FILIAÇÕES E AFILIAÇÕES
INTERAMERICANAS:
LEGADOS FAMILIARES, ÉTNICOS E NACIONAIS
Leoné Astride Barzotto
Silvina Carrizo
Organizadoras
INTERAMERICANAS:
LEGADOS FAMILIARES, ÉTNICOS E NACIONAIS
Leoné Astride Barzotto
Silvina Carrizo
Organizadoras
INTERAMERICANAS:
LEGADOS FAMILIARES, ÉTNICOS E NACIONAIS
Leoné Astride Barzotto
Silvina Carrizo
Organizadoras
© Autores, 2021
Organização
Leoné Astride Barzotto
Silvina Carrizo
Produção Editorial
Ronaldo Machado | Letra1
Revisão
Ellen Garber
Capa
Marta Zimmermann
Projeto gráfico
Letra1
Diagramação
Roberta Santana
Impressão
Printstore
Conselho Editorial
Adriana Dorfman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Anderson Zalewski Vargas
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Hernan Venegas Marcelo
Universidade Federal da Integração Latino-Americana
Marcelo Jacques de Moraes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Márcio Silveira Lima
Universidade Federal do Sul da Bahia
Miriam Gárate
Universidade Estadual de Campinas
Regina Coeli Machado e Silva
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Regina Zilberman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) BIBLIOTECÁRIA CIBELE MARIA DIAS CRB-8/9427
Filiações e afiliações interamericanas : legados familiares, étnicos e nacionais / Leoné Astride Barzotto, Silvina Carrizo (organizadoras). – Porto Alegre : Editora Letra1, 2021. Vários autores. Bibliografia.
ISBN 978-65-87422-13-8
DOI 10.21826/9786587422138
1. Literatura – Américas. 2. Narrativa. 3. Teoria Literária. I. Barzotto, Leoné Astride. II. Carrizo, Silvina. III. Título.
21 -72068
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. LITERATURA : HISTÓRIA E CRÍTICA 809
CDD – 809
www.editoraletra1.com.br
CNPJ 12.062.268/0001-37
letra1@editoraletra1.com.br
(51) 3372 9222
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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode copiada e distribuida, seja por meio impresso ou digital sem a expressa autorização da editora.
O que está cifrado no nome – El libro de Tamar , de Tamara Kamenszain
de filiação na literatura argentina recente: (Os “Walsh” em Oración, de María Moreno)
O caçador furtivo e o memorialista intergeracional: a literatura quebequense entre a apropriação do lugar e a preservação da memória ancestral
A poética da perda em narrativas centradas em investigações da filiação no universo de Wajdi Mouawad Bernadette Porto
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipobrasileiros
Com a edição deste livro, Filiações e afiliações interamericanas : legados familiares, étnicos e nacionais, chegamos à publicação do sétimo livro em 21 anos de existência; esses sete livros são o resultado das pesquisas empreendidas pelo GT “Relações Literárias Interamericanas”. Criado em 2000, no âmbito da ANPOLL (Associação Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Letras e Linguística), o GT tem mantido uma média de 25 participantes e, como parte da dinâmica de todo GT, conhece uma renovação no quadro de seus membros, pois uns entram, outros saem. Atualmente conta com professores/ as credenciados/as em Programas de Pós-Graduação de 18 universidades brasileiras e uma do exterior, sendo que muitos deles são bolsistas de produtividade do CNPq.
A ideia de fundar um novo GT se origina, em princípio, de um desejo de criar um espaço mais circunscrito que dê conta da pesquisa desenvolvida por um grupo e que permita uma interlocução mais profícua. Os primeiros membros que aderiram ao projeto proposto por nós faziam parte de outros GTs, nos quais não estavam muito satisfeitos, ou ainda não pertenciam a nenhum.
Zilá Bernd Eurídice FigueiredoNo nosso caso, que elaboramos o projeto de criação e coordenamos o GT nos dois primeiros biênios, ao começarmos a nos interessar pelas literaturas americanas em língua francesa, como a do Quebec e do Caribe francófono, avaliamos a necessidade de desenvolvermos uma reflexão que desse conta das especificidades do espaço das Américas. Obras de autores caribenhos como Patrick Chamoiseau, Édouard Glissant, Maximilien Laroche; quebequenses como Gérard Bouchard, Patrick Imbert, Régine Robin, Lise Gauvin, Pierre Nepveu e hispano-americanos como Alberto Moreiras, Antonio Cornejo Polar, Néstor Garcia Canclini, Walter Mignolo e Ángel Rama, entre muitos outros, iluminaram nossos caminhos, voltando nossos olhos para o que estava próximo de nós, desviando-os do que estava longe (Europa), para onde era costume fixar olhares e mentes.
A proposta de um comparativismo interamericano estabelecia paralelos entre literaturas tidas como “emergentes”, fugindo assim ao padrão tradicional de comparação entre literaturas canônicas e as novas literaturas. Desse modo, as pesquisas do GT se caracterizam pelo foco na diversidade de literaturas escritas nas línguas dominantes das três Américas e do Caribe, ou seja, em português, inglês, francês e espanhol. Ao fazer esses entrecruzamentos, a primeira pesquisa que se impôs foi o exame dos conceitos que transitaram nesses territórios a partir das vanguardas, no início do século XX, o que gerou o livro Conceitos de literatura e cultura, publicado em coedição das editoras da UFF e da UFJF, em 2005. Esses conceitos ajudaram a moldar categorias críticas que tentam fugir ao etnocentrismo, permitindo pensar as culturas americanas de maneira original. Dois outros livros, que contaram com a participação de vários colegas do GT, tentaram mapear outros conceitos: o de Zilá Bernd, Dicionário de figuras e mitos literários das Américas (2007, Tomo editorial e editora da UFRGS) e o de Stelamaris Coser, Viagens, deslocamentos, espaços: conceitos críticos (2016, EdUFES).
O GT Relações Literárias Interamericanas desenvolveu pesquisas sobre o território, explorando as relações do espaço com suas intrincadas expressões culturais. O estudo do tempo se fez através da análise do papel da memória e de suas relações com a História e com os diferentes tipos de escritas literárias. A pesquisa sobre os modos de arquivo, assim como o entrecruzamento com outras artes e o rastreamento dos atos de violência praticados nas Américas, caracterizou nosso trabalho em grupo o qual foi continuamente enriquecido pelas nossas trocas constantes realizadas nos eventos anuais. No livro que ora apresentamos aos leitores, figuram análises diversas sobre temáticas de filiação e de afiliação no âmbito familiar, étnico e nacional.
Na sequência relacionamos os livros publicados pelo GT.
FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Conceitos de literatura e cultura. Niterói: EdUFF ; Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005 [2. ed. 2012].
CARRIZO, Silvina Liliana; NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org.). Relações literárias interamericanas: território e cultura. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010.
GONZALEZ, Elena Palmero; COSER, Stelamaris (org.). Entre traços e rasuras: intervenções da memória na escrita das Américas. Rio de Janeiro: FAPERJ ; 7letras, 2013.
GONZALEZ, Elena Palmero; COSER, Stelamaris (org.). Em torno da memória: conceitos e relações. Porto Alegre: Letra1, 2017.
COELHO, Haydée Ribeiro; VIEIRA, Elisa Amorim (org.). Modos de arquivo: literatura, crítica, cultura. Rio de Janeiro: Batel, 2018.
VIEIRA, Elisa Amorim; COELHO, Haydée Ribeiro (org.). Literatura, outras artes e violência nas Américas. Porto Alegre: Letra1, 2019.
O GT da ANPOLL “Relações Literárias Interamericanas” tem como prática, de longa data, a pesquisa aprofundada durante biênios temáticos, alguns temas até com mais tempo de dedicação; e, ao final de cada período investigativo, oferta à comunidade leitora a publicação dos resultados sob forma de coletâneas. Nessa dinâmica, surge o presente livro Filiações e afiliações interamericanas: legados familiares, étnicos e nacionais – reflexo de estudos que criaram corpo e consistência de 2018 a 2021. Como o próprio título da obra pré-anuncia, nossas preocupações se pautam e se sustentam por meio de um tema aglutinador, a saber, as narrativas de filiação nas Américas. Como é de se esperar, um tema central nos encaminha a temas paralelos de igual importância, os quais se retroalimentam para, além de coexistir, dar significado e justificar a necessidade de cada um por si mesmo. Nesse sentido, as narrativas de filiação levam às narrativas de afiliação e também aos papeis dos legados, quer desejados ou impostos pelo seio familiar, pela questão étnica ou, ainda, pelo contexto de uma nação. Por essa razão, a coletânea se subdivide em legados familiares, legados étnicos e legados nacionais.
Leoné Astride Barzotto & Silvina CarrizoNa primeira parte da obra, estão os capítulos que apresentam afinidade com os Legados Familiares. Adriana Kanzepolsky contribui com uma reflexão acerca da inscrição tardia do nome de Héctor Libertella em El libro de Tamar, de Tamara Kamenszain (2018) no capítulo inicial “O que está cifrado no nome – El libro de Tamar, de Tamara Kamenszain”, indagando se o livro joga com um de seus sentidos e de suas angústias, na ausência/presença do nome da dama, Tamara neste caso, em um poema que seu ex-marido passa por baixo da sua porta poucos meses depois da separação e que desencadeia a escrita. Nessa espécie de exegese lírica do livro, exegese esta que é também uma despedida e uma resposta, a poeta/memorialista/ ensaísta imita o gesto e só menciona o ex-marido no fragmento intitulado “Ramat, 2 de julho de 2000”, quando pode inscrevê-lo em uma trama familiar e vinculá-lo ao nome em iídiche de seu próprio pai – Tevie –, que naqueles dias estava morrendo, e vinculálo também à língua hebraica, a partir do “Ramat” com que Libertella data (assina) o poema. Em “Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de Joca Reiners Terron”, Andre Rezende Benatti busca se acercar do tempo presente da narrativa de Joca Reiners Terron para poder compreender as memórias passadas e desconhecidas pelo narrador da obra. Assim, investiga o romance A tristeza extraordinária do Leonardo-das neves (2013), do escritor mato-grossense Joca Reiner Terron, por seu narrador, um escrivão de polícia que se desdobra nos cuidados com o pai, um imigrante judeu russo com demência, que passou a vida toda distante de seu filho, e a investigação de um crime do passeio Nocturama, no Zoológico de São Paulo. Lívia Reis , por sua vez, analisa a ancestralidade na obra de Chico Buarque, a qual não está apenas na canção que serve de epígrafe ao seu capítulo de nome “O Irmão Alemão: família, ficção e autoficção”. A família e as relações familiares estão presentes em inúmeras canções anteriores, na vasta obra musical de Chico Buarque, a par de épocas e estilos e servem de introdução à leitura do O Irmão Alemão, de 2014, quinto romance de Chico Buarque de Holanda. Seu estudo se debruça neste legado familiar, uma vez que o romance instiga a curiosidade do leitor a partir do título, pois se refere a um desconhecido irmão do cantor e compositor Chico Buarque e suposto filho do antropólogo, Sergio Buarque de Holanda, ambas figuras públicas de relevo em diferentes áreas da cultura brasileira. No texto intitulado “Narrativas de filiação na literatura argentina recente: (Os “Walsh” em Oración, de María Moreno)”, Silvia Cárcamo estuda as narrativas de filiação na literatura argentina recente e, através disso, busca demonstrar que a consagrada escritora e jornalista María Moreno (1947) incursionou em relatos autobiográficos nos quais as figuras do pai e da mãe parecem construídas no limite da ficção e da realidade, aderindo
à estética do excesso, da deformação e do exagero. Com isso, a narrativa do romance familiar de Moreno examina igualmente a educação sentimental e intelectual da autora e da sua geração no âmbito das transformações culturais ocorridas nos últimos anos da década de sessenta em Buenos Aires.
Rumo ao Norte do continente americano, o capítulo “O caçador furtivo e o memorialista intergeracional: a literatura quebequense entre a apropriação do lugar e a preservação da memória ancestral” fecha o debate dos legados familiares e, com ele, Zilá Bernd aborda – a partir da leitura de obras de duas escritoras migrantes do Quebec: Kim Thúy e Régine Robin – a maneira pela qual essas autoras, originárias de diferentes formas de migração, produzem suas obras no entre-lugar, entre a urgência de apropriação do lugar e o esforço em preservar a memória de seus ancestrais. Assim, tanto a figura da devoração e/ou da braconagem dos elementos culturais do país de acolhida quanto a do memorialista geracional, que não se permite esquecer a memória cultural de seus ancestrais, são problematizadas no âmbito do seu capítulo.
Os Legados étnicos formam a segunda parte da coletânea. No capítulo “A poética da perda em narrativas centradas em investigações da filiação no universo de Wajdi Mouawad”, Bernadette Porto se dedica ao problema da experiência exílica, pois a perda se manifesta também como uma espécie de defasagem, de não coincidência entre o exilado e o lugar, seja ele o país natal ou a terra de acolhida. Por esse viés, o escritor de origem libanesa Wajdi Mouawad, objeto do seu estudo, refere-se a sua posição de estar sempre fora do lugar, indagando sobre a possibilidade de retornar a seu país de origem. O escritor Mouawad ressalta que o retorno é uma experiência tão difícil quanto a partida e que se sente tão estrangeiro em seu país de origem como ocorre no Quebec, país de acolhida. No texto intitulado “Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros”, Eurídice Figueiredo propõe uma leitura dos romances Sonhos bloqueados, de Laura
Honda-Hasegawa (1991) e Nihonjin, de Oscar Nakasato (2011), e do livro de crônicas Eu também sou brasileira, de Marília Kubota (2020), publicados nos últimos trinta anos. Todos os autores pertencem à terceira geração: Laura Honda-Hasegawa nasceu em 1947, Oscar Nakasato em 1963 e Marília Kubota em 1964. Dentre os imigrantes com comunidades numerosas, os descendentes de japoneses são, talvez, os menos visíveis no panorama da literatura brasileira. Assim, apesar de os romances terem um corte mais tradicional, a escritora alarga o conceito dos críticos franceses para uma narrativa de etnofiliação, já que os nikkeis resgatam um passado sofrido dos antepassados que emigraram para o Brasil na primeira metade do século XX. Luciana Wrege Rassier aponta o romance memorial e o romance de filiação como focos de atenção
no capítulo “Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy” porque, em ambos, a “interioridade” do eu-narrador é menos proeminente do que a “anterioridade”. Se o primeiro é um “aspecto pósmoderno da saga” que privilegia traços e vestígios constituintes da memória cultural, o segundo evoca o percurso de um ancestral enquanto herança a ser repudiada ou reivindicada. Logo, a autora parte desses pressupostos teóricos, a fim de analisar o romance ru, de Kym Thùy (2009), o qual aborda uma história de migração do Vietnã para o Canadá e os processos memoriais envolvidos.
Por outra perspectiva, no capítulo “A ReExistência em escritoras indígenas”, a autora Silvina Carrizo traz, como objetivo, aprofundar a análise das relações do relato de si e as formas escriturais da reexistência enquanto ideologema, e visa apontar as estratégias composicionais das cenas de interpelação que Eliane Potiguara e Liliana Ancalao constroem em seus textos, algumas das estratégias da política e poética das autoras indígenas. As modulações do tornar-se, perceber-se, autoperceber-se, esse “dar conta de si mesma”, vão gerando não apenas uma autopercepção e autoafirmação, mas também vão interpelando esse mundo das violências éticas – simbólicas e concretas, porque físicas –, produzindo pensamento poético potiguara e mapuche, respectivamente. Encerrando as discussões acerca dos legados étnicos, Stelamaris Coser colabora com o texto “Ancestralidade, a escrita de si e de nós: Toni Morrison e Paule Marshall”, através do qual interliga escritas e pensamentos sobre filiação, ancestralidade e diáspora ao mesmo tempo em que presta uma homenagem especial a Toni Morrison (1931-2019) e a Paule Marshall (1929-2019), duas grandes escritoras dos Estados Unidos que se sobressaíram na destacada geração dos anos 1970-1980. Reconhecidas também por iluminarem as experiências de mulheres afro-americanas não só na escrita ficcional, mas também na reflexão teórica sobre cultura e literatura, a partir de suas próprias vivências e lugares.
Na terceira e última parte, Legados nacionais, Elena Palmero González traz o capítulo “A estirpe de Origens: de filiações e afiliações na obra de Antonio José Ponte”, no qual explora a filiação biológica e as afinidades eletivas ou afiliativas que se fundem, na contramão dos cânones e das hierarquias estabelecidas, a fim de investigar o escritor cubano
José Ponte e como a sua obra dialoga com os mestres do origenismo cubano, José Lezama Lima, Eliseo Diego, Cintio Vitier Virgilio Piñera, Lorenzo García Vega e, através deles, com toda uma tradição literária que passa por José Martí, Julián del Casal e se remonta ao poema fundante da literatura cubana, Espejo de Paciencia (1608) de Silvestre Balboa, afiliando sua própria escrita a essa linhagem literária. Já a autora Haydée Ribeiro Coelho apresenta o capítulo
de título “Filiações escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite em Quando os demônios descem o morro”. Nesse texto, Coelho mostra que o narrador do romance pesquisado se desvela como escritor e como tal se faz no decorrer da narração. Por meio dele, surgem indicações que pertencem à biografia do próprio Rui Mourão como seu vínculo com o Suplemento Literário de Minas Gerais e o conhecimento aprofundado da história da cidade de Ouro Preto, entre outros aspectos. Dessa forma, mostra que o romance em questão religa as relações de afeto e de parentesco com a figura materna. Em Quando os demônios descem o morro (2008), a família cuida do escritor, de sua memória e de seus escritos. Kelley Baptista Duarte contribui com uma leitura crítica do conto “La Corriveau”, inserido na coletânea intitulada Cages, da escritora quebequense Claude-Emmanuelle Yance, no capítulo “O legado nacionalista e cultural do estigma da Corriveau – reelaboração discursiva do feminino no conto “La Corriveau”, de Claude-Emmanuelle Yance”. O estudo do conto busca ressaltar sua estrutura narrativa na medida em que se insere na linha reflexiva da transmissão intergeracional e da transferência de uma memória cultural presentificada e perpetuada no perfil da personagem principal – uma mulher contemporânea que carrega o estigma da lendária Corriveau em sua vida familiar.
Em “A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra”, Leoné Astride Barzotto visa refletir acerca da autoficção como forma contemporânea para a construção narrativa na / da América Latina, para averiguar como se desenvolve a temática das narrativas de filiação nos romances da escritora cubana Wendy Guerra, mais especificamente Todos se vão (2011) e Nunca fui primeira dama (2010), pois as narradoras protagonistas, Nieve e Nádia, respectivamente, atuam como alter egos da própria autora. Em ambas as estórias, as personagens recompõem traços da vida da escritora, em especial aqueles que se relacionam à sua mãe, Albis Torres, e às dores as quais esse vínculo de sangue representa. Assim, pretende compreender como a “herança ferida”, originada pela Revolução Cubana, contribui para que as narrativas autoficcionais de Wendy Guerra sejam também narrativas de filiação, posto que um romance é a sequência dos biodados inseridos no anterior e, nos dois, as protagonistas buscam ‘curar uma ferida’ que fora deixada / imposta como herança, quer pelos pais, quer pela nação. “Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais”, de Lícia Soares de Souza, há uma seleção de obras de Ramos, Mendes e Nunes com o intuito de ilustrar a importância da transmissão, a qual se relaciona não apenas com os fenômenos culturais ou legados familiares, embora estes possam existir como pano de fundo, mas também com o contexto político
brasileiro, a partir do Estado Novo (1937-1945) até os dias atuais, segunda década do século XXI. A autora opta por abordar os regimes ditatoriais, os quais reprimiram o país, e as formas como alguns escritores adotaram para transmitir os desafios que enfrentaram nos cárceres. Finalizando a temática dos legados nacionais e a coletânea em si, Margareth Torres de Alencar Costa traz o capítulo “Memória, exílio e escrita de si em A Resistência, de Julian Fuks e Azul Corvo, de Adriana Lisboa”, analisando os romances Azul Corvo, de Adriana Lisboa, e A Resistência, de Julián Fuks, pela perspectiva da memória, do exílio e das narrativas de filiação em consonância com os percursos nacionais de cada protagonista. Por fim, gostaríamos de enaltecer o entusiasmo de produção individual assim como o espírito de pró-atividade coletiva dos autores dessa obra, os quais alimentam e sustentam o nosso GT de Relações Literárias Interamericanas, pois mesmo em tempos de pandemia e de adversidades múltiplas, o GT segue firme com o propósito de sua publicação bianual, profícua fonte de leitura e de pesquisa aos entusiastas das Letras.
Leoné Astride Barzotto Silvina Carrizo
Organizadoras
Inverno de 2021.
Eu não sei como me sinto mas se não escrevo na primeira/ parece que me afogo no copo d’água/ da vergonha alheia 1
A partir de uma afirmação de Werther, que escreve para Carlota dizendo que está pensando nela, Roland Barthes questiona: “O que quer dizer ‘pensar em alguém’? Quer dizer: esquecê-lo (sem esquecimento não há vida possível) e despertar desse esquecimento.” (BARTHES, 1983, p. 51). O fragmento, intitulado justamente “A carta de amor”, parece descrever o cruzamento de escritas – de recordação e esquecimento – que está na origem de El libro de Tamar de Tamara Kamenszain. Se Tamara atribui ao acaso, ao fortuito, o achado do poema que Libertella lhe havia passado por baixo da porta pouco tempo depois da separação e que descansava fazia quinze anos no fundo de uma gaveta, um
1 Original em espanhol: “Yo no sé cómo me siento pero si no escribo en primera/parece que me ahogo en el vaso de agua/de la vergüenza ajena”.
2 Todas as citações de O eco da minha mãe de Tamara Kamenszain, mencionadas neste trabalho, foram retiradas das traduções de Paloma Vidal, assim como às de O Gueto e de O livro dos divãs , das traduções de Paloma Vidal e Carlito Azevedo. Os três livros foram publicados em português pela Editora 7Letras.
possivelmente em um momento em que pensava nela, encontrar o poema/carta – isto é, lê-lo e respondê-lo para tentar interpretar esses “bolsões semânticos” e preencher os “saltos narrativos” – é também a forma de dizer que alguém despertou do esquecimento e pensou no outro. Esse outro que já não pode ler a “resposta” ou a “exegese lírica” (FOFFANI, 2018, edição digital), esse outro que já não pode responder pelo nome 3 e, dada essa impossibilidade, a libera 4 para que na interpretação minuciosa, que esmiúça cada verso, conte sua versão fragmentária da história de amor; desde a gênese, a chamada telefônica inicial (“Olá, Héctor, eu te disse, sou eu Tamara”), até o final da história e da vida. E que a libera também para reunir e aglutinar no mesmo livro a prosa memorialística, o poema e o ensaio. Um tipo de prosa, a primeira, que pulsava por emergir e ocupar um primeiro plano nos livros anteriores, mas que ainda estava germinando ou que se anunciava como projeto para o futuro em versos como “no presente me sinto livre/ e acho até que de repente/ …quem sabe…/ amanhã começarei um romance” (KAMENSZAIN, 2010, p. 50) 5 , de O eco da minha mãe, ou de forma mais clara, quando entre o desejo e o desassossego escreve em O livro dos div ã s: “se chegar a comprar um caderno por cansaço/ vou acabar caindo no diário íntimo e a poesia/ terá que versar sobre outros assuntos” (KAMENSZAIN, 2014, p. 33) 6 .
Estamos, então, diante de um livro de memórias, poemas e ensaios que conta repetidas vezes diferentes versões – em diferentes línguas, digo – da história de amor/desamor desse casal de escritores, mas que na mesma medida volta a contar e a fazer a exegese de seus próprios textos – ensaios e poemas –, desta que assina Tamara Kamenszain, uma prática que também já havia iniciado em O livro dos divãs de 2014.
3 Recupero aqui a reflexão de Jacques Derrida (1998) em Memorias para Paul de Man
4 Em um fragmento de “Ata Rama”, no qual glosa e alternativamente se contrapõe e identifica com um relato de Kristeva, a qual conta que, graças ao impulso de Philippe Sollers, pôde passar do francês acadêmico para um francês da primeira pessoa, que identifica com a ficção, Tamara escreve: “E não foi outro senão seu marido romancista francês quem a ‘autorizou’ (ela usa este termo que me soa muito lacaniano) a implementar essa primeira pessoa que chama ficção” (2018, p. 40). E mais adiante, assinala: “Diferentemente do que aconteceu com Kristeva, a mim foi o pai dos meus filhos que me ‘autorizou’ a escrever ensaios” (KAMENSZAIN, 2018, p. 40). Uso o termo libera , em parte para contrapô-lo ao autoriza de Kristeva, mas também porque penso em um verso de “Kaddish” no qual, com a morte do pai, pede que a liberem órfã: “O que é um pai?/ Dez homens não bastam/ para fechar a sexta-feira/ num círculo masculino/ que por dentro me libere/órfã” [¿Qué es un padre?/ Diez hombres no alcanzan/ para cerrar el viernes/ en un círculo masculino/ que adentro me libere/ huérfana”] (KAMENSZAIN, 2003, p. 34).
5 Original em espanhol: “en presente me siento libre/ y hasta me parece que a lo mejor/ …quién te dice…/ mañana empiezo una novela”.
6 Original em espanhol: “si me llego a comprar un cuaderno por cansancio/ voy a terminar cayendo en el diario íntimo y la poesía/ tendrá que versar sobre otros asuntos”.
Desse modo podemos pensar que, junto à memória de uma história de amor, El libro de Tamar, desta que é e não é Tamara, constitui uma espécie de “história dos meus livros”, na qual quem construiu um nome ao longo das décadas, o qual durante anos manteve “em uma cela impessoal”
(KAMENSZAIN, 2014, p. 67), os interpreta e (re)situa em um contexto e uma história; concede a eles o lugar “justo”, aquele que merecem, o lugar preciso que vincula o poema com a vida – com sua vida, digo. Novamente, uma perspectiva que havia rondado de forma intermitente, mas com insistência, ao longo dos anos. Como se por fim tivesse conseguido fazer aflorar aquilo que havia mantido “no íntimo carbono dos seus papéis privados” (KAMENSZAIN, 2014, p. 66).
É assim que, se o livro recupera alguns fragmentos amorosos, alguns “fotogramas” da história daquele casal, penso que se trata fundamentalmente de uma despedida, de Libertella, sem dúvidas, mas ao mesmo tempo de uma forma de dizer, própria, e também daquela que haviam construído entre ambos, nessa espécie de escrita em colaboração, de oficina íntima7, na qual liam um ao outro e comentavam entre si. Aquilo que nas primeiras páginas do livro descreve como “o feitiço linguajaresco que [os] havia mantido unidos [e que] vinha rachando” (KAMENSZAIN, 2018, p. 16) 8 . Uma despedida que, ao mesmo tempo, é uma homenagem, porque está escrita em uma língua em que impera a prosa, a língua do outro, assim como este outro no passado escolheu o poema para escrever-lhe (e dizer de seu amor?).
Como contar a história comum e despedir-se? Ou, como escrever uma despedida, que lhe possibilite ir “além do livro” (KAMENSZAIN, 2018, p. 88), movendo-se “em direção a outra vida, outro livro” (KAMENSZAIN, 2018, p. 88), tal como deseja nos versos que encerram El libro de Tamar? Um livro futuro que se ocupe, que verse, sobre outros assuntos, conforme fabula em O livro dos div ã s, ao qual já nos referimos. Ou seja, como abrir as portas, já não do gueto do qual queria se livrar órfã no livro de poemas escrito em memória do pai, mas sim do gueto linguístico e teórico que havia construído junto com Libertella e que havia se tornado uma língua indecifrável que os isolava dos demais e também um do outro?
Considero que a despedida é também uma homenagem porque prioriza a prosa; no entanto, talvez seria mais apropriado dizer que aquilo que prioriza é o
7 Em Lo íntimo, François Jullien comenta que “O íntimo designa […] duas coisas que mantém associadas: o recolhimento e o compartilhar ”. E explica: “Ou melhor dizendo, devido inclusive à possibilidade do recolhimento, surge a solicitação de compartilhar. Não só, evidentemente, porque quanto mais íntimo é aquilo que está em jogo, mais profundo é o que se compartilha, mas principalmente porque só o que é íntimo quer se oferecer e pode fazê-lo” (2016, p. 24).
8 Original em espanhol: “el hechizo lenguarejo que [los] había mantenido unidos [y que] se venía resquebrajando”.
narrativo, isso que permite tornar explícito o teor confessional de seus poemas e que havia permanecido contido, na época que volta a escrevê-los no registro da prosa. Isto é, retorna e retoma o imaginário linguístico e semântico dos seus livros de poemas para ordená-los em uma trama, naquilo que algumas décadas atrás – e com uma linguagem meio “selvagem”, meio “naif” (KAMENSZAIN, 2014, p. 27) – havia descrito como costura, tecido e bordado do texto 9 . Trama na qual persegue o tempo todo a clareza, não só como despedida definitiva do neobarroco, como também, aparentemente, do “neoborroso”10 , onde se situava há poucos anos11, um movimento que descrevia como um lugar entre o obscuro e o transparente, mas também entre o poema e a prosa.
Como se neste livro pudesse escrever simultaneamente da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, sob a escrita da lei judaica, a lei do pai (a da mão com a qual escreve o ensaio) e a euforia transgressora da rua (com a qual escreve o poema)12 . Um livro que, entretanto, e apesar da insistência na clareza da enunciação, não se fixa em nenhum gênero e também se situa em um entrelugar ou, inclusive, aposta em uma inespecificidade.
Romper com essa enunciação própria e na exegese que tenta deixar clara a cripticidade do poema oferecido pelo ex-marido, colocar palavras naquilo que não entende ou não entendeu naquele momento, pressupõe uma despedida mas também uma saída do gueto para dar lugar a outras vozes e a outros corpos, que são aqueles que a ajudam a contar a história desse casal e dessa escrita em colaboração. Um desejo que da mesma maneira já havia manifestado em O livro dos divãs, quando em um dos poemas fala do entusiasmo de escapar “pelos buracos das vozes alheias” (KAMENSZAIN, 2014, p. 34)13 , ou que muito tempo antes se deixava ouvir de modo mais velado em “Árvore da vida”, o penúltimo poema de O gueto, quando escreve: “No campo sem limites do olhar/ verde sobre verde avança a paisagem de todos/
9 Refiro-me a “Bordado y costura del texto” (1983), onde declara: “Já quase faz parte do senso comum comparar o texto com um tecido, a construção do relato com uma costura, o modo de adjetivar um poema com a ação de bordar” (KAMENSZAIN, 2000, p. 208).
10 Em português, algo como neo-“nebuloso” ou neo-“borrado”.
11 Refiro-me a um breve texto que publica na revista Ñ em abril de 2010, no qual revisa sua relação com o neobarroco e o neobarroso e, chegando ao final, afirma: “Agora […] talvez eu me filiasse a um movimento que bem pode se chamar neoborroso” (KAMENSZAIN, 2010, edição digital).
12 Segue a citação completa: “Uma vez meu analista, quando me queixei do quão tortuoso que era para mim escrever ensaios, diferentemente da certa euforia que costumava me acompanhar quando escrevia poesia, comentou que talvez eu escrevesse o ensaio da direita para a esquerda e a poesia ao contrário. Não disse mais nada, porém saí da sessão pensando que talvez ele tivesse querido dizer que da mão do ensaio vinha o peso dos mandamentos, da lei paterna, da língua do saber e da reflexão, ao passo que da mão da poesia entrava a rua com suas transgressões não judaicas na hora da sesta” (KAMENSZAIN, 2018, p. 58-59).
13 Original em espanhol: “por los agujeros de las voces ajenas”.
todos pendem sobre esse horizonte a esperança de [estar vivos/ somos uma multidão baratinada vomitando [sobre os ônibus/ uma passagem de saída”14 (KAMENSZAIN, 2003, p. 44)15 .
É assim que em “Ama”, um dos fragmentos de El libro de Tamar, escreve:
Em poesia, pelo menos a gente pode […] disfarçar, por trás dos cortes de verso, todo tipo de saltos narrativos. Mas nestes passos de prosa que estou começando a ensaiar, como faço para não cair no precipício? Entre os versos dele e as citações dos outros vou ter que ir me virando (KAMENSZAIN, 2018, p. 34)16 .
Caberia perguntar, então, quem são os outros que cita e convida para o texto, como em uma espécie de sessão de espiritismo? E, principalmente, o que pede a eles? Há alguns casais de escritores, como Ricardo Piglia e Josefina Ludmer, dos quais haviam sido amigos, juntos e separadamente 17, ou Julia Kristeva e Philippe Sollers, autores que ambos liam quando jovens em Tel Quel, ou um casal mais distante, como Ted Hughes e Sylvia Plath, ou ainda Tania e Discépolo, um casal do universo do tango, um dos imaginários recorrentes nos poemas de Tamara.
Casais com os quais monta uma espécie de collage ou de caixa de costura que, por um lado, lhe servem para comparar sua história amorosa intelectual com a história dessas duplas, cujas biografias comuns estiveram atravessadas pela relação com a palavra escrita, seja na forma do ensaio, do romance, do poema ou da letra do tango. De forma semelhante a quando se comparam as histórias de nossos amores e nossas separações com as histórias dos nossos amigos. Contudo, por outro lado, os fragmentos biográficos desses outros funcionam como pré-textos sobre os quais organizar seu próprio relato. É assim que a inscrição do nome de Ludmer nos diários de Piglia – às vezes
14 Original em espanhol: “En el campo sin límites de la mirada/ verde sobre verde avanza el paisaje de todos/ todos cuelgan sobre ese horizonte la esperanza de [estar vivos/ somos una muchedumbre abatatada volcando [sobre los colectivos/ un pasaje de salida”.
15 Em “Reverso”, um texto que publica em Diario de poesía e no qual conta a gênese de “Árvore da vida”, Kamenszain fala da escolha da palavra “ônibus” e da primeira pessoa do plural como uma opção não somente estética, mas também ética, que “Avisa que algo está se soltando e move a subjetividade descontrolada para fora de si.” E explica: “O que move essa primeira do singular a sair de sua estética é o ritmo neurastênico de uma escrita que já não aguenta a si mesma” (s/d).
16 Original em espanhol: “En poesía, por lo menos uno puede […] disimular, detrás de los cortes de verso, todo tipo de saltos narrativos. Pero en estos pasos de prosa que estoy empezando a ensayar, ¿cómo hago para no caerme al precipicio? Entre los versos de él y las citas de los otros me voy a tener que ir arreglando”.
17 Vale recordar lembrar que El libro de Tamar está dedicado a Josefina Ludmer e a Ana Amado e que também Ludmer é repetidamente evocada como mestra e como amiga ao longo do texto e será a personagem central, junto a Libertella, no fragmento “2 de julho de 2000”.
Josefina L., quando a remete ao universo da crítica, ou Iris, como a nomeia ao pensá-la a partir do espaço da intimidade – a ajuda a lidar com um dos núcleos de inquietude do seu livro: o da ausência do nome Tamara no poema “Tamar”. Uma ausência que a remete, sobretudo, às reflexões de Kristeva em Histórias de amor18 , livro que, recorda, estava lendo na época em que recebeu o poema por baixo da porta, e no qual, em um dos capítulos, Kristeva reflete acerca do segredo do nome da dama na “retórica cortesã dos trovadores herméticos”. Mas o casal Kristeva Sollers que está atravessado por uma espécie de mudança de língua, com o francês conceitual se transformando no francês da primeira pessoa, com o qual a dama pôde escrever ficção, serve-lhe como ponto de partida para pensar a si mesma e pensar o casal em uma espécie de espelho invertido, onde o marido, outra vez como um gesto em que mescla o respeito intelectual com o amor, se vale do seu cargo de editor na UNAM e lhe possibilita publicar seu primeiro livro de ensaios.
“Faz um livrinho de ensaios, loira”19 (KAMENSZAIN, 2018, p. 42), recorda ou imagina Tamara que o então marido lhe propôs. Se o seu cargo de editor universitário no México trouxe como consequência uma tiragem de alguns milhares de exemplares e uma ampla distribuição, a cena que Tamara recorda inscreve esse primeiro livro de ensaios, esse livro escrito da direita para a esquerda, no espaço da intimidade. Não do mesmo modo em que conta que, como gesto de sedução, Libertella a ajudou a dar forma ao seu primeiro livro de poemas, mas sim no claro registro da língua íntima argentina, onde entram o afeto do diminutivo, o mandate do imperativo e certa reminiscência do tango no loira do vocativo 20 .
Em outra perspectiva de leitura, o episódio em torno do casal Tania e Discépolo repete, por um lado, a história de uma mensagem deixada por um morto, agora uma partitura, e encontrada muitos anos depois, não em uma gaveta de Tania, mas sim em um bolso de Cátulo, a quem ela o havia dado fazia mais de um ano. Isto é, o episódio do casal tanguero atua como uma reduplicação e um deslocamento da recordação que abre o livro, a mensagem esquecida que irrompe de repente. Mas a esta história cabe ainda outra função. O relato desse episódio da vida dos outros, no qual as dívidas com os mortos interrompem o sono, funciona também como uma ponte para voltar a um
18 Vale lembrar que no ano 2000, Kamenszain também publica um livro que intitula Historias de amor e entre parênteses (Y otros ensayos sobre poesía ).
19 Original em espanhol: “Mandate un librito de ensayos, rubia”.
20 Devo esta ideia a uma conversa com Paloma Vidal, na qual ela comentava que a única presença do corpo e do erotismo no livro está no vocativo “loira”. Da minha parte, o situo no uso da língua argentina: nesse “mandate un librito […], yo te lo publico” [faz um livrinho […] eu publico ele pra você ] (KAMENSZAIN, 2018, p. 42).
fragmento de sua biografia literária e dar lugar a uma leitura biográfica de um poema de Tango bar. Concebido como reescrita do tango de Discépolo, que não por coincidência se chama “Mensagem”, o poema de Tamara, que não tem título, é também uma espécie de mensagem de um morto ou da morte, neste caso a do ex-marido, antecipada por ela nesse poema de 98, que escreve pouco tempo depois da separação. Reler o poema agora, enquanto ajusta contas com um resenhista, que na época lhe havia criticado algumas rimas cacofônicas e lera o livro numa perspectiva autobiográfica, coisa que a deixou indignada naquele momento, possibilita-lhe, talvez melhor que qualquer outra escrita, transitar por certa transparência que deixe de lado todo indício de ambiguidade. Ao contrário do que postulava o “pai Lezama”, ao afirmar que o menestrel hermético segue as maneiras de Delfos que, “nem diz, nem oculta, faz sinais” (LEZAMA LIMA, 1988, p. 73), agora Kamenszain, afastada do neobarroco, quer que o poema fale com a clareza com a qual falava outro pai, o de Philip Roth, conforme evoca várias vezes ao longo do texto.
Se os casais de escritores e o de Tania e Discépolo servem de apoio para reconstruir sua história amorosa, a figura do pai de Philip Roth, “capaz de um realismo cruel” (ROTH, 2012, p. 85), como escreve seu filho em Patrimônio, ajuda-lhe a dizer com clareza mas sem se expor completamente, deslocando para a boca desse pai, esse outro pai de escritor judeu já literaturizado, aquilo que nem ela nem seu ex-marido puderam dizer no passado mas também aquilo que lhe custa dizer agora 21. E a partir de uma perspectiva semelhante à da María Moreno de Black out, é convocada ao texto para poder falar do alcoolismo de Libertella e, consequentemente, de um dos motivos da separação. Não só porque a escritora relata que prefere a palavra “beber” para referir-se à “ingesta de álcool”, pela falta de ambiguidade deste termo, e nesse sentido se pareceria ao pai de Philip Roth, mas também porque Moreno e Libertella foram amigos – entre outras coisas, amigos de copo 22 . Convocar os outros parece ser então a salvaguarda para não “cair no precipício” (KAMENSZAIN, 2018, p. 34), na vertigem que a prosa lhe causa; parece ser também uma forma de não abandonar totalmente o ensaio, essa prosa que pratica desde sempre e que não pode prescindir da palavra do outro. Mas
21 Creio que vale a pena recordar um poema de La novela de la poesía , onde o sujeito lírico, diante da iminência da morte do pai, lembra de dizer-lhe: “olhe-a de frente”, ao que o pai, como se fosse o pai de Philip Roth, responde: “a ninguém adianta olhar para a morte/ esse romance, que o escrevam outros” [“a nadie le sirve mirar a la muerte/ esa novela que la escriban otros”] (KAMENSZAIN, 2012, p. 377).
22 Simultaneamente Moreno cumpre outra função no texto, já que Kamenszain se inspira no modo como intitula os capítulos de Black out para citar os fragmentos de El libro de Tamar, conforme relata.
acredito que há algo mais, que deslocar para a boca e para o relato dos outros aquilo que não pode dizer, porque não sabe ou porque isso a amedronta, é um modo de não se distanciar (ou não se distanciar totalmente, pelo menos) do poema. Se no poema os saltos narrativos são disfarçados por trás dos cortes de versos, na prosa a palavra dos outros, essa que a desloca para um lugar fora de cena, ocupa o lugar do corte de verso e a preserva.
Comentava no início que no impulso inicial do livro está o desejo de desvelar a cripticidade do poema, de contar sua versão da história de amor, “depondo”23 a poesia para dar lugar à prosa, bem como se depõem as armas para acordar uma trégua, mas ao mesmo tempo e, a partir do apoio de Kristeva, lê o poema para desvelar o segredo de Tamara, daquela que está e não está no poema de Libertella, já que seu nome é ocultado. E o segredo de Tamara, o segredo que Tamara confessa, é querer “recuperar” nesse poema “o homem que uma vez amou” (KAMENSZAIN, 2018, p. 18). Diria, mais apropriadamente, que se trata de recuperar na leitura desse poema o amor que esse homem sentiu alguma vez por ela 24 .
Quero retornar ao verbo “depor” que Kamenszain usa no primeiro fragmento, atribuindo a ação a Libertella, porque se ele depõe suas condições de narrador e lhe escreve um poema e Tamara depõe não mais suas condições de poeta, mas sim o pressuposto (que manteve durante anos) de que a vida não é narrável – algo que seria uma ilusão própria do romance e do qual o poema estaria livre – 25 , e agora decide mais ou menos contar, como se a prosa fosse o gênero apropriado para narrar uma vida, penso que El libro de Tamar propõe outra pequena disputa. Uma disputa que se articula justamente ao redor do
23 Em “Tamar”, o fragmento que abre o livro, escreve: “Intuo que desvelar algo daquilo que esconde isso que ele chamou de ‘bolsões semânticos’ é o que me impulsiona agora a escrever em prosa. Isto é, sei pouco e nada do ato de narrar, mas vejo que tampouco em verso eu poderia tornar compreensível o que ele, depondo suas naturais condições de narrador, versificou para mim a fim de me entregar toda uma história comum condensada em uma combinatória de seis letras” (KAMENSZAIN, 2018, p. 14).
24 Em “Arma trama”, ao falar dos casais de escritores, desse “escrever em colaboração” ou, pelo menos atuar como primeiro leitor do parceiro, anota: “Minha experiência me demonstra que, apesar das boas intenções, parece impossível que não se introduzam instabilidades momentâneas de todo tipo e, sobretudo, essa nociva tentativa de querer ler entre linhas para comprovar se o texto do outro diz algo sobre nós” (KMENSZAIN, 2018, p. 29).
25 Por um lado, neste livro volta a uma citação de Goethe tomada de Käte Hamburger, à qual já recorreu outras vezes. Cito por minha vez Kamenszain: “Se subscrevo, por exemplo, esse pensamento de Goethe citado por Käte Hamburger, quando diz que sua poesia ‘não contém nem uma pontinha que não tenha sido vivida mas tampouco nenhuma tal como se viveu’” (2018, p. 18). Uma declaração que a seguir completa com um comentário significativo: “No entanto, nada do que havia vivido com meu ex-marido durante os vinte e cinco anos de relação me ressoava naquele momento em ‘Tamar.” (2018, p. 18). Por outro lado, em uma entrevista que concedeu a Enrique Foffani em outubro de 2010 afirma: “E a poesia parece surgir mais do estranhamento diante do que é familiar, mais daquilo que falta do que aquilo que há. Parece-me que o romance é um gênero mais edípico, sempre rearma a historinha familiar, embora pareça falar de coisas objetivas, assuntos importantes do mundo. Em contrapartida, a poesia, que sempre parece falar de bobagens pessoais, as desloca” (edição digital).
nome. Falo do nome da dama, sim, que é um dos motivos de desassossego no fazer-se da leitura do poema encontrado, já que sua ausência lhe impede, como diz, qualquer devaneio, mas também do nome do cavalheiro, esse que se mantém oculto ou é dito apenas em termos até o fragmento “Ramat, 2 de julho de 2000”.
Ter elidido o nome Tamara e, consequentemente, impedir-lhe que se aproprie por completo do poema, bem como do “descanso do ser” (ASTUTTI, 2001, p. 94) 26 que supõe o devaneio, são as condições que ditam o tom de El libro de Tamar. Como se a impossibilidade de se entregar à fantasia, de pôr o mundo momentaneamente em suspenso, tivesse operado a favor do seu marcado prosaísmo. Um tom que a expressão “como haveria dito o pai de Philip Roth” ou alguma de suas variantes, condensa, enquanto a habilita para desobstruir o território da confusão linguística e da ambiguidade, bem como para escrever seu próprio “Tamar”, tanto o que intitula El libro de Tamar como o poema “Tamara” que está incluído nele.
Em “Ata Rama”, o fragmento em que lê a história do seu parceiro contra o pano de fundo da história de Kristeva e Sollers, e seu caminho para o romance ou para o gesto de romancear, novamente diferente do processo que havia seguido Kristeva, pergunta se fazer ficção será “armar uma trama nova com materiais velhos”27 (KAMENSZAIN, 2018, p. 40). E é nessa pergunta que quero me deter para ler “Ramat, 2 de julho de 2000”, onde, no meio do fragmento, escreve:
Héctor Libertella – agora sim o menciono sem rodeios porque, embora não tenha assinado ‘Tamar’, acredito que ao colocar data e local me habilitou sua assinatura – teve uma relação com meu pai na qual o universo judaico, visto da perspectiva de um goi (ou, traduzindo, um ‘gentil’), foi o código que os uniu no afeto 28 (KAMENSZAIN, 2018, p. 57).
A frase que acabei de citar inscreve o nome de Libertella e o inscreve em uma urdidura na qual estão presentes seu pai e o universo judaico, um gesto que relembra sua própria inscrição no sobrenome paterno na epígrafe/ dedicatória de O gueto, aquela que diz: In memoriam Tobías Kamenszain. Em teu sobrenome instalo meu gueto (KAMENSZAIN, 2003). Como no livro
26 Dialogo com “‘vasto como un deseo’… La ensoñación en Prosas profanas ” (2001), a bela leitura de Adriana Astutti sobre Darío.
27 Original em espanhol: “armar una trama nueva con materiales viejos”.
28 Original em espanhol: “Héctor Libertella –ahora sí lo nombro sin ambages porque, aunque no firmó ‘Tamar’, creo que poniendo fecha y lugar me habilitó su firma– tuvo una relación con mi padre en la que lo judío, visto desde la mirada de un goi (o, en traducción, un ‘gentil’) fue la contraseña que los unió en el afecto”.
de 2003, onde aquilo que está na margem do texto é o código daquilo que o articula e retorna nos poemas, aqui, a data e o local que Libertella escreveu em cursiva na margem do seu poema são os que lhe possibilitam nomeá-lo e inscrevê-lo em uma espécie de genealogia familiar e cultural.
O fragmento, então, constrói a exegese do poema centrando-se no “Tamar”, que lhe dá o título, e no “Ramat, 2/7/00”, que o situa em um espaço e em um tempo. Por um lado, o “Tamar” do título a reenvia para o universo do tango, dado que há um tango chamado Marta, Tamar ao contrário ou al vesre, como se diz em lunfardo, mas também ao universo judaico, já que é um nome que em hebraico significa “palmeira”. Por sua vez, Ramat, embora possa ser lido como um anagrama de Tamar, remete-a novamente ao universo do hebraico, língua na qual alude a um lugar situado nas alturas.
Em relação à data não há ambiguidade possível. São os dias em que seu pai estava morrendo.
Penso que se trata do capítulo mais amoroso e mais íntimo do livro, no qual abundam os pais e os segredos: Tobías Kamenszain, que mantinha reuniões “secretas” com Libertella, ou pelo menos das quais ela estava excluída e em que, conforme supõe, o pai ensinava a ele algumas palavras em iídiche, a grafia de algumas letras, ensinamento que Libertella retribui com uma personagem de nome Tevie, Tobías nessa língua. Também Paul Celan, esse pai literário recorrente em sua poesia, ingressa no fragmento mediado por uma interpretação de Derrida em Shibboleth para Paul Celan. Shibboleth, uma palavra hebraica reiterada na poesia de Celan e à qual Tamara dedica um extenso parêntese onde traça sua genealogia bíblica. O parêntese segue a deriva do termo, desde seu significado original de “espiga” até sua conversão em código para diferenciar dois grupos rivais conforme o modo como o pronunciavam. É o uso de shibboleth como código na Bíblia e na interpretação derridiana sobre Paul Celan o que lhe interessa como uma chave para ler nos nomes Tamar, Ramat e na data um código da assinatura de Libertella. Ao mesmo tempo se vale da história dessa palavra para interpretar que algo no poema lhe estaria falando de seu pai. Escreve:
Então me parece que a mim, que não faço mais que hackear códigos aqui e ali, ‘Tamar’ está dando pistas de um novo: ‘Ramat, 2 de julho de 2000’. Esta é uma cifra que me obriga fazer alguns cálculos mentais que logo me instalam em um teorema um pouco disparatado mas que faz sentido para mim: se Ramat me aproxima da língua hebraica, uma das línguas do
O que está cifrado no nome – El libro de Tamar , de Tamara Kamenszain
meu pai, e ao mesmo tempo considero que no dia 20 de julho de 2000 ele morreu, algo no poema ‘Tamar’ estaria me falando de Tobías Kamenszain 29 (KAMENSZAIN, 2018, p. 56-57) 30 .
Nessa interpretação que oscila entre a leitura psicanalítica e a exegese bíblica, não somente retorna o pai ao fragmento e com ele o universo judaico, mas também a palavra “gueto”, deslocada agora ou ampliada para uma constelação que a vincula com Libertella, e que explica como um código matrimonial, do qual se valeram até o esgotamento 31. De modo que se aparentemente o significante se desloca do âmbito parental para ingressar na constelação que reunia literatura e casal, rapidamente o texto declara que, na cena inicial do amor, quando Libertella a ajuda a organizar seu primeiro livro, lhe demonstra que ele pertencia à sua tribo. Escreve: “Ele me ajudou a organizar meu livro e nisso demonstrou que pertencia à minha tribo”32 (KAMENSZAIN, 2018, p. 59). Um significante que oscila entre a tribo da literatura e a tribo judaica. Ou seja, todo o fragmento constrói um relato – dá um passo de prosa – no qual inscreve o nome de Libertella em uma trama familiar, essa trama à qual vem dando forma em uma série de livros que desdobram sucessivos lutos, pelo menos desde 2003; algo assim como os “materiais velhos’’ aos quais alude quando se pergunta pela possibilidade da ficção, entendida aqui como um sinônimo de romance. Entretanto, essa série de operações necessárias para poder dizer o nome do ex-marido me faz lembrar de uma afirmação da poeta em um ensaio de 1999 sobre José Kozer. Ali, a propósito da pergunta sobre o significado da inscrição da assinatura do cubano no corpo dos seus poemas, Tamara Kamenszain afirmava que “[…] para um poeta não há juventude: nunca inventará nada novo (nunca escreverá um romance) e sempre, de ilusão em ilusão, ficará preso no fascínio das mesmas cenas familiares”33
29 Original em espanhol: “Entonces me parece que a mí, que no hago más que hackear contraseñas por aquí y por allá, ‘Tamar’ me está guiñando una nueva: ‘Ramat, 2 de julio de 2000’. Es una cifra que me obliga a hacer algunos cálculos mentales que al vuelo me instalan en un teorema un poco disparatado pero que me cierra: si Ramat me acerca a la lengua hebrea, una de las lenguas de mi padre, y a la vez tomo en cuenta que el 20 de julio de 2000 él murió, algo en el poema ‘Tamar’ me estaría hablando de Tobías Kamenszain”.
30 O terceiro pai é novamente o pai de Philip Roth, que segue cumprindo a função de tradutor ideal para uma língua mais simples.
31 Escreve: “Confinamento, cerco, são palavras que me remetem a outra que aqui não aparece, mas que entre meu ex e eu funcionou como um de nossos códigos favoritos: gueto” [“Encierro, cerco son palabras que me remiten a otra que aquí no aparece pero que entre mi ex y yo funcionó como una de nuestras contraseñas favoritas: ghetto”] (KAMENSZAIN, 2018, p. 59).
32 Original em espanhol: “Él me ayudó a ordenar mi libro y ahí demostró que pertenecía a mi tribu”.
33 Original em espanhol: “[…] para un poeta no hay juventud: nunca inventará nada nuevo (nunca escribirá una novela) y siempre, de espejismo en espejismo, quedará atrapado en la fascinación de las mismas escenas familiares”.
(KAMENSZAIN, 2000, p. 81). Embora escrito e concluído quase vinte anos antes, quando – conforme declara insistentemente – sua estética era outra, o ensaio retorna no momento de pensar em El libro de Tamar de 2018. Se ali Kamenszain aposta na ideia de que as operações que Kozer realiza com seu próprio nome e com o nome de Guadalupe, sua mulher, distanciam sua poesia do gênero autobiográfico, agora, em El libro de Tamar, a inscrição tardia do nome de Héctor Libertella, ou a inscrição plena desse nome, somente no momento em que pode situá-lo em uma genealogia familiar à qual vem dando forma há algumas décadas, ou seja, esse ficar presa nas mesmas cenas familiares, apresenta-se a mim como uma interrogação. Pergunto-me se agora se trata realmente de dar um “passo de prosa”, de um “escrever uma trama nova com materiais velhos”, ou, se tal como dizia no ensaio de 99, “para um poeta não há juventude: nunca inventará nada novo (nunca escreverá um romance)” (2000, p. 81).
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O passado é sempre algo conflituoso, afirma Beatriz Sarlo em Tiempo pasado (2007), a ensaísta afirma que no passado há algo de inacessível, que se aproxima do presente de maneira conflitiva por meio das recordações. Para Sarlo (2007, p. 10), o presente é “el único tiempo apropiado para recordar, y también, el tiempo del cual el recuerdo se apodera, haciéndolo propio”. Partindo desta premissa da ensaísta argentina, buscaremos nos acercar do tempo presente da narrativa de Joca Reiners Terron para que possamos compreender as memórias passadas e desconhecidas pelo narrador da obra. Se “Del pasado se habla sin suspender el presente” (SARLO, 2007, p. 13), podemos pensar que, no romance A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, o narrador se vale de um fato ocorrido em seu cotidiano de trabalho, que aparentemente não tem qualquer relação com ele próprio ou com seu passado para revelar ao leitor toda uma trama que irá modificar completamente a história conhecida de sua família, tanto no que diz respeito às relações que ele estabelece no presente divido ao que ocorreu em seu passado, quando ao que se pode projetar para seu futuro. Pelas relações estabelecidas
com as memórias familiares propriamente do pai que modifica o presente do narrador, podemos perceber que estamos diante daquilo que Dominique Viar (2009) e Zilá Bernd (2018), nomeiam de Romance de Filiação.
De acordo com Viar em Le silence des pères au principe du «récit de filiation» (2009), os romances de filiação são uma forma literária que tem a originalidade de substituir a autonarrativa mais ou menos cronológica que a autoficção e a autobiografia têm em comum, por uma investigação sobre a ancestralidade do sujeito. Complementando o conceito de Romance de Filiação e expandindo seus horizontes no Brasil, Zilá Bernd (2018), amparada na perspectiva de Viart afirma que o caráter do trato da interioridade, característico dos romances memoriais, sofrerá uma “mutação”, ele evoluirá para os aspectos da anterioridade, ou seja, as escritas que, baseadas no presente do sujeito narrador, irão procurar resolver seus problemas retomando as histórias de vida do pai ou da mãe. Histórias estas que, de alguma maneira, irão influir no desenvolvimento da vida do sujeito narrador.
Assim, diante de tal afirmativa, tomamos o romance A tristeza extraordinária do Leonardo-das neves (2013), do escritor mato-grossense Joca Reiner Terron, por seu narrador, um escrivão de polícia que se desdobra nos cuidados com o pai, um imigrante judeu russo com demência, que passou a vida toda distante de seu filho, e a investigação do crime do passeio Nocturama, no Zoológico de São Paulo.
Contudo, se, como confirma Figueiredo (2016) e Bernd (2018), para Viart, a narrativa de filiação trata de uma investigação da anterioridade do narrador, o que percebemos em Terron é algo que, ao mesmo tempo se aproxima de tais conceitos como também se afasta destes. Não estamos diante de uma narrativa tradicional interioridade ou, ainda, da anterioridade do narrador, mas sim diante de um livro em que a questão investigativa se aproxima do Romance Policial, considerado, de acordo com Carlos Reis, no Dicionário de Estudos Narrativos (2018, p, 464) “um subgênero narrativo em que se relata a investigação de um crime, levada a cabo por alguém (um detetive ou um investigador policial) que seguindo e interpretando indícios, tenta descobrir a identidade do criminoso e explicar as razões que o motivaram.”. Entretanto, apesar de, em certa medida, haver uma investigação de um crime, o romance irá fazer, por meio do trabalho que o narrador exerce no texto, ou seja, escrivão/ investigador, com que este sujeito revele a história de sua própria família, ainda desconhecida para ele.
De acordo com Bernd,
a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
O romance memorial e o de filiação englobam em suas narrativas a memória genealógica e familiar, bem como a geracional, pois um dos fatores primordiais para a sua existência e consolidação é a necessidade do (eu) narrador promover a reconstrução de trajetórias vividas por seus ascendentes e, através desse processo, (re)significar e/ou (re)construir o presente. É necessário o estabelecimento de um jogo dialético entre lembrar e esquecer, entre passado e presente, entre ascendentes e descendentes, entre aceitar ou renegar os vestígios memoriais que emergem (BERND, 2018, p. 47).
É interessante frisar, na esteira das concepções de Leonor Arfuch em La vida narrada: memoria, subjetividade y política (2018), que a análise de uma narrativa necessita de uma leitura e uma posição do analista bastante atenta, “no solo el qué tino tanbién el cómo del decir, no solo el “contenido” de una historia sino los modos de su enuncianción, no sólo el contorno de una imagen sino su profundida, su fondo, aquello que oculta tanto como muestra”. (ARFUCH, 2018, p. 58). Assim, por mais que estejamos almejando averiguar as questões acerca da filiação no romance de Terron (2013), necessitamos investigar, por exemplo, qual a posição que o narrador assume ao contar a história? Como as personagens lidam entre si nos relacionamentos familiares? Se há uma história familiar a ser contada, investigaremos, também, como ela se estrutura.
O romance de Terron (2013) tem como narrador um escrivão de polícia que sofre de insônia, motivo pelo qual trabalha no turno da noite, e que, no tempo que lhe sobra, cuida de seu pai que sofre de demência. Na diegése narrativa o Escrivão nos conta a história de um caso já encerrado logo no início do texto, mas o qual revela aos poucos em meio aos fragmentos de sua própria história pessoal. Entre mudanças de foco narrativo, uma enfermeira, um Taxista, três cães e um leopardo-das-neves triste, vamos conhecendo a história da Criatura, como é chamada uma personagem caracterizada de forma monstruosa, de estatura baixa, como uma criança, que ninguém sabe a idade e que não pode sair ao sol. No texto, ninguém sabe quase nada sobre a Criatura que é cuidada pela enfermeira, a Sra. X, especialista em doentes terminais. O desenrolar da história coloca a Criatura e o Escrivão em contato, pois junto à Sra. X, a Criatura, que sente fascínio pelo Leopardo-das-neves, irá ao passeio noturno do zoológico de São Paulo onde um crime acontecerá e será investigado pelo Escrivão que, no entrecruzar das histórias da Criatura e de sua própria família descobrirá um segredo que envolve seus pais, a Criatura é sua irmã, e ele nem ao menos saiba de sua existência.
A narrativa é dividida em sete (7) capítulos, sendo quatro (4) destes narrados em primeira pessoa pelo Escrivão, nos quais todos os títulos são marcadamente iniciados com a expressão “O escrivão...”, deixando claro que o centro da história é o próprio Escrivão, assim como de sua família. Os outros três (3) capítulos tem como protagonistas a Criatura, a Sra. X, o Taxista com seus três cachorros e o Leopardo-das-neves, figuras estas que estarão presentes na narrativa auxiliando o esclarecimento tanto do crime quanto da história familiar desconhecida do Escrivão.
Uma das figuras chaves na compreensão do romance é o Pai do Escrivão, um imigrante judeu de origem Russa que sofre de demência e que precisa do auxílio do filho quase o tempo todo, mas que nem sempre foi assim, dependente do filho. Quando jovem, o Escrivão relembra de um fato ligado a seu pai que marca sua vida para sempre e que, de acordo com o narrador, foi o primeiro dos ressentimentos filiais que este guardou, quando o pai atravessou a calçada ao vê-lo se aproximar.
Então passava do meio dia e eu vinha da escola com um colega de classe quando percebi o velho vindo em nossa direção. Caminhava como se tateasse com a palminha do sapato um metro desconhecido de terreno a cada passo, era esse o seu modo de andar. De longe apontei todo orgulhoso o velho ao meu colega, olha lá, o homem branco feito uma parede recémcaiada e alto como uma placa de ponto de ônibus, é o meu pai, aquele, falei, vem vindo, olha, e nem bem a palavra pai saiu da minha boca e ele tinha mudado de calçada. Ah. Não acenou, não emitiu nenhum sinal de reconhecimento, nada disso. Ih. Apenas mudou de lado da rua e seguiu seu caminho, quieto, acompanhando ao longe algo que estava fora do alcance de minhas vistas, pois eu ainda era pequeno demais e não podia enxergar muito além do meio-fio. Oh. Meu colega riu um pouco, mas depois, talvez com pena de mim, disse que eu devia ter enganado de pai. Aquele lá deve ser o velho de outro cara, ele falou, o homem não se parece nem um pouco com você, afinal, aquele cara lá é branco e você é sarará (TERRON, 2013, p. 27).
Esta, a primeira de muitas decepções que o narrador tem com seu pai, ajuda a construir a estranha relação que há entre os dois no decorrer da narrativa. De acordo a assertiva de Márcio Seligmann-Silva “o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa.” (2008, p. 69), no decorrer do romance a cena do pai atravessando a rua ao vê-lo irá perseguir o Escrivão a todo encontro com seu progenitor. O Escrivão chama o pai de Velho, não lhe faz mais coisas que a mera “obrigação” de filho. A relação de ambos é fria em diversas passagens, mas carinhosa e piedosa em
Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
algumas outras. Para Maurice Halbwachs (1990, p. 25) a primeira pessoa que devemos confiar, quando se trata da recordação, do uso da memória, é a nós mesmos. Somos nós a primeira testemunha de acontecimentos que, de alguma forma, marcaram nossa vida. Contudo, Halbwachs assevera ainda que apesar de valermos de nossas próprias memórias, todas as memórias são, de certo modo, coletivas, mas, na relação entre o Escrivão e seu Pai, não há uma memória afetiva a ser contada da passagem de sua infância até a vida adulta, a distância mantida pelo Pai ao longo da vida constrói não uma memória familiar afetiva, mas uma memória do distanciamento. Há um abismo enorme entre ambos o romance todo. As memórias que o Escrivão guarda do pai são carregadas de ressentimentos, o constructo da figura paterna não atende ao que o próprio narrador gostaria, talvez.
No Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant o verbete “Pai”, aparece com a seguinte explicação:
Símbolo da geração, da posse, da dominação, do valor. Nesse sentido ele é figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Ele é uma representação de toda autoridade: chefe, patrão, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza, mantém a dependência. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente; é o mundo da autoridade tradicional diante das forças novas de mudança (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 678).
Todavia, ao analisarmos o romance de Joca Reiners Terron, A tristeza extraordinária do Leopardo-das-neves, percebemos o Velho, como é chamado pelo narrador, é visto de maneira diferente. Um pai que não corresponde em nada com as definições apresentadas acima. Ele não é um espelho de grandeza e proteção ao narrador. Ao contrário, o narrador, por conta da demência sofria pelo pai, acaba por assumir o papel de protetor, de chefe, o narrador assume um papel quase paternal, no decorrer do romance.
Logo no início da narrativa, estamos diante da seguinte situação: o Escrivão admite sua própria insônia, nos apresenta o Velho, como ele chama seu pai, e informa que frequentemente ele estava recebendo telefonemas de cobrança, informa, também, a morte do único amigo do Velho que o visitava com frequência: “As visitas cessaram desde que o dr. Glass se matou faz duas semanas, no dia de seu aniversário de cem anos. A partir daí tudo desandou, inclusive meu sono (TERRON, 2013, p. 12). Esta passagem, marca o desencadeamento da demência no Velho, que também tentou o suicídio:
Olhou para mim, mas não me reconheceu: seus olhos não tinham luz. Seu corpo lembrava um saco de estopa em vias de ser esvaziado, um entulho deixado para trás que o gato, saindo das prateleiras, cheirou por tempo suficiente apenas para dar meia-volta. A cena era absurda e um tanto cômica. Mas tudo isso aconteceu ontem à noite, pertence ao passado (TERRON, 2013, p. 12).
As ações que apresentamos acima serão de extrema importância para o desenvolvimento da narrativa, pois pela própria demência do Velho, a memórias familiares que o Escrivão necessitará recolher irão revelar não apenas uma investigação em seu trabalho, mas os mistérios que envolvem a vida do Velho e de sua própria família.
Buscando um viés histórico que desse amparo crítico/teórico sobre a representação familiar, encontramos em Philippe Ariès, mais precisamente em História Social da Criança e da Família (1981, p. 197), seguinte afirmação: “Quanto mais avançamos no tempo, e sobretudo no século XVI, mais frequentemente a família do senhor da terra é representada entre os camponeses, supervisionando seu trabalho e participando de seus jogos.”, no texto, Ariès afirma que anteriormente ao século XVI não haviam representações familiares nas artes ocidentais, o homem ou a mulher eram representados sozinhos, deslocados de toda e qualquer intimidade que a presença da família pudesse lhes trazer. A vida privada era ignorada. São exatamente estes contextos, os contextos da vida privada do Velho e de sua família que o Escrivão irá descobrir, ao longo do texto.
Após esta primeira apresentação da situação das personagens na narrativa, somos transpo-rtados para o local de trabalho do Escrivão, que irá atender a um caso criminoso no Nocturama, passeio noturno do zoológico da cidade de São Paulo. As investigações sobre o caso levarão o Escrivão a descobrir o envolvimento de seu pai e de sua própria família em algo que ele não sabia da existência.
[...] a narrativa de filiação desloca a investigação da interioridade em favor da anterioridade, ou seja, o narrador faz uma prospecção de sua genealogia (ou de seus personagens) porque o conhecimento de si passa pela compreensão da vida de seu pai, da mãe ou dos avós. Do ponto de vista formal, se caracteriza por um hibridismo genérico, já que dialoga com a ficção e com a autobiografia; não é linear, procura recolher os fragmentos da herança e para isso, precisa fazer uma busca, porquanto o narrador não conhece, senão de modo lacunar, aquilo que foi vivenciado pelos pais e avós (FIGUEIREDO, 2016, p. 81-82).
Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
Assim, tendo como princípio as afirmações de Figueiredo, baseadas no conceito de Viart, percebemos algumas questões que se desenvolvem de outra forma no texto de Terron (2013). Há, de fato, uma investigação da anterioridade, contudo, tal investigação, não se desencadeia por uma busca de conhecimento de si, e sim por uma situação de trabalho do narrador-personagem. Claro, ao passo que a narrativa se desenvolve, podemos perceber que há algo de compreensão da vida do narrador e de sua família, contudo este não é o ponto de partida, apesar da inconformidade com a vida, o narrador, de início, não busca “resolvê-la”.
Outro ponto interessante mencionado por Figueiredo (2016) é a característica de hibridismo genérico dos romances de filiação que, segundo a pesquisadora, “dialoga com a ficção e com a autobiografia” (FIGUEIREDO, 2016, p. 82), contudo, percebemos que o romance de Terron (2013), totalmente ficcional, apesar de tocar em alguns aspectos relevantes dos processos reais de imigração do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, mescla a ficção memorialística, da vida o narrador e de sua própria família, com a investigação policial. No entanto, a hibridação de ambos os “tipos” de romances resulta em uma investigação que revelará, ao narrador, partes obscuras e secretas de sua própria família, fatos que o narrador não conhecia e que revelarão as anterioridades de sua família.
Buscando compreender a situação do pai, e ainda nos apresentando sua própria história o narrador começa a rememorar as lembranças de sua família: Os sintomas da demência do velho começaram quando minha mãe ainda estava viva. Isso faz tanto tempo que só consigo lembrar de seu rosto se observar com atenção o único retrato dela dependurado no corredor. Naquela fotografia de cantos carcomidos pela umidade minha mãe lembra um fantasma, pois sua estampa começou a se dissipar de tal forma que agora está transparente (TERRON, 2013, p. 16).
Contudo, no decorrer do trecho, as lembranças da fisionomia sua mãe, dissipadas do retrato pelo tempo, da voz de sua mãe e de sua presença na infância da personagem, fazem o narrador questionar-se:
Seria o velho o autor daquele retrato? Talvez esteja invisível na foto assim como a velha, no entanto ela ainda pode ser levemente percebida – pela forma de sua cabeça pender à esquerda na silhueta abaulada parecendo a de uma grávida, como se suportasse demasiados problemas – mesmo que seus detalhes fisionômicos não estejam visíveis, mesmo que sua voz não seja mais audível. O velho está ausente até na fotografia na qual não deveria estar. Aquele retrato de minha mãe é a única fotografia de nossa
família. No verso há uma anotação que diz: “Retrato realizado na casa da rua Tocantins, nº 906, Bom Retiro, São Paulo, maio de 1945”. Era o endereço de um prostíbulo (TERRON, 2013, p. 17).
No decorrer das lembranças de infância, o narrador volta-se para a importante figura materna, no entanto, marca sua falta de lembranças mais detalhadas das relações com seus pais, por “ter saído cedo de casa, ainda na adolescência.” (TERRON, 2013, p. 19). Assim, percebemos que toda a construção do processo de identidade, vista também como processo de identificação do sujeito, no caso o Escrivão, não ocorre com a presença de sua família, tudo o que sabe sobre tal família advém ordem do passado, que, contudo, ele também não conhece.
Em Espaços da recordação (2011, p. 106), Aleida Assmann afirma que Locke “vincula o conceito de identidade ao espaço da vida do indivíduo. Em lugar das identidades genealógicas das famílias, instituições, dinastias ou nações, aparece a identidade individual no horizonte exclusivo da história de vida pessoal.”. O narrador, ao sair de sua casa em sua adolescência perde todo o contato mais íntimo ou próximo de sua família, com a qual, ao correr do tempo, não se identifica mais. Toda sua construção identitária se deu em outro lugar, em Israel, o que aconteceu com sua família neste tempo e anteriormente a seu nascimento, ele não sabe. Seu trabalho como investigador no caso do Nocturama irá fazer com que descubra sua própria história, aquela que ele não presenciou, mas que existiu.
Minha falta de lembranças é acentuada pelo fato de eu ter saído cedo de casa, ainda na adolescência. Vivi num kibutz em Israel uns anos, numa fase sionista de minha vida, depois de viajar pelo Leste Europeu e pela região da Rússia de onde meu pai tinha vindo, ou ao menos de onde eu pensava que ele tinha vindo (nunca tive certeza). Lá me casei, mas esta é uma história que prefiro esquecer, que já esqueci. Que parece nunca ter acontecido, do mesmo modo que a militância sionista que representava uma busca patética por raízes que afinal nunca existiram. Imigrantes têm raízes aéreas idênticas às de uma orquídea que absorve água da atmosfera (TERRON, 2013, p. 19-20).
A formação identitária do sujeito narrador, o Escrivão de polícia, se deu totalmente em terras estrangeiras, vivendo como imigrante, sem “fincar raízes” no local, como podemos ver na metáfora final da orquídea. As lembranças de certa judeidade do narrador existem não de uma tradição familiar vivida junto ao pai e à mãe, mas por experiências próprias em busca das origens da família, do pai, do seu local de origem. A relação entre pai e filho e família se
coloca como a principal relação dentro do romance. Tudo gira em torno da família do narrador, das histórias dessa família, da identidade dessa família. No decorrer do romance de Terron (2013), percebemos que a divisão dos capítulos exerce fator importante quando se trata da construção das lembranças ainda por vir desta família que o narrador, propriamente, não conhece. É através do trabalho que o narrador realiza que podemos nos deparar com as outras histórias muito bem encadeadas por Terron. Didaticamente nos deteremos a três histórias que revela, de alguma maneira, as lembranças familiares do narrador. A primeira que elegemos é história do Taxista, responsável pelo crime do passeio noturno do zoológico que colocará o narrador diante de sua própria história. A narrativa sobre o Taxista está quase completamente nos capítulos dois, quatro e seis, prefixados todos como “Mundo Animal”. Primeiramente, no romance, nos deparamos com o Taxista levando a Criatura e a Sra. X ao passeio noturno do zoológico, só então o narrador começa a contar sua história. Ao apresentar a personagem do Taxista o narrador nos afirma que o homem tinha três cachorros, os quais amava acima de tudo e que, por vezes, passeava com os animais após encerrar o expediente. A paixão pelos cachorros também é relevada como um trauma de infância no qual o pai do Taxista mata sua cachorra a pauladas e afoga os filhotes. A recordação da animalização e da brutalidade do pai com os cães na infância faz com que o Taxista queira “agradar” os três cachorros de toda maneira, deixando-os “fazerem de tudo”.
[...] o Taxista lembrou-se de quando um gato caiu no quintal da fábrica abandonada. Pobre felino. Os cães o estraçalharam em poucos segundos. Restou apenas um saco esvaziado de couro sanguinolento, que o Taxista dependurou no varal. Mesmo assim, os rottweilers não esgotaram sua ânsia e rodearam durante horas os restos do gato dependurados no alto, sem poder alcançá-los. Depois de devolver as feras à jaula, o Taxista analisou o couro seco do bichano e pensou no que seus cães poderiam causar a um ser humano (TERRON, 2013, p. 50).
A partir dos traumas que o Taxista possui de seu passado infantil fazem com que ele projete nos cães e na forma com que os animais se tornam agressivos, sua própria raiva. A falta de humanidade que o Taxista aprendeu com o pai ele leva para toda a vida. A figura paterna importante na formação do Taxista o constrói como o que Foucault (2010) define como monstro humano. De acordo com o próprio narrador do romance, a morte dos cães na infância pelo pai, de forma brutal, é significativa para a forma como o Taxista se porta no mundo. Foucault em Os anormais (2010, p. 47), ao afirmar as três figuras
que constituem o domínio da anomalia humana afirma sobre a primeira figura, o monstro humano, que:
A primeira dessas figuras e a que chamarei de “monstro humano”. O contexto de referência do monstro humano e a lei, e claro. A noção de monstro e essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro e o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma viola, ao das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele e, num registro duplo, infração às leis em sua existência mesma. O campo de aparecimento do monstro e, portanto, um domínio que podemos dizer “jurídico-biológico”. Por outro lado, nesse espaço, o monstro aparece como um fenômeno ao mesmo tempo extremo e extremamente raro. Ele e o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos extremos, precisamente. Digamos que o monstro é o que combina o impossível com o proibido.
Percebemos que as constituições da memória infantil do Taxista, de alguma forma, o modificaram por completo, o que fez com que ele se apegasse mais aos animais, mais aos monstros da natureza. Se, assim como afirma Bernd (2018, p. 24) “Falar dos pais é um subterfúgio para falar de si próprio”, podemos inferir que o narrador, ao trazer a tona a história do pai do Taxista, procura falar sobre o próprio Taxista, sobre a herança deixada pelos pais dele. Com os três cães que possui, após se recordar do episódio com o gato, o Taxista começa a fazer “teste”, ou o que podemos ver como uma espécie de treinamento, uma preparação para o ato final, a saber “Depois de devolver as feras à jaula, o Taxista analisou o couro seco do bichano e pensou no que seus cães poderiam causar a um ser humano.” (TERRON, 2013, p. 50). O treinamento dos cães consistia em:
Depois de apreciar o estrago feito no gato pelos cães, o Taxista teve mais uma de suas ideias, como afirmou no testemunho. Armado com um saco, começou a caçar felinos que infestavam a fábrica abandonada. Os miados daqueles malditos gatos levavam seus cães à loucura, conforme relatou. [...] o Taxista libertou o primeiro gato do saco e acompanhou com regozijo a caçada empreendida pelos rottweilers. O bichano foi alcançado pelos dentes do cão mais velho quando escalava o tronco de um pinheiro e não escapou por muito pouco. [...] O gato seguinte foi mais desafiador, pois ao retirá-lo de dentro do saco o Taxista foi atingido no antebraço por suas garras cortantes. [...] Após cinco minutos de intensa refrega, um dos cães saiu de dentro de um bambuzal carregando o animal morto na boca, que depositou aos pés do Taxista. O terceiro gato mal atracou suas quatro patas no chão e foi alvejado por uma patada do cão mais jovem da matilha. O
Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
Taxista considerou aquela eficácia uma evolução dos talentos de caçadores de seus animais, além de considerável prova de fidelidade, e voltou para casa bastante orgulhoso deles (TERRON, 2013, p. 55-56).
A partir desta cena o Taxista começa a aumentar o tipo e tamanho de caça de seus cães, até chegar à caça humana no passeio noturno do zoológico, onde encontrariam a Sra. X e a Criatura. A experiência que faria com que o Escrivão revirasse a memória de sua própria família. É interessante observar que, de algum modo, as lembranças familiares que moldaram a personalidade do Taxista e posteriormente de seus cães, fizeram com que ele a memória familiar do Escrivão também fosse revirada e possibilitou o encontro dele com a irmã, a Criatura. A memória familiar exerce, no texto de Terron (2013), extrema importância. Para Joël Candau (2019, p. 140) “a memória familiar serve de princípio organizador da identidade do sujeito em diferentes modalidades.”, no caso do Taxista, as memórias do horror da morte de sua cachorra ficam marcada em sua mente, adormecido o horror é despertado quando os três cães estraçalham o gato. Nesta mesma linha de pensamento Nubia Hanciau, em “Dever da memória” (2017, p. 99) afirma que “A memória se concretiza a partir de imagens que resgata, tanto no plano pessoal quanto social, dando significado à vida”.
Seguindo as personagens que irão fazer com que o Escrivão recupere as memórias desconhecidas de sua família, temos a Sra. X, descrita pelo narrador como enfermeira com especialização em geriatria e doenças incomuns em idosos, que é contratada por uma família para cuidar de uma Criatura:
A sra. X foi contratada pelos familiares ou talvez tutores da criatura, que a buscaram por meio dos serviços de uma empresa especializada em recursos humanos de alto nível, conforme declarou em seu depoimento. Com conhecimentos administrativos e mestrado em enfermagem, a sra. X passara toda a vida auxiliando pessoas com enfermidades graves como a da criatura, ou então tratando, pois era esta a sua especialidade, de pacientes terminais. Contudo, nunca tinha trabalhado com uma paciente tão pequena. Na maior parte das vezes, a sra. X acompanhava até a morte anciões solitários e ricos cujas famílias preferiam contratá-la a tratar deles, tudo para não partilhar de seu convívio. Mas aquela era sua primeira experiência com um ser de aparência tão desconcertante, devido aos efeitos da doença. Os familiares da criatura, talvez seus avós, ou quem sabe seus tios, ou então parentes distantes, ou talvez seus proprietários (a sra. X não tem muita certeza), afirmaram à empresa que havia se responsabilizado por sua contratação que precisariam viajar para cuidar de negócios inadiáveis na China ou na Rússia. (TERRON, 2013, p. 41).
A ligação entre a Criatura e a Sra. X, no romance, baseia-se, primeiramente, pelo contrato que faz com que a Sra. X esteja perto de sua paciente o tempo todo. Até o passeio do Nocturama, quando ocorre o crime, haviam dois anos que as duas não saiam a rua, tempo que durava o contrato. Ao nos contar a história da Sra. X, o narrador a faz por meio de duas perspectivas, a da própria personagem em seu depoimento sobre o caso e o conhecimento onisciente do narrador sobre as personagens.
O trabalho da Sra. X com a Criatura é descrito pelo narrador com algo muito exaustivo, com regras rígidas, mais ainda que o dos pacientes terminais aos quais a Sra. X estava acostumada.
Todo dia a sra. X desinfetava a criatura. O trabalho era muito delicado, e se iniciava na tentativa de convencê-la a se despir. Envergonhada de sua aparência, a criatura sempre vestia capa de chuva vermelha com capuz, calças largas e galochas dentro de casa. Primeiro, a governanta limpava a pele da criatura com água boricada e algodão. As feridas se esparramavam por todo o corpo, tendo ela contato com a luz diurna ou não. Eram inflamações purulentas que surgiam de um dia para o outro como se o corpo dela estivesse em constante estado de erupção. Apareciam nos pontos de contato da pele com a cama quando a criatura se deitava ou com a cadeira quando se sentava, mas também no rosto e até mesmo na delicada penugem que lhe encobria as córneas. As mutilações em suas mãos eram terríveis, e ela relutava em tirar as luvas de couro. A maior parte do tempo a criatura estava coberta por feridas de diferentes tonalidades de cor, do vermelho mais vivo das feridas recém-surgidas às cascas quase negras de sangue coagulado dos machucados de três dias ou mais. Parecia uma pintura abstrata cujo pintor tinha desistido a meio caminho, colocando-a de lado. Seus olhos viviam inflamados por conta das irritações nas córneas e podiam até mesmo sangrar. Depois de limpar as cascas com cuidado, a Sra. X se dedicava aos ferimentos infeccionados. Havia um deles na testa da criatura que parecia se renovar a cada dia. A ferida aparecia e logo infeccionava. Era enorme. Depois que a sra. X conseguia eliminar o pus, quase desaparecia com o uso de remédios secativos. Tornava-se uma cicatriz rombuda. Passados um ou dois dias, porém, a ferida retornava com a mesma intensidade. A cicatriz reabria, parecendo ter vida própria, dando lugar a um novo ferimento em forma de boca. Era difícil até mesmo a uma enfermeira experiente como a sra. X não sentir asco. Mas isso não a preocupava, pois o Senhor estava ao seu lado. Ela realizava as limpezas como parte de sua missão. O que a comovia de verdade era a bravura da criatura, que não emitia um só gemido ao longo do tratamento. Durante a limpeza, a sra. X contava histórias para distraí-la da dor. As mais apreciadas eram as histórias do leopardo-dasneves. Era uma criatura abençoada, disso não havia dúvida. Contudo, a sra. X temia que hora ou outra aquela boca na testa lhe murmurasse algo que ela não gostaria de ouvir. (TERRON, 2013, p. 56).
O narrador, como podemos perceber, estabelece a configuração da Criatura aos cuidados da Sra. X como um ser monstruoso e ao mesmo tempo frágil, assim como os idosos terminais. Sua condição de doente permanente a coloca em uma posição que, para a Sra. X é de absoluto sofrimento. Toda a revelação que o narrador faz sobre o passado da Sra. X, sobre seus pais e, principalmente, sua religiosidade nos mostram uma personagem que não sabe lidar com o sofrimento alheio, e vê com bons olhos colocar um fim a qualquer sofrimento que seus pacientes possam ter. A personagem leva tal princípio ao extremo percebendo tanto a velhice de seus pais, no passado, quanto a fase terminal da vida de seus pacientes como um grande sofrimento ao qual ela deve colocar um fim. Talvez possamos pensar em uma personagem que, apesar de assassinar todos seus pacientes, é benevolente ao extremo.
Ao planejar o passeio noturno ao Zoológico a fim de que a Criatura pudesse ter alguma alegria na vida, e a morte lenta dela por envenenamento a Sra. X tem o intuito de acabar com qualquer sofrimento que sua paciente possa ter. A Sra. X, não sabia lidar com a monstruosidade da Criatura.
Como era possível que ainda caminhasse depois de todo o veneno posto pela sra. X em sua bebida? Era uma dose muito superior às ministradas aos pacientes terminais, aos velhinhos do hospital de Manchester, aos seus próprios pais, e mesmo assim não dera resultado. Aquela quantia permitiria zero por cento de erro. E os pacientes anteriores eram velhinhos em condições ainda mais frágeis. A sra. X chegou a considerar toda aquela resistência uma obra de Deus. Era mesmo uma santa. Ela então se lembrou: sabia onde a criatura estava. Não podia ter ido a nenhum outro lugar. As pancadas em sua cabeça deviam tê-la atordoado. Talvez não estivesse conseguindo pensar com coerência. Teria calculado mal as doses que havia diluído nos alimentos? [...] Só acreditava na compaixão, conforme confessou. Na compaixão divina e em sua missão de cumpri-la a contento. O céu era o lugar de Deus, não dos homens (TERRON, 2013, p. 157).
A Sra. X, livrou seus pais do sofrimento, livrou todos seus pacientes do sofrimento, mas não conseguiu faze-lo com a Criatura, sua missão estava fracassada. Mas a assassina benevolente criada por Terron (2013), nos coloca em contato com uma das personagens centrais da narrativa, a Criatura, irmã do Escrivão. Seu fracasso muda o destino tanto da Criatura, sempre rejeitava pela família, em uma eterna viagem, como que desculpa para não a conhecer. Assim com muda o destino da própria família, esta que não a conhecia.
Sarlo (2007, p. 10, grifos da autora) afirma que “el tiempo propio del recuerdo es el presente: es decir, el único apropiado para recordar y también, el tiempo del cual el recuerdo se apodera, haciéndolo propio”. Em analogia ao
ocorrido no romance, percebemos que é o próprio presente, ou seja, o crime no Nocturama, que irá fazer com que o passado seja revisto, seja revisitado pelo Escrivão, pela própria Sra. X, conhecido pela Criatura. Este passado que é presente, que se faz presente através de uma situação cotidiana. A família que se conhece a partir do passado em função do presente.
Percebemos, ao final do texto, que a memória familiar está ancorada no desenvolvimento de toda a narrativa, podemos perceber o texto de Terron (2013) como um característico romance de filiação, no qual os conflitos estão todos encadeados fazendo com que a personagem central, no caso o Escrivão, possa ter acesso às memórias de sua família que nem ele mesmo sabia que existiam. Como afirma Gagnebin (2009, p. 102) “Não se trata de lembrar do passado, de torná-lo presente na memória para permanecer no registro da queixa, da acusação, da recriminação. O filho que recrimina o pai e coloca a si mesmo desde o início numa posição superior”, trata-se da própria compreensão do sujeito enquanto ser humano. O Escrivão não precisará mais julgar os atos e/ ou atitudes do pai, ele agora o/os conhece.
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TERRON, Joca Reiners. A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
VIART, Dominique. Le silence des pères au principe du “récit de filiation”, Études françaises, v. 45, n. 3, p. 95-112, 2009.
O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Meu maestro soberano Foi Antonio Brasileiro.
Chico Buarque, Paratodos
A primeira estrofe da canção Paratodos, de Chico Buarque, 2011, é uma certidão de filiação, uma homenagem à genealogia do poeta: pai, avô, bisavô, tataravô. É também uma certidão de nascimento e atestado de filiação musical, expressa na figura do Maestro Antônio Carlos Jobim. Ao homenagear quatro gerações de ancestrais, o compositor reafirma sua brasilidade, ao utilizar os diferentes gentílicos de várias regiões do Brasil, sintetizados no brasileiro, sobrenome de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o ancestral que designa a genealogia musical do compositor. Ao marcar sua origem, o compositor determina também seu local de fala.
Nas estrofes que seguem, Chico amplia sua ancestralidade musical, construindo uma analogia entre parceiros, músicos e cantores com seus ancestrais familiares. Os versos, homenageiam figuras marcantes da MBP do passado, como Dorival Caymmi,
Jackson do Pandeiro, Ari Barroso, Vinícius de Morais, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Pixingunha, Noel Rosa, Cartola, Orestes Barbosa, João Gilberto e do presente, com a presença de seus contemporâneos: Erasmo, Roberto, Jorge Benjor, Hermeto Pascoal, Edu Lobo, Milton Nascimento, Nara Leão, Gal, Bethania, Rita Lee e Clara Nunes. Através da menção ou da evocação dos mestres do passado e do presente, Paratodos desenha uma grande árvore genealógica da música popular brasileira, na qual os cantores homenageados servem de ajuda, amuleto, remédio para as diferentes mazelas da existência.
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro Bandoleiros, vi hospícios Moças feito passarinho Avoando de edifícios Fume Ary, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho Contra a solidão agreste Luiz Gonzaga é tiro certo Pixinguinha é inconteste Tome Noel, Cartola, Orestes Caetano e João Gilberto
Viva Erasmo, Ben, Roberto Gil e Hermeto, palmas para Todos os instrumentistas Salve Edu, Bituca, Nara Gal, Bethania, Rita, Clara Evoé, jovens a vista
Paratodos
A ancestralidade na obra de Chico Buarque não está apenas na canção que nos serve de epígrafe. A família e as relações familiares estão presentes em inúmeras canções anteriores, na vasta obra musical de Chico Buarque, a par de épocas e estilos. Em Pedro Pedreiro, de 1966, música atribuída ao grupo de canções com viés social, ou de protesto, o personagem do filho ainda não nascido do operário, subalterno social, está destinado a ter no futuro a mesma vida do pai, marcada pelo eterno esperar de algo que que nunca se concretiza. A presença do descendente, marca as diferentes gerações, donas do mesmo
destino imutável, que se resume na espera da festa, da sorte, da morte, do apito de um trem, que pode ser entendido como algo, algum futuro, mesmo que incerto.
Esperando o aumento para o mês que vem Esperando um filho pra esperar também Esperando a festa Esperando a sorte Esperando a morte Esperando o norte Esperando o dia de esperar ninguém Esperando enfim nada mais além Da esperança aflita, bendita, infinita Do apito de um trem
Pedro PedreiroEm outra canção bastante conhecida, Construção, de 1971, ressalta a presença do filho e da mulher, peças chaves na complexa arquitetura poética que constrói a dramaticidade da poesia. Esta canção marca a fase em que o universo poético de Chico Buarque estava voltado para críticas sociais e políticas.
Tanto Construção, quanto em Pedro Pedreiro, o protagonista é operário de construção. Diferente da primeira, em que faltam ações e predomina o imobilismo da espera infinita transmitida através das gerações, em Construção, o protagonista, trabalhador da construção civil, tem o seu cotidiano lírica e tragicamente retratado em uma poesia, cujos versos e rimas se repetem e se transformam de forma diversa, ao longo das estrofes, até sua dramática queda e morte na rua. As ações são muitas, se repetem, se transformam e são o contrário da paralização do esperar infinito. É uma poesia narrativa que conta uma história que se faz através de um continuo de verbos, no passado, cujo significado é constantemente modificado, a cada verso. O personagem, ama, beija, atravessa, ergue, flutua, cai, morre.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado.
AGota d’água, (1975) parceria com Paulo Pontes, faz uma releitura do clássico Medeia, de Eurípedes, desta vez ambientada em um morro carioca. Como no clássico grego, a trama se dá a partir de dramas familiares que culminam na cena trágica da mãe que, em desespero, mata seus filhos e se suicida, rompendo com o que há de mais humano entre as relações humanas, a maternidade e, em seguida, comete suicídio. Como na tragédia grega, o amor e a traição são os elementos que movimentam a trama e as ações.
A trama da peça coloca em conflito as relações da mãe, do marido e dos filhos. Como na Medéia de Eurípedes, a dor da traição é o ingrediente que detona a tragédia quando depois, de traída e trocada por outra mulher, a protagonista, Media/ Joana, assassina seus filhos, envias as crianças à festa de casamento do marido. A canção que empresta nome a obra é um grito desesperado de dor e de pranto.
Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia Olha a voz que me resta Olha a veia que salta Olha a gota que falta Pro desfecho da festa Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não Pode ser a gota d’água
A gota d’águaNa mesma obra, se encontra a canção Flor da Idade, que canta e conta a história de meninas da comunidade onde se passa a narrativa, no limite entre a vida de menina e prestes a se tornarem mulheres, que desabrocham para vida adulta para o amor e para o sexo. Mais uma vez Chico Buarque se debruça sobre histórias familiares e seus desencontros.
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava
Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
A filha que amava Carlos que amava Dora
Que amava toda a quadrilha.
Flor da idade
Inspirada no poema de Carlos Drummond de Andrade, Quadrilha, a canção relaciona a palavra família à quadrilha, ampliando o leque de significados e entendimentos das relações familiares, aproximando palavras que se repetem nas sílabas e na fonética e se distinguem no sentido.
Na música popular, muitas canções de Chico Buarque retratam diferentes imaginários de famílias de distintas genealogias. Tradicionais, patriarcais, bandos, amigos, quadrilhas, bandidos, homossexuais etc. Também no teatro, Chico escreveu obras em que o núcleo familiar, em seus diferentes matizes, são palco da ação e protagonistas. Opera do Malandro (1978), tem como protagonistas uma jovem e seu pai, cafetão, chefe da bandidagem, que deseja manter a filha longe do mundo do crime, controlando e criando uma forte rede de proteção para com a filha que, a despeito de todo o cuidado e contra a vontade do pai, se apaixona por um malandro, desconstruindo a estabilidade da família. Como na canção mencionada anteriormente, família e quadrilha se confundem.
Uma Canção desnaturada, da peça Opera do Malandro, é comovente e expõe a delicadeza e a fragilidade da relação entre pais e filhos. A mãe desesperada chora com perda da filha, que cresceu e ganhou o mundo. O desvelo do amor maternal se transforma em dor e na não aceitação do crescimento da filha.
Por que creceste, curuminha
Assim depressa e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para reviver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
Uma canção desnaturada
Os modelos exemplares ou não das relações familiares na obra musical, teatral e literária de Chico Buarque não se esgotam nos versos e nas obras citada. Com certeza eles merecem uma análise mais atenta, no entanto, neste texto, eles servem de introdução à leitura do O Irmão Alemão, de 2014, quinto romance de Chico Buarque de Holanda, que além da extensa e conhecida obra musical é autor de romances, peças de teatro, novelas curtas e um livro infantil.
O romance, instiga a curiosidade do leitor a partir do título, que se refere a um desconhecido irmão do cantor e compositor Chico Buarque e suposto filho do antropólogo, Sergio Buarque de Holanda, ambas figuras públicas de relevo em diferentes áreas da cultura brasileira. Antes do lançamento do livro, o compositor/ escritor concedeu inúmeras entrevistas, aos principais meios de comunicação, tornando pública a curiosa história vivida por seu pai, quando jovem jornalista, em Berlim nos anos de 1930, que teria tido um filho com uma jovem alemã e, pelas dificuldades inerentes da guerra na Europa, teria retornado ao Brasil sem saber da existência e nem conhecer a criança. A história real, com ingredientes de ficção, está toda documentada através das trocas de cartas entre Sergio Buarque e autoridades alemãs e relatam os percalços da busca do paradeiro da criança, dada pela mãe em adoção, em uma Alemanha em tempos de guerra. As tentativas do pai em descobrir o paradeiro da criança, conhece-la, trazê-la para o Brasil terminam na frustração de nunca terem se conhecido, durante toda a vida.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Lívia ReisA história chegou ao conhecimento de Chico, já adulto, ao saber, através de sua mãe, da existência das cartas, e do desejo de seu pai em reconhecer o filho e dar-lhe a paternidade merecida, o que se tornou impossível, em função das dificuldades provocadas pelo contexto da guerra e pós-guerra na Alemanha. No momento em que a espetacularização da vida íntima de personagens anônimos se espalha de forma instantânea por toda a malha e estratos sociais, sobretudo através das ferramentas de internet, redes sociais, blogs noticiosos e de fofocas, e reality shows de TV, uma narrativa de ficção, escrita por um homem público, sobre a vida intima de seu pai, outro homem público, provocaram um grande interesse por parte da crítica e do público voyeur, ávido por histórias de vidas alheias de personagens reais.
Depois de publicada, a obra rapidamente obteve sucesso de público. Em grande parte da crítica à época do lançamento, o questionamento central foi em torno da verdade e da mentira na vida real dos personagens do romance, aparentemente, tão conhecidos do público leitor.
Neste ensaio esta não será nossa preocupação. Vamos procurar entender a arquitetura e as filiações narrativas e poéticas encontradas no romance. Naturalmente, poderemos vislumbrar muitos momentos em que a narrativa ficcional se encontra com fatos públicos relacionados à família Buarque de Holanda.
O Irmão Alemão é uma autobiografia de ficção. Gênero narrativo clássico, que a partir de Doubrobrosky 1977, passou a ser nomeado como autoficção.
O narrador Ciccio, conta sua história desde a juventude, privilegiando as passagens de sua vida familiar. O pai intelectual e bibliófilo, de poucas palavras, sempre trancado em sua biblioteca, local privilegiado de onde enxerga o mundo e os acontecimentos, filtrados pela proteção de seus livros. A mãe, típica dona de casa italiana, amorosa, exagerada, dedicada aos afazeres domésticos, especialmente à cozinha, ao marido e aos filhos. Um irmão, bonito, mulherengo, menos inteligente e motivo de inveja por parte do narrador. Ao longo da história, conhecemos a vida de um jovem de classe média, estudante de letras que se torna professor de línguas, em São Paulo, nos anos 60. O protagonista/ narrador é um personagem sem grandes atributos, além da fértil imaginação.
Utilizando uma estratégia literária clássica, que utiliza cartas sem autoria, manuscritos antigos e apócrifos, em um dado momento o narrador encontra uma carta envelhecida, dentro de um livro, em uma estante, entre as inúmeras que cobriam todas as paredes de sua casa. Através da carta encontrada, se descortina história do outro filho de seu pai, nascido na sua juventude, nos anos em que viveu em Berlim, trabalhando como jornalista. A partir do descobrimento da carta, a vida de Ciccio e o romance tomam o rumo
da fantasia alucinante por conta das fabulações do narrador /personagem, em busca da verdadeira história de seu irmão alemão. A verdade, a mentira e a imaginação especulativa sobre a existência do irmão, deixam o protagonista obcecado. Ele pensa encontrar o irmão por todos os lugares por onde anda em uma São Paulo pouco provável. Cria histórias mirabolantes, fruto de sua imaginação fantasiosa. Inventa hipóteses, persegue evidencias que apenas acontecem no seu delírio.
A linguagem é enxuta e as palavras são exatas, em uma prosa fluente, sem divisão em parágrafos, em cada um dos 17 capítulos em que a obra está organizada. O tempo verbal oscila entre o passado e o presente, em idas e vindas de uma narrativa não linear, que transita entre o passado e o futuro do pretérito quando Ciccio, em seus delírios em busca de pistas do irmão, supõe ter encontrado em São Paulo a estrangeira Anne, suposta mãe de seu irmão alemão.
Uso o telefone ali mesmo, no balcão, que na hora do almoço está apinhado.... em meio aquela balburdia, não tenho dúvida de quem é a dona da voz feminina que me atende:
- Alu
- Anne?
....
- Madame Beuregard?
- Oui?
Com sua reticencia, Anne por certo tentava reconhecer a voz que a chamava de modo tão informal, pois um desconhecido não a trataria assim de saída pelo primeiro nome. E penso que ela perdoaria o arroubo, se pelo timbre identificasse seu interlocutor como o filho de Sergio Hollander. Quem sabe até julgou num primeiro momento ouvir o próprio Sergio a chamar por ela, ilusão desfeita assim que me corrigi com um tratamento protocolar e boa prosódia francesa.
Mas se madame Beuregard soubesse de fato quem falava, também seria compreensível que se sentisse ultrajada com o assédio telefônico à casa dela, que há vinte sete anos no país já teria procurado meu pai, se assim desejasse (BUARQUE, 2014, p. 78-79).
Os personagens não apresentam uma construção complexa, eles são simples, quase estereotipados, como a mãe italiana amorosa e boa cozinheira, que em situações de pressão emocional se esquece do português e volta a falar somente em italiano. O pai ausente, sisudo, de poucas palavras, sobretudo com o filho Ciccio, pois prefere dividir sua intimidade com o outro filho, gerando ciúmes e competição entre os rapazes.
O amigo do protagonista, que na adolescência roubava carros para se divertir, torna-se guerrilheiro urbano e desaparece em um país em plena da ditadura. Este personagem abre espaço para que a obra aborde o contexto histórico da ditadura, da repressão, da luta armada e da violência das forças policiais dos anos 60. As transformações no contexto histórico e político do país na década da década surgem de forma ocasional, colaborando na construção do tempo histórico da narrativa.
Aparentemente, o contexto político dos anos de chumbo não tem maior relevância no romance, servindo apenas para contextualizar o momento. O tempo histórico cobra sua presença na cena da morte de um jovem militante, metralhado na rua do centro de São Paulo, assistida e narrada pelo protagonista, que se encontrava, ocasionalmente, no mesmo lugar.
Outro elemento que ajuda a compor o contexto histórico da ditadura é a trajetória da jovem argentina, militante, que passa pela casa dos Hollader, e depois desaparece, na vida e da história. Esses episódios contribuem para a construção do momento histórico e funcionam como denúncia, mesmo que não façam parte do eixo central da narrativa, cujo foco é a procura pelo irmão desconhecido.
A verdade e a ficção presentes no Irmão alemão, foram foco de debates da crítica, sobretudo em função das figuras públicas nele envolvidos, Chico e Sergio Buarque de Holanda, e da aparente intimidade de personagens públicos exposta na obra. Nas autobiografias clássicas desde Santo Agostinho às mais recentes, os autores têm a intenção de contar a exemplaridade de suas vidas, quase sempre importantes, repletas de grandes feitos e dignas de serem contadas e imitadas. Também as narrativas testemunhos se inscrevem neste círculo que propõe contar a verdade para esclarecer histórias apagadas, rasuradas ou esquecidas, ou simplesmente para denunciar a barbárie de determinados momentos históricos. Sabemos que esta verdade única e essencial não existe e é impossível de ser capturada na narração, pois estas, pressupõem escolhas. Não existe o conceito de narrar totalizante, no que pese a cooperação do leitor, como propõe Lejeune no Pacto autobiográfico.
Neste sentido a definição de Dubrovski veio a atender essa falta de definição de um gênero que na verdade sempre existiu, como define Eurídice Figueiredo, a partir de Dubrovski.
A maneira de construir e encarar as categorias literárias de autobiografia e ficção sofreu grandes transformações nos últimos 30 anos e, hoje as fronteiras entre elas se desvaneceram. A autoficção é um gênero que embaralha as categorias autobiografia e ficção de maneira paradoxal ao juntar, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio,
deveriam se excluir. Apesar de todos saberem que o escritor sempre se inspirou (também) em sua própria vida, a ficção foi o caminho trilhado pelo romance ocidental para se firmar ao longo da História. Como o romance autobiográfico foi , tradicionalmente, considerado um filho bastardo, um híbrido, que quase mereceu desprezo da crítica, a autoficção acabou por ocupar este lugar, embora com formatos inovadores (FIGUEIREDO, 2010, p. 91).
Ao fim do romance, o narrador, já homem maduro, viaja à uma Berlim fantasiosa, repleta de histórias inventadas onde, no futuro do pretérito refaz a viagem de seu pai, 80 anos antes. Percorre as ruas, visita bares e os lugares de uma cidade que não existe mais, perseguindo os possíveis passos do pai, na busca pelo irmão inventado. Adivinhando momentos e passagens inexistentes até o final, também improvável, escutar a voz do irmão, encontrar com pessoas que o conheceram e afinal, ver um filme em que ele atuou como ator. No final a narrativa se torna mais ágil e a realidade da ficção e a realidade da história real se misturam, tornando difícil o trabalho do leitor em identificar a ficção e a realidade.
Não fui à bibliotecas, aos museus, à Opera, não aluguei uma bicicleta nem passeei pelos parques, apesar do sol primaveril. Andei para cima e para baixo de taxi, sobretudo na Kufustendamm, ou na Kudaam, para os belineses e decerto para mei pai, que na sua juventude não deixaria de frequentar cafés, teatros e dancings da avenida. Estive ali ao lado da Fenestrasse 22, endereço de Anne Ernest e de Heinz Bogard, hoje um hotel chamado Augusta, e almocei na casa vizinha de número 23, o café literário onde Anne pousou barriguda ao lado de meu pai. Tentei adivinharem qual pensão meu pai teria se hospedado, entre tantas nos arredores (BUARQUE, 2014, p. 216).
No desfecho, em um aparente abandono da ficção, o livro destaca documento trocados entre Sergio Buarque de Hollanda e as autoridades alemãs, fotos do irmão e outras provas materiais da época que, ao serem incluídas no livro, testemunham a história real que a ficção transformou. Apontam para os fatos que ocorreram com aquele irmão, já morto, portanto, inacessível. No epílogo, o autor presenteia seus leitores com a história de Sergio Gunther, o irmão alemão, e uma nota explicativa sobre os passos da pesquisa desenvolvida com a ajuda de historiadores, que serviram de base à ficção do romance.
Sergio Gunther, filho de Sergio Buarque de Hollanda e Anne Ernst ou Ane Magrit Ernst, ou Anemarie Ernst, nasceu em Berlim, em 21 de dezembro de 1930. Em 1931 ou 1932, foi entregue pela mãe à Secretaria da infância e da Juventude do distrito de Tiergarten, Berlim. Em 193?, Arthur Erich
Willy Gunther e sua mulher, Pauline Anna, adotaram o menino Sergio Ernst, que seria criado com o nome de Horst Gunther. Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber da identidade de seus pais naturais, optando por retornar o prenome Sergio. Entrou para o exército da RDA em 194? E no fim dos anos 50 foi admitido na televisão do Estado, onde desenvolveu múltiplas atividades. Gravou um número incerto de discos, hoje fora de circulação. Morreu de câncer em setembro de 1981 (BUARQUE, 2004, p. 227).
Para fechar o mistério em torno do irmão alemão, as notas explicativas esclarecem a história real vivida pelo autor Chico Buarque e fornece os créditos da pesquisa realizada em Berlim, por dois historiadores, a partir das cartas guardadas por sua mãe, durante toda a vida. Também conta da viagem à Berlim, junto à sua filha e do encontro emocionado com a família de Sergio Gunther. Ao terminar a leitura, estamos seguros do status de ficção que acabamos de ler, as notas explicativas dissipam todas as dúvidas.
Ao final do romance a narrativa, é invadida pelos depoimentos do narrador Chico e não mais Ciccio e as histórias se encontram. As notas e os documentos, tanto servem à história e segredos da família Buarque Hollanda quanto dos Hollanders da ficção.
BUARQUE, Chico. Construção. Albúm Construção, 1971.
BUARQUE, Chico. Flor da idade. Álbum Gota d’agua, 1977.
BUARQUE, Chico. Gota d’agua. Álbum Gota d’agua, 1977.
BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
BUARQUE, Chico. Paratodos. Álbum Paratodos, 1993.
BUARQUE, Chico. Pedro Pedreiro. Álbum: Chico Buarque de Hollanda, 1965.
BUARQUE, Chico. Uma canção desnaturada, Álbum: Opera do malandro, 1979.
FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura. Rio de Janeiro: 7letras, 2010.
REIS, Livia. Conversas ao Sul. Niterói: EdUFF, 2009.
Obras da literatura contemporânea que indagam a respeito de legados familiares interrogam por igual as heranças políticas, históricas ou culturais. Não é incomum que memórias pessoais inseridas em tramas familiares configurem o ponto de partida para repensar as experiências de uma geração que viveu os acontecimentos políticos e históricos de uma época. Nessas obras, o subjetivo vincula-se de maneira estreita à História ou à Política. A memória, o testemunho e a família estabelecem laços solidários e inextricáveis nos relatos. Narrativas geradas no núcleo restringido do familiar ou das vivências que se ligam ao biográfico ou íntimo, acabam entremeando na trama fortes referências ao contexto histórico-social. Muitas narrativas de filiação da literatura e do cinema argentinos das últimas décadas encontram-se vinculadas à memória e ao trauma do desaparecimento de pessoas durante a repressão ilegal praticada como programa de extermínio do inimigo pela ditadura militar que governou o país entre 1976
e 1983. Os filmes M (2007) e Tierra de los padres (2011) e os textos em prosa e verso em restos de restos (2012), de Nicolás Prividera; o documentário Los rubios (2003), da cineasta Albertina Carri; o filme do mesmo gênero, Papá Iván (2004), de María Inés Roqué; ¿Quién te creés que sos? (2012), o livro catártico de Ángela Urondo, filha do poeta Paco Urondo; e Diario de una princesa montonera (2012), de Mariana Eva Pérez, têm em comum o fato de serem criações de filhos de pais desaparecidos ou mortos durante a repressão. A perspectiva do órfão, os discursos da memória e, em alguns casos, da memória vicária, também são reconhecíveis na maioria das obras. La casa de los conejos (2010), de Laura Alcoba, narra a experiência de uma menina ao lado da mãe militante de esquerda na Argentina da década de setenta, a partir de seu olhar infantil. Experiência similar transparece em Demasiados héroes (2009), da escritora Laura Restrepo. No romance, usando uma distância irônica, plena de humor, um filho julga a sua mãe engajada na luta política. As obras mencionadas coincidem na apresentação de visões pós-épicas e pós-utópicas confrontadas às de seus pais. Os filhos, porém, não cessam de dialogar, numa conversa sem fim, com seus progenitores. Na realidade, empreende-se um confronto com fantasmas na tentativa de entender o passado e o presente. Sem dúvida, estamos diante de uma meditação sobre as diferenças de gerações, de épocas, de projetos e de experiências.
Ainda poderíamos salientar a presença de traços autobiográficos e a mudança da figura tradicional do crítico que abandona a objetividade do texto de crítica literária e cultural. Produz-se a emergência da subjetividade daquele que escreve, muitas vezes acompanhada da presença de circunstâncias que envolveram a elaboração dos textos e acrescentando revelações de índole pessoal, como é possível notar nos ensaios provocadores e imaginativos de Daniel Link. Os escritores críticos, especialmente, elaboraram relatos de filiação literária para situar e justificar a sua própria obra. A obra do cineasta Andrés Di Tella, com o documentário Fotografías (2007), que recorre às memórias familiares, participaria dessa vertente narrativa à qual estamos fazendo referência. Não pertenceriam essas escritas e produções fílmicas também ao “espaço biográfico” descrito por Leonor Arfuch em relação às subjetividades contemporâneas, em El espacio biográfico (2007) e nos estudos incluídos em Crítica cultural entre política y poética (2008)?
Simultaneamente à aparição dos relatos vinculados à violência política da década de setenta, foram publicadas, sempre nos últimos anos, narrações que indagam as questões de filiação em situações diferentes, sem vínculo direto com a ditadura. Para nos limitar ao corpus mencionado por Alberto Giordano em El giro autobiográfico de la literatura argentina actual (2008),
basta citar El derrumbe (2007), de Daniel Guebel, Historia del llanto (2007), de Alan Pauls, e Mar ía Domecq (2007), de Juan Forn. Mais próximos das memórias de pura invenção e de episódios familiares imaginados estariam alguns textos autoficcionais de Daniel Link. Nesse contexto, a consagrada escritora e jornalista María Moreno (1947) incursionou em relatos autobiográficos nos quais as figuras do pai e da mãe parecem construídas no limite da ficção e da realidade, aderindo à estética do excesso, da deformação e do exagero. Black out (2017) é, de certo modo, a narrativa do romance familiar de Moreno, que examina igualmente a educação sentimental e intelectual da autora e da sua geração no âmbito das transformações culturais ocorridas nos últimos anos da década de sessenta em Buenos Aires. A associação com os acontecimentos do maio de 68 francês e de outras revoltas no mundo contra o conservadorismo das instituições, questionadas por setores juvenis, parece inevitável. Moreno escreve em Black out sobre a sua mãe, química de profissão: “bebia vinho barato e refrigerante com muita afetação, levantando o dedo. Depois da morte da minha avó, de um sofrimento que a prostrou durante meses, aceitou por única vez um convite de um congresso internacional de química” (MORENO, 2017, p. 107)1. A autora de Black out confessa sobre as suas andanças pelas noites de Buenos Aires como jornalista jovem, junto a mestres experientes e colegas da sua geração: “Comecei a beber para conquistar um lugar ao lado dos homens [...]. Estava convencida de que, antes do que ganhar à universidade, as mulheres deviam ganhar as tabernas” (MORENO, 2017, p. 98) 2 . Hiperbólicas figuras familiares, experiências compartilhadas com escritores e jornalistas na marginalidade da noite e da cultura e história da educação sentimental traçam um panorama de época em Black out. No presente estudo, queremos pensar o sentido que teria, no contexto do auge dos discursos autobiográficos e autoficcionais, na literatura e no cinema das últimas décadas, a proposta apresentada nas 383 páginas de Oración (carta a Vicki y otras elegías políticas), publicado em 2018, apenas um ano mais tarde do que Black out. Não há dúvida de que entre as crônicas ou ensaios de Subrayados (2013), Black out e Oración se dá uma continuidade de reflexões sobre o presente e o passado recente. María Moreno, uma das escritoras mais reconhecidas na Argentina, modelo de uma certa crônica
1 As traduções das citações são sempre da minha autoria: “[...] bebía vino barato y gaseosa con mucho remilgo, levantando el dedo. Luego de la muerte de mi abuela, de un sufrimiento que la postró durante meses, aceptó por única vez una invitación a un congreso internacional de química”.
2 “Comencé a beber para ganarme un lugar entre los hombres [...] Estaba convencida de que, más que ganar la universidad, las mujeres debían ganar las tabernas”.
que se escreve na América Latina na atualidade, sem abandonar totalmente a faceta autobiográfica e da própria memória, passa a observar e escrever em Oración sobre a vida dos outros, sobre a memória dos outros, que é também a memória da sua geração.
Defendemos e tentaremos demonstrar que María Moreno está nos propondo, com essa obra, o desenvolvimento de dois relatos de filiação simultâneos e interconectados. Por um lado, sabemos que o livro de 2018 está centrado num episódio conhecido e amplamente divulgado pela imprensa da época: o confronto com armas de fogo que teve lugar entre as forças de repressão contra militantes reunidos numa casa de Buenos Aires, no dia 29 de setembro de 1976; quer dizer, no primeiro ano da ditadura. Ali, morreram jovens que estavam nessa casa, entre eles Vicki Walsh, filha do escritor Rodolfo Walsh. Outros foram presos e torturados. A partir desse episódio, María Moreno investiga o que aconteceu nesse dia, na casa invadida, colocando o foco nos questionamentos de Patricia, a outra filha de Walsh, à versão da morte de Vicki divulgada nas famosas cartas do escritor – às quais faremos referência um pouco mais abaixo.
Para isso, Moreno mergulha no “romance familiar dos Walsh” e na singular e intensa relação entre Rodolfo Wash e suas duas filhas. Em Oración, María Moreno recria esse relato de filiação paradigmático. A cronista objetiva, interessada na verdade dos fatos, narrar o caso com os instrumentos clássicos da pesquisa de campo e, para isso, vai em busca das testemunhas.
Nesse sentido, Oración desenvolve também um outro relato de filiação, que involucra pessoalmente ou autobiograficamente a cronista María Moreno. Referimo-nos ao relato da sua afiliação literária que a leva a mergulhar conscientemente nos modos de escrita de Rodolfo Walsh. Como falamos em “filiação”, parece-nos necessário esclarecer que ela é, segundo Marc Augé, uma das quatro dimensões privilegiadas da etnologia, junto à aliança, à residência e à geração. Augé observa que “Tradicionalmente, a individualidade afirmase no cruzamento dos quatro parâmetros antropológicos que são a filiação, a aliança, a residência e a geração” (AUGÉ, 2014, p. 69) 3 . Nos estudos literários, no entanto, a noção permitiu, em primeiro lugar, aprofundar em aspectos relacionados às intrigas e às personagens da ficção. Considerou, por exemplo, o modo como muitos romances, ao longo da história da literatura, incluíam nas suas tramas conflitivas relações entre figuras humanas vinculadas pelos laços de sangue, focando, em especial, as relações de pais e filhos.
3 “Tradicionalmente, la individualidad se afirma en el cruce de los cuatros parámetros antropológicos que son la filiación, la alianza, la residencia y la generación”.
Por outra parte, a filiação foi a metáfora para pensar a maneira como se conformam as tradições literárias. Como são descritas as relações entre gerações, entre autores? Para explicar a centralidade de temas de filiação na atualidade, Dominique Viart ponderou que “Longe de colocar a ruptura como fundamento da estética, uma grande parte da literatura contemporânea [...] expõe, com certa agudeza, a questão da herança” (VIART, 1999, p. 74) 4 para chegar à conclusão de que o escritor da atualidade dialoga com essa tradição. A clássica distinção entre filiação (da ordem do biológico) e afiliação (da ordem da cultura) foi defendida por Edward Said em The world, the text and the critic. Sublinha o crítico que “O esquema filiativo pertence aos domínios da natureza e da ‘vida’, enquanto que a afiliação pertence exclusivamente à cultura e à sociedade” (SAID, 2004, p. 34) 5 . Como os escritores inventam uma tradição, como eles processam o que leram para compor a obra própria e à qual tradição preferem se “afiliar” são as perguntas relacionadas com esse segundo uso da noção de filiação nos estudos literários.
Dados biográficos de María Moreno que aparecem em Oración integramse a esse relato de busca de uma tradição para situar o seu labor de cronista. A pergunta a respeito da razão pela qual não se comprometeu com a militância política surge da sua reflexão sobre a história que está contando, a qual mostra, no extremo compromisso dos jovens cercados nessa casa de Buenos Aires, o mesmo grau de entrega que levou à morte intelectuais como Rodolfo Walsh e Paco Urondo. Sobre isso, a autora escreve: “Muitas vezes perguntei para mim mesma por que não fiz parte deles” (MORENO, 2018, p. 143) 6 . Como em Black out, também em Oración a autora se refere à aprendizagem na boemia intelectual noturna, o impacto da Revolução Cubana, a influência de leituras existencialistas, marxistas e freudianas. Essa perspectiva autobiográfica inclui a sua própria situação como cronista que reconhece em Walsh um mestre e um modelo a seguir para a crônica, um dos gêneros mais dinâmicos da literatura contemporânea.
Como relato de filiação – no primeiro sentido que tentamos sintetizar –, o texto híbrido de Moreno centra-se no “romance familiar dos Walsh”, e incorpora também, por associação de conflitos e de experiências similares, a narração de vidas de filhos de militantes desaparecidos ou mortos. Sintetizando a perspectiva correta para narrar a política e a História sem excluir os aspectos da intimidade
4 “Lejos de poner la ruptura como fundamento de la estética, una gran parte de la literatura contemporánea [...] se plantea, con cierta agudeza, la cuestión de la herencia”.
5 “El esquema filiativo pertenece a los dominios de la naturaleza y de la “vida”, mientras que la afiliación pertenece exclusivamente a la cultura y la sociedad”.
6 “Muchas veces me pregunté por qué no formé parte de ellos”.
e dos laços de sangue, María Moreno afirma: “tem que dar um jeito para viver com um pouco de pai, o desaparecido, que não é igual ao pai ausente da psicologia” (MORENO, 2018, p. 225)7 . Os últimos momentos da vida de Vicki, o conflito de versões que provoca a discussão entre Rodolfo Walsh e a sua filha Patricia, por causa da não concordância desta última com os comentários das cartas do pai, traçam uma história familiar. Oración acrescenta histórias de outras vidas marcadas pela violência da época e experiências singulares em que a filiação se entrelaça com a história e a política. Estamos diante de um modo de praticar a memória vivida, já que, como afirma Elizabeth Jelin, “a memória não é o passado. É um presente que traz o passado e geralmente em função de ilusões futuras” (JELIN, 2021, s/p) 8 .
Devemos esclarecer que, no desenvolvimento de dois relatos de filiação em Oración, as linhas narrativas se confundem, separam-se e voltam a se encontrar, e que a memória é convocada permanentemente. Por um lado, tematiza-se, como já dissemos, o “romance familiar dos Walsh”, especialmente a relação de Rodolfo com as suas filhas Vicki e Patricia. Como observamos, muitas outras histórias de pais e filhos aderem a esse núcleo central integrado pela família Walsh. O outro relato de filiação é de índole literária. Sua protagonista é a escritora e jornalista María Moreno, que busca uma afiliação na tradição literária da Argentina moderna para explicar as suas próprias escolhas. Importam, nesse segundo relato, as tradições literárias, o cânone, a revisão do cânone e a pergunta de quem foi o escritor Rodolfo Walsh para essa porção importante do universo literário que se escreve nas fronteiras da literatura e do jornalismo, do real e do ficcional, da política e da literatura, do íntimo e do público. Como, em última instância, dar continuidade ao legado de Walsh, e o que fazer com essa herança seriam desafios para os escritores que vieram depois.
Diante de uma narrativa como Oración (2018), impõem-se perguntas que resultariam igualmente válidas para a leitura de uma boa parte das obras escritas na nossa época. Um dos interrogantes diz a respeito do modo de ler Oración. Qual seria o pacto de leitura mais adequado para essa obra? Descartamos logicamente o pacto ficcional, mas não temos a certeza de que o pacto de verdade seja totalmente pertinente. Seria melhor pensar numa espécie de pacto “ambíguo” para usar a fórmula de Manuel Alberca? Ou ainda encontraríamos válida a expressão “representação ambígua” de José Martínez Rubio? O crítico define que “o pacto ambíguo fixa o horizonte de expectativas
7 “hay que arreglárselas para vivir con un poco de padre, el desaparecido, que no es lo mismo que el padre ausente de la psicología”.
8 “la memoria no es el pasado. Es un presente que trae el pasado y generalmente en función de ilusiones futuras”.
do leitor na referencialidade, nos fatos, mas não atenta contra esse horizonte de expectativas ao incluir, na narração, procedimentos da ficção” (MARTÍNEZ RUBIO, 2015, p. 134) 9 . No relato de Patricia, registrado em Oración, manifestase também a herança de Rodolfo Walsh no privilégio concedido às vozes das pessoas comuns. Afirma Patricia: “eu me identifico com o meu próprio pai: quando ele procura quem vai dar o testemunho nos grandes relatos, escolhe as pessoas ameaçadas de insignificância” (MORENO, 2018, p. 301)10 . María Moreno e Patricia Walsh têm consciência de estar replicando um procedimento de Rodolfo Walsh.
Em Oración, há uma investigação, escutamos as vozes das testemunhas reais, percebemos a presença discreta de uma autora cujo trabalho parece se concentrar silenciosamente na organização dos múltiplos discursos e das muitas vozes convocadas. Ao mesmo tempo, nota-se uma liberdade expressiva que não admitiríamos totalmente numa pesquisa com protocolos objetivos de controle da não ficção. Antes de saber em que consiste a história que será narrada, o leitor sabe, por um esclarecimento inicial, que a intenção da autora era realizar uma pesquisa financiada com uma bolsa Guggenheim sobre a moral sexual dos grupos revolucionários da década de setenta na Argentina. Num gesto de desvio típico de María Moreno, lemos a seguir: “Não escrevi esse livro: escrevi este” (MORENO, 2018, p. 9)11. Essa informação está ali como instrução de leitura: Oración é resultado de um desvio dos projetos da autora. As contradições que María Moreno não quer ocultar da figura de Walsh transparecem já na reunião problemática do título e subtítulo. Enquanto que com o primeiro (Oración) a autora remete o leitor ao discurso religioso; com o subtítulo (Carta a Vicki y otras elegías políticas), sugere-se um ingresso duro no real da política. Enquanto a “elegia” remonta à tradição clássica e pagã, a “oração” pertence à esfera da religião ou do sagrado. Walsh “reza” diante da notícia da morte da sua filha, retomando uma prática comum da sua infância vivida em colégios religiosos e na casa familiar de pais irlandeses católicos. A “Carta a Vicki”, do subtítulo de Oración, alude a uma das três famosas cartas abertas do escritor Rodolfo Walsh, enviadas nos anos imediatamente anteriores ao seu sequestro e morte durante a ditadura militar que se iniciou na Argentina em 1976. Carta a Vicki, dirigida à sua filha já morta em confronto militar com o exército, datada em 1 de outubro de 1976, e Carta a mis amigos, do dia
9 “el pacto ambiguo fija el horizonte de expectativas del lector en la referencialidad, en los hechos, pero no atenta contra ese horizonte de expectativas al incluir en la narración procedimientos de ficción”.
10 “yo me identifico con mi propio padre: cuando él busca quién va a dar testimonio en los grandes relatos, elige a las personas que están amenazadas de insignificancia”.
11 “No escribí ese libro: escribí este”.
29 de dezembro de 1976, figuram reproduzidas sem alterações nas primeiras páginas de Oración. O resto do livro de Moreno propicia o diálogo com essas cartas de Walsh tão questionadas pela sua filha Patricia. A última das famosas cartas, ausente em Oración, de 24 de março de 1977, o seu ato político final, conhece-se como a Carta abierta a la junta militar. Transcorrido um ano do golpe militar, ela esteve destinada à denúncia da repressão ilegal e da política econômica imposta pela ditadura.
Escolhendo a carta aberta, um gênero essencialmente político e polêmico, pensado para um destinatário impreciso e que se deseja o mais numeroso possível, uma vez que busca provocar um impacto, Walsh, autor de escrita sofisticada, usa a palavra ao serviço da ação política. Poderíamos afirmar que culmina, nas cartas mencionadas, uma das vertentes da literatura de Walsh tão lucidamente identificadas por Ricardo Piglia. Em Rodolfo Walsh y el lugar de la verdade, Piglia reconhece que, para o escritor, por um lado, “a ficção é a arte da elipse, trabalha com a alusão e o não dito (...)”12 ; por outro lado, “está o uso das formas autobiográficas do testemunho verdadeiro, do panfleto e da diatribe (…)” (PIGLIA, 1994, p. 14)13 . Contudo, essas duas práticas que atravessam a literatura de Walsh têm em comum “a investigação como um dos modos básicos de dar forma ao material narrativo. O deciframento, a busca da verdade, o trabalho com o segredo, o rigor da reconstrução: os textos armamse sobre um enigma, um elemento desconhecido que é a chave da história que é narrada” (PIGLIA, 1994, p. 14)14 . O procedimento de pesquisa é utilizado tanto em contos nos quais o silêncio e as elipses constituem o modo de contar (“Fotos” e “Esa mujer”) quanto nas narrativas de não ficção em que as intrigas correspondem ao relato mais clássico, como são os casos de Operación masacre (1957), Caso Satanowsky (1958) e ¿Quién mato a Rosendo? (1969).
Um outro motivo de desconcerto para quem se dispõe a ler Oración provém do hibridismo dos gêneros convocados e manipulados ao longo do texto. Essa conhecida característica das escritas da contemporaneidade, que consiste em preferir e privilegiar a mistura e o heterogêneo, leva-nos a perguntar qual seria o sentido dessa escolha e quais seriam os gêneros que Oración utiliza para a construção híbrida e caótica. Em princípio, é evidente que a mistura não ajuda a propor uma ordem tranquilizadora nem uma interpretação precisa sobre os acontecimentos referenciados; pelo contrário,
12 “la ficción es el arte de la elipsis, trabaja con la alusión y lo no dicho (…)”.
13 “está el manejo de las formas autobiográficas del testimonio verdadero, del panfleto y la diatriba (…)”.
14 “la investigación como uno de los modos básicos de darle forma al material narrativo. El desciframiento, la búsqueda de la verdad, el trabajo con el secreto, el rigor de la reconstrucción: los textos se arman sobre un enigma, un elemento desconocido que es la clave de la historia que se narra”.
o efeito do uso de vários gêneros e o papel quase ausente de uma figura de narrador que organize as vozes e os discursos têm como efeito a instalação do caos. A reiteração de idênticas falas, em vários momentos do livro, reforça o caos e dá a sensação de que a autora não domina totalmente as vozes que falam no seu livro. Poderíamos encontrar uma forma de “resistência” que evitasse os perigos do discurso exemplificador, didático, heroico? O leitor é obrigado a voltar às páginas anteriores para comprovar, surpreendido, que se trata, efetivamente, de uma repetição. Atua em Oración a convicção de que não existe a síntese de nada e de que a ordem, a solução, o final, não estão no programa intencional da obra nem nos acontecimentos narrados no livro. A sucessão de versões diferentes sobre os mesmos fatos, a inclusão de documentos políticos e de comentários de jornais se alternam com momentos de verdadeiras crônicas e textos ensaísticos sobre o pensamento de uma época, analisada a partir do presente. O centro da narrativa seria o que se denominou o romance familiar e as histórias de filiação, em que aspectos íntimos e da ordem da subjetividade fundem-se com a política de modo inevitável.
Na crítica argentina, Walsh tem o estranho poder de convocar comparações com outros escritores. Martín Kohan sugeriu uma aproximação e contraste com Juan José Saer no texto Saer, Walsh: una discusión política en la literatura (1994). Ana María Amar Sánchez prefere o par Walsh/Cortázar. O próprio Kohan sugeriu, a partir do modo de trabalhar o problema da verdade na narrativa, uma leitura conjunta de Borges e Walsh, autores situados nos antípodas do pensamento político, situação contrastante com as coincidências que se revelam quando focamos estritamente o plano literário das obras: cultivo dos gêneros policial, detetivesco e fantástico, aderência às práticas da literatura modernista.
De todas as relações já advertidas pela crítica, interessa-nos, porém, o par Walsh/Puig, proposto por Moreno. Trata-se sempre de identificar filiações e de inventar afiliações, para tomar a conhecida diferenciação de Edward Said. Sabemos da importância que reveste para os estudos literários o problema da construção do cânone, constantemente reformulado no trabalho incessante da leitura das tradições e das identificações que possibilitam as afiliações.
Parece-nos conveniente trazer para a presente análise do relato da filiação literária em Oración o ensaio da autora, incluído no livro Subrayados. Hasta que la muerte nos separe (2013), intitulado “Puig con Walsh ”. Moreno observa
que durante as décadas de sessenta e setenta produziu-se o reinado da voz no gênero “Histórias de vida”. Os exemplos são os já consagrados Biografía de un cimarrón, do cubano Miguel Barnet, e Los hijos de Sánchez, de Oscar Lewis. Apelando para um jogo de palavras, María Moreno escreve que Walsh e Puig foram aqueles que “escribiendo daban que hablar y hacían hablar para después escribir” (MORENO, 2013, p. 272). Nota a escritora que poucos repararam na importância daqueles antigos gravadores da época que auxiliavam a perpetuar as vozes registradas. Longe de associar essas possibilidades tecnológicas da época ao verossímil realista, a ensaísta conclui que os dois escritores usaram o gravador “antes do que como garantia de uma fidelidade à testemunha ou ao referente, como um robô ficcionalizador recarregável e de infinitas possibilidades” (MORENO, 2013, p. 272)15 . Moreno teve a agudeza de perceber uma evolução nas escritas de não ficção de Walsh. Nos seus famosos livros de denúncia, o escritor usou o gravador “com especial atenção aos fatos que incriminam” (MORENO, 2013, p. 273)16 . Em textos posteriores, ao contrário, Walsh “já registra matizes de estilos narrativos e detalhes autobiográficos das testemunhas que têm a gratuidade da ficção” (MORENO, 2013, p. 274)17 .
O ensaio dá como exemplo o registro das vozes ouvidas num leprosário, de momentos que se aproximam da ficção e de autobiografias dos doentes internados. Segundo Moreno, a morte de Walsh interrompe uma experiência que poderia ter levado o escritor a um uso subversivo do gravador. Há indícios da passagem do “cronista informante” ao “cronista redator e editor”. Oración incorpora a teoria dessa interessante mudança de Walsh. Para esse cronista dos últimos anos, não se tratava da apropriação da voz dos que não eram ouvidos; não se tratava de falar em nome do outro. Ceder o gravador se fazia necessário. Moreno lembra da afirmação de Walsh, em entrevista concedida a Ricardo Piglia: “na montagem, na compaginação e na seleção no trabalho de investigação se abrem imensas possibilidades artísticas” (MORENO, 2013, p. 275)18 . Esses são os recursos de Oración e, por isso, resulta lícito afirmar que a proposta de Moreno consiste em chamar a atenção para procedimentos de Walsh que ela mesma utiliza na sua escrita.
Moreno considera que “É estranho que, num certo sentido, Puig tenha realizado o projeto de Walsh, embora se detivesse no momento de passar o
15 “menos como garantía de una fidelidad al testigo o al referente que como un robot ficcionalizador recargable y de infinitas posibilidades”.
16 “con especial atención a los hechos incriminadores”.
17 “ya registra matices de estilos narrativos y detalles autobiográficos de los testigos que tienen la gratuidad de la ficción”.
18 “en el montaje, la compaginación y la selección en el trabajo de investigación se abren inmensas posibilidades artísticas”.
gravador, no sentido de xaquear a autoria especializada” (MORENO, 2013, p. 275)19 . O exemplo de Moreno são as gravações de Puig com o pedreiro cuja voz escutamos em Sangre de amor correspondido. Após ouvir as fitas das gravações usadas para a escrita desse romance, que María Moreno consegue por empréstimo de Carlos, o irmão de Puig, a escritora chega à conclusão de que Puig cumpria rigorosamente o método de Walsh. Da parte do pedreiro, o maior protagonismo teve como efeito conduzir seu relato por caminhos da imaginação, da invenção. O ensaio de Moreno defende a aproximação Walsh/ Puig, cujo valor estaria na eliminação da barreira de separação das vanguardas artísticas e políticas, uma vez que ambos os escritores estariam se esforçando por ceder a palavra ao povo, ou aos “amenazados de insignificancia”, como diria Patrícia Walsh, repetindo uma lição aprendida de seu pai.
Não é gratuito que María Moreno repare nos procedimentos de Walsh e Puig. Essa autonomia das vozes dos outros, que arrasta como consequência natural o quase desaparecimento do entrevistador e o destaque dos informantes, é o modelo praticado pela escritora em Oración.
Sem que seu nome seja mencionado, mas coincidindo em algum ponto com María Moreno, Beatriz Sarlo foca em procedimentos da oralidade e do popular. O artigo de Sarlo trata das diferenças entre a ficção da década de oitenta do século passado e a que estava sendo divulgada nos primeiros anos do século XXI. A crítica constata que “Se o romance da década de oitenta foi “interpretativo”, uma linha visível do romance atual é “etnográfica” (SARLO, 2006, p. 2) 20 . “Etnográfica” no sentido de que romances mais recentes dão a sensação de o autor ter gravado, segundo procedimentos da etnografia, as falas das personagens, o que contrasta com a tradição da ficção que nunca teve a pretensão da transcrição fidedigna das falas do romance. Para essa tradição, “O estilo plano (de fita gravada) era um recurso excepcional” (SARLO, 2006, p. 4)21 . Sarlo comenta particularmente a novidade que representou Washington Cucurto, reproduzindo a “língua baixa”, exagerando essa língua até a hipérbole e introduzindo um “narrador submergido”, cuja fala não se distingue mais das vozes das personagens populares.
Reparemos, agora, o modo como María Moreno provoca a inclusão dos relatos dos sobreviventes desse confronto que culmina na morte de Vicki Walsh. As falas de Lucy Gómez de Mainer, a pessoa que tinha alugado, para
19 “Es extraño que, en un cierto sentido, Puig realizara el proyecto de Walsh aunque se detuviera en el momento de pasar el grabador, en el sentido de jaquear la autoría especializada”.
20 “Si la novela de los ochenta fue “interpretativa”, una línea visible de la novela actual es “etnográfica”.
21 “El “estilo plano”, de cinta grabada, era un recurso excepcional”.
o uso dos militantes, a casa invadida pelo exército; de Maricel Mainer, a sua filha; de Juan Cristóbal Mainer, o filho; e de Stella Maris Gómez de García del Corro expõem as suas versões do que ocorreu no dia da invasão, sem nenhuma participação da autora do livro. Devemos supor que Moreno gravou os testemunhos sem interrupções e decidiu não deixar traços da sua intervenção. As marcas de oralidade indicam falas espontâneas. Nas entrevistas principais, que reproduzem o diálogo de Patricia Walsh com a autora do livro, notamos, ao contrário, as intervenções breves de Moreno, que geralmente reiteram as afirmações da entrevistada ou são sínteses dos seus extensos protocolos. A entrevistadora intervém apenas com frases conclusivas como “– O herói está feito de últimas palavras” (MORENO, 2018, p. 100) 22 ou “– Essa foi a última vez que você viu seu pai” (MORENO, 2018, p. 101) 23 .
A estratégia consiste em deixar o entrevistado falar para que o leitor chegue às próprias conclusões, e evitar que seja o autor quem imponha uma verdade. São os fatos e os participantes que assinalam a verdade. Não estaríamos diante de uma técnica utilizada por Rodolfo Walsh na sua literatura de não ficção?
Segundo relato da própria Patricia Walsh, registrado em Oración , dois momentos das cartas de seu pai a incomodaram profundamente. Na Carta a Vicki, nesse diálogo imaginário e impossível com a filha morta, Walsh escreve “Falei com a sua mãe. Está orgulhosa na sua dor, segura de ter compreendido sua curta, dura, maravilhosa vida” (MORENO, 2018, p. 16) 24 ; em Carta a mis amigos, o escritor conclui “Sua lúcida morte é uma síntese da sua curta, preciosa vida” (MORENO, 2018, p. 23) 25 . Patricia questiona o uso dos adjetivos “maravillosa” e “hermosa” para caracterizar a vida da sua irmã. Seu questionamento é feito a partir de memórias de infância e adolescência; ou seja, a partir da autoridade que lhe confere o fato de ter compartilhado com a sua irmã as mesmas experiências no seio de uma família dominada igualmente pelo afeto e pelo conflito: discussões constantes, apaixonadas, uma família unida, com posições encontradas. E como consequência, as imagens de uma infância conturbada guardada na memória das filhas.
22 “– El héroe está hecho de últimas palabras”.
23 “– Esa fue la última vez que viste a tu padre”.
24 “Hablé con tu mamá. Está orgullosa en su dolor, segura de haber entendido tu corta, dura, maravillosa vida”.
25 “Su lúcida muerte es una síntesis de su corta, hermosa vida”.
Patricia não conta unicamente com a sua memória pessoal. No registro da fala da filha de Walsh, em Oración, há também uma leitura do texto “El 37”, o magnífico e comovedor relato autobiográfico de Walsh sobre o sofrimento e a solidão na infância, que começa com a contundente frase “El 36 fue el año de la caída” (WALSH, 2010, p. 16). Na desgraça da economia familiar, começa a infância triste. O escritor lembra, nesse texto, a sua passagem, junto com o seu irmão, por um colégio de religiosas irlandesas para internos pobres. Essa solução que os pais de Walsh encontraram diante da impossibilidade de sustentar os filhos se apresenta como similar à decisão do escritor de colocar as suas filhas, Vicki e Patricia, num colégio como alunas internas durante um ano. Patricia lembra desse período trazendo à memória a leitura de “El 37”, que ela considera um “conto”: “E esse conto me faz lembrar de quando ele levou-nos, a minha irmã e a mim, uma de cada mão, ao colégio Maria Auxiliadora da rua Soler, em Buenos Aires” (MORENO, 2018, p. 296) 26 . Esse episódio, junto com outros momentos de sofrimento, tem a força de um argumento para aniquilar a versão da “vida maravilhosa” de Vicki, construída por Walsh, em suas cartas.
Um outro ponto de discordância entre pai e filha revelado em Oración refere-se propriamente a quem teria dito a frase “Ustedes no nos matan nosotros elegimos morir” (MORENO, 2018, p. 22) 27, ouvida durante o confronto entre os militantes e o exército. Para fazer de Vicki uma heroína, o escritor atribuiu à filha essas últimas palavras. Patrícia corrige a informação do relato paterno, esclarecendo que, na realidade, o seu pai sabia que essas palavras tinham saído da boca do companheiro de Vicki, o militante que morreu ao seu lado. A relação com a literatura de Walsh encontra-se nos próprios argumentos de Patricia, ao lembrar que o seu pai privilegiava o herói anti-épico e as vozes dos ignorados. Se o suicídio era uma alternativa para esses militantes, um ato de sacrifício pessoal, a obrigação de Walsh teria sido reconhecer “el protagonismo del compañero” (MORENO, 2018, p. 294). Segundo Patricia, o pai, a quem importa a construção da verdade na escrita, cai na tentação de fazer de Vicki “la heroína de esta escena”. O depoimento de Patricia Walsh, em Oración, após registrar os acontecimentos na casa invadida e das circunstâncias da morte de Vicki, passa à análise do modo como ela mesma, a filha sobrevivente, processa a identificação com o seu pai, que é inseparável da proposta literária deste último: “Eu me identifico com o meu próprio pai: quando ele busca quem vai
26 “Y ese cuento me hace acordar a cuando él nos llevó a mi hermana y a mí una de cada mano, al colegio María Auxiliadora de la calle Soler, en Buenos Aires”.
27 “vocês não nos matam, nós preferimos morrer”.
dar testemunho em grandes relatos, escolhe as pessoas que estão ameaçadas de insignificância” (MORENO, 2018, p. 301) 28 .
Acreditamos ter identificado o modo como os relatos de filiação mobilizam as problemáticas da complexidade da memória, assim como demonstrado também o diálogo entre perspectivas que se entrecruzam a partir da filiação na literatura. Os gregos usavam o termo “Alethéia” para nomear a verdade. Como explica Heiddeger29 , quem analisou a palavra da língua grega, “alethéia” significava a negação de “lethe” que é ao mesmo tempo esquecimento e desvelamento ou ocultamento. Sua relação com a memória não pode ser negada. María Moreno parece se identificar com a busca da verdade de Rodolfo Walsh, sem que isso signifique uma anulação da crítica e uma mitificação do escritor. Como admiradora da sua obra, compreende que o compromisso do cronista é com a verdade, sem anular a imaginação nem o dever de expor a multiplicidade contraditória das vozes.
28 “Yo me identifico con mi propio padre: cuando él busca quién va a dar testimonio en los grandes relatos, elige a las personas que están amenazadas de insignificancia”.
29 Heidegger, M. “Aletheia”. In: Conferencias y artículos . Barcelona: Ediciones del Serbal, 1994, p. 225-246.
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As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se as narramos ou fizermos delas uma história.
Hannah Arendt A condição humana.
Esse capítulo pretende abordar – a partir da leitura de obras de duas escritoras migrantes do Quebec: Kim Thúy e Régine Robin – a maneira pela qual essas autoras, originárias de diferentes formas de migração, irão produzir suas obras no entre-lugar entre a urgência de apropriação do lugar e o esforço em preservar a memória de seus ancestrais. Assim, tanto a figura da devoração e/ou da braconagem dos elementos culturais do país de acolhida quanto a do memorialista geracional, que não se permite esquecer a memória cultural de seus ancestrais, serão problematizadas no âmbito do presente capítulo através da análise de obras de duas autoras contemporâneas da literatura dita migrante do Quebec.
O caçador furtivo e o memorialista intergeracional: a literatura quebequense entre a apropriação do lugar e a preservação da memória ancestral
Vários pesquisadores já se detiveram na análise da figura do braconnier ou caçador furtivo, como Simon Harel e Nubia Hanciau. Comecemos então por recordar de que modo esses pesquisadores abordaram tal figura . Em artigo para a Revista Interfaces Brasil-Canadá, de 2005, o teórico quebequense Simon Harel vê na braconagem um novo modo de apropriação do lugar. Evoca Michel de Certeau ao associar esta figura com estratégias de resistência e sobrevivência. Segundo Harel, a braconagem é uma “atividade ao mesmo tempo ilícita e contingente; é uma invasão, um transbordamento, uma camuflagem que permite a um sujeito de se imiscuir, sujeitando-se aos perigos, no território do outro (proprietário de terra, território nacional, propriedade intelectual)”
(HAREL, 2005, p. 211). Segundo o autor, a braconagem permite reavaliar as relações entre as culturas, apoiando relações interculturais como camuflagem e/ou resistência. Destaca que as formas de poder são fixas, enquanto a subversão é móvel e a hibridação é plural (2005, p. 213).
Os autores migrantes, ao chegarem ao país de acolhida, irão passar por um processo de desterritorialização, que corresponde a perdas de elementos culturais de origem, assim como ao sentimento de insegurança em relação à pertença a um lugar. A braconagem pode ter início nesse momento quando as incursões ao território do outro começam a se fazer mais frequentes. Apropriarse de elementos culturais do país de chegada passa a ser praticado de modo sub-reptício: “ao mesmo tempo ardiloso e tático, o sujeito que caça tenta se fazer invisível, pois a operação é perigosa e arriscada” (HAREL, 2005, p. 221).
Pode-se dizer desse modo que a braconagem corresponde a uma forma de reterritorialização: pela apropriação de elementos culturais do novo contexto, tem início o processo de devoração da cultura do outro que poderá dar origem à formação de objetos culturais híbridos.
Nubia Hanciau, em capítulo intitulado Braconagens (2010, p. 47-65), inicia destacando o estudo seminal de Michel de Certeau que, em A invenção do cotidiano; 1. As artes de fazer (editora Vozes 1994), associa “as artes de fazer” às astúcias dos que praticam a caça em espaços e tempos interditos. Tanto Michel de Certeau, quanto Simon Harel e Nubia Hanciau, convergem no sentido de que a braconagem, embora conotada negativamente, corresponde a “estratégias de resistência ou de sobrevivência empregadas pelo sujeito (tanto individual quanto coletivo) em seu meio” (2010, p. 49).
Na verdade, a prática constante das braconagens realizadas no contexto do Quebec por escritores oriundos de diferentes países, constitui-se através de passagens transculturais já que a aproximação de duas ou mais culturas
dá origem, como sabemos, à criação de objetos culturais novos. Quando lemos a obra de autores chegados ao Quebec provenientes de países como o Haiti, o Vietnã, a França ou a China, entre tantos outros, por exemplo, já não estamos mais diante da cultura de origem do escritor, mas de escrituras transculturadas em função da apropriação de elementos culturais do país de acolhida desses imigrantes. A caça furtiva de referências fornecidas pelo novo contexto, que vão desde a paisagem, do próprio fato de assumirem a língua do outro (a língua francesa como língua da escritura), para além da música, da história e do contato interpessoal, dão origem ao que Simon Harel chama de escrita palimpsesto1, oriunda da mobilidade constante, já que esses escritores escrevem num entrelugar, num espaço intersticial entre o território cultural de origem e o de chegada.
As obras produzidas no âmbito do que Pierre Ouellet chama de “esprit migrateur” (espírito migrante), que inclui também o nomadismo intelectual, ou seja, aqueles escritores que, embora não sejam imigrantes, possuem o espírito migrante, são hoje reconhecidamente as que atraem o maior número de leitores dentro e fora do Quebec, pois que elas problematizam as trocas interculturais, situando-se em um espaço intervalar.
É nossa proposta apontar, no âmbito do presente artigo, alguns exemplos da literatura contemporânea do Quebec em que fica evidente a prática da braconagem como forma de apropriação – pelos escritores vindos de outras geografias – do novo lugar de ancoragem: o Quebec. Paralelamente tais autores voltam-se para suas culturas de origem na tentativa evidente de preservação da memória ancestral. As autoras que analisamos praticam essa dupla forma de construção identitária no país de acolhida: apropriar-se dos novos elementos culturais do país de ancoragem e rememorar a cultura de seus ascendentes como Régine Robin e Kim Thúy que se apropriam do diverso para torná-lo seu, para melhor entender a diferença do outro, para diminuir a distância entre si e o outro e para estabelecer a relação, seguindo o caminho traçado por Édouard Glissant.
Tais autores, para além da apropriação do novo e do diverso no país de chegada, desenvolvem – em várias de suas obras – um minucioso trabalho de memória geracional, descrevendo em detalhes fatos de suas vidas antes da emigração, destacando sobretudo os vestígios memoriais da relação com seus pais e avós. É como se fosse ao mesmo tempo importante lançar âncora no novo território geográfico e cultural, sem deixar que se apaguem as memórias relativas a seus ancestrais e às condições de vida antes da travessia em direção
às Américas. Nas obras das escritoras Kim Thúy, do Vietnã, e de Régine Robin, da França, o culto à memória geracional adquire grande relevância. Acessam fragmentos memoriais, muitas vezes “por tabela”, ou seja, por intermédio de relatos de seus familiares já que eram jovens quando emigraram.
Autoras quebequenses contemporâneas: entre o caçador furtivo e o memorialista transgeracional
Kim Thúy
Nascida em 1968 em Saigon, Vietnã, Kim Thúy, que é hoje escritora laureada e traduzida em várias línguas, chega ao Canadá com a idade de 10 anos, juntamente com demais imigrantes vietnamitas fugitivos do regime comunista e da guerra, tendo viajado nos boat people, cujas precaríssimas condições serão descritas em suas principais obras como Ru (2009), Mãn (2013), Vi (2016) e Em (2020). Em francês Ru significa “pequena fonte” e em vietnamita, remete a “embalar”, “ninar”. Podemos remeter aqui à frase em epígrafe de Hannah Arendt: “As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se as narramos ou fizermos delas uma história”, já que os romances de Kim Thúy são narrativas de dor, sofrimento e exílio em condições as mais precárias possíveis e narrá-las contribuiu certamente para melhor suportá-las.
A saída nos porões dos navios que levavam refugiados se dava nas condições as mais arriscadas e duvidosas possíveis em matéria de higiene, e alojamento, com as famílias deixando para trás suas posses, seus pertences, suas moradias e seus familiares, sabendo que estavam partindo para nunca mais voltar.
Se muitas das obras da assim chamada literatura migrante, caracterizamse, como vimos, pela narrativa das dificuldades de inserção no novo contexto e as tentativas de apropriação do lugar, a literatura de Kim Thúy inscreve-se como pós-memória, ou seja, emerge da necessidade de lembrar o que seus antepassados silenciaram: com a partida para o exílio, o trauma da guerra faz com que os mais velhos silenciem. Anos mais tarde, Kim Thúy, movida pelo temor da perda de suas referências fundamentais como língua, culinária, histórias de vida, laços familiares, assume a função de narradora da tragédia dos últimos anos no Vietnã do sul sob o ataque do Vietnã do norte e dos norteamericanos. A autora assume a narração de histórias que se passaram antes da diáspora, das quais ela pouco lembra já que tinha apenas 10 anos de idade. A partir de relatos dos ancestrais e de pesquisas da história do verdadeiro holocausto que foi a guerra do Vietnã ou Guerra Americana, transcorrida entre 1955 e 1975, envolvendo Vietnã, Laos e Camboja, a autora recolhe os
restos memoriais, fragmentos de passagens narradas por sua família para imortalizá-los através de uma prosa cativante e delicada. Os países envolvidos foram duramente bombardeados e a população vitimada por armas químicas que destruíram as plantações, provocando a fome generalizada. Além de presenciar o assassinato de civis, incluindo crianças, a população foi expulsa de suas propriedades e espoliada de seus bens. A autora assume o dever de memória de retraçar a memória cultural de sua família no Vietnã, na medida em que seu nascimento “a eu pour mission de remplacer les vies perdues. Ma vie avait le devoir de continuer celle de ma mère” (THUY, 2009, p. 11) 2 . Vale lembrar aqui as palavras de Régine Robin que reconhece igualmente o dever de memória, retraçando, através da escrita, histórias familiares, sobretudo no que tange o sensível e o simbólico que podemos chamar de memória cultural, incluindo tudo aquilo que não vai estar nos livros de história oficial como refere Kim Thúy em uma de suas obras. Escrever torna-se, portanto, para ambas as autoras, o espaço para reunir os restos, reconstituir o que a guerra tratou de fragmentar:
Eu compreendi bem mais tarde que tudo saía da guerra, estando a guerra inscrita como tema ou não. Na verdade, em raras exceções, eu não escrevo sobre a guerra, mas com a guerra. Em minha escrita de ficção, recorro às formas da colagem, da montagem, da assemblage, a tudo que abala as temporalidades. Eu falo de um passado insuficiente de significação, de uma história que perdeu sua sombra e que não pode dizer mais nada. Nem romance, nem grande narrativa, eu escrevo no espaço da fratura e da coleta dos pedaços, dos estilhaços, dos fragmentos e dos rastros (ROBIN, 2003, p. 15) 3
Nessa medida, podemos afirmar que Kim Thúy também escreve com a guerra e não sobre a guerra. Sendo seu objetivo principal o de rastrear o passado para ressignificá-lo no presente, assumindo-se como herdeira da capacidade de resistência e de resiliência de seus antepassados. Assim a narradora recolhe como um dom as vivências de seus pais e avós o que lhe permitirá transmitir esse legado a seus dois filhos, sendo que um deles não terá acesso a essa herança por ser autista, fato que Kim Thúy faz questão de não esconder. Ru constrói-se igualmente como homenagem às mulheres que
2 Meu nascimento teve por missão repor as vidas perdidas. Minha vida tinha o dever de continuar a de minha mãe.
3 J’ai compris bien plus tard que tout sortait de la guerre, que la guerre fût inscrite comme thème ou non. En fait, sauf exception, je n’écris pas sur la guerre, mais avec la guerre. Dans mon écriture de fiction, j’ai recours aux formes du collage, du montage, de l’assemblage, à tout ce qui permet de faire grincer les temporalités. Je parle d’un passé en mal de signification, d’une histoire qui a perdu son ombre et ne peut plus rien dire. Ni roman, ni grand récit, j’écris sur fond de cassure et collecte des bribes, des éclats, des fragments et des traces.
carregaram o peso “da história inaudível do Vietnã nas costas”, enquanto seus maridos lutavam na guerra, elas permaneciam como únicas responsáveis pela nutrição dos filhos. A única riqueza que têm para legar aos filhos “é a riqueza de sua memória” (2009, p. 49) 4 .
Adina Balint em seu recente livro sobre Imaginaires et représentations de la mobilité (2020) aborda dois temas capitais que nem sempre vemos destacados nas obras de autores que vêm tratando da problemática das Mobilidades: ancoragem e volta (ancrage et retour). A questão da ancoragem, do enraizamento, é enfatizada pela narradora que confessa ter cedido ao “rêve américain”, como parte de seu processo de enraizamento no Canadá. Sonhar o sonho americano ao mesmo tempo em que deu segurança à voz de Thúy e determinação a seus gestos, tirou “sua fragilidade, suas incertezas e seus medos” (2009, p. 84), o que foi percebido por um subalterno que a narradora encontrou em uma viagem de volta a Saigon: ele percebeu que ela não tinha mais o direito de declarar-se vietnamita.
A questão do enraizamento seguido da obsessão identitária ao novo território, se era recorrente na literatura migrante de alguns anos atrás, está sendo paulatinamente substituída pelo sentimento que Michel Maffesoli chama de enraizamento dinâmico que corresponde ao desejo de vinculação aos imaginários da mobilidade transcultural e aos encontros cosmopolitas, visando ao que Pierre Ouellet denomina “coexistência sensível”5 , noção que tem relação com seu conceito de “comunidades de memória” o qual repousa sobre o argumento de que a memória das comunidades recém chegadas, como a dos imigrantes, faz parte hoje da memória coletiva que o autor prefere chamar de “comunidades de memória”. Nota-se, na obra de Kim Thúy, a interpenetração cultural e linguística em substituição às obsessões identitárias a um território, apontando para a fragilidade das ancoragens referenciais (regionais, nacionais e transnacionais), o que lhe permite perceber que “O vermelho profundo de uma folha de bordo não é mais uma cor, mas uma graça; o país não é mais um lugar, mas uma canção de ninar” (2009, p. 138) 6 . Essa citação remete à sua integração não apenas a uma nação, chamada Quebec, ou a um país chamado Canadá, mas a uma comunidade de memórias. Quanto ao “retour” ou desejo de volta ao país natal, lembramos que em Ru, Kim Thúy relata sua experiência
4 c’est la richesse de leur mémoire.
5 Ver a esse respeito: Entretien avec Pierre Ouellet. Entrevista realizada por Ana Maria Lisboa de Mello, Marie Hélène Paret Passos e Zilá Bernd para a revista Letras de Hoje da PUC RS, v. 50, n. 2, 2015. <https://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/21342/13256>
6 le rouge profond d’une feuille d’érable à l’automne n’est plus une couleur, mais une grâce; qu’un pays n’est plus un lieu, mais une berceuse.
de “retour” pelo período de 3 anos ao Vietnã quando aceita uma alocação em Hanói, como parte de sua atividade profissional. Esse longo período no “país natal” vai servir de estímulo para que a autora volte no tempo em que sua família residia no Vietnã, podendo constatar fatos que não mudaram desde o período anterior à guerra: a invisibilidade e a inaudibilidade das histórias de vida das mulheres de seus país de origem. A volta ao país natal remete ao famoso poema fundador da Negritude, do poeta martinicano Aimé Césaire: Cahier d’un retour au pays natal. O que significa essa volta? à Martinica, já que ele estava em Paris quando escreveu o poema; à África, para melhor conhecer seu legado cultural; ou ao interior de si mesmo uma vez que em Paris, sendo vítima de racismo, se sente em crise com relação a sua pertença identitária? A pergunta que formulamos em referência do poema de Césaire é válida também para o retorno de Kim Thúy ao Vietnã: é nossa hipótese de que seu retorno por três anos corresponde ao desejo de se confrontar com o país real depois de tê-lo reinventado em seus livros a partir dos fragmentos memoriais que lhe foram transmitidos por seus ancestrais.
Um último exemplo que gostaria de apresentar de escritas da mobilidade, situada entre a braconagem e o trabalho de preservação e transmissão da memória familiar, ou seja, da memória dos antepassados que não “fizeram a América”, é o da escritora e ensaísta Régine Robin, de origem judaica, que chega a Montreal proveniente da França depois que seus pais fugiram das perseguições nazistas na Polônia. Nascida em 1939, faz seus estudos em Paris e é acolhida em 1982 como professora na UQAM (Université du Québec à Montréal). É autora de enorme produtividade incluindo romances, contos e obras teóricas na área da história, da crítica literária e da análise do discurso. Uma de suas obras teóricas mais conhecidas e que foi traduzida para o português, pela editora da Unicamp, é A Memória saturada (2016). Entre suas obras ficcionais, a que fez mais sucesso devido a sua originalidade, foi La Québécoite, escrita em 1983, portanto logo após sua chegada ao Quebec. Trata-se de um livro muito curioso que inclui listas de nomes de estações de metrô de Montreal, seus principais restaurantes, nomes de grandes lojas e até de bancos, colagens de anúncios e de escalações de partidas de hockey, logo, tudo que é típico daquela cidade e diferente para ela que vinha de Paris. A originalidade do livro está, em grande parte, no fato dele revelar o fascínio da escritora pela magia dos nomes próprios, sua ânsia em fazer parte dessa comunidade na qual acaba de chegar. Sua estratégia, para apropriar-se dessa grande metrópole, onde viverá por muitas décadas, é
a de memorizar cada detalhe: de menus de restaurantes aos nomes de bairros, ruas, praças e estações de metrô. Como sabemos, o patronímico de Quebec é “québécois/e” (quebequense). O título “québécoite” é evidentemente um neologismo que remete à impossibilidade para ela de tornar-se québécoise:
“Nunca nos tornamos verdadeiramente quebequenses” (1993, p. 37)7 .
É interessante notar que, paralelamente ao esforço de nomear e decorar os nomes de cada lugar, a narradora volta à Europa, tanto para falar de seu passado recente, anterior à sua vinda para a América, quanto rememorar a sua incontornável Kaluszyn, pequena cidade na Polônia, com população predominantemente judaica. Kaluszyn era a cidade de origem de seus pais e avós e, em várias de suas obras, sobretudo em Le cheval blanc de Lénine ou l’Histoire autre (1979), narra a perseguição nazista contra a população dessa pequena comunidade. Em vários de seus escritos, explica que, voltar às memórias de Kaluszyn, é voltar à história de uma reapropriação, uma reapropriação de si mesma, pelo fato dela ter passado longo período de sua vida sem evocar tais lembranças de seus antepassados. A autora lembra que, quando seus pais emigraram para a França, todos os seus esforços foram os de assimilar o mais profundamente possível a língua francesa, sua história e seus costumes, pois naquele período pós guerra, a alternativa que se colocava aos judeus era ou afirmar-se judeu e partir para Israel ou esquecer sua judeidade e assimilar a identidade francesa. Foi sua escolha até o momento em que se torna escritora e parte em busca do iídiche e das lembranças familiares. Por isso, decorar o nome das estações de metrô de Montreal e rememorar Kaluszyn se sucedem em La Québécoite, evidenciando que, no momento de realizar sua imersão nesse novo contexto, torna-se urgente agenciar igualmente os elementos da herança memorial, realizando a transmissão “geradora de sentido” de que fala Paul Ricoeur, relembrando que a tradição pode deixar de ser um depósito inerte para ser uma troca “entre passado interpretado e presente interpretante” (RICOEUR, 1985, p. 320). Acessando sua memória geracional enquanto decora a ordem das estações de metrô, que precisa percorrer de sua casa até a universidade, percebe sua “incontournable étrangété” (1989, p. 54):
Que angústia em certas tardes – quebecidade, quebecitude – eu sou outra. Não pertenço a esse Nós tão frequentemente utilizado aqui – Nós outros – Vós outros. (ROBIN, 1989, p. 54) 8
7 On ne devient jamais vraiment québécois.
8 Quelle angoisse certains après-midi – Québécité, québécitude – je suis autre. Je n’appartiens pas à ce Nous si fréquemment utilisé ici – Nous autres – Vous autres .
Atravessada pelo que ela chama de “fala imigrante”, pela voz do longínquo, pela “voz dos mortos”, sente-se em um entrelugar: entre duas cidades (Paris e Montreal), entre duas línguas (embora o francês seja a língua oficial do Quebec, as sonoridades são outras, assim como muitas expressões).
O que será preciso para deixar de sentir-se “outra”? é preciso “mudar de pele, de língua, de comida, de época, de sexo, de nome” (1989, p. 63).
Como uma verdadeira braconnière, ela se transforma em uma caçadora de palavras, de marcas de produtos, para poder penetrar no estranhamento do cotidiano onde ela se sente ainda em exílio em sua própria língua que não é nem a mesma nem outra... Belíssimo relato de amor e de ódio, lutando contra o inquietante estranhamento da província do Quebec onde ela faz uma profícua carreira de docente, intelectual e feminista, sem nunca perder o que ela chama de “amor pelas cidades” que irá levá-la a escrever inúmeros livros sobre grandes metrópoles como Nova York, Los Angeles, Tóquio, Buenos Aires, Londres, em livros como Mégapolis, les derniers pas du flâneur (Stock, 2009).
Seguindo as trilhas de Walter Benjamin, persegue o sentido atual do flâneur, argumentando que ele não despareceu na atualidade, mas vem se transformando. Novo nômade, o flâneur continua a se perder nas cidades, afirma Régine Robin, evidenciando que seu amor ela mobilidade, pela alteridade, não diminuiu com o tempo, mas se aguçou:
Os passantes, os artistas e os escritores, acompanhados das sombras dos moradores de rua, construíram dispositivos complexos para reinventar a deambulação, a travessia das megalópolis, para transformar nosso olhar, nossa relação com a cidade, colocar armadilhas em nossos hábitos, nossos horários, nossos percursos obrigatórios, para fazer com que possamos simplesmente aí encontrar um lugar sem nele nos instalarmos (ROBIN, 2009, p. 89) 9
Conclusões móveis.... Escrever entremundos
Após esse percurso, chegado o momento do fechamento (mesmo inconcluso) de nossas reflexões, valho-me do pensamento de Ottmar Ette sobre as “literaturas sem morada fixa” ou sobre o que significa “escrever entremundos”. Sua proposta de leitura de “uma poética do movimento”, adéqua-se perfeitamente à produção das duas escritoras sobre as quais acabamos
9 Les passants, les artistes et les écrivains, accompagnés de l’ombre de sans-abri, ont mis au point des dispositifs complexes pour réinventer la déambulation, la traversée des mégapoles, pour transformer notre regard, notre rapport à la ville, pour piéger nos habitudes, nos horaires, nos parcours obligés, pour faire que nous puissions simplement y trouver une place sans nous y installer.
de discorrer, já que julgamos ter ficado evidente que, embora tendo migrado para o Quebec, ambas escrevem “entremundos”: o país de acolhida e o país natal, território de seus ancestrais. Segundo Ette,
(...) as literaturas sem morada fixa que devem ser compreendidas como plurais – como ainda deverá ser evidenciado – perpassam e cruzam a oposição entre literatura nacional e mundial, sem terem de se submeter a sua lógica excludente e exclusiva – no sentido de um campo literário nacional (2018, p. 16).
Em sua argumentação, Ette afirma que as chamadas literaturas “sem morada fixa”, problematizando concepções homogeneizadoras de literatura mundial, não devem ser, contudo, entendidas como literaturas “sem limites”. Sua argumentação gira em torno do olhar transversal que as literaturas “sem morada fixa” lançam sobre seus temas de predileção, movimentando-se entre universos distintos, dando origem ao surgimento, não de uma nova cartografia do literário, mas de “novos padrões de movimento transareais10 , translinguais e transculturais que ultrapassam a distinção entre literatura nacional e mundial” (2018, p. 17).
A leitura dos dois romances escolhidos: Ru, de Kim Thúy, e La Québécoite, de Régine Robin, demandam assumir uma perspectiva transcultural, transtemporal e translingual, como sugere Ottmar Ette na análise das “literaturas sem morada fixa”, já que suas autoras viajam entre culturas muito distintas: a norte americana (Canadá e Quebec), que entra em interlocução com a vietnamita e com a judaica, dominando línguas distintas (vietnamita e íidiche), navegando em diferentes temporalidades já que voltam no tempo para a abordagem transgeracional.
Em artigo de 1995, o escritor quebequense de origem brasileira, Sergio Kokis, aborda dois grandes mitos universais de viajantes: Ulisses e Jasão. Enquanto o primeiro sonha continuamente com a volta, onde o espera sua esposa Penélope, o segundo é de natureza propensa à vagabundagem, à aventura e à errância. Enquanto Ulisses sonha com a volta a Ítaca, onde sua mulher e seu reino o esperam, Jasão representa o desenraizamento por excelência: sua
10 O autor define os movimentos “transareais” como aqueles que se situam em diferentes áreas, por exemplo o Caribe e o leste Europeu, enquanto os movimentos transcontinentais situam-se entre diferentes continentes, como Ásia, África ou América. (2018, p. 24).
busca pelo velocino de ouro, móvel inicial da viagem, não parece ser alvo de grande preocupação já que no caminho funda cidades e gera descendência, dando a impressão de que só a viagem de ida conta para os Argonautas. Kokis argumenta que esses dois mitos representam dois tipos de viajantes ou de imigrantes que o escritor encontrou em sua chegada, na condição de imigrante no Quebec: os que só pensam em voltar ao país natal (como Ulisses) e outros que (como Jasão) encaram sua condição de imigrantes mais como aventura do que como exílio. Ele se considera fazendo parte deste segundo grupo:
Acredito já ser tempo para nossos poetas, a exemplo de Vallejo, que cessem de cantar somente Ulisses, e que reconheçam e celebrem também os charmes de Jasão. É o que meu longo exílio me levou a confessar a mim mesmo… (1994, p. 148)11
À luz dessas bem humoradas páginas de Sergio Kokis, nos inclinamos a ver nas autoras estudadas no presente artigo a reedição do mito de Jasão, deixando de lado o registro do apego e da nostalgia, para apostar na fertilidade das trocas; sem preocupação com o retorno, mas dando importância ao encontro do lugar de ancoragem. As duas autoras, cada uma na sua perspectiva, transformam a narrativa no seu lugar habitado. Como esclarece Aleida Assmann, em seu belo livro Espaços de recordação: há espaços habitados e espaços inabitados. A memória funcional é o espaço de recordação habitado; essa é a memória que tende a ser legada à geração seguinte. Nesse sentido as obras mencionadas constituem-se em lugares habitados, sendo o intuito das escritoras garantir a transmissão de suas memórias. Elas as ofertam como dom às gerações que as sucederem.
As duas autoras encontram no Quebec seu ponto de ancoragem e as condições para fazer da escritura o espaço de construção do que Régine Robin chama de “identité de traverse” (identidade transversal): “une identité floue, pluriculturelle dans la langue française” (ROBIN, 1989, p. 183)12 . Robin define bem sua disposição de desenvolver uma fala nômade, que não corresponda a uma fala do exílio, mas a uma “parole du hors-lieu” (1989, p. 17), ou seja, uma fala fora do lugar, por isso o título de seu romance ser La Québécoite, sabendo que ela jamais será uma “québécoise”. Robin reconhece que sua reconstrução identitária será sempre híbrida e que o escritor “entre mundos”
11 Je crois qu´il est temps que nos poètes cessent de chanter seulement Ulysse et qu´ils reconnaissent et célèbrent davantage les charmes d´un Jason. C´est ce que mon long exil m´a amené à m´avouer à moi.
12 Uma identidade fluida, pluricultural em língua francesa.
vai sempre guardar com sua língua materna uma relação de amor e de ódio, de ambivalência; uma relação imaginária de um inquietante estranhamento. Assim como Régine Robin, Kim Thúy constrói suas obras como “romances familiares”, alicerçados na memória geracional que, na definição de Régine Robin, é aquela “faite de petits riens” (feita de pequenos nadas) (ROBIN, 1989, p. 21). Ambas buscam salvaguardar a memória de seus ancestrais, ou seja, a “outra” história, que não é a oficial, o que é uma maneira de salvar os seus próprios estoques memoriais para reatualizá-los no presente do novo contexto que escolheram para viver.
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Representações da perda na experiência exílica
O país natal só existe quando foi deixado. É a partir do exílio e da perda que ele emerge e se torna essa reconstrução frequentemente nostálgica, esse farol no espelho do retrovisor; ele assume seu verdadeiro sentido a partir do longínquo. O país natal é uma ausência1
Ida KummerNa produção contemporânea inspirada pelas migrações pós-coloniais, a poética da perda se faz sempre presente, associando-se à distância entre o sujeito exilado e o lugar – terra natal ou o país onde ele se instalou. Em se tratando do país de origem, o ser desterritorializado experimenta a sensação de um duplo afastamento, tanto no eixo espacial como no temporal. Apesar da consciência da perda de experiências situadas no
1 As traduções são de nossa autoria.
passado, Salman Rushdie (1993) reconhece que não teria havido uma verdadeira e definitiva ruptura com o período anterior a seu exílio. Ao olhar uma velha foto da casa de sua família, tirada antes de seu nascimento, descobre que o presente é um país estrangeiro e que o passado está nele, mesmo perdido, em uma cidade perdida nas brumas do tempo perdido. (1993, p. 19) Graças a essa foto que fixou para sempre, em um breve instante, o domicílio de sua família, o autor guarda no arquivo memorial dos afetos, que o acompanha no presente, um tempo e um espaço de outra ordem, que o ajudam a se localizar no mundo e a garantir sua inserção em uma linhagem familiar. Visto como um vestígio do que aparentemente ficara para trás, esse instantâneo equivale à certeza de ter vivido lá, mesmo se este outro lugar se apresenta sob a forma metafórica de estilhaços, de espelhos quebrados aos quais faltam fragmentos irremediavelmente perdidos (1993, p. 21).
Segundo o autor do ensaio Patries imaginaires, para o exilado, o passado constitui o país de onde emigrou e sua perda faz parte da humanidade, sendo compartilhada com outras pessoas como ele (1993, p. 22). Dada a impossibilidade de retornar à Índia, resta-lhe criar versões possíveis de seu local de nascimento, como também o fazem outros representantes da vivência exilar:
É possível que os escritores que se encontram na minha situação, exilados, emigrados ou expatriados, sejam assombrados por um sentimento de perda, pela necessidade de reconquistarem um passado, de se voltarem em sua direção, mesmo correndo o risco de serem transformados em estátuas de sal. Mas se voltarmos em direção a ele, devemos saber também – o que faz nascer profundas incertezas – que nosso afastamento físico da Índia significa quase inevitavelmente que não seremos mais capazes de reconquistar o que foi perdido: em resumo, nós criaremos ficções, não das cidades ou dos vilarejos reais, mas pátrias imaginárias, invisíveis, Índias do espírito (1993, p. 20).
Não é gratuita a referência ao retrato da casa da infância feita por Rushdie: diante da ausência de sua terra natal, resta-lhe a possibilidade de reinventá-la através de seu poder de fabulação. Isso porque tira partido da “angústia produtiva” (SAID, 2005, p. 61) que lhe permite encontrar sua casa na escrita. Retomadas por Edward Said em seu livro Referências do Intelectual: as conferências Reith de 1993, as palavras de Adorno confirmam esta leitura: “Para quem não tem mais pátria, é bem possível que o escrever se torne sua morada.” (apud SAID, 2005, p. 65). Ao explorar a aproximação metafórica do intelectual e do exilado, Said reforça a representação do intelectual como alguém à margem do estar-em-casa, um hóspede temporário (p. 67). Como
será apontado adiante, em narrativas de filiação, os gestos de escrever e de escavar se complementam, uma vez que, nesse tipo de narrativa, os movimentos do escrever correspondem ao ato de mergulhar nas diferentes camadas do passado, para recuperar o que ficara soterrado nas camadas da memória e para costurar a ruptura existencial que marca os seres desterritorializados. No âmbito da experiência exílica, a perda se manifesta também como uma espécie de defasagem, de não coincidência entre o exilado e o lugar, seja ele o país natal ou a terra de acolhida. Em uma entrevista concedida a JeanFrançois Côté, o escritor de origem libanesa Wajdi Mouawad, que será objeto do presente estudo, se refere a sua posição de estar sempre fora do lugar. Indagado sobre a possibilidade de retornar a seu país de origem, Mouawad afirma: “Mas sou um exilado desde a idade de oito anos, não é possível se refazer ‘autóctone’ de um dia para outro, e no Líbano como aqui sentiria a mesma defasagem” (CÔTÉ, 2005, p. 31). Em outra entrevista do mesmo livro, Mouawad ressalta que o retorno é uma experiência tão difícil quanto a partida e que se sentiria tão estrangeiro em seu país de origem como ocorre no Quebec. (2005, p. 74). No ensaio intitulado L’homme dépaysé, Todorov relata suas impressões por ocasião de seu retorno à Bulgária, após dezoito anos de exílio na França. Sentindo-se cindido entre dois pertencimentos, ao voltar a seu país de origem, experimentou um tipo de prazer quando os antigos amigos lhe disseram que ele não mudara nada. Era como se os últimos dezoito anos não tivessem existido, como se ele não tivesse adquirido uma segunda personalidade. Tal sensação, que poderia apagar o sentimento de defasagem em relação a seu país, foi confirmada no momento em que colocou seus antigos sapatos, guardados pela mãe em uma gaveta ao longo de mais de uma década. Sapatos que usou para trabalhar no jardim, o que sugere o gesto simbólico de reapropriação do solo pátrio (1996, p. 17-18). Todavia, o autor afirma em seguida que teria preferido não ser reconhecido por seus amigos, o que seria a prova de que de fato vivera na França, o sinal de que tantos anos passados no exílio não teriam sido inúteis, por terem deixado marcas no seu corpo atual, em defasagem com o que ele fora um dia.
A metáfora do exílio como defasagem e falta de sintonia com o lugar onde se está aparece no pensamento de Régine Robin ao definir a figura do escritor como alguém em descompasso com seu próprio corpo, com sua própria língua. Marcado pela não-coincidência consigo mesmo, o escritor –associado ao exilado – lança mão da experiência da perda para enfrentar a impossibilidade de ser ele mesmo:
É impossível para o escritor situar-se totalmente em sua ou suas línguas, unir-se a sua língua natal ou materna, habitar completamente seu nome próprio ou sua própria identidade, é impossível para ele coincidir consigo mesmo ou com qualquer fantasma de unidade do sujeito, é impossível para ele talvez até mesmo ocupar um lugar de sujeito a não ser na escrita (ROBIN, 1993, p. 9).
Ao insistir sobre a impossibilidade de todo escritor coincidir com ele mesmo, o que evoca a condição do exilado, a autora do ensaio Le deuil de l’origine: une langue en trop, une langue en moins explora os vínculos entre a escrita e perda. A seus olhos, escrever corresponde à tentativa sempre frustrada e sempre recomeçada de despistar a perda, de domesticá-la, mesmo sabendo que se trata de algo impossível. (p. 10) Em se tratando de textos ficcionais de filiação, como será visto no desenvolvimento dessas reflexões, devido a dificuldades de transmissão do legado familiar, a ideia de perda se faz presente, através das rasuras ou do sepultamento de memórias traumáticas. Como afirma Demanze, em seu clássico Encres orphelines, “a investigação da filiação ausculta assim a vertigem de uma perda” (DEMANZE, 2008, p. 232).
Para Edward Said (2005), a condição exílica se manifesta frequentemente como desassossego diante das perdas de referenciais. Como o exilado, o intelectual nunca se encontra verdadeiramente adaptado pelo fato de lhe ser impossível recuperar sua antiga casa ou de habitar sua nova morada. O desassossego se traduz como inquietação, inconformismo, incapacidade de repousar, apelo à mudança.(p. 60-61). “Figura à margem dos confortos” (p. 66), como o exilado, o intelectual conhece de perto os riscos da ousadia, os apelos do movimento sem interrupção (p. 70).
No âmbito da vivência do exílio, a perda se manifesta ainda como despojamento: tendo perdido seu país, sua língua, sua casa, seus amigos e seus hábitos, o ser exilado só conta com seu corpo e só pode habitar seu nome. Segundo Alexis Nouss, palavras de Saint-John Perse ilustram a situação exílica, capaz de atribuir de novo seu nome ao exilado: “Habitarei meu nome, foi sua resposta aos questionários do porto” (NOUSS, 2018, p. 162) Um aprofundamento de tal ideia se faz presente no imaginário de Wajdi Mouawad, como será ressaltado a seguir.
A questão do nome aparece como um leitmotiv na obra de Wajdi Mouawad, um dos maiores representantes do Oriente na produção literária quebequense da contemporaneidade, povoada por vozes vindas de toda parte.
Dramaturgo, diretor, ator, romancista, Wajdi Mouawad obteve reconhecimento internacional ao longo dos últimos vinte anos graças a seu inegável talento e à originalidade de suas criações. Nascido em 1968 no Líbano, onde viveu sua primeira infância, o futuro escritor acompanhou sua família à França por causa da guerra civil em seu país. Durante seu exílio na França, perdeu sua língua materna e aprendeu o francês, que descortinou para ele o mundo da leitura. Aos quatorze anos, novo exílio se impõe à família Mouawad, que passa a viver no Quebec. A dupla experiência do exílio se manifesta através de temáticas privilegiadas na obra do autor, como o desenraizamento, a ruptura com o mundo da infância, a busca da origem, a questão da filiação, ligadas às lembranças da guerra no Líbano.
Em entrevistas, Mouawad salienta sua dificuldade em se situar em uma só categoria identitária. Ao ser indagado, com frequência, se ele se sente libanês, francês ou quebequense, opta por uma resposta inesperada: vê-se como a barata de Kafka, pois se define como um ser híbrido e monstruoso. Como o personagem do romance A metamorfose, lido na sua adolescência, sente-se estrangeiro diante de si mesmo, e no ato de falar francês, embora esta língua lhe pareça mais familiar do que o árabe:
Acho verdadeiramente terrível o fato de utilizar dessa maneira a língua francesa, ao passo que sou absolutamente deficiente ao me lembrar como se diz a palavra “chapéu” ou a palavra “chaveiro” em árabe. Eu me vejo em francês, mas sinto-me no escuro em árabe e isso cria uma espécie de ilusão, um esquecimento de meu rosto inicial. Uma mutação. Um monstro (CÔTÉ, 2005, p. 71).
Por mais que se exprima com precisão em francês, Mouawad experimenta uma espécie de mal estar na sua expressão linguística, devido à existência de algo mutante na sua língua e no seu espírito. Uma dupla distância o separa de sua terra de origem e do país que o acolheu (NOUSS, 2018, p. 54), do árabe e do francês. Para ele, “escrevemos sempre com a língua materna, mesmo se escrevemos em uma língua que nos é estrangeira.” (CÔTÉ, 2005, p. 134), o que confirma seu papel de “homem traduzido” : “estou sempre em tradução” (CÔTÉ, 2005 p. 81) Situado em um entre-dois, sabe negociar entre dois idiomas, atribuindo à língua materna uma função particular : ao escrever em francês, ele o impregna da sonoridade árabe que ele associa às histórias contadas às crianças na hora de dormir: “Contavam-me histórias para eu adormecer, por isso esta língua é também ligada à noite: ela se tornou para mim a língua do sonho, da imaginação” (CÔTÉ, 2005, p. 72).
Diante da impossibilidade de habitar uma língua, cabe-lhe a possibilidade de habitar seu nome, cuja sonoridade parece impronunciável para os francófonos. Muito cedo, antes mesmo de seu exílio na França, vivenciou a estrangeiridade associada a seu nome, pois na escola todos os seus colegas tinham nomes franceses. Difícil de ser soletrado, dito e escrito fora do mundo árabe, seu nome é a marca da condição de quem está fora do lugar, mesmo como criança em sua terra de origem.
No âmbito da reflexão sobre os limites da ficção e da não-ficção, o nome próprio se manifesta na obra de Mouawad sob a forma da disseminação da primeira letra de seu prenome, como se o autor se fizesse presente na pele de seus personagens. Carente de um lugar e de uma língua para si, ele habita seu nome, disseminado em vários textos, sob a forma da letra W: Wilfrid (Littoral ), Walter ( Journée de noces chez les Cromagnons), Willy (Willy Protagoras enfermé dans les toilettes), Willem (Rêves), Wahab (Incendies ; Visage retrouvé ), Waach (Anima). A teatralização de sua identidade, ao mesmo tempo disfarçada e revelada, evoca um jogo de esconde-esconde própria do teatro, gênero tão caro ao autor que aí encontra seu lugar no mundo. Obcecado pela temática da busca da origem, Mouawad procura, na etimologia de seu nome, um sentido para sua vida: “Wajdi” quer dizer “Eu existo”, como se fosse, de algum modo, o nome de um predestinado cujo destino seria o de se interrogar sempre sobre o fato de existir. Enquanto marca determinante, seu nome evoca reflexões de Benslama sobre as relações entre as palavras “existir” e “exílio”: “Ex-istir é manter-se fora (ek- ou ex- significa o movimento de um êxtase, a saída para fora de si). Ex-istir é, portanto, sinônimo de ex-ílio” (BENSLAMA, 2009, p. 34).
Abertura em direção ao espaço de fora, o prenome desse autor sugere a promessa de “sair do estatismo” (NOUSS, 2018, p. 106), de deixar uma identidade conhecida e definida para se orientar em direção ao mundo estranho e estrangeiro (DOUEK, 2003, p. 178). Ao habitar simbolicamente seu nome –associado aos gestos de existir e de se exilar, Mouawad aí encontra um refúgio, visto, não como morada do ser, mas refúgio do “estando”, lugar móvel do devir.
No universo ficcional de Wajdi Mouawad, observa-se, por parte de narradores e de personagens, a necessidade de recuperar seu lugar no mundo através da busca da origem para preencher um enorme vazio inscrito nas entrelinhas das memórias familiares. Recorrente no universo do autor, o tema da perda se manifesta como ferida incurável provocada por seu desenraizamento forçado, em decorrência da guerra civil no Líbano, que o obrigou, muito cedo, a acompanhar sua família em seu exílio na França e, posteriormente, no Quebec.
Em sintonia com o drama vivido pelo autor, alguns de seus personagens trazem consigo uma falha, um vazio, muitas vezes inconsciente, associados a algum impedimento na transmissão da bagagem memorial familiar. Atormentados pelo peso do passado, muitas vezes falso e nebuloso e por falhas de memória, são levados a revisitar sua origem e o trauma fundador de suas existências. Dois textos do autor serão aqui lidos a partir da perspectiva da perda, vinculada à dificuldade de transmissão do legado familiar: a peça Incendies e o romance Anima. Para tanto, será dado realce às figuras do herdeiro e do sobrevivente, muito presentes no universo de Mouawad. Segundo Sylvain Diaz, os personagens de Mouawad estão presos em um esquema de herança e transmissão complexa (2017, p. 11). Para ilustrar seu pensamento, Diaz recorre a uma passagem da peça Incendies na qual é retratada, nas palavras da avó doente a sua neta, a transmissibilidade da cólera através da linhagem familiar. Mais tarde, caberá à neta romper o fio dessa herança pesada, cumprindo a promessa que fizera a sua avó agonizante, que lhe aconselha, na mesma ocasião, a deixar a aldeia natal para estudar e encontrar outro lugar no mundo. Em sua sabedoria de anciã, a avó pensa que, somente assim, sua neta poderia se desvencilhar do legado da violência característica de sua família. O enredo da peça mostrará ao espectador o difícil percurso a ser percorrido pela neta para sua liberação do emaranhado das relações familiares fundamentado na experiência da indistinção e da crueldade. Tendo sobrevivido à descoberta de sua história, anos mais tarde a neta confiará a seus filhos, como herança, a árdua tarefa da descoberta de sua origem infame. Herdeiros de uma tarefa inusitada que os obrigará a se engajar, a contrapelo, nas searas obscuras do passado familiar, colocam seus pés nas pegadas deixadas por sua mãe jovem em um distante país do Oriente não nomeado na peça. Quanto à figura do sobrevivente, marcado pela solidão, muitas vezes, pelo sentimento de culpa em relação a seus familiares mortos e pela difícil representação do irrepresentável (cenas de horror vividas), cabe-lhe administrar um entre-dois: se, por um lado, assume o dever de memória sob a forma do relato, para evitar que a catástrofe se reinstale e para assegurar a transmissão de memórias familiares, por outro, conhece a impossibilidade de narrar, o que acarreta formas de silenciamento e de congelamento do repertório memorial familiar. É o que se depreende no romance Anima, romance no qual, após longos anos de ocultação, o trauma vivenciado por um menino remonta à superfície da memória, causando a explosão da violência contra a barbárie do passado.
Na exploração mais aguçada do corpus escolhido, será necessário rever fundamentação teórica que ajudará a tratar de narrativas de filiação nas quais se problematizam a questão do legado familiar e os impasses e obstáculos ligados à transmissibilidade de experiências traumáticas.
Aos olhos de Demanze (2008), em uma época marcada pela dificuldade da transmissão, pela fragmentação de experiências e pela memória em migalhas, a literatura contemporânea se interroga frequentemente sobre a questão da ascendência e do legado familiar. Em um contexto no qual, muitas vezes, as referências familiares se encontram rompidas, proliferam narrativas construídas em torno da enquete genealógica cujo objetivo é a restauração das memórias rasuradas através da restituição biográfica. Segundo Dominique Viart (2009, p. 96), nesses textos os escritores substituem a investigação da interioridade pela investigação da anterioridade.
Em narrativas de filiação, engajado em uma espécie de busca de caráter arqueológico, o escritor vasculha as camadas de seu passado à procura de uma origem vista hoje como falta ou insuficiência. Graças a este processo investigativo, assim como narradores e personagens, ele tem acesso a um melhor conhecimento de si mesmo, através daqueles que o precederam na linhagem familiar. Escrita que adota o movimento da contracorrente, o récit de filiation inverte a ordem cronológica, já que se faz necessário orientar-se em direção ao passado para aí encontrar a chave de segredos cujos efeitos se fazem sentir no presente. Tudo se passa como se os acontecimentos do passado estivessem à espera de um sentido e de uma inteligibilidade (DEMANZE, 2008, p. 203), através do ato de contar.
Gesto fundador de uma cultura, a prática de contar histórias adquire um sentido particular no interior de narrativas de filiação nas quais o escritor, o narrador ou um personagem se situam na difícil encruzilhada entre a obrigação de dizer o que foi silenciado ou apagado e a impossibilidade de realizar tal tarefa devido ao esfacelamento de memórias. Em seu artigo “Le silence des pères au principe du récit de filiation”, Dominique Viart (2009) identifica um significado expressivo da representação do silêncio no imaginário da filiação presente em muitas obras nas quais se observa o mutismo obstinado dos pais.
Calados e obcecados em guardar segredos que se recusam a compartilhar com as gerações seguintes, tais figuras parentais impedem a transmissibilidade do
passado. Entre outros títulos, Viart se refere à obra Je ne parle pas la langue de mon père, de Leïla Sebbar, escritora de origem argelina. Como no livro citado por Viart, outro belo texto da mesma autora, L’arabe comme un chant secret, foi construído a partir do silêncio da língua árabe. É a perspectiva da falta deste idioma, nunca transmitido por seu pai a seus herdeiros, que a teria incentivado a escrever em francês:
Traduzo a Argélia, traduzo meu pai na língua de minha mãe. Fabrico para ele, fabrico para mim uma família imensa dos dois lados do mar. Acredito que, assim, restabeleço uma filiação rompida. É esta filiação que ofereço a meu pai (SEBBAR, 2007, p. 73) 2
Colocando em primeiro plano o silenciamento e a ocultação de uma cena de barbárie contra os argelinos ocorrida no passado na capital francesa, La Seine était rouge, de Leïla Sebbar, ressalta também a dificuldade da transmissão da memória, desafio a ser assumido por três jovens que, nesta obra, se revoltam contra o mutismo de seus pais e do governo francês. Ao explorar a necessidade de romper com os silêncios de uma história lacunar, Sebbar denuncia esse episódio de violência policial, ocorrido em Paris, em 17 de outubro de 1961. Coerente com seu desejo de preencher o déficit da transmissão intergeracional, presente em outras publicações de sua autoria, Sebbar traz inegável contribuição para a revisão da colonização e descolonização da Argélia. Após essa brevíssima incursão no imaginário da filiação de uma escritora originária do Oriente, cabe voltar à representação desta temática na obra de Mouawad, outro autor situado entre o Oriente e o Ocidente. Conhecida no Brasil através de sua adaptação para o cinema no filme de Denis Villeneuve, a peça Incendies foi encenada no Rio e em outras capitais brasileiras em 2014, com a atriz Marieta Severo, sob a direção de Aderbal Freire Filho. Na trama dramática de Incendies, a filiação deve ser pensada em um contexto de sobrevivência, que supõe a existência de um traumatismo capaz de levar à prática narrativa. Segundo François Ouellet (2005, p. 159), “para contar (escrever), é preciso ter sobrevivido”. No enredo desta obra, quem sobrevive aos horrores da guerra é o personagem da neta, herdeira dos conselhos da avó, que, no tempo presente, é mãe de dois jovens gêmeos que nunca tinham desconfiado da pesada carga que sua mãe carregara durante décadas, na solidão de seu silêncio, que impedia a transmissão de seu destino trágico a seus filhos. Consciente da proximidade
2 Aqui poderia ser lembrada a “ética da restituição” presente em narrativas de filiação, como salienta Dominique Viart (2008, p. 95): “Restituir, é de fato reconstruir, restabelecer a memória esquecida do que foi, mas é também – talvez sobretudo – devolver algo a alguém.”
de sua morte, deixa cartas a seus filhos, incumbindo-lhes de voltar no tempo e no espaço para investigarem o mistério de sua origem.
Segundo volume da tetralogia Le sang des promesses 3 – formada também por Littoral, Forêts e Ciels –, Incendies constitui uma obra densa e atual que revela os dilaceramentos e os não-ditos da guerra, com seus riscos, torturas, campos de refugiados e terrenos minados. Sem explicitar lugares e datas, a peça sugere que se trata da ocupação do sul do Líbano pelo exército israelense 4 e, em particular, de uma prisão onde milhares de libaneses foram torturados por carrascos libaneses pagos pelo exército israelense. A maioria dos que conheceram os horrores desta prisão era composta por mulheres, torturadas para que denunciassem seu marido, filhos, pai ou irmãos. Por detrás de uma narrativa dramática dolorosa e quase irrepresentável, que mistura a grande História e as pequenas histórias de seres invisíveis, descortina-se um relato sensível centrado na dificuldade da transmissão memorial entre gerações.
A escrita epistolar se faz presente na história de Incendies, desencadeando toda a intriga. Em um testamento surpreendente, a mãe – que migrara do Oriente para o Canadá há muitos anos – confere a seus filhos gêmeos o papel de herdeiros imbuídos de uma missão quase impossível que os conduzirá a sua terra natal. Além de bens materiais, a mãe deixa como legado para ambos a missão de encontrarem o pai, julgado morto, e um irmão de quem eles nunca tinham ouvido falar. Sua tarefa é a de entregar em mãos duas cartas escritas por sua mãe, endereçadas, respectivamente, ao pai e ao irmão desconhecido. Parecendo ilustrar o pensamento de Demanze para quem “a filiação toma de empréstimo de preferência o imaginário do caminho e da caminhada” (2008, p. 224), a peça Incendies coloca em cena a viagem no espaço e no tempo empreendida pelos filhos que percorrem as trilhas físicas e existenciais de sua mãe, em um processo de recuo em direção a um passado insuspeitado, que culmina com a descoberta da história infigurável de sua ascendência. Ascendência ocultada pela personagem materna que, nos últimos cinco anos de vida, adotara o silêncio completo na sua vida, tendo deixado de pronunciar uma só palavra.
3 Nessas peças personagens devem repensar e resolver questões ligadas a sua origem. O sentimento de estranheza e a sensação de perda os marcam em maior ou menor grau.
4 A presença da crueldade que atravessa a obra de Mouawad se faz particularmente visível em Incendies , onde aparece uma terrível cena assistida no Líbano pelo autor em criança: um ônibus repleto de palestinos foi incendiado por milícias cristãs em um ato de vingança contra o assassinato de um maronita. Cena inaugural de sua existência, tal massacre pode explicar a frase repetida pela mãe em Incendies : “A infância é um punhal cravado na garganta.”
Tal caminhada orienta os gêmeos no sentido das searas do passado de sua mãe, sobrevivente da guerra civil que deixara marcas traumáticas e insuspeitadas em seu corpo e em sua memória. A cada momento da viagem, revelações dolorosas se sucedem: o exílio de sua mãe jovem, grávida de um rapaz chamado Wahab; o abandono de seu bebê em um orfanato; a atuação política de sua mãe que é presa, torturada e violentada na prisão, durante dez anos sem saber que seu agressor era o filho que tivera na sua tenra juventude, carrasco que a emprenha dos gêmeos, ao mesmo tempo pai e irmão dos mesmos, em uma intrincada e terrível rede de relações familiares. Abordar a questão da transmissão de memórias na peça Incendies não pode deixar de lado a experiência vivida no feminino através do pacto de uma promessa feita pela mãe dos gêmeos a sua própria avó que, rompendo o previsível legado da submissão imposta às mulheres na cultura muçulmana, ensina à neta a se liberar do ciclo da miséria através dos estudos. Por sua vez, ao atribuir a seus filhos gêmeos a tarefa quase impossível de unir a família despedaçada pelas contingências da guerra, imbuída de dignidade, a mãe lhes acena com a promessa da possibilidade do perdão e da solidariedade visando a quebrar o fio do ódio de modo a resgatar o sentido humano nas relações interpessoais. Na carta deixada pela mãe aos gêmeos ela os faz refletir sobre a intrincada rede de versões de sua história no jogo complexo de sua filiação. Explorando o embaralhamento de papéis em uma mesma trama familiar e de camadas temporais, a figura materna deixa para os filhos a possibilidade de reescreverem e de ressignificarem seu drama:
Jeanne e Simon,
Onde começa sua história? No seu nascimento?
Então, ela começa no horror
No nascimento de seu pai?
Então, é uma grande história de amor. Mas recuando no tempo
Talvez se descubra que essa história de amor
Tem origem no sangue, no estupro
E que, por sua vez,
O sanguinário, o estuprador
Se originou no amor.
Então, Quando alguém perguntar a vocês sobre sua história, Digam que a origem de sua história
Remonta ao dia em que uma jovem Voltou a sua aldeia natal para gravar o nome de sua avó Nazira sobre seu túmulo. Aí começa a história (2009, p. 89-90).
Segundo romance de Wajdi Mouawad, Anima (2012) também se inscreve como narrativa de filiação, por privilegiar a questão de um segredo associado à origem do protagonista que empreende uma longa busca nos sentidos espacial e temporal até se deparar com sua verdadeira identidade. Romance de extrema violência e beleza, o livro se mostra original por ser narrado pelos mais diversos animais (mosca, aranha, cães, pássaros, gato, rato, cobra, carrapato etc...), nem sempre facilmente identificáveis pelo leitor, apesar de indícios sugeridos nos títulos em latim e nos pequenos gestos feitos por esse bestiário muito vasto. Testemunhas atentas a todas as ações do protagonista, estes animais se mostram às vezes violentos, mas sua fúria nada tem de comparável à dos homens, capazes de se comportar como verdadeiros monstros. No romance Anima através da escolha de narradores do reino animal, o autor explora o descentramento de perspectiva, que desloca o ser humano de sua posição central de sujeito do olhar, para representá-lo como objeto do olhar. Poderia também ser aventada aqui a hipótese da perda da capacidade de narrar sua própria história pelo protagonista, sobrevivente amnésico de uma cena traumática, tornado incapaz de fazer o relato de sua existência situada no presente ou no passado distante.
Neste romance, no qual um traumatismo esconde um outro (AUBRY, 2017, p. 145), o caráter investigativo das narrativas de filiação se faz sentir desde o início. Na sua abertura, o texto se reveste de efetiva força impactante, anunciando ao leitor que ele não sairá incólume do processo de leitura, que o força a se deslocar de sua zona de conforto pelo contato com cenas de abjeção de extrema crueldade. A imagem inicial deste romance está centrada em um ato de barbárie: em um dia comum, ao voltar para casa, o protagonista Wahhch Debch se depara com o corpo morto de sua esposa grávida, vítima de um estupro realizado como uma espécie de ritual de profanação feita com golpes reiterados de facadas, plantadas no sexo da vítima. Com a ajuda do médico legista responsável pelo inquérito, Wahhch descobre que o assassino seria um índio mohawk, figura fugidia que encontraria nas reservas indígenas a proteção contra a perseguição policial. Visto como informante da polícia e delator, escapa dos representantes da lei, transitando por vastos territórios, em um percurso pontuado pelos gestos violentos, próprios de um mundo de predadores que se provocam e se entredevoram continuamente.
Atônito e inconformado com o assassinato da esposa, o viúvo se engaja na caça obstinada do índio (Welson Wolf Rooney), que coincide com a busca desesperada de si mesmo nos labirintos da memória. A descoberta do corpo de sua mulher despertara nele impressões de déjà-vu 5 , a serem explicitadas ao longo do romance, que o levam a revisitar sua infância através de flashes de memória. Infância perdida, que lhe teria sido usurpada, como se revela no decorrer do livro. O objetivo dessa perseguição não seria a vingança, mas somente o desejo de olhar o criminoso para constatar que não seria ele próprio o estuprador e assassino de sua mulher. Romance com forte carga psicológica, Anima convida o leitor a desbravar caminhos do inconsciente e a repensar as searas de genocídios silenciados no fluxo da História. No cerne do romance Anima (cujo título nos remete à alma e a animal) se situa a questão identitária, ou mais, precisamente, a perda da identidade. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o confronto entre o protagonista e o assassino de sua esposa 6 deve ser lido à luz da teoria do desejo mimético e do duplo monstruoso de René Girard (1972). No pensamento girardiano, o desejo é fundamentalmente mimético: o sujeito deseja um objeto porque o rival também o deseja e, ao desejar um objeto, o rival o designa como desejável ao sujeito (p. 204). Se, à primeira vista, colocados em polos oponentes, o protagonista e seu rival parecem distintos, descobre-se que eles formam o duplo monstruoso de que trata Girard.
A busca do protagonista o conduz à descoberta de sua própria história, de seu verdadeiro nome, camuflado por outro, imposto por seu pai adotivo, um dos autores do massacre que, na sua infância, dizimara sua família no campo de refugiados de Chatila7 no Líbano e o “salvara” para perpetuar seu próprio nome. Nome que cobria uma “ligne de faille”, a falha-falta de sua memória e de sua história, falha geológica metafórica, prestes a derrubar sua identidade construída na violência, no segredo, no não-dito e na perda. Ao descobrir o
5 As impressões de déjà vu, que aparecem em várias passagens do romance, se explicam a partir da leitura de Demanze, para quem o sujeito contemporâneo é profundamente habitado e assombrado, sendo o receptáculo de singularidades esparsas e de detalhes biográficos vindos de fora. (2008, p. 49) No romance Anima, e m reiteradas ocasiões, flashes da memória do horror emergem das profundezas do esquecido ou recalcado para assombrarem o protagonista.
6 Na lógica dos desdobramentos especulares que atravessam o livro, o assassinato brutal da esposa do protagonista é reduplicado.
7 Um episódio dramático da história da humanidade foi o massacre de Sabra e Chatila, genocídio de refugiados civis palestinos e libaneses, ocorrido entre 16 e 18 de setembro de 1982, pela milícia maronita liderada por Elie Hobeika, como retaliação pelo assassinato do presidente eleito do país e líder falangista, Bachir Gemayel. O evento teve lugar nos campos palestinos de Sabra e Chatila, situados na periferia sul de Beirute, área que se encontrava então sob ocupação das forças armadas de Israel. A pedido dos falangistas libaneses, as forças israelenses cercaram Sabra e Chatila, bloquearam as saídas dos campos para impedir a saída dos moradores.
horror do trauma ocultado por seu pai adotivo, Wahhch prepara para o outro uma morte terrível, em reparação do mal impetrado contra ele – ainda muito menino – e sua família de origem, tentando passar a limpo uma história de horror. De certo modo, reescreve o peso que envolve sua filiação, através do exercício do legado da violência herdada de seu pai adotivo, confirmando o caráter contagioso da violência na teoria girardiana. No seu périplo investigativo em busca de seu verdadeiro rosto, o protagonista assumiu uma escavação simbólica, movido pelo desejo de elucidação da opacidade de suas origens (DEMANZE, 2008, p. 195). Dá-se, pois, o retorno do que ficara recalcado, silenciado e enterrado, que explode na cena do assassinato do pai adotivo. Tudo leva a crer que, para sair simbolicamente do buraco onde fora enterrado vivo ao lado de cavalos – e onde permaneceria simbolicamente no presente –, o protagonista precisou matar o pai adotivo monstruoso, libertando-se do peso de um legado insuportável. Isso porque ele guardava, no fundo de seu coração, uma vacância na qual se encontrava um defunto, um outro eu que, embora tenha sobrevivido ao massacre, continuava a estar no limbo do esquecimento. Perda a ser resgatada ao longo de sua busca arqueológica nas searas identitárias, como aparece em narrativas de filiação:
O escritor contemporâneo se confronta com a narrativa impossível de sua ascendência, com a palavra emparedada de uma família ferida pela história. A narrativa contemporânea gira em torno de uma falha ou de uma palavra em sofrimento a ser desenterrada (DEMANZE, 2008, p. 29).
Tendo sido usurpado de sua identidade e de sua história, o protagonista do romance Anima teria sido igualmente destituído da possibilidade de narrar seu próprio drama. Para compensar tal perda, recorre a duas estratégias: em seu longo manuscrito centrado no seu momento atual e em flashes de seu passado, incumbe diversos animais de assumir a voz narrativa; no final do livro, delega ao médico legista – a quem envia o manuscrito escrito por ele, escondido através de vozes animais – a responsabilidade de relatar o brutal crime. Como observador habituado ao que há de mais terrível e de mais belo no gênero humano (MOUAWAD, 2012, p. 471) e a fazer relatórios técnicos sem nenhuma criatividade, o legista descobre outra forma de escrita capaz de representar esteticamente o espetáculo macabro da morte.
Sobreviventes e herdeiros de uma perda irreparável, os filhos de Nawal (Incendies) e o protagonista de Anima se mostram capazes de retomar o fio cortado de suas existências. Apesar da dificuldade de retomar suas vidas, o que seria comum entre os sobreviventes de cenas e de histórias de horror (CYTRYNOWICZ, 2003, p. 128), adotam práticas diferenciadas para se
“A arte da memória, assim como a literatura de testemunho, é uma arte da leitura das cicatrizes” (2003, p. 56), ousam tocar na ferida familiar, lembrando que, enquanto arquivo, a pele é o receptáculo do que existe de mais profundo.
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Bernadette
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Eurídice Figueiredo
I, too, am America. Langston Hughes
Neste artigo proponho uma leitura dos romances Sonhos bloqueados de Laura Honda-Hasegawa (1991) e Nihonjin de Oscar Nakasato (2011), e do livro de crônicas Eu também sou brasileira de Marília Kubota (2020), publicados nos últimos trinta anos. Todos os autores pertencem à terceira geração: Laura Honda-Hasegawa nasceu em 1947, Oscar Nakasato em 1963 e Marília Kubota em 1964. Dentre os imigrantes com comunidades numerosas, os descendentes de japoneses são, talvez, os menos visíveis no panorama da literatura brasileira. Segundo Marta Matsue Yamamoto Otenio (2015), Sonhos bloqueados foi a primeira obra literária de ficção publicada por uma nikkei (descendente de japoneses); Laura HondaHasegawa integrou ainda a Antologia de Poesia Nikkei (1993) e a antologia de contos Pátria estranha (2002).
Nas narrativas de filiação, a família ocupa o centro de atenção, conforme as análises dos críticos franceses Dominique Viart e Laurent Demanze, criadores do conceito: é através do escrutínio da anterioridade que o sujeito pode chegar a entender sua própria interioridade. No caso francês, o sujeito
em crise vai buscar na vida dos pais e dos avós uma história que possa, de alguma maneira, explicar a situação em que ele se encontra. O movimento que a narrativa de filiação faz é do presente para o passado, do sujeito atual em direção a seus ancestrais, diferente, portanto, do romance genealógico que parte do passado (do ancestral) para chegar até o presente (o sujeito da enunciação/o protagonista da história).
O uso do conceito de narrativa de filiação, no contexto dos escritores nipo-brasileiros, ganha uma dimensão mais coletiva e menos familiar, ainda que passem, necessariamente, pela história da família. As crônicas de Marília Kubota são autobiográficas, enquanto os dois romances se apresentam como ficções, embora tenham, sem dúvida, inspiração autobiográfica. Assim, apesar de os romances terem um corte mais tradicional, vou alargar o conceito dos críticos franceses para uma narrativa de etnofiliação, já que os escritores resgatam um passado sofrido dos antepassados que emigraram para o Brasil na primeira metade do século XX. Não deixa de ser uma maneira de interrogarem a anterioridade para tentar entender sua interioridade enquanto nikkeis. Como a identidade se constrói através do contato com o Outro, é preciso fazer reviver esse outro do passado, aquele imigrante inadaptado, que mal falava o português, para que os narradores do presente possam se conhecer melhor, eles que dominam a linguagem da literatura. “A narrativa de filiação, tomando a forma autobiográfica ou fictícia, é, pois, o modo privilegiado de escrita do sujeito” (VIART, 2008, p. 92). Dominique Viart (2008, p. 20) considera que o sucesso do aforismo do poeta René Char, Notre héritage nous est livré sans testament (“Nossa herança nos é transmitida sem testamento”), exprime a consciência de uma herança, em geral difícil de carregar, e a necessidade de interrogar o passado, não para imitá-lo, mas para se conhecer através dele. A narrativa de filiação dá novo fôlego à intriga e à história, o que desperta a curiosidade do público. Ao voltar à vida dos ancestrais, interroga justamente essa herança que não se entende direito, já que não havia testamento nem modo de usar, como uma bula de remédio. Desse modo, ela se caracteriza pela ausência de linearidade, pela tensão entre o real e o ficcional, pela investigação, pelo recurso a hipóteses, plausíveis ou implausíveis, e a preocupação com a questão social. A narrativa de filiação parte de uma falta: “pais ausentes, figuras frágeis, transmissões imperfeitas, valores caducos” (VIART, 2008, p. 94). Essa “escrita da restituição”, nas palavras de Viart, coloca em dúvida suas próprias investigações e desconfia de discursos e conceitos, recusa as ideias prontas e as verdades bem estabelecidas. A postura enunciativa é explicitada e o leitor sabe quem fala e de que lugar fala o narrador.
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Laurent Demanze (2008, p. 22) detecta uma preocupação arqueológica do escritor contemporâneo que, ao perscrutar as sobrevivências do passado, vê revelada uma parte desconhecida de si e, nesse sentido, faz uma “retrospecção hermenêutica”. Ele também aponta para a necessidade de escavação de vestígios de uma herança despedaçada, difícil de ser transmitida. “É no espelho do outro que o indivíduo contemporâneo se descobre, ao elaborar uma narrativa em que a ficção se mistura às lembranças e a escrita de si à fábula familiar” (2008, p. 9). A narrativa de filiação se ancora numa ferida, entre testemunho travado e homenagem às figuras apagadas da ascendência. “Arquivar as vidas passadas, inventar e inventariar as genealogias de si, eis o que faz o sujeito melancólico deste fim de século” (DEMANZE, 2008, p. 14).
Tanto na tese de doutorado de Oscar Nakasato (publicada em livro em 2009) quanto na de Marta Matsue Yamamoto Otenio (2015) é evocado o momento fundador da imigração japonesa: o desembarque, em 18 de junho de 1908, de 781 pessoas a bordo do navio Kasato-Maru. Nos anos subsequentes, outros navios trouxeram mais imigrantes destinados a trabalhar nas lavouras de café. O Japão estimulou a partida, negociando com o governo brasileiro, devido ao excesso populacional e às dificuldades econômicas do país. O topos do navio, da chegada, da inadaptação inicial, é uma constante tanto na literatura dos afro-descendentes (Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz) quanto de descendentes de imigrantes judeus (Tatiana Salem Levy, Michel Laub, Adriana Armony) e sírio-libaneses (Salim Miguel).
As condições de vida causaram um choque nos japoneses recémchegados, como se vê em todos os textos sobre o assunto, inclusive no filme Gaijin, caminhos da liberdade, de Tizuka Yamasaki (1980). “As péssimas condições de moradia, nenhuma assistência médica ou ambulatorial, o trabalho árduo e insalubre nos cafezais, a contabilidade desonesta dos salários (não) pagos pelos fazendeiros (...) incitaram muitos imigrantes japoneses à revolta e fuga massiva” (OTENIO, 2015, p. 21). Em um segundo momento, o governo do Japão passou a financiar a compra de terras destinadas aos imigrantes de modo a não terem de enfrentar a mesma penúria dos primeiros desembarcados. Hoje a comunidade nipo-brasileira é estimada em 1.500.000 de habitantes.
A inserção e a assimilação não foram fáceis nem imediatas, devido às disparidades culturais e também aos preconceitos de ambos os lados. A língua, a religião, os hábitos alimentares, as tradições, tudo era muito diferente, havia um verdadeiro abismo que separava as duas culturas. Os japoneses tinham orgulho de seu país, veneravam um imperador que afirmava ter origem divina, desprezavam os brasileiros, por eles chamados de gaijin, como se os brasileiros fossem os estrangeiros em sua própria terra. Enfim, um início difícil que,
de alguma maneira, os escritores querem rememorar para reverenciar essa herança talvez difícil de carregar. Paul Ricœur (2007, p. 101) postula que a “ideia de dívida é inseparável da de herança. Somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam”. Os descendentes dos imigrantes japoneses situam-se diante da aporia que consiste em lidar, ao mesmo tempo, com a necessidade e a dificuldade de transmitir uma herança, sentindo a injunção do dever de memória. Ao fundo de suas obras os narradores vislumbram fantasmas do passado através de fotos esmaecidas, lembranças truncadas, traumas camuflados.
O período da Segunda Guerra tornou-se particularmente complicado a partir do momento em que o Brasil declarou guerra ao Eixo porque o Japão, alinhado com a Alemanha e a Itália, passou a ser considerado inimigo. Os imigrantes oriundos desses três países sofreram perseguição, proibição de falar, publicar e ensinar em suas línguas maternas. O personagem do romance de Nakasato é preso por ensinar japonês às crianças. No pós-guerra, ao contrário dos alemães e, sobretudo, dos italianos, que se adaptaram ao novo país, os nikkeis foram pouco maleáveis, as famílias não aceitavam os casamentos mistos, os pais reprimiam as filhas, impondo o omiai (casamento arranjado).
Oscar Nakasato, que ganhou o prêmio Jabuti em 2012, utiliza a primeira pessoa para contar a história da família do narrador de Nihonjin: seu avô Hideo chegou ao Brasil com sua esposa Kimie, mulher frágil e sonhadora, que morreu jovem. Do segundo casamento, com Shizue, nasceram seis filhos, quatro homens e duas mulheres. O narrador, cujo nome, Noboru, só é mencionado uma vez, é filho de Sumie, que abandonou o marido e os três filhos pequenos. As informações sobre a família são colhidas diretamente do avô, ainda vivo no presente da enunciação, e do primogênito, tio Hanashiro, já que o narrador não tem contato com a mãe.
O incipit do romance inclui uma reflexão sobre a memória, ao evocar a figura de Kimie, de quem ninguém se lembra. Há uma fotografia dela guardada numa caixa de camisa, junto a outras fotografias antigas, esmaecidas, imagens que se desvanecem assim como as lembranças, diante disso “se necessita preencher as elipses, realçar os contornos para que se possa ver, ou inventar traços e cores em folhas em branco” (NAKASATO, 2011, p. 9). Aqui fica claro que memória e imaginação andam juntas, inventa-se aquilo que não se sabe, o narrador imagina-a ao lado do avô no navio que os trouxe do porto de Kobe para o de Santos. Esse é um elemento que indicia o romance como narrativa de filiação porque o narrador se coloca desde a primeira página claramente querendo reconstituir uma história familiar fraturada. Kimie é uma figura fantasmática, morta jovem demais; talvez, por isso mesmo, ela
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intriga e inquieta o narrador, quiçá ela evoca a mãe, desaparecida de sua vida também muito jovem. Não por acaso, os nomes das duas terminam com a mesma sílaba (Kimie e Sumie). Duas mulheres que inspiram o Unheimlich, aquele sentimento de inquietante estranheza descrito por Freud, porque são, ao mesmo tempo, familiares e estranhas, próximas e longínquas.
O objetivo do avô ao aceitar vir para o Brasil era de ganhar muito dinheiro durante alguns poucos anos, voltar para o Japão e abrir um restaurante em Yokohama, sonho que nunca se realizaria. Como explica Édouard Glissant
(1981, p. 30), pensando no caso dos descendentes de africanos escravizados, a “primeira pulsão de uma população transplantada [...] é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se deve mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação”. Ora, a volta ao Um original é imaginária e, na realidade, ao se efetuar, pode-se transformar em frustração e revolta porque o transplantado já estava hibridizado. A geração do avô não conseguiu realizar o seu sonho; a “volta” se daria na terceira geração, com o surgimento da figura dos dekasseguis. Em Nihonjin ninguém na família viajou ao Japão, o narrador é o primeiro a empreender essa viagem de “retorno”, porque ele não é um dekassegui qualquer; não precisa ganhar dinheiro para trazer de volta, ele é professor, casado com uma advogada gaijin (brasileira) e pai de um filho e uma filha; vai ao Japão em busca de suas raízes, “as imagens do Japão distante não eram hipóteses, sensações inéditas, mas lembranças, pedaços de uma sinuosa estrada secular, em cujas margens [ele] reconhecia as pedras e os arbustos” (NAKASATO, 2011, p. 173). Em outras palavras, resgatar essa anterioridade faz parte do seu processo de autoconhecimento.
Já Kimiko, a narradora-protagonista de Sonhos bloqueados, no fim do romance, também parte para o Japão como dekassegui, com um contrato de dois anos; ela tem a intenção de ganhar dinheiro suficiente para comprar uma casa para morar com seus filhos em São Paulo porque o que ganha como cabeleireira não é suficiente. As duas cenas se passam durante o governo do presidente José Sarney (1985-1990), período com taxa de inflação altíssima, que provocou o êxodo de brasileiros para o exterior.
Honda-Hasegawa não reconstitui a chegada dos primeiros imigrantes, mas a família da protagonista é muito semelhante à do romance de Nakasato, com pai autoritário, irmão mais velho com poderes sobre os menores, mulheres submissas, tentativa de conservar as tradições culinárias. Em um único momento trata desse passado de miséria no Japão que expulsou os camponeses para essas terras tropicais em contraste com a situação atual de potência. “Não consigo conceber tanto progresso e tamanha riqueza do Japão de hoje,
comparando com o que eu ouvia de meu avô, nos meus tempos de criança...”
(HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 180).
Ainda que o formato de Nihonjin se aproxime mais do romance genealógico tradicional do que da narrativa de filiação, a inscrição da figura do narrador nessa pesquisa sobre a história da imigração japonesa o insere na problemática da filiação; para além da família nuclear, o narrador de Nakasato refaz o percurso da comunidade nipo-brasileira à qual pertence, explorando as dificuldades do início de vida dos imigrantes nas fazendas de café e, depois, num sítio arrendado e, finalmente, em São Paulo. Ele sabe que faz parte dessa história, por isso quer “reencontrar” no Japão tudo aquilo que já incorporou como sendo seu: a areia branca que vai pisar com os pés descalços, o campo de cerejeiras, o monte Fuji coberto de neve.
Entre um passado de humilhações e um futuro sonhado no Japão dos ancestrais, o narrador inventa tanto um quanto o outro a partir de fragmentos.
Na chegada dos avós, imagina Kimie decepcionada com as condições de moradia. “Depois observou a casa acanhada, de madeira encardida pelos anos, a mancha escurecida pelos respingos da chuva na parte inferior formando um largo rodapé, as janelas de duas folhas fechadas” (NAKASATO, 2011, p. 19). Penetrando no ambiente, sente o cheiro de urina, de comida estragada; o piso da casa é de chão batido, os quartos são separados por cortinas, não tem móveis, nem cama, nem armário, nem mesa e cadeiras. É desolador. No dia seguinte, o casal e Jintaro, o agregado, vão debulhar milho para fazer colchões com palha, recebem enxadas para capinar.
Ao desembarcarem no porto de Santos, os japoneses vestiam roupas ocidentais, o que devia ser desconfortável para eles; ficaram chocados quando viram, pela primeira vez, pessoas diferentes, “a visão assustadora dos negros, estivadores carregando enormes cargas, gente jamais imaginada, nunca vista em gravuras de livros” (NAKASATO, 2011, p. 17). Hideo nunca se aproximaria de negros, seu preconceito é muito arraigado: “Me disseram que os negros foram escravos no Brasil, que têm raiva de todos os que não são como eles. São uma gente menor, de baixo valor” (NAKASATO, 2011, p. 24). Ironicamente, os japoneses substituíram os negros após a abolição e as condições que lhes eram oferecidas pelos fazendeiros não eram melhores, com exceção do fato que eles não eram escravos e não eram castigados. O sino usado para chamar os antigos escravos continuava lá na mesma função, funcionando como metonímia da similaridade da posição ocupada pelos trabalhadores espoliados. Todavia, a esposa Kimie, muito mais aberta e sensível, tornou-se amiga de Maria, uma negra conhecedora das plantas, que sabia tirar bicho-de-pé e administrar poções e chás de ervas medicinais.
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Se os japoneses tinham preconceitos em relação aos negros e aos brasileiros em geral, eles também foram vítimas de rejeição. Hideo sente isso mais fortemente em São Paulo, durante a guerra. Um indivíduo, chamado José de Oliveira, entra em sua loja e começa a ofendê-lo. Através do uso do discurso indireto livre, o narrador dá uma explicação histórica, colocando na mente de Hideo aquilo que, provavelmente, ele não teria condições de saber: que alguns consideravam os amarelos um estorvo, que o deputado Fidélis Reis fizera uma proposta, em 1923, de reduzir a entrada dos japoneses. Os índios, na visão estereotipada desse indivíduo, eram criaturas tranquilas porque sabiam o seu lugar, dentro das matas, ou seja, à margem da sociedade moderna. O romance dá espaço para os conflitos de dois filhos de Hideo: Haruo, que desde criança queria ser brasileiro e não nihonjin (japonês), e Sumie, que se apaixonou por Fernando, um gaijin: solteira, hesitou a fugir com ele, mas, dez anos depois, casada, mãe de três filhos, ousou buscar a felicidade. O personagem que emblematiza o conflito da segunda geração é Haruo que, desde pequeno, aprendeu na escola rural que era brasileiro; a professora insistia em ensinar que todos eram brasileiros para evitar o bullying sofrido pelos nikkeis que escutavam “Japonês tem cara chata, come queijo com barata” (NAKASATO, 2011, p. 61). Marília Kubota também se refere a essa frase, assim como à letra apócrifa do Hino da Independência: “Japonês tem quatro filhos/Cada um tem outro pai”. Hideo entra em crise porque não aceita que seu filho seja brasileiro, ao mesmo tempo, não pode desacreditar a voz da professora; já o irmão mais velho explica a Haruo que na escola eles são brasileiros, em casa são nihonjins. O irmão tem a vaga percepção de que eles ocupam esse entre-lugar, devem aceitar esse duplo pertencimento. Apesar dos duros castigos ministrados pelo pai, Haruo persiste em sua obstinação, ousando dizer que sua cara podia ser japonesa, mas seu coração era brasileiro. Essa recusa de Haruo em se dobrar às negociações identitárias o levará à morte ao final da Segunda Guerra devido à postura radical dos que advogavam a vitória do Japão.
Hideo é um japonês absolutamente fiel ao imperador; apesar de se sentir desamparado diante da impossibilidade de realizar o projeto de ganhar dinheiro e voltar para o Japão, ele nunca cogitou culpar o imperador que os havia enganado com um discurso que faltava à verdade, embora outros membros da comunidade tenham explicitado que haviam sido ludibriados por ele. E durante a guerra, já morando em São Paulo, no bairro da Liberdade, onde abriu uma loja, ele se filiou ao grupo clandestino chamado Shindo Renmei. Não aceitando a derrota do Japão, o grupo dos kachigumis começou a fabricar fake news sobre o fim da guerra, negando os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, o reconhecimento do imperador de que ele não era uma divindade,
era um homem como os outros, e sua rendição aos americanos. O Shindo Renmei decidiu matar os nikkeis que reconheciam a derrota, chamados por eles de makegumis (derrotistas). Fernando Moraes (2000), no livro-reportagem Corações sujos, conta em detalhes todo esse incrível episódio; o livro foi adaptado em 2011 para o cinema por Vicente Amorim. O Shindo Renmei perpetrou 23 assassinatos, vários responsáveis foram presos posteriormente. Haruo representa, no plano da ficção, as vítimas da organização, o que é motivo de um sentimento de culpa em Hideo até o presente da enunciação. A história do Shindo Renmei é também mencionada por Marília Kubota, que afirma que o tema ainda é tabu na comunidade nipo-brasileira. O sistema patriarcal era rígido, as mulheres tinham um estatuto subalterno naquelas famílias japonesas: na hora das refeições, elas serviam os homens e só depois é que podiam comer; os homens decidiam os casamentos, o que os filhos e a esposa podiam fazer. Não há discussão, a ordem paterna é irrevogável. No entanto, as mulheres podem ter vontades mesmo contra a vontade, de modo que Kimie acaba cedendo ao agregado Jintaro, ela que estava cansada do silêncio e dos maus modos do marido; apesar de ser uma mulher honesta, ela “sentiu, feliz, que o peso de Jintaro não lhe pesava, que ele se colocava suavemente sobre seu corpo, que o seu tamanho, por fim, se ajustava a ela” (NAKASATO, 2011, p. 39). Jintaro é poeta e sensível, Kimie é sonhadora, ambos tinham afinidades, mas Jintaro partiu para a cidade e Kimie morreu de tristeza e de saudade, esperando cair a neve.
Na geração dos filhos de Hideo é Sumie quem rompe com a ordem patriarcal e vai tentar ser feliz com Fernando, o homem de sua vida. O narrador era criança quando a mãe partiu; depois disso, só a viu duas vezes. No presente da enunciação, ele diz: “Às vezes penso em ir vê-la. Eu devo ir vê-la. Talvez não seja essa mulher que eu traduzo em palavras, muito mais criação de um homem que tenta compreender aquela que abandonou o marido e os filhos do que a mãe que conheceu de verdade” (NAKASATO, 2011, p. 129). Esse é um dos momentos em que se percebe um narrador mais autorreflexivo e autocrítico porque se interroga sobre sua criação literária. Sumie foge de casa com Fernando, que a ama até o fim da vida. Em paralelo à história de Sumie, o narrador conta uma outra, a de Sanae, que teve um desfecho triste: abandonada, ela volta para a casa dos pais com um filho no colo e não é admitida no seio da família. Essa atitude patriarcal não é exclusiva da comunidade japonesa, os brasileiros da primeira metade do século XX faziam a mesma coisa, como se pode ver no romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, em que o pai português se
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recusa a aceitar de volta Guida, a filha “perdida”. Ironicamente, na velhice, após a morte da mulher, é na casa de Guida que ele vai morar. A subalternidade das mulheres é evocada por Marília Kubota através da apresentação do culto dos fantasmas no Japão; narrativas budistas têm yûrei, fantasmas femininos presentes também no teatro Nô, que representam mulheres que foram mortas de forma violenta. Ela só se deu conta de que essas narrativas encobriam a violência doméstica após ter lido Em louvor da sombra de Junichiro Tanizaki; ao evocar o padrão de beleza das mulheres – maquiagem branca no rosto, batom verde e dentes enegrecidos –, prática vigente até o século XIX, fica claro que elas simulavam imagens de fantasmas. Esperava-se das mulheres submissão, obediência e silêncio, além de desempenharem seu trabalho sem reivindicar nada, sem reclamar. Marília Kubota cita a escritora estadunidense Julie Otsuda que escreveu: “até meados do século XX, uma japonesa bem-educada devia confundir-se com os móveis da sala” (KUBOTA, 2020, p. 75; grifos meus). A metáfora do móvel é retomada por Kimiko, de Sonhos bloqueados, que pensa: “será que eles me viam como um móvel da casa, que bastava ficar lá dentro, cumprindo a minha função, sem necessidade de tomar ar, de ver outras pessoas, de aprender, viver a vida? ” (HONDAHASEGAWA, 1991, p. 73, grifos meus).
Todas as personagens importantes em Sonhos bloqueados são femininas, a começar da protagonista-narradora, Kimiko. Tanto o pai quanto o irmão mais velho e o marido são homens autoritários, pouco falantes, nada expansivos, que tratam as mulheres friamente. Além de contar sua própria vida, Kimiko fala de suas irmãs Eiko e Teresa, de sua filha Érica, das amigas do tempo da pensão, da dona do salão e até da patroa japonesa para quem faz a faxina no sábado. Os homens são figuras chapadas, diferentemente do romance de Oscar Nakasato em que predominam personagens masculinas. De maneira significativa, as mulheres que tentam ser independentes acabam sozinhas: Eiko se separa do marido, Teresa não se casa, o marido de Kimiko se suicida após a morte acidental do filho mais velho; mesmo Érica, a jovem filha de Kimiko, confessa à mãe em carta que usou o namorado lindo como troféu para se exibir diante das colegas de escola que zombavam dela. E, ironicamente, o irmão mais velho, que herda mais bens porque lhe compete cuidar dos pais, casa-se com uma gaijin que “expulsa” o sogro de casa depois de tratá-lo muito mal. Ele acaba indo morar na casa da filha Eiko.
A narradora de Sonhos bloqueados, sendo também a protagonista, usa a primeira pessoa, porém em algumas passagens ela não está realmente implicada, tornando-se uma narradora neutra, distanciada. A narrativa é predominantemente linear, ainda que haja algumas voltas a tempos passados.
Em Nihonjin existe uma alternância entre um narrador onisciente neutro, extradiegético, e o narrador em primeira pessoa, autodiegético. Quando diz “Eu percorri a colônia, observando as casas” (NAKASATO, 2011, p. 19), ele tenta imaginar aquilo que o avô e o tio lhe contaram, sua vivência é escritural e não existencial. Às vezes, o narrador insere seu “eu”, mas é no início e, principalmente, no final do romance, que ele se expande como personagem, exprimindo seu desejo de ir ao Japão e beber na fonte de seus ancestrais. Eu também sou brasileira de Marília Kubota é uma coletânea de crônicas que, lidas em seu conjunto, contam uma história de família da autora. Ela estabelece um paralelo do título de seu texto com um poema de 1930 de Carlos Drummond de Andrade que diz “eu também já fui brasileiro, moreno como vocês”. Todavia, para mim, o título evoca o poema, de 1925, “I, too, sing America”, de Langston Hughes, poeta da Harlem Renaissance que reafirma que ele, negro, também é americano. Em diálogo com Walt Whitman, considerado o poeta da América, Langston Hughes escreveu:
I am the darker brother. They send me to eat in the kitchen When company comes, But I laugh, And eat well, And grow strong. Tomorrow, I´ll be at the table When company comes. Nobody´ll dare Say to me, “Eat in the kitchen”, Then.
Besides, They´ll see how beautiful I am And be ashamed I, too, am America.
Como no livro Becos da memória de Conceição Evaristo, na capa do livro de Kubota aparece uma foto de família assim como na Apresentação, na qual a autora afirma que, sendo de ascendência japonesa, tendo sempre vivido na comunidade nipo-brasileira, só a partir da comemoração do centenário da imigração japonesa ela começou a se sentir brasileira. Os nikkeis continuam sendo vistos de forma estereotipada: “somos quitandeiros ou pasteleiros, inteligentes, bons em matemática, disciplinados, obedientes, falamos a língua japonesa. Os homens são guerreiros (samurai) e praticam artes marciais e as
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros
mulheres, gueixas (artista que entretém homens) ” (KUBOTA, 2020, p. 16).
A clicherização se dá na abordagem por desconhecidos que repetem palavras como arigatô (obrigado) ou dizem que gostam de sushi. Pior ainda, a piada de comer feijoada com sushi, “símbolo” da integração.
A narrativa de filiação dos imigrantes remonta aos avós que vieram para o Brasil; em sua cidade natal, na província de Saga, Miya, a avó materna de Marília Kubota, gostava de ler e, como só existia biblioteca na igreja presbiteriana, converteu-se ao protestantismo para ler Vítor Hugo; ela praticava a arte do tanka, uma das formas poéticas japonesas; no Brasil, casou-se com Kunio, que tocava shakuhachi, flauta de bambu. Como muitos, saíram do interior e se mudaram para São Paulo, onde um dos filhos comprou um sobrado no Jabaquara. O avô Kunio vendia algodão-doce em São Paulo, o que era uma festa para os netos; depois de sua morte, em 1974, a avó Miya costumava passar férias na casa da narradora; não era fácil a comunicação já que a mãe falava com a avó em japonês enquanto as crianças, os netos, não falavam a língua. Do lado paterno, o avô Kingo saiu do porto de Nagasaki, sua cidade natal, 15 anos antes do início da guerra; no Paraná, tinha uma casa de praia porque gostava de pescar, local em que a narradora criança se divertia nas férias. Ele instalou uma bicicletaria em Paranaguá; o pai montava bicicletas reciclando peças de bicicletas velhas; Marília Kubota diz que tinha vergonha de seus pais, pessoas sem instrução, donos de uma loja com uma oficina suja e bagunçada. De certa maneira, todos aqueles que têm acesso à educação e mudam de classe social sentem, ao mesmo tempo, vergonha dos pais e sentimento de culpa, como mostrou Pierre Bourdieu. Em um curto relato autobiográfico, Esquisse pour une auto-analyse, Bourdieu (2004) usa o termo “trânsfuga de classe” para designar as pessoas (como ele próprio) que mudam de classe social através dos estudos; o abandono dos padrões comportamentais da família e a aquisição de novos hábitos culturais podem provocar o sentimento de traição aos genitores. A superação da vergonha de Marília Kubota veio na idade adulta quando organizou a exposição Bicicletas Caiçaras com poemas dela e fotos de Lauro Borges, passando a ter um olhar mais poético sobre os ciclistas. Kubota insiste bastante sobre sua timidez. Como sempre sentiu dificuldade de se apresentar em público, teve de se esforçar para superar, pelo menos parcialmente, o seu bloqueio. Fez terapia, estudou e refletiu sobre as condições culturais que provocaram essa timidez patológica. “Nem sempre consigo escrever quando convivo com o demônio. Mas quando consigo, dou um passo a mais para me libertar de suas garras” (KUBOTA, 2020, p. 37). Atualmente participa de saraus e bate-papos, dá oficinas de criação literária, mas continua achando desafiadora a sua exposição nesses eventos. Kimiko, a
personagem de Sonhos bloqueados, é também bastante tímida e foi submissa ao pai e ao marido; ao ficar viúva, mais autônoma, começou a ter mais iniciativa, ainda que não tenha chegado a ser uma pessoa ousada. Talvez o ato mais arrojado de sua vida tenha sido a decisão de partir para o Japão, juntamente com 27 mulheres que não conhecia.
Marília Kubota (2020, p. 61) destaca a importância do feminismo e da independência econômica das mulheres para que não dependam dos homens, não precisem do casamento como solução de suas vidas. Quando são autônomas, percebem que as velhas estruturas sociais são obsoletas. “Ouvir estas histórias é um alento. Prova de que as conquistas sociais não retrocedem por força de decretos ou propaganda política”.
Apesar de tanto Nakasato quanto Marta Otenio tenderem a ver as transformações dos nikkeis como dualidades, creio ser mais adequado detectar um processo de transculturação, tal como foi concebido pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969). Em Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar [1940], ele explica que o neologismo – transculturação – vinha substituir os conceitos que vigoravam até então (desculturação e aculturação), rígidos e unívocos, inadequados para exprimir a complexidade das transmutações ocorridas em todos os níveis: econômico, institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, psicológico, sexual. “Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste só em adquirir uma cultura diferente, [...], mas que o processo implica também necessariamente perda ou desenraizamento de uma cultura precedente” (ORTIZ, 1963, p. 99, grifos do autor).
Se os japoneses resistiram às mudanças, seus descendentes foram, paulatinamente, adquirindo a língua, os padrões de comportamento, as roupas, as práticas culinárias, ao mesmo tempo em que divulgavam os seus à população brasileira. Em todas as obras há muitas referências aos pratos típicos da cozinha japonesa: onigiris, misso-shiru, shirogohan, tsukemono, sashimi. Apesar de serem muito apegados à culinária dos ancestrais, aos poucos, os nikkeis vão adotando pratos brasileiros, produtos locais vão entrando na preparação e hibridizando os hábitos alimentares. Kimiko gostava de fazer macarronada nos domingos, seu filho mais novo não abria mão do brigadeiro em seu aniversário. A festa de casamento de Yumi reúne os salgadinhos brasileiros e os pratos japoneses, numa demonstração de abertura para a culinária local.
“Coxinhas, croquetes e bolinhos de bacalhau quentes e dourados disputavam cada pedaço da mesa, lado a lado com bolinhos de arroz enrolados em alga marinha e aperitivos de peixe cru” (HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 77). A narradora observa que os brasileiros eram reticentes ao experimentar as
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros
iguarias japonesas, mas isso mudou muito desde então, com a popularização dos restaurantes japoneses no Brasil.
A assimilação ao padrão de beleza ocidental leva Érica, a filha de Kimiko, a operar os olhos, o que é criticado pela narradora de forma veemente; todavia, contraditoriamente, ela faz permanente nos cabelos e os tinge de acaju, o que não deixa de ser uma tentativa de mudar de fisionomia. Olhos rasgados e cabelos lisos são, talvez, as duas características mais visíveis do tipo japonês (ou chinês, coreano, etc) ao passo que na população negra é a cor da pele e os cabelos.
Esses escritores, ao reconstituírem uma genealogia marcada por rupturas, traumas e sofrimentos, praticam também um “dever de memória” em relação à comunidade à qual pertencem. “O escritor precisa rememorar as palavras da tribo. Não só a sua vida. A vida particular em contexto universal. Ao ler rememorações escritas nos identificamos. Quem escreve espelha a vida de um leitor” (KUBOTA, 2020, p. 63). A partir de Walter Benjamin, ela afirma que a rememoração é própria dos romancistas, a reminiscência, dos poetas. A reminiscência teria um poder mágico, já que os poetas são distraídos, não lembram nada. Assim, eles inventam mais que lembram. “Para o poeta, lembrar e esquecer têm o mesmo peso. Lembramos pouco, inventamos muito. Assim a roda do mundo se move. A rememoração é essência da literatura” (KUBOTA, 2020, p. 64). Para Viart (2011, p. 157), na confusão da contemporaneidade, com a perda de referências, o sujeito procura reconstruir a história de suas origens a fim de compreender melhor a sua situação e a sua herança.
BOURDIEU, Pierre. Esquisse pour une auto-analyse. Paris: Raisons d’Agir, 2004.
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OTENIO, Marta Matsue Yamamoto. Sujeitos diaspóricos e negociações identitárias: o entre-lugar em Brazil-Maru e Sonhos bloqueados. (Tese de doutorado), Assis, UNESP, 2015.
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VIART, Dominique ; VERCIER, Bruno Le roman français au XXº siècle. Paris: Armand Colin, 2011.
Não te guardes Que tudo é provisório.
Myriam Fraga, O risco na pele, Poesia reunida.
La pensée de la trace est celle qui s’oppose aujourd’hui le plus valablement à la fausse universalité des pensées de système.
Édouard Glissant, Introduction à une Poétique du Divers
O fluxo narrativo constitutivo de “nossas histórias, nossas memórias, nossa tradição e nossa identidade” (GAGNEBIN, 2006, p. 111) relaciona-se estreitamente à escrita, por sua capacidade de traduzir a linguagem oral. Além disso, ao se contar uma história, sempre são operadas escolhas inerentes à lógica discursiva, as quais supõem privilegiar, mas também esquecer e silenciar. Sabe-se que a “emergência da memória” ocupa um lugar preponderante nas questões culturais contemporâneas das sociedades ocidentais (HUYSSEN, 2000) e que a tradição é a “persistência da memória” (MIGNOLO, 2003), embora o vivido possa ser recuperado não na sua integralidade, mas de modo fragmentado e lacunar. Como sublinha Aleida Assmann,
“O problema da tradição – e com ele o problema da memória cultural – tornase muito mais complexo no momento em que não se trata mais de anotar e ler contra o esquecimento, mas de incorporar esse esquecimento como elemento constitutivo no processo de transmitir e legar coisas do passado” (2011, p. 229).
Esses fragmentos e lacunas, rastros e vestígios são solo fértil no campo literário:
Os textos literários nos ensinam que as reminiscências se recompõem através dos vestígios, sendo que os espaços lacunares são completados com a invenção, o empréstimo e a imaginação já que o vivido é limitado no tempo, enquanto o acontecimento lembrado é sem limites, para retomarmos mais uma vez os ensinamentos incontornáveis de W. Benjamin para os estudos da memória e dos rastros (BERND, 2017, p. 381).
A proliferação das “formas e variações autobiográficas” vem transformando o romance contemporâneo, que incorporou significativamente “procedimentos das chamadas escritas de si” (FIGUEIREDO, 2013). Já na virada do século, Dominique Viard (1999), ao calcar o termo de “romance de filiação”, enfatizava o lugar de destaque ocupado pela temática familiar na literatura contemporânea. Se a “saga”, tal como a definiu Massaud Moisés (1982), está relacionada a narrativas que abordam histórias de famílias reais, com fatos verídicos mas também ficcionais, Laurent Demanze (2008) sublinha que o romance familial, o romance das origens e o romance de filiação são três formas narrativas que se interpenetram. O romance de filiação compõese a partir de “investigações subjetivas, agenciamentos crítico e tradições narrativas”, com as seguintes especificidades:
Do romance familiar, ele toma emprestada a inquietude identitária de uma narração que reconfigura, entre traição e transfiguração, entre real e ficção, as desavenças do sujeito com a estranheza da família. Do romance das origens, ele toma emprestado o incessante entrecruzamento da memória familiar e da memória intertextual, segundo um vertiginoso jogo de mises en abyme, no qual investigação genealógica e escavação intertextual se entrelaçam. Mais distanciada do romance genealógico, nem por isso a narrativa de filiação deixa de destacar as identidades subterrâneas da duração longa, e o alargamento às dimensões de uma sociologia crítica (DEMANZE, 2008, s/p.)1
1 Nossa tradução do original: “Au roman familial, il emprunte l’inquiétude identitaire d’une narration qui reconfigure, entre trahison et transfiguration, entre réel et fiction, les démêlés du sujet avec l’étrangeté familiale. Au roman des origines, il emprunte l’incessant entrecroisement de la mémoire familiale et de la mémoire intertextuelle, selon un vertigineux jeu de mises en abyme, où investigation généalogique et fouille intertextuelle s’entrelacent. Plus distant envers le roman généalogique, le récit de filiation n’en souligne pas moins les identités souterraines de la longue durée, et l’élargissement aux dimensions d’une sociologie critique”.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
Dentre as variantes dos romances de anterioridade (centrados em um ancestral, familiar ou mítico), Zilá Bernd (2018, p. 47) aponta o romance memorial e o romance de filiação. Em ambos, a “interioridade” do eu-narrador é menos proeminente do que a “anterioridade”. Se o primeiro é um “aspecto pós-moderno da saga” que privilegia traços e vestígios constituintes da memória cultural, o segundo evoca o percurso de um ancestral enquanto herança a ser repudiada ou reivindicada.
Partindo desses pressupostos teóricos, pretende-se analisar o romance ru, de Kym Thùy (2009) que aborda uma história de migração do Vietnã para o Canadá, levando em consideração que “No âmbito das mobilidades culturais, memória e imigração são temas interconectados, posto que deflagram, nos arquivos e na bagagem da existência, as marcas deixadas pelo trânsito dos indivíduos, os quais partem para (sobre)viver, movidos pelas mais distintas razões ou necessidades” (BARZOTTO, 2017, p. 191).
Nascida em 1968 em Saigon, aos dez anos Kim Thúy deixou seu país natal em um barco improvisado, como mais de um milhão de vietnamitas o fizeram, sendo acolhida com a família em um campo de refugiados da Organização das Nações Unidas na Malásia. De lá, a família migrou para a província canadense do Quebec. Diplomada em Direito mas também em Linguística e tradução, Kim Thúy trabalhou como advogada, intérprete, costureira ou ainda proprietária de restaurante, antes de realizar um objetivo acalentado desde a infância: dedicar-se à escrita. Seu romance de estreia, redigido originalmente em língua francesa, ru (2009) foi traduzido em quinze línguas e recebeu prestigiosos prêmios, como o Prix du Gouverneur Général, concedido pelo Conselho de Artes do Canadá (2010), o Grand Prix RTL-Lire do Salão do Livro de Paris (2010), ou ainda o Grand prix littéraire Archambault (2011), que revela novos autores quebequenses. Dentre as obras ficcionais publicadas posteriormente pela autora, observa-se o lugar de destaque ocupado por histórias de migração do Vietnã para Canadá, como mãn (2013), vi (2016) ou ainda em (2020). Em 2015, Kim Thúy foi sagrada Chevalier de l’Ordre national du Québec e recebeu o título de Doutor honoris causa da Universidade de Concordia dois anos mais tarde. Em 2018, foi um dos quatro escritores nomeados (com a guadalupense Maryse Condé, o inglês Neil Gaiman e o japonês Haruki Murakami) ao Prêmio Nobel “alternativo” proposto pela “nova Academia sueca” (RADIO
CANADA, Kim Thúy parmi les quatre finalistes, 2018).
O que propõe contar essa narrativa, cujo título ru cria, de entrada, uma zona de opacidade? Como essa opacidade é articulada com outros elementos paratextuais? Como postula Gérard Genette, o paratexto não só apresenta o texto, mas também o presentifica, desempenhando um papel essencial no pacto de leitura:
Mais do que um limite ou uma fronteira estanque, trata-se aqui de um limiar, ou – expressão de Borges ao falar de um prefácio – de um “vestíbulo”, que oferece a cada um a possibilidade de entrar, ou de retroceder. “Zona indecisa” entre o dentro e o fora, sem limite rigoroso, nem para o interior (o texto), nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto), orla ou, como dizia Philippe Lejeune, “franja do texto impresso que, na realidade, comanda toda a leitura” (GENETTE, 2009, p. 10).
Na edição francesa (2010), da editora Liana Levi, ru vem envolto em uma jaqueta em cuja capa se vê a fotografia, em tons de cinza azulado, de uma mulher usando o tradicional chapéu cônico vietnamita (Non La) e um traje nitidamente oriental, com colarinho alto e branco. A fotografia, cujo fundo desfocado mostra apenas nuances de cinza, mostra a figura feminina de costas, levemente voltada para o lado direito. Seu rosto está encoberto pelo chapéu, mas seu queixo levantado sugere que observa algo. No alto, o nome da autora é grafado em letras brancas. O título, também em letras brancas, todas em minúsculas, é escrito verticalmente, criando um estranhamento e salientando tratar-se de língua oriental. As duas letras sobrepõem-se parcialmente à beirada do chapéu, o qual, mesmo para o público em geral, pode ser associável ao Vietnã, sem maiores hesitações.
Já na contracapa da jaqueta, o título aparece em letras menores, mas desta vez grafado horizontalmente. Um pequeno recorte vertical da fotografia da capa enquadra três elementos: um texto curto que apresenta a narrativa, uma breve apresentação da autora e três brevíssimas citações da crítica (“Kim Thúy conta seu fabuloso destino”; “Sóbrio e pudico”; “Um soberbo objeto literário”) 2 . O caráter autobiográfico da narrativa é explicitado pelas informações convergentes entre os dois primeiros elementos, quais sejam, o texto e a apresentação de Kim Thúy, a qual destaca o percurso “fora do comum” da autora:
Kim Thúy deixou o Vietnã com outras boat people quando tinha dez anos. Ela vive em Montreal há cerca de trinta anos. Seu percurso é fora do comum. Ela revela ter exercido todo o tipo de ocupações – costureira,
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
intérprete, advogada, proprietária de restaurante – antes de se lançar na escrita (em francês) deste primeiro romance (THÙY, 2010, contracapa) 3 .
Por sua vez, o curto texto que apresenta a narrativa engloba uma série de lembranças, que, apesar de serem anunciadas como estando em desordem na narrativa, são evocadas cronologicamente, de modo a retraçar o percurso da família de migrantes:
Uma mulher viaja pela desordem das lembranças: a infância em sua gaiola de ouro em Saigon, a chegada do comunismo do Vietnã do Sul tomado pelo medo, a fuga no ventre de um barco ao largo do golfo de Sião, o internamento em um campo de refugiados na Malásia, os primeiros arrepios no frio do Quebec (THÙY, 2010, contracapa) 4 .
A seguir, é indicada uma dinâmica baseada em oscilações (“Narrativa entre a guerra e a paz, ru conta o vazio e o excesso, a desorientação e a beleza”5), são evocados “incidentes tragicômicos” e “objetos banais” a partir dos quais a autora restitui “o Vietnã de ontem e de hoje com a maestria de uma grande escritora”.
Na primeira orelha da jaqueta, chama-se a atenção para a presença de “outras vozes singulares” na mesma coleção, sendo listadas obras das escritoras estrangeiras Milena Agus e Milena Magnani (ambas italianas), Norma Huidobro (argentina), Inaam Kashashi (iraquiana) e Alison Wong (nova zelandesa de origem chinesa). Na segunda orelha, há dez breves citações que elogiam a narrativa de Thúy, retiradas de publicações que são instâncias legitimadoras reconhecidas no sistema literário da França e com grande alcance de público (Télérama, France Culture, Le Figaro Magazine, Les Échos, Le Point, Libération, VSD, Le Figaro Littéraire, L’Express, Elle).
A opacidade do título só é esclarecida no trecho colocado pela autora em guisa de epígrafe: “Em francês, ru significa ‘pequeno riacho’ e, no sentido figurado, ‘derramamento (de lágrimas, de sangue, de dinheiro)’ (Le Robert historique). Em vietnamita, ru significa ‘canção de ninar, ‘embalar” (THÚY,
3 Nossa tradução do original: “Kim Thúy a quitté le Vietnam avec d’autres boat people à l’âge de dix ans. Elle vit à Montréal depuis une trentaine d’années. Son parcours est hors du commun, Elle confie avoir fait toutes sortes de métiers – couturière, interprète, avocate, restauratrice – avant de se lancer dans l’écriture (en français) de ce premier roman”.
4 Nossa tradução do original: “Une femme voyage à travers le désordre des souvenirs : l’enfance dans sa cage d’or à Saigon, l’arrivée du communisme dans le Sud-Vietnam apeuré, la fuite dans le ventre d’un bateau au large du golfe de Siam, l’internement dans un camp de réfugiés en Malaisie, les premiers frissons dans le froid du Québec”.
5 Nossa tradução do original: “Récit entre la guerre et la paix, ru dit le vide et le trop-plein, l’égarement et la beauté”.
2010, p. 7) 6 . Assim, o título ganha em multiplicidade de sentidos a partir da homografia entre o vocábulo francês (de uso antigo ou regional) e a palavra em vietnamita. No entanto, a prevalência da palavra vietnamita em relação ao vocábulo em francês é marcada graficamente, pela utilização de caracteres em itálicos, indicando tratar-se de uma língua estrangeira. Retomada ao longo da narrativa, a imagem de canção de ninar aparece quatro vezes : entoada pela “vizinha” no barco lotado em que a família da narradora foge clandestinamente do Vietnã; no primeiro encontro com a encantadora a primeira professora canadense da menina-narradora, que se sente acalantada pela sonoridade da língua francesa, por uma “nuvem de frescor”, de “leveza” e de “perfume suave”; no suor que escorre como um riacho nas rugas de uma velha vietnamita que habita no delta do Mecong; nas linhas finais da narrativa, em que a narradora evoca seu processo de escrita, e o fato de que o Canadá, para ela, não é mais um lugar, mas sim uma cantiga de ninar (THÚY, 2010, p. 15, 19, 47, 142).
Vê-se que nesse limiar constituído pelos elementos paratextuais a ênfase recai sobre a mobilidade cultural e identitária, sobre os deslocamentos de sentido nesse entre-lugar das línguas em contato, sobre um constante deslocamento fluído, apontando para o fato que o exílio não significa apenas atravessar fronteiras, mas “é algo que cresce e amadurece dentro dos exilados, os transforma e se torna seu destino” (BAUMAN, 2005, p. 178).
Vinh Nguyen aponta que, ao abordar a resiliência coletiva e individual face às adversidades, e ao evocar em seu final a imagem de uma fênix ressurgindo, triunfante, das cinzas, ru pode ser visto como um caso emblemático da história de sucesso de refugiados vietnamitas (2015, p. 42), colocando em cena a figura do refugiado grato pelo país de acolhida (2013). Aliás, as menções ao sonho americano, que passa a ser almejado pela família da narradora, perpassam o romance, tendo no casal que contrata a mãe da narradora como faxineira representantes emblemáticos. A senhora Girard, sempre bronzeada, era “loira platinum como Marylin Monroe”, e tinha os olhos “azuis, azuis, azuis”, enquanto o marido, alto e moreno, orgulhava-se de seu impecável carro antigo de coleção. Sua casa branca, com gramado perfeito e jardim florido, com tapetes em todas as peças, completava essa personificação. Ao saber, trinta anos mais tarde, que seu pai reencontrou a pista dessa família, a qual não se encontrava
6 Nossa tradução do original: “En français, ru signifie ‘petit ruisseau’ et, au figuré, ‘écoulement (de larmes, de sang, d’argent)’ (Le Robert historique ). En vietnamien, ru signifie ‘berceuse’, ‘bercer’”.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
em situação tão idealizada, a narradora interroga-se: “Eu me perguntava se não tínhamos involuntariamente roubado o sonho americano do senhor Girard, de tanto que o havíamos desejado” (THÚY, 2010, p. 80-81)7 .
No verbete da Enciclopédia canadense dedicado a Kim Thúy, lê-se que o enredo de ru engloba o deslocamento da família da autora (diretamente associada, portanto, à narradora do romance) do Vietnã para o Quebec e sua adaptação à nova cultura:
O primeiro romance de Thúy, Ru (publicado por Libre Expression em 2009), conta a estória da longa jornada de sua família do Vietnã ao Quebec e a descoberta de seu novo ambiente cultural. Em francês, ru significa pequeno riacho e, em vietnamita, berço e embalar. O romance consiste em vinhetas moventes e curtas sobre membros da família, entre outros personagens, e conta todas as maneiras simples como ele se adaptaram à sua nova realidade cotidiana (THE CANADIAN ENCYCLOPEDIA, 2018, s/p.) 8
Essas vinhetas “breves e moventes”, sem fio cronológico definido, narradas na primeira pessoa do singular, põem em cena personagens que são, em sua maioria, membros da família da narradora-protagonista. De família rica e prestigiosa, eles veem-se miseráveis no campo de refugiados na Malásia, e depois em precária situação socioeconômica no Quebec. Sem legado patrimonial a deixar, a herança transmitida dos pais aos filhos é a riqueza da memória e a autonomia em busca da realização dos sonhos:
Meus pais nos lembram com frequência, a meus irmãos e a mim, que eles não terão dinheiro para nos deixar de herança, mas eu creio que eles já nos legaram a riqueza da memória deles, que nos permite perceber a beleza de um cacho de glicínias, a fragilidade de uma palavra, a força do maravilhar-se. Mais ainda, eles nos deram pés para caminharmos até os nossos sonhos, até o infinito. Talvez seja suficiente para continuarmos nossa viagem por nós mesmos (THÚY, 2010, p. 50) 9 .
7 Tradução nossa do original: “Je me demandais si nous n’avions pas involontairement volé le rêve américain de monsieur Girard à force de l’avoir désiré”.
8 Tradução nossa do original: “Thúy’s first novel, Ru (published by Libre Expression in 2009), tells the story of her family’s long journey from Vietnam to Québec and the discovery of their new cultural milieu. In French, ru means small stream and in Vietnamese it means cradle and to rock. The novel consists of short, moving vignettes about members of her family, among other characters, and recounts all the small ways in which they adapted to their new daily reality”.
9 Tradução nossa do original: “Mes parents nous rappellent souvent, à mes frères et à moi, qu’ils n’auront pas d’argent à nous laisser en héritage, mais je crois qu’ils nous ont déjà légué la richesse de leur mémoire, qui nous permet de saisir la beauté d’une grappe de glycine, la fragilité d’un mot, la force de l’émerveillement. Plus encore, ils nous ont offert des pieds pour marcher jusqu’à nos rêves, jusqu’à l’infini. C’est peut-être suffisant pour continuer notre voyage par nous-mêmes”.
A narrativa, que é feita na primeira pessoa do singular, sem seguir um fio cronológico definido, é composta por mais de cento e dez vinhetas, sendo raras aquelas cuja extensão ultrapassa uma página. Para Vinh Nguyen, a estrutura do romance, fragmentária e elíptica, reconstitui características de processos de transmissão, como os da memória e os da contação de estórias, além de refletir a maneira como a narradora se constrói: o self como em uma montagem de Outros (2013, p. 29). As personagens acompanham a trajetória da família, perpassando a vida no Vietnã, a fuga em um barco improvisado, a estada no campo de refugiados, as primeiros tempos e primeiros contatos sociais no Quebec, e, de maneira mais breve, a ascensão social da narradora e seus irmãos.
Dentre os familiares evocados, um lugar de destaque é dado à personagem da mãe, presente já na segunda vinheta. A narradora se coloca como uma sombra, um “prolongamento” natural de sua mãe, destino marcado por seus nomes idênticos, que têm um acento como único sinal de distinção. Essa sutil nuance desaparece com a migração da família, já que o significado de seus nomes desaparece, e eles ficam reduzidos, na língua francesa, a “sons ao mesmo tempo estrangeiros e estranhos” (THÚY, 2010, p. 12)10 . A mãe, filha de pai rico e prestigioso, alimenta, mesmo nos períodos mais traumáticos e de maior dificuldade, o desejo de que seus filhos alcancem condições de vida muito além do esperado. No intuito de estimular sua autonomia, resiliência e obstinação, acaba criando situações traumáticas para a filha, como quando a envia ao mercado para comprar açúcar, sem que a então menina saiba falar francês, impedindo-a de voltar para casa sem a encomenda e deixando-a chorar por horas a fio na frente do comércio.
A narradora afirma que sempre fora habitada pelo desejo de tornarse diferente de sua mãe, até o momento em que decidiu que seus dois filhos dividiriam o quarto – apesar de haver quartos livres na casa em que moravam – com o objetivo de ensiná-los a se apoiar mutuamente, a partir das frustrações, como ela e seus irmãos haviam aprendido (“Alguém me disse que os vínculos se tecem com os risos, mas ainda mais com o compartilhar, com as frustrações do compartilhar” – THÚY, 2010, p. 59)11. Na vinheta seguinte, a reflexão sobre a conduta da própria mãe revela a ressignificação do olhar da narradora, a qual indica que sua mãe “tinha portanto provavelmente razão em [nos] obrigar aos exercícios do compartilhar, não somente entre meus irmãos e eu, mas também
10 Tradução nossa do original: “à des sons à la fois étrangers et étranges””.
11 Tradução nossa do original: “Quelqu’un m’a dit que les liens se tissent avec les rires, mais encore plus avec le partage, les frustrations du partage”.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
entre nós e nossos primos” (THÚY, 2010, p. 60)12 . A essa reflexão acrescenta-se outra, relativa ao episódio da compra de açúcar, desvelando que é a partir de sua própria experiência da maternidade que a narradora, retrospectivamente, compreende as atitudes da mãe:
Durante muito tempo, acreditei que minha mãe tinha muito prazer em me empurrar constantemente à beira do precipício. Quando tive meus próprios filhos, finalmente compreendi que eu deveria tê-la visto atrás da porta trancada, sem desgrudar do olho mágico; eu deveria tê-la ouvido falar com o comerciante ao telefone, enquanto eu estava chorando nos degraus. Eu também compreendi mais tarde que minha mãe certamente tinha sonhos para mim, mas que, sobretudo, ela me deu ferramentas que permitissem que eu recomeçasse a me enraizar, a sonhar (THÚY, 2010, p. 30)13 .
O legado recebido, e transmitido às gerações seguintes, é, portanto nitidamente relacionado a um movimento de construção identitária fluída, que permita navegar pelas mobilidades culturais, em um movimento que não seja orientado exclusivamente às dores do desenraizamento.
Maurice Halbwachs aponta que, para corroborar ou contrariar um evento sobre o qual já dispomos de informações, recorremos a testemunhos, podendo ser o primeiro deles o nosso próprio (2006, p. 29). Vimos que, no romance ru, a escritora vietno-canadense Kym Thúy coloca em jogo deslocamentos e migração, e, decorrentes da mobilidade cultural, o sentimento de estranhamento e de não pertencimento não só a lugares como também à(s) língua(s) estrangeiras. A narradora busca, através da memória individual e da memória coletiva, a reconstituição do percurso de seus ancestrais, na tentativa de conhecê-los mais e, assim, conhecer-se a si mesma. Nesse espaço intervalar do rememorar, entre o lembrar e o esquecer, são incorporados à narrativa restos, rastros e fragmentos. Esses vestígios, que podem ser definidos como a presença de uma ausência, incluem o acerto de contas com a ancestralidade, reatualizando
12 Tradução nossa do original: “[Ma mère] avait donc probablement raison de nous obliger aux exercices de partage, non seulement entre mes frères et moi, mais aussi entre nous et nos cousins”.
13 Tradução nossa do original: “Pendant longtemps, j’ai cru que ma mère prenait un plaisir fou à me pousser constamment au bord du précipice. Quand j’ai eu mes propres enfants, j’ai finalement compris que j’aurais dû l’avoir vue derrière la porte verrouillée, les yeux collés au judas ; j’aurais dû l’entendre parler à l’épicier au téléphone, pendant que j’étais assise à pleurer sur les marches. J’ai aussi compris plus tard que ma mère avait certainement des rêves pour moi, mais qu’elle m’a surtout donné des outils pour me permettre de recommencer à m’enraciner, à rêver”.
uma prática ainda bem vívida em várias literaturas (BERND, 2018, p. 98; 67). Como aponta Gagnebin, se o trauma cria a ferida, esta se transforma em cicatriz, cujos indícios podem ser revelados pela escrita, a partir de rastros que presentificam o ausente (2002). Ao retornar sobre sua relação com a mãe, agora descentrando-se, a partir de sua própria experiência da maternidade, a narradora reatualiza o legado recebido, perpetuando a canção de ninar que a acompanha, como bem indica nas páginas finais do romance:
Sós e juntos, todos esses personagens do meu passado sacudiram a sujeira acumulada nas costas a fim de abrir suas asas de plumas vermelhas e douradas, antes de alçar voo vivamente em direção do grande espaço azul […] Quanto a mim, foi assim até a possibilidade deste livro, até este instante em que minhas palavras deslizam na curva dos seus lábios, até estas folhas brancas que toleram meu rastro, ou melhor, o rastro dos que caminharam à minha frente, por mim. Eu avancei no rastro dos seus passos como em um sonho acordado no qual um país não é mais um lugar, mas uma canção de ninar (THÚY, 2010, p. 142)14 .
A análise de ru remete assim à reflexão sobre deslocamento/desplaçamento feita por Elena González, quando retoma a proposta do argentino Ricardo Piglia para que se pense a literatura do futuro pela experiência da margem, a partir da América Latina, em um “deslocamento que se traduz como um olhar a partir do descentramento, das fronteiras e da transgressão” (2010, p. 113), um deslocamento que “pode ser também uma estratégia operacional para estudar textos e para estudar processos literários, no caso de nossas culturas ‘não hegemônicas’” (2010, p. 114).
14 Tradução nossa do original: « Seuls autant qu’ensemble, tous ces personnages de mon passé ont secoué la crasse accumulée sur leur dos afin de déployer leurs ailes au plumage rouge et or, avant de s’élancer vivement vers le grand espace bleu […] Quant à moi, il en est ainsi jusqu’à la possibilité de ce livre, jusqu’à cet instant où mes mots glissent sur la courbe de vos lèvres, jusqu’à ces feuilles blanches qui tolèrent mon sillage, ou plutôt le sillage de ceux qui ont marché devant moi, pour moi. Je me suis avancée dans la trace de leurs pas comme dans un rêve éveillé […] où un pays n’est plus un lieu, mais une berceuse ».
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
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Escritoras indígenas urbanas como Liliana Ancalao e Eliane Potiguara encontram-se filiadas a práticas e reflexões relacionadas, de modos diferentes, com experiências migrantes como resultado da despossessão de seus territórios pela expropriação capitalista colonial. Em momentos distintos das suas trajetórias pessoais, tomam a palavra e textualizam artisticamente, conjurando os trabalhos da memória e da herança, levando a cabo belos e importantes projetos poepolíticos. Entender-se dentro de uma linhagem comunitária há mais de 500 anos em constante ameaça supõe, também, uma herança ferida e viva, ancestral e contemporânea.
De acordo com Judith Butler em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (2015) – Giving an Account of Oneself, 2005 –o desejo de reconhecimento deveria sempre estar dialogando com a propensão a reconhecer os limites do reconhecimento, com a experiência dos próprios limites do conhecimento. Dar conta de si, um relato de si mesma, acontece em uma cena de interpelação, ou várias, e sua estruturação assume uma dimensão retórica, sendo, assim, uma intervenAção – uma interferência no continuum discursivo -; uma intervenção interlocutória, espectral, persuasiva e tática.
Com o objetivo de aprofundar a análise das relações do relato de si e as formas escriturais da reexistência enquanto ideologema, e visando apontar as estratégias composicionais das cenas de interpelação que Eliane Potiguara e Liliana Ancalao constroem, analiso, neste texto, algumas das estratégias da política e poética das autoras indígenas.
As modulações do tornar-se, perceber-se, autoperceber-se, esse “dar conta de si mesma”, vão gerando não apenas uma autopercepção e autoafirmação, mas também vão interpelando esse mundo das violências éticas – simbólicas e concretas, porque físicas –, produzindo pensamento poético potiguara e mapuche, respectivamente. As cenas constroem espaços topológicos nos quais a linguagem cria efeitos que tem a ver com a produção da subjetividade das escritoras e com a interpelação, bem como perturbação da leitora e da espectadora. Butler argumenta que a estrutura da cena de interpelação não seria uma caraterística da narrativa, mas sim uma interrupção na narrativa. A incompletude dessa narrativa dá-se porque estamos eticamente implicados na vida dos outros, “interrompidos pela alteridade” (2015, p. 87). Uma interrupção, que por estar dirigida a um outro, assumiria uma dimensão retórica – umas certas regras de jogo que se correspondem a formas de falar e fazer (BUTLER, 2015, p. 85-86).
No momento em que fazemos um relato de si, um dar-se conta de si mesma, é quando, conforme Butler, nos tornamos filósofas especulativas ou escritoras de ficção (2015, p. 21). O relato, nesse sentido, é uma especulação, uma autorreflexão sobre as possibilidades de reconstrução tanto de um momento/ situação de vida quanto da pré-história do eu. É por isso que contar a história de si mesma pode ser pensada, ao mesmo tempo, como uma modalidade de ação voltada para o outro, que exige um outro, no qual o outro se pressupõe (2015, p. 106). O relato como forma de especulação pressupõe o outro e está cheio dos outros contemporâneos e históricos:
[...] significa que enquanto estou engajada em uma atividade reflexiva, pensando sobre mim mesma e me reconstruindo, também estou falando contigo e assim elaborando uma relação com um outro na linguagem. O valor ético da situação, desse modo, não se restringe à questão sobre se o relato que dou de mim mesma é ou não adequado, mas refere-se à questão de que, se ao fazer um relato de mim mesma, estabeleço ou não uma relação com aquele a quem se dirige meu relato, e se as duas partes da interlocução se sustentam e se alteram pela cena de interpelação (BUTLER, 2015, p. 70).
Penso as estratégias composicionais das cenas de interpelação dentro das constelações de produção da heterogeneidade tal como desenvolvida pelo
Antonio Cornejo Polar (2003). Neste recorte particular, observo as possíveis intervenções Eu/Nós/Outres na especificidade dos vários leitores/atores possíveis, quais sejam: as autoras e elas mesmas, elas e as mulheres indígenas, elas e as comunidades indígenas nas Américas, elas e os/as não indígenas.
A primeira cena que destaco em Eliane Potiguara é a dedicatória à sua avó, Maria de Lourdes, em Metade cara, metade máscara ([2004] 2018),
À minha falecida avó indígena Maria de Lourdes, que, no início do século XX, teve seu pai desaparecido por ação colonizadora no estado da Paraíba. Suas quatro filhas indígenas, ainda adolescentes, migraram compulsoriamente dessas terras […] (2018, p. 5).
A primeira cena em Liliana Ancalao é a inscrição de Ignacia Quintulaf, no poema “Las mujeres y el viento Pu zomo engu kurüf”, entre outras mulheres como a mãe e a avó, do livro Mujeres a la intenperie Pu Zomo Wekuntu Mew (2009),
y aquí hasta la noche se ha opacado el viento ruge arrancando hasta las ganas de quedarse seguro que las lomas quedaron peladitas por ahí andará el ruego de ignacia quintulaf porque su hijo no volvía
Ambas, Maria de Lourdes e Ignacia Quintulaf, são a entrada na madeira –Neruda dixit – no mundo potiguara e mapuche, respectivamente. A Quintulaf, aquela que leva os saberes do mapuzungun nos ventos patagônicos do Puelmapu e com quem aprende Liliana Ancalao sua língua da terra, sua língua ancestral. Ambas constroem suas poepolíticas nessa liberdade da linguagem comunitária chamando as vozes, em todas as paisagens americanas. Essas vozes, a voz como em “Esta voz Fachi züngun”:
[…] y esta voz
[…]
ka fachi züngun que es cenizas en los labios mellfümu mülechi trufken llengati pretende ser cascada en el desierto küpa traytraykowtuy lipüng mu
tuwün pule caer mi llanto
desde la sangre
tuway ñi ütrünarün tañi ngüman gritar wirarün hasta el abismo del silencio ñüküf ñi zumiñwelling püle puwlewüla [ngati (ANCALAO, 2015 p. 78-79).
A reexistência é uma noção que não pertence ao mundo da dominação, é uma noção que vem do mundo justamente das comunidades oprimidas, exploradas, subalternizadas, marginalizadas. A explosão significante e insurgente da reexistência acontece bem nessa fase neoliberal da globalização (1980 até hoje) e que, talvez, penso como hipótese, seu ponto máximo tenha sido a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas – um processo que vai de 1985 a 2007.
Busco entender essa noção não como uma noção já clara, fechada em si mesma, mas sim como mais próxima de um ideologema – como no primeiro Bakhtin. É uma forma de capturar, de captar tensões e lutas nas práticas socioculturais e espirituais do que é estar na sociedade ocidental. São tendências que veem desse mundo, não surgem no mundo da universidade eurocêntrica, no mundo branco. A reexistência, por exemplo, em Conceição Evaristo, inscreve na arte da escrita a escrevivência.
Há uma outra questão que tenho muito clara e que representa uma abrangência de problemáticas que dizem respeito a mim, pesquisadora; a partir de um ponto de vista americanista, decolonial e anticolonial não posso “encobrir” as textualidades e discursos para “des-cobri-los”. Tenho é que “trabalhar com” e me reconhecer no lugar das mediações, enfim, construir minha humildade como escritora.
O ideologema da reexistência está vinculado a um mundo de percepções, experiências, referências e ações, uma estrutura de sentimento que marca a ambiguidade e conflitividade político-simbólica de estar-mulher-indígena nesse mundo. Se o ideologema da reexistência é uma disputa pelos sentidos sobre o que é a vida e o que são as formas de viver, a concretização em atos de artes verbais necessariamente está fundada na práxis da solidariedade inter e intrageracional, entre parentes das Américas e entre as mulheres indígenas. A primeira constatação que podemos fazer é que a reexistência só é possível na abertura à ancestralidade, aos antepassados, à linhagem comunitária que é também pertencimento no aqui e agora.
Em Eliane Potiguara a circularidade – uma relação temporal diferente – entre a sobrevivência, a existência e a reexistência vai sendo costurada na interpelação entre o estar-mulher-indígena, a comunidade potyguara e a comunidade indígena na América Latina, mergulhando na crítica sobre os modos de subjetivação dxs expropriadxs, dxs imigrantes – quase em situação de refugiadxs no seu próprio país – ou do que ela costuma categorizar como “desaldeados” ou “destribalizados”. A sua poepolítica dramatiza o processo da experiência/vivência de autoconsciência para ser potiguara, as instâncias de reconhecimento da família e da genealogia indígena para se afirmar e se
autodeclarar. Percurso que vai de Eliane Lima dos Santos a Eliane Potiguara, como na cena do poema “Brasil”, enorme sujeito-país ao qual se interpela na repetição do “O que faço com minha cara de índia” (2018, p. 32). Observemos as cenas de interpelação na produção escrita e oral de Eliane Potiguara entre a sobrevivência e a existência. Em 2016, ela dá uma entrevista no programa do Itaú cultural, em 1ª persona. Essa intervenção dialoga de forma muito semelhante com várias páginas de Metade cara, metade máscara, de 2004, porém escritas em 3ª pessoa (2018, p. 25). Nesse livro de consagração, também encontramos sua primeira publicação poética, um poema-póster: “Ato de amor entre povos” (de 1982 e exposto e divulgado no Encontro dos Kaiapós1) que conta de forma trans-histórica, ao modo da oralidade da contação de histórias indígenas, a vida e o relacionamento de Jurupiranga e Cunhataí.
Vemos assim um tecido de textualidades que se retroalimentam taticamente. Ato – Amor – entre – Povos, modos da atuação, do agir, do encenar na palavra e no corpo, uma cena de interpelação frequente em Eliane Potiguara entre sua arte e seus discursos públicos.
Escutamos na entrevista de 2016:
Desde que nasci eu tenho uma forma de ser muito reservada, dada a minha educação que tive com minhas avós, minhas avós e minhas tias avós, porque eu fui alfabetizada dentro de casa já com certa idade e essas mulheres, como nós vivíamos num gueto, num gueto indígena no Morro da Providência, e aí existiam outros indígenas que vinham para trabalhar na IMAC, na fábrica de navios. Então nós vivíamos num gueto que socialmente era um lugar de muita violência, violência psicológica, violência física, um lugar onde existia uma comunidade oriunda da Segunda Guerra Mundial e que eram carvoeiros, pessoas carvoeiras, bananeiras, pessoas que tinham um trabalho bem proletário e fora isso havia uma grande comunidade de prostitutas que faziam ali o seu trabalho e por essa razão eu fui uma pessoa que recebeu uma educação muito, muito fechada, praticamente fui conhecer a sociedade brasileira com 9, 10 anos e onde minha avó não permitia que eu olhasse para as pessoas e até que tivesse contato. Eu como digo até nos meus livros, eu tinha uns antolhos psicológicos e até espirituais, uma proteção muito grande dessas mulheres, todas analfabetas, todas extremamente pobres e minha avó vendia bananas para a nossa sobrevivência e eu era uma pessoa, praticamente não via o sol, não participava de nada. Eu só fui falar mesmo com quase 10 anos, não tinha o poder da linguagem, só tinha o poder do olhar, então eu tive uma educação voltada para a essência de minha própria família, [...] as histórias, as tradições [...] apesar de eu não ter nascido [lá] mas eu vivia com isso porque elas, era a temática delas [...] era a questão da violência, da imigração, da pobreza, da perda das suas terras, do distanciamento, da família, desse processo todo cultural, cosmológico. Então esse distanciamento, esse sofrimento [...] mas é uma
história de luta e resistência , uma história de mulheres que lutaram pela sobrevivência delas e pela sobrevivência dos que vieram [...] (POTIGUARA, 2016, min 06:00, grifos meus).
Lemos assim a sobrevivência, a luta e resistência pela vida no espaço urbano, o estar urbana e não aldeada da Eliane Potiguara, a herança ferida e distinta das mulheres da casa.
Em 2013, temos a transcrição da conferência “O espaço ancestral: minha pedra verde” refletindo sobre o existir, na cadência do “então eu existia”, Quando eu tinha seis anos, minha avó me deu uma pedra de cor verdealface clara, de uns 20 cm, quase que transparente. À tardinha vovó contava histórias e eu e minhas pequenas mãos manuseávamos aquela pedra como algo magnético, mágico, poético e, por que não dizer, cosmológico. Meu olhar fixava-se naquela pedra e meus ouvidos nas histórias de minha avó, Maria de Lourdes de Souza .
Essa pedra era a extensão cosmológica de nossa cultura indígena, o lado que não se podia tocar, era a história, o lado imemorial, o transcendental, o espiritual, possivelmente, a essência de nossas vidas. Isso nos pertencia verdadeiramente? Representava a cultura de nossa família? Representava a cultura e extensão cultural de um povo colonizado, catequizado? Seria o que a líder e pajé Potyguara Maria de Fátima Potyguara, assim como os velhos e velhas, chamavam de “mesinha” (cultura da mesinha). Certamente que sim! Essa extensão celular de uma cultura generalizada era parte do todo. Minha pequena vida e pequena história faziam parte de um contexto social, político e econômico. Tinha origem, tinha nome, tinha etnia. Então eu existia. (POTIGUARA, 2013, p. 108, grifos meus).
Desse pequeno espaço ancestral, onde estão reunidos o sagrado, as tradições, as filiações, o relato oral, essa pedra verde é a matéria de entrada no caminho mesmo de se autoperceber, o relato de si, o “Given an account of Oneself”, como quando a escritora Potiguara diz e fala/escreve e eu volto a destacar: “Essa extensão celular de uma cultura generalizada era parte do todo” e “Tinha origem, tinha nome, tinha etnia. Então eu existia.”
As redes nas histórias são os tecidos das memórias e a reexistência própria e comunal, nesse sentido não há forma de reexistir individual sem a abertura também da comunidade e na sua direção. No 16 de outubro de 2019, Eliana Potiguara é com-memorada na Aldeia São Francisco, na Paraíba. Aqui é a Fátima liderando a cena de interpelação do estar-Eliane-Potyguara. Transcrevo, então, a voz de Maria de Fátima Potyguara, líder e pajé:
[...] eu estou emocionada de ver minha mana aqui, e um índio é raíz (?) e o índio quando ele se sente (pária?) ele vai pra as matas, a buscar força
da mãe natureza, dos encantados, e obrigada por tudo, então, estamos aqui, Eliane, de braços abertos para te receber, no fundo do coração dos Potyguara, você nunca saiu, você mora no fundo do coração dos Potyguaras, com todo orgulho, com todo prazer, com toda a dedicação do indígena e do mundo inteiro, e obrigada 2
Esse processo oralituralizado de reexistência, na sua repetição, ressignifica modos da “extensão celular de uma cultura generalizada”. Processo que ilumina em Metade cara, metade máscara os vários poemas e textos em prosa, cuja cena de interpelação escande o ter ou não ter aldeia.
Em Liliana Ancalao, as cenas de interpelação trabalham o existir e o reexistir entrando na matéria das relações entre cultura e cantos, a música, a escrita, em uma operação de estudo cujo âmago está no resgate de/para si, para sua comunidade patagônica e para o mundo imagético-simbólico do mapuzungun, a língua/linguagem da ancestralidade-contemporaneidade das pessoas, Che, do Mapu, terra. O resgate é uma forma espectral do reconhecimento, do dar-se conta. É tático porque poepolítica pertinaz, porfiada. Inscreve-se, desses modos, em uma continuidade que compartilha as visões de mundo ocidental e mapuche sobre os sentidos da história e a história dos diferentes sentires. Também, em outro sentido, operacionaliza um processo de expansão do campo literário, acrescentando literariedade (CASANOVA, 2002) às artes verbais no campo literário argentino, para o campo minorizado da oralitura em mapuzungun, ou até um trans-subcampo literário aquele das textualidades mapuches (para além dos Estados-nação) e das textualidades indígenas nas Américas, no caso, inSurgindo uma movimentação da língua, suas grafias, sua sonoridade, seus imaginários, bem como dos procedimentos composicionais da autotradução, da bilinguidade e da oralitura (textualidades orais, escritas e musicais) no campo literário argentino, monolíngue e monoglóssico.
Em ensaio de 2010 na Revista Boca de Sapo, o qual Liliana Ancalao faz reinscrever na mesa redonda das I Jornadas de Feminismo Poscolonial (IDAES/ UNSAM) em 2013, a escritora mapuche argumenta e interpela:
El mapuzungun fue el idioma de la conversación de los ancianos, el idioma para convocar a las fuerzas en la intimidad del amanecer. El idioma para guardar. Para callar (2010, p. 50) […] El mapuzungun es el idioma de recuperación del orgullo, el idioma de la reconstrucción de la memoria (2010, p. 51).
A recuperação do orgulho e a reconstrução da memória formam parte do caminho de regresso que atualiza o estar escritora de Liliana Ancalao. Professora – assim como Eliane Potiguara –, publica em 2009 Mujeres a la intenperie Pu zomo wekuntu mew, livro produto de um longo processo de estudo e transformação. Nele, se desenha o diálogo entre Pu zomo – As mulheres – e as variantes da intempérie patagônica, o vento, a chuva, o frio. Diferentes mulheres transitam poetizadas em castelhano e mapuzungun e as memórias se imaginam nesse estar entre línguas e tempos de vendavais de despossessão e reexistência. Ancalao comenta em programa de radio: “La historia me negó a mí el conocimiento de mi cultura […] Yo ando aprendiendo […]” (ANCALAO, 2016), e assim deixa constância no seu fazer poético.
A entrada na matéria vai poetizando a relação ferida e viva com a paisagem do Puelmapu. Em “Las mujeres y el frío Pu zomo engu wütre”, ouvimos: “yo nací con la memoria [da sua mãe] de sus pies entumecidos”. O andar intumescido, inchado desses pés trabalhadores e o frio, a infância, a mãe. A mãe e as mães que lhe abrem o coração à poesia e à sua própria história, que abrem as portas ao processo de re/conhecimento como cura e militância da memória (ANCALAO, 2019). Nesse programa, Ancalao fala sobre sua viagem pela Patagônia e seu percurso na consignação do esquecimento interesseiro, do processo da vergonha social perante a procura do orgulho pelas outras memórias e a importância da escrita poética como tradução ao mapuzungun, bem como tradução poética da história silenciada. Em Punta Alta vivia seu pai, Fermín González Ancalao e aí conhece a história da desapropriação dos territórios, por isso ela atravessa os tempos e encontra as palavras no vapor daqueles frios das manhãs (ANCALAO, 2019). No minuto cinco podemos ouvi-la recitando nas suas duas línguas, um fragmento:
iñche kimun wütre feichi pichizomongen guardapolvo mew
dumiñkuley
iñche ñi chaw ñi rambler clasic amulafuy müley iñ namuntuael eskuela mew
katrütuantüiñ
chi pu wafün foro kataeyew iñ pichi ilo iñchengefun kiñekeluku kutrafulu pifuiñ müna wütre
ta iñ leliael chi puzüngu ñi kuyuan
iñ kompañküleael [...]
yo al frío lo aprendí de niña en guardapolvo estaba oscuro
el rambler clasic de mi viejo no arrancaba
había que irse caminando hasta la escuela cruzábamos el tiempo los colmillos atravesándonos la poca carne yo era unas rodillas que dolían decíamos qué frío para mirar el vapor de las palabras y estar acompañados [...] (ANACALAO, 2009, p. 10).
A poesía como reunião e como cura. Essa enorme cena de interpelação que con-signa a oralidade, a escrita, as duas línguas do estar mapuche na Patagônia argentina. À procura dos “antiguos”, os ancestros e ancestras, a familia, a linhagem, isto é: estar na história, experimentá-la nas sendas do resgate do ser para si e para a comunidade nesse mulherio do Puelmapu. Observemos este fragmento de “Las mujeres y el viento Pu zomo engu kürüf”,
fey wiñolekey
pepikawenew chi griega
rulpalu chi kafe bora
pifuenew kiñe wentru mew
inche rakizuamfun ta chi kürüf mew
chi kürüf wiñokey
welu tüfa waria wimlay
miawi
fillke rupa
auka rüpüwaria mew
kuyümkoron mew
ñamüntrekaneiñ mew
chi pu ishüm
üpünüingün
chi pu nümün pu takun pinüfüingün
pepikawlay chi ruka
chi kim chillfuy
feymew
müley iñ tükuael chi pava
pepikaael kiñeke mate
üngümael ñi amun
kiñekeantü mew
regleantü
¡iñey kimi!
kuyentrafkintu mew [...]
él siempre va a volver me previno la griega
traduciendo la borra del café y me hablaba de un hombre yo pensaba en el viento
el viento siempre vuelve pero esta ciudad no se acostumbra anda cada vez desaforado por las calles a brochazos de tierra borrándonos los pasos se nos vuelan los pájaros los olores la ropa se desafina la casa la memoria se astilla y hay que poner la pava preparar unos mates y esperar a que se vaya en unos días unas semanas vaya a saber con el cambio de luna [...] (ANCALAO, 2009, p. 11).
Os passos perdidos que se procuram no remoinho dos ventos mostram a imprecisão dos trabalhos da memória nessa cidade onde a memória pode ser estilhaçada, apagada pelos vendavais históricos. O chimarrão é desse campo semântico da espera, da reflexão, e que ressignifica esse compartilhar de várias tradições e em paisagens em comum dentro da casa, longe das intempéries da estepe.
O encontro, reencontro, ressurgimento também poetiza homenagens históricas na visão do estar mulher indígena. Em Metade cara, metade máscara escutamos o poema breve quase grafitti “A perda dos Yanomami”:
Eles criticam
Por nos encontrar nas estradas
Alegrem-se
Por não nos encontrar ainda nos hospícios! (2018, p. 39)
Como um canto-dança sagrado, como em “Oração pela libertação dos Povos Indígenas”, nesses versos em destaque:
[...]
Dai-nos luz, fé, a vida nas pajelanças, Evitai, ó Tupâ, a violência e a matança.
Num lugar sagrado junto ao igarapé.
Nas noites de lua cheia, ó MARÇAL, chamai
Os espíritos das rochas pra dançarmos o Toré [...] (2018, p. 34).
Em 18 de abril de 1977, o líder indígena Marçal Tupã-y, assassinado em 25 de novembro de 1983, esteve nas terras do Sul do Brasil e disse:
Eu não fico quieto não!
Eu reclamo...
Eu falo...
Eu denuncio! (2018, p. 47)
Essas cenas de interpelação dialogam com todo o continente, com os mundos indígenas e os não indígenas, numa reexistência que acalma e perturba. Atravessam os tempos da história e atualizam roteiros de memórias escondidas. Em particular, o poema-homenagem “Esperando a Inakayal Inakayal taiñ üngum nefiel mew” (ANCALAO, 2015, p. 82-83) dá corpo à cerimônia fúnebre de um lonko, tematizando o momento de irmandade da ancestralidade que vai da vitrine dos museus-prisões científicas ao descanso comunitário. O eu poético inicia a cena e se foca em duas mulheres, duas irmãs, “anay lamngen” –, desandando em redemoinhos “mewlen mew”, assim a espera:
Esperando a Inakayal Inakayal taiñ üngum nefiel mew Volvió Inakayal. Los huesos del lonko habían permanecido desvelados demasiado tiempo en la vitrina de un museo. Volvió para descansar en la tierra. Mis paisanos lo esperaban en Tecka. Puntuales estaban allí: Fabiana y Silvia.
las imagino celestes el frío en las polleras el corazón desandando la impaciencia
las veo celestes de espaldas a la luna atentas a los signos de la tierra
sagradas y en silencio por no perderse ni un latido del tiempo aquel que regresó ese día a tocarles las manos y los ojos y las halló tempranas sin esquivarle la mirada al viento
merecedoras del rumor en chezungun
... inakayal... lonko... piwke... en remolinos hasta aquietar la espera
del fondo azul
recorto sus figuras y las traigo desde antes y hasta el horizonte
antiñir
cayupán
anay hermanas
ngüne kintufiñ kalfu
ti külangen ti küpam mew
ti piwke ñi ngenoafelüw külen
pefiñ kalfu
furitulen küyen mew
ngünel külen ti mapu pengel kimuam
pekan ngenon ka ngenozungun mew
rulmenon kiñe witan no rume
ti kuyfi tren mew
ñi wiñomum feychi antü
ñüñmaafiel ñi küwü ka ñi nge
ka puliwen pefi
ñi entulel nofiel nge kürüf
kimfal ngen
chezungun mew
... inakayal... lonko... piwke...
mewlen mew
küme newe nofiel ti üngüm külen
ti kalfu ponwi
inazafiñ ñi chumlen
ka küpalfiñ
kuyfi mew
ka ti afpulu mew
antüngür
kayupange
anay lamngen
Os modos discursivos e suas cenas de interpelação intervêm na cadeia de valor simbólico da produção e reprodução contínua das formas do campo literário, seus campos minorizados (ou subcampos) e trans-subcampos, bem como nas formas de estar no sistema mundo capitalista, com sua extração de vida, esse mundo que devora mundos, em palavras de Aílton Krenak
(RodaViva, 2021).
As práticas artísticas e públicas dessas duas escritoras desenham percursos sobre o estar mulher indígena entre o século passado e esse que agora habitamos. Eliane Potiguara, em sintonia com Rigoberta Menchú e as lutas indígenas e feministas, realiza com seu ato de publicação de Metade cara, metade máscara – livro que condensa 20 anos de escritas, diálogos, estudos e militância – essa trilha de pioneira no campo literário brasileiro,
ANCALAO, Liliana. Mujeres a La Intemperie Pu Zomo Wekuntu Mew. Movimiento de Poesía Bajo Los Huesos. Argentina: Editorial El Suri Porfiado, 2009.
ANCALAO, Liliana Poesía mapuche: El idioma silenciado. Boca de Sapo: revista de arte, literatura y pensamiento. Buenos Aires, segunda época, año XI, n. 6, p. 48-53, 2010.
ANCALAO, Liliana. Con nuestra voz estamos: Escritos plurilingües de docentes, alumnos, miembros de pueblos originarios y hablantes de lenguas indígenas. 1ª ed Edición multilingüe. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: ministerio de Educación de la Nación. Plan Nacional de Lectura, 2015.
ANCALAO, Liliana. Entrevista em Poetas Argentinos. BCN Radio (Biblioteca del Congreso Nacional). 28 de junho de 2016 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y7Ocx6HX5RI Acesso Janeiro 2021.
ANCALAO, Liliana. Entrevista em Canal Airevisión-Punta Alta, Argentina. 21 de março de 2019. Disponível em; https://www.youtube.com/watch?v=b3APeEDK5HE. Acesso em Janeiro 2021.
ANCALAO, Liliana. I Jornadas de Feminismo Poscolonial. Mesa redonda com Rita Segato. (IDAES/ UNSAM) 31 de agosto de 2013. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=w0hbuFY0Pvs Acesso em: janeiro 2021.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Trad. Rogério Bettoni. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2022.
CORNEJO-POLAR, Antonio. Escribir en el aire. Ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las Literaturas Andinas. 2. ed. Lima: CELACP; Latinoamericana Editores, 2003.
KRENAK, Aílton. Programa Roda Viva 19 de abril de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=BtpbCuPKTq4. Acesso em: 19 de abril 2021.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. 3° edição. Rio de Janeiro: Grumin, 2018.
POTIGUARA, Eliane. O território ancestral: minha pedra verde. In: Poéticas do espaço, geografias simbólicas. Organização de Denise Almeida Silva. Frederico Westphalen: URI, 2013, p. 103-115.
POTIGUARA, Eliane. Encontros de Interrogação/ Itaú Cultural. (14m 04 s). 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1Q. Acesso em janeiro de 2021.
POTIGUARA, Eliane. Culturas indígenas / Itaú Cultural. (10m52s). 2016. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=TZwOXaJVzYU. Acesso em janeiro de 2021.
POTIGUARA, Eliane. Entrevista de Julie Dorrico. Canal Literatura Indígena Contemporânea. 23 de Maio 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F8QhtkIxc7k. Acesso em Junho 2020.
latino-americano e indígena. Liliana Ancalao, em sintonia com as gentes da terra do Puelmapu na sua oralitura e nas suas insistências em persistir aprendendo, realiza sua tarefa de desmitificar, resgatar, ressacralizar, enfim, de “transparentar” essa territorialidade, suas sendas de poesia e canto, na esteira dos ventos trazidos por Aimé Painé.
No buraco da escravidão, o ideal perdido: mãe, lar, família e comunidade nos acenam.
Saidiya Hartman (2002, p. 774)1
[...] eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue.
Conceição Evaristo (2014, p. 18)
Na abertura do romance Song of Solomon, de Toni Morrison (1977a), a epígrafe invoca o poder dos homens escravizados de voar alto e, em contrapartida, deixar um nome como legado para os filhos. “The fathers may soar/ And the children may know their names”, dizem os versos [“Que os pais possam subir aos céus/ E os filhos conhecer seus nomes”]. Ao longo da narrativa ouvem-se ecos bíblicos e míticos que também falam de genealogia e filiação, envolvendo desde a ancestralidade africana até o nome próprio desaparecido, os laços de família
1 Tradução livre do original: “In the slave hole, the lost ideal: mother, home, kin, and community beckon”. A tradução de textos ao longo deste ensaio é de responsabilidade da autora.
corrompidos, o papel feminino e materno, a integração numa comunidade, as memórias, crenças e vivências individuais e compartidas. Intensificadas durante séculos pelos traumas da escravidão, da diáspora e da colonialidade dominante, 2 são questões que remetem aos apagamentos e fraturas na identidade pessoal, racial e social, presentes na literatura de autoria negra nas Américas e pontuadas ao longo deste trabalho, com apoio na escrita de Toni Morrison e de Paule Marshall em diálogo com Conceição Evaristo. A canção de Solomon pode ser lida como um romance épico sobre a busca de um jovem negro do século XX pela identidade e pelo nome, o que implica no despertar para o significado das raízes familiares, a importância da história social, da cultura e da comunidade. Em sua simplicidade e com apenas dois substantivos, o título sugere uma amplitude de referências e interpretações, a começar pelos famosos versos atribuídos ao Rei Salomão e que fazem parte da Bíblia hebraica e do Antigo Testamento cristão. Conhecido em português como Cânticos de Salomão ou Cântico dos Cânticos, o poema bíblico aproxima dois aparentes opostos, a fé religiosa e um intenso amor sexual. Em seu romance Morrison entrelaça fios de mitologias de herança africana (a história yorubá sobre o homem voador, de volta à África) e judaico-cristã (a mulher que se expressa cantando seus lamentos e desejos, como no cântico bíblico), explorando intertextualmente a alegoria, a música, as fantasias e metáforas. 3 A magia e os mitos se justapõem a aspectos históricos do seu país, como as marcas coloniais evidenciadas na continuada segregação espacial, econômica e racial, na repressão sexual e nos papéis tradicionais de gênero, no escape ilusório do enriquecimento de uma classe média alienada, ou na violência extrema que fragmentava identidades e laços negros.
Além do referente bíblico, o título e o enredo do romance de Toni Morrison remetem à história real de John Solomon Willis e Ardelia Willis, avós maternos da escritora (e verdadeiros reis para ela), os quais sofreram na carne o racismo virulento do Alabama, estado do ‘Sul Profundo’ dos Estados Unidos, testemunharam atrocidades e perderam sua terra para os brancos.
2 Após o fim das antigas colônias nas Américas, a colonialidade persiste na “hierarquia sócio-cultural entre europeus e não-europeus” presente “em todas as esferas – política, econômica e cultural” (QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992, p. 550).
3 A rica linguagem de Morrison reflete a oralidade da cultura negra, mas evoca também a Bíblia, a escrita de Faulkner e de autores latino-americanos que ela admirava, como García Márquez e Astúrias (MORRISON, 1977b, p. 50).
Ancestralidade, a escrita de si e de nós...
Juntaram-se então à enorme caravana de negros rumo ao norte, em busca de uma vida melhor, chegando a Ohio com os sete filhos por volta de 1910. Embora Morrison tenha afirmado “não escrever autobiografia” (entrevista a Tate, 1986), esse avô inspirou a figura ancestral e mítica que povoou todo um vilarejo antes de voar de volta à África, segundo as histórias e cantigas eternizadas em Song of Solomon. Tomando um sentido inverso ao da “Grande Migração”, o jovem protagonista do romance deixa a confortável vida urbana em Michigan e ruma para o sul, aventurando-se à procura de ouro, e acaba chegando a um local isolado, sem nome certo (Charlemagne? Shaleemone? Shalimar? Solomon?), no interior da Virgínia. Quanto a sua própria identidade, o rapaz sabe apenas que é o terceiro da família carregando o nome truncado e infeliz de Macon Dead 4 , apelidado pejorativamente de Milkman. 5 Do seu pai em Michigan, Macon Dead II, só aprendeu a enriquecer como um branco, explorando outros negros. Nesse lugarejo impregnado de passado, onde só se viam negros, Milkman ouve o nome Solomon ressoar por toda parte, inclusive na vibrante cantiga de roda das crianças: “Jay, o filho único de Solomon,/ Com buba ialí, com buba ialí/ Roda e toca o sol/ Com buba ialí, com buba ialí” (MORRISON, 1988c, p. 283). A princípio incompreensíveis, os versos cantados continham a chave do seu nome real, de sua ascendência, da língua de seus antepassados, da comunidade e da história que sempre lhe haviam faltado 6 . Segundo Claudia Tate, a jornada adquire contornos épicos por responder ao anseio coletivo de “recuperar a história frequentemente obscurecida da escravidão” (In: MORRISON, 1986, p. 118). No romance, a dedicatória sucinta “Daddy” [“Papai”] homenageia o pai da escritora, George Wofford, que também fez parte da ‘Grande Migração’ para o norte do país, levando na memória os linchamentos que presenciara, ainda adolescente, na Georgia.7 Casou-se com Ramah Willis (nascida em Greenville, Alabama) em Lorain, Ohio, onde nasceu em 1931 a segunda filha do casal,
4 Muitos escravizados e libertos (frequentemente analfabetos) tiveram registros perdidos ou trocados. Aqui, o avô de Milkman, então adolescente, declarou em 1869 que vivia em Macon (localidade) e que seu pai era falecido [dead ]. Esses dados foram registrados como sendo seu nome e sobrenome, mas, não sabendo ler, só tomou conhecimento disso anos depois quando se casou. A mulher preferiu manter o nome novo, acreditando que assim apagariam o passado de escravidão (MORRISON, 1977a, p. 54).
5 Literalmente, leiteiro ou o homem do leite, atribuído à notícia de que ele sugava o seio materno já estando bem crescido. O termo também remete ao homem (que se quer) branco, à ausência ou rejeição do orgulho negro.
6 Não é costume traduzir nomes próprios, como Solomon. Em nota, a editora Best Seller adverte ao leitor: “Devido a sua peculiaridade, algumas expressões e nomes, inclusive o do personagem do título, foram conservados nesta tradução em sua forma original” (MORRISON, 1988c, p. 5). O apelido Milkman também não foi traduzido.
7 As homenagens inseridas por Morrison mostram a importância de se atentar aos paratextos de uma obra, elementos que se encontram “entre o dentro e o fora, [...] entre o texto e o extratexto, [...] no espaço do mesmo volume, como o título ou o prefácio” (GENETTE, 2009, p. 10-12).
Chloe Ardelia Wofford, nome de batismo da futura escritora Toni Morrison. Ela cresceu ouvindo relatos de injustiças, violência e opressão (especialmente no período pós-escravidão), mas a família também lhe transmitiu resistência e força, memórias felizes, a magia da língua, da música e da cultura negra, como os antigos griots. A beleza da vida transpirava das reuniões caseiras em que o avô tocava violino e a mãe cantava e contava histórias; a escrita de Morrison se construiu ao longo dessa vivência repleta de sons e narrativas encadeadas por elos de história, ancestralidade, família e comunidade.
Song of Solomon (1977), seu terceiro livro, foi um marco na história literária dos Estados Unidos pelo sucesso inédito de crítica e de público alcançado por uma autora negra. É seu único romance com foco central em um protagonista masculino, mas vem de uma mulher, Pilate, tia de Milkman, a voz ancestral que o inspira e que move a narrativa com seu canto e sabedoria. Escolhido o melhor romance daquele ano e agraciado com outras importantes premiações e honrarias 8 , a obra contribuiu para impulsionar um verdadeiro boom da literatura feminina negra no país, que incluiu nomes como Paule Marshall, Alice Walker, Maya Angelou, Ntozake Shange, Toni Cade Bambara, Gayl Jones, Audre Lorde, Angela Davis, entre outros. O momento fértil acontecia também na crítica, na historiografia e no ativismo dos movimentos e organizações de mulheres negras e de cor. A relação visceral entre eu e nós (as memórias africanas, mas também o vilarejo, o bairro, a vizinhança), entre o eu e os pais, avós e ancestrais distantes, conhecidos ou imaginados, são laços elaborados por Morrison e por várias das escritoras do período.
A obra de Paule Marshall é exemplo disso. Mostra a jornada de personagens negras dominadas por valores eurocêntricos, egoístas e consumistas que, em dado momento da vida, por decisão própria ou interferência externa, passam por uma epifania. Nascida Valenza Pauline Burke em abril de 1929 no distrito de Brooklyn, Nova York, a escritora ocupa um lugar especial na literatura feminina negra dos Estados Unidos, embora ainda não esteja traduzida no Brasil 9 . Seus pais eram imigrantes vindos da pequena ilha de Barbados, no Caribe anglófono, e moravam no Brooklyn, em vizinhança onde predominavam os imigrantes caribenhos. Apesar das dificuldades financeiras da família, após a escola pública Marshall conseguiu graduar-se com louvor em Literatura
8 O romance recebeu os prêmios National Book Award , o National Book Critics Circle e o American Academy and Institute of Letters . Matéria de capa do New York Times Book Review, foi o primeiro livro de autoria negra selecionado para o Book-of-the-Month-Club desde 1940 (MORRISON, 1977b). O reconhecimento internacional veio com o Nobel de Literatura em 1993, pelo conjunto da obra, além do National Book Award e do prêmio Pulitzer pelo romance Beloved [ Amada ], de 1987. Em 2012, Morrison foi homenageada com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo então presidente americano, Barack Obama.
9 Há uma tradução inédita do conto “Brazil” (FLORES e COSER, 2019).
Ancestralidade, a escrita de si e de nós...
Inglesa no Brooklyn College e fazer mestrado no Hunter College, instituições de prestígio que integram a City University of New York (CUNY). Nos anos 1950, época em que trabalhou para a revista Our World, direcionada a leitores negros, viajou por países do Caribe e também ao Brasil, reunindo observações que vão alimentar futuras histórias, os primeiros contos e seu primeiro romance, Brown girl, Brownstones (1959). A ele se seguiu a coletânea Soul clap hands and sing (1961), com quatro contos longos (ou novellas) sobre partes da AfroAmérica estendida ao longo do Atlântico: “Barbados”, “Brooklyn”, “British Guiana” e, finalmente, “Brazil”, que se passa no Rio de Janeiro dos anos 1950. O protagonista deste conto é um ator cômico de sucesso que há décadas se apresenta como Caliban no palco da “Casa Samba”. Negro, baixinho e desengonçado, em contraste com sua coadjuvante, a loura, alta e atraente Miranda, divertia as plateias contando piadas em meio a malabarismos e imitações disparatadas como a de Joe Louis, o grande boxeador10 .
Distanciado de suas raízes familiares mineiras e também da comunidade negra no Rio de Janeiro, cidade onde vive em luxo e isolamento, ele se tornara indiferente ao sofrimento dos pobres e um explorador de corpos e papéis femininos, tanto da virgem/esposa/mãe, quanto da artista/amante descartável. Já envelhecido, cansado da fantasia e da falsidade em que vive, quer se aposentar e recuperar suas origens e a si mesmo, o cidadão Heitor Baptista Guimarães (seu nome de batismo). Mas ninguém o aceita como tal e nem ele mesmo reconhece a face sem maquiagem no espelho: só existe o personagem caricato. Ao final, em revolta solitária, debate-se, quebra espelhos e portas, destrói o apartamento que havia comprado para a amante e foge em desespero: cenas que parecem ilustrar o argumento de que os “legados coloniais são um espaço de acumulação de fúria” (MIGNOLO, 2005, p. 9). O texto termina com as interrogações de sua amante e parceira de palco, a perplexa Miranda, que não entende o que está acontecendo: “Caliban! Caliban! Aonde você vai?”, repete ela (MARSHALL, 1988, p. 177). O homem não consegue salvar-se do caos do não-ser, mas a pergunta que ecoa faz pensar no bíblico “Quo vadis? ”, sobre escolha e caminho. Em “Brazil” e nos demais contos da coletânea, a fratura identitária dos protagonistas masculinos se vincula ao abandono das origens, à absorção de valores capitalistas e à falta de uma consciência racial e histórica. Publicada em 1961 e anterior ao Movimento dos Direitos Civis, a narrativa de Paule Marshall não questiona o sistema com os punhos erguidos
10 Personagens provavelmente inspirados pelas chanchadas de Grande Otelo e pelas vedetes do Teatro de Revista, espetáculos populares no Rio na década de 1950, e por Carmen Miranda. Os nomes se reportam, claro, aos famosos personagens shakespearianos da peça The tempest /A tempestade (1610-11), uma referência para escritores e intelectuais caribenhos e pesquisadores envolvidos nos estudos subalternos, pós-coloniais e descoloniais.
do Black Power. Seu personagem difere muito do Caliban rebelde e incisivo do cubano Fernández Retamar (1972), que o representa como o subalternizado que aprende a língua do mestre para expulsar o colonizador e garantir a liberdade na América Latina.
Mas “Brazil” continua sendo um texto instigante, que parece dialogar com dois intelectuais de renome sobre as questões de raça e colonialismo nas Américas, W.E.B. DuBois (1868-1963) e Frantz Fanon (1925-1961). Em sua obra-prima publicada em inglês em 1903, The souls of Black Folk [As almas da gente negra,1999], DuBois aborda “o problema do negro” com base em suas próprias memórias: “quando a sombra tomou conta de mim”. Sendo o Outro da sociedade eurocêntrica, o negro já nasce com “um véu”, a “sensação estranha” de uma “consciência dupla”[...], “sempre a se olhar com os olhos dos outros, a medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade” (DUBOIS, 1999, p. 52, 54). Talvez desiludido com o racismo persistente nos Estados Unidos, seu país natal, DuBois escolheu voltar à terra de seus ancestrais e lá morrer. Ao receber a cidadania em Gana, declarou: “Meu bisavô, atado a correntes, foi arrancado do Golfo da Guiné. Eu voltei, para que o meu pó se misture ao pó dos meus ancestrais” (DUBOIS, 1999, p. 12).
Também a partir da própria vivência, o escritor, ativista político e psiquiatra martinicano Frantz Fanon focaliza a identidade fraturada dos negros das Américas, particularmente em seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952). Ao distanciar-se do mundo familiar antilhano, chegar à França e encontrar os impiedosos olhos brancos europeus, o jovem Fanon se sentiu objetificado, despido de humanidade e identidade. Para se ver respeitado como pessoa, entendeu que o negro (associado no espelho eurocêntrico ao ridículo e à feiura) é forçado a ser branco e viver, assim, “em luta permanente com sua própria imagem” (FANON, 1952, p. 112-113; 194). Inferiorizado pela hegemonia branca, o negro antilhano entra em “uma zona do não-ser, região estéril, árida e em declive profundo”, mas existe esperança porque ali, no fundo do poço, “pode nascer uma autêntica reviravolta”. Para superar aquela “ambiguidade neurótica” e alcançar a liberdade, será necessário “um esforço pela desalienação”, afirma Fanon (1952, p. 10, 192-94, 231). Ou a necessária descolonização da mente, como enfatiza a teórica feminista bell hooks (1995, p. 474). A persistência do legado colonial se evidencia quando “a dominação e a opressão continuam a moldar as vidas de todos, sobretudo das pessoas negras e mestiças”. Só com a transformação social “as pessoas oprimidas e/ou exploradas [...] passariam de objeto a sujeito que descolonizariam e libertariam suas mentes”
(HOOKS, 1995, p. 477, 466).
Ancestralidade, a escrita de si e de nós...
Essa passagem a sujeito da própria história é buscada no romance publicado por Paule Marshall em 1969, The chosen place, the timeless people [O lugar escolhido, o povo eterno], que tem lugar numa ilha fictícia do Caribe, inspirada em Barbados. Próximo ao final a protagonista Merle Kinbona decide partir para Uganda, na África, onde quer recuperar as raízes africanas e afetos importantes, como a relação com a filha que lá se encontrava. Para a viagem, escolhe uma rota aérea que reflete sua crescente resistência à dominação eurocêntrica nas Antilhas; privilegiando o sul, destaca os laços próximos entre Barbados – país mais a leste no Caribe –, o nordeste brasileiro (ainda mais a leste) e o continente africano:
[Merle] não ia fazer a rota habitual para a África, voando primeiro ao norte para Londres via Nova York, e depois descendo. Em vez disso, voaria ao sul para Trinidad e dali para Recife no Brasil, e de Recife – esta cidade onde o braço do hemisfério se estende na direção do grande ombro da África, como se desejasse juntar-se a ele, como certamente havia sido no começo – ela cruzaria o oceano até Dakar, de onde começaria sua longa jornada atravessando o continente até Kampala11 .
Esse trajeto aéreo não envolve a magia nem os lendários poderes alados evocados por Toni Morrison em Song of Solomon, mas reflete um desejo semelhante de identidade e retorno. O poeta e historiador barbadiano Kamau Brathwaite (1930-2020) apresenta The chosen place, the timeless people como exemplo da “literatura de reconexão” com a África, tendência que ele via expandir-se entre autores negros dos Estados Unidos sob a influência do movimento Black Power nos anos 1960. Brathwaite (1974, p. 99) aponta no romance “um reconhecimento da presença africana em nossa sociedade, não como qualidade estática, mas como raiz – viva, criativa”. Paule Marshall recebeu vários prêmios por seu trabalho (romances, coletâneas de contos e um livro de memórias), inclusive o American Book Award (1984) por Praisesong for the widow (1983a) sua obra de maior reconhecimento crítico, aplaudida pela nova crítica feminina-negra produzida nos anos 1980 12 .
11 “She was not taking the usual route to Africa, first flying north to London via New York and then down. Instead, she was going south to Trinidad, then on to Recife in Brazil, and from Recife, that city where the great arm of the hemisphere reaches out toward the massive shoulder of Africa as though yearning to be joined to it as it surely had been in the beginning, she would fly across to Dakar and, from there, begin the long cross-continent journey to Kampala” (MARSHALL, 1969, p. 471).
12 Dois romances de Marshall estão entre as 14 melhores obras de ficção publicadas por escritoras negras nos Estados Unidos entre 1965 e 1983 (SPILLERS, 1985, p. 257). Ela lecionou em universidades como Yale, Columbia, Berkeley e Virginia Commonwealth; também integrou programas de criação literária, como o “Writers’ Workshop” da University of Iowa e o “Creative Writing Program” da New York University.
Para Avey, protagonista deste romance de Marshall, o retorno às origens e a si mesma começa ao longo de um cruzeiro pelo Mar do Caribe, quando ela se cansa do luxo e da artificialidade do navio e se isola com suas memórias. Relembra tanto a insistência da filha no orgulho e na cultura negra (que Avey havia renegado), quanto as histórias maravilhosas que sua tia-avó contava sobre os africanos Ibos, que fugiam da escravidão pelo mar adentro, voltando à África. Como que guiada pelas duas, a mulher abandona a excursão e o hotel turístico em Granada onde o cruzeiro fazia pausa, para mergulhar em si mesma e nos ancestrais. O processo culmina na recuperação de sua africanidade e do seu nome real, Avatara, nos rituais, cantos e danças e, principalmente, no acolhimento da comunidade na pequena ilha de Carriacou. Esta obra de Paule Marshall aponta claramente que o caminho da afirmação pessoal é inseparável do saber coletivo: pode ser encontrado no respeito pelo Outro, na palavra e experiência dos antepassados, nas histórias orais, nos rituais afro-americanos e nos “lugares de memória” ligados à diáspora africana nas Américas. Quanto aos personagens, a própria escritora declarou em 1991 que era do seu agrado representar “pessoas vivendo um momento de crise e de questionamento em suas vidas, levá-los a passar por algum tipo de viagem espiritual ou emocional e só então deixá-los, quando essa jornada tiver cumprido seu ciclo e ajudado a compreenderem algo sobre si mesmos” (apud ROGO, 2019).
Mães e ancestrais: as fontes da escrita
Segundo Barbara Christian (1983, p. 185), destacada crítica literária no boom cultural dos Estados Unidos nos anos 1970-80, tornava-se evidente que “cada vez mais, a linguagem e as formas na ficção escrita por mulheres negras se derivavam tanto das experiências vividas por mulheres, como da cultura afro-americana”, sua língua e suas histórias. As questões sobre afiliações narrativas se entrelaçam em grande parte da literatura e do pensamento crítico-teórico produzido por mulheres negras daquele período. Continuam reverberando no momento atual em novos entrelaçamentos diaspóricos que incluem o Brasil – como exemplifico com os textos de Paule Marshall, Toni Morrison e Conceição Evaristo colocados em breve diálogo neste estudo.
As relações familiares e culturais transmitem empoderamento e identidade, abrangendo toda uma rede afetiva que proporciona suporte e história. Tendo passado infância e adolescência junto à comunidade migrante do Brooklyn, Paule Marshall aprendeu o quê e como narrar ouvindo conversas entre a mãe e vizinhas reunidas na cozinha simples, compartilhando receitas,
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opiniões, memórias e histórias. Delas herdou o orgulho da raça e das origens caribenha e africana, a consciência política de caráter interamericano e internacional, a linguagem sensível, rica em imagens e evocações e, também, o desejo de criar narrativas entrelaçando a imaginação com fatos e personagens reais. No belo ensaio “From the poets in the kitchen”, a escritora declara seu débito para com as “poetas na cozinha”, força basilar em sua narrativa: “Sempre reconheço, antes de qualquer outra [influência], o grupo de mulheres ao redor da mesa, muito tempo atrás. Elas me ensinaram as primeiras lições sobre a arte narrativa. Educaram meu ouvido. Estabeleceram um padrão de excelência” (MARSHALL, 1983b).
Cresci no meio de poetas. Mas elas não pareciam poetas – seja qual for a aparência que essa classe deva ter. Nada nelas poderia sugerir que a poesia era sua vocação. Eram apenas um grupo de esposas e mães comuns, inclusive minha mãe. […] Também não faziam o que poetas deveriam fazer – passar seus dias num sótão escrevendo versos. Nunca pegavam papel e caneta para nada, exceto de vez em quando para escrever aos parentes em Barbados (MARSHALL, 1983b, p. 1).
As cartas conectavam as mulheres a suas famílias distantes, ainda que em linguagem convencional e sem revelar grande coisa. Cada uma saía de casa cedo e pegava um trem para ir trabalhar em emprego fixo ou como faxineira diarista, mesmo no alto inverno. Na volta, às vezes paravam e se reuniam na cozinha da casa simples onde vivia a família de Paule Marshall no Brooklyn, e ali “falavam – sem parar, apaixonadamente, poeticamente, e com uma variedade impressionante. Nenhum assunto estava além [do interesse e capacidade] delas” (MARSHALL, 1983b, p. 2-3). As fofocas entravam na conversa, mas também muita política e economia durante a severa Depressão dos anos 1930. Roosevelt era um herói, Marcus Garvey um verdadeiro Deus e Hitler, em plena Segunda Guerra, era “o diabo em pessoa”. Falavam dos conterrâneos em Barbados, “a pequena e ensolarada ilha caribenha que amavam, mas tiveram que deixar”; e também de sua “terra adotiva, a América”, onde, apesar de estranharem os costumes, sonhavam ter uma casa e educar bem os filhos.
Décadas após testemunhar tais cenas a partir do cantinho onde fazia os deveres de escola, Paule Marshall (1983b, p. 3-4) observa que, “mais que uma terapia”, a conversa livre e solta era a possibilidade que aquelas mulheres tinham de se expressar: “elas fizeram da língua falada uma forma de arte […] condizente com a tradição africana, em que arte e vida são uma coisa só”. Na sua condição “triplamente invisível como negras, mulheres e estrangeiras”, ali se sentiam livres e usavam a palavra com surpreendente perspicácia, criatividade
e ousadia, afirmando seu poder e visibilidade.13 A escritora parece estar se referindo a sua própria narrativa e a seu uso da língua inglesa pois, assim como “as mulheres na cozinha”, enxertou suas histórias de metáforas, referências bíblicas e traços biográficos, entrelaçando história social, política e diaspórica com a vida das personagens. Lá pelos nove anos, Marshall saiu de seu canto na cozinha para a biblioteca do bairro, “da palavra falada para a escrita”, quando descobriu a cadência do dialeto negro nos poemas de Paul Laurence Dunbar e sentiu o desejo de escrever “com um pouco daquele poder que a mãe e suas amigas possuíam com as palavras”. Mais tarde, reconheceu publicamente: “o melhor do meu trabalho deve ser atribuído a elas, um testemunho do rico legado da língua e da cultura que transmitiram a mim tão espontaneamente na oficina de palavras” que funcionava na cozinha de sua casa (MARSHALL, 1983b, p. 5).
A dívida de sua narrativa para com os antepassados é reconhecida por Toni Morrison, que, ao ser questionada sobre a razão de suas obras falarem tanto sobre avós e ancestrais, respondeu:
Esse é o DNA, é onde você tem sua informação, sua cultura. É também sua proteção, sua educação. Eles foram tão responsáveis por nós, agora devemos mostrar nossa responsabilidade para com eles. Se você ignora seus ancestrais, coloca-se numa posição espiritualmente perigosa de autossuficiência, sem nenhum grupo onde se apoiar (MORRISON, 1987, p. 137).
No ensaio “Rootedness: the ancestor as foundation” (1984, p. 344), Morrison sublinhou a necessidade da conexão histórica e o perigo de perdê-la: “Quando você mata o ancestral, você mata a si mesmo”. O compromisso com a herança e a comunidade gera a energia que fecunda o processo de criação, a escrita e a arte. Admirava os clássicos, mas sua escrita se inspirou sobretudo na cultura afro-americana, sua língua, as histórias que cresceu ouvindo, sua música: na verdade, gostaria que sua literatura expressasse a cultura de uma forma tão completa quanto a música conseguia fazer (MORRISON, 1983, p. 426). Tentou imprimir à sua escrita a sonoridade, a graça e a força da linguagem própria do povo negro – e que ouvia em casa: “Quando penso nas coisas que minha mãe, meu pai ou as tias costumavam dizer, me parece a coisa mais surpreendente do mundo. É o que procuro trazer para a minha ficção”, disse Morrison (1977b). Como “o povo negro acredita na magia”, ela recorreu ao folclore, ao que "ele possuía de mágico e superticioso". Sobre a
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crença ancestral no poder de voar (que havia retomado em Song of Solomon), Morrison declarou: “sempre fez parte do folclore em minha vida; voar era um dos nossos dons” [...] “Está por toda parte – na conversa das pessoas, nos spirituals, nos evangelhos” (MORRISON, 1981, p. 27). A escritora valorizou os saberes práticos e também os mágicos, com frequência desacreditados como “superstição”, mas que ela considerava uma “outra forma de saber as coisas”. Ao tentar pontuar características presentes em sua escrita e na literatura afro-americana [African-American] de modo geral, Morrison (1984, p. 34243) destacou “a qualidade oral”, a interação entre personagens e comunidade, “representada por um coro”, a participação dos leitores e, por fim, “a presença de um ancestral”, não necessariamente os pais, “mas pessoas atemporais cujas relações com os personagens sejam benevolentes, instrutivas e protetoras, e apresentem certa sabedoria”.
Memória e família são também pedras fundamentais na ficção da brasileira Conceição Evaristo. Em seu marcante texto-depoimento, “Da grafiadesenho de minha mãe um dos lugares de nascimento da minha escrita” (2005), ela revela como a escrita lhe chegou a partir da grandeza simples da arte materna: “Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda”? Evaristo rememora o aprendizado de infância em meio a fome e pobreza, mas iluminada pelo sol que a mãe desenhava com um graveto, agachada no chão frio de terra molhada. Junto com as irmãs, a menina Conceição participava daquela “simpatia para chamar o sol” que abarcava seus corpos, um ritual de urgência em face das roupas molhadas e acumuladas que a mãe precisava secar, passar e entregar às patroas para receber dinheiro e comprar comida. Muito cedo Conceição descobriu “a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita” comprometida com o cotidiano da vida.
Agradecida, a autora descreve sua afiliação: foram as mãos lavadeiras da mãe que “guiaram os meus dedos no exercício de copiar meu nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números”. As mesmas mãos folheavam jornais e revistas velhas e costuravam folhas soltas (inclusive de papel de pão) para servir de caderno. A mãe preparava as “listas de mantimentos” a comprar, a tia anotava “datas e acontecimentos importantes”, desde o sumiço da “última galinha d’angola” até o noivado da sobrinha. A literatura criada por Conceição Evaristo brota desse conjunto de narrativas aparentemente triviais, como ela conta: “a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa
e adjacências. Dos fatos contados a meia voz, dos relatos da noite, segredos”. Como fez Paule Marshall, Evaristo incorporou à escrita também a fala das vizinhas: “Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das portas contando em voz alta uma para outras as suas mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas de mulheres”! Em um mundo machista e violento, elas se contagiavam e se protegiam mutuamente: “Falar e ouvir entre nós, era talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos”. O ato de escrever, desde o sol trazido ao chão pela mãe, permite ao sujeito da escrita “sua auto-inscrição no interior do mundo”, o que, para mulheres negras longamente marginalizadas, “adquire um sentido de insubordinação” (EVARISTO, 2005).
Ao associar pai e mãe à raiz, história e ancestralidade, a literatura da diáspora africana pode revelar traumas profundos conectados ao tráfico e à escravidão. Toni Morrison relaciona a troca de nomes por parte dos negros de seu país à “orfandade cultural” e à “rejeição do nome” imposto: “Se você vem da África, seu nome desaparece – sua família – sua tribo”, restando a “enorme cicatriz psicológica”. Tem poder aquele que “conhece seu nome e o nome das coisas” (MORRISON, 1981, p. 28). Interessada em investigar as justificativas políticas e éticas de relembrar o passado e retornar à África, Saidiya Hartman (2002) ouviu depoimentos semelhantes. No tráfico, o escravizado perdia sua mãe, o que significava “ser privado de família, etnia, país e identidade. Perder a mãe era esquecer o passado”. Esse passado continua sendo carregado porque os descendentes de escravizados sofrem com a filiação desconhecida, o anonimato dos ancestrais; e porque, simplesmente, o passado não passou. “A subordinação racial, o encarceramento, o empobrecimento, a cidadania de segunda classe: este é o legado da escravidão que ainda nos atormenta” (HARTMAN, 2002, p. 761-62, 766).
A literatura escrita por mulheres negras desde os anos 1960, sem buscar um retorno literal e impossível a uma África de origem, com frequência examina e reescreve a história da diáspora nas Américas, valorizando heranças culturais africanas, a consciência e o orgulho da identidade negra. Admiradora da força mental e da coragem narrativa dos primeiros escritos negros na América – os relatos dos próprios escravizados nas chamadas slave narratives, Morrison (1983, p. 427) enfatiza que “o povo negro tem uma história e essa história deve ser ouvida” com toda sua carga de sofrimento, imaginação, oralidade e ancestralidade. Ela procura criar uma literatura Black nessa linha e, por isso, gostaria de ser compreendida dentro da cultura em que se inseria e sobre a qual escrevia, e não de não ser avaliada segundo paradigmas alheios e europeus (MORRISON, 1984, p. 342-43). Em sua visão, o escritor não é
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uma figura superior e isolada em torre de marfim; ao contrário, sua voz sai de dentro da comunidade e, sendo “um deles”, pode conseguir do público leitor “uma resposta visceral, emocional, além de intelectual”. Longe da crítica que privilegia “o artista como o indivíduo supremo”, sempre “em confronto com sua própria sociedade”, Morrison (1984, p. 343-345) se identifica com o escritor que pressupõe “nós” ao narrar: “Não estou interessada em me entregar a um exercício de imaginação particular, fechado, voltado apenas para meus sonhos pessoais”. E sobre o que a literatura deveria falar, a resposta é taxativa: “Se não for sobre a vila, a comunidade, ou sobre você, leitor, então não é sobre nada”. E mesmo que “político” seja um “termo pejorativo para a crítica”, ela defende que a arte seja “indiscutivelmente política e, ao mesmo tempo, definitivamente bela”.
Expressas há quase quarenta anos, as ideias de Toni Morrison sobre sua própria escrita e filiação permanecem atuais e sintonizadas com elaborações recentes de Conceição Evaristo sobre seu conceito de “escrevivência”, criado a partir do lugar de enunciação de uma mulher negra no Brasil. Evaristo afirma que sua escrita, como a de outras autoras em nosso país, fala da sua experiência e também das condições afro-diaspóricas, reconhecendo “semelhanças históricas com escritoras afro-americanas e afro-cubanas”.14 Ao visitar a Escola Municipal Morro da Cruz, na cidade de Porto Alegre, como parte de projeto socioeducativo desenvolvido em 2018 pela Itaú Cultural (exatamente sobre “A escrevivência de Conceição Evaristo”), a escritora ficou surpreendida e feliz ao encontrar alunos e ouvir a definição do pequeno Vitor Eduardo Severo da Silva, de apenas seis anos. Quando ela perguntou a sua turma o que significava “escrevivência”, o menino respondeu: “É escrever de nós” – ou melhor, “ di nóis”, do jeito que fala o povo, relembrou Conceição (EVARISTO, 2021).
Como bem observou o pequeno leitor, a escrevivência integra o eu que escreve com os leitores e a comunidade. Para bem compreender a literatura negra de hoje, ressalta a escritora, faz-se necessária uma renovação crítica com “novas formas de ler e novos aparatos teóricos” desvinculados de matrizes eurocêntricas. Sendo assim, “a escrevivência poderia ser pensada como ‘escrita de si’”, conceito influente estabelecido pelo francês Philippe Lejeune (2008), mas elaborada “por um outro caminho”. O texto negro não se esgota no indivíduo, “sua vida e suas angústias”; ele aborda uma “experiência pessoal” que se amplia com o pensamento “na coletividade”. Para Conceição, “a escrevivência não deve ser tomada como espelho de Narciso, em que o sujeito se contempla e se
14 Evaristo vê ligações entre o Quarto de despejo de Carolina de Jesus e seu Becos da memória ; entre Sula , de Toni Morrison, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola , de Maya Angelou, e Ponciá Vicêncio ; e entre as protagonistas em A cor da ternura , de Geni Guimarães, O olho mais azul , de Morrison, e Cartas para Minha Mãe, de Teresa Cárdenas.
perde na própria imagem”. Ela prefere “metaforizar dentro da cultura afroamericana” e pensar “no espelho de Oxum, orixá feminino, onde o sujeito negro percebe sua potencialidade, mas não se perde em si mesmo, ou no espelho de Iemanjá, que é o espelho de todos, da comunidade”. Assim, em Conceição e na literatura feminina negra das Américas há uma “escrita de nós” na qual o sujeito “se potencializa para reconhecer o outro”, os espelhos ampliam a percepção e reiteram o princípio das culturas bantu, “eu sou porque tu és” (EVARISTO, 2021)15 .
Interligando escritas e pensamentos sobre filiação, ancestralidade e diáspora, este trabalho presta uma homenagem especial a Toni Morrison (1931-2019) e Paule Marshall (1929-2019), duas grandes escritoras dos Estados Unidos que se sobressaíram na destacada geração dos anos 1970-1980 e que tive a honra de conhecer, ouvir, admirar e depois analisar em minha tese de doutorado (COSER, 1995). Reconhecidas também por sua generosidade e discrição, marcaram muitas décadas e iluminaram as experiências de mulheres afro-americanas não só na escrita ficcional, mas também na reflexão teórica sobre cultura e literatura a partir de sua própria vivência e lugar. No mês de agosto de 2019 o mundo literário foi surpreendido com a morte das duas escritoras: Morrison faleceu no dia 5 em Nova York, aos 88 anos, e Paule Marshall no dia 12, em Richmond, Virginia, aos 90 anos. Na última página de seu livro de contos Krik?Krak! (1996, p. 227), a escritora Edwidge Danticat, de origem haitiana, já tinha registrado um agradecimento a Paule Marshall, que Danticat considera “the greatest kitchen poet of all”[“a maior de todas as poetas na cozinha”], aludindo ao texto de Marshall “From the Poets in the Kitchen”, que muito a impressionara e influenciara. Em 2019, Danticat dedica o belo ensaio “The ancestral blessings of Toni Morrison and Paule Marshall” a suas amadas precursoras, lembrando tanto da afirmativa de Morrison de que ancestrais “não são só os pais, são aquelas pessoas eternas”, quanto da “devoção escancarada” que Marshall tinha a seus ancestrais. Integrante de uma nova geração e de um novo boom de escritoras nos Estados Unidos (agora constituído por imigrantes de cor), Edwidge Danticat (2019) declara: “Ler Paule Marshall e Toni Morrison me deu a sensação de expandir minha consciência
15 “Na língua bantu, ubuntu exprime a consciência da relação [...] indivíduo e comunidade – eu sou porque tu és – e inspirou Mandela na sua política de reconciliação nacional e de construção da paz”. Sem “abdicar de si”, “ promover o autoconhecimento, a confiança e uma resiliência [...] que leve à empatia com os outros” (LABORINHO, 2019).
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da linhagem cultural”. Sente-se abençoada por ter tido a oportunidade de conviver com ambas, criar laços, aprender com o apoio e a generosidade delas, e ser “uma espécie de representante de todos os seus admiradores mais jovens, particularmente os que gostavam tanto da pessoa, quanto da obra”.
Foi assim que Morrison e Marshall se juntaram a seus ancestrais e precursores em 2019, tornando-se também ancestrais e ‘mães’ inspiradoras de outras escritoras. Conceição Evaristo, por exemplo, antecipou sua homenagem a Toni Morrison ao incluí-la, junto com a cantora Nina Simone, entre as rainhas negras veneradas no conto “Regina Anastácia”, em Insubmissas lágrimas (2011, p. 106-7), que incluem desde a Rainha Anastácia até Mãe Menininha do Gantois, Clementina de Jesus, Ruth de Souza e tantas outras, deste e do outro lado do Atlântico. Djamila Ribeiro relata o tipo de influência que ela e outras escritoras receberam de Morrison:
Como mulher negra, acho que ela nos impulsiona ao dizer que a gente tem que contar as histórias que ainda não foram ditas. A quebra do silêncio é algo que percorre a obra de muitas mulheres negras e a Toni contribui para isso de uma maneira muito profunda, que inspira a gente a ter coragem de contar nossas próprias histórias” (apud LIMA, 2019).
Na percepção de Jarid Arraes, a escrita de Morrison é “um encontro de estética e política – inseparáveis”, e seus livros escondem tesouros inesgotáveis: “A transformação que eles nos proporcionam é duradoura, quem sabe definitiva, quem sabe uma porta aberta para um caminho que vai muito longe e podemos escolher continuar caminhando” (apud LIMA, 2019). Para a jovem escritora e jornalista Fernanda Bastos (2019), ler Morrison “foi semelhante ao descobrimento de um novo mundo. Era a primeira vez que eu via o meu universo retratado na literatura”. A jornalista Carol Almeida (2016), por sua vez, escuta ancestralidade até na voz de Toni Morrison: “Há uma ternura ancestral no grave de sua voz, como se sua fala, de uma austeridade estranhamente doce, carregasse a soma do canto de alegria e dor de todas as mulheres negras que vieram antes”.
As obras de Morrison e de Marshall permanecem como marcos na literatura das Américas, uma arte associada à história da diáspora africana e seus legados culturais, escrita “de si” e de nós todos. Nas últimas décadas o Brasil passa por uma intensificação de trocas interamericanas no movimento negro, em análises acadêmicas e produções artístico-literárias – particularmente de mulheres negras. Em eventos e encontros, traduções e publicações em editoras pequenas e grandes, há um grande compartilhar de experiências e produções entre Brasil e Estados Unidos. Ativistas, escritoras, historiadoras, sociólogas
e filósofas que abriram caminho por lá e ergueram bandeiras do feminismo negro, associando as lutas contra o sexismo, racismo e preconceitos de classe, alcançam ressonância na efervescência do movimento feminista e outros grupos organizados no Brasil do século XXI. Com grande visibilidade e traduções de quase todos os seus livros, Toni Morrison afinal alcança o reconhecimento longamente boicotado por grande parte do jornalismo e da crítica acadêmica. Também publicadas e estudadas por aqui, Audre Lorde, Angela Davis, bell hooks, Alice Walker e Patricia Hill Collins nos estimulam a valorizar e reeditar precursoras nacionais como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Carolina de Jesus. Que sejam traduzidas outras como Paule Marshall, Ntozake Shange, Gayl Jones e tantas mais, ampliando redes transversais de fertilização mútua. São principalmente as jovens ativistas e colegas escritoras que hoje abraçam, ensinam e/ou traduzem a literatura e a crítica cultural de autoria feminina-negra dos Estados Unidos, descartando as barreiras políticas ou ideológicas anteriormente erguidas no Brasil. Em termos pessoais, sociais, literários e políticos, elas buscam voz e fortalecimento ao mesmo tempo que aprofundam laços com a história coletiva. Neste estudo das relações da escrita com a genealogia e as heranças culturais, o diálogo das histórias de Paule Marshall e Toni Morrison com a escrevivência de Conceição Evaristo revela a força das raízes africanas, a solidariedade entre mulheres diaspóricas, a memória e a ancestralidade entranhadas no relato ficcional. Junto à potência do eu, na fertilidade de seus escritos, destaca-se a história coletiva em repetidas denúncias e elaborações sobre o doloroso legado colonial que continua a assombrar as Américas.
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Conforme argumenta Julio Premat (2016), a literatura que seguiu à ditadura da imanência textual imposta pelos modelos estruturalistas dos anos sessenta respondeu com uma escrita que restituía a capacidade de falar do histórico e do social. Da mesma maneira, no final do passado milênio e nos inícios do século XXI, a literatura contestou à tão falada “morte do autor” com uma produção que explicitava a subjetividade, a intimidade do sujeito que escreve. Esse mesmo gesto de resistência se repete na contemporaneidade, quando prolifera um tipo de escrita que, para resistir à “crise do tempo” descrita por Huyssen, volta-se para o anacronismo, para a construção de arquivos de vidas passadas, para as filiações, no intuito de “fabricar memorias y orígenes frente al hundimiento social de la transmisión” (PREMAT, 2016, p. 117). E conclui o crítico: “Las temáticas de filiación son una manera de situarse ante el pasado, ante los antepasados: ante la biblioteca, ante los padres literarios o biográficos, ante la pertenencia o no a una generación que vivió paroxismos de violencia, frente a heridas memoriales” (2016, p. 117).
Essa reflexão final de Premat convida a pensar a ideia de filiação não só nos marcos do tema literário da transmissão familiar e do modelo narrativo descrito por Domique Viart (1999; 2002; 2019), mas também associada à transmissão de
tradições literárias, inclusive, como problema fulcral da crítica e da historiografia literária na contemporaneidade: Como pensar as relações de filiação e afiliação nos processos de formação de uma literatura nacional ou regional? Como funcionam essas relações no mundo transnacional de hoje, quando os deslocamentos, os contatos linguísticos e os trânsitos culturais correm uma ideia de unidade essencial da cultura? Como pensar genealogias literárias fora dos modelos canonizados de origem, identidade e representatividade? É possível reconhecer pais literários em outras tradições, em outras épocas literárias, em escritores raros ou em deslocados de um cânone? Podem as obras de escritores aparentemente distantes no tempo e no espaço articular uma comunidade de escrita? É possível traçar uma cartografia dessas raras filiações no contexto de uma literatura nacional ou regional?
Para estudar essas questões, proponho recuperar a distinção que Edward Said (1983) faz entre filiação e afiliação. Conforme explica Said, a crítica envolve sempre um questionamento da dimensão confortável que o institucional tende a estabelecer. Assim, a consciência crítica estará sempre situada entre duas tentações, a primeira relacionada com vínculos de “filiação” de nascimento, de nacionalidade, e a segunda articulada a sistemas de pensamento construídos e adquiridos por “afiliação”, que funcionam como substituição compensatória da autoridade das relações filiais naturalizadas. Ou seja, filiação está associada à origem e afiliação está associada a princípios.
Em The World, The Text, and The Critic (1983), Said estuda esses dois modos da prática literária se situar perante a tradição. Para o crítico orientalista, na cultura ocidental o caráter das relações é sempre filial, porém, disputado pelas afiliações ou identificações culturais. Assim, se as relações filiativas são do domínio da natureza, as relações do tipo afiliativo pertencem ao domínio da cultura; se a relação literária com o cânone é de tipo filiativo, sua contestação encontra espaço nas relações afiliativas. Para Said, a relação é transitiva: filiação implica pertença a uma cultura local e prefixada, enquanto afiliação, conceito não biológico, não essencialista, tem a ver com conexões entre textos, entre culturas, entre tradições; é sempre eletiva, compensatória, criativa e desalienante.
Nessa perspectiva, postulo a possibilidade de pensar certas tradições literárias que escapam do modelo filiativo instituído pelo cânone e reproduzido por uma historiografia literária tradicional, pensando inclusive, com Demanze e Lapointe (2009), na prática contemporânea de escritores que produzem um encontro singular com seus ancestrais literários e seus espectros, dialogam com eles, desenvolvendo genealogias artísticas e intelectuais surpreendentes
nas suas obras. Nessas escritas, a filiação biológica e as afinidades eletivas ou afiliativas fundem-se, à contramão dos cânones e das hierarquias estabelecidas. É o caso do trabalho que desenvolve o escritor cubano Antonio José Ponte quando na sua obra dialoga com os mestres do origenismo cubano, José Lezama Lima, Eliseo Diego, Cintio Vitier Virgilio Piñera, Lorenzo García Vega e, através deles, com toda uma tradição literária que passa por José Martí, Julián del Casal e remonta-se ao poema fundante da literatura cubana, Espejo de Paciencia (1608) de Silvestre Balboa, afiliando sua própria escrita a essa linhagem literária. Os textos de Ponte parecem organizar uma grande biblioteca de clássicos cubanos, mas uma biblioteca de tipo relacional, que aproxima em suas prateleiras textos e autores de diferentes momentos da série literária cubana, recuperando traços, coletando resíduos, costurando os fios que ligam esses resíduos e articulando com esses fragmentos toda uma genealogia literária. Essa ruinologia constitui-se em método de criação e opera no conjunto de seus textos. Porém, proponho uma aproximação a dois de seus livros, Las comidas profundas (1997)1 e El libro perdido de los origenistas (2002) 2 , nos quais vislumbro uma profunda unidade estética e conceitual. Ambos os textos iluminam-se e complementam-se, mostrando como Ponte assimila os modelos literários de Orígenes, ao mesmo tempo que também os transcende, no intuito de explicar-se a si mesmo e ainda de compreender o impacto dessa tradição na sua obra. Como “ensayos con arranque de novela” caracteriza Adriana Kanzepolsky (2010) Las comidas profundas, apontando para a singularidade genérica do livro nas primeiras linhas de seu posfácio à edição argentina de Beatriz Viterbo. Trata-se de sete vinhetas, que articulam o narrativo e o ensaístico, presididas por uma situação marco, em que um narrador nos faz partícipes de sua fome e de sua abundante imaginação criativa. Abre o livro a imagem de um escritor que olha para uma folha em branco sobre uma mesa de comer, carente de alimentos, mas coberta por uma toalha com desenhos de comidas. A personagem diante da mesa vazia imagina comidas e escreve. Curiosamente, a mesa de comer é também a mesa de escrever. Os desenhos da toalha evocam escritos sobre comida, estabelecendo uma singular sucessão com a folha em branco. Entre a superfície colmada de alimentos da toalha e o branco da página desfilam obras literárias que, alternando com o presente do personagem
1 Citarei pela edição argentina de Beatriz Viterbo Ed. (Rosario, 2010).
2 Citarei pela edição espanhola da Editorial Renacimiento (Sevilla, 2004).
escritor, convertem-se em objeto de reflexão das seguintes vinhetas. A última parte volta à imagem da mesa, para localizá-la em Havana.
Assim, focada no tema da escassez de alimentos no “período especial” em Cuba, Las comidas profundas revisita a tradição gastronômica cubana, uma história que se remonta à mesa de Carlos V e sua renúncia a experimentar o maravilhoso abacaxi (a história das comidas cubanas poderia começar por essa renúncia, adverte o narrador), ao mesmo tempo que também revisita o tópico da comida na história da literatura cubana, destacando as marcas de uma tradição literária que dialoga com a mesa carente do escritor. Na ausência de alimentos, metaforizam-se. Na fome, buscam-se os banquetes literários dos grandes mestres da literatura cubana. Dessa maneira, o tema da escassez de alimentos é tratado no nível concreto, na necessidade orgânica de comer, mas também como reflexão filosófica sobre o desejo, como erótica da arte, dirá Teresa Basile (2009, p. 172) e ainda como meditação sobre a origem da escrita. O tema da carência volta em El libro perdido de los origenistas, um conjunto de textos que, sem abandonar o trabalho com a imagem e o estilo metafórico e simbólico de Las comidas profundas, aproxima-se agora do discurso da crítica literária, combinando formas da crónica, da biografia e do ensaio. O texto que dá título à coleção examina a figura “do libro que falta” em obras de Lezama Lima, Eliseo Diego e Cintio Vitier, ao mesmo tempo que questiona a política cultural da revolução cubana que depois de censurar os escritores de Orígenes durante todos os anos setenta, restituía-lhes um lugar na cidade letrada cubana no final dos anos oitenta e inícios dos noventa, porém, uma restituição problemática, na opinião de Ponte. Nesse sentido, os demais textos que compõem o livro oferecem belas releituras da obra de Julián del Casal, de José Martí, de Virgilio Piñera, de Lorenzo García Vega e de José Lezama Lima, em um projeto crítico que Basile (2009, p. 188) define a partir de quatro estratégias: a des-leitura das figuras canonizadas e monumentalizadas pelo discurso letrado (Martí), a recuperação dos esquecidos (Casal), o resgate de figuras sequestradas pela nova reivindicação institucional dos noventa (Lezama) e a reabilitação dos “malditos” (Piñera e García Vega). O livro evidencia o contexto de polêmicas culturais em que se desenvolve e é parte importante da releitura do cânone cubano que se produz ao início do século XXI. Ponte está oferecendo um cânone literário alternativo e outra leitura dos imaginários nacionais e seus relatos.
Ambos os livros estão atravessados por esse redescobrimento de Orígenes que acontece em Cuba no final dos anos oitenta e inícios dos noventa, ao mesmo tempo em que manifestam um distanciamento crítico dessa restauração institucional extemporânea.
Definir o origenismo e seu lugar na cultura cubana e latino-americana da Modernidade é tema de longo alento, sobretudo, se não queremos cair em essencialismos e reduzi-lo a uma falsa ideia de unidade, desconsiderando as diferenças que articulam qualquer fenômeno literário e a espessura que teve esse em particular. Alguns críticos definem Orígenes como uma geração, outros como um grupo e muitos como um estado poético, inclusive, críticos como Raúl Hernández Novás (1990, p. 134) preferem ficar na estranheza de não encontrar uma definição exata. Aludirei neste estudo, de maneira geral, ao grupo de intelectuais que se articulou em torno da revista Orígenes que, sob a tutela de José Lezama Lima, teve vida entre 1944 e 1956 em Havana, focando nos fundamentos estéticos que esses escritores mobilizaram nesses anos e que ecoam de maneira tão significativa na obra de Ponte, lembrando que como o próprio José Lezama Lima expressou:
Orígenes es algo más que una generación literaria o artística, es un estado organizado frente al tiempo. Representa un minimum de criterios operantes en lo artístico y en las relaciones de la persona con sus circunstancias. Será siempre, o intentará serlo en forma que por lo menos sus deseos sean a la postre sus realizaciones, un estado de concurrencia liberado de esa dependencia cronológica que parece ser el marchamo de lo generacional (LEZAMA LIMA, p. 64, 1952).
Os origenistas empenharam-se em definir o cubano através da imagem poética, procuravam um outro olhar que os ajudasse a existir em um ambiente que se mostrava indiferente à cultura, pois a história de Orígenes está ligada à crise da República na primeira metade do século XX. Nesse contexto de crise permanente, é célebre a frase de Lezama: “un país frustrado en lo esencial político puede alcanzar virtudes y expresiones por otros cotos de mayor realeza” (1949, p. 61).
É nesses “cotos”, os da arte e da literatura, que Ponte encontra seu primeiro ponto de conexão com Orígenes. Há no escritor uma concepção da imagem, uma dimensão da palavra poética, uma percepção autônoma da literatura, que o emparentam com os velhos mestres origenistas. Pode-se dizer que as propostas estéticas do origenismo foram um refúgio atrativo para um escritor imerso no esgotamento do modelo realista de “representação” e “compromisso” que havia caracterizado a política da criação literária cubana nas décadas anteriores, lembrando também que a geração de Ponte, essa que Jorge Fornet (2001) identifica como a “geração do desencanto”, talvez haja encontrado no espírito do origenismo e nas vidas dos origenistas um paralelo
com o estado espiritual que se vivia na Cuba dos anos noventa, quando a perda do projeto utópico revolucionário é uma realidade.
Assim, Las comidas profundas e El libro perdido de los origenistas reconstroem uma linhagem literária assentada em Orígenes, através da assimilação antropofágica de formas, temas e tópicos caros ao origenismo, inclusive com apropriações metaliterárias de segunda ordem, se consideramos que o escritor segue os rastros das fontes origenistas, procede como seus mestres nas suas exegeses desse material, elaborando nesse movimento crítico toda uma constelação de textos e formas de escrita que articulam uma verdadeira estirpe literária.
“Llamo al espíritu de las viejas comidas” (2010, p. 16) diz o escritor faminto nas primeiras páginas de Las comidas profundas e com essas palavras começa o ritual que o conduzirá pela tradição dos banquetes literários. Vale lembrar neste ponto que no segundo capítulo de La expresión americana (1993), Lezama alude às comidas que se registram na história da literatura universal para ilustrar sua visão do barroco americano como resultado da “incorporação” de elementos do Velho Mundo no Novo Mundo, ou seja, Lezama encontra no banquete literário um caminho para explicar a continuidade entre o barroco europeu e o americano. O mesmo procedimento está em Ponte, quando alude a “incorporação” de alimentos na obra genésica da literatura cubana Espejo de paciencia, de Silvestre de Balboa, um poema épico que reúne elementos de várias tradições e, nesse sentido, é considerado pela crítica como a primeira tentativa literária de definir o cubano. Observa-se, ainda, que Ponte comenta a obra de Balboa pela lente origenista, citando as críticas que Cintio Vitier e o próprio Lezama Lima expressaram sobre o poema.
No entanto, o que mais interessa a Ponte é o fato de Balboa dar início à tradição da carência na literatura cubana, uma carência que volta na obra de escritores modernos e que reaparece em Ponte na forma de comidas ausentes. No meio da cornucópia das comidas saborosas descritas em Espejo de Paciencia, Ponte repara no lamento do Balboa pela comida que lhe falta: “De aquellas hicoteas de Masabo/Que no las tengo y siempre las alabo” (2010, p. 16). O escritor adverte que talvez sejam esses versos os mais importantes do poema, porque inauguram uma política do desejo na literatura cubana. A referência à ausência em Balboa, articulada ao incidente do monarca Carlos V, que prefere não experimentar o abacaxi por temor a ficar preso no desejo da sedutora fruta, resulta bastante indicativo de como carência e desejo estão, para Ponte, nas origens da cultura cubana.
Agora, a ideia do desejo insatisfeito que se transforma e multiplicase em imagem é uma herança origenista, um traço de Lezama Lima que
aparece no livro de Ponte. A valiosa interpretação de Teresa Basile em torno a uma erótica em Las comidas profundas emparenta o livro com o sistema poético lezamiano a partir de um entendimento da potência criativa do Eros. Para Lezama, essa potência do Eros é um território ilimitado onde se erige a “possibilidade infinita”, um espaço situado além do reino do real, sendo justamente nesse território erótico e não apropriável da poesis o que está no subsolo do livro de Ponte (BASILE, 2009, p. 177). A presença dessa dimensão lezamiana no texto mostra seu legado e a ressignificação de seus postulados estéticos no contexto de uma política cultural restritiva desses modos de expressão artística que domina na criação literária cubana dos anos sessenta, setenta e início dos oitenta.
Também, como Lezama Lima, Ponte recupera a história das comidas ausentes no patrimônio de outras literaturas. Nessas outras tradições, encontra um vínculo afiliativo para sua obra. No diário de Virginia Woolf (uma das escritoras estrangeiras que foi traduzida e publicada em Orígenes), escrito na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, o autor encontra um espelho para seu livro. No meio da guerra, Virginia Wolf descobre o que têm em comum seus livros e a comida, ambos precisam ser imaginados. Repara Ponte na anotação do dia 29 de dezembro de 1940, quando refugiada na casa de campo e sem comida registra: “hay que ver como disfruta uno de la comida ahora: compongo menús imaginarios” (p. 41) e, meses mais tarde, na anotação de 8 de marco de 1941 diz: “Tengo que preparar la cena. Bacalao ahumado y salchichas. Creo que uno consigue cierto dominio sobre las salchichas y el bacalao si los escribe” (p. 42). Nessas frases do diário de Virginia Wolff podemos encontrar a motivação narrativa de La comidas profundas. As comidas imaginárias de Woolf também alimentaram a criatividade de Ponte durante o Período Especial em Cuba. Sua única solução, como para Woolf, foi imaginar as comidas ausentes:
Aquí también acaba el año y las comidas se han vuelto palabras, proyectos de existencia o de memoria. Están en el futuro y el pasado, nunca ahora. En el presente, la lengua no las toca más que por sus nombres. Del remedo de tragarlas, brotan palabras y el fogón y la mesa se repletan de ellas (p. 43).
A fome, como falta, torna-se no texto de Ponte origem da arte, origem da escrita. Na carência de comidas, a imaginação cumpre uma função substitutiva. Nessa linha, Ponte reconhece toda uma tradição de escrita e seu interesse é inventariar essa herança.
Mas a carência em Las comidas profundas resulta também uma inversão irônica da cornucópia gastronómica de Paradiso (1966) e de Oppiano Licario
(1977). Se o banquete lezamiano era, na sua densidade barroca, uma síntese cultural cubana, a mesa desabastecida de Ponte, símbolo da crise económica dos anos noventa em Cuba é o banquete falido, a inversão quase irrisória desse modelo barroco da abundância, de tanta tradição na literatura latinoamericana. Trata-se, de um barroco de signo inverso, um “barroco da fome” observa Basile (2009, p. 179). Homenagem e desconstrução integram-se no palimpsesto da escrita. A letra dos outros nutre a própria letra de Ponte pelo caminho da afirmação e, ao mesmo tempo, pelo caminho de sua inversão.
Na imagem final do livro, com aquela página em branco e a frase “Una mesa en La Habana” (p. 55), o autor também aposta na inversão do modelo origenista. Abandonam-se as imagens associativas e proliferativas dominantes até esse momento no livro, para mergulhar no abismo da página em branco. Aquela frase, isolada no meio do papel, seguida de reticências, recria a imagem do vazio do presente histórico da personagem. Na órbita de um Mallarmé, essa imagem verbal renuncia à riqueza visual das imagens origenistas que caracterizaram as demais vinhetas do livro.
Não há dúvidas das pegadas de Lezama Lima em Las comidas profundas. Ponte desenvolve um tipo de ensaio de matriz literária e fatura esteticista muito afim com o trabalho do mestre origenista. A proliferação de imagens, a constituição de uma imago através da confluência de metáforas, a sacralização da poeticidade da linguagem, a densa prosa poética, a consciência de uma dimensão autônoma da arte e o próprio lugar que é concedido no livro ao escritor origenista fazem-lhe uma homenagem. Mas, também, o duplo jogo do banquete e sua substituição por uma estética da fome, assim como a inversão das superfícies colmadas do barroco por superfícies da carência, pelo espaço em branco, convidam a pensar na reescrita como ato produtivo, que introduz a Ponte numa estirpe literária ao mesmo tempo que a reconduz por novos caminhos.
Se com Las comidas profundas, Ponte arriba “al horno cubano de las transmutaciones para volver a masticar viejas palabras, para otorgarle nuevos sabores” (BERNABÉ, 2001, p. 34), com El libro perdido de los origenistas o escritor assume plenamente a necessidade de desmontar o cânone, dando outros sabores e outros tons à manipulada construção do origenismo nos anos noventa. “Dar con Orígenes por entonces era recobrar la verdadera literatura, ejercer como lector la libertad, escupir sobre los edictos que pretendían reglar las artes” (PONTE, 2004, p. 10), assegura o autor no prólogo do livro. Mas, Ponte mostra-se cuidadoso de não fazer uma leitura recanonizadora, seu interesse não é propor outro cânone, é abrir possibilidades para pensar tradições literárias fora dos entraves institucionais que forçam uma norma ou
pretendem uma totalidade essencialista. Nesse sentido, opta pelos pequenos relatos que se escondem nas grandes histórias, dando sentido a objetos da cotidianidade, a cenas em fuga, a imprevistos e descontinuidades. Encarregase, assim, de urdir um relato sobre a perda de livros que insistem no essencial cubano; de devolver uma imagem aérea e leve de José Martí, a contramão de sua saturada imagem apostólica; de trazer figuras esquecidas como Julián del Casal ou de recuperar figuras tão complexas para o próprio origenismo como Virgilio Piñera ou Lorenzo Garcia Vega. Para isso, Ponte volta ao tema do vazio, da ausência, historiando objetos, perseguindo emblemas (um livro perdido, um abrigo, uma foto, uma bolsa), coletando ruínas, de aí que no prólogo afirme valer-se de uma parafernália museológica para elaborar seus textos. O primeiro ensaio dá título ao livro e está seguido de um conjunto de textos que, segundo informa o escritor no prólogo, foram escritos ao longo de mais de dez anos. A coleção fecha com um retorno ao primeiro texto, no que poderíamos chamar sua segunda parte, que o autor intitula “El libro perdido de los origenistas. Final”. Essa estrutura, cujo motivo final volta como variação do motivo inicial, encapsulando no meio um conjunto de variações da proposta conceitual central, concede ao livro uma aparência muito atrativa de texto unitário e coeso.
Em El libro perdido de los origenistas, Ponte recupera episódios de livros e poemas perdidos que aparecem nas ficções de Lezama Lima e de Eliseo Diego, articulando-os a episódios de suas biografias que aludem sempre a uma perda. Nessas perdas, Ponte repara, instala-se sempre um vazio, perde-se um trecho da memória da ilha, e com ele seus sentidos mais secretos. As ficções do livro perdido incluídas em Paradiso, em Oppiano Licario e em Divertimentos, a página perdida do diário de José Martí, que Lezama Lima substitui por uma pintura de Juana Borrero, o encabeçamento da carta de Eliseo Diego com os nomes dos origenistas apagados e substituídos por um círculo em branco, os amigos origenistas ausentes na foto do aniversário setenta de Cintio Vitier, elaboram uma mesma cena, uma cena que, na opinião de Ponte, se repete na história da literatura cubana.
Mas, “El vacío que busca denotar un libro que se pierde es vacío de nuestra expresión, de nuestra historia” (p. 28), repara Ponte, para voltar sobre as palavras de Lezama quando adverte: “hemos perdido casi todo [...] no sabemos qué pueda ser lo esencial cubano” (p. 25) e sobre as de Cintio Vitier quando em Lo cubano en la poesía pergunta-se: “dónde están, aunque estén derruidos, los muros de nuestra fundación” (p. 25). Para Ponte é surpreendente que, em uma mesma década, esses escritores origenistas falem do histórico cubano “como de un cuerpo hurtado que regresa a pasar algunas temporadas
entre nosotros. Poetas principalmente, devotos de la poesía, miran a la historia desde allí, desde el poema” (p. 33). Esse temor a pensar a história da nação e da cultura como corpo furtado é um gesto decididamente origenista que retorna no livro Ponte.
O escritor enfrenta-se ao escamoteio de uma autêntica imagem de Orígenes no cânone construído por Fina García Marruz e por Cintio Vitier em La família de Orígenes (1994) e em Ese sol del mundo moral (1996), livros que impactaram o universo intelectual dos anos noventa em Cuba, quando a necessidade de um “relato nacional”, que voltasse para as singularidades do cubano e de uma história nacional, tornava-se um imperativo perante a perda do “relato soviético” que tinha marcado as décadas anteriores da história cubana. Trata-se de um gesto de Ponte perante o temor de um novo corpo furtado. Mas, curiosamente, Ponte também questiona o cânone origenista dos anos cinquenta forjado por Cintio Vitier e o próprio Lezama Lima, empenhados em uma teleologia insular, em uma busca essencial do cubano. Lo cubano en la poesia (1958) seria esse relato canonizador, teleológico, de corte hegeliano, que revela a articulação de uma identidade cubana de forma progressiva e em estádios cada vez mais evoluídos. Se os anos cinquenta tinham concentrado um debate sobre a identidade a partir de visões totalizantes do cubano, os noventa voltavam a elaborar um cânone sobre os mesmos pressupostos. Para Ponte, Ese sol del mundo moral era a continuidade de Lo cubano en la poesia porque ambos utilizavam as mesmas técnicas de canonização.
Em outros ensaios do livro, Ponte ocupa-se de desconstruir essas tramas canonizadoras. Em “El abrigo de aire” a metáfora do casaco perdido de José Martí, permite-lhe fazer mais leve e mais humana a imagem monumentalizada do político e escritor cubano. Recorrendo a anedotas e sem obviar o choteo, o ensaio busca tirar a figura martiana do museu das escritas mortas. Para isso, Ponte destrói-o, processa-o, mastiga-o, para dizê-lo com uma metáfora antropofágica, tropo de tanto peso na poética pontiana.
Pienso en ese abrigo ripiado por los perros, robado en un pequeño episodio de picaresca, discutido, vivo con la vida que presta la discusión. Los modos más secretos de la crítica literaria cubana, lo que se dice a solas frente al libro, lo que tal vez no alcanza a formularse con palabras, aquello que se permite en una conversación aunque estaría muy lejos de afirmarse por escrito, ¿qué dicen de José Martí, cómo lo citan? He escrito estas líneas para poner a Martí a disposición de los lectores, a disposición de lo bursátil que pueda haber en la lectura. He querido hundirlo (gravedad contra aire) en la pelea temporal de las literaturas, de la que ningún autor escapa. Y que salga de allí sólo lo que esté vivo (p. 89).
Se no caso de Martí, Ponte trabalha na restauração da imagem canonizada, no caso de Julián del Casal, aposta na recuperação do escritor modernista que surpreendentemente não há estátuas nem museus na Havana, um artista totalmente desobediente da política, cujo intento de unir vida e literatura interessou de maneira particular a Lezama Lima e que de maneira anacrônica volta a interessar aos escritores cubanos da década de noventa em Cuba. Chamo a atenção para o fato de que Martí e Casal, mestres da Modernidade poética cubana, sejam lidos em muitos momentos dos ensaios de Ponte, pelo prisma dos mestres origenistas. Casal, via Lezama Lima. Martí, via Cintio Vitier e até as páginas de Lezama não dedicadas a Martí têm espaço na reflexão de Ponte. Os restantes ensaios estão focados em figuras do origenismo. Lezama Lima é central no livro, talvez porque seja o escritor que melhor encarna o modelo do intelectual autônomo que interessa a Ponte. Lezama aparece aqui em perspectiva histórica. Se em Las comidas profundas interessou seu sistema poético, aqui Ponte descarta o Lezama da teleologia insular canonizadora de Orígenes para devolver-nos ao Lezama dos anos setenta, castigado pelo esteticismo de Paradiso, excluído pela homossexualidade do seu protagonista nada heroico, recluído na pequena casa de Trocadero, acossado pela pobreza de seus últimos anos e pela amargura de sua vida diária condenada à exclusão, conforme escreve a sua irmã nesses anos: “Lo que nos es más inquietante es la soledad metafísica, el silencio aterrador que nos rodea” (p. 145).
As figuras mais complexas do origenismo, por sua dissidência e sua relação conflituosa com o grupo, têm também um espaço no livro, mas sempre são apresentadas nos momentos de maior fragilidade. Virgilio Piñera é captado no momento mais trágico de sua vida, quando é descartado da cena literária nacional, acusado de homossexual e vive sumido no medo e na pobreza. Lorenzo Garcia Vega, o mais jovem dos origenistas, figura sempre dissonante no mapa das gerações poéticas cubanas, “a caballo en el tiempo entre Orígenes y la Generación de los Cincuenta (aunque origenista reconocido), a caballo también entre dos mundos (cubano del exilio), ausente del Diccionario de la literatura cubana” (p. 70), é apresentado como a outra cara de Orígenes, por sua conhecida crítica ao grupo em Los anos de Orígenes. Mas, é tal vez através deles que Ponte consiga sua melhor homenagem a Orígenes, porque capta suas tensões, sua diversidade, devolve-nos uma imagem não canonizada do grupo, mais real, mais pulsante, como é, na verdade, a vida literária. Como é possível apreciar neste estudo sumário, ambos os livros conectam-se à tradição do origenismo e por via do origenismo a toda uma estirpe literária; ambos pensam a relação entre o desejo, o vazio e a escrita na mesma linha dos origenistas; ambos concebem a carência através de um registro
que estabelece paralelos entre a vida e a obra dos origenistas. A fome, tanto física quanto espiritual, é transformada em ambos os livros em uma figura ou tropo que nos ajuda a entender o duplo papel de Orígenes na obra de Ponte. Se o origenismo o seduz pela sua estética da imagem, é o extraliterário origenista o que lhe permite expressar suas críticas ao contexto político e cultural cubano no final do século XX e ainda se inserir nos frutíferos debates desses anos em torno a um suposto cânone cubano. Comer e “incorporar” seus pais, foram necessários para transcender. O estudo conjunto de ambos os livros mostra que Ponte conhece em profundidade o sistema poético origenista, insere-se nele, mas o transcende, fazendo inclusive dessa poética toda uma ética da criação e uma política da cultura literária. No início deste trabalho, destaquei as ideias de Eduard Said quando postula uma distinção fundamental entre o filiativo e o afiliativo no exame disso que chamamos pertencimento cultural. Enfatizava o pensador palestino como as formas afiliativas constituem vias legitimáveis de transmissão de uma tradição literária, sobretudo no contexto contemporâneo, quando nossas maneiras de entender o comunitário transformaram-se ostensivamente. Nessa perspectiva, propus a possibilidade de pensar certas tradições literárias que escapam do modelo filiativo instituído pelo cânone, pensando inclusive, na obra de escritores que tematizam encontros com pais literários, dialogam com poéticas de outras tradições e inclusive chegam a postular uma genealogia artística ou intelectual no interior de suas obras.
Nessa direção achei exemplar o estudo da obra do cubano Antonio José Ponte, um escritor que oferece com seus textos a possibilidade de pensar genealogias literárias à margem dos modelos teleológicos e hegelianos que sustentaram nossas formas modernas de pensar um cânone historiográfico nacional. Na obra de Ponte é evidente que certas tradições de escrita e de entendimento da literatura podem atravessar a série literária de maneira transversal, reaparecendo em diferentes momentos de uma história literária, de maneira sempre renovada.
Na perspectiva radicante de Nicolas Bourriaud (2009), pensar a comunidade literária no contexto do contemporâneo, requer imaginar uma biblioteca de textualidades dispostas de forma relacional, uma biblioteca capaz de organizar o residual que habita os discursos, os fios que ligam esses resíduos, articulando-se nessa operação surpreendentes constelações e genealogias. Tradições descontínuas, raros, deslocados, pais literários reconhecíveis fora das cronologias e das cartografias tradicionais organizariam as estantes dessa biblioteca, no mais pensada a partir da localização da escrita, do pertencimento geracional ou da unidade de época e de estilo. Suas prateleiras poderiam
A estirpe de Origens: de filiações e afiliações na obra de Antonio José Ponte
de certas tradições que, por sua natureza, atravessam épocas literárias. Reconheço nos textos estudados de Ponte uma prateleira importante dessa biblioteca, a prateleira que junta Martí, Casal, Lezama Lima, Virgilio Piñera, Eliseo Diego e ao próprio Ponte, olhando-se todos no livro fundante do processo literário cubano.
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traçar linhagens, valorizar rotas e bifurcações
Introdução
Em 1995, Rui Mourão, ao conceder uma entrevista a Carlos Herculano, jornalista e escritor, já evidenciara que a administração (no caso, a direção do Museu da Inconfidência) era confluente com a de ficcionista. Além disso, afirmou que: “Se meu caminho tivesse sido diferente, jamais teria produzido Boca de Chafariz [1991] que a crítica considera o mais elevado de minha carreira” (MOURÃO, 1995). O tempo não “secou o assunto”1 e Rui Mourão continuou a escrever sobre Ouro Preto como se constata na publicação dos romances Quando os demônios descem o morro (2008) e Mergulho na região do espanto (2015). Nessas duas obras, além da questão histórica, estão presentes aspectos autobiográficos. Meu interesse pela obra de Rui Mourão data de longo tempo. Em 2004, para a coleção “Encontro com Escritores Mineiros” (COELHO, 2004), organizei o sexto número dedicado
ao escritor. Na parte introdutória do livro, apresentei, de forma panorâmica seu universo ficcional, ensaístico e cultural. Além dessa seção, integram o livro um depoimento concedido a mim pelo escritor, uma bibliografia do autor, sobre o autor e, ainda, recortes críticos.
O escritor publicou dez romances, tendo inaugurado sua carreira de ficcionista com o livro As raízes, agraciado com o “Prêmio Cidade de Belo Horizonte (1955). A aproximação entre Quando os demônios descem o morro (2008) e Mergulho na região do espanto (2015), no que se relaciona à encenação da escritura e a autoficcionalidade, me leva a reportar ao texto que escrevi “A escritura de Rui Mourão em Mergulho na região do espanto” (COELHO, 2019). Nesse romance, o narrador se desvela como escritor e como tal se faz no decorrer da narração. Por meio dele, temos indicações que pertencem à biografia de Rui Mourão como seu vínculo com o Suplemento Literário do Minas Gerais e o conhecimento aprofundado da história da cidade de Ouro Preto, entre outros aspectos. Com base nas considerações críticas de Zilá Berndt 2 , fundamentadas em Anne Muxel (Individu et mémoire familiale, 2007), mostrei que o romance em questão religa as relações de afeto e de parentesco com a figura materna. Em Quando os demônios descem o morro (2008), a família cuida do escritor, de sua memória e de seus escritos.
Quando os demônios descem o morro e a busca de si
O romance apresenta um paratexto (“Apelo à compreensão e generosidade dos leitores”) que se constitui como carta assinada pela família de Rui Mourão e, ainda, vinte e um capítulos, sendo que o último é considerado pelo narrador como “ uma carta à humanidade”. No paratexto, os familiares explicavam que o livro tinha sido “impresso na Argentina” e “ter[ia] distribuição gratuita”
(MOURÃO, 2008 p. 11). A família buscava apresentar “os fatos dentro de uma cadeia lógica” (MOURÃO, 2008, p. 12) e também se colocava “a serviço do esclarecimento da verdade, com absoluta sinceridade de propósito, que é tudo que se deseja, pois daí é que há de surgir, não o perdão, que só interessa aos que se julgam culpados, mas a justiça” (MOURÃO, 2008, p. 12).
No Livro Primeiro, de Confissões, de Jean Jacques Rousseau, a verdade também aparece como um motor do livro, como se lê: “Vou empreender uma coisa sem exemplo, e cuja realização não será imitada. Quero mostrar aos
2 Refiro-me ao capítulo “Memória Cultural”, em que a ensaísta remete às funções da memória familiar segundo Anne Muxel, a saber: “função de transmissão”: “função de revivescência afetiva” e “função de reflexividade” (BERNDT, 2017, p. 249).
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meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu” (ROUSSEAU, 1988, p. 21). O diálogo entre as duas publicações tem como finalidade evocar o texto paradigmático sobre autobiografia e evidenciar que a busca de si também ocorre no romance brasileiro em destaque. O texto, redigido pela família, referido anteriormente, se justificava, pois o escritor Rui Mourão, diretor do Museu da Inconfidência, estava encarcerado na “Polícia Central de Belo Horizonte, em cela privativa, por ser bacharel em Direito” (MOURÃO, 2008, p. 12). No texto, que abre o romance, é revelado que houve em Ouro Preto “um verdadeiro auto-de-fé pagão” em que foram destruídos volumes de sua obra. Além desses aspectos, assinale-se que, nesse documento, era mostrado que “o prisioneiro gozava de plena saúde mental” e que o livro que ia ser lido tinha sido produzido “no interior de uma cela” (MOURÃO, 2008, p. 13). A família esperava por justiça, uma vez que segundo ela “A temporada de caça já passou, o que justifica as nossas esperanças” (MOURÃO, 2008, p. 12). No presídio, a escrita serve como refúgio ao autor de Boca de Chafariz. O personagem-escritor afirma que tem “esperança de conseguir esmiuçar, para o conhecimento geral, as razões que [lhe] trouxeram a esta prisão” (MOURÃO, 2008, p. 45). O romance de Rui Mourão, no entanto, vai muito além deste “esmiuçamento”. Nesse livro, narra seu percurso intelectual e literário. Na medida em que ele o faz, mostra seu caminho de leituras; evidencia seu sonho de se tornar escritor; destaca a publicação de seu primeiro artigo divulgado no jornal A Manhã , Rio de Janeiro, sobre Sagarana , de Guimarães Rosa, na coluna de Dinah Silveira de Queiroz; remete à revista Vocação da qual participaram, junto com ele, o poeta Affonso Ávila e o crítico literário Fábio Lucas; reporta-se à publicação de seu primeiro livro de ficção (As raízes, 1956) e suas repercussões críticas; refere-se a Curral dos Crucificados (1971) a Jardim Pagão (1979) e a outros romances, com intuito de revisitar as escolhas e os caminhos percorridos. Como exemplo, remeto aos comentários sobre Curral dos Crucificados 3 . Para a construção da narrativa, priorizou a linguagem tal como Guimarães Rosa, flagrando o “pesado corpo social [que] começava a deslocar-se do campo para a cidade” (MOURÃO, 2008, p. 48).
Ao apresentar, de forma narrativa, sua carreira como ficcionista, se posiciona frente aos andaimes de sua construção literária. Menciona a dramatização (p. 48); a montagem (p. 49) e questões relacionadas à perspectiva.
3 Este romance (1971) se passa em Belo Horizonte, nessa mesma época. A narrativa desenvolve dois focos, entrelaçados: um deles conta a estória de Jonas, um jornalista e intelectual; o outro, a estória dos migrantes nordestinos ou baianos, e de seu representante, o Baiano, reprimidos pela polícia unicamente por serem nordestinos. O romance denuncia o preconceito e a repressão que sofrem por serem diferentes. São vistos, a priori , como vagabundos e marginais e, por isso, também excluídos a priori . Os migrantes são todos os nordestinos, os pobres e os excluídos, de modo geral. Nesse sentido, justifica-se parte do título do romance: são todos os crucificados.
A busca de temas, que retratam o país (p. 49), representou um redirecionamento de sua atividade criadora. À luz dos estudos contemporâneos, os conceitos de “arquivo” e de “repertório”, segundo Diana Taylor, contribuem com diferentes possibilidades para o entendimento de outras estratégias narrativas utilizadas por Rui Mourão. Nesse sentido, a noção de dramatização pode ser expandida pelo conceito de “repertório” que abarca “as performances, gestos, oralidade, movimento [...] canto, em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível. ” (TAYLOR, 2013, p. 49). No artigo
“A escritura de Rui Mourão em Mergulho na região do espanto”, vali-me das noções de “repertório” e de “arquivo”, para desenvolver um dos aspectos analíticos do romance de Rui Mourão.
Em “Museu e literatura: fragmentos, cacos, restos, vestígios”, logo na introdução do seu texto, Mário Chagas afirma:
Museu e Literatura transitam pelo campo da memória, da criação, da imaginação, da coleção, e do patrimônio cultural. A experiência museal, especialmente no que se refere à comunicação, é uma forma de experiência poética. Se, por um lado, a experiência poética dos museus sensibiliza, provoca e convoca alguns criadores que, comovidos e movidos com a experiência, envolvem-se com a brotação de novas possibilidades poéticas; por outro, a produção simbólica de determinados criadores ou processadores estimula novas experiências museais (CHAGAS, 2011, p. 11).
Nessa direção, cita poetas e escritores que atestam o parentesco entre o museu, a coleção, o poema e outras formas de expressão literária. Em relação aos poetas brasileiros ressalta: Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Haroldo de Campos. Rui Mourão está certamente entre os escritores que se valem da experiência museal para construir Quando os demônios descem o morro. Vale lembrar que um fragmento do romance, antes de sua publicação em 2015, pode ser lido no Suplemento (2011) dedicado às relações entre literatura e museu, no qual se insere também o artigo de Mário Chagas a que me referi anteriormente.
Quando os demônios descem o morro apresenta uma reflexão sobre a literatura, o museu, a arte e a vida, conforme se observa em: “Na experiência remota descobrira que a instituição museu, como a literatura não passava de linguagem e, sendo linguagem, para sobreviver, precisava manter-se
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público” (MOURÃO, 2008, p. 94) e em outras citações:
continuamente renovada, galgada à atualidade da visão de
Um museu é local onde a vida vai ser encontrada. Muitos diariamente ali a encontram. Mas é também espaço onde alguém se aventura a caminhar com a suposição de estar enxergando objetos e sendo produtivo, quando na verdade se encontra é extraviado, bem distanciado à margem do coração do mundo (MOURÃO, 2008, p. 63).
A evolução é o eterno presente se refazendo. A instituição [Museu], como qualquer outra similar, ao estudar e procurar preservar o passado, não podia desprezar a perspectiva da sua atualidade. Ela era o passado sendo observado por consciências que desejavam saber em que medida aquele passado contribuía para o entendimento do presente (MOURÃO, 2008, p. 81).
A respeito do Museu da Inconfidência, são narradas as condições em que ele encontrou o prédio, antes de tomar posse como diretor da instituição, há a indagação sobre sua finalidade e sua história e é debatida a reforma dirigida por ele. O escritor tira proveito dessa discussão. Introduz temas sobre o museu e a educação; museu e etnia; o museu, a cidade e seus habitantes. Expondo para o leitor/espectador as entranhas do Museu, focaliza-o como espaço polêmico. Ao rever posições, no sentido de atualizar o Museu, o Diretor acaba defendendo a transformação de Ouro Preto em cidade-museu. Esta mudança de paradigma traz impacto na linguagem do romance que capta como a cidade virou uma caricatura:
Confirmando o espírito de iniciativa de nossa gente, homens e mulheres determinadas apareceram com anúncios em jornais de Belo Horizonte e pela internet. Queriam encontrar em contato com antiquários, leiloeiros, viúvas de colecionadores. Não demorou, caminhões cuidadosos e aplicados, ronceiros a sustentar pausada marcha, ganhavam as estradas. Transportavam móveis, balcões de treliça desarticulados das janelas a que pertenceram, lustres de madeira pintada, ferragens enceradas para disfarçar ferrugem, imagens sacras, colunas esculpidas, quadros, peças de alfaia saídas de altares (MOURÃO, 2008, p. 203).
Cônscio de que essa experiência tinha sido um fracasso pelo seu caráter caricaturesco, o Diretor-personagem propõe discutir com o corpo técnico do Museu uma nova reforma que tinha como propósito “levar para dentro da rede mundial de informação a realidade ouro-pretana considerada em sua totalidade” (MOURÃO, 2008, p. 235). Essa transformação, porém, fazia parte de um “projeto que a ninguém fora apresentado, o museu-cidade resultaria
seuHaydée Ribeiro Coelho
de um esvaziamento do centro urbano em termos absolutos” (MOURÃO, 2008, p. 236).
Essa última proposta desencadeou uma onda de hostilidades contra o diretor, alcançando outras pessoas, além daquelas que participaram da reunião, realizada no Museu, para discutirem a nova reforma. 4 No plano aparente, as reações adversas, levadas ao extremo, suscitaram a destruição do museu pelo diretor, ação praticada com explosivos obtidos com o pessoal da mineração. Este ato de destruição do lugar de memória da Inconfidência Mineira tem outras implicações. Em “Olhar e memória”, José Moura Gonçalves Filho diz: “O movimento de uma lembrança vibra fora dos compassos rígidos e desvitalizados de um conceito permanente, de uma ideia eterna de um princípio abstrato: o ânimo que fomenta é gerado na espessura de uma experiência”. (GONÇALVES FILHO, 1988, p. 98). Segundo o crítico, essa experiência possui plasticidade; perceptibilidade e realizabilidade. Ao conceder plasticidade à lembrança, o escritor remete a imagens de fatos violentos que foram esquecidos na reflexão sobre a reforma do Museu:
O drama central da Inconfidência- o massacre de Tiradentes escolhido para vítima- não havia sido apresentado com força impactante numa arrumação do acervo que se pretendeu revolucionária. Indispensável pensar em termos mais ousados, se possível exasperantes. Será que a linguagem museológica não teria como fazer saltar para diante de nós a verdade do fato histórico, produzindo desnorteamento e revolta em quem a contemplasse? Que seria necessário apresentar? A cena que acontecera debaixo do sol e o seu seguimento de carnificina sobre uma mesa em espaço fechado? A revelação da fatalidade dos gestos automáticos do carrasco, forçado a praticá-los, sentindo-se tão oprimido quanto o condenado? (...) (MOURÃO, 2008, p. 151).
As remissões ao “desnorteamento” e à “revolta” implicam outras associações como a loucura, o museu, o delírio e o romance. O museólogo
Bruno Brulon, no texto “Pensar o pensamento museológico brasileiro: um olhar retrospecto para a Museologia”, afirma:
O museu, então, é um ato de pensar, ao fazer as coisas delirarem para que possamos pensar sobre elas. Transformá-las em nosso pensamento, num tipo de apropriação da realidade que é ao mesmo tempo poético e prático.
O museu materializa o pensamento na medida em que recria a realidade
4 No âmbito biográfico, veja-se o projeto de reformulação da exposição permanente do Museu da Inconfidência. Em seu texto, Rui Mourão afirma: “Organizado em 1944, com o objetivo de preservar a memória da Inconfidência Mineira, a instituição conserva, até hoje, a sua estrutura museográfica original”. (MOURÃO, 1999, p. 135)
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investindo-a de poesia-já diria Marilia Xavier Cury. Transforma o banal em coisa extraordinária, delirando e fazendo delirar (BRULON, 2018, p. 16).
O fragmento ressaltado acentua o delírio como forma de transformação. A experiência museológica motiva o espectador a reinventar, a criar, portanto, delirar. No romance, a explosão do museu suscita pensar na loucura do escritor que, por um ato de desrazão, pôs abaixo o patrimônio público de que foi guardião entre 1974 a 2017 e, a partir do qual escreveu Boca de Chafariz (1991) e gestou, ainda, os romances de 2008 e 2015.
Como entender essa insanidade? No paratexto de Quando os demônios descem o morro, como observei, a família atesta que o escritor gozava de “perfeita saúde mental”. O narrador alimenta essa ideia e a semeia de múltiplas formas e em espaços variados da cidade de Belo Horizonte. Além disso, valendo-se dos meios de comunicação, do Caderno Mais, da Folha de S. Paulo, assinala a manchete provocativa: “Loucura praticada em plena lucidez” (MOURÃO, 2008, p. 278). Se, por um lado, essa estratégia narrativa nutre o debate sobre a loucura e seus avessos; por outro, coloca em destaque “sistemas de vigilância [que] se difundem também e cada vez mais no corpo social, de modo a assumir uma função universalizadora”5 (MACHADO, 1993, p. 224).
Cristiane Asselin, ao fazer a resenha do livro La folie et la chose littéraire, de Shoshana Felman, evidencia que “A loucura da qual nos fala Felman, não é aquela que se fecha em si nem esta ‘alucinação das palavras’, mas sobretudo [é] uma resposta do homem à questão da palavra”6 (ASSELIN, 1986, p. 122). No livro de Rui Mourão, o delírio de Dom Quixote, personagem de Cervantes, encontra guarida. De modo ressignificado, impulsiona considerações sobre museu / autobiografia e autoficcção; lembrança da “carnificina” histórica em tempos diversos e pensamento sobre a busca da arte e de sua memória. Para estabelecer um elo entre os aspectos assinalados, tomo como referência os capítulos finais do romance. No penúltimo, a destruição do Museu por seu Diretor, narrada de forma visual e sonora, concede plasticidade ao ato desmesurado que provoca indignação da parte de vários segmentos sociais. Na seção final do romance, a partir da cela, é narrada a queima dos livros do escritor e prisioneiro. Trata-se da morte da palavra e, consequentemente, apagamento do sujeito. Este auto-de-fé traz a lembrança da Inquisição portuguesa (1536 a 1821) e da espetacularização da morte de Tiradentes.
5 O autor se refere “a era da eletrônica e da informática”. No entanto, considero possível fazer essa associação, tendo em vista o contexto do romance.
6 La folie dont nous parle Felman, ce n’est ni celle que l’on enferme ni cette” hallucination des mots”, mais plutôt une réponse de l’homme à la “question du mot”. (ASSELIN, 1986).
Carla Maria Junho Anastasia, Carmem Silva Lemos e Letícia Julião, em estudo publicado em Oficina do Inconfidência: Revista de Trabalho, editada por Rui Mourão como diretor do Museu, baseando-se no estudo de Adalgisa Arantes Campos, ressaltam que “a morte cruel de Tiradentes, cercada, inclusive de pompa (...) e teatralização não constituiu fato excepcional no contexto do Barroco.” (ANASTASIA et al., 1999, p. 90). Citando “Execuções na colônia: a morte de Tiradentes e a cultura barroca”, as autoras transcrevem um trecho do qual recorto a seguinte menção: “O cadáver esquartejado se transformou no supremo adereço cênico, e, emblemático, foi o grande ícone do Barroco.”
(ANASTASIA et al., 1993 apud CAMPOS, 1999, p. 91).
Em Mergulho na região do espanto, o personagem Tiradentes retorna ao passado e indaga sobre o despedaçamento do seu corpo:
Até hoje não sei se aquelas remotas carnes e ossos acabaram enterrados ou foram devorados por animais, como não posso confirmar também a tradição de que minha cabeça teria sido roubada da gaiola em que ficou no alto de um poste na Praça da Cadeia em Vila Rica ou se ali ficou a dessorar, a murchar e a secar ao sabor da inconstância do clima, que é gelado quando faz questão de ser, que é verdadeira canícula quando não consegue se controlar (MOURÃO, 2015, p. 225).
No dia 21 de abril, na praça, onde está erguida e monumentalizada a memória de Tiradentes, depois da queima dos livros de Rui Mourão, no pronunciamento do presidente da República, a promessa de castigo é anunciada: “O ato insano nesta cidade praticado não ficará impune” (MOURÃO, 2008, p. 293). Assim, uma ação violenta contra o patrimônio público seria respondida à altura. A voz do Estado parece prevalecer no âmbito da história. No entanto, Rui Mourão contou sua narrativa e a família garantiu sua transmissão e colaborou com a “distribuição clandestina no Brasil” do livro que foi impresso na Argentina.
Depois da prisão do diretor do Museu, instaura-se o processo judicial, é colhido o depoimento do encarcerado que deseja falar, mas é impedido pela voz do delegado:
O que o senhor está pretendendo? Acha que temos o dia inteiro para ouvi-lo se gabar de suas aventuras?” Encarei-o desconcertado: “O senhor não me pediu eu lhe contasse toda a verdade?” Disse o delegado: “A verdade eu já tenho. Ela foi reduzida a termo que o senhor deverá assinar (MOURÃO, 2008, p. 280).
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A prisão e o auto de fé realizado com os livros de Rui Mourão não visam a reproduzir o caminho de Tiradentes, seu martírio e de outras vítimas das ditaduras tão longe e tão perto de nós, mas trazem a memória da violência. O personagem Rui assume ser outro, de forma lúcida. Ao passar pela prisão, pelo escárnio, pelo desprezo pode narrar e, como escritor, além de buscar a origem da arte e de seu extravio, é possível situar-se no mundo. O conhecimento sobre a história da Inconfidência e seus meandros, o manejo dos arquivos (Autos de Devassa da Inconfidência) ligados ao momento histórico enfocado; o exercício da escrita dos romances; a reflexão crítica sobre ela, a seleção e combinação de diferentes estratégias narrativas culminaram no romance-museu; romance-ensaio; romance testemunho, aspecto a ser abordado mais adiante. Revendo seu percurso literário, verifica-se que reiterou sua busca incessante pela renovação da linguagem, sem abandonar os temas sociais, históricos e políticos como já vinha realizando em sua travessia intelectual que inclui, além da produção literária evocada neste estudo, livros de ensaio sobre literatura (Estruturas: ensaio sobre o romance de Graciliano Ramos, 1969); livros sobre museu (Museu da Inconfidência em colaboração com Francisco Iglesias, 1984 e A nova realidade do Museu, 1994) e, ainda, O alemão que descobriu a América (1990), estudo sobre música. Um aspecto de fundamental importância em Quando os demônios descem o morro diz respeito aos vários sentidos de esquartejamento que nele aparecem. Estão associados ao “massacre de Tiradentes”; à exposição da biografia intelectual do escritor, distribuída ao longo do livro e às propostas de reforma do Museu, encenadas pela linguagem do romance. No âmbito da literatura, foi igualmente necessário esquartejar “o mundo por meio de ideias e percepções” (MOURÃO, 2008, p. 288). Ainda, sobre o processo criativo, argumenta o narrador:
(...) as palavras são os instrumentos brutos com os quais nos debatemos. Elas têm que ser desidratadas, polidas, moldadas, postas entre si em contato para efeito energético, até se converterem em objetos realmente úteis. São os nossos olhos de ver. Lentes de telescópio, com elas nos lançamos para dentro do universo, nesse ou naquele sentido, tentando devassar o mistério que nos cerca, tentando chegar ao entendimento do que somos (MOURÃO, 2008, p. 288).
Para que surgisse o romance, foi necessário implodir o museu e esquartejar a própria biografia. Utilizo o termo esquartejar não na acepção
de cortar em pedaços, mas de difamar. Rui Mourão incendiou sua imagem, para se reencontrar. Transformou-se em testemunha da violência do Estado. Em relação ao sentido de testemunha, Jeanne Marie Gagnebin explicita:
Testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor do Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006, p. 57).
Com base nas considerações de Jeanne Marie Gagnebin, pode-se dizer que “a retomada reflexiva” sobre o museu, por meio de sua destruição simbólica, recupera o sentido político da morte de Tiradentes, projetando-o para o presente / futuro, com a finalidade de combater regimes ditatoriais e autoritários. O escritor, ao ter vivenciado a “temporada da caça às bruxas” (MOURÃO, 2008, p. 12), com a promessa de uma punição exemplar, faz com que o leitor, mirando-se em um destino singular, esquarteje, de forma crítica, a história coletiva a que pertence.
Com a publicação de Quando os demônios descem o morro, Rui Mourão reafirma uma de suas genealogias escriturárias, associada aos temas históricos sobre a Inconfidência mineira e sobre o ciclo do ouro. Além disso, demonstrou que a literatura e o museu são espaços de experimentação. A palavra pode destruir completamente a materialidade dos monumentos e expor uma situação no limite. Como renovar o museu, sem queimá-lo e destruí-lo? Rui Mourão, ao resgatar parte de sua biografia, vivenciada no museu, guarda a memória de si e parte da história do Museu da Inconfidência, por isso o romance constitui um arquivo de memórias. Os demônios, ao descerem o morro, reacendem discussões de várias ordens: memória, autobiografia, autoficção e museu; o museu como invenção e gerador de pensamento sobre a literatura e seus precursores; lugares de memória e desmemória; museu e etnia, museu e educação; museu e a política e museu e os excluídos. Enfim, uma gama enorme de relações a ser explorada em outros tempos.
Filiações escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite...
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MOURÃO, Rui. Projeto de reformulação da exposição permanente do Museu da Inconfidência. Oficina da Inconfidência: Revista de Trabalho, Ouro Preto, Ano 1, n. 0, p. 133-174, dez. 1999.
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MOURÃO, Rui. Mergulho na região do espanto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
MOURÃO, Rui. Quando os demônios descem o morro. São Paulo: Casa & Palavra, 2008.
ROSA, João Guimarães. Desenredo. In: ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras histórias. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 38-40.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Livro Primeiro. In: ROUSSEAU, Jean Jacques. Confissões. Trad. Fernando Lopes Graça. Lisboa: Relógio d’Água, 1988.
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A proposta deste capítulo recai sobre a leitura crítica do conto “La Corriveau”, inserido na coletânea intitulada Cages, da escritora quebequense Claude-Emmanuelle Yance. O estudo do conto busca ressaltar sua estrutura narrativa na medida em que se insere na linha reflexiva da transmissão intergeracional e da transferência de uma memória cultural presentificada e perpetuada no perfil da personagem principal – uma mulher contemporânea que carrega o estigma da lendária Corriveau em sua vida familiar. Partindo de leituras teóricas, direcionadas pelo estudo de Zilá Bernd (2018), este artigo estuda as possíveis transformações na transmissão de um legado do estigma feminino.
O legado nacionalista e cultural do estigma da Corriveau – reelaboração discursiva do feminino no conto “La Corriveau”, de Claude-Emmanuelle Yance
Kelley Baptista DuarteKelley Baptista Duarte
Nas considerações sobre memória cultural e memória coletiva, na literatura contemporânea, deparamo-nos com diferentes processos de apropriação do passado e de transmissão geracional. Na forma mais clássica da narrativa comprometida com esse passado e com a micro história de uma determinada comunidade, de um coletivo, encontramos produções em primeira pessoa, no perfil autobiográfico e autoficcional. Zilá Bernd (2018) quando recupera o estudo teórico de Régine Robin e Dominique Viart sobre, respectivamente, o romance memorial (ou familiar) e o romance de filiação (ou parental) destaca o vestígio como fio condutor dessa escrita que objetiva resumidamente:
a) render tributo aos pais e avós, salientando o quanto o narrador herdou de seus ancestrais, estabelecendo um continuum familiar; b) tornar-se um lugar de afrontamento e de acerto de contas com os antepassados, podendo resultar em ruptura com a família ou em reconciliação após o confronto (BERND, p. 24-25).
Partindo dessa premissa, proponho desenvolver uma leitura mais alargada e abrangente desse vínculo de memória geracional, voltada às afiliações simbólicas – cuja narrativa, também construída em torno do vestígio, ganha uma proporção ficcional que ultrapassa o modelo de escrita autobiográfica ou autoficcional. Sendo assim e em torno desse objetivo, construo minha proposta tendo como exemplo de narrativa de afiliação, ou seja, sem vínculos parentais, de parentesco ou biológico, mas produtivamente elaborada na relação de identificação e de reconhecimento, o conto “La Corriveau” da escritora quebequense Claude-Emmanuelle Yance (1941–).
Antes de iniciar as apresentações necessárias do conto, é preciso situar seu contexto genealógico (não biológico) e geracional. Corriveau, nome que dá título ao conto, faz menção à personagem histórica de Marie-Joseph Corriveau. Esse é o traço memorial, o vestígio que alimenta a narrativa ficcional de C-E Yance.
Duas perguntas são formuladas para conduzir essa contextualização: quem foi Corriveau? O que ela representa para a comunidade quebequense?
Da mesma forma, tais questionamentos estão na base argumentativa desse artigo que se constroi em defesa do processo de escrita de C-E Yance enquanto escrita de afiliação comprometida com seu passado.
Os registros oficiais sobre a existência de Marie-Joseph Corriveau apontam para seu nascimento em 1733, nas proximidades da atual cidade do Quebec, em Saint-Vallier. Ela, então, teria seguido o destino de toda mulher de seu tempo: em 1749, aos dezesseis anos, ela casa com um agricultor local – Charles Bouchard. Em 1760, ano historicamente demarcado pela ocupação da colônia francesa pelos ingleses, Corriveau fica viúva. Nesse momento de ameaça territorial e identitária, uma das estratégias de permanência e resistência da pequena comunidade francófona foi expandir demograficamente. Por isso, Corriveau se casa novamente no mesmo ano da perda de seu primeiro marido. Três anos após o casamento, em 1763, seu segundo marido, Louis Dodier, é encontrado morto, no estábulo da casa, com golpes na cabeça. A morte, apontada por causas homicidas, apresentou dois culpados: Marie-Joseph Corriveau e seu pai, Joseph Corriveau.
A História oficial desse crime, na época sem registros escrito em língua francesa, se perpetua através da oralidade, dando destaque a detalhes pontuais e peculiares de um homicídio investigado e julgado pelos ingleses.
Considerada culpada, Corriveau foi condenada à forca pela corte marcial inglesa, juntamente de seu pai. Ela, no entanto, recebeu uma dupla punição –certamente por ser a “mulher” que mata o marido. Após sua execução, em 18 de abril de 1763, seu corpo foi exposto em via pública, de grande circulação, em uma gaiola de ferro suspensa. O requinte de crueldade só pode ser entendido a partir de uma hipótese: “educar” possíveis mulheres transgressoras, visto que seu pai, também condenado à forca, não teve o mesmo destino.
A professora e pesquisadora quebequense Nicole Guilbaut (1995) é pioneira na organização de uma antologia que recupera a história protagonizada por Marie-Joseph Corriveau. A antologia reúne documentos da história oficial e do julgamento (em língua inglesa) e as lendas de um fato histórico que só sobreviveu ao tempo pela transmissão oral. Foi assim que Corriveau se tornou, no contexto do Quebec, figura lendária com variantes de uma narrativa oral que perpetuou por gerações até integrar os primeiros registros literários que caracterizam os traços identitários dessa comunidade francófona na América do norte.
Outra professora quebequense, Sylvie Dion (2005), pesquisadora e docente da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), estuda a persistência da lenda da Corriveau a partir de uma tradição oral que se transforma pela memória coletiva. Para S. Dion, “a oralidade é, por definição, mais flexível que a escrita, e o acontecimento, uma vez reinterpretado, transmitido, retransmitido,
Essa transmissão geracional está em consonância com a definição de memória coletiva apresentada por Régine Robin:
(...) a memória coletiva funciona como a ‘madeleine de Proust’, por associações ou por mobilização de um sentido que já estava lá. O que conta, efetivamente, é o sentido a dar ao passado. De onde esse gosto pelos símbolos, as alegorias da memória coletiva, guardiã a seu modo das tradições e da interpretação que um grupo dá a seu passado. Se seu espaço-tempo é local, simbólico, cíclico e ucrônico, ela se torna elegia ou panegírico para representar sua própria epopeia, a menos que ela se passe na dispersão desordenada de associações de ideias tendo como ponto de apoio o vivido. A memória coletiva oscila entre o silêncio, a amnésia, a reconstituição imaginária e o detalhe intensamente revificado (ROBIN apud BERND, 2017, p. 14).
De personagem histórica a personagem do imaginário popular, a lenda da Corriveau tratou de encobrir as falhas no julgamento dessa condenada para perpetuar a crença na punição de uma mulher transgressora da moral e dos bons costumes de uma comunidade predominantemente cristã. Sendo assim, a lenda oral transformou a história encobrindo qualquer dúvida diante da acusação e seu veredito. Foi dessa maneira que a lenda da Corriveau passou a dar destaque às razões que levaram à cruel punição atribuída. Ou seja, por que enforcar uma mulher e ainda expor seu cadáver até a putrefação de sua carne? As variantes da lenda nos respondem: tratava-se de uma bruxa, uma assassina de até sete maridos e também infanticida! Razão suficiente para torna-la o contraexemplo em uma comunidade que necessitava realizar a manutenção de suas práticas religiosas.
O primeiro registro escrito da lenda dA Corriveau é feito por Philippe Aubert de Gaspé, em 1864, na publicação de Les anciens canadiens. Essa obra, incontornável nos livros sobre a formação da Literatura do Quebec, é a primeira a reunir as lendas tradicionais da oralidade. Nessa transcrição, a Corriveau passa para o registro literário carregando o estereótipo da bruxa que assombra os bons cristãos.
No mesmo século de publicação de Les anciens canadiens, duas outras adaptações literárias da lenda oral foram registradas. Em 1877, o escritor britânico William Kirby publica o romance The Golden Dog, traduzido para o francês em 1884, para nele recuperar lendas tradicionais, incluindo a da
Corriveau. Em 1885, Louis Fréchette, publica “La cage de La Corriveau” em uma edição especial do jornal La Patrie. Posteriormente, em 1913, essa narrativa foi introduzida em um Almanaque quebequense sob o título “Une relique”. A adaptação de L. Fréchette volta ao cenário de investigação da morte do segundo marido e de condenação da suspeita. No inquérito da morte do segundo marido, descobre-se o assassinato do primeiro – vítima de chumbo derretido colocado em seus ouvidos. O perfil da acusada é o de uma mulher fria e meticulosamente perversa que não escapa do enforcamento. No ímpeto de desconstruir o elemento fantástico, dando maior veracidade à narrativa historiográfica, L. Fréchette deixa as pistas para novas investigações que mudarão o olhar direcionado a essa personagem.
Seguindo as pegadas de seus antecessores, o escritor e folclorista Luc Lacourcière reconstitui, em uma publicação feita para Les Cahier de Dix1 , nº 33, de 1968, o processo e o julgamento da Corriveau. Em seu texto, L. Lacourcière traz ao público outra interpretação dos fatos e revela elementos que transformariam o estereótipo daquela mulher pecadora.
Para esse folclorista, se Marie-Joseph Corriveau tivesse sido julgada em conformidade com a lei, teria escapado da forca. Para ele, um elemento é substancial: as provas de sua acusação eram circunstanciais e seriam rejeitadas por qualquer tribunal. L. Lacourcière também argumenta sob outra perspectiva: o júri foi composto por doze oficiais britânicos e o julgamento conduzido pelo advogado da coroa britânica que atuava também como secretário do governador britânico, James Murray – responsável por comandar a colônia francesa recentemente conquistada pelos ingleses. Outro detalhe de extrema relevância para o veredito foi o fato de o julgamento ter sido realizado em inglês, sem tradutor ou intérprete e sem a permissão da acusada para testemunhar. Nessa transmissão da história que virou lenda e da lenda que preservou elementos da história não oficial, encontramos a função da memória cultural nesse processo transgeracional que arquiva os traços constitutivos da identidade do povo quebequense. Zilá Bernd, ao relacionar memória cultural e transmissão, nos lembra:
Por que referir-se à Memória Cultural nessa abordagem sobre memória e transmissão? Inserir o debate sobre Memória Cultural torna-se pertinente na medida em que os autores que vêm abordando o tema, como Aleida e Jan Assmann e Andreas Huyssen, valorizam os estudos da memória não apenas em termos de armazenamento de dados em arquivos, mas de tudo
1 Les Cahiers des Dix [Os Cadernos dos Dez] é uma publicação interdisciplinar, considerada coleção patrimonial. Fundada em 1936 por dez pesquisadores, Os Cadernos são referência da história do Quebec voltada a sua economia, sociedade e cultura.
aquilo que escapa ao registro oficial, como o residual, o que foi obliterado ou o que se tentou apagar (BERND, 2017, p. 23-24).
Os vestígios da Corriveau perpassam gerações e atravessam os séculos incorporando, em cada releitura, novos modelos de identificação para interligar presente e passado. É dessa forma que cada reapropriação da lenda da Corriveau ganha um novo sentido que, por sua vez, vivifica o traço identitário enquanto modelo de identificação coletiva.
Nessa perspectiva está o conto “A Corriveau”, de Claude-Emmanuelle Yance. A narrativa, inserida na coletânea da autora, intitulada Cages [Gaiolas] (2011), recupera um detalhe interessante da história oficial de acusação; um detalhe pouco lembrado, por vezes ignorado, nas variantes da lenda e que aponta para uma assassina que teria matado o segundo marido em legítima defesa. É em torno desse elemento, hipótese de um crime, que C.-E. Yance dá voz a uma Maria Corriveau do século XXI e de uma atualidade marcada pelo modelo de luta e de insubmissão femininas.
A Corriveau moderna de C.-E. Yance, em seu compromisso transgeracional de afiliação, demarca a ruptura de um silenciamento frente à condição da mulher vítima de violência doméstica. Sendo assim, a Corriveau do conto expõe uma mulher que, subjugada aos maus tratos de um marido alcoólatra, decide por fim em seu cenário de agressões.
Logo nas primeiras linhas do conto, a personagem, impregnada de ódio por ter sido novamente espancada pelo companheiro, lança-se ao devaneio.
E ao tomar consciência do sobrenome que carrega, “Corriveau”, encontra a força necessária em uma descendência que a impulsiona a reagir:
Ela olhava pela janela. “Olhava” é uma palavra bem extensa. Ela estava era perdida em seu olhar. Pela primeira vez em sua vida, ela acabava de tomar consciência de seu sobrenome: Corriveau.
Talvez tenha sido o ódio que acendera essa fagulha em seu cérebro. Um ódio jamais nomeado antes, jamais acolhido no deserto de seu corpo até esta noite. “Tu deverias ter mais cuidado, Louis Dodier-Leclerc. Eu sou uma Corriveau, eu sou uma Corriveau !” (YANCE, 2011, p. 53) 2
2 Tradução livre do original : Elle regardait par la fenêtre. «Regardait » est un bien grand mot. Elle était plutôt perdue dans son regard. Pour la première fois de sa vie, elle venait de prendre conscience de son nom: Corriveau. C’était peut-être la haine qui avait allumé cette petite lumière dans son cerveau. Une haine jamais nommée, jamais accueillie dans le désert de son corps avant ce soir. “Tu devrais faire attention à toi, Louis Dodier-Leclerc. Je suis une Corriveau, je suis une Corriveau !”
Decidida a se vingar do agressor, ela alimenta seu sentimento relembrando o chute que a deixou desacordada e que a levou para o hospital:
Ela foi projetada pra baixo de sua cadeira pelo chute nas costelas que a fez girar sobre o piso. Ele se lançou com fúria sobre ela, que estava quase desacordada. Ela nem gritava, pois havia esquecido como gritar. (...) Ela se acordou três dias depois, no hospital 3 (Op. cit., p. 54-55).
Após a hospitalização, a protagonista de C.-E. Yance é encaminhada a um abrigo para mulheres vítimas da violência doméstica. Lá, recuperando-se do espancamento, ela se depara com a primeira situação que a desperta para o estigma de seu nome. Ao entrar na cozinha do abrigo, uma das mulheres que ali estava anuncia, para outra colega, a presença “d’A Corriveau”: “um dia, quando entrava na cozinha, ela ouviu murmurar uma das duas mulheres que lavava a louça: ‘A Corriveau’. E a Corriveau despertou nela, repentinamente, pronta, armada como se fosse para a batalha de sua vida.”4 (Op. cit., p. 58)
Esse foi o primeiro impulso para a consciência de sua “herança” e para a tomada de decisão em retornar à casa e reagir. Afinal, “De que serve chamar-se Corriveau se é pra ficar aí, sem fazer nada ?”5 (Op. cit., p. 54)
Consciente da necessidade de romper com o ciclo de violência, ela rememora uma ancestralidade regida pela moral, pela religião e pela impunidade das agressões domésticas:
Onde ela aprendera a história da Corriveau? Na escola? A mulher acusada de ter matado ao menos dois maridos. Sim, mas foi há muito tempo. Quando as pessoas estavam à mercê dos párocos, na campanha. Quando os homens tinham todos os direitos, quando todo mundo fechava os olhos para o que acontecia na casa dos outros. Mesmo se ouvissem gritos e choros, mesmo se de vez em quando um caixão saísse dali e fosse rápido levado para ser enterrado no cemitério com a benção de toda paróquia. Ao lembrar-se de sua mãe, ela disse a si mesma que aquele tempo tinha durado muito. E que bastava muito pouco para que ele não terminasse de fato 6 (Op. cit., p. 54).
3 Elle fut jetée en bas de sa chaise par un coup de pied dans les côtes qui l’envoya valser sur le plancher. Il s’acharna sur elle à moitié réveillée, impuissante. Elle ne criait même pas, elle avait oublié comment crier. (...) Elle se réveilla trois jours plus tard à l’hôpital.
4 (...) un jour qu’elle entrait dans la cuisine, elle entendit murmurer l’une des deux femmes qui lavaient la vaisselle : ‘La Corriveau’. Et La Corriveau se réveilla en elle, tout d’un bloc, prête, armée comme pour la bataille de sa vie.
5 À quoi ça sert de s’appeler Corriveau, si c’est pour rester là, à ne rien faire ?
6 Où avait-elle appris l’histoire de La Corriveau ? À l’école ? La femme accusée d’avoir tué au moins deux maris. Oui, mais c’était autrefois. Quand les gens étaient à la merci des curés, dans les campagnes. Quand les hommes avaient tous les droits, quand tout le monde fermait les yeux sur ce qui se passait dans les maisons des autres. Même si on entendait des cris et des pleurs, même si de temps en temps un cercueil en sortait qu’on allait vite enterrer au
Mesmo desaconselhada pelos profissionais do abrigo, ela insiste em voltar para o ambiente das agressões. É em casa que ela vai executar sua vingança. Aproveitando a ausência do marido, durante o dia, Corriveau inicia a construção de uma gaiola no porão. À noite, ela o embriaga para finalizar os detalhes dessa construção. Um dia, já desacordado pelos excessos de álcool, misturados aos medicamentos para tratar um ferimento no braço que o obrigara a voltar mais cedo pra casa, ela o arrasta até o porão e o tranca na gaiola:
Ela ficou um bom tempo olhando sua obra. Ele dormia, mas iria acordar. Então, agiria como uma besta feroz. A gaiola iria conter? A Corriveau que existia nela delirava de prazer. A Maria se sentia humilhada e estava com medo. Mas a Corriveau havia vencido. Ao menos, até aquele minuto7 (Op. cit., p. 63).
O embate contra esse homem agressor vai além dos limites do real. Impregnada de uma força comunal, atribuída à herança da assassina-bruxa, ela sabe que está enfrentando um homem também carregado de um fardo sobrenatural: “Ela conhece cada ruga daquele rosto, cada pelo daquela barba, cada fio de cabelo daquela cabeça que se assemelha à do diabo.” (Op. cit., p. 66) 8 Reconhecendo sua aparente vitória, a do aprisionamento, ela, então, se questiona: fazer o quê? Afinal:
É ela quem conduz agora e é ela quem segura as rédeas de um cavalo enfurecido. Ela permanece ali, olhando pra ele, mas também olhando pra ela mesma, naquela situação. Ela não acredita... ela ousou fazer isso? Ela é a mais forte, agora. Mas o que se faz quando se tem o poder de vida ou de morte sobre alguém, o que se faz?9 (Op. cit., p. 67)
O agressor do conto de C.-E. Yance, Louis Dodier-Leclerc – nome que faz menção àquele do segundo marido de Marie-Joseph Corriveau, incorpora a representação de todo opressor. Por vezes, nos delírios de Corriveau, personagem do conto, o marido-agressor também assume a face de seu pai para explicitar/
cimetière, avec la bénédiction de toute la paroisse. En pensant à sa mère, elle se dit que ce temps-là avait duré longtemps. Et qu’il suffisait de peu de choses pour qu’il ne soit pas tout à fait terminé.
7 Elle resta longtemps à regarder son oeuvre. Il dormait, mais il allait se réveiller. Et alors, il serait comme une bête féroce. La cage allait-elle tenir ? La Corriveau en elle délirait de plaisir. Marie se sentait toute petite et elle avait peur. Mais La Corriveau avait gagné. Au moins jusqu’à cette minute.
8 Elle connaît chacune des rides de ce visage, chacun des poils de cette barbe, chacun des cheveux de cette tête qui se confond en elle avec celle du diable.
9 C’est elle qui conduit maintenant et elle tient entre ses mains la bride d’un cheval fou. Elle reste là à le regarder, mais à se regarder elle aussi dans cette situation. Elle n’en revient pas… elle a osé faire ça ? C’est elle la plus forte, maintenant. Mais qu’est-ce qu’on fait quand on a pouvoir de vie ou de mort sur quelqu’un, qu’est-ce qu’on fait ?
denunciar que sua condição de mulher oprimida, que se deixava espancar, é fruto de uma educação familiar humilhante; de um pai que batia na mãe e na filha.
No desfecho dessa história, os elementos da lenda tradicional não são esquecidos e a transmissão transgeracional cumpre com o papel de perpetuar a história e trazer à luz, nessa releitura, o que foi dito, mas também o que foi silenciado.
A todo o momento, os traços dessa memória cultural, perpetuada predominantemente na oralidade, são retomados e atualizados nesse novo contexto narrativo: 1) o fantástico, característica da lenda oral, confundese com os delírios causados pelo medo e pela abstinência alcoólica dessa mulher – também condicionada aos vícios de seu agressor; 2) os elementos que figuram a punição, tais como a degradação moral e física, representada pelo confinamento na gaiola e, principalmente, 3) os nomes das personagens, históricas e lendárias, que, nesse novo contexto, servem também para relembrar o leitor do compromisso da transmissão, tanto por parte da autora quanto daquele que lê e se apropria da atualização da narrativa tradicional.
Ao longo dessa explanação, que persegue a linha evolutiva e de transmissão da figura histórica e lendária da Corriveau, percebe-se que as lacunas deixadas ao longo do grande percurso geracional são fecundas no imaginário de uma escritora comprometida com a manutenção da memória cultural de sua comunidade. C.-E. Yance, quando recupera a Corriveau do imaginário popular, não só enaltece a tradição popular da literatura oral do Quebec, como também ressignifica a imagem de uma protagonista em uma atualidade marcada pela insubmissão feminina e pela luta em defesa dos direitos da mulher.
A Marie-Joseph Corriveau dos arquivos e das lendas tradicionais, figura historicamente depreciada pela História Oficial do Canadá, representa também o feminino subalterno frente ao poder opressor em três instâncias: política, religiosa e cultural. Sendo assim, a Corriveau resgatada por C.-E. Yance, não só caracteriza a filiação simbólica e coletiva da comunidade quebequense, mas a afiliação por identificação de gênero, uma vez que a mulher, e somente ela, pode ser submetida a um relacionamento conjugal abusivo de violência física. Não se pode ignorar que a protagonista de C.-E. Yance é herdeira de uma Corriveau do século XVIII, cujo destino foi a morte por decisão dos opressores de seu tempo. Isso talvez justifique o desfecho surpreendente narrado pela autora; desfecho revelador de que toda mulher moderna, mesmo amparada por leis e instituições que a protegem, mesmo reagindo em legítima defesa, pode estar fadada ao mesmo destino de Marie-Joseph Corriveau.
A protagonista moderna de C.-E. Yance, cumpre com a promessa de vingança: engaiola o companheiro agressor – deteriorado pelo mal cheiro das fezes, da urina, do suor e alimentado apenas pelo ódio e desejo de, em um descuido, agarra-la por entre as grades e matá-la. A Corriveau do conto, mesmo regozijada pela condição humilhante do marido, sabe que jamais apagara seu passado de violência – iniciada pelo pai, continuada pelo companheiro. Impulsionada por essa consciência perturbadora, ela decide libertar-se definitivamente aproximando-se, de forma espontânea, das grades da gaiola e se entregando à morte nas mãos do agressor.
BERND, Zilá e MANGAN, Patrícia K.V. (Orgs.). Memória cultural, herança e transmissão. Canoas: Editora Unilasalle, 2017.
BERND, Zilá. A Persistência da Memória – romances da anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besourobox, 2018.
DION, Sylvie. A legentificação do ‘Fait divers’ – o caso de Marie-Joseph Corriveau: a enforcada e engaiolada. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 36, n. 48, p. 83-93, 2005.
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ROBIN, Régine. Memória coletiva, memória cultural e romance memorial. In : BERND, Zilá e MANGAN, Patrícia K.V.(Org.). Memória cultural, herança e transmissão. Canoas: Editora Unilasalle, 2017.
YANCE, Claude-Emmanuelle. La Corriveau. In: YANCE, Claude-Emmanuelle. Cages. Québec: Lévesque Éditeur, 2011.
Meus verdadeiros heróis são meus pais, vítimas de uma sobrevivência doméstica, calada, dilatada, dolorosa. Desintegrados numa seita de adorações e desencantos, eles perderam a razão. [...]
Houve dias em que me senti órfã ou, para dizer de um modo mais conciliador, Filha da Pátria. Via meus pais durante breves intervalos. Não era algo particular, vários amigos se encontravam na mesma situação.
Nádia Guerra1
Paguei um preço muito alto por crescer sozinha enquanto todos iam embora da ilha. Foram me abandonando pouco a pouco; hoje não posso me comportar como uma mulher comum, estou fora do mundo. As ferramentas que me deram de nada servem, vivo refugiada no Diário e só me sinto à vontade e normal entre suas páginas.
Nieve Guerra 21 GUERRA, Wendy. Nunca fui primeira dama (2010, p. 8).
2 GUERRA, Wendy. Todos se vão (2011, p. 7).
Esse capítulo visa refletir acerca da autoficção como forma contemporânea em evidência para a construção narrativa na / da América Latina, a fim de averiguar, pela perspectiva da análise literária, como se desenvolve a temática das narrativas de filiação nos romances da escritora cubana Wendy Guerra, mais especificamente Todos se vão (2011) e Nunca fui primeira dama (2010), pois em ambas as diegeses as narradoras protagonistas, Nieve e Nádia, respectivamente, atuam como alter egos da própria autora. Ainda, em ambas as estórias, as personagens recompõem traços da vida da escritora, em especial aqueles que se relacionam à sua mãe, Albis Torres, e às dores as quais esse vínculo de sangue representa. Dessa forma, pretende-se compreender como a “herança ferida”, originada pela Revolução Cubana, contribui para que as narrativas autoficcionais de Wendy Guerra sejam também narrativas de filiação, posto que um romance é a sequência dos biodados inseridos no anterior e, nos dois, as protagonistas buscam ‘curar uma ferida’ que fora deixada / imposta como herança, quer pelos pais, quer pela nação.
O romance-diário Todos se vão (2011) narra a vida da jovem Nieve Guerra, alter ego de Wendy Guerra; divide-se em ‘Diários da Infância (19781980) e Diários da Adolescência (1986-1990)” e traz inúmeras coincidências com a vida da própria autora, desde a mesma data de nascimento a elementos descritivos para a aparência pessoal. No entanto, trata-se de uma obra de autoficção, pois não cumpre com a tríade conceitual de um texto sob o formato do ‘pacto autobiográfico’, conforme estabelecido por Phillippe Lejeune (2008, p. 15): “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem”. Neste caso, e o mesmo ocorre com o outro romance a ser analisado aqui, narradora e protagonista são as mesmas, contudo, a autora não é, pois Nieve Guerra narra a vida de Nieve Guerra, contudo a autora do livro é Wendy Guerra. Portanto, definitivamente, ainda que saibamos que há muitas coisas em comum entre uma e outra, não podemos afirmar que esta obra é um romance autobiográfico ou um diário íntimo, mas é sim uma obra de autoficção 3 . A autoficção é uma das vertentes das escritas de si que, não necessariamente, revela a ‘verdade’ do escritor, mas que, entre um traço e outro, tem relações ficcionais e imaginativas anexadas em alguns pontos do real, do factual. A escrita autoficcional é uma das formas de escrever um outro de si mesmo, de reinventar-se à luz de desejos e traumas, de passar a
3 Retomo esta reflexão, acerca do conceito de autoficção nesses dois romances, a partir de um ensaio crítico acerca do lugar, no caso a cidade de Havana, o qual apresentei na Universidade de Salamanca – Espanha, por ocasião do 56º Congresso Internacional de Americanistas (2018). Cf. Simposios innovadores : Memoria del 56.º Congreso Internacional de Americanistas. Ediciones Universidad de Salamanca, 2018.
A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra
vida a limpo e, com isso, prosseguir. Não à toa, houve uma efervescência desta tendência contemporânea de escrita, a partir de nomes franceses até uma alavancada autoficcional nas Américas, em especial pela escrita de mulheres, posto que esta forma de se fazer literatura em muito contribui para trabalhar –narrativamente – legados familiares, culturais e nacionais; sejam eles positivos ou negativos, desejados ou impostos.
Os romances de Wendy Guerra, sobretudo os que compõem este corpo de análise, deixam evidenciar a questão de uma herança (familiar) ferida como consequência de um legado (nacional) inconsequente, vide epígrafes desse capítulo. Ou seja, além das protagonistas Nádia e Nieve crescerem sem a presença e o cuidado dos pais, ambas narradoras acabam por revelar que herdam algo que nunca desejaram porque, através das ações de seus pais herdam as consequências dramáticas da Revolução Cubana na atualidade, ficando claro nas performances delas que não desejaram tal revolução, mas que involuntariamente sofrem as consequências da mesma por meio das escolhas ideológicas e políticas de seus pais. Portanto, trata-se de uma herança ferida, um legado que é familiar e ao mesmo tempo, neste caso, nacional: de toda forma, indesejado.
O termo “autoficção” foi cunhado por Serge Doubrovsky no seu romance Fils (1977), sustentando uma ambiguidade entre a veracidade da informação e a liberdade de escrita: “Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se preferirem, autoficção, por ter-se confiado a linguagem, avessa ao bom comportamento, avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo” (DOUBROVSKY apud LEJEUNE, 2014, p. 23). Todos se vão está mais para romance do que para diário, posto que também não cumpre com as características todas essenciais ao diário padrão, conforme Lejeune (2008). A impressão que nos passa é que a autora quis realmente romancear alguns de seus diários, e foi bem-sucedida. A maioria das entradas (mini capítulos) do romance-diário tem datas marcadas e completas com dia, mês e ano. No entanto, muitas entradas não as têm, mas são identificadas com títulos, com nomes de pessoas, nomes de coisas e lugares e assim por diante. O foco de Todos se vão (doravante TSV ) é contar, ou recontar, a trajetória solitária de Nieve Guerra; primeiramente, à luz de todo o sofrimento enquanto criança por conta de um pai cruel e abusivo. Depois, o abandono materno, a fragmentação familiar e social somados ao ostracismo fruto do colapso do regime de Fidel Castro, já na década de 80. Dia após dia, Nieve Guerra vai narrando como e por que todos se vão. Ela permanece, contraditoriamente, como a escritora Wendy Guerra – sua criadora – em Cuba, mas aqueles a quem ama, vão-se
embora pouco a pouco: “Meus pais não estão mais aqui, foram embora pouco a pouco” (GUERRA, 2011, p. 7).
Já o romance Nunca fui primeira dama (2010) narra a história de Nádia Guerra, também alter ego da escritora. Esse romance é o caso, mais uma vez, de uma escrita autoficcional, pois tem pinceladas da vida da autora enaltecidas pela capacidade criadora da mesma. Ficção e realidade dançam de mãos dadas e de rostos colados. Nesse romance, Nádia Guerra trava uma busca incessante por sua mãe, a qual havia lhe abandonado aos dez anos. Ao percorrer uma trajetória de busca desde Cuba, à Europa e Rússia, ela encontra a sua mãe em Moscou, mas no percurso descobre muito mais do que seu alvo primordial, uma vez que encontra a si mesma.
Em Nunca fui primeira dama (doravante NFPD), há uma crítica bastante contundente à Revolução Cubana, posto que a desgraça observada pelos olhos da narradora protagonista é originada, tão somente, de um regime imposto e idealizado por uma geração (a de seus pais), mas negado e sofrido por outra geração, a sua. Por esta razão, a obra resgata a importância das mulheres em todo sistema governamental de Cuba e, assim, confere o devido mérito à figura da escritora Albis Torres, mãe da protagonista Nádia, com o mesmo nome da mãe da escritora Wendy Guerra. Da mesma forma, recupera a emblemática figura de Célia Sánchez, popularmente reconhecida como a amante preferida de Fidel Castro e que foi, sem dúvida, o seu braço direito na revolução. Contudo, tais nomes caíram na marginalidade e no esquecimento depois da derrocada do sistema.
Wendy Guerra parece circunscrever uma historiografia literária de Cuba às avessas, a contrapelo do regime, a fim de reposicionar determinadas figuras femininas em seus lugares de devido mérito. O mais curioso e intrigante deste romance é que seu leitmotiv é, justamente, um romance inacabado de Albis Torres, mãe da narradora protagonista Nádia, mas também o mesmo nome da mãe da escritora na realidade, e que, não por coincidência, era também uma escritora cubana. Tanto Nádia Guerra em NFPD como Nieve Guerra em TSV ocupam a função do arconte grego, aquele sujeito cuja missão maior em sociedade seria a de salvaguardar as memórias de um povo, dos discursos às relíquias. O arconte recolhe e arquiva, com isso, mantém para a posteridade:
“O princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião”, uma vez que, “E como garantia. O arquivo sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor de futuro” (DERRIDA, 2001, p. 14; 31). No primeiro romance, chama a atenção uma caixa velha cheia de objetos sem conexão entre si, dentro da qual o livro inacabado se encontra; Albis Torres em NFPD carrega esta caixa desde o momento que é exilada de Cuba
A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra
para Moscou até o seu retorno. De posse desse arquivo fragmentado, dos restos de vida de sua mãe, dentro de uma caixa simbolicamente colocados, a narradora busca completar lacunas de sua própria existência. Nesse sentido, chega-se a cogitar a ideia de que o romance em si, a narrativa autoficcional de NFPD seja, por ventura, o romance acabado a partir daquele inacabado de sua mãe, e existe uma razão para tal especulação – o fato de que ambos enaltecem o papel central de militância e de liderança da guerrilheira Célia Sanchez na Revolução Cubana. “Abatida, termino de ler o que deixaram vivo do livro de minha mãe. Agora sou eu quem vai pesquisar sobre Celia. Vou reconstruir o romance e sei que, na Cuba de hoje, será difícil para mim” (GUERRA, 2010, p. 183).
Já no segundo, o que nos envolve é uma colcha de retalhos (de vida) que compõem o romance-diário TSV, pois ao passo em que a narradora protagonista Nieve Guerra detalha passagens marcantes de sua infância e, depois, da adolescência, percebe-se o desejo de costurar ali, nessa espécie de diário íntimo, porém autoficcional, pedaços de vida que foram ficando pela estrada, reconectar rastros memoriais, uma vez que “todos se vão ou todos já se foram”, mas ela, a protagonista, precisa ficar. Assim, o próprio romance ocupa a função de arquivo e é formado de maneiras múltiplas, por meio de uma variação de gêneros textuais, cartas, poemas, músicas, trechos de diário, notícias, recados, anúncios, etc. “Embora queira parar de escrever, no fim acabo voltando; este é meu “túnel popular”, meu “refúgio de guerra”, meu esconderijo secreto, meu verdadeiro confessor” (GUERRA, 2011, p. 171); “Querido Diário: todos se vão, todos me deixam” (GUERRA, 2011, p. 258).
Não colabore com a desmemória. Deixe-se levar pela lembrança, ainda que seja vazia...
Se fiz mal ou se fiz bem, logo saberei. No momento não esquecer é o que importa
Nieve Guerra 4Os dois romances de Wendy Guerra, aqui abordados, configuram escritas contemporâneas autoficcionais, como já exposto, mas igualmente são narrativas de filiação, já que as narradoras protagonistas Nádia e Nieve partem do seu presente diegético, caótico e doloroso, para uma escavação de seus passados,
a fim de buscar uma conciliação na miríade fragmentária das memórias, as quais trazem em si. O abandono familiar, o descaso com a orfandade e a predileção dos pais pelo sistema político aos filhos tecem a fundamentação de uma consciência presente, a qual gera revolta e frustração, buscando na reminiscência do passado uma explicação plausível que justifique, ainda que em partes, os problemas do momento presente da diegese.
Nas duas narrativas, existe uma dualidade em torno do processo de esquecimento. Algumas vezes se percebe que as narradoras precisam esquecer de algo para prosseguir, para sobreviver e para suportar. No caso de Nádia, é salutar esquecer que a mãe lhe abandonara quando pequena, em favor da Revolução Cubana e de seus ideais. No caso de Nieve, é visceral esquecer os abusos físicos e psicológicos exercidos pelo pai biológico. Em outras vezes, o esquecimento precisa ser driblado, seduzido e manipulado, pois essas mesmas necessidades de esquecimento se tornam alimento voraz para o processo de anterioridade, por uma busca de respostas em torno do comportamento familiar ancestral, principalmente dos pais.
Esquecer e lembrar andam par a par, tal qual irmãos gêmeos que se confundem e, comumente, distanciam-se para evitar a confusão, ou ainda, como dois amantes que desejam ardentemente se aproximar, mas as circunstâncias nunca permitem. Dessa maneira, entendo que há uma pitada de ilusão na anterioridade, uma vez que é impossível ter todas as respostas para as nossas crises através da análise e do resgate das experiências de nossos ancestrais; muitas coisas e fatos podem evidentemente se elucidar. Contudo, parece inviável recuperar a exatidão dos acontecimentos com o passar de muitos anos ou respostas completamente justificadas a partir da memória e dos atos de outras pessoas, posto que a nossa própria memória já nos é traiçoeira o suficiente: é importante contar com o resgate coletivo de fatos e memórias para se ter um crédulo maior no processo de anterioridade. Resgata-se, assim, uma verdade que pode ser, muitas vezes, uma pseudoverdade, mas que para o sujeito da busca tem valor significativo, já que visa resolver uma crise existencial do mesmo no presente, ou seja, a saída, talvez a única saída, para a sua própria interioridade. Por esse viés, Zilá Bernd (2018, p. 24) conclui que:
Falar dos pais é um subterfúgio para falar de si próprio, apontando para um desejo de conhecer melhor a herança deixada pelos pais. Na verdade, trata-se do autobiográfico descrito através de um outro ponto de vista. O filho deseja saber o que aconteceu em momentos de vida dos pais em que ele não esteve presente.
Creio que soa natural à espécie humana procurar no outro, sobretudo no outro familiar, respostas às questões que lhe permanecem obscuras. Entretanto, como achar explicações para um legado indesejado, para uma herança ferida? Em meio a dor e ao desapontamento, faz-se necessário curar algumas feridas para conseguir, então, enfrentar o questionamento. Nesse ponto, o romance de filiação pode atribuir uma honraria aos ancestrais ou, não raro, enfrentamento e acerto de contas. Após o encontro de algumas respostas, nesse procedimento arqueológico de escavações de vidas em restos de arquivos e memórias, o indivíduo pode vir a romper ou a reconciliar com seu passado, sua anterioridade e, enfim, seus ancestrais. Por essa razão, tanto Nádia como Nieve são “herdeiras inquietas e problemáticas”, conforme denomina Demanze (2008 apud BERND, 2018, p. 25), pois não aceitam a herança deixada, aquela de uma vida em dificuldades, do abandono, da escassez, da solidão, da censura e da dor, após o declínio da revolução; revolução essa que elas não idealizaram, não participaram e tampouco desejaram, mas a partir da qual sofrem as consequências políticas, nacionais, sociais e, especialmente, familiares. NFPD e TSV demonstram intimamente a definição posta aos romances de filiação, nos moldes apresentados por Zilá Bernd (2018, p. 25), quando a escritora diz que: “Esse tipo de romance que Viart chama de “romance de filiação” articula-se a partir de vestígios (objetos da casa paterna, cartas, fotos) ou da falta (pais ausentes, transmissão imperfeita, ressentimento) ”. Não há dúvidas, os romances de Wendy Guerra se pautam nos ressentimentos das personagens Nádia e Nieve, numa busca constante de acertar as contas com o passado, com vistas à reconciliação com seus ancestrais, sobretudo com as mães: uma para apagar as marcas do abandono e, a outra, para suavizar a orfandade e o abuso; descasos fomentados pela revolução e pelos pais guerrilheiros. Portanto, os legados são familiares e também são nacionais nesses romances, já que a Revolução Cubana é o principal pano de fundo para todos os fatos narrativos em questão.
No 25º capítulo de NFPD, intitulado “A casa, a mãe, a memória e o corpo”, Nádia se dá conta de como é desafiador se reconectar com sua mãe, após conseguir trazê-la, finalmente, de volta à Cuba. Albis Torres retorna muito adoecida para sua terra natal e as enfermidades limitam demasiadamente a tão sonhada anterioridade de Nádia e, por consequência, acabam inviabilizando a conquista de sua interioridade. A esse respeito, a personagem divaga:
O dia em que perdemos a memória não é o dia em que as lembranças se apagam, mas quando não conseguimos organizá-las ou situá-las junto aos afetos. Seus entes queridos começam a ser estranhos para você. O íntimo
se torna alheio. No dia em que perdemos a memória, viajamos à deriva. Qualquer um nos salva ou nos empurra para o desastre. O inimigo se muda para sua cabeça (GUERRA, 2010, p. 112-113).
Nádia não esconde das demais personagens, tampouco do leitor, o fracasso parental ao qual fora subordinada; crescer com a ausência dos pais biológicos e com o declínio do sistema em assumir o papel paternalista a cobrir todas essas ausências, deixam-lhe marcas profundas. Apesar de ter recebido afeto e instrução dos pais adotivos, um casal homoafetivo da geração de amigos de sua mãe, Nádia retroalimenta sua herança ferida com o sistema político que lhe determinou um legado indesejado porque, ainda que negue ser filha da revolução, reafirma que o é ao expor sua afetividade em relação à cidade de Havana e à própria ilha de Cuba, inúmeras vezes na narrativa.
Tento agarrar e conservar as coisas que amei, por isso gosto dos museus e não dos cemitérios. A arte de deter, conservar, segurar. Por isso gosto também de Havana: esta é a cidade, um museu que não desmoronou em meio a uma estranha batalha para proteger sua pátina. Meu tempo é sépia; minha dor, salgada; meu cheiro é o óleo essencial desse velho perfume de sempre, esses rastros (ou restos?) de Chanel em frascos remotos, como minhas próprias lembranças desta idade indefinida (GUERRA, 2010, p. 98).
No romance TSV, a situação de Nieve Guerra não é muito diferente daquela de Nádia. O pai biológico de Nieve trabalha para o regime de Fidel e cuida da pequena Nádia por algum tempo, o que fica evidenciado na primeira parte da narrativa: “Diários da Infância (1978-1980)”, pois sua mãe biológica havia casado com um sueco e abandonado a filha. Em uma sucessão de tragédias familiares, Nieve consegue escapar do pai abusivo e passa a viver num orfanato para, muito depois e já no final da adolescência, conseguir ficar um pouco com a sua mãe, já separada do padrasto, desligada do sistema e muito doente. Tal qual Nádia, Nieve nunca soube o que é verdadeiramente ter uma mãe (muito menos um pai de fato) e, nas poucas oportunidades de convício, precisou ser mãe da própria mãe. Sobre o período no centro de abrigo infantil, a passagem abaixo demonstra o suficiente:
Minha mãe não veio me ver. A psicóloga é uma mentirosa. Me vestiram com uma roupa engomada com fedor de barata e me puseram na fila para que os casais me vissem. Dois me apontaram. Estou cansada de tantas mentiras, tive de responder coisas e mais coisas aos casais que me escolheram. Fiquei muito aflita. A “profe” disse que eu precisava responder a todas as perguntas. As crianças que estavam lá ficaram surpresas com minha história. Não quero escrever mais, odeio os domingos, não por isso, nunca gostei mesmo e hoje gosto menos ainda (GUERRA, 2011, p. 85).
Já na segunda parte do romance, “Diários da Adolescência (1986-1990)”, a narradora protagonista avança seis anos nos relatos de sua vida e há um grifo maior na sua formação educacional, pois frequenta um semi-internato para estudar e para garantir a comida que lá oferecem; dado esse contexto, Nieve visita a mãe somente aos finais de semana, já que ela habita, então, Havana nesse momento da estória. Um pouco mais felizarda do que Nádia, Nieve consegue atingir um pouco mais de sua anterioridade ao conviver com a mãe e com os amigos dela aos finais de semana. Pouco a pouco, fortalece a sua interioridade e compreende porque ‘todos se vão’, assim como seu pai biológico, adotivo, amores e amigos. Durante a evolução do seu agenciamento pessoal, do crescimento em si e do amadurecimento das ideias e das emoções, Nieve distingue o valor de cada coisa e situação, intervendo no impacto de sua herança ferida e no valor de um legado indesejado.
Cada um de nós deve “uma peseta a cada mártir”, diz minha mãe: à asma do Che, ao corpo de Camilo no mar, ao que escreveu com sangue antes de morrer o nome de Fidel numa parede, aos que mataram em Angola, aos que se perderam na Bolívia, aos mambises, devemos algo a todo mundo. São eles que fizeram tudo por nós; nós não podemos fazer muito por eles. Acho que lhes devíamos tudo isso muito antes de nascer. Mas se eu devo alguma coisa é para minha mãe e fim. Para mim os mártires são nossos pais. Nós, os filhos, às vezes queremos esquecer o sobrenome e praticamos verdadeiras façanhas para nos tornarmos mais um daqueles que compõem a longa fila da bandeja de alumínio (GUERRA, 2011, p. 126).
Diante de uma herança ferida, pesada demais para ser transmitida, as narrativas de filiação se tornam um dos vários modos de se fazer a prática das escritas de si, uma vez que real e ficcional de cruzam, cobrindo lacunas existenciais e possibilitando sentidos ao presente. Da estrada percorrida pela anterioridade até o caminho da interioridade, inventam-se genealogias de si, assim como o faz a escritora cubana Wendy Guerra. A propósito, nada mais oportuno aos escritores latino americanos, forjados pelas agruras da colonização, da escravidão e das ditaduras.
Dado o contexto de construção narrativa, assinala-se um mal-estar na transmissão geracional em ambos os romances de Wendy Guerra, justamente porque se pautam em legados indesejados, impostos pela nação às famílias. Por essa razão, muito comumente, perde-se a linearidade narrativa e o vai-evem diegético é constante, apesar de marcado por datas, por acontecimentos históricos, por personalidades de época, por fatos importantes, como é o caso da recolha literária aqui analisada. O peso desse legado fica bastante claro no excerto de Nádia, em NFPD, a seguir:
Deixam-nos entrar, vejo minha mãe numa cadeira de rodas, pequenina, nervosa, chorando. Não é possível que já esteja em Cuba conosco. O fiscal da alfândega me explica, mas não escuto nada. Beijo minha mãe, ela exala um cheiro forte. Tem comida grudada no rosto. Urinou nas calças. Sua mão esquerda treme devido ao Parkinson. Meu Deus, que maneira de voltar. É tarde para regressar. O que sinto? Raiva, principalmente, por esse tempo de ausências que adoecem. Comigo, com o sol daqui de fora, com a praia, com meu pai, talvez tudo tivesse sido diferente. Tem pessoas que vivem fugindo, devem ir embora do lugar onde nasceram; mas há seres tão frágeis que, quando fogem, são engolidos pelo mundo. Devora-os o abstrato dos semáforos e das contas a pagar. Seria esse o caso? Não sei, não a conheço (GUERRA, 2010, p. 109, grifo meu).
Coincidentemente (ou não), no outro romance de Guerra, TSV, Nieve recupera um panorama muito singular e semelhante ao recortado acima, a respeito de Nádia e sua mãe. Em TSV, há um capítulo intitulado “Uma hora com minha mãe” e, nele, Nieve retrata o caráter incorrigível de sua mãe em favor da militância e do sistema, comportamentos tais que a filha rejeita, posto que são eles que sempre a afastaram da mãe. A ausência da mãe em sua vida fica muito evidente nesse capítulo assim como o fardo de uma herança ferida.
Minha mãe diz que se quero viver sem falar de política tenho de ir para o Canadá, para uma aldeia bem fria onde vive gente que corta árvores e não sabe tampouco se interessa saber o nome do presidente que governa esse país. Em Cuba, segundo ela, a política está no que você come, no que veste, onde vive, no que tem e até no que não tem. Não há solução possível para minha mãe: “Se você quer fugir da política tem de fugir de Cuba”. Ela acredita que o que alguém pinta ou escreve contém política. Então, acha que estou desorientada, e estou mesmo, mas não podem continuar me perseguindo. [...] Minha mãe rejeita o que ama. [...] O que farei com minha mãe, que agora é como minha filha? (GUERRA, 2011, p. 174-175, grifos meus).
Tanto Nádia quanto Nieve procuram fortemente ressignificar seus passados, reconectar com as histórias de seus pais e do próprio país para, então, conseguirem entender, ainda que somente um pouco, as lacunas do momento presente, de uma existência em constante falta de algo. Nessa jornada da anterioridade à interioridade das duas personagens, os romances nos apresentam uma mescla de memórias coletivas, individuais, culturais, históricas, nacionais, sociais, políticas e familiares que dão o tom das duas estórias e, ao mesmo tempo, balizam o ônus de se herdar aquilo que não se deseja e com o qual não se identifica. Sobre a recuperação de uma mãe ausente e de uma transmissão que falhou, Nádia assegura: “Sou sua memória de reposição”
(GUERRA, 2010, p. 1233). Na mesma esteira de remição, Nieve enaltece que:
A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra
“Desde que me entendo por gente estou sendo treinada por minha mãe para ir embora e esquecer” (GUERRA, 2011, p. 233).
Ideias inacabadas
As narrativas aqui abordadas mostram claramente que, entre lembrar e esquecer, travam-se fortes batalhas nos espaços de recordações de cada sujeito, sendo impossível esgotar as reflexões e os pensamentos em torno da polêmica reinvenção de si mesmo através de uma aventura, não rumo ao futuro, mas de retorno ao passado. Conhecer os fatos que moldaram a vida dos pais pode, quiçá, indicar um caminho para se aceitar e para se conhecer os mistérios e as dores que moldam a própria existência no presente. Ressuscitar acontecimentos do passado é, de alguma maneira, jogar fluxo de vida na atualidade. Para cobrir as falhas da transmissão geracional, numa espécie de dever ao legado frustrado, Nádia, em NFPD, almeja terminar o romance inacabado da mãe moribunda e, com isso, circunscrever a própria história. Por sua vez, Nieve, em TSV, desiste de ir embora da ilha, aceitando que, um dia, todos se vão, mas ela e a mãe permanecem, mesmo sem se entenderem como gostariam. Acerca desse percurso doloroso, Zilá Bernd (2018, p. 47) afirma que “É necessário o estabelecimento de um jogo dialético entre lembrar e esquecer, entre passado e presente, entre ascendentes e descendentes, entre aceitar ou renegar os vestígios memoriais que emergem”.
Passo a passo, dor a dor, memória a memória, o ressentimento vai dando espaço ao perdão e à reconstrução e, assim, as narrativas de filiação tornam viável a reinvenção dos sujeitos contemporâneos, tão marcados pelos factuais históricos. Coerentemente, indaga Nádia, no romance NFPD: “Existe futuro sem memória?” (GUERRA, 2010, p. 115).
BERND, Zilá. A persistência da memória. Porto Alegre: Besouro Box, 2018.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo – uma impressão freudiana. Trad. Claudia Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
GUERRA, Wendy. Nunca fui primeira dama. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Saraiva, 2010.
GUERRA, Wendy. Todos se vão. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Saraiva, 2011.
LEJEUNE, Philippe. Autoficção & Cia. In: NORONHA, Jovita; GUEDES, Maria Inês (orgs.). Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014, p. 21-38.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Noronha; Maria Inês Coimbra. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
São vários, na contemporaneidade, os estudos sobre a memória social (CANDAU, 2011; BERND, 2018, entre outros) que enfatizam o fato que os estudos da memória não se reduzem ao armazenamento de dados em arquivos. Existem esforços substanciais para se flagrar dados importantes da história coletiva que são postos de lado, negligenciados, conduzidos ao esquecimento, no sentido de que um discurso hegemônico, que interpreta fatos relacionados aos interesses de classes determinadas, seja transmitido. Utilizei os termos espaçodobradiça e espaço-matriosca (2018), em um trabalho sobre a cidade de Salvador, que permite aos personagens de percorrer espaços históricos e culturais, outrora subestimados, como os terreiros de candomblé, por exemplo.
O espaço-matriosca acumula informações, permite a superposição de temporalidades, relaciona informações ancestrais com aquelas que estão emergindo nos tempos atuais. É um espaço que dinamiza os arquivos no sentido paradigmático. Já o espaço-dobradiça, com sua orientação sintagmática, autoriza os atos de passagem, de contacto entre os dados de uma memória hegemônica e os dados de uma memória difusa, dispersa, cujas articulações estão sendo observadas no
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sentido de permitirem a emergência, no primeiro plano dos textos de uma sociedade, fatos negligenciados ou esquecidos.
Como diz Bernd (2018, p. 27) “memória e transmissão estão intimamente associadas”, de tal forma que fragmentos de vividos dispersos podem se reconfigurar, no seio de uma comunidade, pelas formas que as pessoas narram umas para as outras. Desta forma, transmitir memórias não é apenas transmitir conteúdos, mas principalmente legar estruturas móveis de narração que sejam capazes de garantir o conhecimento de fatos vividos pelas comunidades, preparar os espaços-dobradiças que permitem as passagens. A reflexão sobre transmissão é, na maioria das vezes, relativa à gênese ou origem dos ancestrais das comunidades cujos saberes passam pelas gerações. No entanto, segundo ainda Bernd, o conceito de “Digênese” de Edouard Glissant põe por terra a ideia de filiação única e gênese incontestável, em razão dos inúmeros processos de hibridação e mestiçagem pelos quais passaram os escravizados nas Américas. O neologismo “Digênese” traz à baila igualmente a precariedade do espaço-dobradiça, as transmissões de um relato para o outro, sem dispositivos estruturados de difusão, como os que as culturas hegemônicas sempre possuíram. Sem contar que o fenômeno da vergonha, ou mesmo de um mal-estar, interfere na transmissão, o que pode significar reviver experiências traumáticas.
O corpus que escolhemos para ilustrar a importância da transmissão não se relaciona apenas com fenômenos culturais ou legados familiares, embora estes possam existir como pano de fundo. Escolhemos trabalhar com um contexto político brasileiro, a partir do Estado Novo (1937-1945) até os dias atuais, segunda década do século XXI. Optamos por abordar os regimes ditatoriais que reprimiram o país, e as formas como alguns escritores adotaram para transmitir os desafios que enfrentaram nos cárceres.
Memórias do Cárcere (1953), Graciliano Ramos
Graciliano Ramos foi preso em março de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista, após ter sido demitido da função de Diretor da Instrução Pública. Prisão sem processo, a acusação formal nunca chegou a ser feita. No entanto, o acusado foi deportado para o Rio, num porão de navio, onde permaneceu encarcerado até janeiro de 1937. Dessa experiência, nasceu a obra Memórias do Cárcere (MC I e II), publicada postumamente em 1953. A maioria dos estudiosos desta obra é unânime em mostrar que o relato é mais do que uma observação simples das condições humilhantes de vida na
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cadeia, mas sobretudo uma análise profunda do autoritarismo que marcou a ditadura de Vargas a qual propiciou vários abusos de poder. Logo, é um livro de memórias coletivas. Foi publicado em dois volumes, faltando o capítulo final, pois o autor faleceu antes de concluí-lo. Nelson Werneck Sodré, em sua apresentação, de 1954, afirma:
Em Graciliano Ramos, na verdade, – e isso precisa ficar bem nítido – o que se pretendeu ferir, amesquinhar, ultrajar e infamar foi a cultura, em nosso país, foi a possibilidade de alguém enxergar um poço mais porque estuda e compreende (...) Em Graciliano Ramos se brutalizava tudo aquilo que a cultura pode realizar em favor do homem, de sua visão da existência, de sua ânsia pela liberdade (SODRÉ, 1984, p. 29).
Como livro de memórias, a obra pode ser também classificada como livro autobiográfico, e se inscreve no paradigma da invenção de si, como possível projeto de si implicando compreensão do processo de conhecimento e de aprendizagem das experiências de um sujeito ao longo da vida. Como o diz Souza (2006, p. 137), “as histórias de vida adotam e comportam uma variedade de fontes e procedimentos de recolha, podendo ser agrupadas em duas dimensões, ou seja, os diversos documentos pessoais (autobiografias, diários, cartas, fotografias e objetos pessoais), e as entrevistas biográficas, que podem ser orais ou escritas”. As autobiografias oferecem novos dispositivos de sentido e de verdade que não constroem apenas visões do mundo, mas põe em cena forças de dominação que agem sobre a vida de pessoas comuns. Nesse espírito, ocorre igualmente a valorização de memórias de prisão, como grafias de uma realidade individual, mas com conotações históricas mais vastas. Esta dimensão interessa tanto para expor a trajetória individual de um encarcerado que para sublinhar a historicidade subjacente a esta vivência como experiência humana. Um dos gêneros mais utilizados é, sem dúvida alguma, o diário, caracterizando-se pela escrita de corpos aprisionados que tentam pôr em cena imagens de um mundo cerceado para si mesmo. Em outras palavras, a escrita de si no diário, por uma pessoa comum, marginalizada, engendra uma forma de aprendizado de si que torna o sujeito ativo, mesmo se limitado por uma vigilância disciplinar, para configurar o feixe de relações sociais e históricas que se desenvolve dentro de um espaço confinado que é um cárcere. Os diários passam a ser valorizados no pós-modernismo, mas é sabido que existem há séculos. No século XX, o diário de Kafka ficou conhecido pelas reflexões que desenvolveu sobre a própria escrita autobiografia; o de André Gide também interrogou o próprio gênero, suas fronteiras e territórios, conforme descreveu Bancaud-Maenen (2000). Sartre, em seu diário de guerra,
escrito entre setembro de 1939 e junho de 1940, desenvolveu o copião de uma obra filosófica. Nele, se pergunta: Comment rendre compte d’un homme dans son intégralité ?
Voltando à MC 1 , vejamos que Ramos é condenado sem saber o porquê. O procedimento arbitrário se inscreve naturalmente na tecnologia da representação na qual deve repousar toda arte de punir, como já preconizou Foucault em Vigiar e Punir. Existe uma relação de poder que governa o exercício da punição em um criminoso, designado como inimigo de todos que, desqualificandose como cidadão, aparece com atributos de selvagem, monstruoso, louco, e mesmo anormal. Em regimes totalitários, é a tecnologia do poder arbitrário que faz abstração dos instrumentos legais do castigo, aplicando no suposto inimigo da sociedade uma pena sem explicação.
É degradante. Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis, via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacob. Isso constituía um libelo mesquinho, que testemunhas falsas ampliariam (MC I, p. 46).
Ramos vive na ditadura do Estado Novo que efetua prisões arbitrárias de cidadãos considerados “comunistas”, e inimigos da sociedade. A coluna Prestes, já havia existido (1924 a 1927, dez anos antes), mas é a época da prisão de Olga Benário, companheira do comandante Prestes, grávida de sete meses. O episódio da suposta transferência de Olga para outro presídio, enquanto que, na verdade, ela é degradada para a Alemanha nazista, por ordem do governo varguista, é relatado na obra, pois Olga e outras companheiras ocupam as galerias anexas às galerias masculinas na Casa de Detenção. Nesse contexto, Ramos, que hesitou em tornar públicas essas memórias, já começa a tecer uma rede de reflexões acerca da estupidez do corpo de poder que utiliza as tecnologias contemporâneas de cerceamento da liberdade sem fundamento, isto é, com base em falsos testemunhos ou em “mentiras”2 . Ele produz um espaço-matriosca bastante denso da história do Brasil neste período. Mas o tempo disciplinar de Ramos, a partir de sua ordem de prisão, vai ser desdobrado numa longa viagem que estabelece um percurso narrativo próprio dos deslocamentos do “acusado”. Ele parte de Alagoas, para o sudeste, no porão do navio Manaus onde já pode constatar o ambiente putrefato onde
1 Doravante MC I para o primeiro volume e MC II para o segundo.
2 “Fake News” ou “mera convicção”, de acordo com o léxico atual.
Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais
se encontram delinquentes de várias espécies e origens. São várias interações e trocas onde o “acusado” vai mudando sua percepção dos fatos vividos, a qual o guia na escritura das memórias; há circulação, há movimento, mesmo em condições precárias, e ele diz: “Já me haviam feito andar em três estados e conhecer cinco prisões. Novas mudanças arbitrárias, inexplicáveis, chegariam” (MC I, p. 342). Em alguns momentos, ele focaliza os lugares com uma máscara de narrador itinerante, quando vai reconhecendo a entrada do navio em determinados portos, e o vaivém de outros “acusados” que entram e saem. Chegando à Casa de Detenção, no Rio de Janeiro, Ramos espera ser interrogado, como seria natural, dentro da cultura jurídica, e se espanta com a ausência do mesmo: “Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações, testemunhas, sumiram-se. Não me acusavam: suprimiam-me”. (MC I, p. 52).
O arquipélago carcerário aparece em MC I e II, com sua vigilância hierárquica como um sistema de poder sobre o corpo alheio, integrado pelas redes verticais de relações de controle : “Temos a impressão de que apenas desejam esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos cansados. Será necessária essa despersonalização?” (MC I, p. 63). Inclusive, as redes verticais de controle são descritas continuadamente para ilustrar a essência do panóptico, pelo qual a visibilidade/separação dos submetidos permite o funcionamento automático do poder:
Vivíamos de fato, nos cubículos pequenos, ou no grande alojamento, cercados de gente duvidosa, e as suspeitas nos induziam a cometer injustiças. Um desconhecido cheio de reservas, soprava-nos a advertência gasta: —“Cuidado com Fulano: é espião da polícia”. (...) O conselho se desprestigiara enfim, mas continuava a circular, papagueado por fanáticos de cérebro escasso, ingênuos demais. Os autores dessas desavenças metiam-se nas encolhas, sem dúvida. Impossível distingui-los. Em compensação havia na polícia agentes infiéis, e ela não tinha meio de conhecê-los. Desempenhavam-se, mecânicos, pontuais, dóceis ao regulamento (MC II, p. 173).
Eis, então, o panóptico, como princípio de uma nova anatomia política, como mecanismo de poder aplicado a uma sociedade organizada em locais disciplinares, como as penitenciárias, escolas e fábricas, onde as multiplicidades humanas são ordenadas conforme táticas de poder, com redução da força política (corpos dóceis) e ampliação da força útil (corpos úteis) dos sujeitos submetidos. Nos trechos apresentados, observa-se os jogos de poder espraiados no arquipélago carcerário, mas que possuem a força de adestrar e de trazer os
condenados submetidos ao medo, pela movência de vários agentes: policias, juízes distantes, faxineiros, espiões diversos, etc.
Mas a sociedade panóptica, validada pelo encarceramento e existente como arquipélago carcerário, acaba por potencializar uma vontade de delinquência nos condenados, pois, ao invés de produzir os corpos dóceis, produz criminosos mais violentos. Ramos, nesse sentido, opera uma descrição qualitativa das condições precárias do ambiente punitivo que despersonaliza, corroendo os restos de humanidade que poderiam ainda existir em cada condenado. Tudo é “imundo” e “nauseabundo”, a alimentação é péssima, tirando-lhe o apetite; odores desagradáveis e ruídos desarmônicos existem, em toda parte, onde seria difícil, para um condenado intelectual como ele, entender as frases desconexas emitidas pelos companheiros, “ouvindo pragas, gemidos, roncos, vômitos” (MC I, p. 170). A analogia que o escritor efetua é a do local carcerário, no caso o Pavilhão dos Primários, com um “fervedouro de cortiço” (MC I, p. 248).
Justamente, o cortiço como desdobramento da senzala, e como embrião da favela, reaparece como eixo qualitativo negativo formado da mistura de pessoas, de várias origens. É um espaço-matriosca que contém uma memória genealógica, abrangendo mais de três gerações. Como no cortiço, no cárcere, as pessoas não se entendem perfeitamente. E Ramos já começa aqui a tematizar sobre o encontro de pessoas diferentes, de presos políticos com marginais comuns, encontro esse que tornar-se-á o centro argumentativo das narrativas que tratarão do crime organizado, já no século XXI: “Comunicação difícil, quase impossível: operários e pequeno-burgueses falavam línguas diferentes. Não nos entendíamos. Não nos podíamos entender” (MC I, p. 248).
Todas essas experiências compõem, de todas as formas, uma memória cultural e política. Pode-se igualmente produzir um ato estético ao se escrever um livro na cadeia, o qual se torna praticamente um diário de prisão ou mesmo as memórias no cárcere? O que existe de transmissível, em espaçosdobradiças, em tudo isso?
Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos –e, antes de começar, digo os motivos porque silenciei e porque me decido. (...) Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que tem no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las (MC I, p. 33).
Finalmente, Graciliano Ramos conta que saiu da prisão, por intermédio do grande advogado Sobral Pinto, contratado por José Lins do Rego para liberar
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o amigo. E perguntou-lhe: “- Ora doutor, para que tantas minúcias? Como é que o senhor vai preparar a defesa se não existe acusação? – Não há processo.”
E o advogado replicou: “— Dê graças a Deus (...) porque é que o senhor está preso?”
Ramos: “— Sei lá, nunca me disseram nada.”
Sobral: “— São uns idiotas. Se eu fosse chefe de polícia, o senhor estaria aqui regularmente com processo.”
Ramos: “— Muito bem. Onde é que o senhor ia achar matéria para isso, doutor?”
Sobral: “— Nos seus romances, homem. Com as leis que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo” (MC II, p. 299).
Com este diálogo, pode-se assumir a perspectiva de Bakhtin, de acordo com a qual a representação deve abranger a totalidade de uma época. O cronotopo bakhtiniano autoriza a reconstituição que faz um narrador, por meio de fragmentos de sua memória, da discursividade jurídica decadente e precária que cerca seu aprisionamento. Este se deu por uma longa travessia de navio, através de várias capitais, até a Casa de Detenção no Rio de Janeiro. O próprio narrador indaga sobre as peculiaridades de uma narrativa processual que, em uma situação jurídica deveria ser atenta às ciladas e dissuasões de um contexto narrativo plural. O memorialista que expôs, durante todo seu relato, as incoerências do poder autoritário produziram vários diagramas de relações empíricas e opinativas sobre a estupidez da arbitrariedade e a corrupção do arquipélago carcerário no modelo panóptico.
Memórias de um Sobrevivente (2001), Luis Alberto Mendes: a leitura e a escrita como política de si
Memórias de um Sobrevivente, de Luis Alberto Mendes, é um livro de memórias de boa parte da vida do autor, com quase 500 páginas. Este volume de memórias começa na infância, nos anos 1960, quando conta a relação amorosa com a mãe e a relação de medo e pavor para com o pai, o que o motiva a fugir e a perambular pelas ruas. Ainda garoto, passa pelo Recolhimento Provisório de Menores, e se lança na vida marginal, sentindo um prazer crescente em roubar, o que o levará a praticar assaltos cada vez mais complexos.
Segundo alguns estudiosos, o livro de Mendes é o mais bem acabado entre aqueles que compõem essa nova cena nacional da literatura prisional (sem contar com Memórias do Cárcere que é um clássico). Assim o prova o fato de ele ter continuado a carreira de escritor. Não por acaso a crítica
literária, que não se volta tanto para esse tipo de escrita, lhe reservou um espaço diferenciado. Carrascosa nos diz:
Penso que os escritos de Luiz Alberto Mendes são atravessados tanto por linhas de força (talvez menos nítidas) do que a crítica literária chama de “texto memorialista”, na medida, por exemplo, em que se denuncia um conjunto de práticas sistemáticas de marginalização e tortura do Estado brasileiro (o que talvez signifique uma reescrita da ideia de Brasil “sob outro farol”); bem como pelos atributos da forma moderna “autobiografia, referida pelos críticos acima (CARRASCOSA, 2008, p. 96).
Esta afirmação pode se conjugar com aquela de Nelson Sodré no prefácio de Memórias do Cárcere. Ambos os autores pensam que essas obras fazem menos a história de si, do que a história das diversas instituições disciplinares que definem um certo modo de existência política baseada no autoritarismo e no abuso arbitrário das técnicas de tortura. Carrascosa continua inclusive afirmando que a forma-prisão como mecanismo disciplinar opera rupturas físicas e simbólicas entre o sujeito aprisionado e seus esquemas de produção de sentido: em relação a si próprio, a sua família, a seu circuito de relações pessoais, o seu corpo, etc.
A forma-prisão tende a despersonalizar e a desmembrar o indivíduo, o que se acentua na potencialização do sentimento de solidão, daqueles que vão parar na Isolada, que se encontram diante de um sequestro das possibilidades de atribuição de sentido a si próprio, a um lugar, a um tempo, ou mesmo a um mundo. Nas tensões oscilantes entre a experiência nos pavilhões e celas superpovoados e a cela solitária, emergem sentimentos de angústia e de medo do indivíduo se tornar descontrolado e irracional. Em uma de suas saídas em liberdade, Mendes sente que se tornou um ser moldado pelas referências da prisão.
Todos os meus parâmetros eram de prisão. Em tudo eu pensava, apenas como um preso. Estava condicionado a me defender sempre, em qualquer tempo. Sentia que o mundo e as pessoas só me prejudicaram e me fizeram sofrer. Não era bem assim, mas era assim que eu via, destacava apenas o que me ferira, valorizava apenas o meu sofrimento, que se fodesse o dos outros (MENDES, 2009, p. 161).
Assim, Mendes vai sempre fazendo um julgamento avaliativo de uma ação sobre a outra, de modo a estabelecer relações de determinação entre as sequências narrativas. Uma das vezes em liberdade, tenta roubar de novo e volta à prisão.
Na carceragem, tomaram meus dados, e fui jogado em um xadrez pintado de vermelho escuro, abarrotado de presos. Sentei num canto e fiquei observando. Há vários presos muito machucados de tortura, outros baleados, mas a maioria deles não eram malandros de fato. Profissionais do crime. (...) Preocupei-me com minha mãe, ela me esperava sempre à noite (MENDES, 2009, p. 190).
Fomos distribuídos em vários xadrezes. Eu fui para um xadrez onde ficavam os menores de vinte e um anos, o número 3. O rapaz violado também foi para este xadrez. Andava de pernas abertas, soube que já sofrera vários outros atentados (...) fui muito bem recebido, afinal, eu era um mogiano, título de grande destaque em nosso meio. Todos respeitavam, porque sabiam que pelo Instituto passaram os bandidos mais perigosos do estado (MENDES, 2009, p. 191).
Fica claro a relação que as ações narrativas, formando sequências, mantém entre si e com os atributos do personagem Mendes. Ele comete delito e é preso de novo, logo seus traços de caráter determinam imediatamente a ação do encarceramento, enquanto a mãe o espera em casa. Na prisão, observa marcas de tortura nos companheiros e assiste ao espancamento e ao estupro de um rapaz. É respeitado no cárcere por ter vindo do Instituto Mogi (era um mogiano), onde os bandidos mais perigosos foram formados, o que lhe dava prestigio. Temos aí um novo exemplo do que poderia ser visto como a codificação instrumental de uma memória coletiva, em espaço matriosca, nas narrativas prisionais. Consiste, em geral, em ir mostrando a movimentação dos bandidos nas ruas, sua transformação em quadrilheiros, o encarceramento, o enquadramento em novos grupos ou quadrilhas na prisão, a tortura, fuga ou liberação, e o desfecho traduzido em morte ou volta à prisão após recidiva. Foucault (1975) mostra que a impossibilidade de encontrar trabalho e a vadiagem são os fatores mais frequentes da reincidência. Luiz Mendes, a cada saída, se integrava em uma gang para roubar e conseguir o dinheiro que apreciava para sua vida de liberdade. Esse gosto da liberdade o habitava e o impedia de se enquadrar na sociedade com atividades honestas. Sentia felicidade ao contar aos outros garotos de brincadeira que já roubava e que estes o consideravam um “malandro”: “Esse era um título que queria muito, sujeito esperto a ser respeitado” (MS, p. 40). Mas, o prestígio e o respeito não eram suficientes para preencher sua vida, pois, como bandido muito jovem, sofria com angústias e as carências de afeto que atingem crianças abandonadas. As drogas o ajudavam a superar momentaneamente a depressão. Numa época em que a juventude se levantava contra o antigo regime conservador, com cabelos compridos, calças justas e rock, sentia o prazer de sair com suas gangs para espancar bêbados nas ruas, e muitas vezes atiçar fogo neles para
terem o prazer de vê-los correr desesperados. Era o prazer da “vadiagem sem esperança”, um “ir e vir sem saber para onde, em que rumo e por quê”, até que a polícia os pegasse e os levasse para o Juizado de Menores, “de onde fugiam ou eram mandados para a casa de seus pais, de onde fugiriam novamente”
(MS, p. 43). Vão-se assim desdobrando-se as relações contíguas entre as ruas, como sinédoques da cidade, e o cárcere, como formador de classes perigosas que voltam a atemorizar as ruas.
Luis Mendes, com tantos delitos, recebe uma pena de cem anos, o que quer dizer a vida toda encarcerado, sendo produzido por uma tecnologia disciplinar de produção social de marginalização. No entanto, existe uma contraforça que modifica sua trajetória de indivíduo perigoso, “de bandidohomicida-latrocida, em indivíduo escritor “honesto e até mesmo santo” (MS, p. 400). Mendes conta como se transforma através da leitura, produzindo uma série de nexos causais entre as diversas ações de aprendizado até chegar ao tipo de espaço-dobradiça que assegura um método de transmissão da vida criminosa. Ele passa de um indivíduo hediondo em indivíduo “mais humano e mais sensível”, Carrascosa chama esse procedimento de aprendizagem de “política de si”.
A “verdade narrativa” do “eu” que resulta do processo de escrita é convertida em um ethos de ação potencialmente geradora de uma identidade a si para confronto com o seu real: o real da solidão como dispositivo de dissolução subjetiva do preso e, ao mesmo tempo, como técnica de susceptibilização à assunção da posição discursiva de “preso” (CARRASCOSA, 2008, p. 107).
O suporte material de análise do filósofo francês (FOUCAULT), entretanto, comporta em suas obras a noção de “domínio de si” de “ter a si mesmo” (próprio à cena histórica do investimento de estudo – a antiguidade grecoromana), o que nos permite o seu desdobramento nos termos de “políticas de si”, em sintonia com as nossas necessidades contemporâneas. Usarei este conceito sempre que estiver mapeando possíveis vetores de contraforça aos procedimentos de sujeição, executados mediante as operações narrativas dos escritos de Luiz Alberto Mendes. “Técnicas de si” e “políticas de si”, duas noções ficcionais que se desdobram apenas à medida que nos servirão como ferramentas de pensamento e análise sobre o mesmo suporte material e complexo: práticas prisionais sob o ativo enfoque da escrita de si” (CARRASCOSA, 2008, p. 108).
Ao medo que se instala pela intensidade da tecnologia panóptica, se sucede uma vontade de aprendizagem imensa. Mendes faz o supletivo ginasial e descobre a biblioteca, se enamorando por aquele lugar maravilhoso, segundo suas próprias palavras (MS, p. 394). Em seguida, faz poesias e se inscreve numa rede de correspondentes o “Círculo de Missivistas amigos”,
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equivalente, na época, das redes sociais virtuais. Com as trocas de cartas, se apaixona platonicamente por uma professora de Literatura, Eneida, que se torna fundamental em seu desejo de aprender mais. Começa a ler a coleção Os Pensadores: “(...) dos pré-socráticos a Sartre, Merleau-Ponty, passando por todas as escolas filosóficas” (MS, p. 399). Leem Érico Veríssimo e discutem sobre “sua ironia fina, sua amarga visão dos homens e suas personagens femininas, fortes e dominantes”. Depois, vão para Jorge Amado, Mário Palmério, Machado de Assis, José de Alencar, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Drummond e Pessoa.
Com toda essa bagagem, Mendes fala de sua experiência viva, e confessa que o crime e a ideia de malandragem que o tornaria um bandido famoso, se afastam de seu foco de visão. Entende como toda a dor que experimentou poderia torná-lo mais humano, e não um revoltado que deveria sair praticando mais crimes. Essa generalização empírica, que é uma conclusão argumentativa retirada da observação de fatos, tem a natureza da “política de si” que se configura como um autoinvestimento para se escapar de uma situação doravante considerada como um deletério. Tal generalização torna-se possível pela escrita e pela transmissão a uma série de leitores virtuais que deverão seguramente examinar a verossimilhança do desenvolvimento argumentativo do emissor. A maneira pela qual a conclusão dissertativa se processa pode ser explicitada pela formação de feixes de relações inteligíveis que sejam capazes de ir configurando uma imagem final suscetível de acionar um conhecimento geral de cunho social. Mendes termina o livro em 2000, sempre na Casa de Detenção de São Paulo, mas como estudante de Direito na PUC. Já em regime semiaberto de prisão, casou-se e tem dois filhos. Sua “política de si” o faz dizer “Ainda sou aquele, mas sou também outros” (MS, p. 409). E conclui: “Sim, embora não acredite muito em mudanças do que somos, julgo mais correto pensar em aperfeiçoamento do que somos através de processo sedimentar.” Este processo da política de si, no que tem de potência de estabelecimento de inúmeros feixes relacionais da vivência empírica e de instauração de várias relações a si mesmo, parece apreendido pela voz narrativa que informa como a leitura e a escrita tem a força de produzir muitas espécies de aperfeiçoamento. Finalmente, torna-se amigo de Fernando Bonassi que o incentiva a publicar, e cita, em suas últimas linhas, a simpatia do médico Dráuzio Varella que ia visitá-los na Casa de Detenção antes do massacre do qual era um sobrevivente. O escritor ilustra bem o funcionamento de um local traumático, constrói seu espaçomatriosca, e o transmite como um arquivo memorial que abrange a época da ditadura militar e a época posterior.
A temática das escritas de cárcere se alinha igualmente com uma parte considerável da cultura brasileira relativa ao crime organizado, um contexto sociopolítico gerado pela ditadura militar iniciada em 1964. Nesse sentido, surge um novo tipo de romance policial, com características intrinsecamente brasileiras, mas que ultrapassa os limites das fórmulas.
No século XIX, o gênero policial possui uma estrutura que se identifica pela presença de um cadáver e da investigação (por um detetive), conduzindo a uma revelação surpreendente de um criminoso, acima de qualquer suspeita. O precursor do gênero foi o conto Assassinatos da Rua Morgue (1841), de Edgar Allan Poe, que continuou escrevendo várias outras histórias, editadas em histórias populares. Muitas obras classificadas como narrativa distópicas tornaram-se produtos literários e cinematográficos de fatura artística, com alto grau conotativo e polissêmico. Algumas dessas obras se aliaram às fórmulas policialescas ou de ficção científica, produzindo, entretanto, valores artísticos universais, capazes de atravessar um cenário espaço-temporal determinado.
O romance A corte infiltrada. Quem controla o controlador (2017) de Andrea Nunes (promotora de justiça em Recife) é classificado como um thriller, um romance policial. Todos os elementos da fórmula se encontram nele. Entretanto, não é a fatura policial que interessa ao nosso enfoque, mas o fato de a obra lidar com o mundo vivido do crime organizado relacionado com o sistema representado por poderes científicos e judiciários.
Vejamos um breve resumo: no romance, o crime organizado planeja se infiltrar na mais alta corte do país. O objetivo será o de influenciar na decisão dos ministros que julgarão o líder do PCC, uma facção criminosa, que domina presídios e espalha o temor em várias cidades. A trama começa a se desenvolver quando um ex-repórter policial investiga a morte misteriosa de um monge budista, em um hotel de Brasília, assassinado horas antes de uma audiência com o presidente do STF.
O monge iria denunciar o plano criminoso do PCC, pronto a criar um Primeiro Comando do Nordeste, em Recife, consistindo em usar o I-Brain, com mecanismos de estimulação do cérebro desenvolvidos por neurocientistas. Para isso, o PCC trabalhava com a Tesla Comunicações no intuito de instalar um sistema de telefonia celular no STF que, por “estimulação magnética transcraniana” flexibilizaria o julgamento moral pelos ministros, deixandoos mais “sensíveis” aos argumentos de defesa para absolver o réu perigoso. O desenlace surpreende o leitor, principalmente que o happy end revela o
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desafio da jovem budista em colocar em jogo seu karma para se entregar ao amor com o parceiro jornalista.
Este romance se enquadra, assim, em um conjunto de sinalizações distópicas, e inaugura elementos temáticos para a criação inovadora de uma forma de romance policial ou de ficção científica brasileiro. Não vamos tratar desta questão nesse momento.
O romance em questão lida com o campo semântico do Poder Judiciário, sediado na cidade de Brasília, capital do país. É uma cidade caracterizada, pela noviça Taís, como medieval, com estruturas de poder bem organizada: “A Esplanada dos Ministérios me lembra a ideia que sempre fiz de como seriam as cidades medievais. Há os reis e generais que decidem os destinos do país e estão empoleirados em seus castelos, traçando estratégias”. À sombra desta estrutura de poder, está a plebe, aqueles que lutam pela sobrevivência, fazendo manifestações e protestos nas praças públicas, sendo controlada pelas forças policiais: “E, como em todo bom romance medieval, há bandidos dentro e fora das paredes dos palácios, que ameaçam a paz do reino” (NUNES, 2017, p. 118). Edgar não deixa de assinalar que o “querido” Kubitschek deveria estar se revolvendo no túmulo, ele, que havia projetado uma cidade ultramoderna. Com narração onisciente, percebe-se como Edgar, como repórter investigativo, torna-se célebre, vendendo suas matérias para jornais no exterior, com as facilidades da internet. Ele torna-se frila, após ter trabalhado para os Cadernos de Política e de Polícia e ter tido a vida ameaçada pela chamada “máfia do lixo”. Essa configuração prática do contexto narrativo é o sintoma exponencial de um acoplamento ainda mais significativo com os espaços policiais e criminosos. Trata-se de uma verdadeira indexação das singularidades pessoais aos fluxos culturais da sociedade do infradireito, que abarca várias gerações em decadência moral.
A narrativa distópica de Nunes realinha, todavia, o labirinto do realismo brutal dos cortiços e favelas, à medida que o crime organizado é posicionado em linha paralela com o mundo claro e articulado do contexto jurídico da cidade hipermoderna, Brasília, e do contexto científico do Instituto de Neurologia de Recife. Os cientistas deste Instituto trabalham com os monges do Mosteiro budista, dando assistência aos doentes mentais da comunidade. Pode-se dizer que a discursividade do infradireito se alinha com a discursividade de espaços institucionais no propósito de tensionar o crime e o poder. Edgar e Taís vão visitar o professor Sóstenes na biblioteca do Supremo Tribunal Federal, o qual, mesmo aposentado, ainda tem acesso ao local. Ele esclarece:
- Vocês já ouviram falar do Comando Vermelho e do Primero Comando da Capital, não é? São facções do crime organizado, como vocês sabem. Assim como eles, muitas outras foram surgindo nesse país. Algumas ações policiais, em determinados Estados, vão desmantelando focos desse esquema, mas ele renasce em outros Estados, com outros nomes (...) (NUNES, 2017, p. 110).
- Deixe-me chegar ao ponto, mocinha: é que o plano mais ousado do crime organizado, segundo chegou ao meu conhecimento, é tomar o poder central neste país! Eles têm investido muito nisso, pagando os estudos de bandidos em faculdades para se tornarem advogados; há até mesmo a corrupção de juízes e promotores a serviço das finalidades criminosas deles. Têm financiado campanhas políticas em vários níveis, proporcionais e majoritárias, para eleger bancadas legislativas, prefeitos e governadores comprometidos com a sua causa. (...) e planejam agora um voo mais ousado: se infiltrarem na Suprema Corte do País, colocando um deles para ocupar a vaga de ministro! (NUNES, 2017, p. 110-111)
- Você sabe que, durante todos esses anos de dedicação à toga, tenho tentado combater facções criminosas e, por onde tenho passado, minha vida pessoal foi muito sacrificada por isso: não tive filhos e minha mulher me deixou quando eu resolvi morar dentro do fórum para não levar um tiro quando voltasse para casa. Esses são percalços que a gente enfrenta, por dever de ofício, mas enfim...foram muitos anos combatendo bandidos mais poderosos e bem mais estruturados que o Sistema (NENES, 2017, p. 111).
Enquanto texto atualizável, com suas pretensões de validez e horizontes intercambiáveis de um mundo de vida e de um sistema político corrupto, os discursos do Dr. Sóstenes mostram as condições de área de disputa entre as forças criminosas que dominam a sociedade brasileira. As organizações criminosas, nascidas em presídios, desenvolvidas nos labirintos precários e decadentes da periferia urbanas, cujos signos se organizam em torno do infradireito, da fantasmagoria jurídica, geram disputas político-culturais para alcançar as fronteiras do mundo articulado da Suprema Corte.
A grande invasão da esfera externa deletéria, própria das favelas, se estrutura no investimento de estudos de Direito para os discípulos do crime que deverão se tornar capazes de dominar os códigos dos juízes e promotores, penetrando no centro do campo jurídico do país. Por conseguinte, tentam igualmente influenciar as campanhas políticas, proporcionais e majoritárias, que estejam dispostas a comprometer-se com as causas marginais. O sentido de texto aparece, então, bastante memorial, com seus jogos combinatórios, suas pretensões de validez, uma alta instrumentalidade de seus discursos citados em relação não apenas ao seu contexto narrativo, mas aos intertextos que orbitam em torno dele.
O espaço da trama criminosa se apresenta, assim, limpo e organizado, pondo em relevo quatro monumentos: a sede do Supremo Tribunal em Brasília, o Instituto Ricardo Brennant 3 , o Mosteiro Budista e o Instituto de Neurologia. Vale ressaltar a descrição do Instituto Brennant, majestoso, com palmeiras imperiais, como um “mergulho nas raízes pernambucanas do Brasil Holandês, a época de Mauricio de Nassau” (NUNES, 2017, p. 122). E é neste Instituto onde a trama começa a ser decifrada, pois Edgar e Taís vão até o Castelo de Armas e chegam na parte das armas orientais. Haviam sete mandalas, com a fina técnica japonesa da pintura sobre a seda, que ocupavam quase a parede inteira. Taís, então, se recorda que o mestre budista tinha encomendado oito mandalas, mas esta última havia desaparecido. Eles a encontram, posteriormente, sob o colchão do mestre, em um saco de tecido fino e amassado. Dentro da costura, acham uma mensagem oculta contendo uma sequência numérica que Edgar fotografa. Taís desenrolou novamente a peça de tecido na mesa do escritório e exclamou: “— A oitava mandala é a representação artística da planta do Instituto”.
Edgar, um repórter policial experimentado, reconhece na sequência numérica do Alfabeto Congo, código utilizado, em larga escala, pelo Comando Vermelho e o PCC. O monge havia sido assassinado porque tinha ido à Brasília, avisar ao STF que os aparelhos celulares, encomendados pela Tesla Comunicações estavam sendo manipulados pelas organizações criminosas. Um dos cientistas, o Dr. Ciro, explica:
- A Tesla mal botou a mão no meu invento e já designou uma equipe de engenheiros de telecomunicações para construir o protótipo do super celular. O plano era adaptá-lo ao sistema de telefonia de quarta geração e aproveitar essas potencialidades para operar em banda extralarga. Na verdade, eu mesmo supervisionei a equipe de engenheiros que construiu o protótipo desse celular. Foi então que me vi obrigado a revelar a maior falha do projeto – ele baixou a vista, envergonhado (NUNES, 2017, p. 193).
Sistemas semióticos particulares já começam a se entrecruzar, ultrapassando fronteiras, a fim de instaurar a estrutura de uma cultura de cibercrime altamente articulado. O metatexto é explicitado pelo Dr. Ciro que se vê manipulado por uma equipe de engenheiros, apta a trabalhar em seu invento para servir às organizações. A esse respeito, devemos notar a possibilidade de incluir nos complexos culturais da justiça as manifestações das estruturas médicas que visam a configuração da mente e da moral humanas. Trata-se de
um invento de estimulação magnética transcraniana que potencializa certas áreas do cérebro para produzir seres humanos temporariamente amorais. Dessa forma, o monge Nobu, desde que soube que o aparelho possuía o efeito colateral de flexibilizar o julgamento moral das pessoas, insistia com o Dr. Ciro para levar o fato ao conhecimento do presidente do STF. Por essa razão, ele foi assassinado: alguém muito próximo a ele sabia que viajava com um saquinho de chá verde que foi substituído por um chá envenenado. Finalmente, Taís e Edgar se confrontam com a enfermeira Catarina, que confessa ser a representante do Terceiro Comando do Nordeste, a que viabiliza as ações dos criminosos no Instituto.
- Infiltrar-se no Supremo Tribunal Federal é uma aspiração antiga do crime organizado. Pode-se dizer que conseguimos colocá-la em prática, em alguns níveis muito sutis de tráfico de influência, mas nada com uma efetividade como poder flexibilizar o julgamento moral de todos os ministros quando estiverem analisando os crimes e as penas a serem imputadas a membros de nossa organização. (NUNES, 2017, p. 221)
- Desde que passei a viver nos morros cariocas, ainda no início da juventude, convivi com muita cobra que engolia cobra, garota. Como mulher, tive de aprender muito cedo a representar para sobreviver. Os homens tinham a força física e o acesso às armas. Eu só tinha meu poder de sedução. E, acredite, eu soube usá-lo muito bem, quando a polícia pacificadora invadiu o morro e prendeu todo mundo, inclusive o meu marido. (...) A ocupação dos morros pelas UPPS fez muitos de nós, do crime organizado, migrar para áreas menos exploradas, como o Nordeste. (...) A célula de saúde da nossa organização já me havia pago um curso de enfermagem quase completo, quando surgiu a oportunidade de emprego por lá (no Instituto). Fiz um treinamento intensivo à parte com médicos que servem à organização... (NUNES, 2017, p. 224).
Acrescentando que usou seu “poder sexual”, que é o que “move o mundo”, Catarina explicou à Taís que manipulou sua presa, o Dr. Ciro, o autor do invento, para ter acesso a todas as informações e relatórios medicais do Instituto. O romance permite visualizar a trajetória da mulher marginal que atua nos labirintos dos morros, seduz os soldados das UPPs, alcança a “célula de saúde” da organização, no Nordeste, médicos a serviço do crime, e passa a trabalhar para concretizar os planos ambiciosos de uma célula criminosa. Observa-se que a linguagem em jogo, nesse caminho, é aquela que se encontra no núcleo das tensões entre as forças entre periferias e centros dos espaços memoriais do país. A produção e a recepção de uma interatividade complexa, como forma predominante de formação de uma rede narrativa, o espaçomatriosca, permite o entrecruzamento dos discursos científicos (médicos e de
engenharia) com o discurso hipercondensador do infradireito que contorna o labirinto dos morros para se alinhar nos espaços estruturados próprios aos geogramas dos laboratórios e da Corte.
A sociosemiose plena da interatividade promove e fomenta que uma certa esfera de mundo vivido se trance com o sistema político, desviando, por conseguinte, o discurso jurídico do campo nacional relativo à Justiça. A reescritura política se torna fantasmagoricamente inédita, quanto perigosamente expansiva. Ela açambarca e rearticula vários setores do mundo vivido, do domínio econômico-financeiro aos circuitos sócio-políticos, da dimensão cultural ao reduto concreto dos comportamentos, sendo capaz de eleger os governantes do país. O imperativo dessa tessitura discursiva intensiva não demonstra senão o quanto uma semiose interativa dos espaços-matrioscas, ao invés de construir em sua diversidade dialogada, uma textualidade dotada de identidades, significação e finalidades próprias, pode igualmente fugir ao controle dos centros políticos, e erigir o infradireito como pilar de uma sociedade precária. Este é o cerne de um realismo distópico, destinado a encaminhar a socialização e a interação dos indivíduos de par com a significação que emana originariamente de corporações marginais, germinadas em presídios, morros, ruelas, labirintos tortuosos, autorizadas por regimes de ditadura. Trata-se de uma memória geracional que passa a ser transmitida através de vários dispositivos de espaços-dobradiças.
O realismo distópico de Nunes, conhece, todavia, um final feliz, e planta uma esperança no combate à expansão do crime organizado. Após a morte de Catarina, por um agente da polícia federal, que se fingia de enfermo para averiguar os fatos, o Dr. Ciro, que colaborou com os bandidos é convocado para utilizar sua ciência a serviço do bem. Ele seria preso e condenado, mas sua ressocialização consistiria a ajudar o governo na resolução dos crimes. Trata-se de “preparar uma espécie de scanner da mente dos criminosos.Com a ajuda de matemáticos, será criado um algoritmo que aprenderá a reconhecer, pelo mesmo sistema usado no eletroencefalograma, os sinais emitidos durante a atividade cerebral mais sofisticados seres humanos” (NUNES, 2017, p. 252). Seria uma forma de auxiliar um Estado burocrático atrasado contra um inimigo astuto, preparado cientificamente, e invasivo.
Finalmente, Edgar torna-se um jornalista célebre, com sua reportagem sobre o crime no STF, casa-se com Taís, que desiste de ser monja e conclui a trama, enunciando:
Quem eram os bandidos mais perigosos naquela história? Os que detinham o poder paralelo ou os que gozavam, sem ética alguma, dos privilégios do poder oficial? (NUNES, 2017, p. 260).
Durante os anos de chumbo, formou-se uma realidade caótica de violência que transformou o panorama social do país. A reestruturação das classes ditas perigosas , lutando para sobreviver, deu origem a novos agentes sociais e políticos, capazes de interferir nos destinos da nação. As favelas, como extensão das senzalas e dos cortiços, que já tinham sido confinados, durante os planos de modernização, continuaram guardando a “alma” artística do país. No entanto, passaram a abrigar as corporações poderosas, nascidas do convívio nos cárceres, contra as formas repressoras de tratamento, que, para continuar sobrevivendo, desenvolveram o tráfico de drogas. Com o tráfico, se instaurou uma forma de intervenção, tida como o coronelismo urbano, que se apropriou da vida comunitária nas favelas, instituindo códigos de conduta e de legislação próprios que ficou conhecido como o “poder paralelo”. Tal poder mostrou a falência do Estado de Direito, no país, de duas formas. Primeiramente, ficou claro como as populações carentes das periferias urbanas e as da zona rural, que vinham engrossar as fileiras das favelas, haviam sido deixadas no abandono por tantas décadas. Em segundo lugar, pode-se ver a ascensão do poder paralelo, inicialmente, sem nenhuma coibição, e, em seguida, com a convivência das instituições públicas e do Estado em geral. Formou-se assim uma memória coletiva intergeracional. Em termos de representação, foi a época do surgimento de uma série de narrativas conectadas com esta realidade social (em várias formas: romances, diários, (auto)-biografias, etc.), as quais se tornaram matrizes para filmes premiados, com grande sucesso de bilheteria. Surgiu, então, uma corrente literária autofictícia que passou a refletir igualmente a memória política do país.
Qual pode ser a realidade de um compartilhamento de representações de um estado de justiça? E qual pode ser a realidade de um compartilhamento de lembranças de vivências e convivências numa espiral de crimes e castigos?
Os movimentos das lembranças se cruzam e se interpenetram, forçando, de todas maneiras, uma emergência de representações de referentes que dão uma visão construída de cada situação. Lidamos com tantas memórias que são exatamente referentes transcriados e transpostos para a cena discursiva.
Alguns formaram memórias de prisão com enquadramentos sensoriais de experiências, muitas sofríveis, outras de descobertas, outras de salvação, como os exemplos de Alberto Mendes Estas são, inicialmente, memórias indiciais, de natureza singular, que nascem sem a menor garantia de serem compartilhadas. Representam relações de si para si mesmo, um trabalho de si sobre si mesmo, um conjunto da personalidade de um indivíduo que emerge da memória, como devem existir um número infinito. É um trabalho árduo para construir seus espaços-dobradiças de transmissão.
Quando, então, essas memórias singulares podem se tornar representações de memória coletiva e guiar a construção de uma história? Na maior parte do tempo, existe uma lógica do esquecimento, que é inconsciente, mas pode acontecer de se tornar consciente e de fazer o sujeito falar de um passado feito de rupturas e violências que desenham um traçado que redimensiona uma vida a partir de traços dispersos de um passado coletivo. A forma do relato, que singulariza um ato de rememoração, pode se ajustar às condições coletivas de rememoração coletiva, e atingir o nível simbólico dos espaços-dobradiças. Nesse sentido, as memórias singulares aqui tratadas fornecem, primeiramente, múltiplos instrumentos para a compreensão de uma série de acontecimentos que formaram a natureza da realidade que o país está vivendo no presente e que, ainda perplexo, pelo nível de violência, não consegue entender os enredamentos históricos. Nos esforços de escrita, que permitem os jogos das lembranças e do esquecimento, se instaura aquela estética admirável que nos leva ao contacto com os arquivos históricos do país. Este ideal estético está na potencialidade das ideias que as memórias singulares desenvolvem, suscitando sentimentos prazerosos ou horripilantes, que acionam a consciência para tecer uma nova narrativa histórica coletiva.
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Neste trabalho, analisamos os romances Azul Corvo, de Adriana Lisboa, e A Resistência de Julián Fuks, buscando evidenciar, através da rememoração da memória, o exilio nas narrativas de filiação, gênero pertencente à escrita de si, dos narradores das referidas obras. O suporte teórico que serviu de base para amparar a pesquisa foram os estudos efetivados por: Lejeune (2008), Viart (2008), Noronha (2014), Doubrovsky (1977), e Costa (2020), no que diz respeito à escrita de si; e em Izquierdo (2018), Halbwaschs (1990), e Pinsky (2004), entre outros, sobre memória e exílio.
Julián Fuks, brasileiro, nascido em São Paulo em 1981 e de raízes argentinas, nasceu no Brasil quando seus pais para aqui emigraram fugindo da Ditadura argentina. Recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro A Resistência (2015). O livro é escrito em primeira pessoa e, como tal, a subjetividade é presença marcante em todo o texto. Conquanto seja um livro reconhecido como autobiográfico, e se trate da vida pessoal de Fuks, não há a coincidência de autor/narrador/personagem, embora tudo remeta para este fato, que revela ao leitor o fluxo de consciência do autor e suas vivências.
Neste livro, Fuks narra o processo de adoção de seu irmão no processo de fuga dos pais, que vieram ao Brasil para um curto período, mas decidiram permanecer. Ele explica que o título deste livro seria outro, em uma entrevista que dá à Revista CULT: “O romance a princípio se chamava ‘o irmão possível’, que colocava mais centralidade na questão da adoção, só que a editora tinha problemas com esse título”.
A Resistência relata a história familiar de um casal de médicos argentinos que imigram para o Brasil na década de 70 carregando somente o necessário para não serem pegos pela polícia. Ativistas políticos, eles adotaram um menino, cuja mãe é descrita como uma italianinha muito jovem, que havia sido rejeitada pelo namorado e cuja família não aceitara a criança, embora haja alusão também ao fato de a criança ter tido uma mãe que fora vítima do regime ditatorial.
Fuks e sua irmã nascem no exílio. Assim, a família é formada pelos cinco membros: os pais, o irmão adotado, Sebastian, e sua irmã. A partir daí, a narrativa vai fluindo em flashbacks, sempre eivados de evasivas do narrador, que ora narra os fatos vivenciados, ora o que ouvira dos outros.
Azul Corvo, de Lisboa (2014), baseia-se na adolescente que tem sempre um interesse em saber o que há por trás das relações com sua família, e descobre que seu pai biológico era americano, que a mãe havia rompido relações com ele e havia se mudado para o Novo México, levando a filha do casal com ela:
“Minha mãe gostava de romper relações com os homens e desaparecer de suas vidas. A tendência foi inaugurada ali, com meu avô geólogo” (LISBOA, 2014, p. 19). Com a morte da mãe, Vanja encontra um meio de viajar para os Estados Unidos e procurar seu pai biológico.
Azul Corvo se insere no gênero da escrita de si. A narradora é Evangelina que, ao retornar aos espaços de recordação de sua infância e adolescência quando se encontra em idade adulta, retorna ao passado de sua infância para resgatar sua identidade e, nesse ir e vir, avalia a personalidade enigmática de sua mãe, através das lembranças encobridoras de seu nascimento, revelando a sensação de deslocamento experimentado pela protagonista, e analisa como é sentir-se estrangeiro em um país de cultura diferente.
A escrita de si é um gênero literário que caracteriza narrativas em que um narrador, em primeira pessoa, se identifica explicitamente como sendo o autor, o narrador e o personagem que narra sua história, mas vive situações que podem ser consideradas ficcionais. Antes de estas situações serem consideradas ficcionais, Lejeune (2008, p. 14) denominava este tipo de escrita como sendo:
“narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enquanto focaliza sua história individual, em particular a história
de sua personalidade.” O teórico esclarece que a escrita de si aponta algumas marcas que a caracterizam como tal, pois “[...] o assunto deve ser principalmente a vida individual, a gênese da personalidade: mas a crônica e a história social ou política podem também ocupar um certo espaço” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Mais adiante, na mesma página, Lejeune reitera: “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem”.
Lejeune (2008, p. 21) faz sua análise partindo do principio de que o pronome pessoal “eu” remete ao enunciador da instância do discurso na qual está presente este “eu”, mas o enunciador pode também ser designado por um nome, quer se trate de um substantivo comum, determinado de diferentes maneiras, ou de um nome próprio. Nesse sentido, Todorov (apud Lejeune, 2008, p. 22) afirma que é no nome próprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa, como demonstra a ordem de aquisição da linguagem pela criança, que fala de si mesma na terceira pessoa, chamando-se pelo próprio nome, bem antes de compreender que também pode utilizar a primeira pessoa. Em seguida, todos utilizam “eu” para falar de si, mas esse “eu”, para cada um, remeterá a um nome único que poderá, a qualquer momento, ser enunciado. Todas as identificações (fáceis, difíceis ou indeterminadas) acabam fatalmente convertendo a primeira pessoa em um nome próprio.
Para Lejeune (2008), um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica, uma vez que inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre tais elementos. O autor se define como sendo, simultaneamente, uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e imaginá-lo, então,
a partir do que ele produz. [...] se a autobiografia é um primeiro livro, seu autor é consequentemente um desconhecido, mesmo se o que conta é sua própria história: falta-lhe aos olhos do leitor, esse signo de realidade que é a produção anterior de outros textos (não autobiográficos), indispensável ao que ele chama de “espaço autobiográfico (LEJEUNE, 2008, p. 23).
Escrever sobre si mesmo ou sobre fatos vivenciados e testemunhados por si não deixam de ser histórias, e isso não apenas quando a contam em atos de narrar deliberados, dirigidos a outros ou a si mesmos, mas de forma incessante, na atividade mental de representação e de construção de si, a partir da qual cada indivíduo verifica, mantém, elabora a figura interior e exterior
que ele reconhece, ou sente como sendo si mesmo. Essas figuras da vida representada, que não devem ser confundidas com a realidade, a facticidade do vivido, é o que eu chamo de biografia (etmologicamente: escritura da vida), e chamo biografação o trabalho “psico-cognitivo” de configuração temporal e narrativa, pelo qual os seres humanos dão uma forma própria ao desenrolar e às experiências de suas vidas.
Costa (2020) já afirma que escrever sobre si é por a si mesmo a nu diante dos outros e que não é fácil por o seu “eu” em banho maria, distanciar-se de si mesmo e narrar-se a si mesmo. De alguma forma, você cai na subjetividade, porque escolhe as palavras que serão ditas sobre si, volta ao texto várias vezes e faz ajustes ou borrões que comprovam ser esta escrita uma autoficção de si.
Para Doubrovsky (1977), autoficção é uma narrativa baseada na verdade e, ao mesmo tempo, um procedimento que nasce da invenção, ou seja, é uma ficção. A autoficção é uma narrativa própria da escrita de si na qual o autor tende a ficcionalizar sua própria história. São romances autobiográficos baseados em fatos, episódios, memórias, testemunhos, relatos, nos quais o autor, ao se ficcionalizar, lança mão de técnicas narrativas nas quais o leitor possa identificá-lo como autor/narrador/personagem, e que lhe permita dizer que não é ele quem está ali, reflexo da realidade contemporânea em todas as suas possibilidades de espelhamento possíveis. Na contemporaneidade, não precisa nem mesmo que ele seja o personagem principal, basta que se coloque em algum canto do romance, como se fosse um espelhamento de si, que já caracteriza esta ficcionalidade de si mesmo no texto. A teoria de Doubrovsky nasce como uma tentativa de responder a uma pergunta feita por Lejeune, na quarta capa de seu livro O pacto Autobiográfico, escrito em 1975. O teórico, que discordava dos estudos efetivados por Lejeune, responde da seguinte forma:
Autobiobiografia? Não. Este é um privilégio reservado aos grandes desse mundo, ao fim de sua vida e em bom estilo. Ficção de eventos e de fatos estritamente reais; se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à da linguagem, sem a sabedoria e sem a sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, fios de palavras, alterações, assonâncias, dissonâncias, escrita pré ou pós literária, concreta, como se diz em música. Ou ainda, autoficção, pacientemente onanista, que espera compartilhar seu prazer agora (DOUBROVSKY, 1977, quarta capa).
Os leitores poderão facilmente verificar a forma, como o pai do termo autoficção conceitua o que vem a ser entendido como autoficcionalidade, pois ele mesmo afirma, em todas as suas entrevistas, que pode ter sido o primeiro a dar nome ao gênero, mas tudo já estava lá antes de ele falar esta palavra, e
que não tem nenhuma intenção de seguir teorizando sobre o mesmo. Alguns estudiosos e críticos literários, depois de Doubrovsky, como, por exemplo, Viart (2008), Noronha (2014), e Costa (2020), já vêm trabalhando sobre este tema, aprofundando as pesquisas e teorizando sobre o assunto. Para estes estudiosos, os textos considerados como pertencentes à narrativa autoficcional trazem consigo uma expressiva dose de subjetividade, esta entendida como sendo a presença do narrador que teria vivido ou testemunhado os fatos. Noronha (2014) explica da seguinte forma:
O escritor está no centro do texto como em uma autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e sua identidade, em uma história irreal, indiferente à verossimilhança. O duplo ali projetado se torna um personagem fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor (NORONHA, 2014, p. 1).
Ao contrário do que ocorre na ficção, na qual o personagem sofre e morre, nas narrativas autobiográficas – neste caso, narrativas de filiação – é o sujeito real que, através da rememoração de seu passado, vai narrando aos leitores o que de fato ocorreu com ele, o progresso de sua busca, ou as consequências de suas tragédias pessoais para ele ou ela e para os outros porque, segundo Lima:
Memória e autobiografias são substitutos dos espelhos. Se estes metálicos e implacáveis, assim com o desgaste dos traços, o torpor dos olhos, a redondez do ventre, fechamo-nos contra a maldade dos espelhos e procuramos nos rever no que fomos, como se o percurso da antiga paisagem nos capacitasse a nos explicar ante nós mesmos (LIMA, 1986, p. 244).
Uma das marcas que caracteriza a narrativa de si é a presença marcante da memória, ela está presente quando os narradores refletem sobre si, sobre suas vivências, sobre os fatos vividos ou testemunhados, que precisam ser contados como uma espécie de autocura, uma forma de entender o passado, para poder modificar o presente ou mesmo na esperança de um futuro, quando o narrado tenha o poder de lembrar o passado para modificar aquilo que não foi possível modificar em outra ocasião. Lendo as duas obras que são nosso objeto de estudo, nos deparamos com uma adolescente rememorando seu passado em busca de sua identidade, procurando informações sobre porque sua mãe nunca lhe revelou quem era seu verdadeiro pai, era uma bastarda, tinha que encontrá-lo para finalmente ser reconhecida e poder seguir em frente. Na mesma linha, vemos Sebastian, de A Resistência, caminhando pelas ruas de Buenos Aires a procura da verdadeira mãe de seu irmão e também em busca de sua identidade fragmentada. Eram ele e seu irmão dois deslocados. Seu
irmão, por ter sido adotado e apátrida, tendo que fugir com sua família para outro país, ele pelo motivo de ter nascido no exílio.
O romance Azul-corvo pertence à narrativa de filiação, na qual o personagem principal fala de si, ficcionaliza sua história, mas as marcas da bastardização, do trauma, melancolia, sofrimento familiar e solidão são mais marcantes neste gênero textual da autoficcionalidade. A narrativa de filiação teve sua origem nos estudos de Dominique Viart (2008), que expõe algumas características que o configuram como um dos desdobramentos da escrita autobiográfica.
Laura Barbosa Campos, em seu artigo A escrita do Trauma em Clémence Boulouque e Delphine Vigan, afirma que foi no final do século XX que surgiu a modalidade específica de autobiografia, denominada pelo teórico Dominique Viart de narrativas de filiação, na quais geralmente a história se centra iniciando por algum trauma experienciado pelo narrador(a) da história. A narrativa de filiação é uma manifestação autobiográfica que tem uma ampla tendência a contemplar textos referenciais como autoficcionais. De acordo com Viart, “O relato do outro – pai, mãe ou tal antepassado – é o desvio necessário para chegar a si, para se compreender nessa herança: a narrativa de filiação é um substituto da autobiografia” (VIART, 2008, p. 80).
Andrea Czarnobay, em seu artigo Da Casa Vazia de Philippe Lejeune ao Neologismo de Serge Doubrovsky: os primórdios do conceito de autoficção no século XX, publicado na revista Garrafa em 2019, aponta, com base nestes dois teóricos, as características do gênero autoficccional. Sendo a autoficção um gênero híbrido, uma vez que se situa entre a escrita autobiográfica e autoficcional, cujo conceito teve sua raiz no livro Fils de Serge Doubrovsky, Azul Corvo é um texto literário pertencente ao gênero da escrita de si que traz em seu interior a subjetividade que o caracteriza como sendo uma autoficção, uma vez que se apoia em fatos reais aliados à subjetividade, e a ficcionalização de si está bem exposta, apresentando características que o enquadram na narrativa de filiação. Vanja está longe de ser uma adolescente que não sabe se proteger, pois tem domínio de uma língua estrangeira e foi criada para ser independente, muito embora não se espera que uma menina de 14 anos seja independente em muitos aspectos, visto que, convenhamos, aventurar-se em uma terra estrangeira, sem conhecer ninguém, com uma amizade que fez por internet, certamente deixaria mais da metade de nós perplexos, porque o mundo moderno está cheio de armadilhas até mesmo para adultos resolvidos. De certa forma, a heroína do romance que hora nos debruçamos tinha este entendimento, porque ela mesma o expressa: “Talvez aquela mulher nos lembrasse que é preciso fazer cerimônia com o mundo, que isto aqui não é de
brincadeira, que isto é coisa séria e perigosa, e que o simples gesto de pisar no chão já te confere uma responsabilidade inimaginável.” (LISBOA, 2014, p. 12).
Por sua vez, em A Resistência, o narrador em primeira pessoa, Sebastian/ Fuks, rememora a situação de exílio forçado da família para fugirem de tortura e muita dor por conta da Ditadura Argentina. O exílio, neste caso, é considerado um passo doloroso, a partir do qual seus pais e seu irmão tiveram que recomeçar a vida do ponto zero, enfrentando as dificuldades de adaptação, a aprendizagem de uma nova língua, e a convivência com uma cultura diferente, o que para Fuks e sua irmã, nascidos no exílio e com naturalidade brasileira, já não foi uma experiência tão traumática.
Em Azul Corvo, vemos uma Evangelina muito confusa com a mudança de ares. Sair de seu lugar, de sua terra, que ela considerava extremamente linda, não é um momento feliz. Sua mente, seu corpo e seus hábitos teriam de mudar para poder se acostumar com a nova realidade, que havia sido escolhida por ela mesma, por vontade própria, na tentativa de buscar os fios que a ligavam ao passado de seu nascimento. Ela ficava muito incomodada com a falta de umidade, o calor seco que ressecava a pela e adoecia os pulmões, e Fernando dizia para ela que a gente acabava se acostumando com aquela vida sem nexo. E ela olhava para aquele homem que estava tão sem perspectiva, acostumado a tudo que era ruim: “Em Copacabana, Rio de Janeiro, havia baratas, amendoeiras, mosquitos, maresia, pombos. Igrejas. Supermercado Mundial. McDonald’s. Em Lakewood, Colorado, havia coelhos, cães-depradaria, corvos. Igrejas. Super Target. McDonald’s” (LISBOA, 2014, p. 15).
O Rio de Janeiro era sua casa, sua pátria, seu lugar, lá tudo era bom, bonito e cheirando a saúde e alegria de viver, ao contrário de Lakewood, onde tudo era solitário e triste e as pessoas conformadas, com seus sorrisos tristes, com esta solidão. Evangelina, ao emigrar para os Estados Unidos, percebe que está por sua própria conta. O sentimento que a menina experimenta deixa-se notar porque, segundo Izquierdo (2018, p. 2), “O conjunto das memórias de cada um determina aquilo que se denomina personalidade ou forma de ser. Um humano ou animal criado no medo será mais cuidadoso, introvertido, lutador ou ressentido, dependendo de suas lembranças específicas, mais do que suas propriedades congênitas.” Assim é que, ao ser convidada para ir a uma piscina pública, Vanja se pega observando as roupas demasiado grandes nas pessoas que frequentavam o ambiente, comparando-as com a mesma situação nas praias do Rio de Janeiro: “Agora, em Lakewood, havia: biquínis e maiôs grandes em tecidos que às vezes formavam papadas na bunda. Homens de bermuda. Na beira da piscina, pessoas comendo hambúrguer e batata frita e
bebendo cerveja e refrigerante em copos king-size de papel” (LISBOA, 2014, p. 13).
A lembrança de nosso país, nossa cidade, as pessoas com quem convivemos, nos faz sentir parte de uma casa, um bairro, uma cidade. Nossas recordações nos fazem sentir bem ou não. A identidade dos povos, dos países e das civilizações, de acordo com Izquierdo (2018), provêm de suas memórias comuns, cujo conjunto denomina-se História. “A França é a França porque seus habitantes lembram-se de coisas francesas. Carlos Magno, Napoleão, Victor Hugo, Verlaine, a Torre Eiffel, Paris. O conjunto dessas lembranças faz os franceses se sentirem e serem franceses” Izquierdo (2018, p. 3). Desta forma, as noções de nação, nacionalidade e cultura nos fazem desenvolver atitudes de pertencimento ou não. Vanja sentia que o Rio de Janeiro era o seu lugar:
Antes, em Copacabana, havia: biquínis minúsculos. Bundas de fora. Uma ou outra mulher passando água oxigenada nas pernas para alourar os pelos. Dependendo do ponto, muitas crianças. Dependendo do ponto, algumas prostitutas. Corpos musculosos correndo sob o sol. Corpos flácidos correndo sob o sol. Sungas apertadas delineando o saco dos homens e revelando para que lado ficava o pênis. Quando eu não tinha mais nada para fazer, na praia, brincava de elaborar estatísticas – se havia mais homens com o pênis para o lado esquerdo ou para o lado direito (LISBOA, 2014, p. 13).
A adolescente já sentia que a vida na terra, principalmente como imigrante em um país que não é o seu, é muito perigoso. Uma adolescente, que era muito observadora e já observava os detalhes, ao comparar as pessoas nas piscinas públicas dos Estados Unidos com os cariocas nas praias do Rio de Janeiro. Afinal, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios” (HALBWACHS, 1990, p. 51).
memória autobiográfica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e denso (HALBWACHS, 1990, p. 55).
Costa (2020), em seu texto Soror Juana Inês de La Cruz: eu vim para dizer não e paguei o preço de minha ousadia, aponta para uma necessidade de testemunho íntimo como meio de refletir sobre o vivido, e quem o faz promove uma reflexão sobre os desdobramentos da escrita de si, o testemunho,
as memórias, as cartas, e os diários, como um mecanismo que permite ao indivíduo expor a história de sua existência através do exercício da subjetividade. Escrevendo suas experiências, buscando a origem de suas raízes, as respostas para os traumas de família e a cura de seus próprios traumas, o sujeito tece sobre si textos carregados impressões pessoais, e, assim, a inconstância do narrado, que ora se dá de forma consciente e os biografemas aproximam-se do real, ora se dá de forma ficcionalizada, aproximando o texto da autoficcionalidade. No caso de Evangelina, ao reconstruir a história da mãe, a menina narra sua infância, seus dias felizes na praia, o fato de somente terem condições de sobrevivência porque a mãe falava e escrevia muito bem três idiomas.
Eram inglês e espanhol porque ela havia morado nos Estados Unidos, nos estados do Texas e do Novo México, durante vinte e dois anos, e porque se há algo que vinte e dois anos num lugar te impõem é o domínio da língua local, mesmo que você não tenha nenhum talento especial para isso. Minha mãe aprendeu formalmente o inglês na escola. Com os tejanos, informalmente, o espanhol. E eu aprendi as duas línguas com a minha mãe, me entregando às aulas com uma resistência que nunca teria condições de competir com a resistência dela (LISBOA, 2014, p. 19).
Bakhtin (2003) afirma “a vontade de ser herói, de ter importância no mundo dos outros, a vontade de ser amado, a vontade de superar a fabulação da vida, a diversidade da vida interior e exterior e podem ser valores que organizam também a representação artística de sua vida pelo autor” (BAKHTIN, 2003, p. 143), levando-o a expor sua vida ao leitor. Assim, afirma Vanja, “Nasci, portanto, aos dois anos de idade na praia de Copacabana, e era sempre verão, mas um verão irmão da água, e minhas ferramentas para mudar o mundo, para alterá-lo e moldá-lo e torná-lo digno de mim, eram um baldinho vermelho, uma peneira, uma pá e um ancinho amarelos” (LISBOA, 2014, p. 20).
Bakhtin disserta sobre uma necessidade de reconhecimento como um ser transcendente no sentido de experiências difíceis, como alguém que lutou contra sua própria vida e que, como prêmio, consegue um lugar de herói não apenas na trama de sua vida, mas na mente social, na medida em que a autobiografia possui seu teor de coletividade. Seja como for, a narrativa de filiação trata de textos nos quais as pessoas lançam mão da narração, seja a pedido dos psiquiatras, analistas e psicólogos, seja como uma espécie de autoajuda para encarar e controlar o seu passado, que insiste em não abandonar o pensamento e a mente do narrador, levando-o mesmo a desenvolver quadros clínicos eivados de lembranças ruins, doloridas e traumáticas, que podem
levar ao histerismo, angústia, ansiedade e mesmo depressões profundas, que trazem sérias consequências para os envolvidos.
Campos (2017, p. 683) aponta os estudos feitos por Françoise SimonetTenant, nos quais ela enfatiza que “uma narrativa autobiográfica propensa a se miniaturizar e que estuda o fragmento em detrimento da totalidade, concentrando-se em breves momentos determinantes da existência, como a evocação de uma perda, um encontro ou uma separação”. Esta realidade está presente em Azul Corvo, porque Vanja teve de enfrentar a doença da mãe e sua perda e, logo em seguida, separa-se de seu padrasto e vai em busca de seu pai biológico. “Seja como ‘for’, são obras que buscam dar conta de uma falta: rupturas, segredos de famílias e figuras parentais ausentes” (Campos, 2017, p. 684). A mãe de Vanja lhe contou que iria morrer, que estava doente:
E assim era e assim foi até o ano seguinte. Fiz doze anos. Meus seios pularam de repente dentro da blusa, como funcionários atrasados para o trabalho. Minha mãe morreu como avisou que ia morrer e não demorou como avisou que não ia demorar e depois disso nada mais foi como antes, como ambas sabíamos que não seria (LISBOA, 2014, p. 32).
Noronha (2014), ao falar sobre autoficção, define a autoficção fantástica nos seguintes termos:
O escritor está no centro do texto como em uma autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e sua identidade, em uma história irreal, indiferente à verossimilhança. O duplo ali projetado se torna um personagem fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor (NORONHA, 2014, p. 1).
A escrita de filiação, da qual nossos objetos de estudo fazem parte, comporta rupturas, segredos de família, figuras parentais ausentes, e outras recorrências, que se inserem nas obras Azul corvo e A Resistência. Está tudo aí, pois, mesmo aportando as marcas que as configuram como narrativas de filiação, estes romances também se encaixam na escrita autoficcional moderna. Noronha (2014) já nos adverte, em seu livro, que o fato de o autor tomar a si próprio como personagem de sua história já está apontando para uma ficcionalização de si mesmo. “Toda biografia, qualquer que seja sua ‘sinceridade’, seu desejo de ‘veracidade’, comporta sua parte de ficção” (NORONHA, 2014, p. 122).
A ficção de acontecimentos e de fatos estritamente reais, já exposta em Fils por Doubrovsky, o encontro de palavras, a narração de minha vida por mim mesmo, cheia de minhas subjetividades, meu ir e vir, e minhas rasuras
do texto, já configuram, segundo esta autora, em que “a identidade do sujeito encenado é claramente fictícia, ao passo que ela permanece ambígua no romance autobiográfico” (NORONHA, 2014, p. 140).
A retrospecção de minha vida, dos fatos ligados à minha vida e que me foram narrados pelos membros de minha família, ou encobertos por eles, faz com que nos questionemos: minhas lembranças são histórias que me contaram, ou são fatos verdadeiros? Minhas lembranças reais, minhas falsas lembranças, minhas lembranças encobridoras, todas elas comportam sua parcela de ficção porque, de acordo com Noronha (2014, p. 122), “Toda autobiografia, qualquer que seja sua ‘sinceridade’, seu desejo de ‘veracidade’, comporta sua parte de ficção. A retrospecção tem lá seus engodos”.
Para Viart e Vercier (2008, p. 28), “On prend soin de soi, on s’intéresse à soi plu qu’au monde extérieur, on se raconte”. “Cuidamos de nós mesmos, estamos mais interessados em nós mesmos do que no mundo exterior, recontamos a nós mesmos”. Em Azul Corvo, a adolescente tem sempre um interesse em saber o que há por trás das relações com sua família. Ela mesma nos adverte que todos, na família, não gostam de falar de suas vidas. Nós, os leitores da obra, só vamos saber os nomes da família de Evangelina depois de muitas e muitas páginas, quando ela nos conta: “Maria Gorete e Abner foram os pais de criação de Elisa e os pais pais-mesmo de Suzana, minha mãe. Foram meus avós-mesmo, embora eu não os tenha conhecido” (LISBOA, 2014, p. 23).
Em A Resistência , vemos um personagem narrador perambulando pelas ruas de Buenos Aires em busca das raízes de seu irmão, que ele percebe cada vez mais silencioso. “Meu irmão é adotado. [...], mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz, se não quero, não posso dizer cicatriz” (FUKS, 2015, p. 9).
A sociedade moderna é eivada de violência, ocasionada pelas diversas formas de exclusão ou ausência e desestrutura do seio familiar, além das diversas formas de marginalidade do ser social das camadas menos favorecidas, jogando o ser humano cada vez mais jovem na marginalidade. Esta realidade também moveu Fuks a narrar a fuga de seus pais, que se viram obrigados a fugir de seu país por conta da violência, por conta de suas convicções políticas.
A ditadura no Brasil (1964-1985) também foi marcada pela violência, torturas, e interrogatórios que deixaram traumas em todo o povo brasileiro, principalmente naquelas famílias que foram marcados pela prisão e perda de familiares. Os direitos dos cidadãos foram retirados nessa época. Não se tinha direito a habeas corpus, quem era considerado subversivo, contra o governo, era sequestrado, torturado e, possivelmente, também morto. Durante os anos de
chumbo, os estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes) foram um dos grupos mais expressivos da década de 1960, com oposição muito organizada, tendo a repressão sido muito violenta, como explica Nunes, Barros e Silva (2005). Foram presos 1.240 líderes estudantis, o que debilitou o movimento.
Fazendo um giro na América Latina, podemos verificar outros modelos de países autoritários onde muita gente poderia ser denunciada, pois enlutaram muitas famílias, alienaram mentes, deixaram marcas de traumas em muitas vítimas, proibiram manifestações culturais, reivindicações dos direitos civis, enquanto deixava na miséria a maioria da população. Foi por conta de sua posição política que Graciliano Ramos foi encarcerado e passou um período turbulento em sua vida.
Na ditadura chilena, o Pinochetazo foi um golpe que o ditador Pinochet liderou contra o governo democrático e com tendências socialistas de Salvador Allende. Por volta de vinte mil pessoas foram mortas ou estão desaparecidas, vítimas do sistema militar vigente, que, além disso, provocou centenas de milhares de presos e exilados políticos (PINSKY, 2004, p. 122-123). A tortura foi utilizada como instrumento repressor, assim como o toque de recolher, a censura da impressa, o estado de sítio, a proibição de partidos com tendências marxistas, o fechamento do congresso, e muitos outros.
A ditadura no Uruguai ocorreu em 1975, quando o país dependia das potencias capitalistas Alemanha e Itália, delas recebendo os preços, os empréstimos, os técnicos, e os carros, assim como também as ideologias nazista e fascista. Os ditadores são patriotas de uma pátria que não é a sua. Cerca de 73 a 74 vinte mil pessoas passaram por prisões, e a tortura fazia parte da prática do interrogatório (PINSKY, 2004, p. 125). Foi proibido pensar. O regime usa palavras como Pátria, Família, e Propriedade como disfarce da opressão e do horror da ditadura.
Na Argentina não foi diferente. A Ditadura Militar na Argentina ou a Revolução Argentina, renomeada como Processo de Reorganização Nacional, teve incontáveis sucessões de golpes de Estado (1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976). Com sete anos de ditadura, a Argentina passou por inúmeras atribulações, sendo a última ditadura militar foi a de 1976. Por contra destes inúmeros golpes e governos ditatoriais, muitas mães e avós organizaram um movimento social chamado de as Mães e Avós da Praça de Mayo. As avós da Plaza de Mayo têm tido mais sorte de que as mães que iniciaram seu movimento em 1977, pois as mães não conseguiram encontrar nenhum de seus filhos desaparecidos, enquanto as avós, nesse mesmo período, descobriram 28 das 180 crianças sequestradas juntas com seus pais ou nascidas em cativeiro nas prisões clandestinas do regime militar. Fuks, em A Resistência, faz várias
menções a estes episódios, inclusive quando cita a adoção de seu irmão: “meu irmão se tornou meu irmão no instante em que foi adotado, ou melhor, no instante em que eu nasci, alguns anos mais tarde” (FUKS, 2015, p. 9).
O regime ditatorial da Argentina torturou crianças, jovens, adultos, de estudantes a freiras. Com o pretexto de acabar com a subversão, acabou matando crianças também. Exemplo disso é La noche de los lápices, massacre de adolescentes de 14 a 17 anos, realizado pelos militares argentinos. Ao final de sete anos de ditadura militar, o processo de democratização argentina da uns primeiros passos no dia 30 outubro de 1982, quando 18 milhões de eleitores vão às urnas para eleger um congresso, 22 governadores de província, assembleias locais, prefeitos e vereadores, em todo o país. Participam da eleição do presidente da República através de um Colégio Eleitoral. Uma tarefa nada fácil, conduzir o país despois de um longo período ditatorial, com uma grande dívida externa. No período, temos um número de 30.000 desaparecidos no regime militar argentino. Como disseram SeligmannSilva (2003, p. 73), a catástrofe não é um campo de reflexão filosófica novo, o que mudou foi sua definição. A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques, de embates com o perigo. Recordando o período da ditadura na Argentina, ilustramos um trecho do livro A Resistência quando o narrador menciona a forma como muitos bebês vieram ao mundo nos porões da ditadura: “Não quero imaginar um galpão amplo, gélido, sombrio, o silêncio asseverado pela mudez de um menino franzino. Não quero imaginar a mão robusta que o agarra pelas panturrilhas, os tapas ríspidos que o atingem até que ressoe seu choro aflito” (FUKS, 2015, p. 11).
Finalizamos este trabalho, que certamente ainda vai gerar muitos outros olhares sobre as formas de exílio, memória e escrita de si, na tentativa de contribuir para a discussão sobre este tema que, mesmo hoje no século XXI, nos leva a olhar com horror para as muitas formas de traumas, exílios forçados, tentativas de autocura por meio da atividade de escrita e reflexão da memória.
BAHKTIN, Mikail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CAMPOS, Laura Barbosa. Clémaence Bouloque: narrativa de filiação como escrita do trauma. Revista Matraga. v. 24, n. 42, p. 680-693, 2017. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ matraga/article/view/30222>. Acesso em: 17 abr. 2021.
COSTA, Margareth Torres de Alencar. Sóror Juana Inês de La Cruz:Como Antígona eu vim para dizer não e paguei o preço de minha ousadia. Curitiba: Editora Appris, 2020.
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CZARNOBAY, Andrea. Da ‘casa vazia’ de Philippe Lejeune ao neologismo de Serge Doubrovsky: os primórdios do conceito de autoficção no século XX. Revista Garrafa, v. 17, n. 58, p. 22-33, 2019. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/30767/17390>. Acesso em: 17 abr. 2021.
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VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au présent: héritage, modernité, mutations. 2a. ed. Paris: Bordas, 2008.
Organizadoras
Leoné Astride Barzotto é doutora em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (2008) com doutorado-sanduíche (CAPES) pela Indiana University at Bloomington, Estados Unidos (2007). Professora Associada III da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e professora permanente do PPG Letras da UFGD. Parecerista de inúmeras revistas. Tem experiência na área de Letras, atuando, principalmente, nos seguintes temas: literaturas de expressão inglesa; língua inglesa; literatura inglesa pós-colonial; pós-colonialismo; língua inglesa instrumental; interface entre língua, cultura e literatura, identidade cultural, processos migratórios, transnacionalismo e mobilidades culturais; América Latina e Caribe. É membro do GT da ANPOLL: Relações Literárias Interamericanas desde 2008 e coordenadora do GT, gestão 2018-2020. Tem Pós-Doutorado em Literatura com estágio na Universidade da Califórnia em Berkeley (CAPES 2015-2016). Coordenadora do GT da ANPOLL “Relações Literárias Interamericanas” no período de 2018 a 2020.
E-mail: leonebarzotto@ufgd.edu.br
Silvina Carrizo possui graduação em Licenciatura em Letras – Universidad de Buenos Aires (1992), mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1997) e doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2004). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora, na Faculdade de Letras, na Licenciatura em Espanhol e suas Literaturas e na Pós-graduação em Letras: Estudos Literários. Atua principalmente nos seguintes temas: latino-americanismo, indigenismo, regionalismo, mestiçagem, literatura brasileira, a narrativa de 1930 e as suas relações com a contemporânea, poéticas da migraçäo, textualidades indígenas, linguagens mestiças nas Américas. Em 2013 desenvolveu pesquisa de pós-doc sob a supervisão do Dr. Biagio D’Angelo em Linguagens
mestiças: o portunhol na literatura. Foi membro da equipe de consultores do CAED responsável pela reestruturação do ensino de Língua Espanhola do sistema estadual de educação de Pernambuco. Em 2018 iniciou Pósdoc sob supervisão do Dr. Rômulo Monte Alto, no Pós-Lit, UFMG, sobre Tradução e antologização de literaturas indígenas de América Latina. Coordenadora do GT da ANPOLL “Relações Literárias Interamericanas” no período de 2018 a 2020.
E-mail: silvinalit@gmail.com
Autores
Adriana Kanzepolsky é professora de Literatura Hispanoamericana na Universidade de São Paulo. Entre suas últimas publicações cabe mencionar: “Pela boca do pai? Tamara Kamenszain e as línguas do judaísmo”, “Sobre fugacidades e permanências”, “Variaciones sobre la pintura inglesa en la narrativa de Margo Glantz” e Tamara Kamenszain por Adriana Kanzepolsky.
E-mail: adrianakanze@gmail.com
André Rezende Benatti é doutor em Letras Neolatinas: estudos literários neolatinos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor adjunto – nível IV da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul; Professor do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Editor-chefe da REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS. É líder do Grupo de Pesquisas/CNPq Estudos de Narratividades – UEMS. Vice-líder do Grupo de Pesquisas/CNPq Crítica feminista e Autoria feminina: cultura, memória e identidade – UFGD. Membro do GT de Relações Literárias Interamericanas da ANPOLL –Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística; Membro do GT de Ensino Superior do Fórum de Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul – FEEMS.
E-mail: andre_benatti29@hotmail.com
Bernadette Porto é doutora em Letras pela UFRJ (1983), aposentada na UFF desde 2017 e recredenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da mesma instituição. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq durante 27 anos. Autora e co-autora da organização de obras coletivas. Publicou artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior.
Exerceu a função de coordenadora do Núcleo de Estudos Canadenses da UFF durante longos anos. Atuou como editora-chefe responsável pela publicação de três números da revista Interfaces Brasil Canadá (na época, Qualis A1). Coordenadora do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq Identidades em trânsito: estéticas transnacionais. Participante do GT da ANPOLL Relações literárias interamericanas.
E-mail: mbvporto@hotmail.com
Elena Palmero González é Professora Titular de Literaturas Hispanoamericanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Tem Graduação em Filologia Hispânica (1983) e Doutorado em Ciências Filológicas pela Universidad Central de Las Villas (Cuba, 1997). Fez estágios de pós-doutorado na Université Paris IV-Sorbonne (França, 2005-2007), na Universidade de São Paulo (Brasil, 2016) e um Estágio Sênior (CAPES) em Yale University (Estados Unidos, 2017). É Editora-chefe da revista Alea: Estudos Neolatinos e líder do grupo de pesquisa Estudos Literários Interamericanos e Transatlânticos (UFRJ). Atua nas linhas de pesquisa da Literatura comparada e da História da literatura, com ênfase na literatura cubana, latino-americana e nas relações literárias interamericanas.
E-mail: elenacpgonzalez@gmail.com
Eurídice Figueiredo é doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras (Zouk, 2020), A literatura como arquivo da ditadura brasileira (7letras, 2017), Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção (EdUERJ, 2013), Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura (7Letras, 2010), Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana (EdUFF, 1998) além de inúmeros artigos em obras coletivas e revistas nacionais e internacionais. Organizou vários livros e números de revistas. É pesquisadora 1B do CNPq.
E-mail: euridicefig@gmail.com
Haydée Ribeiro Coelho é professora associada IV de Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Possui mestrado em Literatura brasileira (UFMG), Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura
Comparada (USP) e Pós-Doutorado (Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República). É bolsista de produtividade do CNPq. Nos últimos cinco anos, coorganizou Modos de arquivo: literatura, crítica, cultura (2018) e Literatura, outras artes e violência nas Américas (2019). Dedica-se atualmente à pesquisa em arquivos de escritores, tendo como base o espaço biográfico, políticas da memória e interlocuções latinoamericanas. Publicou vários artigos e capítulos de livros e participou de publicações coletivas relacionadas aos grupos de pesquisa a que pertence. Foi coordenadora do GT- Relações Literárias Interamericanas no biênio 2014-2016 e vice-coordenadora do mesmo GT (biênio 2016-2018).
E-mail: haydeeribeiro@hotmail.com
Kelley Baptista Duarte é professora associada do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), mestre em História da Literatura (FURG) e doutora em Estudos Francófonos (UFRGS/UQAMCanadá). Ministra disciplinas de Língua francesa na graduação e de Literatura na pós-graduação – (PPGL/FURG). Orienta estágios de formação docente; pesquisas científicas de graduação, pós-graduação e ações de extensão universitária. Sua linha de interesse em pesquisa e extensão versa sobre os estudos culturais, as literaturas migrantes nas Américas; os estudos comparatistas e interdisciplinares – todos relacionados à memória, à escrita de mulheres e às narrativas biográficas, autobiográficas e autoficcionais.
E-mail: kelleyduarte@yahoo.com.br
Lícia Soares de Souza é doutora em Semiótica pela Université du Québec à Montréal, é professora permanente do Programa de Pós-Graduação Crítica Cultural da UNEB e é professora associada da UQAM. Escreveu vários livros e artigos sobre semiótica narrativa literária, fílmica e televisiva.
Lançou em março de 2021: Pragmática Pós-Metafísica: o infradireito na literatura e cinema brasileiros. Curitiba, Ed. Appris, 2020. É oficial do Rio Branco, condecoração do Itamaraty a professores que contribuíram para a cultura brasileira no exterior.
E-mail: liciass@hotmail.com
Lívia Reis possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), mestrado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984) doutorado em Letras (Língua Espanhola e Lit.
Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São Paulo (1997).
É professora Titular da Universidade Federal Fluminense, bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Foi membro de comissão de avaliação da Coordenação de pessoal de nível superior (CAPES) e consultora do ENADE- Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Hispano Americana e Literatura Comparada. Nos últimos anos tem trabalhado com seguintes temas: ensaio latino americano, literatura de testemunho, relações literárias e culturais na América Latina. Foi Diretora do Instituto de Letras da UFF entre 2003 e 2010. Desde 2010 é coordenadora do Curso de Letras a distância (CEDERJ, UAB). A partir de 2010 assumiu a Superintendência de Relações Internacionais na Universidade. A partir deste novo desafio, passou a desenvolver uma nova vertente em sua vida acadêmica, escrevendo textos, participando de congressos e reuniões na área da cooperação internacional e dos processos de Internacionalização da Universidade Brasileira. Também é coordenadora do curso de língua estrangeiras para alunos da universidade, PULE e diretora do Instituto Confúcio. Foi coordenadora do extinto Programa Ciências sem Fronteiras. Possui inúmeras publicações no Brasil e no exterior e é membro do GT Relações Literárias Interamericanas desde sua fundação.
E-mail: liviar33@gmail.com
Luciana Wrege Rassier possui doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tradutora literária, é professora associada e pesquisadora do departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (Francês) da Universidade Federal de Santa Catarina. Por mais de quinze anos, foi professora universitária na França, especializando-se em literatura brasileira e catarinense. Parecerista de inúmeras revistas, publicou artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior. Coordena o Núcleo de Estudos Canadenses da UFSC. Foi editora-chefe da revista Interfaces Brasil-Canadá (2014), ligada à Associação Brasileira de Estudos Canadenses. Fez estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2015) e estágio sênior na Universidade de Rennes 2 (2015-2016, França).
E-mail: lucianarassier2020@gmail.com
Margareth Torres de Alencar Costa é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco em Teoria Literária (2013). Mestre em Letras –Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco (2002). Pósdoutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Buenos Aires (aguardando certificação). Possui graduação em letras – (Português e Inglês) pela Universidade Federal do Piauí (1982-1988), bacharelado em
Serviço Social – Universidade Federal do Piauí (1992), graduação em licenciatura plena em letras espanhol pela Universidade Estadual do Piauí (2012). Atualmente é líder do Núcleo de Estudos Hispânicos-NUEHISCCHL da Universidade Estadual do Piauí, linha de pesquisa em Literatura, História e Memória. Membro do NEPA (Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro); Professora Dedicação Exclusiva da Universidade Estadual do Piauí e coordenadora de área do PIBID Letras Espanhol da Universidade Estadual do Piauí. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literaturas de Língua Espanhola, atuando principalmente nos seguintes temas: interculturalidade, literatura, história e memória, género e Escrita de si (autobiografia, autoficção, Memória, Testemunho, literatura do trauma e violência). É membro do GT da ANPOLL – Relações Literárias Interamericanas.
E-mail: margazinha2004@yahoo.com.br
Silvia Cárcamo é professora titular de Literatura do Curso de Letras PortuguêsEspanhol da Faculdade de Letras (UFRJ). Graduada em Letras (Universidade Nacional de Rosario-Argentina), obteve os títulos de Mestre e Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ. Fez estágio de Pós-Doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona. Atúa no Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (UFRJ) como professora e orientadora de alunos de Mestrado e Doutorado e colabora como parecerista de periódicos especializados em estudos literários e linguísticos. Pesquisa temas relacionados com as literaturas hispânicas, especialmente sobre autobiografia, autoficção, subjetividades contemporâneas, exílio e memória. Foi presidenta da Associação Brasileira de Hispanistas. Atualmente é Membro do GT da Anpoll “Relações Literárias interamericanas”.
E-mail: silviacarcamo@globo.com
Silvina Carrizo possui graduação em Letras com ênfase em Literaturas latino-americanas pela Universidad de Buenos Aires (UBA, 1992), mestrado em Literatura Brasileira (1997) e doutorado em Literatura Comparada (2004) ambos pela Universidade Federal Fluminense, bolsista PEC/PG CAPES. Fez seu pós-doutorado com o Prof. Biagio D’Angelo (UFRGS, 2014) com projeto sobre as Literaturas em portunhol e com o Prof. Romulo Monte Alto (UFMG, 2019) com projeto sobre Literaturas Indígenas nas Américas: tradução e antologizacão. Atualmente é professora Associada da Faculdade de Letras da UFJF. Foi Coordenadora do GT da ANPOLL
Relações Literárias Interamericanas entre 2006-2010 e vice entre 2018 e
2020. Foi Editora-chefe da revista Ipotesi (2009-2013). Atua na linha de pesquisa Literatura, crítica e cultura do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFJF e atualmente se desempenha como Coordenadora do PPG. Seus principais temas de interesse são: literaturas latino-americanas e interamericanas, literaturas indígenas, literatura comparada, linguagens de mescla.
E-mail: silvinalit@gmail.com
Stelamaris Coser é mestre em Literatura Norte-Americana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Estudos Americanos pela University of Minnesota. Professora aposentada do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, integrou o PPGL/UFES até 2017, vinculando-se depois ao Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ) como pesquisadora em estágio de pós-doc. É autora de Bridging the Americas: the literature of Paule Marshall, Toni Morrison, and Gayl Jones (1995) e de muitos artigos e capítulos interligando questões de gênero, raça, classe, identidade e migração na literatura dos Estados Unidos e de outros países das Américas. Organizou O papel de parede amarelo e outros contos de Charlotte Perkins Gilman: tradução e crítica (2006) e Viagens, deslocamentos, espaços: conceitos críticos (2016). Como vice-coordenadora do GT da ANPOLL “Relações literárias interamericanas” (2010-2014), coorganizou as obras Entre traços e rasuras: intervenções da memória na escrita das Américas (2013) e Em torno da memória: conceitos e relações (2017).
E-mail: maris.coser@gmail.com
Zilá Bernd é professora titular aposentada do Instituto de Letras da UFRGS e professora e orientadora do PPG-Memória Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle/Canoas/Brasil. É bolsista PQ 1A/CNPQ. Publicou inúmeros artigos, capítulos de livros e livros como organizadora e autorais, em português e francês. É Officière de l’Ordre National du Québec e Officière des Palmes Académiques do governo francês. Recebeu o Prix du Gouverneur Général em Études Canadiennes e foi Prêmio Pesquisador Gaúcho em 2019, destaque na área de Letras e Linguística.
E-mail: zilabster@gmail.com
Afiliação 8, 15, 70-72, 165, 175-176, 202, 206, 209
África 89, 92, 155, 156, 161, 162, 166
Africanidade 162
Amorim, Vicente 121
Ancestrais 17, 51, 83-94, 115-116, 120-126, 137, 155,-169, 176, 202, 216-217, 223-224
Ancestralidade 5, 16-18, 38, 51-52, 137, 144-147, 151-157, 166-170, 207
Ancoragem 85-88, 93
Andrade, Carlos Drummond de 55, 124, 192
Antepassado 17, 86-90, 116, 144, 156, 162-164, 202, 248
Armony, Adriana 117
Autoficção 4, 5, 16, 19, 38, 51, 61-63, 139, 198, 211213, 221, 246-259, 261, 262
Azul Corvo 243-256
bell hooks 160, 169
Benjamin, Walter 91, 127
Borges, Lauro 125
Bourdieu, Pierre 125
Braconagens identitárias
Brasil 4, 7, 16-19, 38, 50-56, 84, 92-95, 107, 115-128, 144-152, 158, 161-167, 169-171, 190-199, 224226, 230, 234, 235-244, 249, 253, 257, 258-263
Buarque Chico 16, 51-56, 66
Canção 16, 51-56, 66, 88, 133, 137, 138, 156, 172
Canção de Solomon 156, 172
Caribe 8, 92, 158, 159, 161-163, 257
Char, René 116
Coletivo 84, 156, 162, 202, 216, 241
Colonialidade 139, 155, 156
Colonialismo 160, 257
Comunidade 15, 17, 54, 88-90, 115-127, 142-149, 155, 156, 157, 159-168, 175, 186, 202-204, 209, 224, 235
Corte infiltrada 234
Cruz, Eliana Alves 117
Da grafia-desenho da minha mãe
Demanze, Laurent 115, 117, 130
Diaspórico 128, 162
Diáspora 18, 86, 155, 162, 166, 168, 169
DuBois, W.E.B. 171
Ensaio 23-29, 33, 61, 68, 69, 75, 76, 100-102, 147, 155, 162, 164, 168, 178, 182-185, 197, 212, 221, 242, 256, 260
Escravidão 155-157, 162, 166, 219
Escrevivência 144, 167, 170, 171
Escrita 5, 8, 11, 16-19, 23- 29, 38, 47, 61, 63, 68, 7079, 84-89, 94, 100, 102-108, 112, 116, 117, 127, 129-137, 144-149, 152, 155-157, 162-171, 175186, 191, 197, 202, 203, 212-215, 219, 225-234, 241-248, 250-255, 260, 261, 263
Escrita de mulheres 212, 260
Escrita de si 5, 18, 19, 117, 155, 167, 225, 232, 243248, 250, 255, 261
Escritoras indígenas 5, 18, 141
Espaço-matriosca 223-242
Espaço-dobradiça 223-242
Espaço de recordação 93
Estados Unidos 18, 156-170, 244, 249-251, 257, 259, 263
Evaristo, Conceição 5, 124, 144, 155, 162, 165, 167, 169-171
Exílio 5, 19, 86, 91-93, 99, 101-104, 109, 113, 134, 243, 244, 247, 249, 255, 262
Família 4, 16, 18, 37-55, 61, 66, 67, 72, 78, 86, 88, 99, 102-109, 111-125, 130-136, 144-146, 155-158, 163, 165, 166, 184, 190, 195, 196, 202, 219, 230, 244-250, 252-254
Fanon, Frantz 160
Ficção 4, 5, 16, 19, 24, 27, 31, 33, 38, 42, 43, 51, 56, 61-70, 72-78, 87, 104, 115, 117, 121, 128, 130, 139, 142, 161-165, 191, 198, 211-214, 221, 234, 235, 241, 246-253, 256, 259, 261, 262
Filiação 4, 8, 15-19, 37-43, 50, 51, 67-75, 80, 99, 100, 102, 106-120, 125, 130, 131, 155, 165-168, 175, 176, 202, 206, 209, 212-219, 221-243, 247, 248, 251, 252, 255
Filiações literárias 68, 70, 75
Freud, Sigmund 71, 118, 221
From the poets in the kitchen 162, 168, 171
Genealogia 31, 32, 33, 42, 51, 55, 117, 127, 144, 155, 170, 175-177, 186, 198, 219
Glissant, Édouard 8, 85, 119, 129
Gonçalves, Ana Maria 117
Harlem Renaissance 124
Herança 5, 17, 19, 42, 46, 67, 71, 72, 75, 87, 90, 105, 112, 116, 117, 127, 131, 135, 141, 146, 156, 164, 166, 170, 180, 181, 207, 208, 210-219, 220, 248
História 2, 8, 17, 18, 23-32, 37-48, 53-56, 61-75, 83-89, 90, 94, 103-118, 120-134, 139-149, 151, 156-158, 161-166, 169--186, 190-199, 202-209, 214, 218, 220-226, 230-234, 240-248, 250-261
Honda-Hasegawa, Laura 17, 115
Hughes, Langston 115, 124
Identidade 38, 44, 47, 50, 64, 90, 93, 102, 104, 110112, 116, 129, 130, 155, 156, 160-162, 166, 175, 184, 205, 212, 232, 239, 242, 244, 247, 250, 252, 257-259, 263
Irrepresentável 105, 108
Junichiro Tanizaki 123
Kamenszain, Tamara 4, 16, 23, 24, 33, 258
Kasato-Maru (navio) 117
Kubota, Marília 17, 115, 116, 121, 123-126
Laub, Michel 117
Levy, Tatiana Salem 117
Libertella, Héctor 16, 31, 33
Liliana Ancalao 18, 141- 143, 147, 148, 152
Literatura argentina 4, 16, 67, 68, 81
Literatura cubana 18, 177, 178, 180, 183, 185, 187, 259
Literatura feminina negra 158, 167
Literatura migrante 86, 88
Literatura quebequense 4, 17, 83
Língua 8, 16, 24-28, 32, 33, 61, 77, 80, 84, 86, 9093, 101-107, 117, 118, 124-126, 131-137, 143, 147-149, 156, 157, 159, 162-164, 168, 203, 228, 248-251, 257, 258, 260-263
Magia 89, 156, 157, 161, 164
Marshall, Paule 5, 18, 155, 158, 159, 161-163, 165, 168, 169, 170-172, 263
Memória 4,
46, 47, 50, 67-80, 83-94, 100, 102, 104, 105109, 111-118, 124, 127-131, 135-139, 141, 146, 148-158, 160, 161, 162, 165, 167, 170, 183, 187, 190-205, 209-217, 220-231, 239,-243, 246, 247, 249, 250, 255-259, 260, 261, 262, 263
Memória ancestral 4, 17, 83, 84, 85
Memória cultural 17, 18, 83, 86, 87, 94, 129, 131, 139, 190, 199, 200-205, 209, 210, 228
Memória individual 5,19,137, 223, 250,
Memória intergeracional 83, 107, 202, 240
Memória política 5, 19, 223, 240
Memórias 16, 24, 37, 40, 42, 47, 50, 67, 68, 78, 85, 88, 90, 93, 102, 104-109, 129, 146, 148, 151, 155-158, 160, 161, 162, 198, 214-217, 220, 224-226, 228230, 240-246, 249, 250,
Memórias de sobreviventes 77, 117
Memórias do cárcere 223-242
Migrações pós-coloniais 99
Miguel, Salim 117
Mito de Jasão 92, 93, 94
Mobilidades culturais 94, 131, 137, 139, 242, 257
Moraes, Fernando 121
Moreno, María 4, 16, 29, 67, 69, 70-77, 80
Morrison, Toni 5, 18, 155-157, 161-164, 166-172, 263
Mourão, Rui 5, 18, 189-199
Mulher 18, 33, 42, 53, 54, 61, 64, 69, 87, 88, 92, 108, 109, 111-126, 132, 133, 139, 142-152, 156-158, 162, 163, 165-171, 193, 201-209, 211, 212, 214, 236, 238, 248, 250, 259, 260
Museu 64, 151, 184, 185, 189, 190-199, 218, 237
Mãe 16, 19, 23, 35, 38, 42-44, 54, 55, 56, 61, 62, 64, 66, 68, 69, 78, 87, 101, 105, 107-109, 118, 121123, 125, 134, 136, 137, 143, 146, 148, 155, 157, 159, 162-169, 171, 207, 208, 212, 214, 216-221, 229, 231, 244, 247, 248, 250-54
Música 51, 52, 55, 84, 147, 156, 157, 164, 197, 215, 246
Nakasato, Oscar 17, 115, 117, 118, 123
Narrativa de etnofiliação 17, 116
Narrativa de filiação 38, 42, 50, 110, 115-118, 120, 125, 130, 248, 251, 255
Narrativas de filiação 4, 15-19, 67, 100, 106, 107, 110, 112, 115, 212, 215, 219, 221, 243, 247- 252
Nome 4, 16, 23, 25, 27, 30-33, 37, 51, 54, 61-64, 76, 77, 80, 8-91, 102, 104, 105, 110, 111, 118, 131, 132, 136, 146, 155-160, 162, 165, 166, 183, 202, 206-208, 209, 212, 213, 214, 219, 220, 228, 236, 237, 245, 246, 253, 254
Oralidade 77, 87, 92, 145, 149, 156, 166, 191, 203, 204, 209, 223
Ortiz, Fernando 126
Otenio, Marta Matsue Yamamoto 115, 117
Paratextos 139, 157, 171
Passo de prosa 33
Poder de voar 164
Poema 16, 18, 23-32, 33, 55, 89, 124, 125, 143-147, 150, 151, 156, 163, 177, 180, 183, 192, 215
Poetas na cozinha 162, 168
Política 5, 18, 19, 39, 50, 53, 67, 68, 69, 71-76, 81, 109, 126, 142-147, 156, 162, 163, 166, 168-170, 178-180, 185, 198, 209, 213, 217, 220, 223, 227230, 232, 233, 235, 236, 239, 240, 242, 244, 253, 254, 259
Ponte, Antonio José 5, 18, 175, 177, 186, 187
Potiguara, Eliane 18, 141-148, 152
Praisesong for the widow 161, 171
Quebec 8, 17, 83, 84, 85, 88-93, 101-104, 131, 133, 135, 136, 203, 204, 205, 209
Racismo 89, 156, 160, 169, 213
Raça 24, 32, 45, 47, 69, 71, 79, 85-89, 99, 102, 106, 133, 160, 162, 164, 170, 175, 186, 196, 199, 200, 214, 226, 229, 235, 241, 254, 263
Reexistência 5, 18, 141, 142, 144, 146-148, 151
Reis, Fidélis 121
Renmei, Shindo 121
Resistência 5, 19, 49, 243, 244, 247, 249, 251-253, 254-256
Revista Orígenes 179
Ricœur, Paul 117
Robin, Régine 8, 17, 83, 85, 87, 89, 91,-94, 101, 202, 204
Romance familiar 16, 69, 70-72, 74, 130
Rootedness: the ancestor as foundation 164, 172
Song of Solomon 155, 156, 158, 161, 164, 172
Terron, Joca Reiners 4, 16, 37, 41
Testemunho 46, 50, 63, 67, 72, 74, 77, 79, 112-114, 117, 137, 163, 197, 199, 226, 246, 250, 256, 260, 261
The chosen place, the timeless people 161, 171
Thúy, Kim 17, 83, 85-89, 92, 94, 131-133, 135, 139
Transmissão geracional 202-204, 219, 221
Transmissão memorial 108
Viart, Dominique 71, 106, 107, 115, 116, 202, 248
Vítor Hugo 125
Yamasaki, Tizuka 117
Autores
Adriana Kanzepolsky
André Rezende Benatti
Bernadette Porto
Elena Palmero González
Eurídice Figueiredo
Haydée Ribeiro Coelho
Kelley Baptista Duarte
Leoné Astride Barzotto (organizadora)
Lícia Soares de Souza
Lívia Reis
Luciana Wrege Rassier
Margareth Torres de Alencar Costa
Silvia Cárcamo
Silvina Carrizo (organizadora)
Stelamaris Coser
Zilá Bernd
ISBN 978-85-63800-39-8