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LEGADOS NACIONAIS

A estirpe de Orígenes: de filiações e afiliações na obra de Antonio José Ponte

Elena Palmero González

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Conforme argumenta Julio Premat (2016), a literatura que seguiu à ditadura da imanência textual imposta pelos modelos estruturalistas dos anos sessenta respondeu com uma escrita que restituía a capacidade de falar do histórico e do social. Da mesma maneira, no final do passado milênio e nos inícios do século XXI, a literatura contestou à tão falada “morte do autor” com uma produção que explicitava a subjetividade, a intimidade do sujeito que escreve. Esse mesmo gesto de resistência se repete na contemporaneidade, quando prolifera um tipo de escrita que, para resistir à “crise do tempo” descrita por Huyssen, volta-se para o anacronismo, para a construção de arquivos de vidas passadas, para as filiações, no intuito de “fabricar memorias y orígenes frente al hundimiento social de la transmisión” (PREMAT, 2016, p. 117). E conclui o crítico: “Las temáticas de filiación son una manera de situarse ante el pasado, ante los antepasados: ante la biblioteca, ante los padres literarios o biográficos, ante la pertenencia o no a una generación que vivió paroxismos de violencia, frente a heridas memoriales” (2016, p. 117).

Essa reflexão final de Premat convida a pensar a ideia de filiação não só nos marcos do tema literário da transmissão familiar e do modelo narrativo descrito por Domique Viart (1999; 2002; 2019), mas também associada à transmissão de

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tradições literárias, inclusive, como problema fulcral da crítica e da historiografia literária na contemporaneidade: Como pensar as relações de filiação e afiliação nos processos de formação de uma literatura nacional ou regional? Como funcionam essas relações no mundo transnacional de hoje, quando os deslocamentos, os contatos linguísticos e os trânsitos culturais correm uma ideia de unidade essencial da cultura? Como pensar genealogias literárias fora dos modelos canonizados de origem, identidade e representatividade? É possível reconhecer pais literários em outras tradições, em outras épocas literárias, em escritores raros ou em deslocados de um cânone? Podem as obras de escritores aparentemente distantes no tempo e no espaço articular uma comunidade de escrita? É possível traçar uma cartografia dessas raras filiações no contexto de uma literatura nacional ou regional?

Para estudar essas questões, proponho recuperar a distinção que Edward Said (1983) faz entre filiação e afiliação. Conforme explica Said, a crítica envolve sempre um questionamento da dimensão confortável que o institucional tende a estabelecer. Assim, a consciência crítica estará sempre situada entre duas tentações, a primeira relacionada com vínculos de “filiação” de nascimento, de nacionalidade, e a segunda articulada a sistemas de pensamento construídos e adquiridos por “afiliação”, que funcionam como substituição compensatória da autoridade das relações filiais naturalizadas. Ou seja, filiação está associada à origem e afiliação está associada a princípios.

Em The World, The Text, and The Critic (1983), Said estuda esses dois modos da prática literária se situar perante a tradição. Para o crítico orientalista, na cultura ocidental o caráter das relações é sempre filial, porém, disputado pelas afiliações ou identificações culturais. Assim, se as relações filiativas são do domínio da natureza, as relações do tipo afiliativo pertencem ao domínio da cultura; se a relação literária com o cânone é de tipo filiativo, sua contestação encontra espaço nas relações afiliativas. Para Said, a relação é transitiva: filiação implica pertença a uma cultura local e prefixada, enquanto afiliação, conceito não biológico, não essencialista, tem a ver com conexões entre textos, entre culturas, entre tradições; é sempre eletiva, compensatória, criativa e desalienante.

Nessa perspectiva, postulo a possibilidade de pensar certas tradições literárias que escapam do modelo filiativo instituído pelo cânone e reproduzido por uma historiografia literária tradicional, pensando inclusive, com Demanze e Lapointe (2009), na prática contemporânea de escritores que produzem um encontro singular com seus ancestrais literários e seus espectros, dialogam com eles, desenvolvendo genealogias artísticas e intelectuais surpreendentes nas suas obras. Nessas escritas, a filiação biológica e as afinidades eletivas ou afiliativas fundem-se, à contramão dos cânones e das hierarquias estabelecidas. É o caso do trabalho que desenvolve o escritor cubano Antonio José Ponte quando na sua obra dialoga com os mestres do origenismo cubano, José Lezama Lima, Eliseo Diego, Cintio Vitier Virgilio Piñera, Lorenzo García Vega e, através deles, com toda uma tradição literária que passa por José Martí, Julián del Casal e remonta-se ao poema fundante da literatura cubana, Espejo de Paciencia (1608) de Silvestre Balboa, afiliando sua própria escrita a essa linhagem literária. Os textos de Ponte parecem organizar uma grande biblioteca de clássicos cubanos, mas uma biblioteca de tipo relacional, que aproxima em suas prateleiras textos e autores de diferentes momentos da série literária cubana, recuperando traços, coletando resíduos, costurando os fios que ligam esses resíduos e articulando com esses fragmentos toda uma genealogia literária. Essa ruinologia constitui-se em método de criação e opera no conjunto de seus textos. Porém, proponho uma aproximação a dois de seus livros, Las comidas profundas (1997)1 e El libro perdido de los origenistas (2002) 2 , nos quais vislumbro uma profunda unidade estética e conceitual. Ambos os textos iluminam-se e complementam-se, mostrando como Ponte assimila os modelos literários de Orígenes, ao mesmo tempo que também os transcende, no intuito de explicar-se a si mesmo e ainda de compreender o impacto dessa tradição na sua obra. Como “ensayos con arranque de novela” caracteriza Adriana Kanzepolsky (2010) Las comidas profundas, apontando para a singularidade genérica do livro nas primeiras linhas de seu posfácio à edição argentina de Beatriz Viterbo. Trata-se de sete vinhetas, que articulam o narrativo e o ensaístico, presididas por uma situação marco, em que um narrador nos faz partícipes de sua fome e de sua abundante imaginação criativa. Abre o livro a imagem de um escritor que olha para uma folha em branco sobre uma mesa de comer, carente de alimentos, mas coberta por uma toalha com desenhos de comidas. A personagem diante da mesa vazia imagina comidas e escreve. Curiosamente, a mesa de comer é também a mesa de escrever. Os desenhos da toalha evocam escritos sobre comida, estabelecendo uma singular sucessão com a folha em branco. Entre a superfície colmada de alimentos da toalha e o branco da página desfilam obras literárias que, alternando com o presente do personagem

1 Citarei pela edição argentina de Beatriz Viterbo Ed. (Rosario, 2010).

2 Citarei pela edição espanhola da Editorial Renacimiento (Sevilla, 2004).

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escritor, convertem-se em objeto de reflexão das seguintes vinhetas. A última parte volta à imagem da mesa, para localizá-la em Havana.

Assim, focada no tema da escassez de alimentos no “período especial” em Cuba, Las comidas profundas revisita a tradição gastronômica cubana, uma história que se remonta à mesa de Carlos V e sua renúncia a experimentar o maravilhoso abacaxi (a história das comidas cubanas poderia começar por essa renúncia, adverte o narrador), ao mesmo tempo que também revisita o tópico da comida na história da literatura cubana, destacando as marcas de uma tradição literária que dialoga com a mesa carente do escritor. Na ausência de alimentos, metaforizam-se. Na fome, buscam-se os banquetes literários dos grandes mestres da literatura cubana. Dessa maneira, o tema da escassez de alimentos é tratado no nível concreto, na necessidade orgânica de comer, mas também como reflexão filosófica sobre o desejo, como erótica da arte, dirá Teresa Basile (2009, p. 172) e ainda como meditação sobre a origem da escrita. O tema da carência volta em El libro perdido de los origenistas, um conjunto de textos que, sem abandonar o trabalho com a imagem e o estilo metafórico e simbólico de Las comidas profundas, aproxima-se agora do discurso da crítica literária, combinando formas da crónica, da biografia e do ensaio. O texto que dá título à coleção examina a figura “do libro que falta” em obras de Lezama Lima, Eliseo Diego e Cintio Vitier, ao mesmo tempo que questiona a política cultural da revolução cubana que depois de censurar os escritores de Orígenes durante todos os anos setenta, restituía-lhes um lugar na cidade letrada cubana no final dos anos oitenta e inícios dos noventa, porém, uma restituição problemática, na opinião de Ponte. Nesse sentido, os demais textos que compõem o livro oferecem belas releituras da obra de Julián del Casal, de José Martí, de Virgilio Piñera, de Lorenzo García Vega e de José Lezama Lima, em um projeto crítico que Basile (2009, p. 188) define a partir de quatro estratégias: a des-leitura das figuras canonizadas e monumentalizadas pelo discurso letrado (Martí), a recuperação dos esquecidos (Casal), o resgate de figuras sequestradas pela nova reivindicação institucional dos noventa (Lezama) e a reabilitação dos “malditos” (Piñera e García Vega). O livro evidencia o contexto de polêmicas culturais em que se desenvolve e é parte importante da releitura do cânone cubano que se produz ao início do século XXI. Ponte está oferecendo um cânone literário alternativo e outra leitura dos imaginários nacionais e seus relatos.

Ambos os livros estão atravessados por esse redescobrimento de Orígenes que acontece em Cuba no final dos anos oitenta e inícios dos noventa, ao mesmo tempo em que manifestam um distanciamento crítico dessa restauração institucional extemporânea.

Definir o origenismo e seu lugar na cultura cubana e latino-americana da Modernidade é tema de longo alento, sobretudo, se não queremos cair em essencialismos e reduzi-lo a uma falsa ideia de unidade, desconsiderando as diferenças que articulam qualquer fenômeno literário e a espessura que teve esse em particular. Alguns críticos definem Orígenes como uma geração, outros como um grupo e muitos como um estado poético, inclusive, críticos como Raúl Hernández Novás (1990, p. 134) preferem ficar na estranheza de não encontrar uma definição exata. Aludirei neste estudo, de maneira geral, ao grupo de intelectuais que se articulou em torno da revista Orígenes que, sob a tutela de José Lezama Lima, teve vida entre 1944 e 1956 em Havana, focando nos fundamentos estéticos que esses escritores mobilizaram nesses anos e que ecoam de maneira tão significativa na obra de Ponte, lembrando que como o próprio José Lezama Lima expressou:

Orígenes es algo más que una generación literaria o artística, es un estado organizado frente al tiempo. Representa un minimum de criterios operantes en lo artístico y en las relaciones de la persona con sus circunstancias. Será siempre, o intentará serlo en forma que por lo menos sus deseos sean a la postre sus realizaciones, un estado de concurrencia liberado de esa dependencia cronológica que parece ser el marchamo de lo generacional (LEZAMA LIMA, p. 64, 1952).

Os origenistas empenharam-se em definir o cubano através da imagem poética, procuravam um outro olhar que os ajudasse a existir em um ambiente que se mostrava indiferente à cultura, pois a história de Orígenes está ligada à crise da República na primeira metade do século XX. Nesse contexto de crise permanente, é célebre a frase de Lezama: “un país frustrado en lo esencial político puede alcanzar virtudes y expresiones por otros cotos de mayor realeza” (1949, p. 61).

É nesses “cotos”, os da arte e da literatura, que Ponte encontra seu primeiro ponto de conexão com Orígenes. Há no escritor uma concepção da imagem, uma dimensão da palavra poética, uma percepção autônoma da literatura, que o emparentam com os velhos mestres origenistas. Pode-se dizer que as propostas estéticas do origenismo foram um refúgio atrativo para um escritor imerso no esgotamento do modelo realista de “representação” e “compromisso” que havia caracterizado a política da criação literária cubana nas décadas anteriores, lembrando também que a geração de Ponte, essa que Jorge Fornet (2001) identifica como a “geração do desencanto”, talvez haja encontrado no espírito do origenismo e nas vidas dos origenistas um paralelo

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com o estado espiritual que se vivia na Cuba dos anos noventa, quando a perda do projeto utópico revolucionário é uma realidade.

Assim, Las comidas profundas e El libro perdido de los origenistas reconstroem uma linhagem literária assentada em Orígenes, através da assimilação antropofágica de formas, temas e tópicos caros ao origenismo, inclusive com apropriações metaliterárias de segunda ordem, se consideramos que o escritor segue os rastros das fontes origenistas, procede como seus mestres nas suas exegeses desse material, elaborando nesse movimento crítico toda uma constelação de textos e formas de escrita que articulam uma verdadeira estirpe literária.

“Llamo al espíritu de las viejas comidas” (2010, p. 16) diz o escritor faminto nas primeiras páginas de Las comidas profundas e com essas palavras começa o ritual que o conduzirá pela tradição dos banquetes literários. Vale lembrar neste ponto que no segundo capítulo de La expresión americana (1993), Lezama alude às comidas que se registram na história da literatura universal para ilustrar sua visão do barroco americano como resultado da “incorporação” de elementos do Velho Mundo no Novo Mundo, ou seja, Lezama encontra no banquete literário um caminho para explicar a continuidade entre o barroco europeu e o americano. O mesmo procedimento está em Ponte, quando alude a “incorporação” de alimentos na obra genésica da literatura cubana Espejo de paciencia, de Silvestre de Balboa, um poema épico que reúne elementos de várias tradições e, nesse sentido, é considerado pela crítica como a primeira tentativa literária de definir o cubano. Observa-se, ainda, que Ponte comenta a obra de Balboa pela lente origenista, citando as críticas que Cintio Vitier e o próprio Lezama Lima expressaram sobre o poema.

No entanto, o que mais interessa a Ponte é o fato de Balboa dar início à tradição da carência na literatura cubana, uma carência que volta na obra de escritores modernos e que reaparece em Ponte na forma de comidas ausentes. No meio da cornucópia das comidas saborosas descritas em Espejo de Paciencia, Ponte repara no lamento do Balboa pela comida que lhe falta: “De aquellas hicoteas de Masabo/Que no las tengo y siempre las alabo” (2010, p. 16). O escritor adverte que talvez sejam esses versos os mais importantes do poema, porque inauguram uma política do desejo na literatura cubana. A referência à ausência em Balboa, articulada ao incidente do monarca Carlos V, que prefere não experimentar o abacaxi por temor a ficar preso no desejo da sedutora fruta, resulta bastante indicativo de como carência e desejo estão, para Ponte, nas origens da cultura cubana.

Agora, a ideia do desejo insatisfeito que se transforma e multiplicase em imagem é uma herança origenista, um traço de Lezama Lima que aparece no livro de Ponte. A valiosa interpretação de Teresa Basile em torno a uma erótica em Las comidas profundas emparenta o livro com o sistema poético lezamiano a partir de um entendimento da potência criativa do Eros. Para Lezama, essa potência do Eros é um território ilimitado onde se erige a “possibilidade infinita”, um espaço situado além do reino do real, sendo justamente nesse território erótico e não apropriável da poesis o que está no subsolo do livro de Ponte (BASILE, 2009, p. 177). A presença dessa dimensão lezamiana no texto mostra seu legado e a ressignificação de seus postulados estéticos no contexto de uma política cultural restritiva desses modos de expressão artística que domina na criação literária cubana dos anos sessenta, setenta e início dos oitenta.

Também, como Lezama Lima, Ponte recupera a história das comidas ausentes no patrimônio de outras literaturas. Nessas outras tradições, encontra um vínculo afiliativo para sua obra. No diário de Virginia Woolf (uma das escritoras estrangeiras que foi traduzida e publicada em Orígenes), escrito na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, o autor encontra um espelho para seu livro. No meio da guerra, Virginia Wolf descobre o que têm em comum seus livros e a comida, ambos precisam ser imaginados. Repara Ponte na anotação do dia 29 de dezembro de 1940, quando refugiada na casa de campo e sem comida registra: “hay que ver como disfruta uno de la comida ahora: compongo menús imaginarios” (p. 41) e, meses mais tarde, na anotação de 8 de marco de 1941 diz: “Tengo que preparar la cena. Bacalao ahumado y salchichas. Creo que uno consigue cierto dominio sobre las salchichas y el bacalao si los escribe” (p. 42). Nessas frases do diário de Virginia Wolff podemos encontrar a motivação narrativa de La comidas profundas. As comidas imaginárias de Woolf também alimentaram a criatividade de Ponte durante o Período Especial em Cuba. Sua única solução, como para Woolf, foi imaginar as comidas ausentes:

Aquí también acaba el año y las comidas se han vuelto palabras, proyectos de existencia o de memoria. Están en el futuro y el pasado, nunca ahora. En el presente, la lengua no las toca más que por sus nombres. Del remedo de tragarlas, brotan palabras y el fogón y la mesa se repletan de ellas (p. 43).

A fome, como falta, torna-se no texto de Ponte origem da arte, origem da escrita. Na carência de comidas, a imaginação cumpre uma função substitutiva. Nessa linha, Ponte reconhece toda uma tradição de escrita e seu interesse é inventariar essa herança.

Mas a carência em Las comidas profundas resulta também uma inversão irônica da cornucópia gastronómica de Paradiso (1966) e de Oppiano Licario

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(1977). Se o banquete lezamiano era, na sua densidade barroca, uma síntese cultural cubana, a mesa desabastecida de Ponte, símbolo da crise económica dos anos noventa em Cuba é o banquete falido, a inversão quase irrisória desse modelo barroco da abundância, de tanta tradição na literatura latinoamericana. Trata-se, de um barroco de signo inverso, um “barroco da fome” observa Basile (2009, p. 179). Homenagem e desconstrução integram-se no palimpsesto da escrita. A letra dos outros nutre a própria letra de Ponte pelo caminho da afirmação e, ao mesmo tempo, pelo caminho de sua inversão.

Na imagem final do livro, com aquela página em branco e a frase “Una mesa en La Habana” (p. 55), o autor também aposta na inversão do modelo origenista. Abandonam-se as imagens associativas e proliferativas dominantes até esse momento no livro, para mergulhar no abismo da página em branco. Aquela frase, isolada no meio do papel, seguida de reticências, recria a imagem do vazio do presente histórico da personagem. Na órbita de um Mallarmé, essa imagem verbal renuncia à riqueza visual das imagens origenistas que caracterizaram as demais vinhetas do livro.

Não há dúvidas das pegadas de Lezama Lima em Las comidas profundas. Ponte desenvolve um tipo de ensaio de matriz literária e fatura esteticista muito afim com o trabalho do mestre origenista. A proliferação de imagens, a constituição de uma imago através da confluência de metáforas, a sacralização da poeticidade da linguagem, a densa prosa poética, a consciência de uma dimensão autônoma da arte e o próprio lugar que é concedido no livro ao escritor origenista fazem-lhe uma homenagem. Mas, também, o duplo jogo do banquete e sua substituição por uma estética da fome, assim como a inversão das superfícies colmadas do barroco por superfícies da carência, pelo espaço em branco, convidam a pensar na reescrita como ato produtivo, que introduz a Ponte numa estirpe literária ao mesmo tempo que a reconduz por novos caminhos.

Se com Las comidas profundas, Ponte arriba “al horno cubano de las transmutaciones para volver a masticar viejas palabras, para otorgarle nuevos sabores” (BERNABÉ, 2001, p. 34), com El libro perdido de los origenistas o escritor assume plenamente a necessidade de desmontar o cânone, dando outros sabores e outros tons à manipulada construção do origenismo nos anos noventa. “Dar con Orígenes por entonces era recobrar la verdadera literatura, ejercer como lector la libertad, escupir sobre los edictos que pretendían reglar las artes” (PONTE, 2004, p. 10), assegura o autor no prólogo do livro. Mas, Ponte mostra-se cuidadoso de não fazer uma leitura recanonizadora, seu interesse não é propor outro cânone, é abrir possibilidades para pensar tradições literárias fora dos entraves institucionais que forçam uma norma ou pretendem uma totalidade essencialista. Nesse sentido, opta pelos pequenos relatos que se escondem nas grandes histórias, dando sentido a objetos da cotidianidade, a cenas em fuga, a imprevistos e descontinuidades. Encarregase, assim, de urdir um relato sobre a perda de livros que insistem no essencial cubano; de devolver uma imagem aérea e leve de José Martí, a contramão de sua saturada imagem apostólica; de trazer figuras esquecidas como Julián del Casal ou de recuperar figuras tão complexas para o próprio origenismo como Virgilio Piñera ou Lorenzo Garcia Vega. Para isso, Ponte volta ao tema do vazio, da ausência, historiando objetos, perseguindo emblemas (um livro perdido, um abrigo, uma foto, uma bolsa), coletando ruínas, de aí que no prólogo afirme valer-se de uma parafernália museológica para elaborar seus textos. O primeiro ensaio dá título ao livro e está seguido de um conjunto de textos que, segundo informa o escritor no prólogo, foram escritos ao longo de mais de dez anos. A coleção fecha com um retorno ao primeiro texto, no que poderíamos chamar sua segunda parte, que o autor intitula “El libro perdido de los origenistas. Final”. Essa estrutura, cujo motivo final volta como variação do motivo inicial, encapsulando no meio um conjunto de variações da proposta conceitual central, concede ao livro uma aparência muito atrativa de texto unitário e coeso.

Em El libro perdido de los origenistas, Ponte recupera episódios de livros e poemas perdidos que aparecem nas ficções de Lezama Lima e de Eliseo Diego, articulando-os a episódios de suas biografias que aludem sempre a uma perda. Nessas perdas, Ponte repara, instala-se sempre um vazio, perde-se um trecho da memória da ilha, e com ele seus sentidos mais secretos. As ficções do livro perdido incluídas em Paradiso, em Oppiano Licario e em Divertimentos, a página perdida do diário de José Martí, que Lezama Lima substitui por uma pintura de Juana Borrero, o encabeçamento da carta de Eliseo Diego com os nomes dos origenistas apagados e substituídos por um círculo em branco, os amigos origenistas ausentes na foto do aniversário setenta de Cintio Vitier, elaboram uma mesma cena, uma cena que, na opinião de Ponte, se repete na história da literatura cubana.

Mas, “El vacío que busca denotar un libro que se pierde es vacío de nuestra expresión, de nuestra historia” (p. 28), repara Ponte, para voltar sobre as palavras de Lezama quando adverte: “hemos perdido casi todo [...] no sabemos qué pueda ser lo esencial cubano” (p. 25) e sobre as de Cintio Vitier quando em Lo cubano en la poesía pergunta-se: “dónde están, aunque estén derruidos, los muros de nuestra fundación” (p. 25). Para Ponte é surpreendente que, em uma mesma década, esses escritores origenistas falem do histórico cubano “como de un cuerpo hurtado que regresa a pasar algunas temporadas

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entre nosotros. Poetas principalmente, devotos de la poesía, miran a la historia desde allí, desde el poema” (p. 33). Esse temor a pensar a história da nação e da cultura como corpo furtado é um gesto decididamente origenista que retorna no livro Ponte.

O escritor enfrenta-se ao escamoteio de uma autêntica imagem de Orígenes no cânone construído por Fina García Marruz e por Cintio Vitier em La família de Orígenes (1994) e em Ese sol del mundo moral (1996), livros que impactaram o universo intelectual dos anos noventa em Cuba, quando a necessidade de um “relato nacional”, que voltasse para as singularidades do cubano e de uma história nacional, tornava-se um imperativo perante a perda do “relato soviético” que tinha marcado as décadas anteriores da história cubana. Trata-se de um gesto de Ponte perante o temor de um novo corpo furtado. Mas, curiosamente, Ponte também questiona o cânone origenista dos anos cinquenta forjado por Cintio Vitier e o próprio Lezama Lima, empenhados em uma teleologia insular, em uma busca essencial do cubano. Lo cubano en la poesia (1958) seria esse relato canonizador, teleológico, de corte hegeliano, que revela a articulação de uma identidade cubana de forma progressiva e em estádios cada vez mais evoluídos. Se os anos cinquenta tinham concentrado um debate sobre a identidade a partir de visões totalizantes do cubano, os noventa voltavam a elaborar um cânone sobre os mesmos pressupostos. Para Ponte, Ese sol del mundo moral era a continuidade de Lo cubano en la poesia porque ambos utilizavam as mesmas técnicas de canonização.

Em outros ensaios do livro, Ponte ocupa-se de desconstruir essas tramas canonizadoras. Em “El abrigo de aire” a metáfora do casaco perdido de José Martí, permite-lhe fazer mais leve e mais humana a imagem monumentalizada do político e escritor cubano. Recorrendo a anedotas e sem obviar o choteo, o ensaio busca tirar a figura martiana do museu das escritas mortas. Para isso, Ponte destrói-o, processa-o, mastiga-o, para dizê-lo com uma metáfora antropofágica, tropo de tanto peso na poética pontiana.

Pienso en ese abrigo ripiado por los perros, robado en un pequeño episodio de picaresca, discutido, vivo con la vida que presta la discusión. Los modos más secretos de la crítica literaria cubana, lo que se dice a solas frente al libro, lo que tal vez no alcanza a formularse con palabras, aquello que se permite en una conversación aunque estaría muy lejos de afirmarse por escrito, ¿qué dicen de José Martí, cómo lo citan? He escrito estas líneas para poner a Martí a disposición de los lectores, a disposición de lo bursátil que pueda haber en la lectura. He querido hundirlo (gravedad contra aire) en la pelea temporal de las literaturas, de la que ningún autor escapa. Y que salga de allí sólo lo que esté vivo (p. 89).

Se no caso de Martí, Ponte trabalha na restauração da imagem canonizada, no caso de Julián del Casal, aposta na recuperação do escritor modernista que surpreendentemente não há estátuas nem museus na Havana, um artista totalmente desobediente da política, cujo intento de unir vida e literatura interessou de maneira particular a Lezama Lima e que de maneira anacrônica volta a interessar aos escritores cubanos da década de noventa em Cuba. Chamo a atenção para o fato de que Martí e Casal, mestres da Modernidade poética cubana, sejam lidos em muitos momentos dos ensaios de Ponte, pelo prisma dos mestres origenistas. Casal, via Lezama Lima. Martí, via Cintio Vitier e até as páginas de Lezama não dedicadas a Martí têm espaço na reflexão de Ponte. Os restantes ensaios estão focados em figuras do origenismo. Lezama Lima é central no livro, talvez porque seja o escritor que melhor encarna o modelo do intelectual autônomo que interessa a Ponte. Lezama aparece aqui em perspectiva histórica. Se em Las comidas profundas interessou seu sistema poético, aqui Ponte descarta o Lezama da teleologia insular canonizadora de Orígenes para devolver-nos ao Lezama dos anos setenta, castigado pelo esteticismo de Paradiso, excluído pela homossexualidade do seu protagonista nada heroico, recluído na pequena casa de Trocadero, acossado pela pobreza de seus últimos anos e pela amargura de sua vida diária condenada à exclusão, conforme escreve a sua irmã nesses anos: “Lo que nos es más inquietante es la soledad metafísica, el silencio aterrador que nos rodea” (p. 145).

As figuras mais complexas do origenismo, por sua dissidência e sua relação conflituosa com o grupo, têm também um espaço no livro, mas sempre são apresentadas nos momentos de maior fragilidade. Virgilio Piñera é captado no momento mais trágico de sua vida, quando é descartado da cena literária nacional, acusado de homossexual e vive sumido no medo e na pobreza. Lorenzo Garcia Vega, o mais jovem dos origenistas, figura sempre dissonante no mapa das gerações poéticas cubanas, “a caballo en el tiempo entre Orígenes y la Generación de los Cincuenta (aunque origenista reconocido), a caballo también entre dos mundos (cubano del exilio), ausente del Diccionario de la literatura cubana” (p. 70), é apresentado como a outra cara de Orígenes, por sua conhecida crítica ao grupo em Los anos de Orígenes. Mas, é tal vez através deles que Ponte consiga sua melhor homenagem a Orígenes, porque capta suas tensões, sua diversidade, devolve-nos uma imagem não canonizada do grupo, mais real, mais pulsante, como é, na verdade, a vida literária. Como é possível apreciar neste estudo sumário, ambos os livros conectam-se à tradição do origenismo e por via do origenismo a toda uma estirpe literária; ambos pensam a relação entre o desejo, o vazio e a escrita na mesma linha dos origenistas; ambos concebem a carência através de um registro

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que estabelece paralelos entre a vida e a obra dos origenistas. A fome, tanto física quanto espiritual, é transformada em ambos os livros em uma figura ou tropo que nos ajuda a entender o duplo papel de Orígenes na obra de Ponte. Se o origenismo o seduz pela sua estética da imagem, é o extraliterário origenista o que lhe permite expressar suas críticas ao contexto político e cultural cubano no final do século XX e ainda se inserir nos frutíferos debates desses anos em torno a um suposto cânone cubano. Comer e “incorporar” seus pais, foram necessários para transcender. O estudo conjunto de ambos os livros mostra que Ponte conhece em profundidade o sistema poético origenista, insere-se nele, mas o transcende, fazendo inclusive dessa poética toda uma ética da criação e uma política da cultura literária. No início deste trabalho, destaquei as ideias de Eduard Said quando postula uma distinção fundamental entre o filiativo e o afiliativo no exame disso que chamamos pertencimento cultural. Enfatizava o pensador palestino como as formas afiliativas constituem vias legitimáveis de transmissão de uma tradição literária, sobretudo no contexto contemporâneo, quando nossas maneiras de entender o comunitário transformaram-se ostensivamente. Nessa perspectiva, propus a possibilidade de pensar certas tradições literárias que escapam do modelo filiativo instituído pelo cânone, pensando inclusive, na obra de escritores que tematizam encontros com pais literários, dialogam com poéticas de outras tradições e inclusive chegam a postular uma genealogia artística ou intelectual no interior de suas obras.

Nessa direção achei exemplar o estudo da obra do cubano Antonio José Ponte, um escritor que oferece com seus textos a possibilidade de pensar genealogias literárias à margem dos modelos teleológicos e hegelianos que sustentaram nossas formas modernas de pensar um cânone historiográfico nacional. Na obra de Ponte é evidente que certas tradições de escrita e de entendimento da literatura podem atravessar a série literária de maneira transversal, reaparecendo em diferentes momentos de uma história literária, de maneira sempre renovada.

Na perspectiva radicante de Nicolas Bourriaud (2009), pensar a comunidade literária no contexto do contemporâneo, requer imaginar uma biblioteca de textualidades dispostas de forma relacional, uma biblioteca capaz de organizar o residual que habita os discursos, os fios que ligam esses resíduos, articulando-se nessa operação surpreendentes constelações e genealogias. Tradições descontínuas, raros, deslocados, pais literários reconhecíveis fora das cronologias e das cartografias tradicionais organizariam as estantes dessa biblioteca, no mais pensada a partir da localização da escrita, do pertencimento geracional ou da unidade de época e de estilo. Suas prateleiras poderiam

A estirpe de Origens: de filiações e afiliações na obra de Antonio José Ponte de certas tradições que, por sua natureza, atravessam épocas literárias. Reconheço nos textos estudados de Ponte uma prateleira importante dessa biblioteca, a prateleira que junta Martí, Casal, Lezama Lima, Virgilio Piñera, Eliseo Diego e ao próprio Ponte, olhando-se todos no livro fundante do processo literário cubano.

Referências

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Filiações escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite em Quando os demônios descem o morro

Haydée Ribeiro Coelho

Introdução

Em 1995, Rui Mourão, ao conceder uma entrevista a Carlos Herculano, jornalista e escritor, já evidenciara que a administração (no caso, a direção do Museu da Inconfidência) era confluente com a de ficcionista. Além disso, afirmou que: “Se meu caminho tivesse sido diferente, jamais teria produzido Boca de Chafariz [1991] que a crítica considera o mais elevado de minha carreira” (MOURÃO, 1995). O tempo não “secou o assunto”1 e Rui Mourão continuou a escrever sobre Ouro Preto como se constata na publicação dos romances Quando os demônios descem o morro (2008) e Mergulho na região do espanto (2015). Nessas duas obras, além da questão histórica, estão presentes aspectos autobiográficos. Meu interesse pela obra de Rui Mourão data de longo tempo. Em 2004, para a coleção “Encontro com Escritores Mineiros” (COELHO, 2004), organizei o sexto número dedicado

Haydée Ribeiro Coelho

ao escritor. Na parte introdutória do livro, apresentei, de forma panorâmica seu universo ficcional, ensaístico e cultural. Além dessa seção, integram o livro um depoimento concedido a mim pelo escritor, uma bibliografia do autor, sobre o autor e, ainda, recortes críticos.

O escritor publicou dez romances, tendo inaugurado sua carreira de ficcionista com o livro As raízes, agraciado com o “Prêmio Cidade de Belo Horizonte (1955). A aproximação entre Quando os demônios descem o morro (2008) e Mergulho na região do espanto (2015), no que se relaciona à encenação da escritura e a autoficcionalidade, me leva a reportar ao texto que escrevi “A escritura de Rui Mourão em Mergulho na região do espanto” (COELHO, 2019). Nesse romance, o narrador se desvela como escritor e como tal se faz no decorrer da narração. Por meio dele, temos indicações que pertencem à biografia de Rui Mourão como seu vínculo com o Suplemento Literário do Minas Gerais e o conhecimento aprofundado da história da cidade de Ouro Preto, entre outros aspectos. Com base nas considerações críticas de Zilá Berndt 2 , fundamentadas em Anne Muxel (Individu et mémoire familiale, 2007), mostrei que o romance em questão religa as relações de afeto e de parentesco com a figura materna. Em Quando os demônios descem o morro (2008), a família cuida do escritor, de sua memória e de seus escritos.

Quando os demônios descem o morro e a busca de si

O romance apresenta um paratexto (“Apelo à compreensão e generosidade dos leitores”) que se constitui como carta assinada pela família de Rui Mourão e, ainda, vinte e um capítulos, sendo que o último é considerado pelo narrador como “ uma carta à humanidade”. No paratexto, os familiares explicavam que o livro tinha sido “impresso na Argentina” e “ter[ia] distribuição gratuita”

(MOURÃO, 2008 p. 11). A família buscava apresentar “os fatos dentro de uma cadeia lógica” (MOURÃO, 2008, p. 12) e também se colocava “a serviço do esclarecimento da verdade, com absoluta sinceridade de propósito, que é tudo que se deseja, pois daí é que há de surgir, não o perdão, que só interessa aos que se julgam culpados, mas a justiça” (MOURÃO, 2008, p. 12).

No Livro Primeiro, de Confissões, de Jean Jacques Rousseau, a verdade também aparece como um motor do livro, como se lê: “Vou empreender uma coisa sem exemplo, e cuja realização não será imitada. Quero mostrar aos escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite... meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu” (ROUSSEAU, 1988, p. 21). O diálogo entre as duas publicações tem como finalidade evocar o texto paradigmático sobre autobiografia e evidenciar que a busca de si também ocorre no romance brasileiro em destaque. O texto, redigido pela família, referido anteriormente, se justificava, pois o escritor Rui Mourão, diretor do Museu da Inconfidência, estava encarcerado na “Polícia Central de Belo Horizonte, em cela privativa, por ser bacharel em Direito” (MOURÃO, 2008, p. 12). No texto, que abre o romance, é revelado que houve em Ouro Preto “um verdadeiro auto-de-fé pagão” em que foram destruídos volumes de sua obra. Além desses aspectos, assinale-se que, nesse documento, era mostrado que “o prisioneiro gozava de plena saúde mental” e que o livro que ia ser lido tinha sido produzido “no interior de uma cela” (MOURÃO, 2008, p. 13). A família esperava por justiça, uma vez que segundo ela “A temporada de caça já passou, o que justifica as nossas esperanças” (MOURÃO, 2008, p. 12). No presídio, a escrita serve como refúgio ao autor de Boca de Chafariz. O personagem-escritor afirma que tem “esperança de conseguir esmiuçar, para o conhecimento geral, as razões que [lhe] trouxeram a esta prisão” (MOURÃO, 2008, p. 45). O romance de Rui Mourão, no entanto, vai muito além deste “esmiuçamento”. Nesse livro, narra seu percurso intelectual e literário. Na medida em que ele o faz, mostra seu caminho de leituras; evidencia seu sonho de se tornar escritor; destaca a publicação de seu primeiro artigo divulgado no jornal A Manhã , Rio de Janeiro, sobre Sagarana , de Guimarães Rosa, na coluna de Dinah Silveira de Queiroz; remete à revista Vocação da qual participaram, junto com ele, o poeta Affonso Ávila e o crítico literário Fábio Lucas; reporta-se à publicação de seu primeiro livro de ficção (As raízes, 1956) e suas repercussões críticas; refere-se a Curral dos Crucificados (1971) a Jardim Pagão (1979) e a outros romances, com intuito de revisitar as escolhas e os caminhos percorridos. Como exemplo, remeto aos comentários sobre Curral dos Crucificados 3 . Para a construção da narrativa, priorizou a linguagem tal como Guimarães Rosa, flagrando o “pesado corpo social [que] começava a deslocar-se do campo para a cidade” (MOURÃO, 2008, p. 48).

2 Refiro-me ao capítulo “Memória Cultural”, em que a ensaísta remete às funções da memória familiar segundo Anne Muxel, a saber: “função de transmissão”: “função de revivescência afetiva” e “função de reflexividade” (BERNDT, 2017, p. 249).

Ao apresentar, de forma narrativa, sua carreira como ficcionista, se posiciona frente aos andaimes de sua construção literária. Menciona a dramatização (p. 48); a montagem (p. 49) e questões relacionadas à perspectiva.

3 Este romance (1971) se passa em Belo Horizonte, nessa mesma época. A narrativa desenvolve dois focos, entrelaçados: um deles conta a estória de Jonas, um jornalista e intelectual; o outro, a estória dos migrantes nordestinos ou baianos, e de seu representante, o Baiano, reprimidos pela polícia unicamente por serem nordestinos. O romance denuncia o preconceito e a repressão que sofrem por serem diferentes. São vistos, a priori , como vagabundos e marginais e, por isso, também excluídos a priori . Os migrantes são todos os nordestinos, os pobres e os excluídos, de modo geral. Nesse sentido, justifica-se parte do título do romance: são todos os crucificados.

Haydée Ribeiro Coelho

A busca de temas, que retratam o país (p. 49), representou um redirecionamento de sua atividade criadora. À luz dos estudos contemporâneos, os conceitos de “arquivo” e de “repertório”, segundo Diana Taylor, contribuem com diferentes possibilidades para o entendimento de outras estratégias narrativas utilizadas por Rui Mourão. Nesse sentido, a noção de dramatização pode ser expandida pelo conceito de “repertório” que abarca “as performances, gestos, oralidade, movimento [...] canto, em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível. ” (TAYLOR, 2013, p. 49). No artigo

“A escritura de Rui Mourão em Mergulho na região do espanto”, vali-me das noções de “repertório” e de “arquivo”, para desenvolver um dos aspectos analíticos do romance de Rui Mourão.

Museu, literatura e arte

Em “Museu e literatura: fragmentos, cacos, restos, vestígios”, logo na introdução do seu texto, Mário Chagas afirma:

Museu e Literatura transitam pelo campo da memória, da criação, da imaginação, da coleção, e do patrimônio cultural. A experiência museal, especialmente no que se refere à comunicação, é uma forma de experiência poética. Se, por um lado, a experiência poética dos museus sensibiliza, provoca e convoca alguns criadores que, comovidos e movidos com a experiência, envolvem-se com a brotação de novas possibilidades poéticas; por outro, a produção simbólica de determinados criadores ou processadores estimula novas experiências museais (CHAGAS, 2011, p. 11).

Nessa direção, cita poetas e escritores que atestam o parentesco entre o museu, a coleção, o poema e outras formas de expressão literária. Em relação aos poetas brasileiros ressalta: Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Haroldo de Campos. Rui Mourão está certamente entre os escritores que se valem da experiência museal para construir Quando os demônios descem o morro. Vale lembrar que um fragmento do romance, antes de sua publicação em 2015, pode ser lido no Suplemento (2011) dedicado às relações entre literatura e museu, no qual se insere também o artigo de Mário Chagas a que me referi anteriormente.

Quando os demônios descem o morro apresenta uma reflexão sobre a literatura, o museu, a arte e a vida, conforme se observa em: “Na experiência remota descobrira que a instituição museu, como a literatura não passava de linguagem e, sendo linguagem, para sobreviver, precisava manter-se escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite... público” (MOURÃO, 2008, p. 94) e em outras citações: continuamente renovada, galgada à atualidade da visão de

Um museu é local onde a vida vai ser encontrada. Muitos diariamente ali a encontram. Mas é também espaço onde alguém se aventura a caminhar com a suposição de estar enxergando objetos e sendo produtivo, quando na verdade se encontra é extraviado, bem distanciado à margem do coração do mundo (MOURÃO, 2008, p. 63).

A evolução é o eterno presente se refazendo. A instituição [Museu], como qualquer outra similar, ao estudar e procurar preservar o passado, não podia desprezar a perspectiva da sua atualidade. Ela era o passado sendo observado por consciências que desejavam saber em que medida aquele passado contribuía para o entendimento do presente (MOURÃO, 2008, p. 81).

A respeito do Museu da Inconfidência, são narradas as condições em que ele encontrou o prédio, antes de tomar posse como diretor da instituição, há a indagação sobre sua finalidade e sua história e é debatida a reforma dirigida por ele. O escritor tira proveito dessa discussão. Introduz temas sobre o museu e a educação; museu e etnia; o museu, a cidade e seus habitantes. Expondo para o leitor/espectador as entranhas do Museu, focaliza-o como espaço polêmico. Ao rever posições, no sentido de atualizar o Museu, o Diretor acaba defendendo a transformação de Ouro Preto em cidade-museu. Esta mudança de paradigma traz impacto na linguagem do romance que capta como a cidade virou uma caricatura:

Confirmando o espírito de iniciativa de nossa gente, homens e mulheres determinadas apareceram com anúncios em jornais de Belo Horizonte e pela internet. Queriam encontrar em contato com antiquários, leiloeiros, viúvas de colecionadores. Não demorou, caminhões cuidadosos e aplicados, ronceiros a sustentar pausada marcha, ganhavam as estradas. Transportavam móveis, balcões de treliça desarticulados das janelas a que pertenceram, lustres de madeira pintada, ferragens enceradas para disfarçar ferrugem, imagens sacras, colunas esculpidas, quadros, peças de alfaia saídas de altares (MOURÃO, 2008, p. 203).

Cônscio de que essa experiência tinha sido um fracasso pelo seu caráter caricaturesco, o Diretor-personagem propõe discutir com o corpo técnico do Museu uma nova reforma que tinha como propósito “levar para dentro da rede mundial de informação a realidade ouro-pretana considerada em sua totalidade” (MOURÃO, 2008, p. 235). Essa transformação, porém, fazia parte de um “projeto que a ninguém fora apresentado, o museu-cidade resultaria

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de um esvaziamento do centro urbano em termos absolutos” (MOURÃO, 2008, p. 236).

Essa última proposta desencadeou uma onda de hostilidades contra o diretor, alcançando outras pessoas, além daquelas que participaram da reunião, realizada no Museu, para discutirem a nova reforma. 4 No plano aparente, as reações adversas, levadas ao extremo, suscitaram a destruição do museu pelo diretor, ação praticada com explosivos obtidos com o pessoal da mineração. Este ato de destruição do lugar de memória da Inconfidência Mineira tem outras implicações. Em “Olhar e memória”, José Moura Gonçalves Filho diz: “O movimento de uma lembrança vibra fora dos compassos rígidos e desvitalizados de um conceito permanente, de uma ideia eterna de um princípio abstrato: o ânimo que fomenta é gerado na espessura de uma experiência”. (GONÇALVES FILHO, 1988, p. 98). Segundo o crítico, essa experiência possui plasticidade; perceptibilidade e realizabilidade. Ao conceder plasticidade à lembrança, o escritor remete a imagens de fatos violentos que foram esquecidos na reflexão sobre a reforma do Museu:

O drama central da Inconfidência- o massacre de Tiradentes escolhido para vítima- não havia sido apresentado com força impactante numa arrumação do acervo que se pretendeu revolucionária. Indispensável pensar em termos mais ousados, se possível exasperantes. Será que a linguagem museológica não teria como fazer saltar para diante de nós a verdade do fato histórico, produzindo desnorteamento e revolta em quem a contemplasse? Que seria necessário apresentar? A cena que acontecera debaixo do sol e o seu seguimento de carnificina sobre uma mesa em espaço fechado? A revelação da fatalidade dos gestos automáticos do carrasco, forçado a praticá-los, sentindo-se tão oprimido quanto o condenado? (...) (MOURÃO, 2008, p. 151).

As remissões ao “desnorteamento” e à “revolta” implicam outras associações como a loucura, o museu, o delírio e o romance. O museólogo

Bruno Brulon, no texto “Pensar o pensamento museológico brasileiro: um olhar retrospecto para a Museologia”, afirma:

O museu, então, é um ato de pensar, ao fazer as coisas delirarem para que possamos pensar sobre elas. Transformá-las em nosso pensamento, num tipo de apropriação da realidade que é ao mesmo tempo poético e prático.

O museu materializa o pensamento na medida em que recria a realidade

4 No âmbito biográfico, veja-se o projeto de reformulação da exposição permanente do Museu da Inconfidência. Em seu texto, Rui Mourão afirma: “Organizado em 1944, com o objetivo de preservar a memória da Inconfidência Mineira, a instituição conserva, até hoje, a sua estrutura museográfica original”. (MOURÃO, 1999, p. 135) escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite... investindo-a de poesia-já diria Marilia Xavier Cury. Transforma o banal em coisa extraordinária, delirando e fazendo delirar (BRULON, 2018, p. 16).

O fragmento ressaltado acentua o delírio como forma de transformação. A experiência museológica motiva o espectador a reinventar, a criar, portanto, delirar. No romance, a explosão do museu suscita pensar na loucura do escritor que, por um ato de desrazão, pôs abaixo o patrimônio público de que foi guardião entre 1974 a 2017 e, a partir do qual escreveu Boca de Chafariz (1991) e gestou, ainda, os romances de 2008 e 2015.

Como entender essa insanidade? No paratexto de Quando os demônios descem o morro, como observei, a família atesta que o escritor gozava de “perfeita saúde mental”. O narrador alimenta essa ideia e a semeia de múltiplas formas e em espaços variados da cidade de Belo Horizonte. Além disso, valendo-se dos meios de comunicação, do Caderno Mais, da Folha de S. Paulo, assinala a manchete provocativa: “Loucura praticada em plena lucidez” (MOURÃO, 2008, p. 278). Se, por um lado, essa estratégia narrativa nutre o debate sobre a loucura e seus avessos; por outro, coloca em destaque “sistemas de vigilância [que] se difundem também e cada vez mais no corpo social, de modo a assumir uma função universalizadora”5 (MACHADO, 1993, p. 224).

Cristiane Asselin, ao fazer a resenha do livro La folie et la chose littéraire, de Shoshana Felman, evidencia que “A loucura da qual nos fala Felman, não é aquela que se fecha em si nem esta ‘alucinação das palavras’, mas sobretudo [é] uma resposta do homem à questão da palavra”6 (ASSELIN, 1986, p. 122). No livro de Rui Mourão, o delírio de Dom Quixote, personagem de Cervantes, encontra guarida. De modo ressignificado, impulsiona considerações sobre museu / autobiografia e autoficcção; lembrança da “carnificina” histórica em tempos diversos e pensamento sobre a busca da arte e de sua memória. Para estabelecer um elo entre os aspectos assinalados, tomo como referência os capítulos finais do romance. No penúltimo, a destruição do Museu por seu Diretor, narrada de forma visual e sonora, concede plasticidade ao ato desmesurado que provoca indignação da parte de vários segmentos sociais. Na seção final do romance, a partir da cela, é narrada a queima dos livros do escritor e prisioneiro. Trata-se da morte da palavra e, consequentemente, apagamento do sujeito. Este auto-de-fé traz a lembrança da Inquisição portuguesa (1536 a 1821) e da espetacularização da morte de Tiradentes.

5 O autor se refere “a era da eletrônica e da informática”. No entanto, considero possível fazer essa associação, tendo em vista o contexto do romance.

6 La folie dont nous parle Felman, ce n’est ni celle que l’on enferme ni cette” hallucination des mots”, mais plutôt une réponse de l’homme à la “question du mot”. (ASSELIN, 1986).

Haydée Ribeiro Coelho

Carla Maria Junho Anastasia, Carmem Silva Lemos e Letícia Julião, em estudo publicado em Oficina do Inconfidência: Revista de Trabalho, editada por Rui Mourão como diretor do Museu, baseando-se no estudo de Adalgisa Arantes Campos, ressaltam que “a morte cruel de Tiradentes, cercada, inclusive de pompa (...) e teatralização não constituiu fato excepcional no contexto do Barroco.” (ANASTASIA et al., 1999, p. 90). Citando “Execuções na colônia: a morte de Tiradentes e a cultura barroca”, as autoras transcrevem um trecho do qual recorto a seguinte menção: “O cadáver esquartejado se transformou no supremo adereço cênico, e, emblemático, foi o grande ícone do Barroco.”

(ANASTASIA et al., 1993 apud CAMPOS, 1999, p. 91).

Em Mergulho na região do espanto, o personagem Tiradentes retorna ao passado e indaga sobre o despedaçamento do seu corpo:

Até hoje não sei se aquelas remotas carnes e ossos acabaram enterrados ou foram devorados por animais, como não posso confirmar também a tradição de que minha cabeça teria sido roubada da gaiola em que ficou no alto de um poste na Praça da Cadeia em Vila Rica ou se ali ficou a dessorar, a murchar e a secar ao sabor da inconstância do clima, que é gelado quando faz questão de ser, que é verdadeira canícula quando não consegue se controlar (MOURÃO, 2015, p. 225).

No dia 21 de abril, na praça, onde está erguida e monumentalizada a memória de Tiradentes, depois da queima dos livros de Rui Mourão, no pronunciamento do presidente da República, a promessa de castigo é anunciada: “O ato insano nesta cidade praticado não ficará impune” (MOURÃO, 2008, p. 293). Assim, uma ação violenta contra o patrimônio público seria respondida à altura. A voz do Estado parece prevalecer no âmbito da história. No entanto, Rui Mourão contou sua narrativa e a família garantiu sua transmissão e colaborou com a “distribuição clandestina no Brasil” do livro que foi impresso na Argentina.

Depois da prisão do diretor do Museu, instaura-se o processo judicial, é colhido o depoimento do encarcerado que deseja falar, mas é impedido pela voz do delegado: escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite...

O que o senhor está pretendendo? Acha que temos o dia inteiro para ouvi-lo se gabar de suas aventuras?” Encarei-o desconcertado: “O senhor não me pediu eu lhe contasse toda a verdade?” Disse o delegado: “A verdade eu já tenho. Ela foi reduzida a termo que o senhor deverá assinar (MOURÃO, 2008, p. 280).

A prisão e o auto de fé realizado com os livros de Rui Mourão não visam a reproduzir o caminho de Tiradentes, seu martírio e de outras vítimas das ditaduras tão longe e tão perto de nós, mas trazem a memória da violência. O personagem Rui assume ser outro, de forma lúcida. Ao passar pela prisão, pelo escárnio, pelo desprezo pode narrar e, como escritor, além de buscar a origem da arte e de seu extravio, é possível situar-se no mundo. O conhecimento sobre a história da Inconfidência e seus meandros, o manejo dos arquivos (Autos de Devassa da Inconfidência) ligados ao momento histórico enfocado; o exercício da escrita dos romances; a reflexão crítica sobre ela, a seleção e combinação de diferentes estratégias narrativas culminaram no romance-museu; romance-ensaio; romance testemunho, aspecto a ser abordado mais adiante. Revendo seu percurso literário, verifica-se que reiterou sua busca incessante pela renovação da linguagem, sem abandonar os temas sociais, históricos e políticos como já vinha realizando em sua travessia intelectual que inclui, além da produção literária evocada neste estudo, livros de ensaio sobre literatura (Estruturas: ensaio sobre o romance de Graciliano Ramos, 1969); livros sobre museu (Museu da Inconfidência em colaboração com Francisco Iglesias, 1984 e A nova realidade do Museu, 1994) e, ainda, O alemão que descobriu a América (1990), estudo sobre música. Um aspecto de fundamental importância em Quando os demônios descem o morro diz respeito aos vários sentidos de esquartejamento que nele aparecem. Estão associados ao “massacre de Tiradentes”; à exposição da biografia intelectual do escritor, distribuída ao longo do livro e às propostas de reforma do Museu, encenadas pela linguagem do romance. No âmbito da literatura, foi igualmente necessário esquartejar “o mundo por meio de ideias e percepções” (MOURÃO, 2008, p. 288). Ainda, sobre o processo criativo, argumenta o narrador:

(...) as palavras são os instrumentos brutos com os quais nos debatemos. Elas têm que ser desidratadas, polidas, moldadas, postas entre si em contato para efeito energético, até se converterem em objetos realmente úteis. São os nossos olhos de ver. Lentes de telescópio, com elas nos lançamos para dentro do universo, nesse ou naquele sentido, tentando devassar o mistério que nos cerca, tentando chegar ao entendimento do que somos (MOURÃO, 2008, p. 288).

Para que surgisse o romance, foi necessário implodir o museu e esquartejar a própria biografia. Utilizo o termo esquartejar não na acepção

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de cortar em pedaços, mas de difamar. Rui Mourão incendiou sua imagem, para se reencontrar. Transformou-se em testemunha da violência do Estado. Em relação ao sentido de testemunha, Jeanne Marie Gagnebin explicita:

Testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor do Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2006, p. 57).

Com base nas considerações de Jeanne Marie Gagnebin, pode-se dizer que “a retomada reflexiva” sobre o museu, por meio de sua destruição simbólica, recupera o sentido político da morte de Tiradentes, projetando-o para o presente / futuro, com a finalidade de combater regimes ditatoriais e autoritários. O escritor, ao ter vivenciado a “temporada da caça às bruxas” (MOURÃO, 2008, p. 12), com a promessa de uma punição exemplar, faz com que o leitor, mirando-se em um destino singular, esquarteje, de forma crítica, a história coletiva a que pertence.

Conclusão

Com a publicação de Quando os demônios descem o morro, Rui Mourão reafirma uma de suas genealogias escriturárias, associada aos temas históricos sobre a Inconfidência mineira e sobre o ciclo do ouro. Além disso, demonstrou que a literatura e o museu são espaços de experimentação. A palavra pode destruir completamente a materialidade dos monumentos e expor uma situação no limite. Como renovar o museu, sem queimá-lo e destruí-lo? Rui Mourão, ao resgatar parte de sua biografia, vivenciada no museu, guarda a memória de si e parte da história do Museu da Inconfidência, por isso o romance constitui um arquivo de memórias. Os demônios, ao descerem o morro, reacendem discussões de várias ordens: memória, autobiografia, autoficção e museu; o museu como invenção e gerador de pensamento sobre a literatura e seus precursores; lugares de memória e desmemória; museu e etnia, museu e educação; museu e a política e museu e os excluídos. Enfim, uma gama enorme de relações a ser explorada em outros tempos.

Filiações escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite...

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Haydée Ribeiro Coelho

ROUSSEAU, Jean Jacques. Livro Primeiro. In: ROUSSEAU, Jean Jacques. Confissões. Trad. Fernando Lopes Graça. Lisboa: Relógio d’Água, 1988.

TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 45-90.

A proposta deste capítulo recai sobre a leitura crítica do conto “La Corriveau”, inserido na coletânea intitulada Cages, da escritora quebequense Claude-Emmanuelle Yance. O estudo do conto busca ressaltar sua estrutura narrativa na medida em que se insere na linha reflexiva da transmissão intergeracional e da transferência de uma memória cultural presentificada e perpetuada no perfil da personagem principal – uma mulher contemporânea que carrega o estigma da lendária Corriveau em sua vida familiar. Partindo de leituras teóricas, direcionadas pelo estudo de Zilá Bernd (2018), este artigo estuda as possíveis transformações na transmissão de um legado do estigma feminino.

Kelley Baptista Duarte

Nas considerações sobre memória cultural e memória coletiva, na literatura contemporânea, deparamo-nos com diferentes processos de apropriação do passado e de transmissão geracional. Na forma mais clássica da narrativa comprometida com esse passado e com a micro história de uma determinada comunidade, de um coletivo, encontramos produções em primeira pessoa, no perfil autobiográfico e autoficcional. Zilá Bernd (2018) quando recupera o estudo teórico de Régine Robin e Dominique Viart sobre, respectivamente, o romance memorial (ou familiar) e o romance de filiação (ou parental) destaca o vestígio como fio condutor dessa escrita que objetiva resumidamente: a) render tributo aos pais e avós, salientando o quanto o narrador herdou de seus ancestrais, estabelecendo um continuum familiar; b) tornar-se um lugar de afrontamento e de acerto de contas com os antepassados, podendo resultar em ruptura com a família ou em reconciliação após o confronto (BERND, p. 24-25).

Partindo dessa premissa, proponho desenvolver uma leitura mais alargada e abrangente desse vínculo de memória geracional, voltada às afiliações simbólicas – cuja narrativa, também construída em torno do vestígio, ganha uma proporção ficcional que ultrapassa o modelo de escrita autobiográfica ou autoficcional. Sendo assim e em torno desse objetivo, construo minha proposta tendo como exemplo de narrativa de afiliação, ou seja, sem vínculos parentais, de parentesco ou biológico, mas produtivamente elaborada na relação de identificação e de reconhecimento, o conto “La Corriveau” da escritora quebequense Claude-Emmanuelle Yance (1941–).

Antes de iniciar as apresentações necessárias do conto, é preciso situar seu contexto genealógico (não biológico) e geracional. Corriveau, nome que dá título ao conto, faz menção à personagem histórica de Marie-Joseph Corriveau. Esse é o traço memorial, o vestígio que alimenta a narrativa ficcional de C-E Yance.

Duas perguntas são formuladas para conduzir essa contextualização: quem foi Corriveau? O que ela representa para a comunidade quebequense?

Da mesma forma, tais questionamentos estão na base argumentativa desse artigo que se constroi em defesa do processo de escrita de C-E Yance enquanto escrita de afiliação comprometida com seu passado.

Corriveau e a memória cultural do Quebec

Os registros oficiais sobre a existência de Marie-Joseph Corriveau apontam para seu nascimento em 1733, nas proximidades da atual cidade do Quebec, em Saint-Vallier. Ela, então, teria seguido o destino de toda mulher de seu tempo: em 1749, aos dezesseis anos, ela casa com um agricultor local – Charles Bouchard. Em 1760, ano historicamente demarcado pela ocupação da colônia francesa pelos ingleses, Corriveau fica viúva. Nesse momento de ameaça territorial e identitária, uma das estratégias de permanência e resistência da pequena comunidade francófona foi expandir demograficamente. Por isso, Corriveau se casa novamente no mesmo ano da perda de seu primeiro marido. Três anos após o casamento, em 1763, seu segundo marido, Louis Dodier, é encontrado morto, no estábulo da casa, com golpes na cabeça. A morte, apontada por causas homicidas, apresentou dois culpados: Marie-Joseph Corriveau e seu pai, Joseph Corriveau.

A História oficial desse crime, na época sem registros escrito em língua francesa, se perpetua através da oralidade, dando destaque a detalhes pontuais e peculiares de um homicídio investigado e julgado pelos ingleses.

Considerada culpada, Corriveau foi condenada à forca pela corte marcial inglesa, juntamente de seu pai. Ela, no entanto, recebeu uma dupla punição –certamente por ser a “mulher” que mata o marido. Após sua execução, em 18 de abril de 1763, seu corpo foi exposto em via pública, de grande circulação, em uma gaiola de ferro suspensa. O requinte de crueldade só pode ser entendido a partir de uma hipótese: “educar” possíveis mulheres transgressoras, visto que seu pai, também condenado à forca, não teve o mesmo destino.

A professora e pesquisadora quebequense Nicole Guilbaut (1995) é pioneira na organização de uma antologia que recupera a história protagonizada por Marie-Joseph Corriveau. A antologia reúne documentos da história oficial e do julgamento (em língua inglesa) e as lendas de um fato histórico que só sobreviveu ao tempo pela transmissão oral. Foi assim que Corriveau se tornou, no contexto do Quebec, figura lendária com variantes de uma narrativa oral que perpetuou por gerações até integrar os primeiros registros literários que caracterizam os traços identitários dessa comunidade francófona na América do norte.

Outra professora quebequense, Sylvie Dion (2005), pesquisadora e docente da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), estuda a persistência da lenda da Corriveau a partir de uma tradição oral que se transforma pela memória coletiva. Para S. Dion, “a oralidade é, por definição, mais flexível que a escrita, e o acontecimento, uma vez reinterpretado, transmitido, retransmitido,

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