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O Irmão Alemão: família, ficção e autoficção
Lívia Reis
O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Meu maestro soberano Foi Antonio Brasileiro.
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Chico Buarque, Paratodos
A primeira estrofe da canção Paratodos, de Chico Buarque, 2011, é uma certidão de filiação, uma homenagem à genealogia do poeta: pai, avô, bisavô, tataravô. É também uma certidão de nascimento e atestado de filiação musical, expressa na figura do Maestro Antônio Carlos Jobim. Ao homenagear quatro gerações de ancestrais, o compositor reafirma sua brasilidade, ao utilizar os diferentes gentílicos de várias regiões do Brasil, sintetizados no brasileiro, sobrenome de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o ancestral que designa a genealogia musical do compositor. Ao marcar sua origem, o compositor determina também seu local de fala.
Nas estrofes que seguem, Chico amplia sua ancestralidade musical, construindo uma analogia entre parceiros, músicos e cantores com seus ancestrais familiares. Os versos, homenageiam figuras marcantes da MBP do passado, como Dorival Caymmi,
Jackson do Pandeiro, Ari Barroso, Vinícius de Morais, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Pixingunha, Noel Rosa, Cartola, Orestes Barbosa, João Gilberto e do presente, com a presença de seus contemporâneos: Erasmo, Roberto, Jorge Benjor, Hermeto Pascoal, Edu Lobo, Milton Nascimento, Nara Leão, Gal, Bethania, Rita Lee e Clara Nunes. Através da menção ou da evocação dos mestres do passado e do presente, Paratodos desenha uma grande árvore genealógica da música popular brasileira, na qual os cantores homenageados servem de ajuda, amuleto, remédio para as diferentes mazelas da existência.
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro Bandoleiros, vi hospícios Moças feito passarinho Avoando de edifícios Fume Ary, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho Contra a solidão agreste Luiz Gonzaga é tiro certo Pixinguinha é inconteste Tome Noel, Cartola, Orestes Caetano e João Gilberto
Viva Erasmo, Ben, Roberto Gil e Hermeto, palmas para Todos os instrumentistas Salve Edu, Bituca, Nara Gal, Bethania, Rita, Clara Evoé, jovens a vista
Paratodos
A ancestralidade na obra de Chico Buarque não está apenas na canção que nos serve de epígrafe. A família e as relações familiares estão presentes em inúmeras canções anteriores, na vasta obra musical de Chico Buarque, a par de épocas e estilos. Em Pedro Pedreiro, de 1966, música atribuída ao grupo de canções com viés social, ou de protesto, o personagem do filho ainda não nascido do operário, subalterno social, está destinado a ter no futuro a mesma vida do pai, marcada pelo eterno esperar de algo que que nunca se concretiza. A presença do descendente, marca as diferentes gerações, donas do mesmo destino imutável, que se resume na espera da festa, da sorte, da morte, do apito de um trem, que pode ser entendido como algo, algum futuro, mesmo que incerto.
Esperando o aumento para o mês que vem Esperando um filho pra esperar também Esperando a festa Esperando a sorte Esperando a morte Esperando o norte Esperando o dia de esperar ninguém Esperando enfim nada mais além Da esperança aflita, bendita, infinita Do apito de um trem
Pedro Pedreiro
Em outra canção bastante conhecida, Construção, de 1971, ressalta a presença do filho e da mulher, peças chaves na complexa arquitetura poética que constrói a dramaticidade da poesia. Esta canção marca a fase em que o universo poético de Chico Buarque estava voltado para críticas sociais e políticas.
Tanto Construção, quanto em Pedro Pedreiro, o protagonista é operário de construção. Diferente da primeira, em que faltam ações e predomina o imobilismo da espera infinita transmitida através das gerações, em Construção, o protagonista, trabalhador da construção civil, tem o seu cotidiano lírica e tragicamente retratado em uma poesia, cujos versos e rimas se repetem e se transformam de forma diversa, ao longo das estrofes, até sua dramática queda e morte na rua. As ações são muitas, se repetem, se transformam e são o contrário da paralização do esperar infinito. É uma poesia narrativa que conta uma história que se faz através de um continuo de verbos, no passado, cujo significado é constantemente modificado, a cada verso. O personagem, ama, beija, atravessa, ergue, flutua, cai, morre.
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado.
Construção
AGota d’água, (1975) parceria com Paulo Pontes, faz uma releitura do clássico Medeia, de Eurípedes, desta vez ambientada em um morro carioca. Como no clássico grego, a trama se dá a partir de dramas familiares que culminam na cena trágica da mãe que, em desespero, mata seus filhos e se suicida, rompendo com o que há de mais humano entre as relações humanas, a maternidade e, em seguida, comete suicídio. Como na tragédia grega, o amor e a traição são os elementos que movimentam a trama e as ações.
A trama da peça coloca em conflito as relações da mãe, do marido e dos filhos. Como na Medéia de Eurípedes, a dor da traição é o ingrediente que detona a tragédia quando depois, de traída e trocada por outra mulher, a protagonista, Media/ Joana, assassina seus filhos, envias as crianças à festa de casamento do marido. A canção que empresta nome a obra é um grito desesperado de dor e de pranto.
Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia Olha a voz que me resta Olha a veia que salta Olha a gota que falta Pro desfecho da festa Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não Pode ser a gota d’água
A gota d’água
Na mesma obra, se encontra a canção Flor da Idade, que canta e conta a história de meninas da comunidade onde se passa a narrativa, no limite entre a vida de menina e prestes a se tornarem mulheres, que desabrocham para vida adulta para o amor e para o sexo. Mais uma vez Chico Buarque se debruça sobre histórias familiares e seus desencontros.
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava
Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
A filha que amava Carlos que amava Dora
Que amava toda a quadrilha.
Flor da idade
Inspirada no poema de Carlos Drummond de Andrade, Quadrilha, a canção relaciona a palavra família à quadrilha, ampliando o leque de significados e entendimentos das relações familiares, aproximando palavras que se repetem nas sílabas e na fonética e se distinguem no sentido.
Na música popular, muitas canções de Chico Buarque retratam diferentes imaginários de famílias de distintas genealogias. Tradicionais, patriarcais, bandos, amigos, quadrilhas, bandidos, homossexuais etc. Também no teatro, Chico escreveu obras em que o núcleo familiar, em seus diferentes matizes, são palco da ação e protagonistas. Opera do Malandro (1978), tem como protagonistas uma jovem e seu pai, cafetão, chefe da bandidagem, que deseja manter a filha longe do mundo do crime, controlando e criando uma forte rede de proteção para com a filha que, a despeito de todo o cuidado e contra a vontade do pai, se apaixona por um malandro, desconstruindo a estabilidade da família. Como na canção mencionada anteriormente, família e quadrilha se confundem.
Uma Canção desnaturada, da peça Opera do Malandro, é comovente e expõe a delicadeza e a fragilidade da relação entre pais e filhos. A mãe desesperada chora com perda da filha, que cresceu e ganhou o mundo. O desvelo do amor maternal se transforma em dor e na não aceitação do crescimento da filha.
Por que creceste, curuminha
Assim depressa e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para reviver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
Uma canção desnaturada
Os modelos exemplares ou não das relações familiares na obra musical, teatral e literária de Chico Buarque não se esgotam nos versos e nas obras citada. Com certeza eles merecem uma análise mais atenta, no entanto, neste texto, eles servem de introdução à leitura do O Irmão Alemão, de 2014, quinto romance de Chico Buarque de Holanda, que além da extensa e conhecida obra musical é autor de romances, peças de teatro, novelas curtas e um livro infantil.
O romance, instiga a curiosidade do leitor a partir do título, que se refere a um desconhecido irmão do cantor e compositor Chico Buarque e suposto filho do antropólogo, Sergio Buarque de Holanda, ambas figuras públicas de relevo em diferentes áreas da cultura brasileira. Antes do lançamento do livro, o compositor/ escritor concedeu inúmeras entrevistas, aos principais meios de comunicação, tornando pública a curiosa história vivida por seu pai, quando jovem jornalista, em Berlim nos anos de 1930, que teria tido um filho com uma jovem alemã e, pelas dificuldades inerentes da guerra na Europa, teria retornado ao Brasil sem saber da existência e nem conhecer a criança. A história real, com ingredientes de ficção, está toda documentada através das trocas de cartas entre Sergio Buarque e autoridades alemãs e relatam os percalços da busca do paradeiro da criança, dada pela mãe em adoção, em uma Alemanha em tempos de guerra. As tentativas do pai em descobrir o paradeiro da criança, conhece-la, trazê-la para o Brasil terminam na frustração de nunca terem se conhecido, durante toda a vida.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
Correspondência trocada entre Sérgio Buarque de Holanda e autoridades alemãs.
Fonte: BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
A história chegou ao conhecimento de Chico, já adulto, ao saber, através de sua mãe, da existência das cartas, e do desejo de seu pai em reconhecer o filho e dar-lhe a paternidade merecida, o que se tornou impossível, em função das dificuldades provocadas pelo contexto da guerra e pós-guerra na Alemanha. No momento em que a espetacularização da vida íntima de personagens anônimos se espalha de forma instantânea por toda a malha e estratos sociais, sobretudo através das ferramentas de internet, redes sociais, blogs noticiosos e de fofocas, e reality shows de TV, uma narrativa de ficção, escrita por um homem público, sobre a vida intima de seu pai, outro homem público, provocaram um grande interesse por parte da crítica e do público voyeur, ávido por histórias de vidas alheias de personagens reais.
Depois de publicada, a obra rapidamente obteve sucesso de público. Em grande parte da crítica à época do lançamento, o questionamento central foi em torno da verdade e da mentira na vida real dos personagens do romance, aparentemente, tão conhecidos do público leitor.
Neste ensaio esta não será nossa preocupação. Vamos procurar entender a arquitetura e as filiações narrativas e poéticas encontradas no romance. Naturalmente, poderemos vislumbrar muitos momentos em que a narrativa ficcional se encontra com fatos públicos relacionados à família Buarque de Holanda.
O Irmão Alemão é uma autobiografia de ficção. Gênero narrativo clássico, que a partir de Doubrobrosky 1977, passou a ser nomeado como autoficção.
O narrador Ciccio, conta sua história desde a juventude, privilegiando as passagens de sua vida familiar. O pai intelectual e bibliófilo, de poucas palavras, sempre trancado em sua biblioteca, local privilegiado de onde enxerga o mundo e os acontecimentos, filtrados pela proteção de seus livros. A mãe, típica dona de casa italiana, amorosa, exagerada, dedicada aos afazeres domésticos, especialmente à cozinha, ao marido e aos filhos. Um irmão, bonito, mulherengo, menos inteligente e motivo de inveja por parte do narrador. Ao longo da história, conhecemos a vida de um jovem de classe média, estudante de letras que se torna professor de línguas, em São Paulo, nos anos 60. O protagonista/ narrador é um personagem sem grandes atributos, além da fértil imaginação.
Utilizando uma estratégia literária clássica, que utiliza cartas sem autoria, manuscritos antigos e apócrifos, em um dado momento o narrador encontra uma carta envelhecida, dentro de um livro, em uma estante, entre as inúmeras que cobriam todas as paredes de sua casa. Através da carta encontrada, se descortina história do outro filho de seu pai, nascido na sua juventude, nos anos em que viveu em Berlim, trabalhando como jornalista. A partir do descobrimento da carta, a vida de Ciccio e o romance tomam o rumo da fantasia alucinante por conta das fabulações do narrador /personagem, em busca da verdadeira história de seu irmão alemão. A verdade, a mentira e a imaginação especulativa sobre a existência do irmão, deixam o protagonista obcecado. Ele pensa encontrar o irmão por todos os lugares por onde anda em uma São Paulo pouco provável. Cria histórias mirabolantes, fruto de sua imaginação fantasiosa. Inventa hipóteses, persegue evidencias que apenas acontecem no seu delírio.
A linguagem é enxuta e as palavras são exatas, em uma prosa fluente, sem divisão em parágrafos, em cada um dos 17 capítulos em que a obra está organizada. O tempo verbal oscila entre o passado e o presente, em idas e vindas de uma narrativa não linear, que transita entre o passado e o futuro do pretérito quando Ciccio, em seus delírios em busca de pistas do irmão, supõe ter encontrado em São Paulo a estrangeira Anne, suposta mãe de seu irmão alemão.
Uso o telefone ali mesmo, no balcão, que na hora do almoço está apinhado.... em meio aquela balburdia, não tenho dúvida de quem é a dona da voz feminina que me atende:
- Alu
- Anne?
....
- Madame Beuregard?
- Oui?
Com sua reticencia, Anne por certo tentava reconhecer a voz que a chamava de modo tão informal, pois um desconhecido não a trataria assim de saída pelo primeiro nome. E penso que ela perdoaria o arroubo, se pelo timbre identificasse seu interlocutor como o filho de Sergio Hollander. Quem sabe até julgou num primeiro momento ouvir o próprio Sergio a chamar por ela, ilusão desfeita assim que me corrigi com um tratamento protocolar e boa prosódia francesa.
Mas se madame Beuregard soubesse de fato quem falava, também seria compreensível que se sentisse ultrajada com o assédio telefônico à casa dela, que há vinte sete anos no país já teria procurado meu pai, se assim desejasse (BUARQUE, 2014, p. 78-79).
Os personagens não apresentam uma construção complexa, eles são simples, quase estereotipados, como a mãe italiana amorosa e boa cozinheira, que em situações de pressão emocional se esquece do português e volta a falar somente em italiano. O pai ausente, sisudo, de poucas palavras, sobretudo com o filho Ciccio, pois prefere dividir sua intimidade com o outro filho, gerando ciúmes e competição entre os rapazes.
O amigo do protagonista, que na adolescência roubava carros para se divertir, torna-se guerrilheiro urbano e desaparece em um país em plena da ditadura. Este personagem abre espaço para que a obra aborde o contexto histórico da ditadura, da repressão, da luta armada e da violência das forças policiais dos anos 60. As transformações no contexto histórico e político do país na década da década surgem de forma ocasional, colaborando na construção do tempo histórico da narrativa.
Aparentemente, o contexto político dos anos de chumbo não tem maior relevância no romance, servindo apenas para contextualizar o momento. O tempo histórico cobra sua presença na cena da morte de um jovem militante, metralhado na rua do centro de São Paulo, assistida e narrada pelo protagonista, que se encontrava, ocasionalmente, no mesmo lugar.
Outro elemento que ajuda a compor o contexto histórico da ditadura é a trajetória da jovem argentina, militante, que passa pela casa dos Hollader, e depois desaparece, na vida e da história. Esses episódios contribuem para a construção do momento histórico e funcionam como denúncia, mesmo que não façam parte do eixo central da narrativa, cujo foco é a procura pelo irmão desconhecido.
A verdade e a ficção presentes no Irmão alemão, foram foco de debates da crítica, sobretudo em função das figuras públicas nele envolvidos, Chico e Sergio Buarque de Holanda, e da aparente intimidade de personagens públicos exposta na obra. Nas autobiografias clássicas desde Santo Agostinho às mais recentes, os autores têm a intenção de contar a exemplaridade de suas vidas, quase sempre importantes, repletas de grandes feitos e dignas de serem contadas e imitadas. Também as narrativas testemunhos se inscrevem neste círculo que propõe contar a verdade para esclarecer histórias apagadas, rasuradas ou esquecidas, ou simplesmente para denunciar a barbárie de determinados momentos históricos. Sabemos que esta verdade única e essencial não existe e é impossível de ser capturada na narração, pois estas, pressupõem escolhas. Não existe o conceito de narrar totalizante, no que pese a cooperação do leitor, como propõe Lejeune no Pacto autobiográfico.
Neste sentido a definição de Dubrovski veio a atender essa falta de definição de um gênero que na verdade sempre existiu, como define Eurídice Figueiredo, a partir de Dubrovski.
A maneira de construir e encarar as categorias literárias de autobiografia e ficção sofreu grandes transformações nos últimos 30 anos e, hoje as fronteiras entre elas se desvaneceram. A autoficção é um gênero que embaralha as categorias autobiografia e ficção de maneira paradoxal ao juntar, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se excluir. Apesar de todos saberem que o escritor sempre se inspirou (também) em sua própria vida, a ficção foi o caminho trilhado pelo romance ocidental para se firmar ao longo da História. Como o romance autobiográfico foi , tradicionalmente, considerado um filho bastardo, um híbrido, que quase mereceu desprezo da crítica, a autoficção acabou por ocupar este lugar, embora com formatos inovadores (FIGUEIREDO, 2010, p. 91).
Ao fim do romance, o narrador, já homem maduro, viaja à uma Berlim fantasiosa, repleta de histórias inventadas onde, no futuro do pretérito refaz a viagem de seu pai, 80 anos antes. Percorre as ruas, visita bares e os lugares de uma cidade que não existe mais, perseguindo os possíveis passos do pai, na busca pelo irmão inventado. Adivinhando momentos e passagens inexistentes até o final, também improvável, escutar a voz do irmão, encontrar com pessoas que o conheceram e afinal, ver um filme em que ele atuou como ator. No final a narrativa se torna mais ágil e a realidade da ficção e a realidade da história real se misturam, tornando difícil o trabalho do leitor em identificar a ficção e a realidade.
Não fui à bibliotecas, aos museus, à Opera, não aluguei uma bicicleta nem passeei pelos parques, apesar do sol primaveril. Andei para cima e para baixo de taxi, sobretudo na Kufustendamm, ou na Kudaam, para os belineses e decerto para mei pai, que na sua juventude não deixaria de frequentar cafés, teatros e dancings da avenida. Estive ali ao lado da Fenestrasse 22, endereço de Anne Ernest e de Heinz Bogard, hoje um hotel chamado Augusta, e almocei na casa vizinha de número 23, o café literário onde Anne pousou barriguda ao lado de meu pai. Tentei adivinharem qual pensão meu pai teria se hospedado, entre tantas nos arredores (BUARQUE, 2014, p. 216).
No desfecho, em um aparente abandono da ficção, o livro destaca documento trocados entre Sergio Buarque de Hollanda e as autoridades alemãs, fotos do irmão e outras provas materiais da época que, ao serem incluídas no livro, testemunham a história real que a ficção transformou. Apontam para os fatos que ocorreram com aquele irmão, já morto, portanto, inacessível. No epílogo, o autor presenteia seus leitores com a história de Sergio Gunther, o irmão alemão, e uma nota explicativa sobre os passos da pesquisa desenvolvida com a ajuda de historiadores, que serviram de base à ficção do romance.
Sergio Gunther, filho de Sergio Buarque de Hollanda e Anne Ernst ou Ane Magrit Ernst, ou Anemarie Ernst, nasceu em Berlim, em 21 de dezembro de 1930. Em 1931 ou 1932, foi entregue pela mãe à Secretaria da infância e da Juventude do distrito de Tiergarten, Berlim. Em 193?, Arthur Erich
Willy Gunther e sua mulher, Pauline Anna, adotaram o menino Sergio Ernst, que seria criado com o nome de Horst Gunther. Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber da identidade de seus pais naturais, optando por retornar o prenome Sergio. Entrou para o exército da RDA em 194? E no fim dos anos 50 foi admitido na televisão do Estado, onde desenvolveu múltiplas atividades. Gravou um número incerto de discos, hoje fora de circulação. Morreu de câncer em setembro de 1981 (BUARQUE, 2004, p. 227).
Para fechar o mistério em torno do irmão alemão, as notas explicativas esclarecem a história real vivida pelo autor Chico Buarque e fornece os créditos da pesquisa realizada em Berlim, por dois historiadores, a partir das cartas guardadas por sua mãe, durante toda a vida. Também conta da viagem à Berlim, junto à sua filha e do encontro emocionado com a família de Sergio Gunther. Ao terminar a leitura, estamos seguros do status de ficção que acabamos de ler, as notas explicativas dissipam todas as dúvidas.
Ao final do romance a narrativa, é invadida pelos depoimentos do narrador Chico e não mais Ciccio e as histórias se encontram. As notas e os documentos, tanto servem à história e segredos da família Buarque Hollanda quanto dos Hollanders da ficção.
Referências
BUARQUE, Chico. Construção. Albúm Construção, 1971.
BUARQUE, Chico. Flor da idade. Álbum Gota d’agua, 1977.
BUARQUE, Chico. Gota d’agua. Álbum Gota d’agua, 1977.
BUARQUE, Chico. O Irmão Alemão. São Paulo: Cia das Letras, 2014.
BUARQUE, Chico. Paratodos. Álbum Paratodos, 1993.
BUARQUE, Chico. Pedro Pedreiro. Álbum: Chico Buarque de Hollanda, 1965.
BUARQUE, Chico. Uma canção desnaturada, Álbum: Opera do malandro, 1979.
FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura. Rio de Janeiro: 7letras, 2010.
REIS, Livia. Conversas ao Sul. Niterói: EdUFF, 2009.
Narrativas de filiação na literatura argentina recente:
(Os “Walsh” em Oración, de María Moreno)
Silvia Cárcamo
Filiação e memória
Obras da literatura contemporânea que indagam a respeito de legados familiares interrogam por igual as heranças políticas, históricas ou culturais. Não é incomum que memórias pessoais inseridas em tramas familiares configurem o ponto de partida para repensar as experiências de uma geração que viveu os acontecimentos políticos e históricos de uma época. Nessas obras, o subjetivo vincula-se de maneira estreita à História ou à Política. A memória, o testemunho e a família estabelecem laços solidários e inextricáveis nos relatos. Narrativas geradas no núcleo restringido do familiar ou das vivências que se ligam ao biográfico ou íntimo, acabam entremeando na trama fortes referências ao contexto histórico-social. Muitas narrativas de filiação da literatura e do cinema argentinos das últimas décadas encontram-se vinculadas à memória e ao trauma do desaparecimento de pessoas durante a repressão ilegal praticada como programa de extermínio do inimigo pela ditadura militar que governou o país entre 1976
Silvia Cárcamo
e 1983. Os filmes M (2007) e Tierra de los padres (2011) e os textos em prosa e verso em restos de restos (2012), de Nicolás Prividera; o documentário Los rubios (2003), da cineasta Albertina Carri; o filme do mesmo gênero, Papá Iván (2004), de María Inés Roqué; ¿Quién te creés que sos? (2012), o livro catártico de Ángela Urondo, filha do poeta Paco Urondo; e Diario de una princesa montonera (2012), de Mariana Eva Pérez, têm em comum o fato de serem criações de filhos de pais desaparecidos ou mortos durante a repressão. A perspectiva do órfão, os discursos da memória e, em alguns casos, da memória vicária, também são reconhecíveis na maioria das obras. La casa de los conejos (2010), de Laura Alcoba, narra a experiência de uma menina ao lado da mãe militante de esquerda na Argentina da década de setenta, a partir de seu olhar infantil. Experiência similar transparece em Demasiados héroes (2009), da escritora Laura Restrepo. No romance, usando uma distância irônica, plena de humor, um filho julga a sua mãe engajada na luta política. As obras mencionadas coincidem na apresentação de visões pós-épicas e pós-utópicas confrontadas às de seus pais. Os filhos, porém, não cessam de dialogar, numa conversa sem fim, com seus progenitores. Na realidade, empreende-se um confronto com fantasmas na tentativa de entender o passado e o presente. Sem dúvida, estamos diante de uma meditação sobre as diferenças de gerações, de épocas, de projetos e de experiências.
Ainda poderíamos salientar a presença de traços autobiográficos e a mudança da figura tradicional do crítico que abandona a objetividade do texto de crítica literária e cultural. Produz-se a emergência da subjetividade daquele que escreve, muitas vezes acompanhada da presença de circunstâncias que envolveram a elaboração dos textos e acrescentando revelações de índole pessoal, como é possível notar nos ensaios provocadores e imaginativos de Daniel Link. Os escritores críticos, especialmente, elaboraram relatos de filiação literária para situar e justificar a sua própria obra. A obra do cineasta Andrés Di Tella, com o documentário Fotografías (2007), que recorre às memórias familiares, participaria dessa vertente narrativa à qual estamos fazendo referência. Não pertenceriam essas escritas e produções fílmicas também ao “espaço biográfico” descrito por Leonor Arfuch em relação às subjetividades contemporâneas, em El espacio biográfico (2007) e nos estudos incluídos em Crítica cultural entre política y poética (2008)?
Simultaneamente à aparição dos relatos vinculados à violência política da década de setenta, foram publicadas, sempre nos últimos anos, narrações que indagam as questões de filiação em situações diferentes, sem vínculo direto com a ditadura. Para nos limitar ao corpus mencionado por Alberto Giordano em El giro autobiográfico de la literatura argentina actual (2008), basta citar El derrumbe (2007), de Daniel Guebel, Historia del llanto (2007), de Alan Pauls, e Mar ía Domecq (2007), de Juan Forn. Mais próximos das memórias de pura invenção e de episódios familiares imaginados estariam alguns textos autoficcionais de Daniel Link. Nesse contexto, a consagrada escritora e jornalista María Moreno (1947) incursionou em relatos autobiográficos nos quais as figuras do pai e da mãe parecem construídas no limite da ficção e da realidade, aderindo à estética do excesso, da deformação e do exagero. Black out (2017) é, de certo modo, a narrativa do romance familiar de Moreno, que examina igualmente a educação sentimental e intelectual da autora e da sua geração no âmbito das transformações culturais ocorridas nos últimos anos da década de sessenta em Buenos Aires. A associação com os acontecimentos do maio de 68 francês e de outras revoltas no mundo contra o conservadorismo das instituições, questionadas por setores juvenis, parece inevitável. Moreno escreve em Black out sobre a sua mãe, química de profissão: “bebia vinho barato e refrigerante com muita afetação, levantando o dedo. Depois da morte da minha avó, de um sofrimento que a prostrou durante meses, aceitou por única vez um convite de um congresso internacional de química” (MORENO, 2017, p. 107)1. A autora de Black out confessa sobre as suas andanças pelas noites de Buenos Aires como jornalista jovem, junto a mestres experientes e colegas da sua geração: “Comecei a beber para conquistar um lugar ao lado dos homens [...]. Estava convencida de que, antes do que ganhar à universidade, as mulheres deviam ganhar as tabernas” (MORENO, 2017, p. 98) 2 . Hiperbólicas figuras familiares, experiências compartilhadas com escritores e jornalistas na marginalidade da noite e da cultura e história da educação sentimental traçam um panorama de época em Black out. No presente estudo, queremos pensar o sentido que teria, no contexto do auge dos discursos autobiográficos e autoficcionais, na literatura e no cinema das últimas décadas, a proposta apresentada nas 383 páginas de Oración (carta a Vicki y otras elegías políticas), publicado em 2018, apenas um ano mais tarde do que Black out. Não há dúvida de que entre as crônicas ou ensaios de Subrayados (2013), Black out e Oración se dá uma continuidade de reflexões sobre o presente e o passado recente. María Moreno, uma das escritoras mais reconhecidas na Argentina, modelo de uma certa crônica
1 As traduções das citações são sempre da minha autoria: “[...] bebía vino barato y gaseosa con mucho remilgo, levantando el dedo. Luego de la muerte de mi abuela, de un sufrimiento que la postró durante meses, aceptó por única vez una invitación a un congreso internacional de química”.
2 “Comencé a beber para ganarme un lugar entre los hombres [...] Estaba convencida de que, más que ganar la universidad, las mujeres debían ganar las tabernas”.
Silvia Cárcamo
que se escreve na América Latina na atualidade, sem abandonar totalmente a faceta autobiográfica e da própria memória, passa a observar e escrever em Oración sobre a vida dos outros, sobre a memória dos outros, que é também a memória da sua geração.
Defendemos e tentaremos demonstrar que María Moreno está nos propondo, com essa obra, o desenvolvimento de dois relatos de filiação simultâneos e interconectados. Por um lado, sabemos que o livro de 2018 está centrado num episódio conhecido e amplamente divulgado pela imprensa da época: o confronto com armas de fogo que teve lugar entre as forças de repressão contra militantes reunidos numa casa de Buenos Aires, no dia 29 de setembro de 1976; quer dizer, no primeiro ano da ditadura. Ali, morreram jovens que estavam nessa casa, entre eles Vicki Walsh, filha do escritor Rodolfo Walsh. Outros foram presos e torturados. A partir desse episódio, María Moreno investiga o que aconteceu nesse dia, na casa invadida, colocando o foco nos questionamentos de Patricia, a outra filha de Walsh, à versão da morte de Vicki divulgada nas famosas cartas do escritor – às quais faremos referência um pouco mais abaixo.
Para isso, Moreno mergulha no “romance familiar dos Walsh” e na singular e intensa relação entre Rodolfo Wash e suas duas filhas. Em Oración, María Moreno recria esse relato de filiação paradigmático. A cronista objetiva, interessada na verdade dos fatos, narrar o caso com os instrumentos clássicos da pesquisa de campo e, para isso, vai em busca das testemunhas.
Nesse sentido, Oración desenvolve também um outro relato de filiação, que involucra pessoalmente ou autobiograficamente a cronista María Moreno. Referimo-nos ao relato da sua afiliação literária que a leva a mergulhar conscientemente nos modos de escrita de Rodolfo Walsh. Como falamos em “filiação”, parece-nos necessário esclarecer que ela é, segundo Marc Augé, uma das quatro dimensões privilegiadas da etnologia, junto à aliança, à residência e à geração. Augé observa que “Tradicionalmente, a individualidade afirmase no cruzamento dos quatro parâmetros antropológicos que são a filiação, a aliança, a residência e a geração” (AUGÉ, 2014, p. 69) 3 . Nos estudos literários, no entanto, a noção permitiu, em primeiro lugar, aprofundar em aspectos relacionados às intrigas e às personagens da ficção. Considerou, por exemplo, o modo como muitos romances, ao longo da história da literatura, incluíam nas suas tramas conflitivas relações entre figuras humanas vinculadas pelos laços de sangue, focando, em especial, as relações de pais e filhos.
3 “Tradicionalmente, la individualidad se afirma en el cruce de los cuatros parámetros antropológicos que son la filiación, la alianza, la residencia y la generación”.
Por outra parte, a filiação foi a metáfora para pensar a maneira como se conformam as tradições literárias. Como são descritas as relações entre gerações, entre autores? Para explicar a centralidade de temas de filiação na atualidade, Dominique Viart ponderou que “Longe de colocar a ruptura como fundamento da estética, uma grande parte da literatura contemporânea [...] expõe, com certa agudeza, a questão da herança” (VIART, 1999, p. 74) 4 para chegar à conclusão de que o escritor da atualidade dialoga com essa tradição. A clássica distinção entre filiação (da ordem do biológico) e afiliação (da ordem da cultura) foi defendida por Edward Said em The world, the text and the critic. Sublinha o crítico que “O esquema filiativo pertence aos domínios da natureza e da ‘vida’, enquanto que a afiliação pertence exclusivamente à cultura e à sociedade” (SAID, 2004, p. 34) 5 . Como os escritores inventam uma tradição, como eles processam o que leram para compor a obra própria e à qual tradição preferem se “afiliar” são as perguntas relacionadas com esse segundo uso da noção de filiação nos estudos literários.
Dados biográficos de María Moreno que aparecem em Oración integramse a esse relato de busca de uma tradição para situar o seu labor de cronista. A pergunta a respeito da razão pela qual não se comprometeu com a militância política surge da sua reflexão sobre a história que está contando, a qual mostra, no extremo compromisso dos jovens cercados nessa casa de Buenos Aires, o mesmo grau de entrega que levou à morte intelectuais como Rodolfo Walsh e Paco Urondo. Sobre isso, a autora escreve: “Muitas vezes perguntei para mim mesma por que não fiz parte deles” (MORENO, 2018, p. 143) 6 . Como em Black out, também em Oración a autora se refere à aprendizagem na boemia intelectual noturna, o impacto da Revolução Cubana, a influência de leituras existencialistas, marxistas e freudianas. Essa perspectiva autobiográfica inclui a sua própria situação como cronista que reconhece em Walsh um mestre e um modelo a seguir para a crônica, um dos gêneros mais dinâmicos da literatura contemporânea.
Como relato de filiação – no primeiro sentido que tentamos sintetizar –, o texto híbrido de Moreno centra-se no “romance familiar dos Walsh”, e incorpora também, por associação de conflitos e de experiências similares, a narração de vidas de filhos de militantes desaparecidos ou mortos. Sintetizando a perspectiva correta para narrar a política e a História sem excluir os aspectos da intimidade
4 “Lejos de poner la ruptura como fundamento de la estética, una gran parte de la literatura contemporánea [...] se plantea, con cierta agudeza, la cuestión de la herencia”.
5 “El esquema filiativo pertenece a los dominios de la naturaleza y de la “vida”, mientras que la afiliación pertenece exclusivamente a la cultura y la sociedad”.
6 “Muchas veces me pregunté por qué no formé parte de ellos”.
Silvia Cárcamo
e dos laços de sangue, María Moreno afirma: “tem que dar um jeito para viver com um pouco de pai, o desaparecido, que não é igual ao pai ausente da psicologia” (MORENO, 2018, p. 225)7 . Os últimos momentos da vida de Vicki, o conflito de versões que provoca a discussão entre Rodolfo Walsh e a sua filha Patricia, por causa da não concordância desta última com os comentários das cartas do pai, traçam uma história familiar. Oración acrescenta histórias de outras vidas marcadas pela violência da época e experiências singulares em que a filiação se entrelaça com a história e a política. Estamos diante de um modo de praticar a memória vivida, já que, como afirma Elizabeth Jelin, “a memória não é o passado. É um presente que traz o passado e geralmente em função de ilusões futuras” (JELIN, 2021, s/p) 8 .
Devemos esclarecer que, no desenvolvimento de dois relatos de filiação em Oración, as linhas narrativas se confundem, separam-se e voltam a se encontrar, e que a memória é convocada permanentemente. Por um lado, tematiza-se, como já dissemos, o “romance familiar dos Walsh”, especialmente a relação de Rodolfo com as suas filhas Vicki e Patricia. Como observamos, muitas outras histórias de pais e filhos aderem a esse núcleo central integrado pela família Walsh. O outro relato de filiação é de índole literária. Sua protagonista é a escritora e jornalista María Moreno, que busca uma afiliação na tradição literária da Argentina moderna para explicar as suas próprias escolhas. Importam, nesse segundo relato, as tradições literárias, o cânone, a revisão do cânone e a pergunta de quem foi o escritor Rodolfo Walsh para essa porção importante do universo literário que se escreve nas fronteiras da literatura e do jornalismo, do real e do ficcional, da política e da literatura, do íntimo e do público. Como, em última instância, dar continuidade ao legado de Walsh, e o que fazer com essa herança seriam desafios para os escritores que vieram depois.
Diante de uma narrativa como Oración (2018), impõem-se perguntas que resultariam igualmente válidas para a leitura de uma boa parte das obras escritas na nossa época. Um dos interrogantes diz a respeito do modo de ler Oración. Qual seria o pacto de leitura mais adequado para essa obra? Descartamos logicamente o pacto ficcional, mas não temos a certeza de que o pacto de verdade seja totalmente pertinente. Seria melhor pensar numa espécie de pacto “ambíguo” para usar a fórmula de Manuel Alberca? Ou ainda encontraríamos válida a expressão “representação ambígua” de José Martínez Rubio? O crítico define que “o pacto ambíguo fixa o horizonte de expectativas do leitor na referencialidade, nos fatos, mas não atenta contra esse horizonte de expectativas ao incluir, na narração, procedimentos da ficção” (MARTÍNEZ RUBIO, 2015, p. 134) 9 . No relato de Patricia, registrado em Oración, manifestase também a herança de Rodolfo Walsh no privilégio concedido às vozes das pessoas comuns. Afirma Patricia: “eu me identifico com o meu próprio pai: quando ele procura quem vai dar o testemunho nos grandes relatos, escolhe as pessoas ameaçadas de insignificância” (MORENO, 2018, p. 301)10 . María Moreno e Patricia Walsh têm consciência de estar replicando um procedimento de Rodolfo Walsh.
7 “hay que arreglárselas para vivir con un poco de padre, el desaparecido, que no es lo mismo que el padre ausente de la psicología”.
8 “la memoria no es el pasado. Es un presente que trae el pasado y generalmente en función de ilusiones futuras”.
Em Oración, há uma investigação, escutamos as vozes das testemunhas reais, percebemos a presença discreta de uma autora cujo trabalho parece se concentrar silenciosamente na organização dos múltiplos discursos e das muitas vozes convocadas. Ao mesmo tempo, nota-se uma liberdade expressiva que não admitiríamos totalmente numa pesquisa com protocolos objetivos de controle da não ficção. Antes de saber em que consiste a história que será narrada, o leitor sabe, por um esclarecimento inicial, que a intenção da autora era realizar uma pesquisa financiada com uma bolsa Guggenheim sobre a moral sexual dos grupos revolucionários da década de setenta na Argentina. Num gesto de desvio típico de María Moreno, lemos a seguir: “Não escrevi esse livro: escrevi este” (MORENO, 2018, p. 9)11. Essa informação está ali como instrução de leitura: Oración é resultado de um desvio dos projetos da autora. As contradições que María Moreno não quer ocultar da figura de Walsh transparecem já na reunião problemática do título e subtítulo. Enquanto que com o primeiro (Oración) a autora remete o leitor ao discurso religioso; com o subtítulo (Carta a Vicki y otras elegías políticas), sugere-se um ingresso duro no real da política. Enquanto a “elegia” remonta à tradição clássica e pagã, a “oração” pertence à esfera da religião ou do sagrado. Walsh “reza” diante da notícia da morte da sua filha, retomando uma prática comum da sua infância vivida em colégios religiosos e na casa familiar de pais irlandeses católicos. A “Carta a Vicki”, do subtítulo de Oración, alude a uma das três famosas cartas abertas do escritor Rodolfo Walsh, enviadas nos anos imediatamente anteriores ao seu sequestro e morte durante a ditadura militar que se iniciou na Argentina em 1976. Carta a Vicki, dirigida à sua filha já morta em confronto militar com o exército, datada em 1 de outubro de 1976, e Carta a mis amigos, do dia
9 “el pacto ambiguo fija el horizonte de expectativas del lector en la referencialidad, en los hechos, pero no atenta contra ese horizonte de expectativas al incluir en la narración procedimientos de ficción”.
10 “yo me identifico con mi propio padre: cuando él busca quién va a dar testimonio en los grandes relatos, elige a las personas que están amenazadas de insignificancia”.
11 “No escribí ese libro: escribí este”.
Silvia Cárcamo
29 de dezembro de 1976, figuram reproduzidas sem alterações nas primeiras páginas de Oración. O resto do livro de Moreno propicia o diálogo com essas cartas de Walsh tão questionadas pela sua filha Patricia. A última das famosas cartas, ausente em Oración, de 24 de março de 1977, o seu ato político final, conhece-se como a Carta abierta a la junta militar. Transcorrido um ano do golpe militar, ela esteve destinada à denúncia da repressão ilegal e da política econômica imposta pela ditadura.
Escolhendo a carta aberta, um gênero essencialmente político e polêmico, pensado para um destinatário impreciso e que se deseja o mais numeroso possível, uma vez que busca provocar um impacto, Walsh, autor de escrita sofisticada, usa a palavra ao serviço da ação política. Poderíamos afirmar que culmina, nas cartas mencionadas, uma das vertentes da literatura de Walsh tão lucidamente identificadas por Ricardo Piglia. Em Rodolfo Walsh y el lugar de la verdade, Piglia reconhece que, para o escritor, por um lado, “a ficção é a arte da elipse, trabalha com a alusão e o não dito (...)”12 ; por outro lado, “está o uso das formas autobiográficas do testemunho verdadeiro, do panfleto e da diatribe (…)” (PIGLIA, 1994, p. 14)13 . Contudo, essas duas práticas que atravessam a literatura de Walsh têm em comum “a investigação como um dos modos básicos de dar forma ao material narrativo. O deciframento, a busca da verdade, o trabalho com o segredo, o rigor da reconstrução: os textos armamse sobre um enigma, um elemento desconhecido que é a chave da história que é narrada” (PIGLIA, 1994, p. 14)14 . O procedimento de pesquisa é utilizado tanto em contos nos quais o silêncio e as elipses constituem o modo de contar (“Fotos” e “Esa mujer”) quanto nas narrativas de não ficção em que as intrigas correspondem ao relato mais clássico, como são os casos de Operación masacre (1957), Caso Satanowsky (1958) e ¿Quién mato a Rosendo? (1969).
Um outro motivo de desconcerto para quem se dispõe a ler Oración provém do hibridismo dos gêneros convocados e manipulados ao longo do texto. Essa conhecida característica das escritas da contemporaneidade, que consiste em preferir e privilegiar a mistura e o heterogêneo, leva-nos a perguntar qual seria o sentido dessa escolha e quais seriam os gêneros que Oración utiliza para a construção híbrida e caótica. Em princípio, é evidente que a mistura não ajuda a propor uma ordem tranquilizadora nem uma interpretação precisa sobre os acontecimentos referenciados; pelo contrário, o efeito do uso de vários gêneros e o papel quase ausente de uma figura de narrador que organize as vozes e os discursos têm como efeito a instalação do caos. A reiteração de idênticas falas, em vários momentos do livro, reforça o caos e dá a sensação de que a autora não domina totalmente as vozes que falam no seu livro. Poderíamos encontrar uma forma de “resistência” que evitasse os perigos do discurso exemplificador, didático, heroico? O leitor é obrigado a voltar às páginas anteriores para comprovar, surpreendido, que se trata, efetivamente, de uma repetição. Atua em Oración a convicção de que não existe a síntese de nada e de que a ordem, a solução, o final, não estão no programa intencional da obra nem nos acontecimentos narrados no livro. A sucessão de versões diferentes sobre os mesmos fatos, a inclusão de documentos políticos e de comentários de jornais se alternam com momentos de verdadeiras crônicas e textos ensaísticos sobre o pensamento de uma época, analisada a partir do presente. O centro da narrativa seria o que se denominou o romance familiar e as histórias de filiação, em que aspectos íntimos e da ordem da subjetividade fundem-se com a política de modo inevitável.
12 “la ficción es el arte de la elipsis, trabaja con la alusión y lo no dicho (…)”.
13 “está el manejo de las formas autobiográficas del testimonio verdadero, del panfleto y la diatriba (…)”.
14 “la investigación como uno de los modos básicos de darle forma al material narrativo. El desciframiento, la búsqueda de la verdad, el trabajo con el secreto, el rigor de la reconstrucción: los textos se arman sobre un enigma, un elemento desconocido que es la clave de la historia que se narra”.
Cânone e heranças literárias
Na crítica argentina, Walsh tem o estranho poder de convocar comparações com outros escritores. Martín Kohan sugeriu uma aproximação e contraste com Juan José Saer no texto Saer, Walsh: una discusión política en la literatura (1994). Ana María Amar Sánchez prefere o par Walsh/Cortázar. O próprio Kohan sugeriu, a partir do modo de trabalhar o problema da verdade na narrativa, uma leitura conjunta de Borges e Walsh, autores situados nos antípodas do pensamento político, situação contrastante com as coincidências que se revelam quando focamos estritamente o plano literário das obras: cultivo dos gêneros policial, detetivesco e fantástico, aderência às práticas da literatura modernista.
De todas as relações já advertidas pela crítica, interessa-nos, porém, o par Walsh/Puig, proposto por Moreno. Trata-se sempre de identificar filiações e de inventar afiliações, para tomar a conhecida diferenciação de Edward Said. Sabemos da importância que reveste para os estudos literários o problema da construção do cânone, constantemente reformulado no trabalho incessante da leitura das tradições e das identificações que possibilitam as afiliações.
Parece-nos conveniente trazer para a presente análise do relato da filiação literária em Oración o ensaio da autora, incluído no livro Subrayados. Hasta que la muerte nos separe (2013), intitulado “Puig con Walsh ”. Moreno observa
Silvia Cárcamo
que durante as décadas de sessenta e setenta produziu-se o reinado da voz no gênero “Histórias de vida”. Os exemplos são os já consagrados Biografía de un cimarrón, do cubano Miguel Barnet, e Los hijos de Sánchez, de Oscar Lewis. Apelando para um jogo de palavras, María Moreno escreve que Walsh e Puig foram aqueles que “escribiendo daban que hablar y hacían hablar para después escribir” (MORENO, 2013, p. 272). Nota a escritora que poucos repararam na importância daqueles antigos gravadores da época que auxiliavam a perpetuar as vozes registradas. Longe de associar essas possibilidades tecnológicas da época ao verossímil realista, a ensaísta conclui que os dois escritores usaram o gravador “antes do que como garantia de uma fidelidade à testemunha ou ao referente, como um robô ficcionalizador recarregável e de infinitas possibilidades” (MORENO, 2013, p. 272)15 . Moreno teve a agudeza de perceber uma evolução nas escritas de não ficção de Walsh. Nos seus famosos livros de denúncia, o escritor usou o gravador “com especial atenção aos fatos que incriminam” (MORENO, 2013, p. 273)16 . Em textos posteriores, ao contrário, Walsh “já registra matizes de estilos narrativos e detalhes autobiográficos das testemunhas que têm a gratuidade da ficção” (MORENO, 2013, p. 274)17 .
O ensaio dá como exemplo o registro das vozes ouvidas num leprosário, de momentos que se aproximam da ficção e de autobiografias dos doentes internados. Segundo Moreno, a morte de Walsh interrompe uma experiência que poderia ter levado o escritor a um uso subversivo do gravador. Há indícios da passagem do “cronista informante” ao “cronista redator e editor”. Oración incorpora a teoria dessa interessante mudança de Walsh. Para esse cronista dos últimos anos, não se tratava da apropriação da voz dos que não eram ouvidos; não se tratava de falar em nome do outro. Ceder o gravador se fazia necessário. Moreno lembra da afirmação de Walsh, em entrevista concedida a Ricardo Piglia: “na montagem, na compaginação e na seleção no trabalho de investigação se abrem imensas possibilidades artísticas” (MORENO, 2013, p. 275)18 . Esses são os recursos de Oración e, por isso, resulta lícito afirmar que a proposta de Moreno consiste em chamar a atenção para procedimentos de Walsh que ela mesma utiliza na sua escrita.
Moreno considera que “É estranho que, num certo sentido, Puig tenha realizado o projeto de Walsh, embora se detivesse no momento de passar o gravador, no sentido de xaquear a autoria especializada” (MORENO, 2013, p. 275)19 . O exemplo de Moreno são as gravações de Puig com o pedreiro cuja voz escutamos em Sangre de amor correspondido. Após ouvir as fitas das gravações usadas para a escrita desse romance, que María Moreno consegue por empréstimo de Carlos, o irmão de Puig, a escritora chega à conclusão de que Puig cumpria rigorosamente o método de Walsh. Da parte do pedreiro, o maior protagonismo teve como efeito conduzir seu relato por caminhos da imaginação, da invenção. O ensaio de Moreno defende a aproximação Walsh/ Puig, cujo valor estaria na eliminação da barreira de separação das vanguardas artísticas e políticas, uma vez que ambos os escritores estariam se esforçando por ceder a palavra ao povo, ou aos “amenazados de insignificancia”, como diria Patrícia Walsh, repetindo uma lição aprendida de seu pai.
15 “menos como garantía de una fidelidad al testigo o al referente que como un robot ficcionalizador recargable y de infinitas posibilidades”.
16 “con especial atención a los hechos incriminadores”.
17 “ya registra matices de estilos narrativos y detalles autobiográficos de los testigos que tienen la gratuidad de la ficción”.
18 “en el montaje, la compaginación y la selección en el trabajo de investigación se abren inmensas posibilidades artísticas”.
Não é gratuito que María Moreno repare nos procedimentos de Walsh e Puig. Essa autonomia das vozes dos outros, que arrasta como consequência natural o quase desaparecimento do entrevistador e o destaque dos informantes, é o modelo praticado pela escritora em Oración.
Sem que seu nome seja mencionado, mas coincidindo em algum ponto com María Moreno, Beatriz Sarlo foca em procedimentos da oralidade e do popular. O artigo de Sarlo trata das diferenças entre a ficção da década de oitenta do século passado e a que estava sendo divulgada nos primeiros anos do século XXI. A crítica constata que “Se o romance da década de oitenta foi “interpretativo”, uma linha visível do romance atual é “etnográfica” (SARLO, 2006, p. 2) 20 . “Etnográfica” no sentido de que romances mais recentes dão a sensação de o autor ter gravado, segundo procedimentos da etnografia, as falas das personagens, o que contrasta com a tradição da ficção que nunca teve a pretensão da transcrição fidedigna das falas do romance. Para essa tradição, “O estilo plano (de fita gravada) era um recurso excepcional” (SARLO, 2006, p. 4)21 . Sarlo comenta particularmente a novidade que representou Washington Cucurto, reproduzindo a “língua baixa”, exagerando essa língua até a hipérbole e introduzindo um “narrador submergido”, cuja fala não se distingue mais das vozes das personagens populares.
Reparemos, agora, o modo como María Moreno provoca a inclusão dos relatos dos sobreviventes desse confronto que culmina na morte de Vicki Walsh. As falas de Lucy Gómez de Mainer, a pessoa que tinha alugado, para
19 “Es extraño que, en un cierto sentido, Puig realizara el proyecto de Walsh aunque se detuviera en el momento de pasar el grabador, en el sentido de jaquear la autoría especializada”.
20 “Si la novela de los ochenta fue “interpretativa”, una línea visible de la novela actual es “etnográfica”.
21 “El “estilo plano”, de cinta grabada, era un recurso excepcional”.
Silvia Cárcamo
o uso dos militantes, a casa invadida pelo exército; de Maricel Mainer, a sua filha; de Juan Cristóbal Mainer, o filho; e de Stella Maris Gómez de García del Corro expõem as suas versões do que ocorreu no dia da invasão, sem nenhuma participação da autora do livro. Devemos supor que Moreno gravou os testemunhos sem interrupções e decidiu não deixar traços da sua intervenção. As marcas de oralidade indicam falas espontâneas. Nas entrevistas principais, que reproduzem o diálogo de Patricia Walsh com a autora do livro, notamos, ao contrário, as intervenções breves de Moreno, que geralmente reiteram as afirmações da entrevistada ou são sínteses dos seus extensos protocolos. A entrevistadora intervém apenas com frases conclusivas como “– O herói está feito de últimas palavras” (MORENO, 2018, p. 100) 22 ou “– Essa foi a última vez que você viu seu pai” (MORENO, 2018, p. 101) 23 .
A estratégia consiste em deixar o entrevistado falar para que o leitor chegue às próprias conclusões, e evitar que seja o autor quem imponha uma verdade. São os fatos e os participantes que assinalam a verdade. Não estaríamos diante de uma técnica utilizada por Rodolfo Walsh na sua literatura de não ficção?
Verdade e memórias familiares
Segundo relato da própria Patricia Walsh, registrado em Oración , dois momentos das cartas de seu pai a incomodaram profundamente. Na Carta a Vicki, nesse diálogo imaginário e impossível com a filha morta, Walsh escreve “Falei com a sua mãe. Está orgulhosa na sua dor, segura de ter compreendido sua curta, dura, maravilhosa vida” (MORENO, 2018, p. 16) 24 ; em Carta a mis amigos, o escritor conclui “Sua lúcida morte é uma síntese da sua curta, preciosa vida” (MORENO, 2018, p. 23) 25 . Patricia questiona o uso dos adjetivos “maravillosa” e “hermosa” para caracterizar a vida da sua irmã. Seu questionamento é feito a partir de memórias de infância e adolescência; ou seja, a partir da autoridade que lhe confere o fato de ter compartilhado com a sua irmã as mesmas experiências no seio de uma família dominada igualmente pelo afeto e pelo conflito: discussões constantes, apaixonadas, uma família unida, com posições encontradas. E como consequência, as imagens de uma infância conturbada guardada na memória das filhas.
22 “– El héroe está hecho de últimas palabras”.
23 “– Esa fue la última vez que viste a tu padre”.
24 “Hablé con tu mamá. Está orgullosa en su dolor, segura de haber entendido tu corta, dura, maravillosa vida”.
25 “Su lúcida muerte es una síntesis de su corta, hermosa vida”.
Patricia não conta unicamente com a sua memória pessoal. No registro da fala da filha de Walsh, em Oración, há também uma leitura do texto “El 37”, o magnífico e comovedor relato autobiográfico de Walsh sobre o sofrimento e a solidão na infância, que começa com a contundente frase “El 36 fue el año de la caída” (WALSH, 2010, p. 16). Na desgraça da economia familiar, começa a infância triste. O escritor lembra, nesse texto, a sua passagem, junto com o seu irmão, por um colégio de religiosas irlandesas para internos pobres. Essa solução que os pais de Walsh encontraram diante da impossibilidade de sustentar os filhos se apresenta como similar à decisão do escritor de colocar as suas filhas, Vicki e Patricia, num colégio como alunas internas durante um ano. Patricia lembra desse período trazendo à memória a leitura de “El 37”, que ela considera um “conto”: “E esse conto me faz lembrar de quando ele levou-nos, a minha irmã e a mim, uma de cada mão, ao colégio Maria Auxiliadora da rua Soler, em Buenos Aires” (MORENO, 2018, p. 296) 26 . Esse episódio, junto com outros momentos de sofrimento, tem a força de um argumento para aniquilar a versão da “vida maravilhosa” de Vicki, construída por Walsh, em suas cartas.
Um outro ponto de discordância entre pai e filha revelado em Oración refere-se propriamente a quem teria dito a frase “Ustedes no nos matan nosotros elegimos morir” (MORENO, 2018, p. 22) 27, ouvida durante o confronto entre os militantes e o exército. Para fazer de Vicki uma heroína, o escritor atribuiu à filha essas últimas palavras. Patrícia corrige a informação do relato paterno, esclarecendo que, na realidade, o seu pai sabia que essas palavras tinham saído da boca do companheiro de Vicki, o militante que morreu ao seu lado. A relação com a literatura de Walsh encontra-se nos próprios argumentos de Patricia, ao lembrar que o seu pai privilegiava o herói anti-épico e as vozes dos ignorados. Se o suicídio era uma alternativa para esses militantes, um ato de sacrifício pessoal, a obrigação de Walsh teria sido reconhecer “el protagonismo del compañero” (MORENO, 2018, p. 294). Segundo Patricia, o pai, a quem importa a construção da verdade na escrita, cai na tentação de fazer de Vicki “la heroína de esta escena”. O depoimento de Patricia Walsh, em Oración, após registrar os acontecimentos na casa invadida e das circunstâncias da morte de Vicki, passa à análise do modo como ela mesma, a filha sobrevivente, processa a identificação com o seu pai, que é inseparável da proposta literária deste último: “Eu me identifico com o meu próprio pai: quando ele busca quem vai
26 “Y ese cuento me hace acordar a cuando él nos llevó a mi hermana y a mí una de cada mano, al colegio María Auxiliadora de la calle Soler, en Buenos Aires”.
27 “vocês não nos matam, nós preferimos morrer”.
Silvia Cárcamo
dar testemunho em grandes relatos, escolhe as pessoas que estão ameaçadas de insignificância” (MORENO, 2018, p. 301) 28 .
Considerações finais
Acreditamos ter identificado o modo como os relatos de filiação mobilizam as problemáticas da complexidade da memória, assim como demonstrado também o diálogo entre perspectivas que se entrecruzam a partir da filiação na literatura. Os gregos usavam o termo “Alethéia” para nomear a verdade. Como explica Heiddeger29 , quem analisou a palavra da língua grega, “alethéia” significava a negação de “lethe” que é ao mesmo tempo esquecimento e desvelamento ou ocultamento. Sua relação com a memória não pode ser negada. María Moreno parece se identificar com a busca da verdade de Rodolfo Walsh, sem que isso signifique uma anulação da crítica e uma mitificação do escritor. Como admiradora da sua obra, compreende que o compromisso do cronista é com a verdade, sem anular a imaginação nem o dever de expor a multiplicidade contraditória das vozes.
28 “Yo me identifico con mi propio padre: cuando él busca quién va a dar testimonio en los grandes relatos, elige a las personas que están amenazadas de insignificancia”.
29 Heidegger, M. “Aletheia”. In: Conferencias y artículos . Barcelona: Ediciones del Serbal, 1994, p. 225-246.
Referências
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WALSH, R. “El 37 (Memorias de infancia)”. In: WALSH, R. Ese hombre y otros papeles personales. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2010. p. 16-23.
Zilá Bernd
As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se as narramos ou fizermos delas uma história.
Hannah Arendt A condição humana.
Esse capítulo pretende abordar – a partir da leitura de obras de duas escritoras migrantes do Quebec: Kim Thúy e Régine Robin – a maneira pela qual essas autoras, originárias de diferentes formas de migração, irão produzir suas obras no entre-lugar entre a urgência de apropriação do lugar e o esforço em preservar a memória de seus ancestrais. Assim, tanto a figura da devoração e/ou da braconagem dos elementos culturais do país de acolhida quanto a do memorialista geracional, que não se permite esquecer a memória cultural de seus ancestrais, serão problematizadas no âmbito do presente capítulo através da análise de obras de duas autoras contemporâneas da literatura dita migrante do Quebec.