltados para a história da educação e história das instituições em interface com a história das mulheres e os feminismos
Gabriel Giacomazzi
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, com bolsa CAPES/PROEX. Graduado em História/UFRGS. Foi bolsista de iniciação científica/FAPERGS vinculado ao projeto de pesquisa Memória Faced: entre tempos, espaços e culturas da educação no RS .
Greice de Quadros Alves
Graduada em pedagogia, pela Faculdade de Educação/UFRGS. Durante a graduação, foi bolsista de iniciação científica/CNPq, vinculada ao projeto de pesquisa Memória Faced: entre tempos, espaços e culturas da educação no RS .
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin
Doutora em Educação, com ênfase em História daEducação pela PUCRS. É professora e pesquisadora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em educação da Escola de Humanidades da Unisinos. Líder do Grupo de Pesquisa Educação no Brasil: memória, instituições e cultura escolar (EBRAMIC/CNPq).
É bolsista produtividade PQ2/CNPq.
Marcos Luiz Hinterholz
Doutorando e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS, com ênfase em história da educação, na linha de pesquisa Educação, culturas e humanidades. Pesquisa temática relacionada ao movimento estudantil, moradia estudantil e história das instituições educativas.
Tainá Martins de Barros
Graduada em Ciências Sociais pela UNISINOS . Atuou como bolsista de iniciação científica vinculada à na área de pesquisa em história da educação.
Valeska Alessandra de Lima
Doutoranda e mestra em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS, na linha de pesquisa Educação, culturas e humanidades. Graduada em pedagogia pela mesma Universidade.
Vanessa Rodrigues Porciúncula
Doutoranda e mestra em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS, na linha de pesquisa Educação, culturas e humanidades. Licenciada em Ciências Sociais/UFRGS e bacharel em Produção Audiovisual – ênfase em Cinema e Vídeo/PUCRS. Integrante do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas do IFRS – Campus Porto Alegre. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação e Transgressão (GEETRANS/CNPq). Dedica-se a pesquisas no campo do pensamento intercultural latino-americano e das pedagogias insurgentes. Atua em espaços de educação como o Coletivo de Educação Território Popular e Esperança Popular da Restinga.
Jacques Verger, no notável livro As universidades na Idade Média, adverte para as várias formas de se escrever a história das universidades, entre elas considerando-as como instituições vivas e como agrupamentos humanos contextualizados em suas múltiplas relações com a sociedade e onde se conectam diferentes pessoas envolvidas na produção e disseminação de ideias e na transmissão e aprendizagens de saberes.
Essa indicação potente atravessa este livro que, eivado de imensa sensibilidade, reconstitui trajetórias de professores e estudantes da UFRGS, provocando o leitor para problemáticas candentes na universidade brasileira. No profícuo entrelaçamento entre memória e história, a coletânea reúne 12 estudos fundamentados em pesquisa rigorosa, em dados empíricos consistentes e em abordagens atuais e instigantes. Um bom exemplo é o uso das fontes orais que enriquecem as análises com as marcas da história vivida pelos membros da comunidade universitária, dando vazão a seus sentimentos, experiências significativas, cicatrizes e esquecimentos.