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APRESENTAÇÃO

O GT da ANPOLL “Relações Literárias Interamericanas” tem como prática, de longa data, a pesquisa aprofundada durante biênios temáticos, alguns temas até com mais tempo de dedicação; e, ao final de cada período investigativo, oferta à comunidade leitora a publicação dos resultados sob forma de coletâneas. Nessa dinâmica, surge o presente livro Filiações e afiliações interamericanas: legados familiares, étnicos e nacionais – reflexo de estudos que criaram corpo e consistência de 2018 a 2021. Como o próprio título da obra pré-anuncia, nossas preocupações se pautam e se sustentam por meio de um tema aglutinador, a saber, as narrativas de filiação nas Américas. Como é de se esperar, um tema central nos encaminha a temas paralelos de igual importância, os quais se retroalimentam para, além de coexistir, dar significado e justificar a necessidade de cada um por si mesmo. Nesse sentido, as narrativas de filiação levam às narrativas de afiliação e também aos papeis dos legados, quer desejados ou impostos pelo seio familiar, pela questão étnica ou, ainda, pelo contexto de uma nação. Por essa razão, a coletânea se subdivide em legados familiares, legados étnicos e legados nacionais.

Leoné Astride Barzotto & Silvina Carrizo

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Na primeira parte da obra, estão os capítulos que apresentam afinidade com os Legados Familiares. Adriana Kanzepolsky contribui com uma reflexão acerca da inscrição tardia do nome de Héctor Libertella em El libro de Tamar, de Tamara Kamenszain (2018) no capítulo inicial “O que está cifrado no nome – El libro de Tamar, de Tamara Kamenszain”, indagando se o livro joga com um de seus sentidos e de suas angústias, na ausência/presença do nome da dama, Tamara neste caso, em um poema que seu ex-marido passa por baixo da sua porta poucos meses depois da separação e que desencadeia a escrita. Nessa espécie de exegese lírica do livro, exegese esta que é também uma despedida e uma resposta, a poeta/memorialista/ ensaísta imita o gesto e só menciona o ex-marido no fragmento intitulado “Ramat, 2 de julho de 2000”, quando pode inscrevê-lo em uma trama familiar e vinculá-lo ao nome em iídiche de seu próprio pai – Tevie –, que naqueles dias estava morrendo, e vinculálo também à língua hebraica, a partir do “Ramat” com que Libertella data (assina) o poema. Em “Entre a memória, a família e A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de Joca Reiners Terron”, Andre Rezende Benatti busca se acercar do tempo presente da narrativa de Joca Reiners Terron para poder compreender as memórias passadas e desconhecidas pelo narrador da obra. Assim, investiga o romance A tristeza extraordinária do Leonardo-das neves (2013), do escritor mato-grossense Joca Reiner Terron, por seu narrador, um escrivão de polícia que se desdobra nos cuidados com o pai, um imigrante judeu russo com demência, que passou a vida toda distante de seu filho, e a investigação de um crime do passeio Nocturama, no Zoológico de São Paulo. Lívia Reis , por sua vez, analisa a ancestralidade na obra de Chico Buarque, a qual não está apenas na canção que serve de epígrafe ao seu capítulo de nome “O Irmão Alemão: família, ficção e autoficção”. A família e as relações familiares estão presentes em inúmeras canções anteriores, na vasta obra musical de Chico Buarque, a par de épocas e estilos e servem de introdução à leitura do O Irmão Alemão, de 2014, quinto romance de Chico Buarque de Holanda. Seu estudo se debruça neste legado familiar, uma vez que o romance instiga a curiosidade do leitor a partir do título, pois se refere a um desconhecido irmão do cantor e compositor Chico Buarque e suposto filho do antropólogo, Sergio Buarque de Holanda, ambas figuras públicas de relevo em diferentes áreas da cultura brasileira. No texto intitulado “Narrativas de filiação na literatura argentina recente: (Os “Walsh” em Oración, de María Moreno)”, Silvia Cárcamo estuda as narrativas de filiação na literatura argentina recente e, através disso, busca demonstrar que a consagrada escritora e jornalista María Moreno (1947) incursionou em relatos autobiográficos nos quais as figuras do pai e da mãe parecem construídas no limite da ficção e da realidade, aderindo à estética do excesso, da deformação e do exagero. Com isso, a narrativa do romance familiar de Moreno examina igualmente a educação sentimental e intelectual da autora e da sua geração no âmbito das transformações culturais ocorridas nos últimos anos da década de sessenta em Buenos Aires.

Rumo ao Norte do continente americano, o capítulo “O caçador furtivo e o memorialista intergeracional: a literatura quebequense entre a apropriação do lugar e a preservação da memória ancestral” fecha o debate dos legados familiares e, com ele, Zilá Bernd aborda – a partir da leitura de obras de duas escritoras migrantes do Quebec: Kim Thúy e Régine Robin – a maneira pela qual essas autoras, originárias de diferentes formas de migração, produzem suas obras no entre-lugar, entre a urgência de apropriação do lugar e o esforço em preservar a memória de seus ancestrais. Assim, tanto a figura da devoração e/ou da braconagem dos elementos culturais do país de acolhida quanto a do memorialista geracional, que não se permite esquecer a memória cultural de seus ancestrais, são problematizadas no âmbito do seu capítulo.

Os Legados étnicos formam a segunda parte da coletânea. No capítulo “A poética da perda em narrativas centradas em investigações da filiação no universo de Wajdi Mouawad”, Bernadette Porto se dedica ao problema da experiência exílica, pois a perda se manifesta também como uma espécie de defasagem, de não coincidência entre o exilado e o lugar, seja ele o país natal ou a terra de acolhida. Por esse viés, o escritor de origem libanesa Wajdi Mouawad, objeto do seu estudo, refere-se a sua posição de estar sempre fora do lugar, indagando sobre a possibilidade de retornar a seu país de origem. O escritor Mouawad ressalta que o retorno é uma experiência tão difícil quanto a partida e que se sente tão estrangeiro em seu país de origem como ocorre no Quebec, país de acolhida. No texto intitulado “Nós também somos brasileiros: narrativas de filiação de escritores nipo-brasileiros”, Eurídice Figueiredo propõe uma leitura dos romances Sonhos bloqueados, de Laura

Honda-Hasegawa (1991) e Nihonjin, de Oscar Nakasato (2011), e do livro de crônicas Eu também sou brasileira, de Marília Kubota (2020), publicados nos últimos trinta anos. Todos os autores pertencem à terceira geração: Laura Honda-Hasegawa nasceu em 1947, Oscar Nakasato em 1963 e Marília Kubota em 1964. Dentre os imigrantes com comunidades numerosas, os descendentes de japoneses são, talvez, os menos visíveis no panorama da literatura brasileira. Assim, apesar de os romances terem um corte mais tradicional, a escritora alarga o conceito dos críticos franceses para uma narrativa de etnofiliação, já que os nikkeis resgatam um passado sofrido dos antepassados que emigraram para o Brasil na primeira metade do século XX. Luciana Wrege Rassier aponta o romance memorial e o romance de filiação como focos de atenção

Leoné Astride Barzotto & Silvina Carrizo

no capítulo “Vestígios do vivido, fragmentos do esquecido: memória e filiações em Kym Thùy” porque, em ambos, a “interioridade” do eu-narrador é menos proeminente do que a “anterioridade”. Se o primeiro é um “aspecto pósmoderno da saga” que privilegia traços e vestígios constituintes da memória cultural, o segundo evoca o percurso de um ancestral enquanto herança a ser repudiada ou reivindicada. Logo, a autora parte desses pressupostos teóricos, a fim de analisar o romance ru, de Kym Thùy (2009), o qual aborda uma história de migração do Vietnã para o Canadá e os processos memoriais envolvidos.

Por outra perspectiva, no capítulo “A ReExistência em escritoras indígenas”, a autora Silvina Carrizo traz, como objetivo, aprofundar a análise das relações do relato de si e as formas escriturais da reexistência enquanto ideologema, e visa apontar as estratégias composicionais das cenas de interpelação que Eliane Potiguara e Liliana Ancalao constroem em seus textos, algumas das estratégias da política e poética das autoras indígenas. As modulações do tornar-se, perceber-se, autoperceber-se, esse “dar conta de si mesma”, vão gerando não apenas uma autopercepção e autoafirmação, mas também vão interpelando esse mundo das violências éticas – simbólicas e concretas, porque físicas –, produzindo pensamento poético potiguara e mapuche, respectivamente. Encerrando as discussões acerca dos legados étnicos, Stelamaris Coser colabora com o texto “Ancestralidade, a escrita de si e de nós: Toni Morrison e Paule Marshall”, através do qual interliga escritas e pensamentos sobre filiação, ancestralidade e diáspora ao mesmo tempo em que presta uma homenagem especial a Toni Morrison (1931-2019) e a Paule Marshall (1929-2019), duas grandes escritoras dos Estados Unidos que se sobressaíram na destacada geração dos anos 1970-1980. Reconhecidas também por iluminarem as experiências de mulheres afro-americanas não só na escrita ficcional, mas também na reflexão teórica sobre cultura e literatura, a partir de suas próprias vivências e lugares.

Na terceira e última parte, Legados nacionais, Elena Palmero González traz o capítulo “A estirpe de Origens: de filiações e afiliações na obra de Antonio José Ponte”, no qual explora a filiação biológica e as afinidades eletivas ou afiliativas que se fundem, na contramão dos cânones e das hierarquias estabelecidas, a fim de investigar o escritor cubano

Antonio

José Ponte e como a sua obra dialoga com os mestres do origenismo cubano, José Lezama Lima, Eliseo Diego, Cintio Vitier Virgilio Piñera, Lorenzo García Vega e, através deles, com toda uma tradição literária que passa por José Martí, Julián del Casal e se remonta ao poema fundante da literatura cubana, Espejo de Paciencia (1608) de Silvestre Balboa, afiliando sua própria escrita a essa linhagem literária. Já a autora Haydée Ribeiro Coelho apresenta o capítulo de título “Filiações escriturárias de Rui Mourão: uma experiência no limite em Quando os demônios descem o morro”. Nesse texto, Coelho mostra que o narrador do romance pesquisado se desvela como escritor e como tal se faz no decorrer da narração. Por meio dele, surgem indicações que pertencem à biografia do próprio Rui Mourão como seu vínculo com o Suplemento Literário de Minas Gerais e o conhecimento aprofundado da história da cidade de Ouro Preto, entre outros aspectos. Dessa forma, mostra que o romance em questão religa as relações de afeto e de parentesco com a figura materna. Em Quando os demônios descem o morro (2008), a família cuida do escritor, de sua memória e de seus escritos. Kelley Baptista Duarte contribui com uma leitura crítica do conto “La Corriveau”, inserido na coletânea intitulada Cages, da escritora quebequense Claude-Emmanuelle Yance, no capítulo “O legado nacionalista e cultural do estigma da Corriveau – reelaboração discursiva do feminino no conto “La Corriveau”, de Claude-Emmanuelle Yance”. O estudo do conto busca ressaltar sua estrutura narrativa na medida em que se insere na linha reflexiva da transmissão intergeracional e da transferência de uma memória cultural presentificada e perpetuada no perfil da personagem principal – uma mulher contemporânea que carrega o estigma da lendária Corriveau em sua vida familiar.

Em “A herança ferida como fio condutor na autoficção de Wendy Guerra”, Leoné Astride Barzotto visa refletir acerca da autoficção como forma contemporânea para a construção narrativa na / da América Latina, para averiguar como se desenvolve a temática das narrativas de filiação nos romances da escritora cubana Wendy Guerra, mais especificamente Todos se vão (2011) e Nunca fui primeira dama (2010), pois as narradoras protagonistas, Nieve e Nádia, respectivamente, atuam como alter egos da própria autora. Em ambas as estórias, as personagens recompõem traços da vida da escritora, em especial aqueles que se relacionam à sua mãe, Albis Torres, e às dores as quais esse vínculo de sangue representa. Assim, pretende compreender como a “herança ferida”, originada pela Revolução Cubana, contribui para que as narrativas autoficcionais de Wendy Guerra sejam também narrativas de filiação, posto que um romance é a sequência dos biodados inseridos no anterior e, nos dois, as protagonistas buscam ‘curar uma ferida’ que fora deixada / imposta como herança, quer pelos pais, quer pela nação. “Da memória individual à memória política: Ramos, Mendes e Nunes em espaços geracionais”, de Lícia Soares de Souza, há uma seleção de obras de Ramos, Mendes e Nunes com o intuito de ilustrar a importância da transmissão, a qual se relaciona não apenas com os fenômenos culturais ou legados familiares, embora estes possam existir como pano de fundo, mas também com o contexto político

Leoné Astride Barzotto & Silvina Carrizo

brasileiro, a partir do Estado Novo (1937-1945) até os dias atuais, segunda década do século XXI. A autora opta por abordar os regimes ditatoriais, os quais reprimiram o país, e as formas como alguns escritores adotaram para transmitir os desafios que enfrentaram nos cárceres. Finalizando a temática dos legados nacionais e a coletânea em si, Margareth Torres de Alencar Costa traz o capítulo “Memória, exílio e escrita de si em A Resistência, de Julian Fuks e Azul Corvo, de Adriana Lisboa”, analisando os romances Azul Corvo, de Adriana Lisboa, e A Resistência, de Julián Fuks, pela perspectiva da memória, do exílio e das narrativas de filiação em consonância com os percursos nacionais de cada protagonista. Por fim, gostaríamos de enaltecer o entusiasmo de produção individual assim como o espírito de pró-atividade coletiva dos autores dessa obra, os quais alimentam e sustentam o nosso GT de Relações Literárias Interamericanas, pois mesmo em tempos de pandemia e de adversidades múltiplas, o GT segue firme com o propósito de sua publicação bianual, profícua fonte de leitura e de pesquisa aos entusiastas das Letras.

Leoné Astride Barzotto Silvina Carrizo

Organizadoras

Inverno de 2021.

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