14 minute read

A ReExistência em escritoras indígenas

Next Article
Porto

Porto

Silvina Carrizo

Escritoras indígenas urbanas como Liliana Ancalao e Eliane Potiguara encontram-se filiadas a práticas e reflexões relacionadas, de modos diferentes, com experiências migrantes como resultado da despossessão de seus territórios pela expropriação capitalista colonial. Em momentos distintos das suas trajetórias pessoais, tomam a palavra e textualizam artisticamente, conjurando os trabalhos da memória e da herança, levando a cabo belos e importantes projetos poepolíticos. Entender-se dentro de uma linhagem comunitária há mais de 500 anos em constante ameaça supõe, também, uma herança ferida e viva, ancestral e contemporânea.

Advertisement

De acordo com Judith Butler em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (2015) – Giving an Account of Oneself, 2005 –o desejo de reconhecimento deveria sempre estar dialogando com a propensão a reconhecer os limites do reconhecimento, com a experiência dos próprios limites do conhecimento. Dar conta de si, um relato de si mesma, acontece em uma cena de interpelação, ou várias, e sua estruturação assume uma dimensão retórica, sendo, assim, uma intervenAção – uma interferência no continuum discursivo -; uma intervenção interlocutória, espectral, persuasiva e tática.

Carrizo

Com o objetivo de aprofundar a análise das relações do relato de si e as formas escriturais da reexistência enquanto ideologema, e visando apontar as estratégias composicionais das cenas de interpelação que Eliane Potiguara e Liliana Ancalao constroem, analiso, neste texto, algumas das estratégias da política e poética das autoras indígenas.

As modulações do tornar-se, perceber-se, autoperceber-se, esse “dar conta de si mesma”, vão gerando não apenas uma autopercepção e autoafirmação, mas também vão interpelando esse mundo das violências éticas – simbólicas e concretas, porque físicas –, produzindo pensamento poético potiguara e mapuche, respectivamente. As cenas constroem espaços topológicos nos quais a linguagem cria efeitos que tem a ver com a produção da subjetividade das escritoras e com a interpelação, bem como perturbação da leitora e da espectadora. Butler argumenta que a estrutura da cena de interpelação não seria uma caraterística da narrativa, mas sim uma interrupção na narrativa. A incompletude dessa narrativa dá-se porque estamos eticamente implicados na vida dos outros, “interrompidos pela alteridade” (2015, p. 87). Uma interrupção, que por estar dirigida a um outro, assumiria uma dimensão retórica – umas certas regras de jogo que se correspondem a formas de falar e fazer (BUTLER, 2015, p. 85-86).

No momento em que fazemos um relato de si, um dar-se conta de si mesma, é quando, conforme Butler, nos tornamos filósofas especulativas ou escritoras de ficção (2015, p. 21). O relato, nesse sentido, é uma especulação, uma autorreflexão sobre as possibilidades de reconstrução tanto de um momento/ situação de vida quanto da pré-história do eu. É por isso que contar a história de si mesma pode ser pensada, ao mesmo tempo, como uma modalidade de ação voltada para o outro, que exige um outro, no qual o outro se pressupõe (2015, p. 106). O relato como forma de especulação pressupõe o outro e está cheio dos outros contemporâneos e históricos:

[...] significa que enquanto estou engajada em uma atividade reflexiva, pensando sobre mim mesma e me reconstruindo, também estou falando contigo e assim elaborando uma relação com um outro na linguagem. O valor ético da situação, desse modo, não se restringe à questão sobre se o relato que dou de mim mesma é ou não adequado, mas refere-se à questão de que, se ao fazer um relato de mim mesma, estabeleço ou não uma relação com aquele a quem se dirige meu relato, e se as duas partes da interlocução se sustentam e se alteram pela cena de interpelação (BUTLER, 2015, p. 70).

Penso as estratégias composicionais das cenas de interpelação dentro das constelações de produção da heterogeneidade tal como desenvolvida pelo

Antonio Cornejo Polar (2003). Neste recorte particular, observo as possíveis intervenções Eu/Nós/Outres na especificidade dos vários leitores/atores possíveis, quais sejam: as autoras e elas mesmas, elas e as mulheres indígenas, elas e as comunidades indígenas nas Américas, elas e os/as não indígenas.

A primeira cena que destaco em Eliane Potiguara é a dedicatória à sua avó, Maria de Lourdes, em Metade cara, metade máscara ([2004] 2018),

À minha falecida avó indígena Maria de Lourdes, que, no início do século XX, teve seu pai desaparecido por ação colonizadora no estado da Paraíba. Suas quatro filhas indígenas, ainda adolescentes, migraram compulsoriamente dessas terras […] (2018, p. 5).

A primeira cena em Liliana Ancalao é a inscrição de Ignacia Quintulaf, no poema “Las mujeres y el viento Pu zomo engu kurüf”, entre outras mulheres como a mãe e a avó, do livro Mujeres a la intenperie Pu Zomo Wekuntu Mew (2009), y aquí hasta la noche se ha opacado el viento ruge arrancando hasta las ganas de quedarse seguro que las lomas quedaron peladitas por ahí andará el ruego de ignacia quintulaf porque su hijo no volvía

Ambas, Maria de Lourdes e Ignacia Quintulaf, são a entrada na madeira –Neruda dixit – no mundo potiguara e mapuche, respectivamente. A Quintulaf, aquela que leva os saberes do mapuzungun nos ventos patagônicos do Puelmapu e com quem aprende Liliana Ancalao sua língua da terra, sua língua ancestral. Ambas constroem suas poepolíticas nessa liberdade da linguagem comunitária chamando as vozes, em todas as paisagens americanas. Essas vozes, a voz como em “Esta voz Fachi züngun”:

[…] y esta voz

[…] ka fachi züngun que es cenizas en los labios mellfümu mülechi trufken llengati pretende ser cascada en el desierto küpa traytraykowtuy lipüng mu tuwün pule caer mi llanto desde la sangre tuway ñi ütrünarün tañi ngüman gritar wirarün hasta el abismo del silencio ñüküf ñi zumiñwelling püle puwlewüla [ngati (ANCALAO, 2015 p. 78-79).

Silvina Carrizo

A reexistência é uma noção que não pertence ao mundo da dominação, é uma noção que vem do mundo justamente das comunidades oprimidas, exploradas, subalternizadas, marginalizadas. A explosão significante e insurgente da reexistência acontece bem nessa fase neoliberal da globalização (1980 até hoje) e que, talvez, penso como hipótese, seu ponto máximo tenha sido a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas – um processo que vai de 1985 a 2007.

Busco entender essa noção não como uma noção já clara, fechada em si mesma, mas sim como mais próxima de um ideologema – como no primeiro Bakhtin. É uma forma de capturar, de captar tensões e lutas nas práticas socioculturais e espirituais do que é estar na sociedade ocidental. São tendências que veem desse mundo, não surgem no mundo da universidade eurocêntrica, no mundo branco. A reexistência, por exemplo, em Conceição Evaristo, inscreve na arte da escrita a escrevivência.

Há uma outra questão que tenho muito clara e que representa uma abrangência de problemáticas que dizem respeito a mim, pesquisadora; a partir de um ponto de vista americanista, decolonial e anticolonial não posso “encobrir” as textualidades e discursos para “des-cobri-los”. Tenho é que “trabalhar com” e me reconhecer no lugar das mediações, enfim, construir minha humildade como escritora.

O ideologema da reexistência está vinculado a um mundo de percepções, experiências, referências e ações, uma estrutura de sentimento que marca a ambiguidade e conflitividade político-simbólica de estar-mulher-indígena nesse mundo. Se o ideologema da reexistência é uma disputa pelos sentidos sobre o que é a vida e o que são as formas de viver, a concretização em atos de artes verbais necessariamente está fundada na práxis da solidariedade inter e intrageracional, entre parentes das Américas e entre as mulheres indígenas. A primeira constatação que podemos fazer é que a reexistência só é possível na abertura à ancestralidade, aos antepassados, à linhagem comunitária que é também pertencimento no aqui e agora.

Em Eliane Potiguara a circularidade – uma relação temporal diferente – entre a sobrevivência, a existência e a reexistência vai sendo costurada na interpelação entre o estar-mulher-indígena, a comunidade potyguara e a comunidade indígena na América Latina, mergulhando na crítica sobre os modos de subjetivação dxs expropriadxs, dxs imigrantes – quase em situação de refugiadxs no seu próprio país – ou do que ela costuma categorizar como “desaldeados” ou “destribalizados”. A sua poepolítica dramatiza o processo da experiência/vivência de autoconsciência para ser potiguara, as instâncias de reconhecimento da família e da genealogia indígena para se afirmar e se autodeclarar. Percurso que vai de Eliane Lima dos Santos a Eliane Potiguara, como na cena do poema “Brasil”, enorme sujeito-país ao qual se interpela na repetição do “O que faço com minha cara de índia” (2018, p. 32). Observemos as cenas de interpelação na produção escrita e oral de Eliane Potiguara entre a sobrevivência e a existência. Em 2016, ela dá uma entrevista no programa do Itaú cultural, em 1ª persona. Essa intervenção dialoga de forma muito semelhante com várias páginas de Metade cara, metade máscara, de 2004, porém escritas em 3ª pessoa (2018, p. 25). Nesse livro de consagração, também encontramos sua primeira publicação poética, um poema-póster: “Ato de amor entre povos” (de 1982 e exposto e divulgado no Encontro dos Kaiapós1) que conta de forma trans-histórica, ao modo da oralidade da contação de histórias indígenas, a vida e o relacionamento de Jurupiranga e Cunhataí.

Vemos assim um tecido de textualidades que se retroalimentam taticamente. Ato – Amor – entre – Povos, modos da atuação, do agir, do encenar na palavra e no corpo, uma cena de interpelação frequente em Eliane Potiguara entre sua arte e seus discursos públicos.

Escutamos na entrevista de 2016:

Desde que nasci eu tenho uma forma de ser muito reservada, dada a minha educação que tive com minhas avós, minhas avós e minhas tias avós, porque eu fui alfabetizada dentro de casa já com certa idade e essas mulheres, como nós vivíamos num gueto, num gueto indígena no Morro da Providência, e aí existiam outros indígenas que vinham para trabalhar na IMAC, na fábrica de navios. Então nós vivíamos num gueto que socialmente era um lugar de muita violência, violência psicológica, violência física, um lugar onde existia uma comunidade oriunda da Segunda Guerra Mundial e que eram carvoeiros, pessoas carvoeiras, bananeiras, pessoas que tinham um trabalho bem proletário e fora isso havia uma grande comunidade de prostitutas que faziam ali o seu trabalho e por essa razão eu fui uma pessoa que recebeu uma educação muito, muito fechada, praticamente fui conhecer a sociedade brasileira com 9, 10 anos e onde minha avó não permitia que eu olhasse para as pessoas e até que tivesse contato. Eu como digo até nos meus livros, eu tinha uns antolhos psicológicos e até espirituais, uma proteção muito grande dessas mulheres, todas analfabetas, todas extremamente pobres e minha avó vendia bananas para a nossa sobrevivência e eu era uma pessoa, praticamente não via o sol, não participava de nada. Eu só fui falar mesmo com quase 10 anos, não tinha o poder da linguagem, só tinha o poder do olhar, então eu tive uma educação voltada para a essência de minha própria família, [...] as histórias, as tradições [...] apesar de eu não ter nascido [lá] mas eu vivia com isso porque elas, era a temática delas [...] era a questão da violência, da imigração, da pobreza, da perda das suas terras, do distanciamento, da família, desse processo todo cultural, cosmológico. Então esse distanciamento, esse sofrimento [...] mas é uma

Carrizo

história de luta e resistência , uma história de mulheres que lutaram pela sobrevivência delas e pela sobrevivência dos que vieram [...] (POTIGUARA, 2016, min 06:00, grifos meus).

Lemos assim a sobrevivência, a luta e resistência pela vida no espaço urbano, o estar urbana e não aldeada da Eliane Potiguara, a herança ferida e distinta das mulheres da casa.

Em 2013, temos a transcrição da conferência “O espaço ancestral: minha pedra verde” refletindo sobre o existir, na cadência do “então eu existia”, Quando eu tinha seis anos, minha avó me deu uma pedra de cor verdealface clara, de uns 20 cm, quase que transparente. À tardinha vovó contava histórias e eu e minhas pequenas mãos manuseávamos aquela pedra como algo magnético, mágico, poético e, por que não dizer, cosmológico. Meu olhar fixava-se naquela pedra e meus ouvidos nas histórias de minha avó, Maria de Lourdes de Souza .

Essa pedra era a extensão cosmológica de nossa cultura indígena, o lado que não se podia tocar, era a história, o lado imemorial, o transcendental, o espiritual, possivelmente, a essência de nossas vidas. Isso nos pertencia verdadeiramente? Representava a cultura de nossa família? Representava a cultura e extensão cultural de um povo colonizado, catequizado? Seria o que a líder e pajé Potyguara Maria de Fátima Potyguara, assim como os velhos e velhas, chamavam de “mesinha” (cultura da mesinha). Certamente que sim! Essa extensão celular de uma cultura generalizada era parte do todo. Minha pequena vida e pequena história faziam parte de um contexto social, político e econômico. Tinha origem, tinha nome, tinha etnia. Então eu existia. (POTIGUARA, 2013, p. 108, grifos meus).

Desse pequeno espaço ancestral, onde estão reunidos o sagrado, as tradições, as filiações, o relato oral, essa pedra verde é a matéria de entrada no caminho mesmo de se autoperceber, o relato de si, o “Given an account of Oneself”, como quando a escritora Potiguara diz e fala/escreve e eu volto a destacar: “Essa extensão celular de uma cultura generalizada era parte do todo” e “Tinha origem, tinha nome, tinha etnia. Então eu existia.”

As redes nas histórias são os tecidos das memórias e a reexistência própria e comunal, nesse sentido não há forma de reexistir individual sem a abertura também da comunidade e na sua direção. No 16 de outubro de 2019, Eliana Potiguara é com-memorada na Aldeia São Francisco, na Paraíba. Aqui é a Fátima liderando a cena de interpelação do estar-Eliane-Potyguara. Transcrevo, então, a voz de Maria de Fátima Potyguara, líder e pajé:

[...] eu estou emocionada de ver minha mana aqui, e um índio é raíz (?) e o índio quando ele se sente (pária?) ele vai pra as matas, a buscar força da mãe natureza, dos encantados, e obrigada por tudo, então, estamos aqui, Eliane, de braços abertos para te receber, no fundo do coração dos Potyguara, você nunca saiu, você mora no fundo do coração dos Potyguaras, com todo orgulho, com todo prazer, com toda a dedicação do indígena e do mundo inteiro, e obrigada 2

Esse processo oralituralizado de reexistência, na sua repetição, ressignifica modos da “extensão celular de uma cultura generalizada”. Processo que ilumina em Metade cara, metade máscara os vários poemas e textos em prosa, cuja cena de interpelação escande o ter ou não ter aldeia.

Em Liliana Ancalao, as cenas de interpelação trabalham o existir e o reexistir entrando na matéria das relações entre cultura e cantos, a música, a escrita, em uma operação de estudo cujo âmago está no resgate de/para si, para sua comunidade patagônica e para o mundo imagético-simbólico do mapuzungun, a língua/linguagem da ancestralidade-contemporaneidade das pessoas, Che, do Mapu, terra. O resgate é uma forma espectral do reconhecimento, do dar-se conta. É tático porque poepolítica pertinaz, porfiada. Inscreve-se, desses modos, em uma continuidade que compartilha as visões de mundo ocidental e mapuche sobre os sentidos da história e a história dos diferentes sentires. Também, em outro sentido, operacionaliza um processo de expansão do campo literário, acrescentando literariedade (CASANOVA, 2002) às artes verbais no campo literário argentino, para o campo minorizado da oralitura em mapuzungun, ou até um trans-subcampo literário aquele das textualidades mapuches (para além dos Estados-nação) e das textualidades indígenas nas Américas, no caso, inSurgindo uma movimentação da língua, suas grafias, sua sonoridade, seus imaginários, bem como dos procedimentos composicionais da autotradução, da bilinguidade e da oralitura (textualidades orais, escritas e musicais) no campo literário argentino, monolíngue e monoglóssico.

Em ensaio de 2010 na Revista Boca de Sapo, o qual Liliana Ancalao faz reinscrever na mesa redonda das I Jornadas de Feminismo Poscolonial (IDAES/ UNSAM) em 2013, a escritora mapuche argumenta e interpela:

El mapuzungun fue el idioma de la conversación de los ancianos, el idioma para convocar a las fuerzas en la intimidad del amanecer. El idioma para guardar. Para callar (2010, p. 50) […] El mapuzungun es el idioma de recuperación del orgullo, el idioma de la reconstrucción de la memoria (2010, p. 51).

Silvina Carrizo

A recuperação do orgulho e a reconstrução da memória formam parte do caminho de regresso que atualiza o estar escritora de Liliana Ancalao. Professora – assim como Eliane Potiguara –, publica em 2009 Mujeres a la intenperie Pu zomo wekuntu mew, livro produto de um longo processo de estudo e transformação. Nele, se desenha o diálogo entre Pu zomo – As mulheres – e as variantes da intempérie patagônica, o vento, a chuva, o frio. Diferentes mulheres transitam poetizadas em castelhano e mapuzungun e as memórias se imaginam nesse estar entre línguas e tempos de vendavais de despossessão e reexistência. Ancalao comenta em programa de radio: “La historia me negó a mí el conocimiento de mi cultura […] Yo ando aprendiendo […]” (ANCALAO, 2016), e assim deixa constância no seu fazer poético.

A entrada na matéria vai poetizando a relação ferida e viva com a paisagem do Puelmapu. Em “Las mujeres y el frío Pu zomo engu wütre”, ouvimos: “yo nací con la memoria [da sua mãe] de sus pies entumecidos”. O andar intumescido, inchado desses pés trabalhadores e o frio, a infância, a mãe. A mãe e as mães que lhe abrem o coração à poesia e à sua própria história, que abrem as portas ao processo de re/conhecimento como cura e militância da memória (ANCALAO, 2019). Nesse programa, Ancalao fala sobre sua viagem pela Patagônia e seu percurso na consignação do esquecimento interesseiro, do processo da vergonha social perante a procura do orgulho pelas outras memórias e a importância da escrita poética como tradução ao mapuzungun, bem como tradução poética da história silenciada. Em Punta Alta vivia seu pai, Fermín González Ancalao e aí conhece a história da desapropriação dos territórios, por isso ela atravessa os tempos e encontra as palavras no vapor daqueles frios das manhãs (ANCALAO, 2019). No minuto cinco podemos ouvi-la recitando nas suas duas línguas, um fragmento: iñche kimun wütre feichi pichizomongen guardapolvo mew dumiñkuley iñche ñi chaw ñi rambler clasic amulafuy müley iñ namuntuael eskuela mew katrütuantüiñ chi pu wafün foro kataeyew iñ pichi ilo iñchengefun kiñekeluku kutrafulu pifuiñ müna wütre ta iñ leliael chi puzüngu ñi kuyuan iñ kompañküleael [...] yo al frío lo aprendí de niña en guardapolvo estaba oscuro el rambler clasic de mi viejo no arrancaba había que irse caminando hasta la escuela cruzábamos el tiempo los colmillos atravesándonos la poca carne yo era unas rodillas que dolían decíamos qué frío para mirar el vapor de las palabras y estar acompañados [...] (ANACALAO, 2009, p. 10).

A poesía como reunião e como cura. Essa enorme cena de interpelação que con-signa a oralidade, a escrita, as duas línguas do estar mapuche na Patagônia argentina. À procura dos “antiguos”, os ancestros e ancestras, a familia, a linhagem, isto é: estar na história, experimentá-la nas sendas do resgate do ser para si e para a comunidade nesse mulherio do Puelmapu. Observemos este fragmento de “Las mujeres y el viento Pu zomo engu kürüf”, fey wiñolekey pepikawenew chi griega rulpalu chi kafe bora pifuenew kiñe wentru mew inche rakizuamfun ta chi kürüf mew chi kürüf wiñokey welu tüfa waria wimlay miawi fillke rupa auka rüpüwaria mew kuyümkoron mew ñamüntrekaneiñ mew chi pu ishüm üpünüingün chi pu nümün pu takun pinüfüingün pepikawlay chi ruka chi kim chillfuy feymew müley iñ tükuael chi pava pepikaael kiñeke mate üngümael ñi amun kiñekeantü mew regleantü kuyentrafkintu mew [...] él siempre va a volver me previno la griega traduciendo la borra del café y me hablaba de un hombre yo pensaba en el viento el viento siempre vuelve pero esta ciudad no se acostumbra anda cada vez desaforado por las calles a brochazos de tierra borrándonos los pasos se nos vuelan los pájaros los olores la ropa se desafina la casa la memoria se astilla y hay que poner la pava preparar unos mates y esperar a que se vaya en unos días unas semanas vaya a saber con el cambio de luna [...] (ANCALAO, 2009, p. 11).

¡iñey kimi!

Os passos perdidos que se procuram no remoinho dos ventos mostram a imprecisão dos trabalhos da memória nessa cidade onde a memória pode ser estilhaçada, apagada pelos vendavais históricos. O chimarrão é desse campo semântico da espera, da reflexão, e que ressignifica esse compartilhar de várias tradições e em paisagens em comum dentro da casa, longe das intempéries da estepe.

O encontro, reencontro, ressurgimento também poetiza homenagens históricas na visão do estar mulher indígena. Em Metade cara, metade máscara escutamos o poema breve quase grafitti “A perda dos Yanomami”:

Eles criticam

Por nos encontrar nas estradas

Alegrem-se

Por não nos encontrar ainda nos hospícios! (2018, p. 39)

Como um canto-dança sagrado, como em “Oração pela libertação dos Povos Indígenas”, nesses versos em destaque:

[...]

Dai-nos luz, fé, a vida nas pajelanças, Evitai, ó Tupâ, a violência e a matança.

Num lugar sagrado junto ao igarapé.

Nas noites de lua cheia, ó MARÇAL, chamai

Os espíritos das rochas pra dançarmos o Toré [...] (2018, p. 34).

This article is from: