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A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra
Leoné Astride Barzotto
Meus verdadeiros heróis são meus pais, vítimas de uma sobrevivência doméstica, calada, dilatada, dolorosa. Desintegrados numa seita de adorações e desencantos, eles perderam a razão. [...]
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Houve dias em que me senti órfã ou, para dizer de um modo mais conciliador, Filha da Pátria. Via meus pais durante breves intervalos. Não era algo particular, vários amigos se encontravam na mesma situação.
Nádia Guerra1
Paguei um preço muito alto por crescer sozinha enquanto todos iam embora da ilha. Foram me abandonando pouco a pouco; hoje não posso me comportar como uma mulher comum, estou fora do mundo. As ferramentas que me deram de nada servem, vivo refugiada no Diário e só me sinto à vontade e normal entre suas páginas.
Nieve Guerra 2
1 GUERRA, Wendy. Nunca fui primeira dama (2010, p. 8).
2 GUERRA, Wendy. Todos se vão (2011, p. 7).
Leoné Astride Barzotto
Esse capítulo visa refletir acerca da autoficção como forma contemporânea em evidência para a construção narrativa na / da América Latina, a fim de averiguar, pela perspectiva da análise literária, como se desenvolve a temática das narrativas de filiação nos romances da escritora cubana Wendy Guerra, mais especificamente Todos se vão (2011) e Nunca fui primeira dama (2010), pois em ambas as diegeses as narradoras protagonistas, Nieve e Nádia, respectivamente, atuam como alter egos da própria autora. Ainda, em ambas as estórias, as personagens recompõem traços da vida da escritora, em especial aqueles que se relacionam à sua mãe, Albis Torres, e às dores as quais esse vínculo de sangue representa. Dessa forma, pretende-se compreender como a “herança ferida”, originada pela Revolução Cubana, contribui para que as narrativas autoficcionais de Wendy Guerra sejam também narrativas de filiação, posto que um romance é a sequência dos biodados inseridos no anterior e, nos dois, as protagonistas buscam ‘curar uma ferida’ que fora deixada / imposta como herança, quer pelos pais, quer pela nação.
O romance-diário Todos se vão (2011) narra a vida da jovem Nieve Guerra, alter ego de Wendy Guerra; divide-se em ‘Diários da Infância (19781980) e Diários da Adolescência (1986-1990)” e traz inúmeras coincidências com a vida da própria autora, desde a mesma data de nascimento a elementos descritivos para a aparência pessoal. No entanto, trata-se de uma obra de autoficção, pois não cumpre com a tríade conceitual de um texto sob o formato do ‘pacto autobiográfico’, conforme estabelecido por Phillippe Lejeune (2008, p. 15): “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem”. Neste caso, e o mesmo ocorre com o outro romance a ser analisado aqui, narradora e protagonista são as mesmas, contudo, a autora não é, pois Nieve Guerra narra a vida de Nieve Guerra, contudo a autora do livro é Wendy Guerra. Portanto, definitivamente, ainda que saibamos que há muitas coisas em comum entre uma e outra, não podemos afirmar que esta obra é um romance autobiográfico ou um diário íntimo, mas é sim uma obra de autoficção 3 . A autoficção é uma das vertentes das escritas de si que, não necessariamente, revela a ‘verdade’ do escritor, mas que, entre um traço e outro, tem relações ficcionais e imaginativas anexadas em alguns pontos do real, do factual. A escrita autoficcional é uma das formas de escrever um outro de si mesmo, de reinventar-se à luz de desejos e traumas, de passar a
3 Retomo esta reflexão, acerca do conceito de autoficção nesses dois romances, a partir de um ensaio crítico acerca do lugar, no caso a cidade de Havana, o qual apresentei na Universidade de Salamanca – Espanha, por ocasião do 56º Congresso Internacional de Americanistas (2018). Cf. Simposios innovadores : Memoria del 56.º Congreso Internacional de Americanistas. Ediciones Universidad de Salamanca, 2018.
A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra vida a limpo e, com isso, prosseguir. Não à toa, houve uma efervescência desta tendência contemporânea de escrita, a partir de nomes franceses até uma alavancada autoficcional nas Américas, em especial pela escrita de mulheres, posto que esta forma de se fazer literatura em muito contribui para trabalhar –narrativamente – legados familiares, culturais e nacionais; sejam eles positivos ou negativos, desejados ou impostos.
Os romances de Wendy Guerra, sobretudo os que compõem este corpo de análise, deixam evidenciar a questão de uma herança (familiar) ferida como consequência de um legado (nacional) inconsequente, vide epígrafes desse capítulo. Ou seja, além das protagonistas Nádia e Nieve crescerem sem a presença e o cuidado dos pais, ambas narradoras acabam por revelar que herdam algo que nunca desejaram porque, através das ações de seus pais herdam as consequências dramáticas da Revolução Cubana na atualidade, ficando claro nas performances delas que não desejaram tal revolução, mas que involuntariamente sofrem as consequências da mesma por meio das escolhas ideológicas e políticas de seus pais. Portanto, trata-se de uma herança ferida, um legado que é familiar e ao mesmo tempo, neste caso, nacional: de toda forma, indesejado.
O termo “autoficção” foi cunhado por Serge Doubrovsky no seu romance Fils (1977), sustentando uma ambiguidade entre a veracidade da informação e a liberdade de escrita: “Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se preferirem, autoficção, por ter-se confiado a linguagem, avessa ao bom comportamento, avessa à sintaxe do romance, tradicional ou novo” (DOUBROVSKY apud LEJEUNE, 2014, p. 23). Todos se vão está mais para romance do que para diário, posto que também não cumpre com as características todas essenciais ao diário padrão, conforme Lejeune (2008). A impressão que nos passa é que a autora quis realmente romancear alguns de seus diários, e foi bem-sucedida. A maioria das entradas (mini capítulos) do romance-diário tem datas marcadas e completas com dia, mês e ano. No entanto, muitas entradas não as têm, mas são identificadas com títulos, com nomes de pessoas, nomes de coisas e lugares e assim por diante. O foco de Todos se vão (doravante TSV ) é contar, ou recontar, a trajetória solitária de Nieve Guerra; primeiramente, à luz de todo o sofrimento enquanto criança por conta de um pai cruel e abusivo. Depois, o abandono materno, a fragmentação familiar e social somados ao ostracismo fruto do colapso do regime de Fidel Castro, já na década de 80. Dia após dia, Nieve Guerra vai narrando como e por que todos se vão. Ela permanece, contraditoriamente, como a escritora Wendy Guerra – sua criadora – em Cuba, mas aqueles a quem ama, vão-se
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embora pouco a pouco: “Meus pais não estão mais aqui, foram embora pouco a pouco” (GUERRA, 2011, p. 7).
Já o romance Nunca fui primeira dama (2010) narra a história de Nádia Guerra, também alter ego da escritora. Esse romance é o caso, mais uma vez, de uma escrita autoficcional, pois tem pinceladas da vida da autora enaltecidas pela capacidade criadora da mesma. Ficção e realidade dançam de mãos dadas e de rostos colados. Nesse romance, Nádia Guerra trava uma busca incessante por sua mãe, a qual havia lhe abandonado aos dez anos. Ao percorrer uma trajetória de busca desde Cuba, à Europa e Rússia, ela encontra a sua mãe em Moscou, mas no percurso descobre muito mais do que seu alvo primordial, uma vez que encontra a si mesma.
Em Nunca fui primeira dama (doravante NFPD), há uma crítica bastante contundente à Revolução Cubana, posto que a desgraça observada pelos olhos da narradora protagonista é originada, tão somente, de um regime imposto e idealizado por uma geração (a de seus pais), mas negado e sofrido por outra geração, a sua. Por esta razão, a obra resgata a importância das mulheres em todo sistema governamental de Cuba e, assim, confere o devido mérito à figura da escritora Albis Torres, mãe da protagonista Nádia, com o mesmo nome da mãe da escritora Wendy Guerra. Da mesma forma, recupera a emblemática figura de Célia Sánchez, popularmente reconhecida como a amante preferida de Fidel Castro e que foi, sem dúvida, o seu braço direito na revolução. Contudo, tais nomes caíram na marginalidade e no esquecimento depois da derrocada do sistema.
Wendy Guerra parece circunscrever uma historiografia literária de Cuba às avessas, a contrapelo do regime, a fim de reposicionar determinadas figuras femininas em seus lugares de devido mérito. O mais curioso e intrigante deste romance é que seu leitmotiv é, justamente, um romance inacabado de Albis Torres, mãe da narradora protagonista Nádia, mas também o mesmo nome da mãe da escritora na realidade, e que, não por coincidência, era também uma escritora cubana. Tanto Nádia Guerra em NFPD como Nieve Guerra em TSV ocupam a função do arconte grego, aquele sujeito cuja missão maior em sociedade seria a de salvaguardar as memórias de um povo, dos discursos às relíquias. O arconte recolhe e arquiva, com isso, mantém para a posteridade:
“O princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de reunião”, uma vez que, “E como garantia. O arquivo sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor de futuro” (DERRIDA, 2001, p. 14; 31). No primeiro romance, chama a atenção uma caixa velha cheia de objetos sem conexão entre si, dentro da qual o livro inacabado se encontra; Albis Torres em NFPD carrega esta caixa desde o momento que é exilada de Cuba
A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra para Moscou até o seu retorno. De posse desse arquivo fragmentado, dos restos de vida de sua mãe, dentro de uma caixa simbolicamente colocados, a narradora busca completar lacunas de sua própria existência. Nesse sentido, chega-se a cogitar a ideia de que o romance em si, a narrativa autoficcional de NFPD seja, por ventura, o romance acabado a partir daquele inacabado de sua mãe, e existe uma razão para tal especulação – o fato de que ambos enaltecem o papel central de militância e de liderança da guerrilheira Célia Sanchez na Revolução Cubana. “Abatida, termino de ler o que deixaram vivo do livro de minha mãe. Agora sou eu quem vai pesquisar sobre Celia. Vou reconstruir o romance e sei que, na Cuba de hoje, será difícil para mim” (GUERRA, 2010, p. 183).
Já no segundo, o que nos envolve é uma colcha de retalhos (de vida) que compõem o romance-diário TSV, pois ao passo em que a narradora protagonista Nieve Guerra detalha passagens marcantes de sua infância e, depois, da adolescência, percebe-se o desejo de costurar ali, nessa espécie de diário íntimo, porém autoficcional, pedaços de vida que foram ficando pela estrada, reconectar rastros memoriais, uma vez que “todos se vão ou todos já se foram”, mas ela, a protagonista, precisa ficar. Assim, o próprio romance ocupa a função de arquivo e é formado de maneiras múltiplas, por meio de uma variação de gêneros textuais, cartas, poemas, músicas, trechos de diário, notícias, recados, anúncios, etc. “Embora queira parar de escrever, no fim acabo voltando; este é meu “túnel popular”, meu “refúgio de guerra”, meu esconderijo secreto, meu verdadeiro confessor” (GUERRA, 2011, p. 171); “Querido Diário: todos se vão, todos me deixam” (GUERRA, 2011, p. 258).
Herança ferida – legados indesejados
Não colabore com a desmemória. Deixe-se levar pela lembrança, ainda que seja vazia...
Se fiz mal ou se fiz bem, logo saberei. No momento não esquecer é o que importa
Nieve Guerra 4
Os dois romances de Wendy Guerra, aqui abordados, configuram escritas contemporâneas autoficcionais, como já exposto, mas igualmente são narrativas de filiação, já que as narradoras protagonistas Nádia e Nieve partem do seu presente diegético, caótico e doloroso, para uma escavação de seus passados,
Leoné Astride Barzotto
a fim de buscar uma conciliação na miríade fragmentária das memórias, as quais trazem em si. O abandono familiar, o descaso com a orfandade e a predileção dos pais pelo sistema político aos filhos tecem a fundamentação de uma consciência presente, a qual gera revolta e frustração, buscando na reminiscência do passado uma explicação plausível que justifique, ainda que em partes, os problemas do momento presente da diegese.
Nas duas narrativas, existe uma dualidade em torno do processo de esquecimento. Algumas vezes se percebe que as narradoras precisam esquecer de algo para prosseguir, para sobreviver e para suportar. No caso de Nádia, é salutar esquecer que a mãe lhe abandonara quando pequena, em favor da Revolução Cubana e de seus ideais. No caso de Nieve, é visceral esquecer os abusos físicos e psicológicos exercidos pelo pai biológico. Em outras vezes, o esquecimento precisa ser driblado, seduzido e manipulado, pois essas mesmas necessidades de esquecimento se tornam alimento voraz para o processo de anterioridade, por uma busca de respostas em torno do comportamento familiar ancestral, principalmente dos pais.
Esquecer e lembrar andam par a par, tal qual irmãos gêmeos que se confundem e, comumente, distanciam-se para evitar a confusão, ou ainda, como dois amantes que desejam ardentemente se aproximar, mas as circunstâncias nunca permitem. Dessa maneira, entendo que há uma pitada de ilusão na anterioridade, uma vez que é impossível ter todas as respostas para as nossas crises através da análise e do resgate das experiências de nossos ancestrais; muitas coisas e fatos podem evidentemente se elucidar. Contudo, parece inviável recuperar a exatidão dos acontecimentos com o passar de muitos anos ou respostas completamente justificadas a partir da memória e dos atos de outras pessoas, posto que a nossa própria memória já nos é traiçoeira o suficiente: é importante contar com o resgate coletivo de fatos e memórias para se ter um crédulo maior no processo de anterioridade. Resgata-se, assim, uma verdade que pode ser, muitas vezes, uma pseudoverdade, mas que para o sujeito da busca tem valor significativo, já que visa resolver uma crise existencial do mesmo no presente, ou seja, a saída, talvez a única saída, para a sua própria interioridade. Por esse viés, Zilá Bernd (2018, p. 24) conclui que:
Falar dos pais é um subterfúgio para falar de si próprio, apontando para um desejo de conhecer melhor a herança deixada pelos pais. Na verdade, trata-se do autobiográfico descrito através de um outro ponto de vista. O filho deseja saber o que aconteceu em momentos de vida dos pais em que ele não esteve presente.
Creio que soa natural à espécie humana procurar no outro, sobretudo no outro familiar, respostas às questões que lhe permanecem obscuras. Entretanto, como achar explicações para um legado indesejado, para uma herança ferida? Em meio a dor e ao desapontamento, faz-se necessário curar algumas feridas para conseguir, então, enfrentar o questionamento. Nesse ponto, o romance de filiação pode atribuir uma honraria aos ancestrais ou, não raro, enfrentamento e acerto de contas. Após o encontro de algumas respostas, nesse procedimento arqueológico de escavações de vidas em restos de arquivos e memórias, o indivíduo pode vir a romper ou a reconciliar com seu passado, sua anterioridade e, enfim, seus ancestrais. Por essa razão, tanto Nádia como Nieve são “herdeiras inquietas e problemáticas”, conforme denomina Demanze (2008 apud BERND, 2018, p. 25), pois não aceitam a herança deixada, aquela de uma vida em dificuldades, do abandono, da escassez, da solidão, da censura e da dor, após o declínio da revolução; revolução essa que elas não idealizaram, não participaram e tampouco desejaram, mas a partir da qual sofrem as consequências políticas, nacionais, sociais e, especialmente, familiares. NFPD e TSV demonstram intimamente a definição posta aos romances de filiação, nos moldes apresentados por Zilá Bernd (2018, p. 25), quando a escritora diz que: “Esse tipo de romance que Viart chama de “romance de filiação” articula-se a partir de vestígios (objetos da casa paterna, cartas, fotos) ou da falta (pais ausentes, transmissão imperfeita, ressentimento) ”. Não há dúvidas, os romances de Wendy Guerra se pautam nos ressentimentos das personagens Nádia e Nieve, numa busca constante de acertar as contas com o passado, com vistas à reconciliação com seus ancestrais, sobretudo com as mães: uma para apagar as marcas do abandono e, a outra, para suavizar a orfandade e o abuso; descasos fomentados pela revolução e pelos pais guerrilheiros. Portanto, os legados são familiares e também são nacionais nesses romances, já que a Revolução Cubana é o principal pano de fundo para todos os fatos narrativos em questão.
No 25º capítulo de NFPD, intitulado “A casa, a mãe, a memória e o corpo”, Nádia se dá conta de como é desafiador se reconectar com sua mãe, após conseguir trazê-la, finalmente, de volta à Cuba. Albis Torres retorna muito adoecida para sua terra natal e as enfermidades limitam demasiadamente a tão sonhada anterioridade de Nádia e, por consequência, acabam inviabilizando a conquista de sua interioridade. A esse respeito, a personagem divaga:
O dia em que perdemos a memória não é o dia em que as lembranças se apagam, mas quando não conseguimos organizá-las ou situá-las junto aos afetos. Seus entes queridos começam a ser estranhos para você. O íntimo
Leoné Astride Barzotto
se torna alheio. No dia em que perdemos a memória, viajamos à deriva. Qualquer um nos salva ou nos empurra para o desastre. O inimigo se muda para sua cabeça (GUERRA, 2010, p. 112-113).
Nádia não esconde das demais personagens, tampouco do leitor, o fracasso parental ao qual fora subordinada; crescer com a ausência dos pais biológicos e com o declínio do sistema em assumir o papel paternalista a cobrir todas essas ausências, deixam-lhe marcas profundas. Apesar de ter recebido afeto e instrução dos pais adotivos, um casal homoafetivo da geração de amigos de sua mãe, Nádia retroalimenta sua herança ferida com o sistema político que lhe determinou um legado indesejado porque, ainda que negue ser filha da revolução, reafirma que o é ao expor sua afetividade em relação à cidade de Havana e à própria ilha de Cuba, inúmeras vezes na narrativa.
Tento agarrar e conservar as coisas que amei, por isso gosto dos museus e não dos cemitérios. A arte de deter, conservar, segurar. Por isso gosto também de Havana: esta é a cidade, um museu que não desmoronou em meio a uma estranha batalha para proteger sua pátina. Meu tempo é sépia; minha dor, salgada; meu cheiro é o óleo essencial desse velho perfume de sempre, esses rastros (ou restos?) de Chanel em frascos remotos, como minhas próprias lembranças desta idade indefinida (GUERRA, 2010, p. 98).
No romance TSV, a situação de Nieve Guerra não é muito diferente daquela de Nádia. O pai biológico de Nieve trabalha para o regime de Fidel e cuida da pequena Nádia por algum tempo, o que fica evidenciado na primeira parte da narrativa: “Diários da Infância (1978-1980)”, pois sua mãe biológica havia casado com um sueco e abandonado a filha. Em uma sucessão de tragédias familiares, Nieve consegue escapar do pai abusivo e passa a viver num orfanato para, muito depois e já no final da adolescência, conseguir ficar um pouco com a sua mãe, já separada do padrasto, desligada do sistema e muito doente. Tal qual Nádia, Nieve nunca soube o que é verdadeiramente ter uma mãe (muito menos um pai de fato) e, nas poucas oportunidades de convício, precisou ser mãe da própria mãe. Sobre o período no centro de abrigo infantil, a passagem abaixo demonstra o suficiente:
Minha mãe não veio me ver. A psicóloga é uma mentirosa. Me vestiram com uma roupa engomada com fedor de barata e me puseram na fila para que os casais me vissem. Dois me apontaram. Estou cansada de tantas mentiras, tive de responder coisas e mais coisas aos casais que me escolheram. Fiquei muito aflita. A “profe” disse que eu precisava responder a todas as perguntas. As crianças que estavam lá ficaram surpresas com minha história. Não quero escrever mais, odeio os domingos, não por isso, nunca gostei mesmo e hoje gosto menos ainda (GUERRA, 2011, p. 85).
Já na segunda parte do romance, “Diários da Adolescência (1986-1990)”, a narradora protagonista avança seis anos nos relatos de sua vida e há um grifo maior na sua formação educacional, pois frequenta um semi-internato para estudar e para garantir a comida que lá oferecem; dado esse contexto, Nieve visita a mãe somente aos finais de semana, já que ela habita, então, Havana nesse momento da estória. Um pouco mais felizarda do que Nádia, Nieve consegue atingir um pouco mais de sua anterioridade ao conviver com a mãe e com os amigos dela aos finais de semana. Pouco a pouco, fortalece a sua interioridade e compreende porque ‘todos se vão’, assim como seu pai biológico, adotivo, amores e amigos. Durante a evolução do seu agenciamento pessoal, do crescimento em si e do amadurecimento das ideias e das emoções, Nieve distingue o valor de cada coisa e situação, intervendo no impacto de sua herança ferida e no valor de um legado indesejado.
Cada um de nós deve “uma peseta a cada mártir”, diz minha mãe: à asma do Che, ao corpo de Camilo no mar, ao que escreveu com sangue antes de morrer o nome de Fidel numa parede, aos que mataram em Angola, aos que se perderam na Bolívia, aos mambises, devemos algo a todo mundo. São eles que fizeram tudo por nós; nós não podemos fazer muito por eles. Acho que lhes devíamos tudo isso muito antes de nascer. Mas se eu devo alguma coisa é para minha mãe e fim. Para mim os mártires são nossos pais. Nós, os filhos, às vezes queremos esquecer o sobrenome e praticamos verdadeiras façanhas para nos tornarmos mais um daqueles que compõem a longa fila da bandeja de alumínio (GUERRA, 2011, p. 126).
Diante de uma herança ferida, pesada demais para ser transmitida, as narrativas de filiação se tornam um dos vários modos de se fazer a prática das escritas de si, uma vez que real e ficcional de cruzam, cobrindo lacunas existenciais e possibilitando sentidos ao presente. Da estrada percorrida pela anterioridade até o caminho da interioridade, inventam-se genealogias de si, assim como o faz a escritora cubana Wendy Guerra. A propósito, nada mais oportuno aos escritores latino americanos, forjados pelas agruras da colonização, da escravidão e das ditaduras.
Dado o contexto de construção narrativa, assinala-se um mal-estar na transmissão geracional em ambos os romances de Wendy Guerra, justamente porque se pautam em legados indesejados, impostos pela nação às famílias. Por essa razão, muito comumente, perde-se a linearidade narrativa e o vai-evem diegético é constante, apesar de marcado por datas, por acontecimentos históricos, por personalidades de época, por fatos importantes, como é o caso da recolha literária aqui analisada. O peso desse legado fica bastante claro no excerto de Nádia, em NFPD, a seguir:
Leoné Astride Barzotto
Deixam-nos entrar, vejo minha mãe numa cadeira de rodas, pequenina, nervosa, chorando. Não é possível que já esteja em Cuba conosco. O fiscal da alfândega me explica, mas não escuto nada. Beijo minha mãe, ela exala um cheiro forte. Tem comida grudada no rosto. Urinou nas calças. Sua mão esquerda treme devido ao Parkinson. Meu Deus, que maneira de voltar. É tarde para regressar. O que sinto? Raiva, principalmente, por esse tempo de ausências que adoecem. Comigo, com o sol daqui de fora, com a praia, com meu pai, talvez tudo tivesse sido diferente. Tem pessoas que vivem fugindo, devem ir embora do lugar onde nasceram; mas há seres tão frágeis que, quando fogem, são engolidos pelo mundo. Devora-os o abstrato dos semáforos e das contas a pagar. Seria esse o caso? Não sei, não a conheço (GUERRA, 2010, p. 109, grifo meu).
Coincidentemente (ou não), no outro romance de Guerra, TSV, Nieve recupera um panorama muito singular e semelhante ao recortado acima, a respeito de Nádia e sua mãe. Em TSV, há um capítulo intitulado “Uma hora com minha mãe” e, nele, Nieve retrata o caráter incorrigível de sua mãe em favor da militância e do sistema, comportamentos tais que a filha rejeita, posto que são eles que sempre a afastaram da mãe. A ausência da mãe em sua vida fica muito evidente nesse capítulo assim como o fardo de uma herança ferida.
Minha mãe diz que se quero viver sem falar de política tenho de ir para o Canadá, para uma aldeia bem fria onde vive gente que corta árvores e não sabe tampouco se interessa saber o nome do presidente que governa esse país. Em Cuba, segundo ela, a política está no que você come, no que veste, onde vive, no que tem e até no que não tem. Não há solução possível para minha mãe: “Se você quer fugir da política tem de fugir de Cuba”. Ela acredita que o que alguém pinta ou escreve contém política. Então, acha que estou desorientada, e estou mesmo, mas não podem continuar me perseguindo. [...] Minha mãe rejeita o que ama. [...] O que farei com minha mãe, que agora é como minha filha? (GUERRA, 2011, p. 174-175, grifos meus).
Tanto Nádia quanto Nieve procuram fortemente ressignificar seus passados, reconectar com as histórias de seus pais e do próprio país para, então, conseguirem entender, ainda que somente um pouco, as lacunas do momento presente, de uma existência em constante falta de algo. Nessa jornada da anterioridade à interioridade das duas personagens, os romances nos apresentam uma mescla de memórias coletivas, individuais, culturais, históricas, nacionais, sociais, políticas e familiares que dão o tom das duas estórias e, ao mesmo tempo, balizam o ônus de se herdar aquilo que não se deseja e com o qual não se identifica. Sobre a recuperação de uma mãe ausente e de uma transmissão que falhou, Nádia assegura: “Sou sua memória de reposição”
(GUERRA, 2010, p. 1233). Na mesma esteira de remição, Nieve enaltece que:
A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra
“Desde que me entendo por gente estou sendo treinada por minha mãe para ir embora e esquecer” (GUERRA, 2011, p. 233).
Ideias inacabadas
As narrativas aqui abordadas mostram claramente que, entre lembrar e esquecer, travam-se fortes batalhas nos espaços de recordações de cada sujeito, sendo impossível esgotar as reflexões e os pensamentos em torno da polêmica reinvenção de si mesmo através de uma aventura, não rumo ao futuro, mas de retorno ao passado. Conhecer os fatos que moldaram a vida dos pais pode, quiçá, indicar um caminho para se aceitar e para se conhecer os mistérios e as dores que moldam a própria existência no presente. Ressuscitar acontecimentos do passado é, de alguma maneira, jogar fluxo de vida na atualidade. Para cobrir as falhas da transmissão geracional, numa espécie de dever ao legado frustrado, Nádia, em NFPD, almeja terminar o romance inacabado da mãe moribunda e, com isso, circunscrever a própria história. Por sua vez, Nieve, em TSV, desiste de ir embora da ilha, aceitando que, um dia, todos se vão, mas ela e a mãe permanecem, mesmo sem se entenderem como gostariam. Acerca desse percurso doloroso, Zilá Bernd (2018, p. 47) afirma que “É necessário o estabelecimento de um jogo dialético entre lembrar e esquecer, entre passado e presente, entre ascendentes e descendentes, entre aceitar ou renegar os vestígios memoriais que emergem”.
Passo a passo, dor a dor, memória a memória, o ressentimento vai dando espaço ao perdão e à reconstrução e, assim, as narrativas de filiação tornam viável a reinvenção dos sujeitos contemporâneos, tão marcados pelos factuais históricos. Coerentemente, indaga Nádia, no romance NFPD: “Existe futuro sem memória?” (GUERRA, 2010, p. 115).
Referências
BERND, Zilá. A persistência da memória. Porto Alegre: Besouro Box, 2018.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo – uma impressão freudiana. Trad. Claudia Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
GUERRA, Wendy. Nunca fui primeira dama. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Saraiva, 2010.
GUERRA, Wendy. Todos se vão. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Saraiva, 2011.
LEJEUNE, Philippe. Autoficção & Cia. In: NORONHA, Jovita; GUEDES, Maria Inês (orgs.). Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014, p. 21-38.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Noronha; Maria Inês Coimbra. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
Lícia Soares de Souza
São vários, na contemporaneidade, os estudos sobre a memória social (CANDAU, 2011; BERND, 2018, entre outros) que enfatizam o fato que os estudos da memória não se reduzem ao armazenamento de dados em arquivos. Existem esforços substanciais para se flagrar dados importantes da história coletiva que são postos de lado, negligenciados, conduzidos ao esquecimento, no sentido de que um discurso hegemônico, que interpreta fatos relacionados aos interesses de classes determinadas, seja transmitido. Utilizei os termos espaçodobradiça e espaço-matriosca (2018), em um trabalho sobre a cidade de Salvador, que permite aos personagens de percorrer espaços históricos e culturais, outrora subestimados, como os terreiros de candomblé, por exemplo.
O espaço-matriosca acumula informações, permite a superposição de temporalidades, relaciona informações ancestrais com aquelas que estão emergindo nos tempos atuais. É um espaço que dinamiza os arquivos no sentido paradigmático. Já o espaço-dobradiça, com sua orientação sintagmática, autoriza os atos de passagem, de contacto entre os dados de uma memória hegemônica e os dados de uma memória difusa, dispersa, cujas articulações estão sendo observadas no sentido de permitirem a emergência, no primeiro plano dos textos de uma sociedade, fatos negligenciados ou esquecidos.
Como diz Bernd (2018, p. 27) “memória e transmissão estão intimamente associadas”, de tal forma que fragmentos de vividos dispersos podem se reconfigurar, no seio de uma comunidade, pelas formas que as pessoas narram umas para as outras. Desta forma, transmitir memórias não é apenas transmitir conteúdos, mas principalmente legar estruturas móveis de narração que sejam capazes de garantir o conhecimento de fatos vividos pelas comunidades, preparar os espaços-dobradiças que permitem as passagens. A reflexão sobre transmissão é, na maioria das vezes, relativa à gênese ou origem dos ancestrais das comunidades cujos saberes passam pelas gerações. No entanto, segundo ainda Bernd, o conceito de “Digênese” de Edouard Glissant põe por terra a ideia de filiação única e gênese incontestável, em razão dos inúmeros processos de hibridação e mestiçagem pelos quais passaram os escravizados nas Américas. O neologismo “Digênese” traz à baila igualmente a precariedade do espaço-dobradiça, as transmissões de um relato para o outro, sem dispositivos estruturados de difusão, como os que as culturas hegemônicas sempre possuíram. Sem contar que o fenômeno da vergonha, ou mesmo de um mal-estar, interfere na transmissão, o que pode significar reviver experiências traumáticas.
O corpus que escolhemos para ilustrar a importância da transmissão não se relaciona apenas com fenômenos culturais ou legados familiares, embora estes possam existir como pano de fundo. Escolhemos trabalhar com um contexto político brasileiro, a partir do Estado Novo (1937-1945) até os dias atuais, segunda década do século XXI. Optamos por abordar os regimes ditatoriais que reprimiram o país, e as formas como alguns escritores adotaram para transmitir os desafios que enfrentaram nos cárceres.
Memórias do Cárcere (1953), Graciliano Ramos
Graciliano Ramos foi preso em março de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista, após ter sido demitido da função de Diretor da Instrução Pública. Prisão sem processo, a acusação formal nunca chegou a ser feita. No entanto, o acusado foi deportado para o Rio, num porão de navio, onde permaneceu encarcerado até janeiro de 1937. Dessa experiência, nasceu a obra Memórias do Cárcere (MC I e II), publicada postumamente em 1953. A maioria dos estudiosos desta obra é unânime em mostrar que o relato é mais do que uma observação simples das condições humilhantes de vida na
Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais cadeia, mas sobretudo uma análise profunda do autoritarismo que marcou a ditadura de Vargas a qual propiciou vários abusos de poder. Logo, é um livro de memórias coletivas. Foi publicado em dois volumes, faltando o capítulo final, pois o autor faleceu antes de concluí-lo. Nelson Werneck Sodré, em sua apresentação, de 1954, afirma:
Em Graciliano Ramos, na verdade, – e isso precisa ficar bem nítido – o que se pretendeu ferir, amesquinhar, ultrajar e infamar foi a cultura, em nosso país, foi a possibilidade de alguém enxergar um poço mais porque estuda e compreende (...) Em Graciliano Ramos se brutalizava tudo aquilo que a cultura pode realizar em favor do homem, de sua visão da existência, de sua ânsia pela liberdade (SODRÉ, 1984, p. 29).
Como livro de memórias, a obra pode ser também classificada como livro autobiográfico, e se inscreve no paradigma da invenção de si, como possível projeto de si implicando compreensão do processo de conhecimento e de aprendizagem das experiências de um sujeito ao longo da vida. Como o diz Souza (2006, p. 137), “as histórias de vida adotam e comportam uma variedade de fontes e procedimentos de recolha, podendo ser agrupadas em duas dimensões, ou seja, os diversos documentos pessoais (autobiografias, diários, cartas, fotografias e objetos pessoais), e as entrevistas biográficas, que podem ser orais ou escritas”. As autobiografias oferecem novos dispositivos de sentido e de verdade que não constroem apenas visões do mundo, mas põe em cena forças de dominação que agem sobre a vida de pessoas comuns. Nesse espírito, ocorre igualmente a valorização de memórias de prisão, como grafias de uma realidade individual, mas com conotações históricas mais vastas. Esta dimensão interessa tanto para expor a trajetória individual de um encarcerado que para sublinhar a historicidade subjacente a esta vivência como experiência humana. Um dos gêneros mais utilizados é, sem dúvida alguma, o diário, caracterizando-se pela escrita de corpos aprisionados que tentam pôr em cena imagens de um mundo cerceado para si mesmo. Em outras palavras, a escrita de si no diário, por uma pessoa comum, marginalizada, engendra uma forma de aprendizado de si que torna o sujeito ativo, mesmo se limitado por uma vigilância disciplinar, para configurar o feixe de relações sociais e históricas que se desenvolve dentro de um espaço confinado que é um cárcere. Os diários passam a ser valorizados no pós-modernismo, mas é sabido que existem há séculos. No século XX, o diário de Kafka ficou conhecido pelas reflexões que desenvolveu sobre a própria escrita autobiografia; o de André Gide também interrogou o próprio gênero, suas fronteiras e territórios, conforme descreveu Bancaud-Maenen (2000). Sartre, em seu diário de guerra, escrito entre setembro de 1939 e junho de 1940, desenvolveu o copião de uma obra filosófica. Nele, se pergunta: Comment rendre compte d’un homme dans son intégralité ?
Voltando à MC 1 , vejamos que Ramos é condenado sem saber o porquê. O procedimento arbitrário se inscreve naturalmente na tecnologia da representação na qual deve repousar toda arte de punir, como já preconizou Foucault em Vigiar e Punir. Existe uma relação de poder que governa o exercício da punição em um criminoso, designado como inimigo de todos que, desqualificandose como cidadão, aparece com atributos de selvagem, monstruoso, louco, e mesmo anormal. Em regimes totalitários, é a tecnologia do poder arbitrário que faz abstração dos instrumentos legais do castigo, aplicando no suposto inimigo da sociedade uma pena sem explicação.
É degradante. Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis, via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacob. Isso constituía um libelo mesquinho, que testemunhas falsas ampliariam (MC I, p. 46).
Ramos vive na ditadura do Estado Novo que efetua prisões arbitrárias de cidadãos considerados “comunistas”, e inimigos da sociedade. A coluna Prestes, já havia existido (1924 a 1927, dez anos antes), mas é a época da prisão de Olga Benário, companheira do comandante Prestes, grávida de sete meses. O episódio da suposta transferência de Olga para outro presídio, enquanto que, na verdade, ela é degradada para a Alemanha nazista, por ordem do governo varguista, é relatado na obra, pois Olga e outras companheiras ocupam as galerias anexas às galerias masculinas na Casa de Detenção. Nesse contexto, Ramos, que hesitou em tornar públicas essas memórias, já começa a tecer uma rede de reflexões acerca da estupidez do corpo de poder que utiliza as tecnologias contemporâneas de cerceamento da liberdade sem fundamento, isto é, com base em falsos testemunhos ou em “mentiras”2 . Ele produz um espaço-matriosca bastante denso da história do Brasil neste período. Mas o tempo disciplinar de Ramos, a partir de sua ordem de prisão, vai ser desdobrado numa longa viagem que estabelece um percurso narrativo próprio dos deslocamentos do “acusado”. Ele parte de Alagoas, para o sudeste, no porão do navio Manaus onde já pode constatar o ambiente putrefato onde
1 Doravante MC I para o primeiro volume e MC II para o segundo.
2 “Fake News” ou “mera convicção”, de acordo com o léxico atual.
Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais se encontram delinquentes de várias espécies e origens. São várias interações e trocas onde o “acusado” vai mudando sua percepção dos fatos vividos, a qual o guia na escritura das memórias; há circulação, há movimento, mesmo em condições precárias, e ele diz: “Já me haviam feito andar em três estados e conhecer cinco prisões. Novas mudanças arbitrárias, inexplicáveis, chegariam” (MC I, p. 342). Em alguns momentos, ele focaliza os lugares com uma máscara de narrador itinerante, quando vai reconhecendo a entrada do navio em determinados portos, e o vaivém de outros “acusados” que entram e saem. Chegando à Casa de Detenção, no Rio de Janeiro, Ramos espera ser interrogado, como seria natural, dentro da cultura jurídica, e se espanta com a ausência do mesmo: “Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações, testemunhas, sumiram-se. Não me acusavam: suprimiam-me”. (MC I, p. 52).
O arquipélago carcerário aparece em MC I e II, com sua vigilância hierárquica como um sistema de poder sobre o corpo alheio, integrado pelas redes verticais de relações de controle : “Temos a impressão de que apenas desejam esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos cansados. Será necessária essa despersonalização?” (MC I, p. 63). Inclusive, as redes verticais de controle são descritas continuadamente para ilustrar a essência do panóptico, pelo qual a visibilidade/separação dos submetidos permite o funcionamento automático do poder:
Vivíamos de fato, nos cubículos pequenos, ou no grande alojamento, cercados de gente duvidosa, e as suspeitas nos induziam a cometer injustiças. Um desconhecido cheio de reservas, soprava-nos a advertência gasta: —“Cuidado com Fulano: é espião da polícia”. (...) O conselho se desprestigiara enfim, mas continuava a circular, papagueado por fanáticos de cérebro escasso, ingênuos demais. Os autores dessas desavenças metiam-se nas encolhas, sem dúvida. Impossível distingui-los. Em compensação havia na polícia agentes infiéis, e ela não tinha meio de conhecê-los. Desempenhavam-se, mecânicos, pontuais, dóceis ao regulamento (MC II, p. 173).
Eis, então, o panóptico, como princípio de uma nova anatomia política, como mecanismo de poder aplicado a uma sociedade organizada em locais disciplinares, como as penitenciárias, escolas e fábricas, onde as multiplicidades humanas são ordenadas conforme táticas de poder, com redução da força política (corpos dóceis) e ampliação da força útil (corpos úteis) dos sujeitos submetidos. Nos trechos apresentados, observa-se os jogos de poder espraiados no arquipélago carcerário, mas que possuem a força de adestrar e de trazer os condenados submetidos ao medo, pela movência de vários agentes: policias, juízes distantes, faxineiros, espiões diversos, etc.
Mas a sociedade panóptica, validada pelo encarceramento e existente como arquipélago carcerário, acaba por potencializar uma vontade de delinquência nos condenados, pois, ao invés de produzir os corpos dóceis, produz criminosos mais violentos. Ramos, nesse sentido, opera uma descrição qualitativa das condições precárias do ambiente punitivo que despersonaliza, corroendo os restos de humanidade que poderiam ainda existir em cada condenado. Tudo é “imundo” e “nauseabundo”, a alimentação é péssima, tirando-lhe o apetite; odores desagradáveis e ruídos desarmônicos existem, em toda parte, onde seria difícil, para um condenado intelectual como ele, entender as frases desconexas emitidas pelos companheiros, “ouvindo pragas, gemidos, roncos, vômitos” (MC I, p. 170). A analogia que o escritor efetua é a do local carcerário, no caso o Pavilhão dos Primários, com um “fervedouro de cortiço” (MC I, p. 248).
Justamente, o cortiço como desdobramento da senzala, e como embrião da favela, reaparece como eixo qualitativo negativo formado da mistura de pessoas, de várias origens. É um espaço-matriosca que contém uma memória genealógica, abrangendo mais de três gerações. Como no cortiço, no cárcere, as pessoas não se entendem perfeitamente. E Ramos já começa aqui a tematizar sobre o encontro de pessoas diferentes, de presos políticos com marginais comuns, encontro esse que tornar-se-á o centro argumentativo das narrativas que tratarão do crime organizado, já no século XXI: “Comunicação difícil, quase impossível: operários e pequeno-burgueses falavam línguas diferentes. Não nos entendíamos. Não nos podíamos entender” (MC I, p. 248).
Todas essas experiências compõem, de todas as formas, uma memória cultural e política. Pode-se igualmente produzir um ato estético ao se escrever um livro na cadeia, o qual se torna praticamente um diário de prisão ou mesmo as memórias no cárcere? O que existe de transmissível, em espaçosdobradiças, em tudo isso?
Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos –e, antes de começar, digo os motivos porque silenciei e porque me decido. (...) Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que tem no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las (MC I, p. 33).
Finalmente, Graciliano Ramos conta que saiu da prisão, por intermédio do grande advogado Sobral Pinto, contratado por José Lins do Rego para liberar
Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais o amigo. E perguntou-lhe: “- Ora doutor, para que tantas minúcias? Como é que o senhor vai preparar a defesa se não existe acusação? – Não há processo.”
E o advogado replicou: “— Dê graças a Deus (...) porque é que o senhor está preso?”
Ramos: “— Sei lá, nunca me disseram nada.”
Sobral: “— São uns idiotas. Se eu fosse chefe de polícia, o senhor estaria aqui regularmente com processo.”
Ramos: “— Muito bem. Onde é que o senhor ia achar matéria para isso, doutor?”
Sobral: “— Nos seus romances, homem. Com as leis que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo” (MC II, p. 299).
Com este diálogo, pode-se assumir a perspectiva de Bakhtin, de acordo com a qual a representação deve abranger a totalidade de uma época. O cronotopo bakhtiniano autoriza a reconstituição que faz um narrador, por meio de fragmentos de sua memória, da discursividade jurídica decadente e precária que cerca seu aprisionamento. Este se deu por uma longa travessia de navio, através de várias capitais, até a Casa de Detenção no Rio de Janeiro. O próprio narrador indaga sobre as peculiaridades de uma narrativa processual que, em uma situação jurídica deveria ser atenta às ciladas e dissuasões de um contexto narrativo plural. O memorialista que expôs, durante todo seu relato, as incoerências do poder autoritário produziram vários diagramas de relações empíricas e opinativas sobre a estupidez da arbitrariedade e a corrupção do arquipélago carcerário no modelo panóptico.
Memórias de um Sobrevivente (2001), Luis Alberto Mendes: a leitura e a escrita como política de si
Memórias de um Sobrevivente, de Luis Alberto Mendes, é um livro de memórias de boa parte da vida do autor, com quase 500 páginas. Este volume de memórias começa na infância, nos anos 1960, quando conta a relação amorosa com a mãe e a relação de medo e pavor para com o pai, o que o motiva a fugir e a perambular pelas ruas. Ainda garoto, passa pelo Recolhimento Provisório de Menores, e se lança na vida marginal, sentindo um prazer crescente em roubar, o que o levará a praticar assaltos cada vez mais complexos.
Segundo alguns estudiosos, o livro de Mendes é o mais bem acabado entre aqueles que compõem essa nova cena nacional da literatura prisional (sem contar com Memórias do Cárcere que é um clássico). Assim o prova o fato de ele ter continuado a carreira de escritor. Não por acaso a crítica literária, que não se volta tanto para esse tipo de escrita, lhe reservou um espaço diferenciado. Carrascosa nos diz:
Penso que os escritos de Luiz Alberto Mendes são atravessados tanto por linhas de força (talvez menos nítidas) do que a crítica literária chama de “texto memorialista”, na medida, por exemplo, em que se denuncia um conjunto de práticas sistemáticas de marginalização e tortura do Estado brasileiro (o que talvez signifique uma reescrita da ideia de Brasil “sob outro farol”); bem como pelos atributos da forma moderna “autobiografia, referida pelos críticos acima (CARRASCOSA, 2008, p. 96).
Esta afirmação pode se conjugar com aquela de Nelson Sodré no prefácio de Memórias do Cárcere. Ambos os autores pensam que essas obras fazem menos a história de si, do que a história das diversas instituições disciplinares que definem um certo modo de existência política baseada no autoritarismo e no abuso arbitrário das técnicas de tortura. Carrascosa continua inclusive afirmando que a forma-prisão como mecanismo disciplinar opera rupturas físicas e simbólicas entre o sujeito aprisionado e seus esquemas de produção de sentido: em relação a si próprio, a sua família, a seu circuito de relações pessoais, o seu corpo, etc.
A forma-prisão tende a despersonalizar e a desmembrar o indivíduo, o que se acentua na potencialização do sentimento de solidão, daqueles que vão parar na Isolada, que se encontram diante de um sequestro das possibilidades de atribuição de sentido a si próprio, a um lugar, a um tempo, ou mesmo a um mundo. Nas tensões oscilantes entre a experiência nos pavilhões e celas superpovoados e a cela solitária, emergem sentimentos de angústia e de medo do indivíduo se tornar descontrolado e irracional. Em uma de suas saídas em liberdade, Mendes sente que se tornou um ser moldado pelas referências da prisão.
Todos os meus parâmetros eram de prisão. Em tudo eu pensava, apenas como um preso. Estava condicionado a me defender sempre, em qualquer tempo. Sentia que o mundo e as pessoas só me prejudicaram e me fizeram sofrer. Não era bem assim, mas era assim que eu via, destacava apenas o que me ferira, valorizava apenas o meu sofrimento, que se fodesse o dos outros (MENDES, 2009, p. 161).
Assim, Mendes vai sempre fazendo um julgamento avaliativo de uma ação sobre a outra, de modo a estabelecer relações de determinação entre as sequências narrativas. Uma das vezes em liberdade, tenta roubar de novo e volta à prisão.
Na carceragem, tomaram meus dados, e fui jogado em um xadrez pintado de vermelho escuro, abarrotado de presos. Sentei num canto e fiquei observando. Há vários presos muito machucados de tortura, outros baleados, mas a maioria deles não eram malandros de fato. Profissionais do crime. (...) Preocupei-me com minha mãe, ela me esperava sempre à noite (MENDES, 2009, p. 190).
Fomos distribuídos em vários xadrezes. Eu fui para um xadrez onde ficavam os menores de vinte e um anos, o número 3. O rapaz violado também foi para este xadrez. Andava de pernas abertas, soube que já sofrera vários outros atentados (...) fui muito bem recebido, afinal, eu era um mogiano, título de grande destaque em nosso meio. Todos respeitavam, porque sabiam que pelo Instituto passaram os bandidos mais perigosos do estado (MENDES, 2009, p. 191).
Fica claro a relação que as ações narrativas, formando sequências, mantém entre si e com os atributos do personagem Mendes. Ele comete delito e é preso de novo, logo seus traços de caráter determinam imediatamente a ação do encarceramento, enquanto a mãe o espera em casa. Na prisão, observa marcas de tortura nos companheiros e assiste ao espancamento e ao estupro de um rapaz. É respeitado no cárcere por ter vindo do Instituto Mogi (era um mogiano), onde os bandidos mais perigosos foram formados, o que lhe dava prestigio. Temos aí um novo exemplo do que poderia ser visto como a codificação instrumental de uma memória coletiva, em espaço matriosca, nas narrativas prisionais. Consiste, em geral, em ir mostrando a movimentação dos bandidos nas ruas, sua transformação em quadrilheiros, o encarceramento, o enquadramento em novos grupos ou quadrilhas na prisão, a tortura, fuga ou liberação, e o desfecho traduzido em morte ou volta à prisão após recidiva. Foucault (1975) mostra que a impossibilidade de encontrar trabalho e a vadiagem são os fatores mais frequentes da reincidência. Luiz Mendes, a cada saída, se integrava em uma gang para roubar e conseguir o dinheiro que apreciava para sua vida de liberdade. Esse gosto da liberdade o habitava e o impedia de se enquadrar na sociedade com atividades honestas. Sentia felicidade ao contar aos outros garotos de brincadeira que já roubava e que estes o consideravam um “malandro”: “Esse era um título que queria muito, sujeito esperto a ser respeitado” (MS, p. 40). Mas, o prestígio e o respeito não eram suficientes para preencher sua vida, pois, como bandido muito jovem, sofria com angústias e as carências de afeto que atingem crianças abandonadas. As drogas o ajudavam a superar momentaneamente a depressão. Numa época em que a juventude se levantava contra o antigo regime conservador, com cabelos compridos, calças justas e rock, sentia o prazer de sair com suas gangs para espancar bêbados nas ruas, e muitas vezes atiçar fogo neles para terem o prazer de vê-los correr desesperados. Era o prazer da “vadiagem sem esperança”, um “ir e vir sem saber para onde, em que rumo e por quê”, até que a polícia os pegasse e os levasse para o Juizado de Menores, “de onde fugiam ou eram mandados para a casa de seus pais, de onde fugiriam novamente”
(MS, p. 43). Vão-se assim desdobrando-se as relações contíguas entre as ruas, como sinédoques da cidade, e o cárcere, como formador de classes perigosas que voltam a atemorizar as ruas.
Luis Mendes, com tantos delitos, recebe uma pena de cem anos, o que quer dizer a vida toda encarcerado, sendo produzido por uma tecnologia disciplinar de produção social de marginalização. No entanto, existe uma contraforça que modifica sua trajetória de indivíduo perigoso, “de bandidohomicida-latrocida, em indivíduo escritor “honesto e até mesmo santo” (MS, p. 400). Mendes conta como se transforma através da leitura, produzindo uma série de nexos causais entre as diversas ações de aprendizado até chegar ao tipo de espaço-dobradiça que assegura um método de transmissão da vida criminosa. Ele passa de um indivíduo hediondo em indivíduo “mais humano e mais sensível”, Carrascosa chama esse procedimento de aprendizagem de “política de si”.
A “verdade narrativa” do “eu” que resulta do processo de escrita é convertida em um ethos de ação potencialmente geradora de uma identidade a si para confronto com o seu real: o real da solidão como dispositivo de dissolução subjetiva do preso e, ao mesmo tempo, como técnica de susceptibilização à assunção da posição discursiva de “preso” (CARRASCOSA, 2008, p. 107).
O suporte material de análise do filósofo francês (FOUCAULT), entretanto, comporta em suas obras a noção de “domínio de si” de “ter a si mesmo” (próprio à cena histórica do investimento de estudo – a antiguidade grecoromana), o que nos permite o seu desdobramento nos termos de “políticas de si”, em sintonia com as nossas necessidades contemporâneas. Usarei este conceito sempre que estiver mapeando possíveis vetores de contraforça aos procedimentos de sujeição, executados mediante as operações narrativas dos escritos de Luiz Alberto Mendes. “Técnicas de si” e “políticas de si”, duas noções ficcionais que se desdobram apenas à medida que nos servirão como ferramentas de pensamento e análise sobre o mesmo suporte material e complexo: práticas prisionais sob o ativo enfoque da escrita de si” (CARRASCOSA, 2008, p. 108).
Ao medo que se instala pela intensidade da tecnologia panóptica, se sucede uma vontade de aprendizagem imensa. Mendes faz o supletivo ginasial e descobre a biblioteca, se enamorando por aquele lugar maravilhoso, segundo suas próprias palavras (MS, p. 394). Em seguida, faz poesias e se inscreve numa rede de correspondentes o “Círculo de Missivistas amigos”,
Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais equivalente, na época, das redes sociais virtuais. Com as trocas de cartas, se apaixona platonicamente por uma professora de Literatura, Eneida, que se torna fundamental em seu desejo de aprender mais. Começa a ler a coleção Os Pensadores: “(...) dos pré-socráticos a Sartre, Merleau-Ponty, passando por todas as escolas filosóficas” (MS, p. 399). Leem Érico Veríssimo e discutem sobre “sua ironia fina, sua amarga visão dos homens e suas personagens femininas, fortes e dominantes”. Depois, vão para Jorge Amado, Mário Palmério, Machado de Assis, José de Alencar, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Drummond e Pessoa.
Com toda essa bagagem, Mendes fala de sua experiência viva, e confessa que o crime e a ideia de malandragem que o tornaria um bandido famoso, se afastam de seu foco de visão. Entende como toda a dor que experimentou poderia torná-lo mais humano, e não um revoltado que deveria sair praticando mais crimes. Essa generalização empírica, que é uma conclusão argumentativa retirada da observação de fatos, tem a natureza da “política de si” que se configura como um autoinvestimento para se escapar de uma situação doravante considerada como um deletério. Tal generalização torna-se possível pela escrita e pela transmissão a uma série de leitores virtuais que deverão seguramente examinar a verossimilhança do desenvolvimento argumentativo do emissor. A maneira pela qual a conclusão dissertativa se processa pode ser explicitada pela formação de feixes de relações inteligíveis que sejam capazes de ir configurando uma imagem final suscetível de acionar um conhecimento geral de cunho social. Mendes termina o livro em 2000, sempre na Casa de Detenção de São Paulo, mas como estudante de Direito na PUC. Já em regime semiaberto de prisão, casou-se e tem dois filhos. Sua “política de si” o faz dizer “Ainda sou aquele, mas sou também outros” (MS, p. 409). E conclui: “Sim, embora não acredite muito em mudanças do que somos, julgo mais correto pensar em aperfeiçoamento do que somos através de processo sedimentar.” Este processo da política de si, no que tem de potência de estabelecimento de inúmeros feixes relacionais da vivência empírica e de instauração de várias relações a si mesmo, parece apreendido pela voz narrativa que informa como a leitura e a escrita tem a força de produzir muitas espécies de aperfeiçoamento. Finalmente, torna-se amigo de Fernando Bonassi que o incentiva a publicar, e cita, em suas últimas linhas, a simpatia do médico Dráuzio Varella que ia visitá-los na Casa de Detenção antes do massacre do qual era um sobrevivente. O escritor ilustra bem o funcionamento de um local traumático, constrói seu espaçomatriosca, e o transmite como um arquivo memorial que abrange a época da ditadura militar e a época posterior.
A corte infiltrada (2017), Andréa Nunes
A temática das escritas de cárcere se alinha igualmente com uma parte considerável da cultura brasileira relativa ao crime organizado, um contexto sociopolítico gerado pela ditadura militar iniciada em 1964. Nesse sentido, surge um novo tipo de romance policial, com características intrinsecamente brasileiras, mas que ultrapassa os limites das fórmulas.
No século XIX, o gênero policial possui uma estrutura que se identifica pela presença de um cadáver e da investigação (por um detetive), conduzindo a uma revelação surpreendente de um criminoso, acima de qualquer suspeita. O precursor do gênero foi o conto Assassinatos da Rua Morgue (1841), de Edgar Allan Poe, que continuou escrevendo várias outras histórias, editadas em histórias populares. Muitas obras classificadas como narrativa distópicas tornaram-se produtos literários e cinematográficos de fatura artística, com alto grau conotativo e polissêmico. Algumas dessas obras se aliaram às fórmulas policialescas ou de ficção científica, produzindo, entretanto, valores artísticos universais, capazes de atravessar um cenário espaço-temporal determinado.
O romance A corte infiltrada. Quem controla o controlador (2017) de Andrea Nunes (promotora de justiça em Recife) é classificado como um thriller, um romance policial. Todos os elementos da fórmula se encontram nele. Entretanto, não é a fatura policial que interessa ao nosso enfoque, mas o fato de a obra lidar com o mundo vivido do crime organizado relacionado com o sistema representado por poderes científicos e judiciários.
Vejamos um breve resumo: no romance, o crime organizado planeja se infiltrar na mais alta corte do país. O objetivo será o de influenciar na decisão dos ministros que julgarão o líder do PCC, uma facção criminosa, que domina presídios e espalha o temor em várias cidades. A trama começa a se desenvolver quando um ex-repórter policial investiga a morte misteriosa de um monge budista, em um hotel de Brasília, assassinado horas antes de uma audiência com o presidente do STF.
O monge iria denunciar o plano criminoso do PCC, pronto a criar um Primeiro Comando do Nordeste, em Recife, consistindo em usar o I-Brain, com mecanismos de estimulação do cérebro desenvolvidos por neurocientistas. Para isso, o PCC trabalhava com a Tesla Comunicações no intuito de instalar um sistema de telefonia celular no STF que, por “estimulação magnética transcraniana” flexibilizaria o julgamento moral pelos ministros, deixandoos mais “sensíveis” aos argumentos de defesa para absolver o réu perigoso. O desenlace surpreende o leitor, principalmente que o happy end revela o
Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais desafio da jovem budista em colocar em jogo seu karma para se entregar ao amor com o parceiro jornalista.
Este romance se enquadra, assim, em um conjunto de sinalizações distópicas, e inaugura elementos temáticos para a criação inovadora de uma forma de romance policial ou de ficção científica brasileiro. Não vamos tratar desta questão nesse momento.
O romance em questão lida com o campo semântico do Poder Judiciário, sediado na cidade de Brasília, capital do país. É uma cidade caracterizada, pela noviça Taís, como medieval, com estruturas de poder bem organizada: “A Esplanada dos Ministérios me lembra a ideia que sempre fiz de como seriam as cidades medievais. Há os reis e generais que decidem os destinos do país e estão empoleirados em seus castelos, traçando estratégias”. À sombra desta estrutura de poder, está a plebe, aqueles que lutam pela sobrevivência, fazendo manifestações e protestos nas praças públicas, sendo controlada pelas forças policiais: “E, como em todo bom romance medieval, há bandidos dentro e fora das paredes dos palácios, que ameaçam a paz do reino” (NUNES, 2017, p. 118). Edgar não deixa de assinalar que o “querido” Kubitschek deveria estar se revolvendo no túmulo, ele, que havia projetado uma cidade ultramoderna. Com narração onisciente, percebe-se como Edgar, como repórter investigativo, torna-se célebre, vendendo suas matérias para jornais no exterior, com as facilidades da internet. Ele torna-se frila, após ter trabalhado para os Cadernos de Política e de Polícia e ter tido a vida ameaçada pela chamada “máfia do lixo”. Essa configuração prática do contexto narrativo é o sintoma exponencial de um acoplamento ainda mais significativo com os espaços policiais e criminosos. Trata-se de uma verdadeira indexação das singularidades pessoais aos fluxos culturais da sociedade do infradireito, que abarca várias gerações em decadência moral.
A narrativa distópica de Nunes realinha, todavia, o labirinto do realismo brutal dos cortiços e favelas, à medida que o crime organizado é posicionado em linha paralela com o mundo claro e articulado do contexto jurídico da cidade hipermoderna, Brasília, e do contexto científico do Instituto de Neurologia de Recife. Os cientistas deste Instituto trabalham com os monges do Mosteiro budista, dando assistência aos doentes mentais da comunidade. Pode-se dizer que a discursividade do infradireito se alinha com a discursividade de espaços institucionais no propósito de tensionar o crime e o poder. Edgar e Taís vão visitar o professor Sóstenes na biblioteca do Supremo Tribunal Federal, o qual, mesmo aposentado, ainda tem acesso ao local. Ele esclarece:
- Vocês já ouviram falar do Comando Vermelho e do Primero Comando da Capital, não é? São facções do crime organizado, como vocês sabem. Assim como eles, muitas outras foram surgindo nesse país. Algumas ações policiais, em determinados Estados, vão desmantelando focos desse esquema, mas ele renasce em outros Estados, com outros nomes (...) (NUNES, 2017, p. 110).
- Deixe-me chegar ao ponto, mocinha: é que o plano mais ousado do crime organizado, segundo chegou ao meu conhecimento, é tomar o poder central neste país! Eles têm investido muito nisso, pagando os estudos de bandidos em faculdades para se tornarem advogados; há até mesmo a corrupção de juízes e promotores a serviço das finalidades criminosas deles. Têm financiado campanhas políticas em vários níveis, proporcionais e majoritárias, para eleger bancadas legislativas, prefeitos e governadores comprometidos com a sua causa. (...) e planejam agora um voo mais ousado: se infiltrarem na Suprema Corte do País, colocando um deles para ocupar a vaga de ministro! (NUNES, 2017, p. 110-111)
- Você sabe que, durante todos esses anos de dedicação à toga, tenho tentado combater facções criminosas e, por onde tenho passado, minha vida pessoal foi muito sacrificada por isso: não tive filhos e minha mulher me deixou quando eu resolvi morar dentro do fórum para não levar um tiro quando voltasse para casa. Esses são percalços que a gente enfrenta, por dever de ofício, mas enfim...foram muitos anos combatendo bandidos mais poderosos e bem mais estruturados que o Sistema (NENES, 2017, p. 111).
Enquanto texto atualizável, com suas pretensões de validez e horizontes intercambiáveis de um mundo de vida e de um sistema político corrupto, os discursos do Dr. Sóstenes mostram as condições de área de disputa entre as forças criminosas que dominam a sociedade brasileira. As organizações criminosas, nascidas em presídios, desenvolvidas nos labirintos precários e decadentes da periferia urbanas, cujos signos se organizam em torno do infradireito, da fantasmagoria jurídica, geram disputas político-culturais para alcançar as fronteiras do mundo articulado da Suprema Corte.
A grande invasão da esfera externa deletéria, própria das favelas, se estrutura no investimento de estudos de Direito para os discípulos do crime que deverão se tornar capazes de dominar os códigos dos juízes e promotores, penetrando no centro do campo jurídico do país. Por conseguinte, tentam igualmente influenciar as campanhas políticas, proporcionais e majoritárias, que estejam dispostas a comprometer-se com as causas marginais. O sentido de texto aparece, então, bastante memorial, com seus jogos combinatórios, suas pretensões de validez, uma alta instrumentalidade de seus discursos citados em relação não apenas ao seu contexto narrativo, mas aos intertextos que orbitam em torno dele.
O espaço da trama criminosa se apresenta, assim, limpo e organizado, pondo em relevo quatro monumentos: a sede do Supremo Tribunal em Brasília, o Instituto Ricardo Brennant 3 , o Mosteiro Budista e o Instituto de Neurologia. Vale ressaltar a descrição do Instituto Brennant, majestoso, com palmeiras imperiais, como um “mergulho nas raízes pernambucanas do Brasil Holandês, a época de Mauricio de Nassau” (NUNES, 2017, p. 122). E é neste Instituto onde a trama começa a ser decifrada, pois Edgar e Taís vão até o Castelo de Armas e chegam na parte das armas orientais. Haviam sete mandalas, com a fina técnica japonesa da pintura sobre a seda, que ocupavam quase a parede inteira. Taís, então, se recorda que o mestre budista tinha encomendado oito mandalas, mas esta última havia desaparecido. Eles a encontram, posteriormente, sob o colchão do mestre, em um saco de tecido fino e amassado. Dentro da costura, acham uma mensagem oculta contendo uma sequência numérica que Edgar fotografa. Taís desenrolou novamente a peça de tecido na mesa do escritório e exclamou: “— A oitava mandala é a representação artística da planta do Instituto”.
Edgar, um repórter policial experimentado, reconhece na sequência numérica do Alfabeto Congo, código utilizado, em larga escala, pelo Comando Vermelho e o PCC. O monge havia sido assassinado porque tinha ido à Brasília, avisar ao STF que os aparelhos celulares, encomendados pela Tesla Comunicações estavam sendo manipulados pelas organizações criminosas. Um dos cientistas, o Dr. Ciro, explica:
- A Tesla mal botou a mão no meu invento e já designou uma equipe de engenheiros de telecomunicações para construir o protótipo do super celular. O plano era adaptá-lo ao sistema de telefonia de quarta geração e aproveitar essas potencialidades para operar em banda extralarga. Na verdade, eu mesmo supervisionei a equipe de engenheiros que construiu o protótipo desse celular. Foi então que me vi obrigado a revelar a maior falha do projeto – ele baixou a vista, envergonhado (NUNES, 2017, p. 193).
Sistemas semióticos particulares já começam a se entrecruzar, ultrapassando fronteiras, a fim de instaurar a estrutura de uma cultura de cibercrime altamente articulado. O metatexto é explicitado pelo Dr. Ciro que se vê manipulado por uma equipe de engenheiros, apta a trabalhar em seu invento para servir às organizações. A esse respeito, devemos notar a possibilidade de incluir nos complexos culturais da justiça as manifestações das estruturas médicas que visam a configuração da mente e da moral humanas. Trata-se de um invento de estimulação magnética transcraniana que potencializa certas áreas do cérebro para produzir seres humanos temporariamente amorais. Dessa forma, o monge Nobu, desde que soube que o aparelho possuía o efeito colateral de flexibilizar o julgamento moral das pessoas, insistia com o Dr. Ciro para levar o fato ao conhecimento do presidente do STF. Por essa razão, ele foi assassinado: alguém muito próximo a ele sabia que viajava com um saquinho de chá verde que foi substituído por um chá envenenado. Finalmente, Taís e Edgar se confrontam com a enfermeira Catarina, que confessa ser a representante do Terceiro Comando do Nordeste, a que viabiliza as ações dos criminosos no Instituto.
- Infiltrar-se no Supremo Tribunal Federal é uma aspiração antiga do crime organizado. Pode-se dizer que conseguimos colocá-la em prática, em alguns níveis muito sutis de tráfico de influência, mas nada com uma efetividade como poder flexibilizar o julgamento moral de todos os ministros quando estiverem analisando os crimes e as penas a serem imputadas a membros de nossa organização. (NUNES, 2017, p. 221)
- Desde que passei a viver nos morros cariocas, ainda no início da juventude, convivi com muita cobra que engolia cobra, garota. Como mulher, tive de aprender muito cedo a representar para sobreviver. Os homens tinham a força física e o acesso às armas. Eu só tinha meu poder de sedução. E, acredite, eu soube usá-lo muito bem, quando a polícia pacificadora invadiu o morro e prendeu todo mundo, inclusive o meu marido. (...) A ocupação dos morros pelas UPPS fez muitos de nós, do crime organizado, migrar para áreas menos exploradas, como o Nordeste. (...) A célula de saúde da nossa organização já me havia pago um curso de enfermagem quase completo, quando surgiu a oportunidade de emprego por lá (no Instituto). Fiz um treinamento intensivo à parte com médicos que servem à organização... (NUNES, 2017, p. 224).
Acrescentando que usou seu “poder sexual”, que é o que “move o mundo”, Catarina explicou à Taís que manipulou sua presa, o Dr. Ciro, o autor do invento, para ter acesso a todas as informações e relatórios medicais do Instituto. O romance permite visualizar a trajetória da mulher marginal que atua nos labirintos dos morros, seduz os soldados das UPPs, alcança a “célula de saúde” da organização, no Nordeste, médicos a serviço do crime, e passa a trabalhar para concretizar os planos ambiciosos de uma célula criminosa. Observa-se que a linguagem em jogo, nesse caminho, é aquela que se encontra no núcleo das tensões entre as forças entre periferias e centros dos espaços memoriais do país. A produção e a recepção de uma interatividade complexa, como forma predominante de formação de uma rede narrativa, o espaçomatriosca, permite o entrecruzamento dos discursos científicos (médicos e de engenharia) com o discurso hipercondensador do infradireito que contorna o labirinto dos morros para se alinhar nos espaços estruturados próprios aos geogramas dos laboratórios e da Corte.
A sociosemiose plena da interatividade promove e fomenta que uma certa esfera de mundo vivido se trance com o sistema político, desviando, por conseguinte, o discurso jurídico do campo nacional relativo à Justiça. A reescritura política se torna fantasmagoricamente inédita, quanto perigosamente expansiva. Ela açambarca e rearticula vários setores do mundo vivido, do domínio econômico-financeiro aos circuitos sócio-políticos, da dimensão cultural ao reduto concreto dos comportamentos, sendo capaz de eleger os governantes do país. O imperativo dessa tessitura discursiva intensiva não demonstra senão o quanto uma semiose interativa dos espaços-matrioscas, ao invés de construir em sua diversidade dialogada, uma textualidade dotada de identidades, significação e finalidades próprias, pode igualmente fugir ao controle dos centros políticos, e erigir o infradireito como pilar de uma sociedade precária. Este é o cerne de um realismo distópico, destinado a encaminhar a socialização e a interação dos indivíduos de par com a significação que emana originariamente de corporações marginais, germinadas em presídios, morros, ruelas, labirintos tortuosos, autorizadas por regimes de ditadura. Trata-se de uma memória geracional que passa a ser transmitida através de vários dispositivos de espaços-dobradiças.
O realismo distópico de Nunes, conhece, todavia, um final feliz, e planta uma esperança no combate à expansão do crime organizado. Após a morte de Catarina, por um agente da polícia federal, que se fingia de enfermo para averiguar os fatos, o Dr. Ciro, que colaborou com os bandidos é convocado para utilizar sua ciência a serviço do bem. Ele seria preso e condenado, mas sua ressocialização consistiria a ajudar o governo na resolução dos crimes. Trata-se de “preparar uma espécie de scanner da mente dos criminosos.Com a ajuda de matemáticos, será criado um algoritmo que aprenderá a reconhecer, pelo mesmo sistema usado no eletroencefalograma, os sinais emitidos durante a atividade cerebral mais sofisticados seres humanos” (NUNES, 2017, p. 252). Seria uma forma de auxiliar um Estado burocrático atrasado contra um inimigo astuto, preparado cientificamente, e invasivo.
Finalmente, Edgar torna-se um jornalista célebre, com sua reportagem sobre o crime no STF, casa-se com Taís, que desiste de ser monja e conclui a trama, enunciando:
Quem eram os bandidos mais perigosos naquela história? Os que detinham o poder paralelo ou os que gozavam, sem ética alguma, dos privilégios do poder oficial? (NUNES, 2017, p. 260).
Considerações Gerais
Durante os anos de chumbo, formou-se uma realidade caótica de violência que transformou o panorama social do país. A reestruturação das classes ditas perigosas , lutando para sobreviver, deu origem a novos agentes sociais e políticos, capazes de interferir nos destinos da nação. As favelas, como extensão das senzalas e dos cortiços, que já tinham sido confinados, durante os planos de modernização, continuaram guardando a “alma” artística do país. No entanto, passaram a abrigar as corporações poderosas, nascidas do convívio nos cárceres, contra as formas repressoras de tratamento, que, para continuar sobrevivendo, desenvolveram o tráfico de drogas. Com o tráfico, se instaurou uma forma de intervenção, tida como o coronelismo urbano, que se apropriou da vida comunitária nas favelas, instituindo códigos de conduta e de legislação próprios que ficou conhecido como o “poder paralelo”. Tal poder mostrou a falência do Estado de Direito, no país, de duas formas. Primeiramente, ficou claro como as populações carentes das periferias urbanas e as da zona rural, que vinham engrossar as fileiras das favelas, haviam sido deixadas no abandono por tantas décadas. Em segundo lugar, pode-se ver a ascensão do poder paralelo, inicialmente, sem nenhuma coibição, e, em seguida, com a convivência das instituições públicas e do Estado em geral. Formou-se assim uma memória coletiva intergeracional. Em termos de representação, foi a época do surgimento de uma série de narrativas conectadas com esta realidade social (em várias formas: romances, diários, (auto)-biografias, etc.), as quais se tornaram matrizes para filmes premiados, com grande sucesso de bilheteria. Surgiu, então, uma corrente literária autofictícia que passou a refletir igualmente a memória política do país.
Qual pode ser a realidade de um compartilhamento de representações de um estado de justiça? E qual pode ser a realidade de um compartilhamento de lembranças de vivências e convivências numa espiral de crimes e castigos?
Os movimentos das lembranças se cruzam e se interpenetram, forçando, de todas maneiras, uma emergência de representações de referentes que dão uma visão construída de cada situação. Lidamos com tantas memórias que são exatamente referentes transcriados e transpostos para a cena discursiva.
Alguns formaram memórias de prisão com enquadramentos sensoriais de experiências, muitas sofríveis, outras de descobertas, outras de salvação, como os exemplos de Alberto Mendes Estas são, inicialmente, memórias indiciais, de natureza singular, que nascem sem a menor garantia de serem compartilhadas. Representam relações de si para si mesmo, um trabalho de si sobre si mesmo, um conjunto da personalidade de um indivíduo que emerge da memória, como devem existir um número infinito. É um trabalho árduo para construir seus espaços-dobradiças de transmissão.
Quando, então, essas memórias singulares podem se tornar representações de memória coletiva e guiar a construção de uma história? Na maior parte do tempo, existe uma lógica do esquecimento, que é inconsciente, mas pode acontecer de se tornar consciente e de fazer o sujeito falar de um passado feito de rupturas e violências que desenham um traçado que redimensiona uma vida a partir de traços dispersos de um passado coletivo. A forma do relato, que singulariza um ato de rememoração, pode se ajustar às condições coletivas de rememoração coletiva, e atingir o nível simbólico dos espaços-dobradiças. Nesse sentido, as memórias singulares aqui tratadas fornecem, primeiramente, múltiplos instrumentos para a compreensão de uma série de acontecimentos que formaram a natureza da realidade que o país está vivendo no presente e que, ainda perplexo, pelo nível de violência, não consegue entender os enredamentos históricos. Nos esforços de escrita, que permitem os jogos das lembranças e do esquecimento, se instaura aquela estética admirável que nos leva ao contacto com os arquivos históricos do país. Este ideal estético está na potencialidade das ideias que as memórias singulares desenvolvem, suscitando sentimentos prazerosos ou horripilantes, que acionam a consciência para tecer uma nova narrativa histórica coletiva.
Referências
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Memória, exílio e escrita de si em A Resistência de Julian Fuks e Azul Corvo de Adriana Lisboa
Neste trabalho, analisamos os romances Azul Corvo, de Adriana Lisboa, e A Resistência de Julián Fuks, buscando evidenciar, através da rememoração da memória, o exilio nas narrativas de filiação, gênero pertencente à escrita de si, dos narradores das referidas obras. O suporte teórico que serviu de base para amparar a pesquisa foram os estudos efetivados por: Lejeune (2008), Viart (2008), Noronha (2014), Doubrovsky (1977), e Costa (2020), no que diz respeito à escrita de si; e em Izquierdo (2018), Halbwaschs (1990), e Pinsky (2004), entre outros, sobre memória e exílio.
Julián Fuks, brasileiro, nascido em São Paulo em 1981 e de raízes argentinas, nasceu no Brasil quando seus pais para aqui emigraram fugindo da Ditadura argentina. Recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro A Resistência (2015). O livro é escrito em primeira pessoa e, como tal, a subjetividade é presença marcante em todo o texto. Conquanto seja um livro reconhecido como autobiográfico, e se trate da vida pessoal de Fuks, não há a coincidência de autor/narrador/personagem, embora tudo remeta para este fato, que revela ao leitor o fluxo de consciência do autor e suas vivências.
Neste livro, Fuks narra o processo de adoção de seu irmão no processo de fuga dos pais, que vieram ao Brasil para um curto período, mas decidiram permanecer. Ele explica que o título deste livro seria outro, em uma entrevista que dá à Revista CULT: “O romance a princípio se chamava ‘o irmão possível’, que colocava mais centralidade na questão da adoção, só que a editora tinha problemas com esse título”.
A Resistência relata a história familiar de um casal de médicos argentinos que imigram para o Brasil na década de 70 carregando somente o necessário para não serem pegos pela polícia. Ativistas políticos, eles adotaram um menino, cuja mãe é descrita como uma italianinha muito jovem, que havia sido rejeitada pelo namorado e cuja família não aceitara a criança, embora haja alusão também ao fato de a criança ter tido uma mãe que fora vítima do regime ditatorial.
Fuks e sua irmã nascem no exílio. Assim, a família é formada pelos cinco membros: os pais, o irmão adotado, Sebastian, e sua irmã. A partir daí, a narrativa vai fluindo em flashbacks, sempre eivados de evasivas do narrador, que ora narra os fatos vivenciados, ora o que ouvira dos outros.
Azul Corvo, de Lisboa (2014), baseia-se na adolescente que tem sempre um interesse em saber o que há por trás das relações com sua família, e descobre que seu pai biológico era americano, que a mãe havia rompido relações com ele e havia se mudado para o Novo México, levando a filha do casal com ela:
“Minha mãe gostava de romper relações com os homens e desaparecer de suas vidas. A tendência foi inaugurada ali, com meu avô geólogo” (LISBOA, 2014, p. 19). Com a morte da mãe, Vanja encontra um meio de viajar para os Estados Unidos e procurar seu pai biológico.
Azul Corvo se insere no gênero da escrita de si. A narradora é Evangelina que, ao retornar aos espaços de recordação de sua infância e adolescência quando se encontra em idade adulta, retorna ao passado de sua infância para resgatar sua identidade e, nesse ir e vir, avalia a personalidade enigmática de sua mãe, através das lembranças encobridoras de seu nascimento, revelando a sensação de deslocamento experimentado pela protagonista, e analisa como é sentir-se estrangeiro em um país de cultura diferente.
A escrita de si é um gênero literário que caracteriza narrativas em que um narrador, em primeira pessoa, se identifica explicitamente como sendo o autor, o narrador e o personagem que narra sua história, mas vive situações que podem ser consideradas ficcionais. Antes de estas situações serem consideradas ficcionais, Lejeune (2008, p. 14) denominava este tipo de escrita como sendo:
“narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enquanto focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade.” O teórico esclarece que a escrita de si aponta algumas marcas que a caracterizam como tal, pois “[...] o assunto deve ser principalmente a vida individual, a gênese da personalidade: mas a crônica e a história social ou política podem também ocupar um certo espaço” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Mais adiante, na mesma página, Lejeune reitera: “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem”.
Lejeune (2008, p. 21) faz sua análise partindo do principio de que o pronome pessoal “eu” remete ao enunciador da instância do discurso na qual está presente este “eu”, mas o enunciador pode também ser designado por um nome, quer se trate de um substantivo comum, determinado de diferentes maneiras, ou de um nome próprio. Nesse sentido, Todorov (apud Lejeune, 2008, p. 22) afirma que é no nome próprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa, como demonstra a ordem de aquisição da linguagem pela criança, que fala de si mesma na terceira pessoa, chamando-se pelo próprio nome, bem antes de compreender que também pode utilizar a primeira pessoa. Em seguida, todos utilizam “eu” para falar de si, mas esse “eu”, para cada um, remeterá a um nome único que poderá, a qualquer momento, ser enunciado. Todas as identificações (fáceis, difíceis ou indeterminadas) acabam fatalmente convertendo a primeira pessoa em um nome próprio.
Para Lejeune (2008), um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica, uma vez que inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre tais elementos. O autor se define como sendo, simultaneamente, uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e imaginá-lo, então, a partir do que ele produz. [...] se a autobiografia é um primeiro livro, seu autor é consequentemente um desconhecido, mesmo se o que conta é sua própria história: falta-lhe aos olhos do leitor, esse signo de realidade que é a produção anterior de outros textos (não autobiográficos), indispensável ao que ele chama de “espaço autobiográfico (LEJEUNE, 2008, p. 23).
Escrever sobre si mesmo ou sobre fatos vivenciados e testemunhados por si não deixam de ser histórias, e isso não apenas quando a contam em atos de narrar deliberados, dirigidos a outros ou a si mesmos, mas de forma incessante, na atividade mental de representação e de construção de si, a partir da qual cada indivíduo verifica, mantém, elabora a figura interior e exterior
Margareth Torres de Alencar Costa
que ele reconhece, ou sente como sendo si mesmo. Essas figuras da vida representada, que não devem ser confundidas com a realidade, a facticidade do vivido, é o que eu chamo de biografia (etmologicamente: escritura da vida), e chamo biografação o trabalho “psico-cognitivo” de configuração temporal e narrativa, pelo qual os seres humanos dão uma forma própria ao desenrolar e às experiências de suas vidas.
Costa (2020) já afirma que escrever sobre si é por a si mesmo a nu diante dos outros e que não é fácil por o seu “eu” em banho maria, distanciar-se de si mesmo e narrar-se a si mesmo. De alguma forma, você cai na subjetividade, porque escolhe as palavras que serão ditas sobre si, volta ao texto várias vezes e faz ajustes ou borrões que comprovam ser esta escrita uma autoficção de si.
Para Doubrovsky (1977), autoficção é uma narrativa baseada na verdade e, ao mesmo tempo, um procedimento que nasce da invenção, ou seja, é uma ficção. A autoficção é uma narrativa própria da escrita de si na qual o autor tende a ficcionalizar sua própria história. São romances autobiográficos baseados em fatos, episódios, memórias, testemunhos, relatos, nos quais o autor, ao se ficcionalizar, lança mão de técnicas narrativas nas quais o leitor possa identificá-lo como autor/narrador/personagem, e que lhe permita dizer que não é ele quem está ali, reflexo da realidade contemporânea em todas as suas possibilidades de espelhamento possíveis. Na contemporaneidade, não precisa nem mesmo que ele seja o personagem principal, basta que se coloque em algum canto do romance, como se fosse um espelhamento de si, que já caracteriza esta ficcionalidade de si mesmo no texto. A teoria de Doubrovsky nasce como uma tentativa de responder a uma pergunta feita por Lejeune, na quarta capa de seu livro O pacto Autobiográfico, escrito em 1975. O teórico, que discordava dos estudos efetivados por Lejeune, responde da seguinte forma:
Autobiobiografia? Não. Este é um privilégio reservado aos grandes desse mundo, ao fim de sua vida e em bom estilo. Ficção de eventos e de fatos estritamente reais; se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à da linguagem, sem a sabedoria e sem a sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, fios de palavras, alterações, assonâncias, dissonâncias, escrita pré ou pós literária, concreta, como se diz em música. Ou ainda, autoficção, pacientemente onanista, que espera compartilhar seu prazer agora (DOUBROVSKY, 1977, quarta capa).
Os leitores poderão facilmente verificar a forma, como o pai do termo autoficção conceitua o que vem a ser entendido como autoficcionalidade, pois ele mesmo afirma, em todas as suas entrevistas, que pode ter sido o primeiro a dar nome ao gênero, mas tudo já estava lá antes de ele falar esta palavra, e que não tem nenhuma intenção de seguir teorizando sobre o mesmo. Alguns estudiosos e críticos literários, depois de Doubrovsky, como, por exemplo, Viart (2008), Noronha (2014), e Costa (2020), já vêm trabalhando sobre este tema, aprofundando as pesquisas e teorizando sobre o assunto. Para estes estudiosos, os textos considerados como pertencentes à narrativa autoficcional trazem consigo uma expressiva dose de subjetividade, esta entendida como sendo a presença do narrador que teria vivido ou testemunhado os fatos. Noronha (2014) explica da seguinte forma:
O escritor está no centro do texto como em uma autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e sua identidade, em uma história irreal, indiferente à verossimilhança. O duplo ali projetado se torna um personagem fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor (NORONHA, 2014, p. 1).
Ao contrário do que ocorre na ficção, na qual o personagem sofre e morre, nas narrativas autobiográficas – neste caso, narrativas de filiação – é o sujeito real que, através da rememoração de seu passado, vai narrando aos leitores o que de fato ocorreu com ele, o progresso de sua busca, ou as consequências de suas tragédias pessoais para ele ou ela e para os outros porque, segundo Lima:
Memória e autobiografias são substitutos dos espelhos. Se estes metálicos e implacáveis, assim com o desgaste dos traços, o torpor dos olhos, a redondez do ventre, fechamo-nos contra a maldade dos espelhos e procuramos nos rever no que fomos, como se o percurso da antiga paisagem nos capacitasse a nos explicar ante nós mesmos (LIMA, 1986, p. 244).
Uma das marcas que caracteriza a narrativa de si é a presença marcante da memória, ela está presente quando os narradores refletem sobre si, sobre suas vivências, sobre os fatos vividos ou testemunhados, que precisam ser contados como uma espécie de autocura, uma forma de entender o passado, para poder modificar o presente ou mesmo na esperança de um futuro, quando o narrado tenha o poder de lembrar o passado para modificar aquilo que não foi possível modificar em outra ocasião. Lendo as duas obras que são nosso objeto de estudo, nos deparamos com uma adolescente rememorando seu passado em busca de sua identidade, procurando informações sobre porque sua mãe nunca lhe revelou quem era seu verdadeiro pai, era uma bastarda, tinha que encontrá-lo para finalmente ser reconhecida e poder seguir em frente. Na mesma linha, vemos Sebastian, de A Resistência, caminhando pelas ruas de Buenos Aires a procura da verdadeira mãe de seu irmão e também em busca de sua identidade fragmentada. Eram ele e seu irmão dois deslocados. Seu
Margareth Torres de Alencar Costa
irmão, por ter sido adotado e apátrida, tendo que fugir com sua família para outro país, ele pelo motivo de ter nascido no exílio.
O romance Azul-corvo pertence à narrativa de filiação, na qual o personagem principal fala de si, ficcionaliza sua história, mas as marcas da bastardização, do trauma, melancolia, sofrimento familiar e solidão são mais marcantes neste gênero textual da autoficcionalidade. A narrativa de filiação teve sua origem nos estudos de Dominique Viart (2008), que expõe algumas características que o configuram como um dos desdobramentos da escrita autobiográfica.
Laura Barbosa Campos, em seu artigo A escrita do Trauma em Clémence Boulouque e Delphine Vigan, afirma que foi no final do século XX que surgiu a modalidade específica de autobiografia, denominada pelo teórico Dominique Viart de narrativas de filiação, na quais geralmente a história se centra iniciando por algum trauma experienciado pelo narrador(a) da história. A narrativa de filiação é uma manifestação autobiográfica que tem uma ampla tendência a contemplar textos referenciais como autoficcionais. De acordo com Viart, “O relato do outro – pai, mãe ou tal antepassado – é o desvio necessário para chegar a si, para se compreender nessa herança: a narrativa de filiação é um substituto da autobiografia” (VIART, 2008, p. 80).
Andrea Czarnobay, em seu artigo Da Casa Vazia de Philippe Lejeune ao Neologismo de Serge Doubrovsky: os primórdios do conceito de autoficção no século XX, publicado na revista Garrafa em 2019, aponta, com base nestes dois teóricos, as características do gênero autoficccional. Sendo a autoficção um gênero híbrido, uma vez que se situa entre a escrita autobiográfica e autoficcional, cujo conceito teve sua raiz no livro Fils de Serge Doubrovsky, Azul Corvo é um texto literário pertencente ao gênero da escrita de si que traz em seu interior a subjetividade que o caracteriza como sendo uma autoficção, uma vez que se apoia em fatos reais aliados à subjetividade, e a ficcionalização de si está bem exposta, apresentando características que o enquadram na narrativa de filiação. Vanja está longe de ser uma adolescente que não sabe se proteger, pois tem domínio de uma língua estrangeira e foi criada para ser independente, muito embora não se espera que uma menina de 14 anos seja independente em muitos aspectos, visto que, convenhamos, aventurar-se em uma terra estrangeira, sem conhecer ninguém, com uma amizade que fez por internet, certamente deixaria mais da metade de nós perplexos, porque o mundo moderno está cheio de armadilhas até mesmo para adultos resolvidos. De certa forma, a heroína do romance que hora nos debruçamos tinha este entendimento, porque ela mesma o expressa: “Talvez aquela mulher nos lembrasse que é preciso fazer cerimônia com o mundo, que isto aqui não é de brincadeira, que isto é coisa séria e perigosa, e que o simples gesto de pisar no chão já te confere uma responsabilidade inimaginável.” (LISBOA, 2014, p. 12).
Por sua vez, em A Resistência, o narrador em primeira pessoa, Sebastian/ Fuks, rememora a situação de exílio forçado da família para fugirem de tortura e muita dor por conta da Ditadura Argentina. O exílio, neste caso, é considerado um passo doloroso, a partir do qual seus pais e seu irmão tiveram que recomeçar a vida do ponto zero, enfrentando as dificuldades de adaptação, a aprendizagem de uma nova língua, e a convivência com uma cultura diferente, o que para Fuks e sua irmã, nascidos no exílio e com naturalidade brasileira, já não foi uma experiência tão traumática.
Em Azul Corvo, vemos uma Evangelina muito confusa com a mudança de ares. Sair de seu lugar, de sua terra, que ela considerava extremamente linda, não é um momento feliz. Sua mente, seu corpo e seus hábitos teriam de mudar para poder se acostumar com a nova realidade, que havia sido escolhida por ela mesma, por vontade própria, na tentativa de buscar os fios que a ligavam ao passado de seu nascimento. Ela ficava muito incomodada com a falta de umidade, o calor seco que ressecava a pela e adoecia os pulmões, e Fernando dizia para ela que a gente acabava se acostumando com aquela vida sem nexo. E ela olhava para aquele homem que estava tão sem perspectiva, acostumado a tudo que era ruim: “Em Copacabana, Rio de Janeiro, havia baratas, amendoeiras, mosquitos, maresia, pombos. Igrejas. Supermercado Mundial. McDonald’s. Em Lakewood, Colorado, havia coelhos, cães-depradaria, corvos. Igrejas. Super Target. McDonald’s” (LISBOA, 2014, p. 15).
O Rio de Janeiro era sua casa, sua pátria, seu lugar, lá tudo era bom, bonito e cheirando a saúde e alegria de viver, ao contrário de Lakewood, onde tudo era solitário e triste e as pessoas conformadas, com seus sorrisos tristes, com esta solidão. Evangelina, ao emigrar para os Estados Unidos, percebe que está por sua própria conta. O sentimento que a menina experimenta deixa-se notar porque, segundo Izquierdo (2018, p. 2), “O conjunto das memórias de cada um determina aquilo que se denomina personalidade ou forma de ser. Um humano ou animal criado no medo será mais cuidadoso, introvertido, lutador ou ressentido, dependendo de suas lembranças específicas, mais do que suas propriedades congênitas.” Assim é que, ao ser convidada para ir a uma piscina pública, Vanja se pega observando as roupas demasiado grandes nas pessoas que frequentavam o ambiente, comparando-as com a mesma situação nas praias do Rio de Janeiro: “Agora, em Lakewood, havia: biquínis e maiôs grandes em tecidos que às vezes formavam papadas na bunda. Homens de bermuda. Na beira da piscina, pessoas comendo hambúrguer e batata frita e
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bebendo cerveja e refrigerante em copos king-size de papel” (LISBOA, 2014, p. 13).
A lembrança de nosso país, nossa cidade, as pessoas com quem convivemos, nos faz sentir parte de uma casa, um bairro, uma cidade. Nossas recordações nos fazem sentir bem ou não. A identidade dos povos, dos países e das civilizações, de acordo com Izquierdo (2018), provêm de suas memórias comuns, cujo conjunto denomina-se História. “A França é a França porque seus habitantes lembram-se de coisas francesas. Carlos Magno, Napoleão, Victor Hugo, Verlaine, a Torre Eiffel, Paris. O conjunto dessas lembranças faz os franceses se sentirem e serem franceses” Izquierdo (2018, p. 3). Desta forma, as noções de nação, nacionalidade e cultura nos fazem desenvolver atitudes de pertencimento ou não. Vanja sentia que o Rio de Janeiro era o seu lugar: memória autobiográfica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e denso (HALBWACHS, 1990, p. 55).
Antes, em Copacabana, havia: biquínis minúsculos. Bundas de fora. Uma ou outra mulher passando água oxigenada nas pernas para alourar os pelos. Dependendo do ponto, muitas crianças. Dependendo do ponto, algumas prostitutas. Corpos musculosos correndo sob o sol. Corpos flácidos correndo sob o sol. Sungas apertadas delineando o saco dos homens e revelando para que lado ficava o pênis. Quando eu não tinha mais nada para fazer, na praia, brincava de elaborar estatísticas – se havia mais homens com o pênis para o lado esquerdo ou para o lado direito (LISBOA, 2014, p. 13).
A adolescente já sentia que a vida na terra, principalmente como imigrante em um país que não é o seu, é muito perigoso. Uma adolescente, que era muito observadora e já observava os detalhes, ao comparar as pessoas nas piscinas públicas dos Estados Unidos com os cariocas nas praias do Rio de Janeiro. Afinal, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios” (HALBWACHS, 1990, p. 51).
Costa (2020), em seu texto Soror Juana Inês de La Cruz: eu vim para dizer não e paguei o preço de minha ousadia, aponta para uma necessidade de testemunho íntimo como meio de refletir sobre o vivido, e quem o faz promove uma reflexão sobre os desdobramentos da escrita de si, o testemunho, as memórias, as cartas, e os diários, como um mecanismo que permite ao indivíduo expor a história de sua existência através do exercício da subjetividade. Escrevendo suas experiências, buscando a origem de suas raízes, as respostas para os traumas de família e a cura de seus próprios traumas, o sujeito tece sobre si textos carregados impressões pessoais, e, assim, a inconstância do narrado, que ora se dá de forma consciente e os biografemas aproximam-se do real, ora se dá de forma ficcionalizada, aproximando o texto da autoficcionalidade. No caso de Evangelina, ao reconstruir a história da mãe, a menina narra sua infância, seus dias felizes na praia, o fato de somente terem condições de sobrevivência porque a mãe falava e escrevia muito bem três idiomas.
Eram inglês e espanhol porque ela havia morado nos Estados Unidos, nos estados do Texas e do Novo México, durante vinte e dois anos, e porque se há algo que vinte e dois anos num lugar te impõem é o domínio da língua local, mesmo que você não tenha nenhum talento especial para isso. Minha mãe aprendeu formalmente o inglês na escola. Com os tejanos, informalmente, o espanhol. E eu aprendi as duas línguas com a minha mãe, me entregando às aulas com uma resistência que nunca teria condições de competir com a resistência dela (LISBOA, 2014, p. 19).
Bakhtin (2003) afirma “a vontade de ser herói, de ter importância no mundo dos outros, a vontade de ser amado, a vontade de superar a fabulação da vida, a diversidade da vida interior e exterior e podem ser valores que organizam também a representação artística de sua vida pelo autor” (BAKHTIN, 2003, p. 143), levando-o a expor sua vida ao leitor. Assim, afirma Vanja, “Nasci, portanto, aos dois anos de idade na praia de Copacabana, e era sempre verão, mas um verão irmão da água, e minhas ferramentas para mudar o mundo, para alterá-lo e moldá-lo e torná-lo digno de mim, eram um baldinho vermelho, uma peneira, uma pá e um ancinho amarelos” (LISBOA, 2014, p. 20).
Bakhtin disserta sobre uma necessidade de reconhecimento como um ser transcendente no sentido de experiências difíceis, como alguém que lutou contra sua própria vida e que, como prêmio, consegue um lugar de herói não apenas na trama de sua vida, mas na mente social, na medida em que a autobiografia possui seu teor de coletividade. Seja como for, a narrativa de filiação trata de textos nos quais as pessoas lançam mão da narração, seja a pedido dos psiquiatras, analistas e psicólogos, seja como uma espécie de autoajuda para encarar e controlar o seu passado, que insiste em não abandonar o pensamento e a mente do narrador, levando-o mesmo a desenvolver quadros clínicos eivados de lembranças ruins, doloridas e traumáticas, que podem levar ao histerismo, angústia, ansiedade e mesmo depressões profundas, que trazem sérias consequências para os envolvidos.
Campos (2017, p. 683) aponta os estudos feitos por Françoise SimonetTenant, nos quais ela enfatiza que “uma narrativa autobiográfica propensa a se miniaturizar e que estuda o fragmento em detrimento da totalidade, concentrando-se em breves momentos determinantes da existência, como a evocação de uma perda, um encontro ou uma separação”. Esta realidade está presente em Azul Corvo, porque Vanja teve de enfrentar a doença da mãe e sua perda e, logo em seguida, separa-se de seu padrasto e vai em busca de seu pai biológico. “Seja como ‘for’, são obras que buscam dar conta de uma falta: rupturas, segredos de famílias e figuras parentais ausentes” (Campos, 2017, p. 684). A mãe de Vanja lhe contou que iria morrer, que estava doente:
E assim era e assim foi até o ano seguinte. Fiz doze anos. Meus seios pularam de repente dentro da blusa, como funcionários atrasados para o trabalho. Minha mãe morreu como avisou que ia morrer e não demorou como avisou que não ia demorar e depois disso nada mais foi como antes, como ambas sabíamos que não seria (LISBOA, 2014, p. 32).
Noronha (2014), ao falar sobre autoficção, define a autoficção fantástica nos seguintes termos:
O escritor está no centro do texto como em uma autobiografia (é o herói), mas transfigura sua existência e sua identidade, em uma história irreal, indiferente à verossimilhança. O duplo ali projetado se torna um personagem fora do comum, perfeito herói de ficção, que ninguém teria a ideia de associar diretamente a uma imagem do autor (NORONHA, 2014, p. 1).
A escrita de filiação, da qual nossos objetos de estudo fazem parte, comporta rupturas, segredos de família, figuras parentais ausentes, e outras recorrências, que se inserem nas obras Azul corvo e A Resistência. Está tudo aí, pois, mesmo aportando as marcas que as configuram como narrativas de filiação, estes romances também se encaixam na escrita autoficcional moderna. Noronha (2014) já nos adverte, em seu livro, que o fato de o autor tomar a si próprio como personagem de sua história já está apontando para uma ficcionalização de si mesmo. “Toda biografia, qualquer que seja sua ‘sinceridade’, seu desejo de ‘veracidade’, comporta sua parte de ficção” (NORONHA, 2014, p. 122).
A ficção de acontecimentos e de fatos estritamente reais, já exposta em Fils por Doubrovsky, o encontro de palavras, a narração de minha vida por mim mesmo, cheia de minhas subjetividades, meu ir e vir, e minhas rasuras do texto, já configuram, segundo esta autora, em que “a identidade do sujeito encenado é claramente fictícia, ao passo que ela permanece ambígua no romance autobiográfico” (NORONHA, 2014, p. 140).
A retrospecção de minha vida, dos fatos ligados à minha vida e que me foram narrados pelos membros de minha família, ou encobertos por eles, faz com que nos questionemos: minhas lembranças são histórias que me contaram, ou são fatos verdadeiros? Minhas lembranças reais, minhas falsas lembranças, minhas lembranças encobridoras, todas elas comportam sua parcela de ficção porque, de acordo com Noronha (2014, p. 122), “Toda autobiografia, qualquer que seja sua ‘sinceridade’, seu desejo de ‘veracidade’, comporta sua parte de ficção. A retrospecção tem lá seus engodos”.
Para Viart e Vercier (2008, p. 28), “On prend soin de soi, on s’intéresse à soi plu qu’au monde extérieur, on se raconte”. “Cuidamos de nós mesmos, estamos mais interessados em nós mesmos do que no mundo exterior, recontamos a nós mesmos”. Em Azul Corvo, a adolescente tem sempre um interesse em saber o que há por trás das relações com sua família. Ela mesma nos adverte que todos, na família, não gostam de falar de suas vidas. Nós, os leitores da obra, só vamos saber os nomes da família de Evangelina depois de muitas e muitas páginas, quando ela nos conta: “Maria Gorete e Abner foram os pais de criação de Elisa e os pais pais-mesmo de Suzana, minha mãe. Foram meus avós-mesmo, embora eu não os tenha conhecido” (LISBOA, 2014, p. 23).
Em A Resistência , vemos um personagem narrador perambulando pelas ruas de Buenos Aires em busca das raízes de seu irmão, que ele percebe cada vez mais silencioso. “Meu irmão é adotado. [...], mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz, se não quero, não posso dizer cicatriz” (FUKS, 2015, p. 9).
A sociedade moderna é eivada de violência, ocasionada pelas diversas formas de exclusão ou ausência e desestrutura do seio familiar, além das diversas formas de marginalidade do ser social das camadas menos favorecidas, jogando o ser humano cada vez mais jovem na marginalidade. Esta realidade também moveu Fuks a narrar a fuga de seus pais, que se viram obrigados a fugir de seu país por conta da violência, por conta de suas convicções políticas.
A ditadura no Brasil (1964-1985) também foi marcada pela violência, torturas, e interrogatórios que deixaram traumas em todo o povo brasileiro, principalmente naquelas famílias que foram marcados pela prisão e perda de familiares. Os direitos dos cidadãos foram retirados nessa época. Não se tinha direito a habeas corpus, quem era considerado subversivo, contra o governo, era sequestrado, torturado e, possivelmente, também morto. Durante os anos de
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chumbo, os estudantes da UNE (União Nacional dos Estudantes) foram um dos grupos mais expressivos da década de 1960, com oposição muito organizada, tendo a repressão sido muito violenta, como explica Nunes, Barros e Silva (2005). Foram presos 1.240 líderes estudantis, o que debilitou o movimento.
Fazendo um giro na América Latina, podemos verificar outros modelos de países autoritários onde muita gente poderia ser denunciada, pois enlutaram muitas famílias, alienaram mentes, deixaram marcas de traumas em muitas vítimas, proibiram manifestações culturais, reivindicações dos direitos civis, enquanto deixava na miséria a maioria da população. Foi por conta de sua posição política que Graciliano Ramos foi encarcerado e passou um período turbulento em sua vida.
Na ditadura chilena, o Pinochetazo foi um golpe que o ditador Pinochet liderou contra o governo democrático e com tendências socialistas de Salvador Allende. Por volta de vinte mil pessoas foram mortas ou estão desaparecidas, vítimas do sistema militar vigente, que, além disso, provocou centenas de milhares de presos e exilados políticos (PINSKY, 2004, p. 122-123). A tortura foi utilizada como instrumento repressor, assim como o toque de recolher, a censura da impressa, o estado de sítio, a proibição de partidos com tendências marxistas, o fechamento do congresso, e muitos outros.
A ditadura no Uruguai ocorreu em 1975, quando o país dependia das potencias capitalistas Alemanha e Itália, delas recebendo os preços, os empréstimos, os técnicos, e os carros, assim como também as ideologias nazista e fascista. Os ditadores são patriotas de uma pátria que não é a sua. Cerca de 73 a 74 vinte mil pessoas passaram por prisões, e a tortura fazia parte da prática do interrogatório (PINSKY, 2004, p. 125). Foi proibido pensar. O regime usa palavras como Pátria, Família, e Propriedade como disfarce da opressão e do horror da ditadura.
Na Argentina não foi diferente. A Ditadura Militar na Argentina ou a Revolução Argentina, renomeada como Processo de Reorganização Nacional, teve incontáveis sucessões de golpes de Estado (1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976). Com sete anos de ditadura, a Argentina passou por inúmeras atribulações, sendo a última ditadura militar foi a de 1976. Por contra destes inúmeros golpes e governos ditatoriais, muitas mães e avós organizaram um movimento social chamado de as Mães e Avós da Praça de Mayo. As avós da Plaza de Mayo têm tido mais sorte de que as mães que iniciaram seu movimento em 1977, pois as mães não conseguiram encontrar nenhum de seus filhos desaparecidos, enquanto as avós, nesse mesmo período, descobriram 28 das 180 crianças sequestradas juntas com seus pais ou nascidas em cativeiro nas prisões clandestinas do regime militar. Fuks, em A Resistência, faz várias menções a estes episódios, inclusive quando cita a adoção de seu irmão: “meu irmão se tornou meu irmão no instante em que foi adotado, ou melhor, no instante em que eu nasci, alguns anos mais tarde” (FUKS, 2015, p. 9).
O regime ditatorial da Argentina torturou crianças, jovens, adultos, de estudantes a freiras. Com o pretexto de acabar com a subversão, acabou matando crianças também. Exemplo disso é La noche de los lápices, massacre de adolescentes de 14 a 17 anos, realizado pelos militares argentinos. Ao final de sete anos de ditadura militar, o processo de democratização argentina da uns primeiros passos no dia 30 outubro de 1982, quando 18 milhões de eleitores vão às urnas para eleger um congresso, 22 governadores de província, assembleias locais, prefeitos e vereadores, em todo o país. Participam da eleição do presidente da República através de um Colégio Eleitoral. Uma tarefa nada fácil, conduzir o país despois de um longo período ditatorial, com uma grande dívida externa. No período, temos um número de 30.000 desaparecidos no regime militar argentino. Como disseram SeligmannSilva (2003, p. 73), a catástrofe não é um campo de reflexão filosófica novo, o que mudou foi sua definição. A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques, de embates com o perigo. Recordando o período da ditadura na Argentina, ilustramos um trecho do livro A Resistência quando o narrador menciona a forma como muitos bebês vieram ao mundo nos porões da ditadura: “Não quero imaginar um galpão amplo, gélido, sombrio, o silêncio asseverado pela mudez de um menino franzino. Não quero imaginar a mão robusta que o agarra pelas panturrilhas, os tapas ríspidos que o atingem até que ressoe seu choro aflito” (FUKS, 2015, p. 11).
Finalizamos este trabalho, que certamente ainda vai gerar muitos outros olhares sobre as formas de exílio, memória e escrita de si, na tentativa de contribuir para a discussão sobre este tema que, mesmo hoje no século XXI, nos leva a olhar com horror para as muitas formas de traumas, exílios forçados, tentativas de autocura por meio da atividade de escrita e reflexão da memória.
Referências
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CAMPOS, Laura Barbosa. Clémaence Bouloque: narrativa de filiação como escrita do trauma. Revista Matraga. v. 24, n. 42, p. 680-693, 2017. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ matraga/article/view/30222>. Acesso em: 17 abr. 2021.
COSTA, Margareth Torres de Alencar. Sóror Juana Inês de La Cruz:Como Antígona eu vim para dizer não e paguei o preço de minha ousadia. Curitiba: Editora Appris, 2020.
Margareth Torres de Alencar Costa
CZARNOBAY, Andrea. Da ‘casa vazia’ de Philippe Lejeune ao neologismo de Serge Doubrovsky: os primórdios do conceito de autoficção no século XX. Revista Garrafa, v. 17, n. 58, p. 22-33, 2019. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/30767/17390>. Acesso em: 17 abr. 2021.
DOUBROVSKY, Serge. Fils: roman. Paris: Éditions Galilée, 1977.
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SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au présent: héritage, modernité, mutations. 2a. ed. Paris: Bordas, 2008.
Sobre os autores
Organizadoras
Leoné Astride Barzotto é doutora em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (2008) com doutorado-sanduíche (CAPES) pela Indiana University at Bloomington, Estados Unidos (2007). Professora Associada III da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e professora permanente do PPG Letras da UFGD. Parecerista de inúmeras revistas. Tem experiência na área de Letras, atuando, principalmente, nos seguintes temas: literaturas de expressão inglesa; língua inglesa; literatura inglesa pós-colonial; pós-colonialismo; língua inglesa instrumental; interface entre língua, cultura e literatura, identidade cultural, processos migratórios, transnacionalismo e mobilidades culturais; América Latina e Caribe. É membro do GT da ANPOLL: Relações Literárias Interamericanas desde 2008 e coordenadora do GT, gestão 2018-2020. Tem Pós-Doutorado em Literatura com estágio na Universidade da Califórnia em Berkeley (CAPES 2015-2016). Coordenadora do GT da ANPOLL “Relações Literárias Interamericanas” no período de 2018 a 2020.
E-mail: leonebarzotto@ufgd.edu.br
Silvina Carrizo possui graduação em Licenciatura em Letras – Universidad de Buenos Aires (1992), mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (1997) e doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2004). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora, na Faculdade de Letras, na Licenciatura em Espanhol e suas Literaturas e na Pós-graduação em Letras: Estudos Literários. Atua principalmente nos seguintes temas: latino-americanismo, indigenismo, regionalismo, mestiçagem, literatura brasileira, a narrativa de 1930 e as suas relações com a contemporânea, poéticas da migraçäo, textualidades indígenas, linguagens mestiças nas Américas. Em 2013 desenvolveu pesquisa de pós-doc sob a supervisão do Dr. Biagio D’Angelo em Linguagens mestiças: o portunhol na literatura. Foi membro da equipe de consultores do CAED responsável pela reestruturação do ensino de Língua Espanhola do sistema estadual de educação de Pernambuco. Em 2018 iniciou Pósdoc sob supervisão do Dr. Rômulo Monte Alto, no Pós-Lit, UFMG, sobre Tradução e antologização de literaturas indígenas de América Latina. Coordenadora do GT da ANPOLL “Relações Literárias Interamericanas” no período de 2018 a 2020.
E-mail: silvinalit@gmail.com
Autores
Adriana Kanzepolsky é professora de Literatura Hispanoamericana na Universidade de São Paulo. Entre suas últimas publicações cabe mencionar: “Pela boca do pai? Tamara Kamenszain e as línguas do judaísmo”, “Sobre fugacidades e permanências”, “Variaciones sobre la pintura inglesa en la narrativa de Margo Glantz” e Tamara Kamenszain por Adriana Kanzepolsky.
E-mail: adrianakanze@gmail.com
André Rezende Benatti é doutor em Letras Neolatinas: estudos literários neolatinos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor adjunto – nível IV da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul; Professor do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Editor-chefe da REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS. É líder do Grupo de Pesquisas/CNPq Estudos de Narratividades – UEMS. Vice-líder do Grupo de Pesquisas/CNPq Crítica feminista e Autoria feminina: cultura, memória e identidade – UFGD. Membro do GT de Relações Literárias Interamericanas da ANPOLL –Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística; Membro do GT de Ensino Superior do Fórum de Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul – FEEMS.
E-mail: andre_benatti29@hotmail.com
Bernadette Porto é doutora em Letras pela UFRJ (1983), aposentada na UFF desde 2017 e recredenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da mesma instituição. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq durante 27 anos. Autora e co-autora da organização de obras coletivas. Publicou artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior.
Exerceu a função de coordenadora do Núcleo de Estudos Canadenses da UFF durante longos anos. Atuou como editora-chefe responsável pela publicação de três números da revista Interfaces Brasil Canadá (na época, Qualis A1). Coordenadora do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq Identidades em trânsito: estéticas transnacionais. Participante do GT da ANPOLL Relações literárias interamericanas.
E-mail: mbvporto@hotmail.com
Elena Palmero González é Professora Titular de Literaturas Hispanoamericanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Tem Graduação em Filologia Hispânica (1983) e Doutorado em Ciências Filológicas pela Universidad Central de Las Villas (Cuba, 1997). Fez estágios de pós-doutorado na Université Paris IV-Sorbonne (França, 2005-2007), na Universidade de São Paulo (Brasil, 2016) e um Estágio Sênior (CAPES) em Yale University (Estados Unidos, 2017). É Editora-chefe da revista Alea: Estudos Neolatinos e líder do grupo de pesquisa Estudos Literários Interamericanos e Transatlânticos (UFRJ). Atua nas linhas de pesquisa da Literatura comparada e da História da literatura, com ênfase na literatura cubana, latino-americana e nas relações literárias interamericanas.
E-mail: elenacpgonzalez@gmail.com
Eurídice Figueiredo é doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras (Zouk, 2020), A literatura como arquivo da ditadura brasileira (7letras, 2017), Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção e autoficção (EdUERJ, 2013), Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura (7Letras, 2010), Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana (EdUFF, 1998) além de inúmeros artigos em obras coletivas e revistas nacionais e internacionais. Organizou vários livros e números de revistas. É pesquisadora 1B do CNPq.
E-mail: euridicefig@gmail.com
Haydée Ribeiro Coelho é professora associada IV de Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Possui mestrado em Literatura brasileira (UFMG), Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura
Comparada (USP) e Pós-Doutorado (Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República). É bolsista de produtividade do CNPq. Nos últimos cinco anos, coorganizou Modos de arquivo: literatura, crítica, cultura (2018) e Literatura, outras artes e violência nas Américas (2019). Dedica-se atualmente à pesquisa em arquivos de escritores, tendo como base o espaço biográfico, políticas da memória e interlocuções latinoamericanas. Publicou vários artigos e capítulos de livros e participou de publicações coletivas relacionadas aos grupos de pesquisa a que pertence. Foi coordenadora do GT- Relações Literárias Interamericanas no biênio 2014-2016 e vice-coordenadora do mesmo GT (biênio 2016-2018).
E-mail: haydeeribeiro@hotmail.com
Kelley Baptista Duarte é professora associada do Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), mestre em História da Literatura (FURG) e doutora em Estudos Francófonos (UFRGS/UQAMCanadá). Ministra disciplinas de Língua francesa na graduação e de Literatura na pós-graduação – (PPGL/FURG). Orienta estágios de formação docente; pesquisas científicas de graduação, pós-graduação e ações de extensão universitária. Sua linha de interesse em pesquisa e extensão versa sobre os estudos culturais, as literaturas migrantes nas Américas; os estudos comparatistas e interdisciplinares – todos relacionados à memória, à escrita de mulheres e às narrativas biográficas, autobiográficas e autoficcionais.
E-mail: kelleyduarte@yahoo.com.br
Lícia Soares de Souza é doutora em Semiótica pela Université du Québec à Montréal, é professora permanente do Programa de Pós-Graduação Crítica Cultural da UNEB e é professora associada da UQAM. Escreveu vários livros e artigos sobre semiótica narrativa literária, fílmica e televisiva.
Lançou em março de 2021: Pragmática Pós-Metafísica: o infradireito na literatura e cinema brasileiros. Curitiba, Ed. Appris, 2020. É oficial do Rio Branco, condecoração do Itamaraty a professores que contribuíram para a cultura brasileira no exterior.
E-mail: liciass@hotmail.com
Lívia Reis possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), mestrado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984) doutorado em Letras (Língua Espanhola e Lit.
Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São Paulo (1997).
É professora Titular da Universidade Federal Fluminense, bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Foi membro de comissão de avaliação da Coordenação de pessoal de nível superior (CAPES) e consultora do ENADE- Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Hispano Americana e Literatura Comparada. Nos últimos anos tem trabalhado com seguintes temas: ensaio latino americano, literatura de testemunho, relações literárias e culturais na América Latina. Foi Diretora do Instituto de Letras da UFF entre 2003 e 2010. Desde 2010 é coordenadora do Curso de Letras a distância (CEDERJ, UAB). A partir de 2010 assumiu a Superintendência de Relações Internacionais na Universidade. A partir deste novo desafio, passou a desenvolver uma nova vertente em sua vida acadêmica, escrevendo textos, participando de congressos e reuniões na área da cooperação internacional e dos processos de Internacionalização da Universidade Brasileira. Também é coordenadora do curso de língua estrangeiras para alunos da universidade, PULE e diretora do Instituto Confúcio. Foi coordenadora do extinto Programa Ciências sem Fronteiras. Possui inúmeras publicações no Brasil e no exterior e é membro do GT Relações Literárias Interamericanas desde sua fundação.
E-mail: liviar33@gmail.com
Luciana Wrege Rassier possui doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tradutora literária, é professora associada e pesquisadora do departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (Francês) da Universidade Federal de Santa Catarina. Por mais de quinze anos, foi professora universitária na França, especializando-se em literatura brasileira e catarinense. Parecerista de inúmeras revistas, publicou artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior. Coordena o Núcleo de Estudos Canadenses da UFSC. Foi editora-chefe da revista Interfaces Brasil-Canadá (2014), ligada à Associação Brasileira de Estudos Canadenses. Fez estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2015) e estágio sênior na Universidade de Rennes 2 (2015-2016, França).
E-mail: lucianarassier2020@gmail.com
Margareth Torres de Alencar Costa é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco em Teoria Literária (2013). Mestre em Letras –Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco (2002). Pósdoutorado em Literatura Comparada pela Universidade de Buenos Aires (aguardando certificação). Possui graduação em letras – (Português e Inglês) pela Universidade Federal do Piauí (1982-1988), bacharelado em
Serviço Social – Universidade Federal do Piauí (1992), graduação em licenciatura plena em letras espanhol pela Universidade Estadual do Piauí (2012). Atualmente é líder do Núcleo de Estudos Hispânicos-NUEHISCCHL da Universidade Estadual do Piauí, linha de pesquisa em Literatura, História e Memória. Membro do NEPA (Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro); Professora Dedicação Exclusiva da Universidade Estadual do Piauí e coordenadora de área do PIBID Letras Espanhol da Universidade Estadual do Piauí. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literaturas de Língua Espanhola, atuando principalmente nos seguintes temas: interculturalidade, literatura, história e memória, género e Escrita de si (autobiografia, autoficção, Memória, Testemunho, literatura do trauma e violência). É membro do GT da ANPOLL – Relações Literárias Interamericanas.
E-mail: margazinha2004@yahoo.com.br
Silvia Cárcamo é professora titular de Literatura do Curso de Letras PortuguêsEspanhol da Faculdade de Letras (UFRJ). Graduada em Letras (Universidade Nacional de Rosario-Argentina), obteve os títulos de Mestre e Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ. Fez estágio de Pós-Doutorado na Universidade Autônoma de Barcelona. Atúa no Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (UFRJ) como professora e orientadora de alunos de Mestrado e Doutorado e colabora como parecerista de periódicos especializados em estudos literários e linguísticos. Pesquisa temas relacionados com as literaturas hispânicas, especialmente sobre autobiografia, autoficção, subjetividades contemporâneas, exílio e memória. Foi presidenta da Associação Brasileira de Hispanistas. Atualmente é Membro do GT da Anpoll “Relações Literárias interamericanas”.
E-mail: silviacarcamo@globo.com
Silvina Carrizo possui graduação em Letras com ênfase em Literaturas latino-americanas pela Universidad de Buenos Aires (UBA, 1992), mestrado em Literatura Brasileira (1997) e doutorado em Literatura Comparada (2004) ambos pela Universidade Federal Fluminense, bolsista PEC/PG CAPES. Fez seu pós-doutorado com o Prof. Biagio D’Angelo (UFRGS, 2014) com projeto sobre as Literaturas em portunhol e com o Prof. Romulo Monte Alto (UFMG, 2019) com projeto sobre Literaturas Indígenas nas Américas: tradução e antologizacão. Atualmente é professora Associada da Faculdade de Letras da UFJF. Foi Coordenadora do GT da ANPOLL
Relações Literárias Interamericanas entre 2006-2010 e vice entre 2018 e
2020. Foi Editora-chefe da revista Ipotesi (2009-2013). Atua na linha de pesquisa Literatura, crítica e cultura do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFJF e atualmente se desempenha como Coordenadora do PPG. Seus principais temas de interesse são: literaturas latino-americanas e interamericanas, literaturas indígenas, literatura comparada, linguagens de mescla.
E-mail: silvinalit@gmail.com
Stelamaris Coser é mestre em Literatura Norte-Americana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Estudos Americanos pela University of Minnesota. Professora aposentada do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, integrou o PPGL/UFES até 2017, vinculando-se depois ao Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ) como pesquisadora em estágio de pós-doc. É autora de Bridging the Americas: the literature of Paule Marshall, Toni Morrison, and Gayl Jones (1995) e de muitos artigos e capítulos interligando questões de gênero, raça, classe, identidade e migração na literatura dos Estados Unidos e de outros países das Américas. Organizou O papel de parede amarelo e outros contos de Charlotte Perkins Gilman: tradução e crítica (2006) e Viagens, deslocamentos, espaços: conceitos críticos (2016). Como vice-coordenadora do GT da ANPOLL “Relações literárias interamericanas” (2010-2014), coorganizou as obras Entre traços e rasuras: intervenções da memória na escrita das Américas (2013) e Em torno da memória: conceitos e relações (2017).
E-mail: maris.coser@gmail.com
Zilá Bernd é professora titular aposentada do Instituto de Letras da UFRGS e professora e orientadora do PPG-Memória Social e Bens Culturais da Universidade LaSalle/Canoas/Brasil. É bolsista PQ 1A/CNPQ. Publicou inúmeros artigos, capítulos de livros e livros como organizadora e autorais, em português e francês. É Officière de l’Ordre National du Québec e Officière des Palmes Académiques do governo francês. Recebeu o Prix du Gouverneur Général em Études Canadiennes e foi Prêmio Pesquisador Gaúcho em 2019, destaque na área de Letras e Linguística.
E-mail: zilabster@gmail.com
Índice Remissivo
Afiliação 8, 15, 70-72, 165, 175-176, 202, 206, 209
África 89, 92, 155, 156, 161, 162, 166
Africanidade 162
Amorim, Vicente 121
Ancestrais 17, 51, 83-94, 115-116, 120-126, 137, 155,-169, 176, 202, 216-217, 223-224
Ancestralidade 5, 16-18, 38, 51-52, 137, 144-147, 151-157, 166-170, 207
Ancoragem 85-88, 93
Andrade, Carlos Drummond de 55, 124, 192
Antepassado 17, 86-90, 116, 144, 156, 162-164, 202, 248
Armony, Adriana 117
Autoficção 4, 5, 16, 19, 38, 51, 61-63, 139, 198, 211213, 221, 246-259, 261, 262
Azul Corvo 243-256 bell hooks 160, 169
Benjamin, Walter 91, 127
Borges, Lauro 125
Bourdieu, Pierre 125
Braconagens identitárias
Brasil 4, 7, 16-19, 38, 50-56, 84, 92-95, 107, 115-128, 144-152, 158, 161-167, 169-171, 190-199, 224226, 230, 234, 235-244, 249, 253, 257, 258-263
Buarque Chico 16, 51-56, 66
Canção 16, 51-56, 66, 88, 133, 137, 138, 156, 172
Canção de Solomon 156, 172
Caribe 8, 92, 158, 159, 161-163, 257
Char, René 116
Coletivo 84, 156, 162, 202, 216, 241
Colonialidade 139, 155, 156
Colonialismo 160, 257
Comunidade 15, 17, 54, 88-90, 115-127, 142-149, 155, 156, 157, 159-168, 175, 186, 202-204, 209, 224, 235
Corte infiltrada 234
Cruz, Eliana Alves 117
Da grafia-desenho da minha mãe
Demanze, Laurent 115, 117, 130
Diaspórico 128, 162
Diáspora 18, 86, 155, 162, 166, 168, 169
DuBois, W.E.B. 171
Ensaio 23-29, 33, 61, 68, 69, 75, 76, 100-102, 147, 155, 162, 164, 168, 178, 182-185, 197, 212, 221, 242, 256, 260
Escravidão 155-157, 162, 166, 219
Escrevivência 144, 167, 170, 171
Escrita 5, 8, 11, 16-19, 23- 29, 38, 47, 61, 63, 68, 7079, 84-89, 94, 100, 102-108, 112, 116, 117, 127, 129-137, 144-149, 152, 155-157, 162-171, 175186, 191, 197, 202, 203, 212-215, 219, 225-234, 241-248, 250-255, 260, 261, 263
Escrita de mulheres 212, 260
Escrita de si 5, 18, 19, 117, 155, 167, 225, 232, 243248, 250, 255, 261
Escritoras indígenas 5, 18, 141
Espaço-matriosca 223-242
Espaço-dobradiça 223-242
Espaço de recordação 93
Estados Unidos 18, 156-170, 244, 249-251, 257, 259, 263
Evaristo, Conceição 5, 124, 144, 155, 162, 165, 167, 169-171
Exílio 5, 19, 86, 91-93, 99, 101-104, 109, 113, 134, 243, 244, 247, 249, 255, 262
Família 4, 16, 18, 37-55, 61, 66, 67, 72, 78, 86, 88, 99, 102-109, 111-125, 130-136, 144-146, 155-158, 163, 165, 166, 184, 190, 195, 196, 202, 219, 230, 244-250, 252-254
Fanon, Frantz 160
Ficção 4, 5, 16, 19, 24, 27, 31, 33, 38, 42, 43, 51, 56, 61-70, 72-78, 87, 104, 115, 117, 121, 128, 130, 139, 142, 161-165, 191, 198, 211-214, 221, 234, 235, 241, 246-253, 256, 259, 261, 262
Filiação 4, 8, 15-19, 37-43, 50, 51, 67-75, 80, 99, 100, 102, 106-120, 125, 130, 131, 155, 165-168, 175, 176, 202, 206, 209, 212-219, 221-243, 247, 248, 251, 252, 255
Filiações literárias 68, 70, 75
Freud, Sigmund 71, 118, 221
From the poets in the kitchen 162, 168, 171
Genealogia 31, 32, 33, 42, 51, 55, 117, 127, 144, 155, 170, 175-177, 186, 198, 219
Glissant, Édouard 8, 85, 119, 129
Gonçalves, Ana Maria 117
Harlem Renaissance 124
Herança 5, 17, 19, 42, 46, 67, 71, 72, 75, 87, 90, 105, 112, 116, 117, 127, 131, 135, 141, 146, 156, 164, 166, 170, 180, 181, 207, 208, 210-219, 220, 248
História 2, 8, 17, 18, 23-32, 37-48, 53-56, 61-75, 83-89, 90, 94, 103-118, 120-134, 139-149, 151, 156-158, 161-166, 169--186, 190-199, 202-209, 214, 218, 220-226, 230-234, 240-248, 250-261
Honda-Hasegawa, Laura 17, 115
Hughes, Langston 115, 124
Identidade 38, 44, 47, 50, 64, 90, 93, 102, 104, 110112, 116, 129, 130, 155, 156, 160-162, 166, 175, 184, 205, 212, 232, 239, 242, 244, 247, 250, 252, 257-259, 263
Irrepresentável 105, 108
Junichiro Tanizaki 123
Kamenszain, Tamara 4, 16, 23, 24, 33, 258
Kasato-Maru (navio) 117
Kubota, Marília 17, 115, 116, 121, 123-126
Laub, Michel 117
Levy, Tatiana Salem 117
Libertella, Héctor 16, 31, 33
Liliana Ancalao 18, 141- 143, 147, 148, 152
Literatura argentina 4, 16, 67, 68, 81
Literatura cubana 18, 177, 178, 180, 183, 185, 187, 259
Literatura feminina negra 158, 167
Literatura migrante 86, 88
Literatura quebequense 4, 17, 83
Língua 8, 16, 24-28, 32, 33, 61, 77, 80, 84, 86, 9093, 101-107, 117, 118, 124-126, 131-137, 143, 147-149, 156, 157, 159, 162-164, 168, 203, 228, 248-251, 257, 258, 260-263
Magia 89, 156, 157, 161, 164
Marshall, Paule 5, 18, 155, 158, 159, 161-163, 165, 168, 169, 170-172, 263
Memória 4,
46, 47, 50, 67-80, 83-94, 100, 102, 104, 105109, 111-118, 124, 127-131, 135-139, 141, 146, 148-158, 160, 161, 162, 165, 167, 170, 183, 187, 190-205, 209-217, 220-231, 239,-243, 246, 247, 249, 250, 255-259, 260, 261, 262, 263
Memória ancestral 4, 17, 83, 84, 85
Memória cultural 17, 18, 83, 86, 87, 94, 129, 131, 139, 190, 199, 200-205, 209, 210, 228
Memória individual 5,19,137, 223, 250,
Memória intergeracional 83, 107, 202, 240
Memória política 5, 19, 223, 240
Memórias 16, 24, 37, 40, 42, 47, 50, 67, 68, 78, 85, 88, 90, 93, 102, 104-109, 129, 146, 148, 151, 155-158, 160, 161, 162, 198, 214-217, 220, 224-226, 228230, 240-246, 249, 250,
Memórias de sobreviventes 77, 117
Memórias do cárcere 223-242
Migrações pós-coloniais 99
Miguel, Salim 117
Mito de Jasão 92, 93, 94
Mobilidades culturais 94, 131, 137, 139, 242, 257
Moraes, Fernando 121
Moreno, María 4, 16, 29, 67, 69, 70-77, 80
Morrison, Toni 5, 18, 155-157, 161-164, 166-172, 263
Mourão, Rui 5, 18, 189-199
Mulher 18, 33, 42, 53, 54, 61, 64, 69, 87, 88, 92, 108, 109, 111-126, 132, 133, 139, 142-152, 156-158, 162, 163, 165-171, 193, 201-209, 211, 212, 214, 236, 238, 248, 250, 259, 260
Museu 64, 151, 184, 185, 189, 190-199, 218, 237
Mãe 16, 19, 23, 35, 38, 42-44, 54, 55, 56, 61, 62, 64, 66, 68, 69, 78, 87, 101, 105, 107-109, 118, 121123, 125, 134, 136, 137, 143, 146, 148, 155, 157, 159, 162-169, 171, 207, 208, 212, 214, 216-221, 229, 231, 244, 247, 248, 250-54
Música 51, 52, 55, 84, 147, 156, 157, 164, 197, 215, 246
Nakasato, Oscar 17, 115, 117, 118, 123
Narrativa de etnofiliação 17, 116
Narrativa de filiação 38, 42, 50, 110, 115-118, 120, 125, 130, 248, 251, 255
Narrativas de filiação 4, 15-19, 67, 100, 106, 107, 110, 112, 115, 212, 215, 219, 221, 243, 247- 252
Nome 4, 16, 23, 25, 27, 30-33, 37, 51, 54, 61-64, 76, 77, 80, 8-91, 102, 104, 105, 110, 111, 118, 131, 132, 136, 146, 155-160, 162, 165, 166, 183, 202, 206-208, 209, 212, 213, 214, 219, 220, 228, 236, 237, 245, 246, 253, 254
Oralidade 77, 87, 92, 145, 149, 156, 166, 191, 203, 204, 209, 223
Ortiz, Fernando 126
Otenio, Marta Matsue Yamamoto 115, 117
Paratextos 139, 157, 171
Passo de prosa 33
Poder de voar 164
Poema 16, 18, 23-32, 33, 55, 89, 124, 125, 143-147, 150, 151, 156, 163, 177, 180, 183, 192, 215
Poetas na cozinha 162, 168
Política 5, 18, 19, 39, 50, 53, 67, 68, 69, 71-76, 81, 109, 126, 142-147, 156, 162, 163, 166, 168-170, 178-180, 185, 198, 209, 213, 217, 220, 223, 227230, 232, 233, 235, 236, 239, 240, 242, 244, 253, 254, 259
Ponte, Antonio José 5, 18, 175, 177, 186, 187
Potiguara, Eliane 18, 141-148, 152
Praisesong for the widow 161, 171
Quebec 8, 17, 83, 84, 85, 88-93, 101-104, 131, 133, 135, 136, 203, 204, 205, 209
Racismo 89, 156, 160, 169, 213
Raça 24, 32, 45, 47, 69, 71, 79, 85-89, 99, 102, 106, 133, 160, 162, 164, 170, 175, 186, 196, 199, 200, 214, 226, 229, 235, 241, 254, 263
Reexistência 5, 18, 141, 142, 144, 146-148, 151
Reis, Fidélis 121
Renmei, Shindo 121
Resistência 5, 19, 49, 243, 244, 247, 249, 251-253, 254-256
Revista Orígenes 179
Ricœur, Paul 117
Robin, Régine 8, 17, 83, 85, 87, 89, 91,-94, 101, 202, 204
Romance familiar 16, 69, 70-72, 74, 130
Rootedness: the ancestor as foundation 164, 172
Song of Solomon 155, 156, 158, 161, 164, 172
Terron, Joca Reiners 4, 16, 37, 41
Testemunho 46, 50, 63, 67, 72, 74, 77, 79, 112-114, 117, 137, 163, 197, 199, 226, 246, 250, 256, 260, 261
The chosen place, the timeless people 161, 171
Thúy, Kim 17, 83, 85-89, 92, 94, 131-133, 135, 139
Transmissão geracional 202-204, 219, 221
Transmissão memorial 108
Viart, Dominique 71, 106, 107, 115, 116, 202, 248
Vítor Hugo 125
Yamasaki, Tizuka 117