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LEGADOS FAMILIARES

O que está cifrado no nome

– El libro de Tamar , de Tamara

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Kamenszain

Eu não sei como me sinto mas se não escrevo na primeira/ parece que me afogo no copo d’água/ da vergonha alheia 1

A partir de uma afirmação de Werther, que escreve para Carlota dizendo que está pensando nela, Roland Barthes questiona: “O que quer dizer ‘pensar em alguém’? Quer dizer: esquecê-lo (sem esquecimento não há vida possível) e despertar desse esquecimento.” (BARTHES, 1983, p. 51). O fragmento, intitulado justamente “A carta de amor”, parece descrever o cruzamento de escritas – de recordação e esquecimento – que está na origem de El libro de Tamar de Tamara Kamenszain. Se Tamara atribui ao acaso, ao fortuito, o achado do poema que Libertella lhe havia passado por baixo da porta pouco tempo depois da separação e que descansava fazia quinze anos no fundo de uma gaveta, um

poema que o ex-marido havia escrito

1 Original em espanhol: “Yo no sé cómo me siento pero si no escribo en primera/parece que me ahogo en el vaso de agua/de la vergüenza ajena”.

2 Todas as citações de O eco da minha mãe de Tamara Kamenszain, mencionadas neste trabalho, foram retiradas das traduções de Paloma Vidal, assim como às de O Gueto e de O livro dos divãs , das traduções de Paloma Vidal e Carlito Azevedo. Os três livros foram publicados em português pela Editora 7Letras.

Adriana Kanzepolsky

possivelmente em um momento em que pensava nela, encontrar o poema/carta – isto é, lê-lo e respondê-lo para tentar interpretar esses “bolsões semânticos” e preencher os “saltos narrativos” – é também a forma de dizer que alguém despertou do esquecimento e pensou no outro. Esse outro que já não pode ler a “resposta” ou a “exegese lírica” (FOFFANI, 2018, edição digital), esse outro que já não pode responder pelo nome 3 e, dada essa impossibilidade, a libera 4 para que na interpretação minuciosa, que esmiúça cada verso, conte sua versão fragmentária da história de amor; desde a gênese, a chamada telefônica inicial (“Olá, Héctor, eu te disse, sou eu Tamara”), até o final da história e da vida. E que a libera também para reunir e aglutinar no mesmo livro a prosa memorialística, o poema e o ensaio. Um tipo de prosa, a primeira, que pulsava por emergir e ocupar um primeiro plano nos livros anteriores, mas que ainda estava germinando ou que se anunciava como projeto para o futuro em versos como “no presente me sinto livre/ e acho até que de repente/ …quem sabe…/ amanhã começarei um romance” (KAMENSZAIN, 2010, p. 50) 5 , de O eco da minha mãe, ou de forma mais clara, quando entre o desejo e o desassossego escreve em O livro dos div ã s: “se chegar a comprar um caderno por cansaço/ vou acabar caindo no diário íntimo e a poesia/ terá que versar sobre outros assuntos” (KAMENSZAIN, 2014, p. 33) 6 .

Estamos, então, diante de um livro de memórias, poemas e ensaios que conta repetidas vezes diferentes versões – em diferentes línguas, digo – da história de amor/desamor desse casal de escritores, mas que na mesma medida volta a contar e a fazer a exegese de seus próprios textos – ensaios e poemas –, desta que assina Tamara Kamenszain, uma prática que também já havia iniciado em O livro dos divãs de 2014.

3 Recupero aqui a reflexão de Jacques Derrida (1998) em Memorias para Paul de Man

4 Em um fragmento de “Ata Rama”, no qual glosa e alternativamente se contrapõe e identifica com um relato de Kristeva, a qual conta que, graças ao impulso de Philippe Sollers, pôde passar do francês acadêmico para um francês da primeira pessoa, que identifica com a ficção, Tamara escreve: “E não foi outro senão seu marido romancista francês quem a ‘autorizou’ (ela usa este termo que me soa muito lacaniano) a implementar essa primeira pessoa que chama ficção” (2018, p. 40). E mais adiante, assinala: “Diferentemente do que aconteceu com Kristeva, a mim foi o pai dos meus filhos que me ‘autorizou’ a escrever ensaios” (KAMENSZAIN, 2018, p. 40). Uso o termo libera , em parte para contrapô-lo ao autoriza de Kristeva, mas também porque penso em um verso de “Kaddish” no qual, com a morte do pai, pede que a liberem órfã: “O que é um pai?/ Dez homens não bastam/ para fechar a sexta-feira/ num círculo masculino/ que por dentro me libere/órfã” [¿Qué es un padre?/ Diez hombres no alcanzan/ para cerrar el viernes/ en un círculo masculino/ que adentro me libere/ huérfana”] (KAMENSZAIN, 2003, p. 34).

5 Original em espanhol: “en presente me siento libre/ y hasta me parece que a lo mejor/ …quién te dice…/ mañana empiezo una novela”.

6 Original em espanhol: “si me llego a comprar un cuaderno por cansancio/ voy a terminar cayendo en el diario íntimo y la poesía/ tendrá que versar sobre otros asuntos”.

Desse modo podemos pensar que, junto à memória de uma história de amor, El libro de Tamar, desta que é e não é Tamara, constitui uma espécie de “história dos meus livros”, na qual quem construiu um nome ao longo das décadas, o qual durante anos manteve “em uma cela impessoal”

(KAMENSZAIN, 2014, p. 67), os interpreta e (re)situa em um contexto e uma história; concede a eles o lugar “justo”, aquele que merecem, o lugar preciso que vincula o poema com a vida – com sua vida, digo. Novamente, uma perspectiva que havia rondado de forma intermitente, mas com insistência, ao longo dos anos. Como se por fim tivesse conseguido fazer aflorar aquilo que havia mantido “no íntimo carbono dos seus papéis privados” (KAMENSZAIN, 2014, p. 66).

É assim que, se o livro recupera alguns fragmentos amorosos, alguns “fotogramas” da história daquele casal, penso que se trata fundamentalmente de uma despedida, de Libertella, sem dúvidas, mas ao mesmo tempo de uma forma de dizer, própria, e também daquela que haviam construído entre ambos, nessa espécie de escrita em colaboração, de oficina íntima7, na qual liam um ao outro e comentavam entre si. Aquilo que nas primeiras páginas do livro descreve como “o feitiço linguajaresco que [os] havia mantido unidos [e que] vinha rachando” (KAMENSZAIN, 2018, p. 16) 8 . Uma despedida que, ao mesmo tempo, é uma homenagem, porque está escrita em uma língua em que impera a prosa, a língua do outro, assim como este outro no passado escolheu o poema para escrever-lhe (e dizer de seu amor?).

Como contar a história comum e despedir-se? Ou, como escrever uma despedida, que lhe possibilite ir “além do livro” (KAMENSZAIN, 2018, p. 88), movendo-se “em direção a outra vida, outro livro” (KAMENSZAIN, 2018, p. 88), tal como deseja nos versos que encerram El libro de Tamar? Um livro futuro que se ocupe, que verse, sobre outros assuntos, conforme fabula em O livro dos div ã s, ao qual já nos referimos. Ou seja, como abrir as portas, já não do gueto do qual queria se livrar órfã no livro de poemas escrito em memória do pai, mas sim do gueto linguístico e teórico que havia construído junto com Libertella e que havia se tornado uma língua indecifrável que os isolava dos demais e também um do outro?

Considero que a despedida é também uma homenagem porque prioriza a prosa; no entanto, talvez seria mais apropriado dizer que aquilo que prioriza é o

7 Em Lo íntimo, François Jullien comenta que “O íntimo designa […] duas coisas que mantém associadas: o recolhimento e o compartilhar ”. E explica: “Ou melhor dizendo, devido inclusive à possibilidade do recolhimento, surge a solicitação de compartilhar. Não só, evidentemente, porque quanto mais íntimo é aquilo que está em jogo, mais profundo é o que se compartilha, mas principalmente porque só o que é íntimo quer se oferecer e pode fazê-lo” (2016, p. 24).

8 Original em espanhol: “el hechizo lenguarejo que [los] había mantenido unidos [y que] se venía resquebrajando”.

Adriana Kanzepolsky

narrativo, isso que permite tornar explícito o teor confessional de seus poemas e que havia permanecido contido, na época que volta a escrevê-los no registro da prosa. Isto é, retorna e retoma o imaginário linguístico e semântico dos seus livros de poemas para ordená-los em uma trama, naquilo que algumas décadas atrás – e com uma linguagem meio “selvagem”, meio “naif” (KAMENSZAIN, 2014, p. 27) – havia descrito como costura, tecido e bordado do texto 9 . Trama na qual persegue o tempo todo a clareza, não só como despedida definitiva do neobarroco, como também, aparentemente, do “neoborroso”10 , onde se situava há poucos anos11, um movimento que descrevia como um lugar entre o obscuro e o transparente, mas também entre o poema e a prosa.

Como se neste livro pudesse escrever simultaneamente da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, sob a escrita da lei judaica, a lei do pai (a da mão com a qual escreve o ensaio) e a euforia transgressora da rua (com a qual escreve o poema)12 . Um livro que, entretanto, e apesar da insistência na clareza da enunciação, não se fixa em nenhum gênero e também se situa em um entrelugar ou, inclusive, aposta em uma inespecificidade.

Romper com essa enunciação própria e na exegese que tenta deixar clara a cripticidade do poema oferecido pelo ex-marido, colocar palavras naquilo que não entende ou não entendeu naquele momento, pressupõe uma despedida mas também uma saída do gueto para dar lugar a outras vozes e a outros corpos, que são aqueles que a ajudam a contar a história desse casal e dessa escrita em colaboração. Um desejo que da mesma maneira já havia manifestado em O livro dos divãs, quando em um dos poemas fala do entusiasmo de escapar “pelos buracos das vozes alheias” (KAMENSZAIN, 2014, p. 34)13 , ou que muito tempo antes se deixava ouvir de modo mais velado em “Árvore da vida”, o penúltimo poema de O gueto, quando escreve: “No campo sem limites do olhar/ verde sobre verde avança a paisagem de todos/ todos pendem sobre esse horizonte a esperança de [estar vivos/ somos uma multidão baratinada vomitando [sobre os ônibus/ uma passagem de saída”14 (KAMENSZAIN, 2003, p. 44)15 .

9 Refiro-me a “Bordado y costura del texto” (1983), onde declara: “Já quase faz parte do senso comum comparar o texto com um tecido, a construção do relato com uma costura, o modo de adjetivar um poema com a ação de bordar” (KAMENSZAIN, 2000, p. 208).

10 Em português, algo como neo-“nebuloso” ou neo-“borrado”.

11 Refiro-me a um breve texto que publica na revista Ñ em abril de 2010, no qual revisa sua relação com o neobarroco e o neobarroso e, chegando ao final, afirma: “Agora […] talvez eu me filiasse a um movimento que bem pode se chamar neoborroso” (KAMENSZAIN, 2010, edição digital).

12 Segue a citação completa: “Uma vez meu analista, quando me queixei do quão tortuoso que era para mim escrever ensaios, diferentemente da certa euforia que costumava me acompanhar quando escrevia poesia, comentou que talvez eu escrevesse o ensaio da direita para a esquerda e a poesia ao contrário. Não disse mais nada, porém saí da sessão pensando que talvez ele tivesse querido dizer que da mão do ensaio vinha o peso dos mandamentos, da lei paterna, da língua do saber e da reflexão, ao passo que da mão da poesia entrava a rua com suas transgressões não judaicas na hora da sesta” (KAMENSZAIN, 2018, p. 58-59).

13 Original em espanhol: “por los agujeros de las voces ajenas”.

É assim que em “Ama”, um dos fragmentos de El libro de Tamar, escreve:

Em poesia, pelo menos a gente pode […] disfarçar, por trás dos cortes de verso, todo tipo de saltos narrativos. Mas nestes passos de prosa que estou começando a ensaiar, como faço para não cair no precipício? Entre os versos dele e as citações dos outros vou ter que ir me virando (KAMENSZAIN, 2018, p. 34)16 .

Caberia perguntar, então, quem são os outros que cita e convida para o texto, como em uma espécie de sessão de espiritismo? E, principalmente, o que pede a eles? Há alguns casais de escritores, como Ricardo Piglia e Josefina Ludmer, dos quais haviam sido amigos, juntos e separadamente 17, ou Julia Kristeva e Philippe Sollers, autores que ambos liam quando jovens em Tel Quel, ou um casal mais distante, como Ted Hughes e Sylvia Plath, ou ainda Tania e Discépolo, um casal do universo do tango, um dos imaginários recorrentes nos poemas de Tamara.

Casais com os quais monta uma espécie de collage ou de caixa de costura que, por um lado, lhe servem para comparar sua história amorosa intelectual com a história dessas duplas, cujas biografias comuns estiveram atravessadas pela relação com a palavra escrita, seja na forma do ensaio, do romance, do poema ou da letra do tango. De forma semelhante a quando se comparam as histórias de nossos amores e nossas separações com as histórias dos nossos amigos. Contudo, por outro lado, os fragmentos biográficos desses outros funcionam como pré-textos sobre os quais organizar seu próprio relato. É assim que a inscrição do nome de Ludmer nos diários de Piglia – às vezes

14 Original em espanhol: “En el campo sin límites de la mirada/ verde sobre verde avanza el paisaje de todos/ todos cuelgan sobre ese horizonte la esperanza de [estar vivos/ somos una muchedumbre abatatada volcando [sobre los colectivos/ un pasaje de salida”.

15 Em “Reverso”, um texto que publica em Diario de poesía e no qual conta a gênese de “Árvore da vida”, Kamenszain fala da escolha da palavra “ônibus” e da primeira pessoa do plural como uma opção não somente estética, mas também ética, que “Avisa que algo está se soltando e move a subjetividade descontrolada para fora de si.” E explica: “O que move essa primeira do singular a sair de sua estética é o ritmo neurastênico de uma escrita que já não aguenta a si mesma” (s/d).

16 Original em espanhol: “En poesía, por lo menos uno puede […] disimular, detrás de los cortes de verso, todo tipo de saltos narrativos. Pero en estos pasos de prosa que estoy empezando a ensayar, ¿cómo hago para no caerme al precipicio? Entre los versos de él y las citas de los otros me voy a tener que ir arreglando”.

17 Vale recordar lembrar que El libro de Tamar está dedicado a Josefina Ludmer e a Ana Amado e que também Ludmer é repetidamente evocada como mestra e como amiga ao longo do texto e será a personagem central, junto a Libertella, no fragmento “2 de julho de 2000”.

Adriana Kanzepolsky

Josefina L., quando a remete ao universo da crítica, ou Iris, como a nomeia ao pensá-la a partir do espaço da intimidade – a ajuda a lidar com um dos núcleos de inquietude do seu livro: o da ausência do nome Tamara no poema “Tamar”. Uma ausência que a remete, sobretudo, às reflexões de Kristeva em Histórias de amor18 , livro que, recorda, estava lendo na época em que recebeu o poema por baixo da porta, e no qual, em um dos capítulos, Kristeva reflete acerca do segredo do nome da dama na “retórica cortesã dos trovadores herméticos”. Mas o casal Kristeva Sollers que está atravessado por uma espécie de mudança de língua, com o francês conceitual se transformando no francês da primeira pessoa, com o qual a dama pôde escrever ficção, serve-lhe como ponto de partida para pensar a si mesma e pensar o casal em uma espécie de espelho invertido, onde o marido, outra vez como um gesto em que mescla o respeito intelectual com o amor, se vale do seu cargo de editor na UNAM e lhe possibilita publicar seu primeiro livro de ensaios.

“Faz um livrinho de ensaios, loira”19 (KAMENSZAIN, 2018, p. 42), recorda ou imagina Tamara que o então marido lhe propôs. Se o seu cargo de editor universitário no México trouxe como consequência uma tiragem de alguns milhares de exemplares e uma ampla distribuição, a cena que Tamara recorda inscreve esse primeiro livro de ensaios, esse livro escrito da direita para a esquerda, no espaço da intimidade. Não do mesmo modo em que conta que, como gesto de sedução, Libertella a ajudou a dar forma ao seu primeiro livro de poemas, mas sim no claro registro da língua íntima argentina, onde entram o afeto do diminutivo, o mandate do imperativo e certa reminiscência do tango no loira do vocativo 20 .

Em outra perspectiva de leitura, o episódio em torno do casal Tania e Discépolo repete, por um lado, a história de uma mensagem deixada por um morto, agora uma partitura, e encontrada muitos anos depois, não em uma gaveta de Tania, mas sim em um bolso de Cátulo, a quem ela o havia dado fazia mais de um ano. Isto é, o episódio do casal tanguero atua como uma reduplicação e um deslocamento da recordação que abre o livro, a mensagem esquecida que irrompe de repente. Mas a esta história cabe ainda outra função. O relato desse episódio da vida dos outros, no qual as dívidas com os mortos interrompem o sono, funciona também como uma ponte para voltar a um fragmento de sua biografia literária e dar lugar a uma leitura biográfica de um poema de Tango bar. Concebido como reescrita do tango de Discépolo, que não por coincidência se chama “Mensagem”, o poema de Tamara, que não tem título, é também uma espécie de mensagem de um morto ou da morte, neste caso a do ex-marido, antecipada por ela nesse poema de 98, que escreve pouco tempo depois da separação. Reler o poema agora, enquanto ajusta contas com um resenhista, que na época lhe havia criticado algumas rimas cacofônicas e lera o livro numa perspectiva autobiográfica, coisa que a deixou indignada naquele momento, possibilita-lhe, talvez melhor que qualquer outra escrita, transitar por certa transparência que deixe de lado todo indício de ambiguidade. Ao contrário do que postulava o “pai Lezama”, ao afirmar que o menestrel hermético segue as maneiras de Delfos que, “nem diz, nem oculta, faz sinais” (LEZAMA LIMA, 1988, p. 73), agora Kamenszain, afastada do neobarroco, quer que o poema fale com a clareza com a qual falava outro pai, o de Philip Roth, conforme evoca várias vezes ao longo do texto.

18 Vale lembrar que no ano 2000, Kamenszain também publica um livro que intitula Historias de amor e entre parênteses (Y otros ensayos sobre poesía ).

19 Original em espanhol: “Mandate un librito de ensayos, rubia”.

20 Devo esta ideia a uma conversa com Paloma Vidal, na qual ela comentava que a única presença do corpo e do erotismo no livro está no vocativo “loira”. Da minha parte, o situo no uso da língua argentina: nesse “mandate un librito […], yo te lo publico” [faz um livrinho […] eu publico ele pra você ] (KAMENSZAIN, 2018, p. 42).

Se os casais de escritores e o de Tania e Discépolo servem de apoio para reconstruir sua história amorosa, a figura do pai de Philip Roth, “capaz de um realismo cruel” (ROTH, 2012, p. 85), como escreve seu filho em Patrimônio, ajuda-lhe a dizer com clareza mas sem se expor completamente, deslocando para a boca desse pai, esse outro pai de escritor judeu já literaturizado, aquilo que nem ela nem seu ex-marido puderam dizer no passado mas também aquilo que lhe custa dizer agora 21. E a partir de uma perspectiva semelhante à da María Moreno de Black out, é convocada ao texto para poder falar do alcoolismo de Libertella e, consequentemente, de um dos motivos da separação. Não só porque a escritora relata que prefere a palavra “beber” para referir-se à “ingesta de álcool”, pela falta de ambiguidade deste termo, e nesse sentido se pareceria ao pai de Philip Roth, mas também porque Moreno e Libertella foram amigos – entre outras coisas, amigos de copo 22 . Convocar os outros parece ser então a salvaguarda para não “cair no precipício” (KAMENSZAIN, 2018, p. 34), na vertigem que a prosa lhe causa; parece ser também uma forma de não abandonar totalmente o ensaio, essa prosa que pratica desde sempre e que não pode prescindir da palavra do outro. Mas

21 Creio que vale a pena recordar um poema de La novela de la poesía , onde o sujeito lírico, diante da iminência da morte do pai, lembra de dizer-lhe: “olhe-a de frente”, ao que o pai, como se fosse o pai de Philip Roth, responde: “a ninguém adianta olhar para a morte/ esse romance, que o escrevam outros” [“a nadie le sirve mirar a la muerte/ esa novela que la escriban otros”] (KAMENSZAIN, 2012, p. 377).

22 Simultaneamente Moreno cumpre outra função no texto, já que Kamenszain se inspira no modo como intitula os capítulos de Black out para citar os fragmentos de El libro de Tamar, conforme relata.

Adriana Kanzepolsky

acredito que há algo mais, que deslocar para a boca e para o relato dos outros aquilo que não pode dizer, porque não sabe ou porque isso a amedronta, é um modo de não se distanciar (ou não se distanciar totalmente, pelo menos) do poema. Se no poema os saltos narrativos são disfarçados por trás dos cortes de versos, na prosa a palavra dos outros, essa que a desloca para um lugar fora de cena, ocupa o lugar do corte de verso e a preserva.

Comentava no início que no impulso inicial do livro está o desejo de desvelar a cripticidade do poema, de contar sua versão da história de amor, “depondo”23 a poesia para dar lugar à prosa, bem como se depõem as armas para acordar uma trégua, mas ao mesmo tempo e, a partir do apoio de Kristeva, lê o poema para desvelar o segredo de Tamara, daquela que está e não está no poema de Libertella, já que seu nome é ocultado. E o segredo de Tamara, o segredo que Tamara confessa, é querer “recuperar” nesse poema “o homem que uma vez amou” (KAMENSZAIN, 2018, p. 18). Diria, mais apropriadamente, que se trata de recuperar na leitura desse poema o amor que esse homem sentiu alguma vez por ela 24 .

Quero retornar ao verbo “depor” que Kamenszain usa no primeiro fragmento, atribuindo a ação a Libertella, porque se ele depõe suas condições de narrador e lhe escreve um poema e Tamara depõe não mais suas condições de poeta, mas sim o pressuposto (que manteve durante anos) de que a vida não é narrável – algo que seria uma ilusão própria do romance e do qual o poema estaria livre – 25 , e agora decide mais ou menos contar, como se a prosa fosse o gênero apropriado para narrar uma vida, penso que El libro de Tamar propõe outra pequena disputa. Uma disputa que se articula justamente ao redor do nome. Falo do nome da dama, sim, que é um dos motivos de desassossego no fazer-se da leitura do poema encontrado, já que sua ausência lhe impede, como diz, qualquer devaneio, mas também do nome do cavalheiro, esse que se mantém oculto ou é dito apenas em termos até o fragmento “Ramat, 2 de julho de 2000”.

23 Em “Tamar”, o fragmento que abre o livro, escreve: “Intuo que desvelar algo daquilo que esconde isso que ele chamou de ‘bolsões semânticos’ é o que me impulsiona agora a escrever em prosa. Isto é, sei pouco e nada do ato de narrar, mas vejo que tampouco em verso eu poderia tornar compreensível o que ele, depondo suas naturais condições de narrador, versificou para mim a fim de me entregar toda uma história comum condensada em uma combinatória de seis letras” (KAMENSZAIN, 2018, p. 14).

24 Em “Arma trama”, ao falar dos casais de escritores, desse “escrever em colaboração” ou, pelo menos atuar como primeiro leitor do parceiro, anota: “Minha experiência me demonstra que, apesar das boas intenções, parece impossível que não se introduzam instabilidades momentâneas de todo tipo e, sobretudo, essa nociva tentativa de querer ler entre linhas para comprovar se o texto do outro diz algo sobre nós” (KMENSZAIN, 2018, p. 29).

25 Por um lado, neste livro volta a uma citação de Goethe tomada de Käte Hamburger, à qual já recorreu outras vezes. Cito por minha vez Kamenszain: “Se subscrevo, por exemplo, esse pensamento de Goethe citado por Käte Hamburger, quando diz que sua poesia ‘não contém nem uma pontinha que não tenha sido vivida mas tampouco nenhuma tal como se viveu’” (2018, p. 18). Uma declaração que a seguir completa com um comentário significativo: “No entanto, nada do que havia vivido com meu ex-marido durante os vinte e cinco anos de relação me ressoava naquele momento em ‘Tamar.” (2018, p. 18). Por outro lado, em uma entrevista que concedeu a Enrique Foffani em outubro de 2010 afirma: “E a poesia parece surgir mais do estranhamento diante do que é familiar, mais daquilo que falta do que aquilo que há. Parece-me que o romance é um gênero mais edípico, sempre rearma a historinha familiar, embora pareça falar de coisas objetivas, assuntos importantes do mundo. Em contrapartida, a poesia, que sempre parece falar de bobagens pessoais, as desloca” (edição digital).

Ter elidido o nome Tamara e, consequentemente, impedir-lhe que se aproprie por completo do poema, bem como do “descanso do ser” (ASTUTTI, 2001, p. 94) 26 que supõe o devaneio, são as condições que ditam o tom de El libro de Tamar. Como se a impossibilidade de se entregar à fantasia, de pôr o mundo momentaneamente em suspenso, tivesse operado a favor do seu marcado prosaísmo. Um tom que a expressão “como haveria dito o pai de Philip Roth” ou alguma de suas variantes, condensa, enquanto a habilita para desobstruir o território da confusão linguística e da ambiguidade, bem como para escrever seu próprio “Tamar”, tanto o que intitula El libro de Tamar como o poema “Tamara” que está incluído nele.

Em “Ata Rama”, o fragmento em que lê a história do seu parceiro contra o pano de fundo da história de Kristeva e Sollers, e seu caminho para o romance ou para o gesto de romancear, novamente diferente do processo que havia seguido Kristeva, pergunta se fazer ficção será “armar uma trama nova com materiais velhos”27 (KAMENSZAIN, 2018, p. 40). E é nessa pergunta que quero me deter para ler “Ramat, 2 de julho de 2000”, onde, no meio do fragmento, escreve:

Héctor Libertella – agora sim o menciono sem rodeios porque, embora não tenha assinado ‘Tamar’, acredito que ao colocar data e local me habilitou sua assinatura – teve uma relação com meu pai na qual o universo judaico, visto da perspectiva de um goi (ou, traduzindo, um ‘gentil’), foi o código que os uniu no afeto 28 (KAMENSZAIN, 2018, p. 57).

A frase que acabei de citar inscreve o nome de Libertella e o inscreve em uma urdidura na qual estão presentes seu pai e o universo judaico, um gesto que relembra sua própria inscrição no sobrenome paterno na epígrafe/ dedicatória de O gueto, aquela que diz: In memoriam Tobías Kamenszain. Em teu sobrenome instalo meu gueto (KAMENSZAIN, 2003). Como no livro

26 Dialogo com “‘vasto como un deseo’… La ensoñación en Prosas profanas ” (2001), a bela leitura de Adriana Astutti sobre Darío.

27 Original em espanhol: “armar una trama nueva con materiales viejos”.

28 Original em espanhol: “Héctor Libertella –ahora sí lo nombro sin ambages porque, aunque no firmó ‘Tamar’, creo que poniendo fecha y lugar me habilitó su firma– tuvo una relación con mi padre en la que lo judío, visto desde la mirada de un goi (o, en traducción, un ‘gentil’) fue la contraseña que los unió en el afecto”.

Adriana Kanzepolsky

de 2003, onde aquilo que está na margem do texto é o código daquilo que o articula e retorna nos poemas, aqui, a data e o local que Libertella escreveu em cursiva na margem do seu poema são os que lhe possibilitam nomeá-lo e inscrevê-lo em uma espécie de genealogia familiar e cultural.

O fragmento, então, constrói a exegese do poema centrando-se no “Tamar”, que lhe dá o título, e no “Ramat, 2/7/00”, que o situa em um espaço e em um tempo. Por um lado, o “Tamar” do título a reenvia para o universo do tango, dado que há um tango chamado Marta, Tamar ao contrário ou al vesre, como se diz em lunfardo, mas também ao universo judaico, já que é um nome que em hebraico significa “palmeira”. Por sua vez, Ramat, embora possa ser lido como um anagrama de Tamar, remete-a novamente ao universo do hebraico, língua na qual alude a um lugar situado nas alturas.

Em relação à data não há ambiguidade possível. São os dias em que seu pai estava morrendo.

Penso que se trata do capítulo mais amoroso e mais íntimo do livro, no qual abundam os pais e os segredos: Tobías Kamenszain, que mantinha reuniões “secretas” com Libertella, ou pelo menos das quais ela estava excluída e em que, conforme supõe, o pai ensinava a ele algumas palavras em iídiche, a grafia de algumas letras, ensinamento que Libertella retribui com uma personagem de nome Tevie, Tobías nessa língua. Também Paul Celan, esse pai literário recorrente em sua poesia, ingressa no fragmento mediado por uma interpretação de Derrida em Shibboleth para Paul Celan. Shibboleth, uma palavra hebraica reiterada na poesia de Celan e à qual Tamara dedica um extenso parêntese onde traça sua genealogia bíblica. O parêntese segue a deriva do termo, desde seu significado original de “espiga” até sua conversão em código para diferenciar dois grupos rivais conforme o modo como o pronunciavam. É o uso de shibboleth como código na Bíblia e na interpretação derridiana sobre Paul Celan o que lhe interessa como uma chave para ler nos nomes Tamar, Ramat e na data um código da assinatura de Libertella. Ao mesmo tempo se vale da história dessa palavra para interpretar que algo no poema lhe estaria falando de seu pai. Escreve:

Então me parece que a mim, que não faço mais que hackear códigos aqui e ali, ‘Tamar’ está dando pistas de um novo: ‘Ramat, 2 de julho de 2000’. Esta é uma cifra que me obriga fazer alguns cálculos mentais que logo me instalam em um teorema um pouco disparatado mas que faz sentido para mim: se Ramat me aproxima da língua hebraica, uma das línguas do

O que está cifrado no nome – El libro de Tamar , de Tamara Kamenszain meu pai, e ao mesmo tempo considero que no dia 20 de julho de 2000 ele morreu, algo no poema ‘Tamar’ estaria me falando de Tobías Kamenszain 29 (KAMENSZAIN, 2018, p. 56-57) 30 .

Nessa interpretação que oscila entre a leitura psicanalítica e a exegese bíblica, não somente retorna o pai ao fragmento e com ele o universo judaico, mas também a palavra “gueto”, deslocada agora ou ampliada para uma constelação que a vincula com Libertella, e que explica como um código matrimonial, do qual se valeram até o esgotamento 31. De modo que se aparentemente o significante se desloca do âmbito parental para ingressar na constelação que reunia literatura e casal, rapidamente o texto declara que, na cena inicial do amor, quando Libertella a ajuda a organizar seu primeiro livro, lhe demonstra que ele pertencia à sua tribo. Escreve: “Ele me ajudou a organizar meu livro e nisso demonstrou que pertencia à minha tribo”32 (KAMENSZAIN, 2018, p. 59). Um significante que oscila entre a tribo da literatura e a tribo judaica. Ou seja, todo o fragmento constrói um relato – dá um passo de prosa – no qual inscreve o nome de Libertella em uma trama familiar, essa trama à qual vem dando forma em uma série de livros que desdobram sucessivos lutos, pelo menos desde 2003; algo assim como os “materiais velhos’’ aos quais alude quando se pergunta pela possibilidade da ficção, entendida aqui como um sinônimo de romance. Entretanto, essa série de operações necessárias para poder dizer o nome do ex-marido me faz lembrar de uma afirmação da poeta em um ensaio de 1999 sobre José Kozer. Ali, a propósito da pergunta sobre o significado da inscrição da assinatura do cubano no corpo dos seus poemas, Tamara Kamenszain afirmava que “[…] para um poeta não há juventude: nunca inventará nada novo (nunca escreverá um romance) e sempre, de ilusão em ilusão, ficará preso no fascínio das mesmas cenas familiares”33

29 Original em espanhol: “Entonces me parece que a mí, que no hago más que hackear contraseñas por aquí y por allá, ‘Tamar’ me está guiñando una nueva: ‘Ramat, 2 de julio de 2000’. Es una cifra que me obliga a hacer algunos cálculos mentales que al vuelo me instalan en un teorema un poco disparatado pero que me cierra: si Ramat me acerca a la lengua hebrea, una de las lenguas de mi padre, y a la vez tomo en cuenta que el 20 de julio de 2000 él murió, algo en el poema ‘Tamar’ me estaría hablando de Tobías Kamenszain”.

30 O terceiro pai é novamente o pai de Philip Roth, que segue cumprindo a função de tradutor ideal para uma língua mais simples.

31 Escreve: “Confinamento, cerco, são palavras que me remetem a outra que aqui não aparece, mas que entre meu ex e eu funcionou como um de nossos códigos favoritos: gueto” [“Encierro, cerco son palabras que me remiten a otra que aquí no aparece pero que entre mi ex y yo funcionó como una de nuestras contraseñas favoritas: ghetto”] (KAMENSZAIN, 2018, p. 59).

32 Original em espanhol: “Él me ayudó a ordenar mi libro y ahí demostró que pertenecía a mi tribu”.

33 Original em espanhol: “[…] para un poeta no hay juventud: nunca inventará nada nuevo (nunca escribirá una novela) y siempre, de espejismo en espejismo, quedará atrapado en la fascinación de las mismas escenas familiares”.

Adriana Kanzepolsky

(KAMENSZAIN, 2000, p. 81). Embora escrito e concluído quase vinte anos antes, quando – conforme declara insistentemente – sua estética era outra, o ensaio retorna no momento de pensar em El libro de Tamar de 2018. Se ali Kamenszain aposta na ideia de que as operações que Kozer realiza com seu próprio nome e com o nome de Guadalupe, sua mulher, distanciam sua poesia do gênero autobiográfico, agora, em El libro de Tamar, a inscrição tardia do nome de Héctor Libertella, ou a inscrição plena desse nome, somente no momento em que pode situá-lo em uma genealogia familiar à qual vem dando forma há algumas décadas, ou seja, esse ficar presa nas mesmas cenas familiares, apresenta-se a mim como uma interrogação. Pergunto-me se agora se trata realmente de dar um “passo de prosa”, de um “escrever uma trama nova com materiais velhos”, ou, se tal como dizia no ensaio de 99, “para um poeta não há juventude: nunca inventará nada novo (nunca escreverá um romance)” (2000, p. 81).

Referências

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Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de Joca Reiners Terron

Andre Rezende Benatti

O passado é sempre algo conflituoso, afirma Beatriz Sarlo em Tiempo pasado (2007), a ensaísta afirma que no passado há algo de inacessível, que se aproxima do presente de maneira conflitiva por meio das recordações. Para Sarlo (2007, p. 10), o presente é “el único tiempo apropiado para recordar, y también, el tiempo del cual el recuerdo se apodera, haciéndolo propio”. Partindo desta premissa da ensaísta argentina, buscaremos nos acercar do tempo presente da narrativa de Joca Reiners Terron para que possamos compreender as memórias passadas e desconhecidas pelo narrador da obra. Se “Del pasado se habla sin suspender el presente” (SARLO, 2007, p. 13), podemos pensar que, no romance A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, o narrador se vale de um fato ocorrido em seu cotidiano de trabalho, que aparentemente não tem qualquer relação com ele próprio ou com seu passado para revelar ao leitor toda uma trama que irá modificar completamente a história conhecida de sua família, tanto no que diz respeito às relações que ele estabelece no presente divido ao que ocorreu em seu passado, quando ao que se pode projetar para seu futuro. Pelas relações estabelecidas

Andre Rezende Benatti

com as memórias familiares propriamente do pai que modifica o presente do narrador, podemos perceber que estamos diante daquilo que Dominique Viar (2009) e Zilá Bernd (2018), nomeiam de Romance de Filiação.

De acordo com Viar em Le silence des pères au principe du «récit de filiation» (2009), os romances de filiação são uma forma literária que tem a originalidade de substituir a autonarrativa mais ou menos cronológica que a autoficção e a autobiografia têm em comum, por uma investigação sobre a ancestralidade do sujeito. Complementando o conceito de Romance de Filiação e expandindo seus horizontes no Brasil, Zilá Bernd (2018), amparada na perspectiva de Viart afirma que o caráter do trato da interioridade, característico dos romances memoriais, sofrerá uma “mutação”, ele evoluirá para os aspectos da anterioridade, ou seja, as escritas que, baseadas no presente do sujeito narrador, irão procurar resolver seus problemas retomando as histórias de vida do pai ou da mãe. Histórias estas que, de alguma maneira, irão influir no desenvolvimento da vida do sujeito narrador.

Assim, diante de tal afirmativa, tomamos o romance A tristeza extraordinária do Leonardo-das neves (2013), do escritor mato-grossense Joca Reiner Terron, por seu narrador, um escrivão de polícia que se desdobra nos cuidados com o pai, um imigrante judeu russo com demência, que passou a vida toda distante de seu filho, e a investigação do crime do passeio Nocturama, no Zoológico de São Paulo.

Contudo, se, como confirma Figueiredo (2016) e Bernd (2018), para Viart, a narrativa de filiação trata de uma investigação da anterioridade do narrador, o que percebemos em Terron é algo que, ao mesmo tempo se aproxima de tais conceitos como também se afasta destes. Não estamos diante de uma narrativa tradicional interioridade ou, ainda, da anterioridade do narrador, mas sim diante de um livro em que a questão investigativa se aproxima do Romance Policial, considerado, de acordo com Carlos Reis, no Dicionário de Estudos Narrativos (2018, p, 464) “um subgênero narrativo em que se relata a investigação de um crime, levada a cabo por alguém (um detetive ou um investigador policial) que seguindo e interpretando indícios, tenta descobrir a identidade do criminoso e explicar as razões que o motivaram.”. Entretanto, apesar de, em certa medida, haver uma investigação de um crime, o romance irá fazer, por meio do trabalho que o narrador exerce no texto, ou seja, escrivão/ investigador, com que este sujeito revele a história de sua própria família, ainda desconhecida para ele.

De acordo com Bernd, a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves

O romance memorial e o de filiação englobam em suas narrativas a memória genealógica e familiar, bem como a geracional, pois um dos fatores primordiais para a sua existência e consolidação é a necessidade do (eu) narrador promover a reconstrução de trajetórias vividas por seus ascendentes e, através desse processo, (re)significar e/ou (re)construir o presente. É necessário o estabelecimento de um jogo dialético entre lembrar e esquecer, entre passado e presente, entre ascendentes e descendentes, entre aceitar ou renegar os vestígios memoriais que emergem (BERND, 2018, p. 47).

É interessante frisar, na esteira das concepções de Leonor Arfuch em La vida narrada: memoria, subjetividade y política (2018), que a análise de uma narrativa necessita de uma leitura e uma posição do analista bastante atenta, “no solo el qué tino tanbién el cómo del decir, no solo el “contenido” de una historia sino los modos de su enuncianción, no sólo el contorno de una imagen sino su profundida, su fondo, aquello que oculta tanto como muestra”. (ARFUCH, 2018, p. 58). Assim, por mais que estejamos almejando averiguar as questões acerca da filiação no romance de Terron (2013), necessitamos investigar, por exemplo, qual a posição que o narrador assume ao contar a história? Como as personagens lidam entre si nos relacionamentos familiares? Se há uma história familiar a ser contada, investigaremos, também, como ela se estrutura.

O romance de Terron (2013) tem como narrador um escrivão de polícia que sofre de insônia, motivo pelo qual trabalha no turno da noite, e que, no tempo que lhe sobra, cuida de seu pai que sofre de demência. Na diegése narrativa o Escrivão nos conta a história de um caso já encerrado logo no início do texto, mas o qual revela aos poucos em meio aos fragmentos de sua própria história pessoal. Entre mudanças de foco narrativo, uma enfermeira, um Taxista, três cães e um leopardo-das-neves triste, vamos conhecendo a história da Criatura, como é chamada uma personagem caracterizada de forma monstruosa, de estatura baixa, como uma criança, que ninguém sabe a idade e que não pode sair ao sol. No texto, ninguém sabe quase nada sobre a Criatura que é cuidada pela enfermeira, a Sra. X, especialista em doentes terminais. O desenrolar da história coloca a Criatura e o Escrivão em contato, pois junto à Sra. X, a Criatura, que sente fascínio pelo Leopardo-das-neves, irá ao passeio noturno do zoológico de São Paulo onde um crime acontecerá e será investigado pelo Escrivão que, no entrecruzar das histórias da Criatura e de sua própria família descobrirá um segredo que envolve seus pais, a Criatura é sua irmã, e ele nem ao menos saiba de sua existência.

Andre Rezende Benatti

A narrativa é dividida em sete (7) capítulos, sendo quatro (4) destes narrados em primeira pessoa pelo Escrivão, nos quais todos os títulos são marcadamente iniciados com a expressão “O escrivão...”, deixando claro que o centro da história é o próprio Escrivão, assim como de sua família. Os outros três (3) capítulos tem como protagonistas a Criatura, a Sra. X, o Taxista com seus três cachorros e o Leopardo-das-neves, figuras estas que estarão presentes na narrativa auxiliando o esclarecimento tanto do crime quanto da história familiar desconhecida do Escrivão.

Uma das figuras chaves na compreensão do romance é o Pai do Escrivão, um imigrante judeu de origem Russa que sofre de demência e que precisa do auxílio do filho quase o tempo todo, mas que nem sempre foi assim, dependente do filho. Quando jovem, o Escrivão relembra de um fato ligado a seu pai que marca sua vida para sempre e que, de acordo com o narrador, foi o primeiro dos ressentimentos filiais que este guardou, quando o pai atravessou a calçada ao vê-lo se aproximar.

Então passava do meio dia e eu vinha da escola com um colega de classe quando percebi o velho vindo em nossa direção. Caminhava como se tateasse com a palminha do sapato um metro desconhecido de terreno a cada passo, era esse o seu modo de andar. De longe apontei todo orgulhoso o velho ao meu colega, olha lá, o homem branco feito uma parede recémcaiada e alto como uma placa de ponto de ônibus, é o meu pai, aquele, falei, vem vindo, olha, e nem bem a palavra pai saiu da minha boca e ele tinha mudado de calçada. Ah. Não acenou, não emitiu nenhum sinal de reconhecimento, nada disso. Ih. Apenas mudou de lado da rua e seguiu seu caminho, quieto, acompanhando ao longe algo que estava fora do alcance de minhas vistas, pois eu ainda era pequeno demais e não podia enxergar muito além do meio-fio. Oh. Meu colega riu um pouco, mas depois, talvez com pena de mim, disse que eu devia ter enganado de pai. Aquele lá deve ser o velho de outro cara, ele falou, o homem não se parece nem um pouco com você, afinal, aquele cara lá é branco e você é sarará (TERRON, 2013, p. 27).

Esta, a primeira de muitas decepções que o narrador tem com seu pai, ajuda a construir a estranha relação que há entre os dois no decorrer da narrativa. De acordo a assertiva de Márcio Seligmann-Silva “o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa.” (2008, p. 69), no decorrer do romance a cena do pai atravessando a rua ao vê-lo irá perseguir o Escrivão a todo encontro com seu progenitor. O Escrivão chama o pai de Velho, não lhe faz mais coisas que a mera “obrigação” de filho. A relação de ambos é fria em diversas passagens, mas carinhosa e piedosa em

Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves algumas outras. Para Maurice Halbwachs (1990, p. 25) a primeira pessoa que devemos confiar, quando se trata da recordação, do uso da memória, é a nós mesmos. Somos nós a primeira testemunha de acontecimentos que, de alguma forma, marcaram nossa vida. Contudo, Halbwachs assevera ainda que apesar de valermos de nossas próprias memórias, todas as memórias são, de certo modo, coletivas, mas, na relação entre o Escrivão e seu Pai, não há uma memória afetiva a ser contada da passagem de sua infância até a vida adulta, a distância mantida pelo Pai ao longo da vida constrói não uma memória familiar afetiva, mas uma memória do distanciamento. Há um abismo enorme entre ambos o romance todo. As memórias que o Escrivão guarda do pai são carregadas de ressentimentos, o constructo da figura paterna não atende ao que o próprio narrador gostaria, talvez.

No Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant o verbete “Pai”, aparece com a seguinte explicação:

Símbolo da geração, da posse, da dominação, do valor. Nesse sentido ele é figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Ele é uma representação de toda autoridade: chefe, patrão, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza, mantém a dependência. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente; é o mundo da autoridade tradicional diante das forças novas de mudança (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 678).

Todavia, ao analisarmos o romance de Joca Reiners Terron, A tristeza extraordinária do Leopardo-das-neves, percebemos o Velho, como é chamado pelo narrador, é visto de maneira diferente. Um pai que não corresponde em nada com as definições apresentadas acima. Ele não é um espelho de grandeza e proteção ao narrador. Ao contrário, o narrador, por conta da demência sofria pelo pai, acaba por assumir o papel de protetor, de chefe, o narrador assume um papel quase paternal, no decorrer do romance.

Logo no início da narrativa, estamos diante da seguinte situação: o Escrivão admite sua própria insônia, nos apresenta o Velho, como ele chama seu pai, e informa que frequentemente ele estava recebendo telefonemas de cobrança, informa, também, a morte do único amigo do Velho que o visitava com frequência: “As visitas cessaram desde que o dr. Glass se matou faz duas semanas, no dia de seu aniversário de cem anos. A partir daí tudo desandou, inclusive meu sono (TERRON, 2013, p. 12). Esta passagem, marca o desencadeamento da demência no Velho, que também tentou o suicídio:

Andre Rezende Benatti

Olhou para mim, mas não me reconheceu: seus olhos não tinham luz. Seu corpo lembrava um saco de estopa em vias de ser esvaziado, um entulho deixado para trás que o gato, saindo das prateleiras, cheirou por tempo suficiente apenas para dar meia-volta. A cena era absurda e um tanto cômica. Mas tudo isso aconteceu ontem à noite, pertence ao passado (TERRON, 2013, p. 12).

As ações que apresentamos acima serão de extrema importância para o desenvolvimento da narrativa, pois pela própria demência do Velho, a memórias familiares que o Escrivão necessitará recolher irão revelar não apenas uma investigação em seu trabalho, mas os mistérios que envolvem a vida do Velho e de sua própria família.

Buscando um viés histórico que desse amparo crítico/teórico sobre a representação familiar, encontramos em Philippe Ariès, mais precisamente em História Social da Criança e da Família (1981, p. 197), seguinte afirmação: “Quanto mais avançamos no tempo, e sobretudo no século XVI, mais frequentemente a família do senhor da terra é representada entre os camponeses, supervisionando seu trabalho e participando de seus jogos.”, no texto, Ariès afirma que anteriormente ao século XVI não haviam representações familiares nas artes ocidentais, o homem ou a mulher eram representados sozinhos, deslocados de toda e qualquer intimidade que a presença da família pudesse lhes trazer. A vida privada era ignorada. São exatamente estes contextos, os contextos da vida privada do Velho e de sua família que o Escrivão irá descobrir, ao longo do texto.

Após esta primeira apresentação da situação das personagens na narrativa, somos transpo-rtados para o local de trabalho do Escrivão, que irá atender a um caso criminoso no Nocturama, passeio noturno do zoológico da cidade de São Paulo. As investigações sobre o caso levarão o Escrivão a descobrir o envolvimento de seu pai e de sua própria família em algo que ele não sabia da existência.

De acordo com Eurídice Figueiredo

[...] a narrativa de filiação desloca a investigação da interioridade em favor da anterioridade, ou seja, o narrador faz uma prospecção de sua genealogia (ou de seus personagens) porque o conhecimento de si passa pela compreensão da vida de seu pai, da mãe ou dos avós. Do ponto de vista formal, se caracteriza por um hibridismo genérico, já que dialoga com a ficção e com a autobiografia; não é linear, procura recolher os fragmentos da herança e para isso, precisa fazer uma busca, porquanto o narrador não conhece, senão de modo lacunar, aquilo que foi vivenciado pelos pais e avós (FIGUEIREDO, 2016, p. 81-82).

Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves

Assim, tendo como princípio as afirmações de Figueiredo, baseadas no conceito de Viart, percebemos algumas questões que se desenvolvem de outra forma no texto de Terron (2013). Há, de fato, uma investigação da anterioridade, contudo, tal investigação, não se desencadeia por uma busca de conhecimento de si, e sim por uma situação de trabalho do narrador-personagem. Claro, ao passo que a narrativa se desenvolve, podemos perceber que há algo de compreensão da vida do narrador e de sua família, contudo este não é o ponto de partida, apesar da inconformidade com a vida, o narrador, de início, não busca “resolvê-la”.

Outro ponto interessante mencionado por Figueiredo (2016) é a característica de hibridismo genérico dos romances de filiação que, segundo a pesquisadora, “dialoga com a ficção e com a autobiografia” (FIGUEIREDO, 2016, p. 82), contudo, percebemos que o romance de Terron (2013), totalmente ficcional, apesar de tocar em alguns aspectos relevantes dos processos reais de imigração do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, mescla a ficção memorialística, da vida o narrador e de sua própria família, com a investigação policial. No entanto, a hibridação de ambos os “tipos” de romances resulta em uma investigação que revelará, ao narrador, partes obscuras e secretas de sua própria família, fatos que o narrador não conhecia e que revelarão as anterioridades de sua família.

Buscando compreender a situação do pai, e ainda nos apresentando sua própria história o narrador começa a rememorar as lembranças de sua família: Os sintomas da demência do velho começaram quando minha mãe ainda estava viva. Isso faz tanto tempo que só consigo lembrar de seu rosto se observar com atenção o único retrato dela dependurado no corredor. Naquela fotografia de cantos carcomidos pela umidade minha mãe lembra um fantasma, pois sua estampa começou a se dissipar de tal forma que agora está transparente (TERRON, 2013, p. 16).

Contudo, no decorrer do trecho, as lembranças da fisionomia sua mãe, dissipadas do retrato pelo tempo, da voz de sua mãe e de sua presença na infância da personagem, fazem o narrador questionar-se:

Seria o velho o autor daquele retrato? Talvez esteja invisível na foto assim como a velha, no entanto ela ainda pode ser levemente percebida – pela forma de sua cabeça pender à esquerda na silhueta abaulada parecendo a de uma grávida, como se suportasse demasiados problemas – mesmo que seus detalhes fisionômicos não estejam visíveis, mesmo que sua voz não seja mais audível. O velho está ausente até na fotografia na qual não deveria estar. Aquele retrato de minha mãe é a única fotografia de nossa

Rezende Benatti

família. No verso há uma anotação que diz: “Retrato realizado na casa da rua Tocantins, nº 906, Bom Retiro, São Paulo, maio de 1945”. Era o endereço de um prostíbulo (TERRON, 2013, p. 17).

No decorrer das lembranças de infância, o narrador volta-se para a importante figura materna, no entanto, marca sua falta de lembranças mais detalhadas das relações com seus pais, por “ter saído cedo de casa, ainda na adolescência.” (TERRON, 2013, p. 19). Assim, percebemos que toda a construção do processo de identidade, vista também como processo de identificação do sujeito, no caso o Escrivão, não ocorre com a presença de sua família, tudo o que sabe sobre tal família advém ordem do passado, que, contudo, ele também não conhece.

Em Espaços da recordação (2011, p. 106), Aleida Assmann afirma que Locke “vincula o conceito de identidade ao espaço da vida do indivíduo. Em lugar das identidades genealógicas das famílias, instituições, dinastias ou nações, aparece a identidade individual no horizonte exclusivo da história de vida pessoal.”. O narrador, ao sair de sua casa em sua adolescência perde todo o contato mais íntimo ou próximo de sua família, com a qual, ao correr do tempo, não se identifica mais. Toda sua construção identitária se deu em outro lugar, em Israel, o que aconteceu com sua família neste tempo e anteriormente a seu nascimento, ele não sabe. Seu trabalho como investigador no caso do Nocturama irá fazer com que descubra sua própria história, aquela que ele não presenciou, mas que existiu.

Minha falta de lembranças é acentuada pelo fato de eu ter saído cedo de casa, ainda na adolescência. Vivi num kibutz em Israel uns anos, numa fase sionista de minha vida, depois de viajar pelo Leste Europeu e pela região da Rússia de onde meu pai tinha vindo, ou ao menos de onde eu pensava que ele tinha vindo (nunca tive certeza). Lá me casei, mas esta é uma história que prefiro esquecer, que já esqueci. Que parece nunca ter acontecido, do mesmo modo que a militância sionista que representava uma busca patética por raízes que afinal nunca existiram. Imigrantes têm raízes aéreas idênticas às de uma orquídea que absorve água da atmosfera (TERRON, 2013, p. 19-20).

A formação identitária do sujeito narrador, o Escrivão de polícia, se deu totalmente em terras estrangeiras, vivendo como imigrante, sem “fincar raízes” no local, como podemos ver na metáfora final da orquídea. As lembranças de certa judeidade do narrador existem não de uma tradição familiar vivida junto ao pai e à mãe, mas por experiências próprias em busca das origens da família, do pai, do seu local de origem. A relação entre pai e filho e família se coloca como a principal relação dentro do romance. Tudo gira em torno da família do narrador, das histórias dessa família, da identidade dessa família. No decorrer do romance de Terron (2013), percebemos que a divisão dos capítulos exerce fator importante quando se trata da construção das lembranças ainda por vir desta família que o narrador, propriamente, não conhece. É através do trabalho que o narrador realiza que podemos nos deparar com as outras histórias muito bem encadeadas por Terron. Didaticamente nos deteremos a três histórias que revela, de alguma maneira, as lembranças familiares do narrador. A primeira que elegemos é história do Taxista, responsável pelo crime do passeio noturno do zoológico que colocará o narrador diante de sua própria história. A narrativa sobre o Taxista está quase completamente nos capítulos dois, quatro e seis, prefixados todos como “Mundo Animal”. Primeiramente, no romance, nos deparamos com o Taxista levando a Criatura e a Sra. X ao passeio noturno do zoológico, só então o narrador começa a contar sua história. Ao apresentar a personagem do Taxista o narrador nos afirma que o homem tinha três cachorros, os quais amava acima de tudo e que, por vezes, passeava com os animais após encerrar o expediente. A paixão pelos cachorros também é relevada como um trauma de infância no qual o pai do Taxista mata sua cachorra a pauladas e afoga os filhotes. A recordação da animalização e da brutalidade do pai com os cães na infância faz com que o Taxista queira “agradar” os três cachorros de toda maneira, deixando-os “fazerem de tudo”.

[...] o Taxista lembrou-se de quando um gato caiu no quintal da fábrica abandonada. Pobre felino. Os cães o estraçalharam em poucos segundos. Restou apenas um saco esvaziado de couro sanguinolento, que o Taxista dependurou no varal. Mesmo assim, os rottweilers não esgotaram sua ânsia e rodearam durante horas os restos do gato dependurados no alto, sem poder alcançá-los. Depois de devolver as feras à jaula, o Taxista analisou o couro seco do bichano e pensou no que seus cães poderiam causar a um ser humano (TERRON, 2013, p. 50).

A partir dos traumas que o Taxista possui de seu passado infantil fazem com que ele projete nos cães e na forma com que os animais se tornam agressivos, sua própria raiva. A falta de humanidade que o Taxista aprendeu com o pai ele leva para toda a vida. A figura paterna importante na formação do Taxista o constrói como o que Foucault (2010) define como monstro humano. De acordo com o próprio narrador do romance, a morte dos cães na infância pelo pai, de forma brutal, é significativa para a forma como o Taxista se porta no mundo. Foucault em Os anormais (2010, p. 47), ao afirmar as três figuras que constituem o domínio da anomalia humana afirma sobre a primeira figura, o monstro humano, que:

A primeira dessas figuras e a que chamarei de “monstro humano”. O contexto de referência do monstro humano e a lei, e claro. A noção de monstro e essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro e o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma viola, ao das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele e, num registro duplo, infração às leis em sua existência mesma. O campo de aparecimento do monstro e, portanto, um domínio que podemos dizer “jurídico-biológico”. Por outro lado, nesse espaço, o monstro aparece como um fenômeno ao mesmo tempo extremo e extremamente raro. Ele e o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção que só se encontra em casos extremos, precisamente. Digamos que o monstro é o que combina o impossível com o proibido.

Percebemos que as constituições da memória infantil do Taxista, de alguma forma, o modificaram por completo, o que fez com que ele se apegasse mais aos animais, mais aos monstros da natureza. Se, assim como afirma Bernd (2018, p. 24) “Falar dos pais é um subterfúgio para falar de si próprio”, podemos inferir que o narrador, ao trazer a tona a história do pai do Taxista, procura falar sobre o próprio Taxista, sobre a herança deixada pelos pais dele. Com os três cães que possui, após se recordar do episódio com o gato, o Taxista começa a fazer “teste”, ou o que podemos ver como uma espécie de treinamento, uma preparação para o ato final, a saber “Depois de devolver as feras à jaula, o Taxista analisou o couro seco do bichano e pensou no que seus cães poderiam causar a um ser humano.” (TERRON, 2013, p. 50). O treinamento dos cães consistia em:

Depois de apreciar o estrago feito no gato pelos cães, o Taxista teve mais uma de suas ideias, como afirmou no testemunho. Armado com um saco, começou a caçar felinos que infestavam a fábrica abandonada. Os miados daqueles malditos gatos levavam seus cães à loucura, conforme relatou. [...] o Taxista libertou o primeiro gato do saco e acompanhou com regozijo a caçada empreendida pelos rottweilers. O bichano foi alcançado pelos dentes do cão mais velho quando escalava o tronco de um pinheiro e não escapou por muito pouco. [...] O gato seguinte foi mais desafiador, pois ao retirá-lo de dentro do saco o Taxista foi atingido no antebraço por suas garras cortantes. [...] Após cinco minutos de intensa refrega, um dos cães saiu de dentro de um bambuzal carregando o animal morto na boca, que depositou aos pés do Taxista. O terceiro gato mal atracou suas quatro patas no chão e foi alvejado por uma patada do cão mais jovem da matilha. O

Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves

Taxista considerou aquela eficácia uma evolução dos talentos de caçadores de seus animais, além de considerável prova de fidelidade, e voltou para casa bastante orgulhoso deles (TERRON, 2013, p. 55-56).

A partir desta cena o Taxista começa a aumentar o tipo e tamanho de caça de seus cães, até chegar à caça humana no passeio noturno do zoológico, onde encontrariam a Sra. X e a Criatura. A experiência que faria com que o Escrivão revirasse a memória de sua própria família. É interessante observar que, de algum modo, as lembranças familiares que moldaram a personalidade do Taxista e posteriormente de seus cães, fizeram com que ele a memória familiar do Escrivão também fosse revirada e possibilitou o encontro dele com a irmã, a Criatura. A memória familiar exerce, no texto de Terron (2013), extrema importância. Para Joël Candau (2019, p. 140) “a memória familiar serve de princípio organizador da identidade do sujeito em diferentes modalidades.”, no caso do Taxista, as memórias do horror da morte de sua cachorra ficam marcada em sua mente, adormecido o horror é despertado quando os três cães estraçalham o gato. Nesta mesma linha de pensamento Nubia Hanciau, em “Dever da memória” (2017, p. 99) afirma que “A memória se concretiza a partir de imagens que resgata, tanto no plano pessoal quanto social, dando significado à vida”.

Seguindo as personagens que irão fazer com que o Escrivão recupere as memórias desconhecidas de sua família, temos a Sra. X, descrita pelo narrador como enfermeira com especialização em geriatria e doenças incomuns em idosos, que é contratada por uma família para cuidar de uma Criatura:

A sra. X foi contratada pelos familiares ou talvez tutores da criatura, que a buscaram por meio dos serviços de uma empresa especializada em recursos humanos de alto nível, conforme declarou em seu depoimento. Com conhecimentos administrativos e mestrado em enfermagem, a sra. X passara toda a vida auxiliando pessoas com enfermidades graves como a da criatura, ou então tratando, pois era esta a sua especialidade, de pacientes terminais. Contudo, nunca tinha trabalhado com uma paciente tão pequena. Na maior parte das vezes, a sra. X acompanhava até a morte anciões solitários e ricos cujas famílias preferiam contratá-la a tratar deles, tudo para não partilhar de seu convívio. Mas aquela era sua primeira experiência com um ser de aparência tão desconcertante, devido aos efeitos da doença. Os familiares da criatura, talvez seus avós, ou quem sabe seus tios, ou então parentes distantes, ou talvez seus proprietários (a sra. X não tem muita certeza), afirmaram à empresa que havia se responsabilizado por sua contratação que precisariam viajar para cuidar de negócios inadiáveis na China ou na Rússia. (TERRON, 2013, p. 41).

Andre Rezende Benatti

A ligação entre a Criatura e a Sra. X, no romance, baseia-se, primeiramente, pelo contrato que faz com que a Sra. X esteja perto de sua paciente o tempo todo. Até o passeio do Nocturama, quando ocorre o crime, haviam dois anos que as duas não saiam a rua, tempo que durava o contrato. Ao nos contar a história da Sra. X, o narrador a faz por meio de duas perspectivas, a da própria personagem em seu depoimento sobre o caso e o conhecimento onisciente do narrador sobre as personagens.

O trabalho da Sra. X com a Criatura é descrito pelo narrador com algo muito exaustivo, com regras rígidas, mais ainda que o dos pacientes terminais aos quais a Sra. X estava acostumada.

Todo dia a sra. X desinfetava a criatura. O trabalho era muito delicado, e se iniciava na tentativa de convencê-la a se despir. Envergonhada de sua aparência, a criatura sempre vestia capa de chuva vermelha com capuz, calças largas e galochas dentro de casa. Primeiro, a governanta limpava a pele da criatura com água boricada e algodão. As feridas se esparramavam por todo o corpo, tendo ela contato com a luz diurna ou não. Eram inflamações purulentas que surgiam de um dia para o outro como se o corpo dela estivesse em constante estado de erupção. Apareciam nos pontos de contato da pele com a cama quando a criatura se deitava ou com a cadeira quando se sentava, mas também no rosto e até mesmo na delicada penugem que lhe encobria as córneas. As mutilações em suas mãos eram terríveis, e ela relutava em tirar as luvas de couro. A maior parte do tempo a criatura estava coberta por feridas de diferentes tonalidades de cor, do vermelho mais vivo das feridas recém-surgidas às cascas quase negras de sangue coagulado dos machucados de três dias ou mais. Parecia uma pintura abstrata cujo pintor tinha desistido a meio caminho, colocando-a de lado. Seus olhos viviam inflamados por conta das irritações nas córneas e podiam até mesmo sangrar. Depois de limpar as cascas com cuidado, a Sra. X se dedicava aos ferimentos infeccionados. Havia um deles na testa da criatura que parecia se renovar a cada dia. A ferida aparecia e logo infeccionava. Era enorme. Depois que a sra. X conseguia eliminar o pus, quase desaparecia com o uso de remédios secativos. Tornava-se uma cicatriz rombuda. Passados um ou dois dias, porém, a ferida retornava com a mesma intensidade. A cicatriz reabria, parecendo ter vida própria, dando lugar a um novo ferimento em forma de boca. Era difícil até mesmo a uma enfermeira experiente como a sra. X não sentir asco. Mas isso não a preocupava, pois o Senhor estava ao seu lado. Ela realizava as limpezas como parte de sua missão. O que a comovia de verdade era a bravura da criatura, que não emitia um só gemido ao longo do tratamento. Durante a limpeza, a sra. X contava histórias para distraí-la da dor. As mais apreciadas eram as histórias do leopardo-dasneves. Era uma criatura abençoada, disso não havia dúvida. Contudo, a sra. X temia que hora ou outra aquela boca na testa lhe murmurasse algo que ela não gostaria de ouvir. (TERRON, 2013, p. 56).

O narrador, como podemos perceber, estabelece a configuração da Criatura aos cuidados da Sra. X como um ser monstruoso e ao mesmo tempo frágil, assim como os idosos terminais. Sua condição de doente permanente a coloca em uma posição que, para a Sra. X é de absoluto sofrimento. Toda a revelação que o narrador faz sobre o passado da Sra. X, sobre seus pais e, principalmente, sua religiosidade nos mostram uma personagem que não sabe lidar com o sofrimento alheio, e vê com bons olhos colocar um fim a qualquer sofrimento que seus pacientes possam ter. A personagem leva tal princípio ao extremo percebendo tanto a velhice de seus pais, no passado, quanto a fase terminal da vida de seus pacientes como um grande sofrimento ao qual ela deve colocar um fim. Talvez possamos pensar em uma personagem que, apesar de assassinar todos seus pacientes, é benevolente ao extremo.

Ao planejar o passeio noturno ao Zoológico a fim de que a Criatura pudesse ter alguma alegria na vida, e a morte lenta dela por envenenamento a Sra. X tem o intuito de acabar com qualquer sofrimento que sua paciente possa ter. A Sra. X, não sabia lidar com a monstruosidade da Criatura.

Como era possível que ainda caminhasse depois de todo o veneno posto pela sra. X em sua bebida? Era uma dose muito superior às ministradas aos pacientes terminais, aos velhinhos do hospital de Manchester, aos seus próprios pais, e mesmo assim não dera resultado. Aquela quantia permitiria zero por cento de erro. E os pacientes anteriores eram velhinhos em condições ainda mais frágeis. A sra. X chegou a considerar toda aquela resistência uma obra de Deus. Era mesmo uma santa. Ela então se lembrou: sabia onde a criatura estava. Não podia ter ido a nenhum outro lugar. As pancadas em sua cabeça deviam tê-la atordoado. Talvez não estivesse conseguindo pensar com coerência. Teria calculado mal as doses que havia diluído nos alimentos? [...] Só acreditava na compaixão, conforme confessou. Na compaixão divina e em sua missão de cumpri-la a contento. O céu era o lugar de Deus, não dos homens (TERRON, 2013, p. 157).

A Sra. X, livrou seus pais do sofrimento, livrou todos seus pacientes do sofrimento, mas não conseguiu faze-lo com a Criatura, sua missão estava fracassada. Mas a assassina benevolente criada por Terron (2013), nos coloca em contato com uma das personagens centrais da narrativa, a Criatura, irmã do Escrivão. Seu fracasso muda o destino tanto da Criatura, sempre rejeitava pela família, em uma eterna viagem, como que desculpa para não a conhecer. Assim com muda o destino da própria família, esta que não a conhecia.

Sarlo (2007, p. 10, grifos da autora) afirma que “el tiempo propio del recuerdo es el presente: es decir, el único apropiado para recordar y también, el tiempo del cual el recuerdo se apodera, haciéndolo propio”. Em analogia ao ocorrido no romance, percebemos que é o próprio presente, ou seja, o crime no Nocturama, que irá fazer com que o passado seja revisto, seja revisitado pelo Escrivão, pela própria Sra. X, conhecido pela Criatura. Este passado que é presente, que se faz presente através de uma situação cotidiana. A família que se conhece a partir do passado em função do presente.

Percebemos, ao final do texto, que a memória familiar está ancorada no desenvolvimento de toda a narrativa, podemos perceber o texto de Terron (2013) como um característico romance de filiação, no qual os conflitos estão todos encadeados fazendo com que a personagem central, no caso o Escrivão, possa ter acesso às memórias de sua família que nem ele mesmo sabia que existiam. Como afirma Gagnebin (2009, p. 102) “Não se trata de lembrar do passado, de torná-lo presente na memória para permanecer no registro da queixa, da acusação, da recriminação. O filho que recrimina o pai e coloca a si mesmo desde o início numa posição superior”, trata-se da própria compreensão do sujeito enquanto ser humano. O Escrivão não precisará mais julgar os atos e/ ou atitudes do pai, ele agora o/os conhece.

Referências

ARFUCH, Leonor. La vida narrada: memoria, subjetividade y política. Villa María: Eduvim, 2018.

BERND, Zilá. A persistência da memória. Porto Alegre: BesouroBox, 2018.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. Trad. Maria Leticia Ferreira. São Paulo; Contexto, 2019.

FIGUEIREDO, Eurídice. A narrativa de filiação de escritores judeus brasileiros. In.: CHIARELLI, Stefania; OLIVEIRA NETO, Godofredo de (org.). Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.

FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso do Collège de France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009.

HANCIAU, Nubia. Dever da memória. In: GONZÁLEZ, Elena Palmero; COSER, Stelamaris (org.). Em torno da memória: conceitos e relações. Porto Alegre: Editora Letra1, 2017. p. 95-127.

SARLO, Beatriz. Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica. v. 20, n.1, p. 65-82, 2008. Acessado em 05 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/05.pdf.

TERRON, Joca Reiners. A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

VIART, Dominique. Le silence des pères au principe du “récit de filiation”, Études françaises, v. 45, n. 3, p. 95-112, 2009.

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