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Porto
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VIART, Dominique. Le silence des pères au principe du « récit de filiation ». Études françaises, v. 45, n. 3, p. 95–112, 2009.
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros
Eurídice Figueiredo
I, too, am America. Langston Hughes
Neste artigo proponho uma leitura dos romances Sonhos bloqueados de Laura Honda-Hasegawa (1991) e Nihonjin de Oscar Nakasato (2011), e do livro de crônicas Eu também sou brasileira de Marília Kubota (2020), publicados nos últimos trinta anos. Todos os autores pertencem à terceira geração: Laura Honda-Hasegawa nasceu em 1947, Oscar Nakasato em 1963 e Marília Kubota em 1964. Dentre os imigrantes com comunidades numerosas, os descendentes de japoneses são, talvez, os menos visíveis no panorama da literatura brasileira. Segundo Marta Matsue Yamamoto Otenio (2015), Sonhos bloqueados foi a primeira obra literária de ficção publicada por uma nikkei (descendente de japoneses); Laura HondaHasegawa integrou ainda a Antologia de Poesia Nikkei (1993) e a antologia de contos Pátria estranha (2002).
Nas narrativas de filiação, a família ocupa o centro de atenção, conforme as análises dos críticos franceses Dominique Viart e Laurent Demanze, criadores do conceito: é através do escrutínio da anterioridade que o sujeito pode chegar a entender sua própria interioridade. No caso francês, o sujeito em crise vai buscar na vida dos pais e dos avós uma história que possa, de alguma maneira, explicar a situação em que ele se encontra. O movimento que a narrativa de filiação faz é do presente para o passado, do sujeito atual em direção a seus ancestrais, diferente, portanto, do romance genealógico que parte do passado (do ancestral) para chegar até o presente (o sujeito da enunciação/o protagonista da história).
O uso do conceito de narrativa de filiação, no contexto dos escritores nipo-brasileiros, ganha uma dimensão mais coletiva e menos familiar, ainda que passem, necessariamente, pela história da família. As crônicas de Marília Kubota são autobiográficas, enquanto os dois romances se apresentam como ficções, embora tenham, sem dúvida, inspiração autobiográfica. Assim, apesar de os romances terem um corte mais tradicional, vou alargar o conceito dos críticos franceses para uma narrativa de etnofiliação, já que os escritores resgatam um passado sofrido dos antepassados que emigraram para o Brasil na primeira metade do século XX. Não deixa de ser uma maneira de interrogarem a anterioridade para tentar entender sua interioridade enquanto nikkeis. Como a identidade se constrói através do contato com o Outro, é preciso fazer reviver esse outro do passado, aquele imigrante inadaptado, que mal falava o português, para que os narradores do presente possam se conhecer melhor, eles que dominam a linguagem da literatura. “A narrativa de filiação, tomando a forma autobiográfica ou fictícia, é, pois, o modo privilegiado de escrita do sujeito” (VIART, 2008, p. 92). Dominique Viart (2008, p. 20) considera que o sucesso do aforismo do poeta René Char, Notre héritage nous est livré sans testament (“Nossa herança nos é transmitida sem testamento”), exprime a consciência de uma herança, em geral difícil de carregar, e a necessidade de interrogar o passado, não para imitá-lo, mas para se conhecer através dele. A narrativa de filiação dá novo fôlego à intriga e à história, o que desperta a curiosidade do público. Ao voltar à vida dos ancestrais, interroga justamente essa herança que não se entende direito, já que não havia testamento nem modo de usar, como uma bula de remédio. Desse modo, ela se caracteriza pela ausência de linearidade, pela tensão entre o real e o ficcional, pela investigação, pelo recurso a hipóteses, plausíveis ou implausíveis, e a preocupação com a questão social. A narrativa de filiação parte de uma falta: “pais ausentes, figuras frágeis, transmissões imperfeitas, valores caducos” (VIART, 2008, p. 94). Essa “escrita da restituição”, nas palavras de Viart, coloca em dúvida suas próprias investigações e desconfia de discursos e conceitos, recusa as ideias prontas e as verdades bem estabelecidas. A postura enunciativa é explicitada e o leitor sabe quem fala e de que lugar fala o narrador.
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros
Laurent Demanze (2008, p. 22) detecta uma preocupação arqueológica do escritor contemporâneo que, ao perscrutar as sobrevivências do passado, vê revelada uma parte desconhecida de si e, nesse sentido, faz uma “retrospecção hermenêutica”. Ele também aponta para a necessidade de escavação de vestígios de uma herança despedaçada, difícil de ser transmitida. “É no espelho do outro que o indivíduo contemporâneo se descobre, ao elaborar uma narrativa em que a ficção se mistura às lembranças e a escrita de si à fábula familiar” (2008, p. 9). A narrativa de filiação se ancora numa ferida, entre testemunho travado e homenagem às figuras apagadas da ascendência. “Arquivar as vidas passadas, inventar e inventariar as genealogias de si, eis o que faz o sujeito melancólico deste fim de século” (DEMANZE, 2008, p. 14).
Tanto na tese de doutorado de Oscar Nakasato (publicada em livro em 2009) quanto na de Marta Matsue Yamamoto Otenio (2015) é evocado o momento fundador da imigração japonesa: o desembarque, em 18 de junho de 1908, de 781 pessoas a bordo do navio Kasato-Maru. Nos anos subsequentes, outros navios trouxeram mais imigrantes destinados a trabalhar nas lavouras de café. O Japão estimulou a partida, negociando com o governo brasileiro, devido ao excesso populacional e às dificuldades econômicas do país. O topos do navio, da chegada, da inadaptação inicial, é uma constante tanto na literatura dos afro-descendentes (Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz) quanto de descendentes de imigrantes judeus (Tatiana Salem Levy, Michel Laub, Adriana Armony) e sírio-libaneses (Salim Miguel).
As condições de vida causaram um choque nos japoneses recémchegados, como se vê em todos os textos sobre o assunto, inclusive no filme Gaijin, caminhos da liberdade, de Tizuka Yamasaki (1980). “As péssimas condições de moradia, nenhuma assistência médica ou ambulatorial, o trabalho árduo e insalubre nos cafezais, a contabilidade desonesta dos salários (não) pagos pelos fazendeiros (...) incitaram muitos imigrantes japoneses à revolta e fuga massiva” (OTENIO, 2015, p. 21). Em um segundo momento, o governo do Japão passou a financiar a compra de terras destinadas aos imigrantes de modo a não terem de enfrentar a mesma penúria dos primeiros desembarcados. Hoje a comunidade nipo-brasileira é estimada em 1.500.000 de habitantes.
A inserção e a assimilação não foram fáceis nem imediatas, devido às disparidades culturais e também aos preconceitos de ambos os lados. A língua, a religião, os hábitos alimentares, as tradições, tudo era muito diferente, havia um verdadeiro abismo que separava as duas culturas. Os japoneses tinham orgulho de seu país, veneravam um imperador que afirmava ter origem divina, desprezavam os brasileiros, por eles chamados de gaijin, como se os brasileiros fossem os estrangeiros em sua própria terra. Enfim, um início difícil que, de alguma maneira, os escritores querem rememorar para reverenciar essa herança talvez difícil de carregar. Paul Ricœur (2007, p. 101) postula que a “ideia de dívida é inseparável da de herança. Somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam”. Os descendentes dos imigrantes japoneses situam-se diante da aporia que consiste em lidar, ao mesmo tempo, com a necessidade e a dificuldade de transmitir uma herança, sentindo a injunção do dever de memória. Ao fundo de suas obras os narradores vislumbram fantasmas do passado através de fotos esmaecidas, lembranças truncadas, traumas camuflados.
O período da Segunda Guerra tornou-se particularmente complicado a partir do momento em que o Brasil declarou guerra ao Eixo porque o Japão, alinhado com a Alemanha e a Itália, passou a ser considerado inimigo. Os imigrantes oriundos desses três países sofreram perseguição, proibição de falar, publicar e ensinar em suas línguas maternas. O personagem do romance de Nakasato é preso por ensinar japonês às crianças. No pós-guerra, ao contrário dos alemães e, sobretudo, dos italianos, que se adaptaram ao novo país, os nikkeis foram pouco maleáveis, as famílias não aceitavam os casamentos mistos, os pais reprimiam as filhas, impondo o omiai (casamento arranjado).
Oscar Nakasato, que ganhou o prêmio Jabuti em 2012, utiliza a primeira pessoa para contar a história da família do narrador de Nihonjin: seu avô Hideo chegou ao Brasil com sua esposa Kimie, mulher frágil e sonhadora, que morreu jovem. Do segundo casamento, com Shizue, nasceram seis filhos, quatro homens e duas mulheres. O narrador, cujo nome, Noboru, só é mencionado uma vez, é filho de Sumie, que abandonou o marido e os três filhos pequenos. As informações sobre a família são colhidas diretamente do avô, ainda vivo no presente da enunciação, e do primogênito, tio Hanashiro, já que o narrador não tem contato com a mãe.
O incipit do romance inclui uma reflexão sobre a memória, ao evocar a figura de Kimie, de quem ninguém se lembra. Há uma fotografia dela guardada numa caixa de camisa, junto a outras fotografias antigas, esmaecidas, imagens que se desvanecem assim como as lembranças, diante disso “se necessita preencher as elipses, realçar os contornos para que se possa ver, ou inventar traços e cores em folhas em branco” (NAKASATO, 2011, p. 9). Aqui fica claro que memória e imaginação andam juntas, inventa-se aquilo que não se sabe, o narrador imagina-a ao lado do avô no navio que os trouxe do porto de Kobe para o de Santos. Esse é um elemento que indicia o romance como narrativa de filiação porque o narrador se coloca desde a primeira página claramente querendo reconstituir uma história familiar fraturada. Kimie é uma figura fantasmática, morta jovem demais; talvez, por isso mesmo, ela
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros intriga e inquieta o narrador, quiçá ela evoca a mãe, desaparecida de sua vida também muito jovem. Não por acaso, os nomes das duas terminam com a mesma sílaba (Kimie e Sumie). Duas mulheres que inspiram o Unheimlich, aquele sentimento de inquietante estranheza descrito por Freud, porque são, ao mesmo tempo, familiares e estranhas, próximas e longínquas.
O objetivo do avô ao aceitar vir para o Brasil era de ganhar muito dinheiro durante alguns poucos anos, voltar para o Japão e abrir um restaurante em Yokohama, sonho que nunca se realizaria. Como explica Édouard Glissant
(1981, p. 30), pensando no caso dos descendentes de africanos escravizados, a “primeira pulsão de uma população transplantada [...] é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se deve mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação”. Ora, a volta ao Um original é imaginária e, na realidade, ao se efetuar, pode-se transformar em frustração e revolta porque o transplantado já estava hibridizado. A geração do avô não conseguiu realizar o seu sonho; a “volta” se daria na terceira geração, com o surgimento da figura dos dekasseguis. Em Nihonjin ninguém na família viajou ao Japão, o narrador é o primeiro a empreender essa viagem de “retorno”, porque ele não é um dekassegui qualquer; não precisa ganhar dinheiro para trazer de volta, ele é professor, casado com uma advogada gaijin (brasileira) e pai de um filho e uma filha; vai ao Japão em busca de suas raízes, “as imagens do Japão distante não eram hipóteses, sensações inéditas, mas lembranças, pedaços de uma sinuosa estrada secular, em cujas margens [ele] reconhecia as pedras e os arbustos” (NAKASATO, 2011, p. 173). Em outras palavras, resgatar essa anterioridade faz parte do seu processo de autoconhecimento.
Já Kimiko, a narradora-protagonista de Sonhos bloqueados, no fim do romance, também parte para o Japão como dekassegui, com um contrato de dois anos; ela tem a intenção de ganhar dinheiro suficiente para comprar uma casa para morar com seus filhos em São Paulo porque o que ganha como cabeleireira não é suficiente. As duas cenas se passam durante o governo do presidente José Sarney (1985-1990), período com taxa de inflação altíssima, que provocou o êxodo de brasileiros para o exterior.
Honda-Hasegawa não reconstitui a chegada dos primeiros imigrantes, mas a família da protagonista é muito semelhante à do romance de Nakasato, com pai autoritário, irmão mais velho com poderes sobre os menores, mulheres submissas, tentativa de conservar as tradições culinárias. Em um único momento trata desse passado de miséria no Japão que expulsou os camponeses para essas terras tropicais em contraste com a situação atual de potência. “Não consigo conceber tanto progresso e tamanha riqueza do Japão de hoje, comparando com o que eu ouvia de meu avô, nos meus tempos de criança...”
(HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 180).
Ainda que o formato de Nihonjin se aproxime mais do romance genealógico tradicional do que da narrativa de filiação, a inscrição da figura do narrador nessa pesquisa sobre a história da imigração japonesa o insere na problemática da filiação; para além da família nuclear, o narrador de Nakasato refaz o percurso da comunidade nipo-brasileira à qual pertence, explorando as dificuldades do início de vida dos imigrantes nas fazendas de café e, depois, num sítio arrendado e, finalmente, em São Paulo. Ele sabe que faz parte dessa história, por isso quer “reencontrar” no Japão tudo aquilo que já incorporou como sendo seu: a areia branca que vai pisar com os pés descalços, o campo de cerejeiras, o monte Fuji coberto de neve.
Entre um passado de humilhações e um futuro sonhado no Japão dos ancestrais, o narrador inventa tanto um quanto o outro a partir de fragmentos.
Na chegada dos avós, imagina Kimie decepcionada com as condições de moradia. “Depois observou a casa acanhada, de madeira encardida pelos anos, a mancha escurecida pelos respingos da chuva na parte inferior formando um largo rodapé, as janelas de duas folhas fechadas” (NAKASATO, 2011, p. 19). Penetrando no ambiente, sente o cheiro de urina, de comida estragada; o piso da casa é de chão batido, os quartos são separados por cortinas, não tem móveis, nem cama, nem armário, nem mesa e cadeiras. É desolador. No dia seguinte, o casal e Jintaro, o agregado, vão debulhar milho para fazer colchões com palha, recebem enxadas para capinar.
Ao desembarcarem no porto de Santos, os japoneses vestiam roupas ocidentais, o que devia ser desconfortável para eles; ficaram chocados quando viram, pela primeira vez, pessoas diferentes, “a visão assustadora dos negros, estivadores carregando enormes cargas, gente jamais imaginada, nunca vista em gravuras de livros” (NAKASATO, 2011, p. 17). Hideo nunca se aproximaria de negros, seu preconceito é muito arraigado: “Me disseram que os negros foram escravos no Brasil, que têm raiva de todos os que não são como eles. São uma gente menor, de baixo valor” (NAKASATO, 2011, p. 24). Ironicamente, os japoneses substituíram os negros após a abolição e as condições que lhes eram oferecidas pelos fazendeiros não eram melhores, com exceção do fato que eles não eram escravos e não eram castigados. O sino usado para chamar os antigos escravos continuava lá na mesma função, funcionando como metonímia da similaridade da posição ocupada pelos trabalhadores espoliados. Todavia, a esposa Kimie, muito mais aberta e sensível, tornou-se amiga de Maria, uma negra conhecedora das plantas, que sabia tirar bicho-de-pé e administrar poções e chás de ervas medicinais.
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros
Se os japoneses tinham preconceitos em relação aos negros e aos brasileiros em geral, eles também foram vítimas de rejeição. Hideo sente isso mais fortemente em São Paulo, durante a guerra. Um indivíduo, chamado José de Oliveira, entra em sua loja e começa a ofendê-lo. Através do uso do discurso indireto livre, o narrador dá uma explicação histórica, colocando na mente de Hideo aquilo que, provavelmente, ele não teria condições de saber: que alguns consideravam os amarelos um estorvo, que o deputado Fidélis Reis fizera uma proposta, em 1923, de reduzir a entrada dos japoneses. Os índios, na visão estereotipada desse indivíduo, eram criaturas tranquilas porque sabiam o seu lugar, dentro das matas, ou seja, à margem da sociedade moderna. O romance dá espaço para os conflitos de dois filhos de Hideo: Haruo, que desde criança queria ser brasileiro e não nihonjin (japonês), e Sumie, que se apaixonou por Fernando, um gaijin: solteira, hesitou a fugir com ele, mas, dez anos depois, casada, mãe de três filhos, ousou buscar a felicidade. O personagem que emblematiza o conflito da segunda geração é Haruo que, desde pequeno, aprendeu na escola rural que era brasileiro; a professora insistia em ensinar que todos eram brasileiros para evitar o bullying sofrido pelos nikkeis que escutavam “Japonês tem cara chata, come queijo com barata” (NAKASATO, 2011, p. 61). Marília Kubota também se refere a essa frase, assim como à letra apócrifa do Hino da Independência: “Japonês tem quatro filhos/Cada um tem outro pai”. Hideo entra em crise porque não aceita que seu filho seja brasileiro, ao mesmo tempo, não pode desacreditar a voz da professora; já o irmão mais velho explica a Haruo que na escola eles são brasileiros, em casa são nihonjins. O irmão tem a vaga percepção de que eles ocupam esse entre-lugar, devem aceitar esse duplo pertencimento. Apesar dos duros castigos ministrados pelo pai, Haruo persiste em sua obstinação, ousando dizer que sua cara podia ser japonesa, mas seu coração era brasileiro. Essa recusa de Haruo em se dobrar às negociações identitárias o levará à morte ao final da Segunda Guerra devido à postura radical dos que advogavam a vitória do Japão.
Hideo é um japonês absolutamente fiel ao imperador; apesar de se sentir desamparado diante da impossibilidade de realizar o projeto de ganhar dinheiro e voltar para o Japão, ele nunca cogitou culpar o imperador que os havia enganado com um discurso que faltava à verdade, embora outros membros da comunidade tenham explicitado que haviam sido ludibriados por ele. E durante a guerra, já morando em São Paulo, no bairro da Liberdade, onde abriu uma loja, ele se filiou ao grupo clandestino chamado Shindo Renmei. Não aceitando a derrota do Japão, o grupo dos kachigumis começou a fabricar fake news sobre o fim da guerra, negando os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, o reconhecimento do imperador de que ele não era uma divindade, era um homem como os outros, e sua rendição aos americanos. O Shindo Renmei decidiu matar os nikkeis que reconheciam a derrota, chamados por eles de makegumis (derrotistas). Fernando Moraes (2000), no livro-reportagem Corações sujos, conta em detalhes todo esse incrível episódio; o livro foi adaptado em 2011 para o cinema por Vicente Amorim. O Shindo Renmei perpetrou 23 assassinatos, vários responsáveis foram presos posteriormente. Haruo representa, no plano da ficção, as vítimas da organização, o que é motivo de um sentimento de culpa em Hideo até o presente da enunciação. A história do Shindo Renmei é também mencionada por Marília Kubota, que afirma que o tema ainda é tabu na comunidade nipo-brasileira. O sistema patriarcal era rígido, as mulheres tinham um estatuto subalterno naquelas famílias japonesas: na hora das refeições, elas serviam os homens e só depois é que podiam comer; os homens decidiam os casamentos, o que os filhos e a esposa podiam fazer. Não há discussão, a ordem paterna é irrevogável. No entanto, as mulheres podem ter vontades mesmo contra a vontade, de modo que Kimie acaba cedendo ao agregado Jintaro, ela que estava cansada do silêncio e dos maus modos do marido; apesar de ser uma mulher honesta, ela “sentiu, feliz, que o peso de Jintaro não lhe pesava, que ele se colocava suavemente sobre seu corpo, que o seu tamanho, por fim, se ajustava a ela” (NAKASATO, 2011, p. 39). Jintaro é poeta e sensível, Kimie é sonhadora, ambos tinham afinidades, mas Jintaro partiu para a cidade e Kimie morreu de tristeza e de saudade, esperando cair a neve.
Na geração dos filhos de Hideo é Sumie quem rompe com a ordem patriarcal e vai tentar ser feliz com Fernando, o homem de sua vida. O narrador era criança quando a mãe partiu; depois disso, só a viu duas vezes. No presente da enunciação, ele diz: “Às vezes penso em ir vê-la. Eu devo ir vê-la. Talvez não seja essa mulher que eu traduzo em palavras, muito mais criação de um homem que tenta compreender aquela que abandonou o marido e os filhos do que a mãe que conheceu de verdade” (NAKASATO, 2011, p. 129). Esse é um dos momentos em que se percebe um narrador mais autorreflexivo e autocrítico porque se interroga sobre sua criação literária. Sumie foge de casa com Fernando, que a ama até o fim da vida. Em paralelo à história de Sumie, o narrador conta uma outra, a de Sanae, que teve um desfecho triste: abandonada, ela volta para a casa dos pais com um filho no colo e não é admitida no seio da família. Essa atitude patriarcal não é exclusiva da comunidade japonesa, os brasileiros da primeira metade do século XX faziam a mesma coisa, como se pode ver no romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, em que o pai português se
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros recusa a aceitar de volta Guida, a filha “perdida”. Ironicamente, na velhice, após a morte da mulher, é na casa de Guida que ele vai morar. A subalternidade das mulheres é evocada por Marília Kubota através da apresentação do culto dos fantasmas no Japão; narrativas budistas têm yûrei, fantasmas femininos presentes também no teatro Nô, que representam mulheres que foram mortas de forma violenta. Ela só se deu conta de que essas narrativas encobriam a violência doméstica após ter lido Em louvor da sombra de Junichiro Tanizaki; ao evocar o padrão de beleza das mulheres – maquiagem branca no rosto, batom verde e dentes enegrecidos –, prática vigente até o século XIX, fica claro que elas simulavam imagens de fantasmas. Esperava-se das mulheres submissão, obediência e silêncio, além de desempenharem seu trabalho sem reivindicar nada, sem reclamar. Marília Kubota cita a escritora estadunidense Julie Otsuda que escreveu: “até meados do século XX, uma japonesa bem-educada devia confundir-se com os móveis da sala” (KUBOTA, 2020, p. 75; grifos meus). A metáfora do móvel é retomada por Kimiko, de Sonhos bloqueados, que pensa: “será que eles me viam como um móvel da casa, que bastava ficar lá dentro, cumprindo a minha função, sem necessidade de tomar ar, de ver outras pessoas, de aprender, viver a vida? ” (HONDAHASEGAWA, 1991, p. 73, grifos meus).
Todas as personagens importantes em Sonhos bloqueados são femininas, a começar da protagonista-narradora, Kimiko. Tanto o pai quanto o irmão mais velho e o marido são homens autoritários, pouco falantes, nada expansivos, que tratam as mulheres friamente. Além de contar sua própria vida, Kimiko fala de suas irmãs Eiko e Teresa, de sua filha Érica, das amigas do tempo da pensão, da dona do salão e até da patroa japonesa para quem faz a faxina no sábado. Os homens são figuras chapadas, diferentemente do romance de Oscar Nakasato em que predominam personagens masculinas. De maneira significativa, as mulheres que tentam ser independentes acabam sozinhas: Eiko se separa do marido, Teresa não se casa, o marido de Kimiko se suicida após a morte acidental do filho mais velho; mesmo Érica, a jovem filha de Kimiko, confessa à mãe em carta que usou o namorado lindo como troféu para se exibir diante das colegas de escola que zombavam dela. E, ironicamente, o irmão mais velho, que herda mais bens porque lhe compete cuidar dos pais, casa-se com uma gaijin que “expulsa” o sogro de casa depois de tratá-lo muito mal. Ele acaba indo morar na casa da filha Eiko.
A narradora de Sonhos bloqueados, sendo também a protagonista, usa a primeira pessoa, porém em algumas passagens ela não está realmente implicada, tornando-se uma narradora neutra, distanciada. A narrativa é predominantemente linear, ainda que haja algumas voltas a tempos passados.
Em Nihonjin existe uma alternância entre um narrador onisciente neutro, extradiegético, e o narrador em primeira pessoa, autodiegético. Quando diz “Eu percorri a colônia, observando as casas” (NAKASATO, 2011, p. 19), ele tenta imaginar aquilo que o avô e o tio lhe contaram, sua vivência é escritural e não existencial. Às vezes, o narrador insere seu “eu”, mas é no início e, principalmente, no final do romance, que ele se expande como personagem, exprimindo seu desejo de ir ao Japão e beber na fonte de seus ancestrais. Eu também sou brasileira de Marília Kubota é uma coletânea de crônicas que, lidas em seu conjunto, contam uma história de família da autora. Ela estabelece um paralelo do título de seu texto com um poema de 1930 de Carlos Drummond de Andrade que diz “eu também já fui brasileiro, moreno como vocês”. Todavia, para mim, o título evoca o poema, de 1925, “I, too, sing America”, de Langston Hughes, poeta da Harlem Renaissance que reafirma que ele, negro, também é americano. Em diálogo com Walt Whitman, considerado o poeta da América, Langston Hughes escreveu:
I am the darker brother. They send me to eat in the kitchen When company comes, But I laugh, And eat well, And grow strong. Tomorrow, I´ll be at the table When company comes. Nobody´ll dare Say to me, “Eat in the kitchen”, Then.
Besides, They´ll see how beautiful I am And be ashamed I, too, am America.
Como no livro Becos da memória de Conceição Evaristo, na capa do livro de Kubota aparece uma foto de família assim como na Apresentação, na qual a autora afirma que, sendo de ascendência japonesa, tendo sempre vivido na comunidade nipo-brasileira, só a partir da comemoração do centenário da imigração japonesa ela começou a se sentir brasileira. Os nikkeis continuam sendo vistos de forma estereotipada: “somos quitandeiros ou pasteleiros, inteligentes, bons em matemática, disciplinados, obedientes, falamos a língua japonesa. Os homens são guerreiros (samurai) e praticam artes marciais e as
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros mulheres, gueixas (artista que entretém homens) ” (KUBOTA, 2020, p. 16).
A clicherização se dá na abordagem por desconhecidos que repetem palavras como arigatô (obrigado) ou dizem que gostam de sushi. Pior ainda, a piada de comer feijoada com sushi, “símbolo” da integração.
A narrativa de filiação dos imigrantes remonta aos avós que vieram para o Brasil; em sua cidade natal, na província de Saga, Miya, a avó materna de Marília Kubota, gostava de ler e, como só existia biblioteca na igreja presbiteriana, converteu-se ao protestantismo para ler Vítor Hugo; ela praticava a arte do tanka, uma das formas poéticas japonesas; no Brasil, casou-se com Kunio, que tocava shakuhachi, flauta de bambu. Como muitos, saíram do interior e se mudaram para São Paulo, onde um dos filhos comprou um sobrado no Jabaquara. O avô Kunio vendia algodão-doce em São Paulo, o que era uma festa para os netos; depois de sua morte, em 1974, a avó Miya costumava passar férias na casa da narradora; não era fácil a comunicação já que a mãe falava com a avó em japonês enquanto as crianças, os netos, não falavam a língua. Do lado paterno, o avô Kingo saiu do porto de Nagasaki, sua cidade natal, 15 anos antes do início da guerra; no Paraná, tinha uma casa de praia porque gostava de pescar, local em que a narradora criança se divertia nas férias. Ele instalou uma bicicletaria em Paranaguá; o pai montava bicicletas reciclando peças de bicicletas velhas; Marília Kubota diz que tinha vergonha de seus pais, pessoas sem instrução, donos de uma loja com uma oficina suja e bagunçada. De certa maneira, todos aqueles que têm acesso à educação e mudam de classe social sentem, ao mesmo tempo, vergonha dos pais e sentimento de culpa, como mostrou Pierre Bourdieu. Em um curto relato autobiográfico, Esquisse pour une auto-analyse, Bourdieu (2004) usa o termo “trânsfuga de classe” para designar as pessoas (como ele próprio) que mudam de classe social através dos estudos; o abandono dos padrões comportamentais da família e a aquisição de novos hábitos culturais podem provocar o sentimento de traição aos genitores. A superação da vergonha de Marília Kubota veio na idade adulta quando organizou a exposição Bicicletas Caiçaras com poemas dela e fotos de Lauro Borges, passando a ter um olhar mais poético sobre os ciclistas. Kubota insiste bastante sobre sua timidez. Como sempre sentiu dificuldade de se apresentar em público, teve de se esforçar para superar, pelo menos parcialmente, o seu bloqueio. Fez terapia, estudou e refletiu sobre as condições culturais que provocaram essa timidez patológica. “Nem sempre consigo escrever quando convivo com o demônio. Mas quando consigo, dou um passo a mais para me libertar de suas garras” (KUBOTA, 2020, p. 37). Atualmente participa de saraus e bate-papos, dá oficinas de criação literária, mas continua achando desafiadora a sua exposição nesses eventos. Kimiko, a personagem de Sonhos bloqueados, é também bastante tímida e foi submissa ao pai e ao marido; ao ficar viúva, mais autônoma, começou a ter mais iniciativa, ainda que não tenha chegado a ser uma pessoa ousada. Talvez o ato mais arrojado de sua vida tenha sido a decisão de partir para o Japão, juntamente com 27 mulheres que não conhecia.
Marília Kubota (2020, p. 61) destaca a importância do feminismo e da independência econômica das mulheres para que não dependam dos homens, não precisem do casamento como solução de suas vidas. Quando são autônomas, percebem que as velhas estruturas sociais são obsoletas. “Ouvir estas histórias é um alento. Prova de que as conquistas sociais não retrocedem por força de decretos ou propaganda política”.
Apesar de tanto Nakasato quanto Marta Otenio tenderem a ver as transformações dos nikkeis como dualidades, creio ser mais adequado detectar um processo de transculturação, tal como foi concebido pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969). Em Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar [1940], ele explica que o neologismo – transculturação – vinha substituir os conceitos que vigoravam até então (desculturação e aculturação), rígidos e unívocos, inadequados para exprimir a complexidade das transmutações ocorridas em todos os níveis: econômico, institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, psicológico, sexual. “Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste só em adquirir uma cultura diferente, [...], mas que o processo implica também necessariamente perda ou desenraizamento de uma cultura precedente” (ORTIZ, 1963, p. 99, grifos do autor).
Se os japoneses resistiram às mudanças, seus descendentes foram, paulatinamente, adquirindo a língua, os padrões de comportamento, as roupas, as práticas culinárias, ao mesmo tempo em que divulgavam os seus à população brasileira. Em todas as obras há muitas referências aos pratos típicos da cozinha japonesa: onigiris, misso-shiru, shirogohan, tsukemono, sashimi. Apesar de serem muito apegados à culinária dos ancestrais, aos poucos, os nikkeis vão adotando pratos brasileiros, produtos locais vão entrando na preparação e hibridizando os hábitos alimentares. Kimiko gostava de fazer macarronada nos domingos, seu filho mais novo não abria mão do brigadeiro em seu aniversário. A festa de casamento de Yumi reúne os salgadinhos brasileiros e os pratos japoneses, numa demonstração de abertura para a culinária local.
“Coxinhas, croquetes e bolinhos de bacalhau quentes e dourados disputavam cada pedaço da mesa, lado a lado com bolinhos de arroz enrolados em alga marinha e aperitivos de peixe cru” (HONDA-HASEGAWA, 1991, p. 77). A narradora observa que os brasileiros eram reticentes ao experimentar as
Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros iguarias japonesas, mas isso mudou muito desde então, com a popularização dos restaurantes japoneses no Brasil.
A assimilação ao padrão de beleza ocidental leva Érica, a filha de Kimiko, a operar os olhos, o que é criticado pela narradora de forma veemente; todavia, contraditoriamente, ela faz permanente nos cabelos e os tinge de acaju, o que não deixa de ser uma tentativa de mudar de fisionomia. Olhos rasgados e cabelos lisos são, talvez, as duas características mais visíveis do tipo japonês (ou chinês, coreano, etc) ao passo que na população negra é a cor da pele e os cabelos.
Esses escritores, ao reconstituírem uma genealogia marcada por rupturas, traumas e sofrimentos, praticam também um “dever de memória” em relação à comunidade à qual pertencem. “O escritor precisa rememorar as palavras da tribo. Não só a sua vida. A vida particular em contexto universal. Ao ler rememorações escritas nos identificamos. Quem escreve espelha a vida de um leitor” (KUBOTA, 2020, p. 63). A partir de Walter Benjamin, ela afirma que a rememoração é própria dos romancistas, a reminiscência, dos poetas. A reminiscência teria um poder mágico, já que os poetas são distraídos, não lembram nada. Assim, eles inventam mais que lembram. “Para o poeta, lembrar e esquecer têm o mesmo peso. Lembramos pouco, inventamos muito. Assim a roda do mundo se move. A rememoração é essência da literatura” (KUBOTA, 2020, p. 64). Para Viart (2011, p. 157), na confusão da contemporaneidade, com a perda de referências, o sujeito procura reconstruir a história de suas origens a fim de compreender melhor a sua situação e a sua herança.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Esquisse pour une auto-analyse. Paris: Raisons d’Agir, 2004.
DEMANZE, Laurent. Encres orphelines. Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre Michon. Paris: José Corti, 2008.
GLISSANT, Edouard. Le discours antillais. Paris: Seuil, 1981.
HONDA-HASEGAWA, Laura. Sonhos bloqueados. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.
HUGHES, Langston. I, too, sing America. Disponível em <http://www.poetryfoundation.org/poems/47558/ i-too>. ACesso em: 11 fev. 2021.
KUBOTA, Marília. Eu também sou brasileira. São Paulo: Lavra Editora, 2020.
KUBOTA, Marília (org.). Retratos japoneses no Brasil: literatura mestiça. São Paulo: Annablume, 2010.
NAKASATO, Oscar. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011.
NAKASATO, Oscar. Imagens da integração e da dualidade: personagens nipo-brasileiros na ficção. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2010.
NAKASATO, Oscar. Personagens nipo-brasileiros e a questão identitária. In: SÁ, Michele Eduarda Brasil de, FERREIRA, Aldenor da Silva (org.). O Japão sob múltiplos olhares. Campo Grande: Editora UFMS, 2021. [e-book].
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. (Advertencia de sus contrastes agrarios, económicos, históricos y sociales, su etnografia y su transculturación). La Habana: Consejo Nacional de Cultura, 1963.
OTENIO, Marta Matsue Yamamoto. Sujeitos diaspóricos e negociações identitárias: o entre-lugar em Brazil-Maru e Sonhos bloqueados. (Tese de doutorado), Assis, UNESP, 2015.
RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
VIART, Dominique ; VERCIER, Bruno (avec la collaboration de Franck Evrard). La littérature française au présent. Héritage, modernité, mutations. Paris: Bordas, 2008.
VIART, Dominique ; VERCIER, Bruno Le roman français au XXº siècle. Paris: Armand Colin, 2011.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
Luciana Wrege Rassier
Não te guardes Que tudo é provisório.
Myriam Fraga, O risco na pele, Poesia reunida.
La pensée de la trace est celle qui s’oppose aujourd’hui le plus valablement à la fausse universalité des pensées de système.
Édouard Glissant, Introduction à une Poétique du Divers
O fluxo narrativo constitutivo de “nossas histórias, nossas memórias, nossa tradição e nossa identidade” (GAGNEBIN, 2006, p. 111) relaciona-se estreitamente à escrita, por sua capacidade de traduzir a linguagem oral. Além disso, ao se contar uma história, sempre são operadas escolhas inerentes à lógica discursiva, as quais supõem privilegiar, mas também esquecer e silenciar. Sabe-se que a “emergência da memória” ocupa um lugar preponderante nas questões culturais contemporâneas das sociedades ocidentais (HUYSSEN, 2000) e que a tradição é a “persistência da memória” (MIGNOLO, 2003), embora o vivido possa ser recuperado não na sua integralidade, mas de modo fragmentado e lacunar. Como sublinha Aleida Assmann,
Luciana Wrege Rassier
“O problema da tradição – e com ele o problema da memória cultural – tornase muito mais complexo no momento em que não se trata mais de anotar e ler contra o esquecimento, mas de incorporar esse esquecimento como elemento constitutivo no processo de transmitir e legar coisas do passado” (2011, p. 229).
Esses fragmentos e lacunas, rastros e vestígios são solo fértil no campo literário:
Os textos literários nos ensinam que as reminiscências se recompõem através dos vestígios, sendo que os espaços lacunares são completados com a invenção, o empréstimo e a imaginação já que o vivido é limitado no tempo, enquanto o acontecimento lembrado é sem limites, para retomarmos mais uma vez os ensinamentos incontornáveis de W. Benjamin para os estudos da memória e dos rastros (BERND, 2017, p. 381).
A proliferação das “formas e variações autobiográficas” vem transformando o romance contemporâneo, que incorporou significativamente “procedimentos das chamadas escritas de si” (FIGUEIREDO, 2013). Já na virada do século, Dominique Viard (1999), ao calcar o termo de “romance de filiação”, enfatizava o lugar de destaque ocupado pela temática familiar na literatura contemporânea. Se a “saga”, tal como a definiu Massaud Moisés (1982), está relacionada a narrativas que abordam histórias de famílias reais, com fatos verídicos mas também ficcionais, Laurent Demanze (2008) sublinha que o romance familial, o romance das origens e o romance de filiação são três formas narrativas que se interpenetram. O romance de filiação compõese a partir de “investigações subjetivas, agenciamentos crítico e tradições narrativas”, com as seguintes especificidades:
Do romance familiar, ele toma emprestada a inquietude identitária de uma narração que reconfigura, entre traição e transfiguração, entre real e ficção, as desavenças do sujeito com a estranheza da família. Do romance das origens, ele toma emprestado o incessante entrecruzamento da memória familiar e da memória intertextual, segundo um vertiginoso jogo de mises en abyme, no qual investigação genealógica e escavação intertextual se entrelaçam. Mais distanciada do romance genealógico, nem por isso a narrativa de filiação deixa de destacar as identidades subterrâneas da duração longa, e o alargamento às dimensões de uma sociologia crítica (DEMANZE, 2008, s/p.)1
1 Nossa tradução do original: “Au roman familial, il emprunte l’inquiétude identitaire d’une narration qui reconfigure, entre trahison et transfiguration, entre réel et fiction, les démêlés du sujet avec l’étrangeté familiale. Au roman des origines, il emprunte l’incessant entrecroisement de la mémoire familiale et de la mémoire intertextuelle, selon un vertigineux jeu de mises en abyme, où investigation généalogique et fouille intertextuelle s’entrelacent. Plus distant envers le roman généalogique, le récit de filiation n’en souligne pas moins les identités souterraines de la longue durée, et l’élargissement aux dimensions d’une sociologie critique”.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
Dentre as variantes dos romances de anterioridade (centrados em um ancestral, familiar ou mítico), Zilá Bernd (2018, p. 47) aponta o romance memorial e o romance de filiação. Em ambos, a “interioridade” do eu-narrador é menos proeminente do que a “anterioridade”. Se o primeiro é um “aspecto pós-moderno da saga” que privilegia traços e vestígios constituintes da memória cultural, o segundo evoca o percurso de um ancestral enquanto herança a ser repudiada ou reivindicada.
Partindo desses pressupostos teóricos, pretende-se analisar o romance ru, de Kym Thùy (2009) que aborda uma história de migração do Vietnã para o Canadá, levando em consideração que “No âmbito das mobilidades culturais, memória e imigração são temas interconectados, posto que deflagram, nos arquivos e na bagagem da existência, as marcas deixadas pelo trânsito dos indivíduos, os quais partem para (sobre)viver, movidos pelas mais distintas razões ou necessidades” (BARZOTTO, 2017, p. 191).
Pistas paratextuais
Nascida em 1968 em Saigon, aos dez anos Kim Thúy deixou seu país natal em um barco improvisado, como mais de um milhão de vietnamitas o fizeram, sendo acolhida com a família em um campo de refugiados da Organização das Nações Unidas na Malásia. De lá, a família migrou para a província canadense do Quebec. Diplomada em Direito mas também em Linguística e tradução, Kim Thúy trabalhou como advogada, intérprete, costureira ou ainda proprietária de restaurante, antes de realizar um objetivo acalentado desde a infância: dedicar-se à escrita. Seu romance de estreia, redigido originalmente em língua francesa, ru (2009) foi traduzido em quinze línguas e recebeu prestigiosos prêmios, como o Prix du Gouverneur Général, concedido pelo Conselho de Artes do Canadá (2010), o Grand Prix RTL-Lire do Salão do Livro de Paris (2010), ou ainda o Grand prix littéraire Archambault (2011), que revela novos autores quebequenses. Dentre as obras ficcionais publicadas posteriormente pela autora, observa-se o lugar de destaque ocupado por histórias de migração do Vietnã para Canadá, como mãn (2013), vi (2016) ou ainda em (2020). Em 2015, Kim Thúy foi sagrada Chevalier de l’Ordre national du Québec e recebeu o título de Doutor honoris causa da Universidade de Concordia dois anos mais tarde. Em 2018, foi um dos quatro escritores nomeados (com a guadalupense Maryse Condé, o inglês Neil Gaiman e o japonês Haruki Murakami) ao Prêmio Nobel “alternativo” proposto pela “nova Academia sueca” (RADIO
CANADA, Kim Thúy parmi les quatre finalistes, 2018).
Luciana Wrege Rassier
O que propõe contar essa narrativa, cujo título ru cria, de entrada, uma zona de opacidade? Como essa opacidade é articulada com outros elementos paratextuais? Como postula Gérard Genette, o paratexto não só apresenta o texto, mas também o presentifica, desempenhando um papel essencial no pacto de leitura:
Mais do que um limite ou uma fronteira estanque, trata-se aqui de um limiar, ou – expressão de Borges ao falar de um prefácio – de um “vestíbulo”, que oferece a cada um a possibilidade de entrar, ou de retroceder. “Zona indecisa” entre o dentro e o fora, sem limite rigoroso, nem para o interior (o texto), nem para o exterior (o discurso do mundo sobre o texto), orla ou, como dizia Philippe Lejeune, “franja do texto impresso que, na realidade, comanda toda a leitura” (GENETTE, 2009, p. 10).
Na edição francesa (2010), da editora Liana Levi, ru vem envolto em uma jaqueta em cuja capa se vê a fotografia, em tons de cinza azulado, de uma mulher usando o tradicional chapéu cônico vietnamita (Non La) e um traje nitidamente oriental, com colarinho alto e branco. A fotografia, cujo fundo desfocado mostra apenas nuances de cinza, mostra a figura feminina de costas, levemente voltada para o lado direito. Seu rosto está encoberto pelo chapéu, mas seu queixo levantado sugere que observa algo. No alto, o nome da autora é grafado em letras brancas. O título, também em letras brancas, todas em minúsculas, é escrito verticalmente, criando um estranhamento e salientando tratar-se de língua oriental. As duas letras sobrepõem-se parcialmente à beirada do chapéu, o qual, mesmo para o público em geral, pode ser associável ao Vietnã, sem maiores hesitações.
Já na contracapa da jaqueta, o título aparece em letras menores, mas desta vez grafado horizontalmente. Um pequeno recorte vertical da fotografia da capa enquadra três elementos: um texto curto que apresenta a narrativa, uma breve apresentação da autora e três brevíssimas citações da crítica (“Kim Thúy conta seu fabuloso destino”; “Sóbrio e pudico”; “Um soberbo objeto literário”) 2 . O caráter autobiográfico da narrativa é explicitado pelas informações convergentes entre os dois primeiros elementos, quais sejam, o texto e a apresentação de Kim Thúy, a qual destaca o percurso “fora do comum” da autora:
Kim Thúy deixou o Vietnã com outras boat people quando tinha dez anos. Ela vive em Montreal há cerca de trinta anos. Seu percurso é fora do comum. Ela revela ter exercido todo o tipo de ocupações – costureira,
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy intérprete, advogada, proprietária de restaurante – antes de se lançar na escrita (em francês) deste primeiro romance (THÙY, 2010, contracapa) 3 .
Por sua vez, o curto texto que apresenta a narrativa engloba uma série de lembranças, que, apesar de serem anunciadas como estando em desordem na narrativa, são evocadas cronologicamente, de modo a retraçar o percurso da família de migrantes:
Uma mulher viaja pela desordem das lembranças: a infância em sua gaiola de ouro em Saigon, a chegada do comunismo do Vietnã do Sul tomado pelo medo, a fuga no ventre de um barco ao largo do golfo de Sião, o internamento em um campo de refugiados na Malásia, os primeiros arrepios no frio do Quebec (THÙY, 2010, contracapa) 4 .
A seguir, é indicada uma dinâmica baseada em oscilações (“Narrativa entre a guerra e a paz, ru conta o vazio e o excesso, a desorientação e a beleza”5), são evocados “incidentes tragicômicos” e “objetos banais” a partir dos quais a autora restitui “o Vietnã de ontem e de hoje com a maestria de uma grande escritora”.
Na primeira orelha da jaqueta, chama-se a atenção para a presença de “outras vozes singulares” na mesma coleção, sendo listadas obras das escritoras estrangeiras Milena Agus e Milena Magnani (ambas italianas), Norma Huidobro (argentina), Inaam Kashashi (iraquiana) e Alison Wong (nova zelandesa de origem chinesa). Na segunda orelha, há dez breves citações que elogiam a narrativa de Thúy, retiradas de publicações que são instâncias legitimadoras reconhecidas no sistema literário da França e com grande alcance de público (Télérama, France Culture, Le Figaro Magazine, Les Échos, Le Point, Libération, VSD, Le Figaro Littéraire, L’Express, Elle).
A opacidade do título só é esclarecida no trecho colocado pela autora em guisa de epígrafe: “Em francês, ru significa ‘pequeno riacho’ e, no sentido figurado, ‘derramamento (de lágrimas, de sangue, de dinheiro)’ (Le Robert historique). Em vietnamita, ru significa ‘canção de ninar, ‘embalar” (THÚY,
3 Nossa tradução do original: “Kim Thúy a quitté le Vietnam avec d’autres boat people à l’âge de dix ans. Elle vit à Montréal depuis une trentaine d’années. Son parcours est hors du commun, Elle confie avoir fait toutes sortes de métiers – couturière, interprète, avocate, restauratrice – avant de se lancer dans l’écriture (en français) de ce premier roman”.
4 Nossa tradução do original: “Une femme voyage à travers le désordre des souvenirs : l’enfance dans sa cage d’or à Saigon, l’arrivée du communisme dans le Sud-Vietnam apeuré, la fuite dans le ventre d’un bateau au large du golfe de Siam, l’internement dans un camp de réfugiés en Malaisie, les premiers frissons dans le froid du Québec”.
5 Nossa tradução do original: “Récit entre la guerre et la paix, ru dit le vide et le trop-plein, l’égarement et la beauté”.
Luciana Wrege Rassier
2010, p. 7) 6 . Assim, o título ganha em multiplicidade de sentidos a partir da homografia entre o vocábulo francês (de uso antigo ou regional) e a palavra em vietnamita. No entanto, a prevalência da palavra vietnamita em relação ao vocábulo em francês é marcada graficamente, pela utilização de caracteres em itálicos, indicando tratar-se de uma língua estrangeira. Retomada ao longo da narrativa, a imagem de canção de ninar aparece quatro vezes : entoada pela “vizinha” no barco lotado em que a família da narradora foge clandestinamente do Vietnã; no primeiro encontro com a encantadora a primeira professora canadense da menina-narradora, que se sente acalantada pela sonoridade da língua francesa, por uma “nuvem de frescor”, de “leveza” e de “perfume suave”; no suor que escorre como um riacho nas rugas de uma velha vietnamita que habita no delta do Mecong; nas linhas finais da narrativa, em que a narradora evoca seu processo de escrita, e o fato de que o Canadá, para ela, não é mais um lugar, mas sim uma cantiga de ninar (THÚY, 2010, p. 15, 19, 47, 142).
Vê-se que nesse limiar constituído pelos elementos paratextuais a ênfase recai sobre a mobilidade cultural e identitária, sobre os deslocamentos de sentido nesse entre-lugar das línguas em contato, sobre um constante deslocamento fluído, apontando para o fato que o exílio não significa apenas atravessar fronteiras, mas “é algo que cresce e amadurece dentro dos exilados, os transforma e se torna seu destino” (BAUMAN, 2005, p. 178).
Vinhetas moventes
Vinh Nguyen aponta que, ao abordar a resiliência coletiva e individual face às adversidades, e ao evocar em seu final a imagem de uma fênix ressurgindo, triunfante, das cinzas, ru pode ser visto como um caso emblemático da história de sucesso de refugiados vietnamitas (2015, p. 42), colocando em cena a figura do refugiado grato pelo país de acolhida (2013). Aliás, as menções ao sonho americano, que passa a ser almejado pela família da narradora, perpassam o romance, tendo no casal que contrata a mãe da narradora como faxineira representantes emblemáticos. A senhora Girard, sempre bronzeada, era “loira platinum como Marylin Monroe”, e tinha os olhos “azuis, azuis, azuis”, enquanto o marido, alto e moreno, orgulhava-se de seu impecável carro antigo de coleção. Sua casa branca, com gramado perfeito e jardim florido, com tapetes em todas as peças, completava essa personificação. Ao saber, trinta anos mais tarde, que seu pai reencontrou a pista dessa família, a qual não se encontrava
6 Nossa tradução do original: “En français, ru signifie ‘petit ruisseau’ et, au figuré, ‘écoulement (de larmes, de sang, d’argent)’ (Le Robert historique ). En vietnamien, ru signifie ‘berceuse’, ‘bercer’”.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy em situação tão idealizada, a narradora interroga-se: “Eu me perguntava se não tínhamos involuntariamente roubado o sonho americano do senhor Girard, de tanto que o havíamos desejado” (THÚY, 2010, p. 80-81)7 .
No verbete da Enciclopédia canadense dedicado a Kim Thúy, lê-se que o enredo de ru engloba o deslocamento da família da autora (diretamente associada, portanto, à narradora do romance) do Vietnã para o Quebec e sua adaptação à nova cultura:
O primeiro romance de Thúy, Ru (publicado por Libre Expression em 2009), conta a estória da longa jornada de sua família do Vietnã ao Quebec e a descoberta de seu novo ambiente cultural. Em francês, ru significa pequeno riacho e, em vietnamita, berço e embalar. O romance consiste em vinhetas moventes e curtas sobre membros da família, entre outros personagens, e conta todas as maneiras simples como ele se adaptaram à sua nova realidade cotidiana (THE CANADIAN ENCYCLOPEDIA, 2018, s/p.) 8
Essas vinhetas “breves e moventes”, sem fio cronológico definido, narradas na primeira pessoa do singular, põem em cena personagens que são, em sua maioria, membros da família da narradora-protagonista. De família rica e prestigiosa, eles veem-se miseráveis no campo de refugiados na Malásia, e depois em precária situação socioeconômica no Quebec. Sem legado patrimonial a deixar, a herança transmitida dos pais aos filhos é a riqueza da memória e a autonomia em busca da realização dos sonhos:
Meus pais nos lembram com frequência, a meus irmãos e a mim, que eles não terão dinheiro para nos deixar de herança, mas eu creio que eles já nos legaram a riqueza da memória deles, que nos permite perceber a beleza de um cacho de glicínias, a fragilidade de uma palavra, a força do maravilhar-se. Mais ainda, eles nos deram pés para caminharmos até os nossos sonhos, até o infinito. Talvez seja suficiente para continuarmos nossa viagem por nós mesmos (THÚY, 2010, p. 50) 9 .
7 Tradução nossa do original: “Je me demandais si nous n’avions pas involontairement volé le rêve américain de monsieur Girard à force de l’avoir désiré”.
8 Tradução nossa do original: “Thúy’s first novel, Ru (published by Libre Expression in 2009), tells the story of her family’s long journey from Vietnam to Québec and the discovery of their new cultural milieu. In French, ru means small stream and in Vietnamese it means cradle and to rock. The novel consists of short, moving vignettes about members of her family, among other characters, and recounts all the small ways in which they adapted to their new daily reality”.
9 Tradução nossa do original: “Mes parents nous rappellent souvent, à mes frères et à moi, qu’ils n’auront pas d’argent à nous laisser en héritage, mais je crois qu’ils nous ont déjà légué la richesse de leur mémoire, qui nous permet de saisir la beauté d’une grappe de glycine, la fragilité d’un mot, la force de l’émerveillement. Plus encore, ils nous ont offert des pieds pour marcher jusqu’à nos rêves, jusqu’à l’infini. C’est peut-être suffisant pour continuer notre voyage par nous-mêmes”.
Luciana Wrege Rassier
A narrativa, que é feita na primeira pessoa do singular, sem seguir um fio cronológico definido, é composta por mais de cento e dez vinhetas, sendo raras aquelas cuja extensão ultrapassa uma página. Para Vinh Nguyen, a estrutura do romance, fragmentária e elíptica, reconstitui características de processos de transmissão, como os da memória e os da contação de estórias, além de refletir a maneira como a narradora se constrói: o self como em uma montagem de Outros (2013, p. 29). As personagens acompanham a trajetória da família, perpassando a vida no Vietnã, a fuga em um barco improvisado, a estada no campo de refugiados, as primeiros tempos e primeiros contatos sociais no Quebec, e, de maneira mais breve, a ascensão social da narradora e seus irmãos.
Dentre os familiares evocados, um lugar de destaque é dado à personagem da mãe, presente já na segunda vinheta. A narradora se coloca como uma sombra, um “prolongamento” natural de sua mãe, destino marcado por seus nomes idênticos, que têm um acento como único sinal de distinção. Essa sutil nuance desaparece com a migração da família, já que o significado de seus nomes desaparece, e eles ficam reduzidos, na língua francesa, a “sons ao mesmo tempo estrangeiros e estranhos” (THÚY, 2010, p. 12)10 . A mãe, filha de pai rico e prestigioso, alimenta, mesmo nos períodos mais traumáticos e de maior dificuldade, o desejo de que seus filhos alcancem condições de vida muito além do esperado. No intuito de estimular sua autonomia, resiliência e obstinação, acaba criando situações traumáticas para a filha, como quando a envia ao mercado para comprar açúcar, sem que a então menina saiba falar francês, impedindo-a de voltar para casa sem a encomenda e deixando-a chorar por horas a fio na frente do comércio.
A narradora afirma que sempre fora habitada pelo desejo de tornarse diferente de sua mãe, até o momento em que decidiu que seus dois filhos dividiriam o quarto – apesar de haver quartos livres na casa em que moravam – com o objetivo de ensiná-los a se apoiar mutuamente, a partir das frustrações, como ela e seus irmãos haviam aprendido (“Alguém me disse que os vínculos se tecem com os risos, mas ainda mais com o compartilhar, com as frustrações do compartilhar” – THÚY, 2010, p. 59)11. Na vinheta seguinte, a reflexão sobre a conduta da própria mãe revela a ressignificação do olhar da narradora, a qual indica que sua mãe “tinha portanto provavelmente razão em [nos] obrigar aos exercícios do compartilhar, não somente entre meus irmãos e eu, mas também
10 Tradução nossa do original: “à des sons à la fois étrangers et étranges””.
11 Tradução nossa do original: “Quelqu’un m’a dit que les liens se tissent avec les rires, mais encore plus avec le partage, les frustrations du partage”.
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy entre nós e nossos primos” (THÚY, 2010, p. 60)12 . A essa reflexão acrescenta-se outra, relativa ao episódio da compra de açúcar, desvelando que é a partir de sua própria experiência da maternidade que a narradora, retrospectivamente, compreende as atitudes da mãe:
Durante muito tempo, acreditei que minha mãe tinha muito prazer em me empurrar constantemente à beira do precipício. Quando tive meus próprios filhos, finalmente compreendi que eu deveria tê-la visto atrás da porta trancada, sem desgrudar do olho mágico; eu deveria tê-la ouvido falar com o comerciante ao telefone, enquanto eu estava chorando nos degraus. Eu também compreendi mais tarde que minha mãe certamente tinha sonhos para mim, mas que, sobretudo, ela me deu ferramentas que permitissem que eu recomeçasse a me enraizar, a sonhar (THÚY, 2010, p. 30)13 .
O legado recebido, e transmitido às gerações seguintes, é, portanto nitidamente relacionado a um movimento de construção identitária fluída, que permita navegar pelas mobilidades culturais, em um movimento que não seja orientado exclusivamente às dores do desenraizamento.
(In)conclusões
Maurice Halbwachs aponta que, para corroborar ou contrariar um evento sobre o qual já dispomos de informações, recorremos a testemunhos, podendo ser o primeiro deles o nosso próprio (2006, p. 29). Vimos que, no romance ru, a escritora vietno-canadense Kym Thúy coloca em jogo deslocamentos e migração, e, decorrentes da mobilidade cultural, o sentimento de estranhamento e de não pertencimento não só a lugares como também à(s) língua(s) estrangeiras. A narradora busca, através da memória individual e da memória coletiva, a reconstituição do percurso de seus ancestrais, na tentativa de conhecê-los mais e, assim, conhecer-se a si mesma. Nesse espaço intervalar do rememorar, entre o lembrar e o esquecer, são incorporados à narrativa restos, rastros e fragmentos. Esses vestígios, que podem ser definidos como a presença de uma ausência, incluem o acerto de contas com a ancestralidade, reatualizando
12 Tradução nossa do original: “[Ma mère] avait donc probablement raison de nous obliger aux exercices de partage, non seulement entre mes frères et moi, mais aussi entre nous et nos cousins”.
13 Tradução nossa do original: “Pendant longtemps, j’ai cru que ma mère prenait un plaisir fou à me pousser constamment au bord du précipice. Quand j’ai eu mes propres enfants, j’ai finalement compris que j’aurais dû l’avoir vue derrière la porte verrouillée, les yeux collés au judas ; j’aurais dû l’entendre parler à l’épicier au téléphone, pendant que j’étais assise à pleurer sur les marches. J’ai aussi compris plus tard que ma mère avait certainement des rêves pour moi, mais qu’elle m’a surtout donné des outils pour me permettre de recommencer à m’enraciner, à rêver”.
Luciana Wrege Rassier
uma prática ainda bem vívida em várias literaturas (BERND, 2018, p. 98; 67). Como aponta Gagnebin, se o trauma cria a ferida, esta se transforma em cicatriz, cujos indícios podem ser revelados pela escrita, a partir de rastros que presentificam o ausente (2002). Ao retornar sobre sua relação com a mãe, agora descentrando-se, a partir de sua própria experiência da maternidade, a narradora reatualiza o legado recebido, perpetuando a canção de ninar que a acompanha, como bem indica nas páginas finais do romance:
Sós e juntos, todos esses personagens do meu passado sacudiram a sujeira acumulada nas costas a fim de abrir suas asas de plumas vermelhas e douradas, antes de alçar voo vivamente em direção do grande espaço azul […] Quanto a mim, foi assim até a possibilidade deste livro, até este instante em que minhas palavras deslizam na curva dos seus lábios, até estas folhas brancas que toleram meu rastro, ou melhor, o rastro dos que caminharam à minha frente, por mim. Eu avancei no rastro dos seus passos como em um sonho acordado no qual um país não é mais um lugar, mas uma canção de ninar (THÚY, 2010, p. 142)14 .
A análise de ru remete assim à reflexão sobre deslocamento/desplaçamento feita por Elena González, quando retoma a proposta do argentino Ricardo Piglia para que se pense a literatura do futuro pela experiência da margem, a partir da América Latina, em um “deslocamento que se traduz como um olhar a partir do descentramento, das fronteiras e da transgressão” (2010, p. 113), um deslocamento que “pode ser também uma estratégia operacional para estudar textos e para estudar processos literários, no caso de nossas culturas ‘não hegemônicas’” (2010, p. 114).
14 Tradução nossa do original: « Seuls autant qu’ensemble, tous ces personnages de mon passé ont secoué la crasse accumulée sur leur dos afin de déployer leurs ailes au plumage rouge et or, avant de s’élancer vivement vers le grand espace bleu […] Quant à moi, il en est ainsi jusqu’à la possibilité de ce livre, jusqu’à cet instant où mes mots glissent sur la courbe de vos lèvres, jusqu’à ces feuilles blanches qui tolèrent mon sillage, ou plutôt le sillage de ceux qui ont marché devant moi, pour moi. Je me suis avancée dans la trace de leurs pas comme dans un rêve éveillé […] où un pays n’est plus un lieu, mais une berceuse ».
Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy
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