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Braconagem e culto à memória ancestral
Vários pesquisadores já se detiveram na análise da figura do braconnier ou caçador furtivo, como Simon Harel e Nubia Hanciau. Comecemos então por recordar de que modo esses pesquisadores abordaram tal figura . Em artigo para a Revista Interfaces Brasil-Canadá, de 2005, o teórico quebequense Simon Harel vê na braconagem um novo modo de apropriação do lugar. Evoca Michel de Certeau ao associar esta figura com estratégias de resistência e sobrevivência. Segundo Harel, a braconagem é uma “atividade ao mesmo tempo ilícita e contingente; é uma invasão, um transbordamento, uma camuflagem que permite a um sujeito de se imiscuir, sujeitando-se aos perigos, no território do outro (proprietário de terra, território nacional, propriedade intelectual)”
(HAREL, 2005, p. 211). Segundo o autor, a braconagem permite reavaliar as relações entre as culturas, apoiando relações interculturais como camuflagem e/ou resistência. Destaca que as formas de poder são fixas, enquanto a subversão é móvel e a hibridação é plural (2005, p. 213).
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Os autores migrantes, ao chegarem ao país de acolhida, irão passar por um processo de desterritorialização, que corresponde a perdas de elementos culturais de origem, assim como ao sentimento de insegurança em relação à pertença a um lugar. A braconagem pode ter início nesse momento quando as incursões ao território do outro começam a se fazer mais frequentes. Apropriarse de elementos culturais do país de chegada passa a ser praticado de modo sub-reptício: “ao mesmo tempo ardiloso e tático, o sujeito que caça tenta se fazer invisível, pois a operação é perigosa e arriscada” (HAREL, 2005, p. 221).
Pode-se dizer desse modo que a braconagem corresponde a uma forma de reterritorialização: pela apropriação de elementos culturais do novo contexto, tem início o processo de devoração da cultura do outro que poderá dar origem à formação de objetos culturais híbridos.
Nubia Hanciau, em capítulo intitulado Braconagens (2010, p. 47-65), inicia destacando o estudo seminal de Michel de Certeau que, em A invenção do cotidiano; 1. As artes de fazer (editora Vozes 1994), associa “as artes de fazer” às astúcias dos que praticam a caça em espaços e tempos interditos. Tanto Michel de Certeau, quanto Simon Harel e Nubia Hanciau, convergem no sentido de que a braconagem, embora conotada negativamente, corresponde a “estratégias de resistência ou de sobrevivência empregadas pelo sujeito (tanto individual quanto coletivo) em seu meio” (2010, p. 49).
Na verdade, a prática constante das braconagens realizadas no contexto do Quebec por escritores oriundos de diferentes países, constitui-se através de passagens transculturais já que a aproximação de duas ou mais culturas dá origem, como sabemos, à criação de objetos culturais novos. Quando lemos a obra de autores chegados ao Quebec provenientes de países como o Haiti, o Vietnã, a França ou a China, entre tantos outros, por exemplo, já não estamos mais diante da cultura de origem do escritor, mas de escrituras transculturadas em função da apropriação de elementos culturais do país de acolhida desses imigrantes. A caça furtiva de referências fornecidas pelo novo contexto, que vão desde a paisagem, do próprio fato de assumirem a língua do outro (a língua francesa como língua da escritura), para além da música, da história e do contato interpessoal, dão origem ao que Simon Harel chama de escrita palimpsesto1, oriunda da mobilidade constante, já que esses escritores escrevem num entrelugar, num espaço intersticial entre o território cultural de origem e o de chegada.
As obras produzidas no âmbito do que Pierre Ouellet chama de “esprit migrateur” (espírito migrante), que inclui também o nomadismo intelectual, ou seja, aqueles escritores que, embora não sejam imigrantes, possuem o espírito migrante, são hoje reconhecidamente as que atraem o maior número de leitores dentro e fora do Quebec, pois que elas problematizam as trocas interculturais, situando-se em um espaço intervalar.
É nossa proposta apontar, no âmbito do presente artigo, alguns exemplos da literatura contemporânea do Quebec em que fica evidente a prática da braconagem como forma de apropriação – pelos escritores vindos de outras geografias – do novo lugar de ancoragem: o Quebec. Paralelamente tais autores voltam-se para suas culturas de origem na tentativa evidente de preservação da memória ancestral. As autoras que analisamos praticam essa dupla forma de construção identitária no país de acolhida: apropriar-se dos novos elementos culturais do país de ancoragem e rememorar a cultura de seus ascendentes como Régine Robin e Kim Thúy que se apropriam do diverso para torná-lo seu, para melhor entender a diferença do outro, para diminuir a distância entre si e o outro e para estabelecer a relação, seguindo o caminho traçado por Édouard Glissant.
Tais autores, para além da apropriação do novo e do diverso no país de chegada, desenvolvem – em várias de suas obras – um minucioso trabalho de memória geracional, descrevendo em detalhes fatos de suas vidas antes da emigração, destacando sobretudo os vestígios memoriais da relação com seus pais e avós. É como se fosse ao mesmo tempo importante lançar âncora no novo território geográfico e cultural, sem deixar que se apaguem as memórias relativas a seus ancestrais e às condições de vida antes da travessia em direção às Américas. Nas obras das escritoras Kim Thúy, do Vietnã, e de Régine Robin, da França, o culto à memória geracional adquire grande relevância. Acessam fragmentos memoriais, muitas vezes “por tabela”, ou seja, por intermédio de relatos de seus familiares já que eram jovens quando emigraram.
Autoras quebequenses contemporâneas: entre o caçador furtivo e o memorialista transgeracional
Kim Thúy
Nascida em 1968 em Saigon, Vietnã, Kim Thúy, que é hoje escritora laureada e traduzida em várias línguas, chega ao Canadá com a idade de 10 anos, juntamente com demais imigrantes vietnamitas fugitivos do regime comunista e da guerra, tendo viajado nos boat people, cujas precaríssimas condições serão descritas em suas principais obras como Ru (2009), Mãn (2013), Vi (2016) e Em (2020). Em francês Ru significa “pequena fonte” e em vietnamita, remete a “embalar”, “ninar”. Podemos remeter aqui à frase em epígrafe de Hannah Arendt: “As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se as narramos ou fizermos delas uma história”, já que os romances de Kim Thúy são narrativas de dor, sofrimento e exílio em condições as mais precárias possíveis e narrá-las contribuiu certamente para melhor suportá-las.
A saída nos porões dos navios que levavam refugiados se dava nas condições as mais arriscadas e duvidosas possíveis em matéria de higiene, e alojamento, com as famílias deixando para trás suas posses, seus pertences, suas moradias e seus familiares, sabendo que estavam partindo para nunca mais voltar.
Se muitas das obras da assim chamada literatura migrante, caracterizamse, como vimos, pela narrativa das dificuldades de inserção no novo contexto e as tentativas de apropriação do lugar, a literatura de Kim Thúy inscreve-se como pós-memória, ou seja, emerge da necessidade de lembrar o que seus antepassados silenciaram: com a partida para o exílio, o trauma da guerra faz com que os mais velhos silenciem. Anos mais tarde, Kim Thúy, movida pelo temor da perda de suas referências fundamentais como língua, culinária, histórias de vida, laços familiares, assume a função de narradora da tragédia dos últimos anos no Vietnã do sul sob o ataque do Vietnã do norte e dos norteamericanos. A autora assume a narração de histórias que se passaram antes da diáspora, das quais ela pouco lembra já que tinha apenas 10 anos de idade. A partir de relatos dos ancestrais e de pesquisas da história do verdadeiro holocausto que foi a guerra do Vietnã ou Guerra Americana, transcorrida entre 1955 e 1975, envolvendo Vietnã, Laos e Camboja, a autora recolhe os restos memoriais, fragmentos de passagens narradas por sua família para imortalizá-los através de uma prosa cativante e delicada. Os países envolvidos foram duramente bombardeados e a população vitimada por armas químicas que destruíram as plantações, provocando a fome generalizada. Além de presenciar o assassinato de civis, incluindo crianças, a população foi expulsa de suas propriedades e espoliada de seus bens. A autora assume o dever de memória de retraçar a memória cultural de sua família no Vietnã, na medida em que seu nascimento “a eu pour mission de remplacer les vies perdues. Ma vie avait le devoir de continuer celle de ma mère” (THUY, 2009, p. 11) 2 . Vale lembrar aqui as palavras de Régine Robin que reconhece igualmente o dever de memória, retraçando, através da escrita, histórias familiares, sobretudo no que tange o sensível e o simbólico que podemos chamar de memória cultural, incluindo tudo aquilo que não vai estar nos livros de história oficial como refere Kim Thúy em uma de suas obras. Escrever torna-se, portanto, para ambas as autoras, o espaço para reunir os restos, reconstituir o que a guerra tratou de fragmentar:
Eu compreendi bem mais tarde que tudo saía da guerra, estando a guerra inscrita como tema ou não. Na verdade, em raras exceções, eu não escrevo sobre a guerra, mas com a guerra. Em minha escrita de ficção, recorro às formas da colagem, da montagem, da assemblage, a tudo que abala as temporalidades. Eu falo de um passado insuficiente de significação, de uma história que perdeu sua sombra e que não pode dizer mais nada. Nem romance, nem grande narrativa, eu escrevo no espaço da fratura e da coleta dos pedaços, dos estilhaços, dos fragmentos e dos rastros (ROBIN, 2003, p. 15) 3
Nessa medida, podemos afirmar que Kim Thúy também escreve com a guerra e não sobre a guerra. Sendo seu objetivo principal o de rastrear o passado para ressignificá-lo no presente, assumindo-se como herdeira da capacidade de resistência e de resiliência de seus antepassados. Assim a narradora recolhe como um dom as vivências de seus pais e avós o que lhe permitirá transmitir esse legado a seus dois filhos, sendo que um deles não terá acesso a essa herança por ser autista, fato que Kim Thúy faz questão de não esconder. Ru constrói-se igualmente como homenagem às mulheres que carregaram o peso “da história inaudível do Vietnã nas costas”, enquanto seus maridos lutavam na guerra, elas permaneciam como únicas responsáveis pela nutrição dos filhos. A única riqueza que têm para legar aos filhos “é a riqueza de sua memória” (2009, p. 49) 4 .
2 Meu nascimento teve por missão repor as vidas perdidas. Minha vida tinha o dever de continuar a de minha mãe.
3 J’ai compris bien plus tard que tout sortait de la guerre, que la guerre fût inscrite comme thème ou non. En fait, sauf exception, je n’écris pas sur la guerre, mais avec la guerre. Dans mon écriture de fiction, j’ai recours aux formes du collage, du montage, de l’assemblage, à tout ce qui permet de faire grincer les temporalités. Je parle d’un passé en mal de signification, d’une histoire qui a perdu son ombre et ne peut plus rien dire. Ni roman, ni grand récit, j’écris sur fond de cassure et collecte des bribes, des éclats, des fragments et des traces.
Adina Balint em seu recente livro sobre Imaginaires et représentations de la mobilité (2020) aborda dois temas capitais que nem sempre vemos destacados nas obras de autores que vêm tratando da problemática das Mobilidades: ancoragem e volta (ancrage et retour). A questão da ancoragem, do enraizamento, é enfatizada pela narradora que confessa ter cedido ao “rêve américain”, como parte de seu processo de enraizamento no Canadá. Sonhar o sonho americano ao mesmo tempo em que deu segurança à voz de Thúy e determinação a seus gestos, tirou “sua fragilidade, suas incertezas e seus medos” (2009, p. 84), o que foi percebido por um subalterno que a narradora encontrou em uma viagem de volta a Saigon: ele percebeu que ela não tinha mais o direito de declarar-se vietnamita.
A questão do enraizamento seguido da obsessão identitária ao novo território, se era recorrente na literatura migrante de alguns anos atrás, está sendo paulatinamente substituída pelo sentimento que Michel Maffesoli chama de enraizamento dinâmico que corresponde ao desejo de vinculação aos imaginários da mobilidade transcultural e aos encontros cosmopolitas, visando ao que Pierre Ouellet denomina “coexistência sensível”5 , noção que tem relação com seu conceito de “comunidades de memória” o qual repousa sobre o argumento de que a memória das comunidades recém chegadas, como a dos imigrantes, faz parte hoje da memória coletiva que o autor prefere chamar de “comunidades de memória”. Nota-se, na obra de Kim Thúy, a interpenetração cultural e linguística em substituição às obsessões identitárias a um território, apontando para a fragilidade das ancoragens referenciais (regionais, nacionais e transnacionais), o que lhe permite perceber que “O vermelho profundo de uma folha de bordo não é mais uma cor, mas uma graça; o país não é mais um lugar, mas uma canção de ninar” (2009, p. 138) 6 . Essa citação remete à sua integração não apenas a uma nação, chamada Quebec, ou a um país chamado Canadá, mas a uma comunidade de memórias. Quanto ao “retour” ou desejo de volta ao país natal, lembramos que em Ru, Kim Thúy relata sua experiência
4 c’est la richesse de leur mémoire.
5 Ver a esse respeito: Entretien avec Pierre Ouellet. Entrevista realizada por Ana Maria Lisboa de Mello, Marie Hélène Paret Passos e Zilá Bernd para a revista Letras de Hoje da PUC RS, v. 50, n. 2, 2015. <https://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/21342/13256> de “retour” pelo período de 3 anos ao Vietnã quando aceita uma alocação em Hanói, como parte de sua atividade profissional. Esse longo período no “país natal” vai servir de estímulo para que a autora volte no tempo em que sua família residia no Vietnã, podendo constatar fatos que não mudaram desde o período anterior à guerra: a invisibilidade e a inaudibilidade das histórias de vida das mulheres de seus país de origem. A volta ao país natal remete ao famoso poema fundador da Negritude, do poeta martinicano Aimé Césaire: Cahier d’un retour au pays natal. O que significa essa volta? à Martinica, já que ele estava em Paris quando escreveu o poema; à África, para melhor conhecer seu legado cultural; ou ao interior de si mesmo uma vez que em Paris, sendo vítima de racismo, se sente em crise com relação a sua pertença identitária? A pergunta que formulamos em referência do poema de Césaire é válida também para o retorno de Kim Thúy ao Vietnã: é nossa hipótese de que seu retorno por três anos corresponde ao desejo de se confrontar com o país real depois de tê-lo reinventado em seus livros a partir dos fragmentos memoriais que lhe foram transmitidos por seus ancestrais.
6 le rouge profond d’une feuille d’érable à l’automne n’est plus une couleur, mais une grâce; qu’un pays n’est plus un lieu, mais une berceuse.
Régine Robin
Um último exemplo que gostaria de apresentar de escritas da mobilidade, situada entre a braconagem e o trabalho de preservação e transmissão da memória familiar, ou seja, da memória dos antepassados que não “fizeram a América”, é o da escritora e ensaísta Régine Robin, de origem judaica, que chega a Montreal proveniente da França depois que seus pais fugiram das perseguições nazistas na Polônia. Nascida em 1939, faz seus estudos em Paris e é acolhida em 1982 como professora na UQAM (Université du Québec à Montréal). É autora de enorme produtividade incluindo romances, contos e obras teóricas na área da história, da crítica literária e da análise do discurso. Uma de suas obras teóricas mais conhecidas e que foi traduzida para o português, pela editora da Unicamp, é A Memória saturada (2016). Entre suas obras ficcionais, a que fez mais sucesso devido a sua originalidade, foi La Québécoite, escrita em 1983, portanto logo após sua chegada ao Quebec. Trata-se de um livro muito curioso que inclui listas de nomes de estações de metrô de Montreal, seus principais restaurantes, nomes de grandes lojas e até de bancos, colagens de anúncios e de escalações de partidas de hockey, logo, tudo que é típico daquela cidade e diferente para ela que vinha de Paris. A originalidade do livro está, em grande parte, no fato dele revelar o fascínio da escritora pela magia dos nomes próprios, sua ânsia em fazer parte dessa comunidade na qual acaba de chegar. Sua estratégia, para apropriar-se dessa grande metrópole, onde viverá por muitas décadas, é a de memorizar cada detalhe: de menus de restaurantes aos nomes de bairros, ruas, praças e estações de metrô. Como sabemos, o patronímico de Quebec é “québécois/e” (quebequense). O título “québécoite” é evidentemente um neologismo que remete à impossibilidade para ela de tornar-se québécoise:
“Nunca nos tornamos verdadeiramente quebequenses” (1993, p. 37)7 .
É interessante notar que, paralelamente ao esforço de nomear e decorar os nomes de cada lugar, a narradora volta à Europa, tanto para falar de seu passado recente, anterior à sua vinda para a América, quanto rememorar a sua incontornável Kaluszyn, pequena cidade na Polônia, com população predominantemente judaica. Kaluszyn era a cidade de origem de seus pais e avós e, em várias de suas obras, sobretudo em Le cheval blanc de Lénine ou l’Histoire autre (1979), narra a perseguição nazista contra a população dessa pequena comunidade. Em vários de seus escritos, explica que, voltar às memórias de Kaluszyn, é voltar à história de uma reapropriação, uma reapropriação de si mesma, pelo fato dela ter passado longo período de sua vida sem evocar tais lembranças de seus antepassados. A autora lembra que, quando seus pais emigraram para a França, todos os seus esforços foram os de assimilar o mais profundamente possível a língua francesa, sua história e seus costumes, pois naquele período pós guerra, a alternativa que se colocava aos judeus era ou afirmar-se judeu e partir para Israel ou esquecer sua judeidade e assimilar a identidade francesa. Foi sua escolha até o momento em que se torna escritora e parte em busca do iídiche e das lembranças familiares. Por isso, decorar o nome das estações de metrô de Montreal e rememorar Kaluszyn se sucedem em La Québécoite, evidenciando que, no momento de realizar sua imersão nesse novo contexto, torna-se urgente agenciar igualmente os elementos da herança memorial, realizando a transmissão “geradora de sentido” de que fala Paul Ricoeur, relembrando que a tradição pode deixar de ser um depósito inerte para ser uma troca “entre passado interpretado e presente interpretante” (RICOEUR, 1985, p. 320). Acessando sua memória geracional enquanto decora a ordem das estações de metrô, que precisa percorrer de sua casa até a universidade, percebe sua “incontournable étrangété” (1989, p. 54):
Que angústia em certas tardes – quebecidade, quebecitude – eu sou outra. Não pertenço a esse Nós tão frequentemente utilizado aqui – Nós outros – Vós outros. (ROBIN, 1989, p. 54) 8
7 On ne devient jamais vraiment québécois.
8 Quelle angoisse certains après-midi – Québécité, québécitude – je suis autre. Je n’appartiens pas à ce Nous si fréquemment utilisé ici – Nous autres – Vous autres .
Atravessada pelo que ela chama de “fala imigrante”, pela voz do longínquo, pela “voz dos mortos”, sente-se em um entrelugar: entre duas cidades (Paris e Montreal), entre duas línguas (embora o francês seja a língua oficial do Quebec, as sonoridades são outras, assim como muitas expressões).
O que será preciso para deixar de sentir-se “outra”? é preciso “mudar de pele, de língua, de comida, de época, de sexo, de nome” (1989, p. 63).
Como uma verdadeira braconnière, ela se transforma em uma caçadora de palavras, de marcas de produtos, para poder penetrar no estranhamento do cotidiano onde ela se sente ainda em exílio em sua própria língua que não é nem a mesma nem outra... Belíssimo relato de amor e de ódio, lutando contra o inquietante estranhamento da província do Quebec onde ela faz uma profícua carreira de docente, intelectual e feminista, sem nunca perder o que ela chama de “amor pelas cidades” que irá levá-la a escrever inúmeros livros sobre grandes metrópoles como Nova York, Los Angeles, Tóquio, Buenos Aires, Londres, em livros como Mégapolis, les derniers pas du flâneur (Stock, 2009).
Seguindo as trilhas de Walter Benjamin, persegue o sentido atual do flâneur, argumentando que ele não despareceu na atualidade, mas vem se transformando. Novo nômade, o flâneur continua a se perder nas cidades, afirma Régine Robin, evidenciando que seu amor ela mobilidade, pela alteridade, não diminuiu com o tempo, mas se aguçou:
Os passantes, os artistas e os escritores, acompanhados das sombras dos moradores de rua, construíram dispositivos complexos para reinventar a deambulação, a travessia das megalópolis, para transformar nosso olhar, nossa relação com a cidade, colocar armadilhas em nossos hábitos, nossos horários, nossos percursos obrigatórios, para fazer com que possamos simplesmente aí encontrar um lugar sem nele nos instalarmos (ROBIN, 2009, p. 89) 9
Conclusões móveis.... Escrever entremundos
Após esse percurso, chegado o momento do fechamento (mesmo inconcluso) de nossas reflexões, valho-me do pensamento de Ottmar Ette sobre as “literaturas sem morada fixa” ou sobre o que significa “escrever entremundos”. Sua proposta de leitura de “uma poética do movimento”, adéqua-se perfeitamente à produção das duas escritoras sobre as quais acabamos de discorrer, já que julgamos ter ficado evidente que, embora tendo migrado para o Quebec, ambas escrevem “entremundos”: o país de acolhida e o país natal, território de seus ancestrais. Segundo Ette,
9 Les passants, les artistes et les écrivains, accompagnés de l’ombre de sans-abri, ont mis au point des dispositifs complexes pour réinventer la déambulation, la traversée des mégapoles, pour transformer notre regard, notre rapport à la ville, pour piéger nos habitudes, nos horaires, nos parcours obligés, pour faire que nous puissions simplement y trouver une place sans nous y installer.
(...) as literaturas sem morada fixa que devem ser compreendidas como plurais – como ainda deverá ser evidenciado – perpassam e cruzam a oposição entre literatura nacional e mundial, sem terem de se submeter a sua lógica excludente e exclusiva – no sentido de um campo literário nacional (2018, p. 16).
Em sua argumentação, Ette afirma que as chamadas literaturas “sem morada fixa”, problematizando concepções homogeneizadoras de literatura mundial, não devem ser, contudo, entendidas como literaturas “sem limites”. Sua argumentação gira em torno do olhar transversal que as literaturas “sem morada fixa” lançam sobre seus temas de predileção, movimentando-se entre universos distintos, dando origem ao surgimento, não de uma nova cartografia do literário, mas de “novos padrões de movimento transareais10 , translinguais e transculturais que ultrapassam a distinção entre literatura nacional e mundial” (2018, p. 17).
A leitura dos dois romances escolhidos: Ru, de Kim Thúy, e La Québécoite, de Régine Robin, demandam assumir uma perspectiva transcultural, transtemporal e translingual, como sugere Ottmar Ette na análise das “literaturas sem morada fixa”, já que suas autoras viajam entre culturas muito distintas: a norte americana (Canadá e Quebec), que entra em interlocução com a vietnamita e com a judaica, dominando línguas distintas (vietnamita e íidiche), navegando em diferentes temporalidades já que voltam no tempo para a abordagem transgeracional.
O mito de Jasão
Em artigo de 1995, o escritor quebequense de origem brasileira, Sergio Kokis, aborda dois grandes mitos universais de viajantes: Ulisses e Jasão. Enquanto o primeiro sonha continuamente com a volta, onde o espera sua esposa Penélope, o segundo é de natureza propensa à vagabundagem, à aventura e à errância. Enquanto Ulisses sonha com a volta a Ítaca, onde sua mulher e seu reino o esperam, Jasão representa o desenraizamento por excelência: sua busca pelo velocino de ouro, móvel inicial da viagem, não parece ser alvo de grande preocupação já que no caminho funda cidades e gera descendência, dando a impressão de que só a viagem de ida conta para os Argonautas. Kokis argumenta que esses dois mitos representam dois tipos de viajantes ou de imigrantes que o escritor encontrou em sua chegada, na condição de imigrante no Quebec: os que só pensam em voltar ao país natal (como Ulisses) e outros que (como Jasão) encaram sua condição de imigrantes mais como aventura do que como exílio. Ele se considera fazendo parte deste segundo grupo:
10 O autor define os movimentos “transareais” como aqueles que se situam em diferentes áreas, por exemplo o Caribe e o leste Europeu, enquanto os movimentos transcontinentais situam-se entre diferentes continentes, como Ásia, África ou América. (2018, p. 24).
Acredito já ser tempo para nossos poetas, a exemplo de Vallejo, que cessem de cantar somente Ulisses, e que reconheçam e celebrem também os charmes de Jasão. É o que meu longo exílio me levou a confessar a mim mesmo… (1994, p. 148)11
À luz dessas bem humoradas páginas de Sergio Kokis, nos inclinamos a ver nas autoras estudadas no presente artigo a reedição do mito de Jasão, deixando de lado o registro do apego e da nostalgia, para apostar na fertilidade das trocas; sem preocupação com o retorno, mas dando importância ao encontro do lugar de ancoragem. As duas autoras, cada uma na sua perspectiva, transformam a narrativa no seu lugar habitado. Como esclarece Aleida Assmann, em seu belo livro Espaços de recordação: há espaços habitados e espaços inabitados. A memória funcional é o espaço de recordação habitado; essa é a memória que tende a ser legada à geração seguinte. Nesse sentido as obras mencionadas constituem-se em lugares habitados, sendo o intuito das escritoras garantir a transmissão de suas memórias. Elas as ofertam como dom às gerações que as sucederem.
As duas autoras encontram no Quebec seu ponto de ancoragem e as condições para fazer da escritura o espaço de construção do que Régine Robin chama de “identité de traverse” (identidade transversal): “une identité floue, pluriculturelle dans la langue française” (ROBIN, 1989, p. 183)12 . Robin define bem sua disposição de desenvolver uma fala nômade, que não corresponda a uma fala do exílio, mas a uma “parole du hors-lieu” (1989, p. 17), ou seja, uma fala fora do lugar, por isso o título de seu romance ser La Québécoite, sabendo que ela jamais será uma “québécoise”. Robin reconhece que sua reconstrução identitária será sempre híbrida e que o escritor “entre mundos” vai sempre guardar com sua língua materna uma relação de amor e de ódio, de ambivalência; uma relação imaginária de um inquietante estranhamento. Assim como Régine Robin, Kim Thúy constrói suas obras como “romances familiares”, alicerçados na memória geracional que, na definição de Régine Robin, é aquela “faite de petits riens” (feita de pequenos nadas) (ROBIN, 1989, p. 21). Ambas buscam salvaguardar a memória de seus ancestrais, ou seja, a “outra” história, que não é a oficial, o que é uma maneira de salvar os seus próprios estoques memoriais para reatualizá-los no presente do novo contexto que escolheram para viver.
11 Je crois qu´il est temps que nos poètes cessent de chanter seulement Ulysse et qu´ils reconnaissent et célèbrent davantage les charmes d´un Jason. C´est ce que mon long exil m´a amené à m´avouer à moi.
12 Uma identidade fluida, pluricultural em língua francesa.
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