LUIS EDUARDO MATTA nasceu no Rio de Janeiro, em novembro de 1974. Publicou seu primeiro livro, o thriller Conexão Beirute-Teeran em 1993, aos 18 anos. Seu segundo livro, o também thriller Ira Implacável só sairia quase uma década mais tarde, em 2002. Nos anos seguintes, o autor especializou-se em tramas de mistério, ação e suspense, publicando diversos romances e, em 2007, decidiu transpor sua experiência para a literatura juvenil lançando Morte no Colégio. A partir daí, não parou mais, publicando diversos títulos para o público juvenil, participando de antologias de contos como olivro Internautas, publicado pela Melhoramentos. O autor ainda tem vários artigos e ensaios publicados, alguns abordando a questão da formação de leitores nas escolas e a popularização da leitura no Brasil. Visita escolas periodicamente dando palestras e participando de eventos e feiras literárias.
MAURÍCIO VENEZA é natural de Niterói, Rio de Janeiro. Escritor e ilustrador de livros para crianças e jovens, escreveu cerca de cinquenta títulos, muitos deles selecionados para programas de leitura, como o PNLD e o PNBE. Além destes, ilustrou também mais de uma centena de livros com textos de outros autores.
Um presente deixado por D. Pedro I a Mogotsi, por ter salvo sua vida, desperta o interesse de dois amigos: a estudante Keeya, vinda do país africano de Kawânia, e o carioca Joaquim. Com ajuda de uma bibliotecária e de uma leiloeira, os dois partem numa aventura pelo Rio de Janeiro em busca desse tesouro esquecido; visitando bibliotecas, antigas mansões, o Museu Histórico Nacional e outros lugares do tempo da corte portuguesa no Brasil. Tudo isso sob a mira de perseguidores perigosos, muito interessados nas descobertas feitas pela dupla sobre essa riqueza há muito perdida.
ISBN 978-65-5539-480-1
Mogotsi, um jovem negro nascido liberto nos tempos do Brasil colonial, é o personagem que dá início a esta aventura. Ele teve seu destino mudado quando, pouco antes do grito de independência, salvou a vida de Dom Pedro I, evitando que ele fosse envenenado. O Imperador, agradecido, teria deixado um grande tesouro em reconhecimento por seu ato de heroísmo. O prêmio, porém, nunca foi entregue e, com o passar dos anos, foi completamente esquecido, até que o destino de dois jovens se cruza e o paradeiro do tesouro pode ser revelado.
Keeya, uma intercambista de 15 anos, de Kawânia, e que está estudando no Brasil sob os cuidados de seu severo tio, Thabo, e Joaquim, um jovem carioca que Keeya conhece no clube de leitura que ambos frequentam, encontram uma pista do tal tesouro deixada na biografia de Mogotsi.
Decididos a encontrar o presente de Mogotsi e desvendar esse mistério, ambos partem numa aventura cheia de pistas e perigos, afinal, o que eles não sabem é que há outras pessoas muito interessadas em cada avanço que eles dão em busca desse grandioso tesouro perdido.
Ilustrações de Maurício Veneza
L UIS E DUARDO M ATTA L UIS E DUARDO M ATTA ©
Mifano
Michele
Prólogo
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1822 Cinco dias depois da Independência do Brasil
Uma igreja toda de ouro. Em seus 23 anos de vida, Mogotsi nunca tinha entrado num lugar tão luxuoso.
Estava sozinho, sentado na primeira fileira da Igreja de São Francisco da Ordem Terceira da Penitência, para onde havia sido levado em segredo depois de ser obrigado a fugir às pressas de São Paulo, quando a comitiva do príncipe Dom Pedro se aproximava do Rio Ipiranga.
Agora, Mogotsi admirava a riqueza do interior daquela igreja. A pintura retratando São Francisco de Assis no teto, rodeado de anjos. O arco monumental que dava acesso ao altar. E, principalmente, o brilho dourado que recobria as paredes da ampla nave, como se elas tivessem sido esculpidas num enorme pedregulho de ouro.
Mogotsi ainda não entendia por que tinha sido levado até uma igreja. Desde que impedira a tentativa de assassinato do príncipe, algumas horas antes de ele proclamar a Independência do Brasil, homens
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leais a Portugal, infiltrados na guarda de honra, procuravam por ele para matá-lo. Eles tinham duas fortes razões para isso.
A primeira era se vingar de Mogotsi por ele ter atrapalhado o plano de assassinar Dom Pedro. Com o príncipe morto, Portugal removeria seu maior obstáculo para transformar o Brasil novamente em colônia. A segunda, porque Mogotsi vira, pelo menos, um dos homens envolvidos no plano e poderia reconhecê-lo e denunciá-lo às autoridades brasileiras. Uma vez preso, ele entregaria os outros, e seriam todos caçados e, se capturados, severamente punidos. Tentar matar um príncipe, afinal, era coisa muito séria.
Mas isso não apagava a pergunta: por que o tinham trazido para uma igreja?
Mogotsi estava tão concentrado nos próprios pensamentos que nem percebeu um homem vestido com o hábito marrom dos franciscanos surgir de uma porta à direita do altar e caminhar até ele.
– Mogotsi? – perguntou o homem, aproximando-se. Ele tinha olhos grandes, cabelos prateados e rosto comprido. Devia ter cerca de 50 anos.
Mogotsi balançou a cabeça em aprovação. O homem sentou-se ao seu lado.
– Sou o frei António de Arrábida. O emissário do padre Belchior me procurou para te dar abrigo.
O padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira acompanhava a comitiva de Dom Pedro na viagem a São Paulo. Tinha sido uma das testemunhas da declaração da Independência cinco dias antes.
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– Ele disse que estou em perigo? – perguntou Mogotsi.
– Disse, mas fiques tranquilo. Agora, tu estás em segurança – frei António gesticulou para Mogotsi se levantar. – Venha comigo. Não é seguro conversarmos aqui. Alguém pode chegar e te ver. Mogotsi acompanhou o frade. Entraram pela mesma porta lateral pela qual frei António tinha acabado de sair e atravessaram a sacristia, menos luxuosa do que a nave da igreja, mas ainda assim muito bonita, decorada por móveis pesados e belas pinturas sacras no forro. Subiram, em seguida, por uma escadaria de pedra e foram até um salão espaçoso, iluminado pelos raios de sol que entravam pelas fileiras de janelas abertas para a mata verde do Morro de Santo Antônio. Uma comprida mesa de madeira maciça rodeada por trinta cadeiras ocupava quase toda a extensão do recinto, e frei António convidou Mogotsi a escolher uma delas para se sentar.
– Por que não me contas, com as tuas palavras, exatamente o que aconteceu, filho? – pediu o frade, acomodando-se em frente a Mogotsi.
Mogotsi respirou fundo.
– Eu era um dos homens da guarda de honra de Dom Pedro – começou ele.
Frei António fez um gesto com a cabeça para que ele continuasse.
– Estávamos na cidade de Santos, acompanhando o príncipe – prosseguiu Mogotsi. – No dia seguinte, seguiríamos para São Paulo. Na manhã do dia 6,
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antes de sairmos para inspecionar os fortes da cidade, vi um dos soldados colhendo folhas de um arbusto florido muito bonito. Uma espirradeira.
– Uma planta muito bonita, porém venenosa –comentou o frei António.
– Sim. Se ele estivesse colhendo as flores, eu entenderia. Poderia querer presentear com elas alguma moça. Mas as folhas não serviam para nada.
– E o que ele fez?
– No final da tarde, fizemos nossa última parada, na Fortaleza de Santo Amaro. Após a visita, os oficiais do forte ofereceram uma ceia para Dom Pedro. Estranhei quando vi o mesmo soldado que tinha colhido as folhas da espirradeira servir um chá numa caneca e levá-la ao príncipe. Corri na direção dele e fingi tropeçar para derrubar a caneca. Consegui, mas o príncipe já tinha bebido o primeiro gole.
Mogotsi fez uma pausa e continuou:
– O soldado ainda insistiu com o príncipe, dizendo que poderia servir outra caneca, mas Dom Pedro ficou muito contrariado por estar com a farda molhada e resolveu ir embora. Ele deu a desculpa de que estava cansado e que se deitaria cedo, pois seguiria viagem para São Paulo antes do nascer do Sol.
Frei António havia sido informado pelo padre Belchior sobre o restante da história. No dia seguinte, 7 de setembro, enquanto subia a Serra do Mar a caminho de São Paulo, acompanhado de sua comitiva, o príncipe sofreu dores intestinais e uma forte disenteria provocadas pelo primeiro e único gole do
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chá envenenado. Um grande incômodo, porém um mal menor, pois, se tivesse tomado a caneca inteira, Dom Pedro não sobreviveria.
No fim da tarde, durante uma parada da comitiva nas margens do Rio Ipiranga, já perto de São Paulo, o príncipe recebeu a notícia de que os portugueses estavam preparando um ataque militar ao Rio de Janeiro a fim de eliminar os conspiradores separatistas e, assim, manter o domínio sobre o Brasil. Soube, também que, em Lisboa, cresciam as pressões para destituí-lo da condição de herdeiro do trono português, devido à sua atuação como regente no Brasil, considerada rebelde e contrária aos interesses de Portugal.
Encurralado, desafiado e, segundo relatou o padre Belchior, “tremendo de raiva”, Dom Pedro, então, decidiu-se, ali mesmo, pela única saída: a proclamação da Independência.
Frei António sorriu e disse a Mogotsi:
– Tu salvaste a vida do príncipe, filho. E, graças a isso, garantiste a Independência do Brasil. – O frei abriu os braços. – És um herói! Um herói da nossa Independência!
Mogotsi ficou encabulado com o elogio. – Aquele soldado sabe o que eu fiz – disse. – Percebi pela cara que ele fez para mim quando derrubei a caneca. Naquele momento, tive certeza de que estava em perigo e, à noite, procurei o padre Belchior para contar o que acontecera. O padre prometeu prevenir o príncipe e, na mesma noite, começou a planejar
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minha fuga. Eu iria com a comitiva até São Paulo, e, de lá, ele faria com que eu chegasse em segurança ao Rio de Janeiro.
– E aqui estás – disse frei António, com um sorriso. – Deixe-me adivinhar: o soldado que tentou matar o príncipe é português...? Mogotsi fez que sim com a cabeça.
– Sabes o nome dele? – perguntou o frade.
– Não.
– Conseguirias reconhecê-lo?
– Sem dúvida.
Frei António comprimiu os lábios, pensativo.
– Escuta, meu filho: tu sabes que Portugal está a fazer de tudo para impedir a Independência desta terra. Os portugueses têm consciência de que, sem a liderança de Dom Pedro, algumas províncias brasileiras continuarão leais a Portugal. Outras, por sua vez, talvez decidam se separar do Brasil. Só a coroa sobre a cabeça de nosso príncipe Dom Pedro é capaz de manter o país independente e unido. Tu és a única pessoa que pode identificar o assassino, e os portugueses tentarão silenciar-te. Tu deves ficar escondido para permanecer a salvo. Mas não poderás esconder-te para sempre. – E completou: – Podes viajar e conseguir um bom trabalho em algum lugar longe daqui. Pelo que vejo, és um homem instruído.
– Tive o privilégio de estudar, graças ao meu pai, que sempre valorizou o conhecimento. A cor escura da minha pele não deixa dúvidas sobre minha
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origem africana. Poucos sabem que meu pai era um nobre. Ele era o Kgosi Monametse , rei do povo Kawana, no sudeste da África. Foi capturado por um exército inimigo e vendido a traficantes de escravos que o trouxeram para o Brasil. Aquele homem no Vale do Paraíba que o comprou ficou impressionado ao ver como meu pai era educado e aprendera rápido o português. O fazendeiro era fascinado pela nobreza, sonhava em receber um título de barão ou visconde e, quando descobriu que meu pai tinha sangue real, decidiu alforriá-lo e deu-lhe um pedaço de terra para viver. Foi onde nasci. Com o tempo, meu pai se apaixonou pelo Brasil e sonhava com o dia em que esta terra se tornaria independente de Portugal. Ele morreu no começo deste ano sem ver seu sonho realizado. Quando a comitiva do príncipe Dom Pedro passou próximo das minhas terras, resolvi me juntar a ela e fui incorporado à Guarda de Honra. Eu queria ajudar o príncipe, colaborar de alguma forma para tornar o Brasil independente e, assim, realizar o último desejo do meu pai.
Mogotsi sentiu uma súbita saudade do pai. O velho Monametse odiava os colonizadores portugueses, principalmente por comprarem seres humanos na África e trazê-los à força para trabalhar como escravos no Brasil. Tanto ele quanto Mogotsi tinham esperanças de que a Independência daria um fim imediato àquela aberração. Nenhum dos dois, é claro, podia imaginar que a escravatura só seria abolida no país mais de sessenta anos depois.
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– O desejo do teu pai foi já realizado – disse frei António. – Onde quer que esteja, ele deve se sentir orgulhoso ao saber que seu filho garantiu que a Independência fosse declarada.
Mogotsi imaginou a alegria do pai se visse o Brasil livre.
O que pretendes fazer de agora em diante?
Ainda não pensei nisso, mas voltar para o Vale do Paraíba está fora de questão – respondeu Mogotsi. – Os conspiradores já estavam na comitiva quando passaram pela minha casa e, neste momento, podem estar a vigiá-la à minha espera.
O rosto de frei António se iluminou de repente.
A história que me contaste sobre o teu pai me deu uma ideia. Assim como Dom Pedro está para se tornar o soberano do Brasil, tu bem que podias pensar em retornar à terra do teu pai e recuperar o teu reino. Como é mesmo o nome do teu povo?
– Kawana.
– O que achas da minha ideia?
Não sei se estou preparado para uma missão como essa... – Dom Pedro também não estava preparado para declarar a Independência. As circunstâncias e a necessidade o levaram a isso.
Mogotsi nascera no Brasil e nunca pisara na África. O pai, no entanto, lhe ensinara a língua dos kawanas e lhe descrevera tudo relacionado à terra onde seu povo vivia. De tanto o pai lhe falar sobre a geografia daquele pedaço da África, Mogotsi saberia como
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chegar lá. Bastaria se apresentar às pessoas certas e ele seria reconhecido como o herdeiro do grande chefe Monametse.
– Por ora, serás hóspede no nosso convento aqui ao lado – disse frei António. – Conseguirei um hábito para ti e direi a todos que és um frade de outra província que veio passar uns tempos conosco. Enquanto isso, buscarei informações sobre os navios que partirão do Rio de Janeiro para o sudeste da África. Se quiseres embarcar em algum deles, planejaremos como fazer isso em segurança. Mogotsi começava a gostar da ideia.
– No momento certo, contarei a Dom Pedro o que fizeste por ele e pelo Brasil – declarou frei António.
– Não sei se sabes, mas sou conselheiro e confessor do príncipe. Ele acreditará em mim e tenho certeza de que irá recompensar-te.
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Capítulo 1
O Clube de Leitura
Rio de Janeiro, cerca de duzentos anos depois
Joaquim chegou atrasado à livraria – nenhuma novidade, aliás, já que vivia se atrasando para tudo. Perdera a conta das vezes em que não conseguiu assistir à primeira aula por cruzar o portão da escola depois do horário. Alguns colegas até já o tinham apelidado de “Joaquim Segunda Aula”.
O Clube de Leitura, é claro, já havia começado. Felizmente, Keeya deixara sua bolsa sobre a cadeira ao lado, guardando o lugar para ele.
– Qual o livro de hoje? – perguntou Joaquim, depois de cumprimentar a amiga.
– Um suspense americano – respondeu Keeya, retirando da cadeira a bolsa e um livro grosso para Joaquim se sentar. – O título é Fuga Sem Trégua.
É bom?
– É bonzinho – disse Keeya, sem muito entusiasmo.
– É a história do casal Samantha e Joe Cardwell. Eles são sequestrados por mafiosos espanhóis por terem
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visto a chegada de um carregamento de droga a uma praia. A cena em que eles fogem do cativeiro é a melhor. Samantha usa os grampos de cabelo para abrir a fechadura da cela, e aí começa a fuga que dá nome ao livro. Mas não é uma fuga tão eletrizante. Ela é sem trégua, pois os dois passam quase todo o livro fugindo.
– A julgar pela empolgação do Rodrigo, o livro é uma obra-prima que vai ganhar o Prêmio Nobel de Literatura este ano.
Joaquim se referia a Rodrigo Quaresma, um bancário que, nas horas vagas, editava o site Festim Literário e organizava, havia dois anos, o clube de leitura de mesmo nome. O clube acontecia toda segunda-feira numa livraria no bairro da Tijuca e reunia seguidores do site e aficionados por leitura em geral para conversar sobre um livro, um escritor ou um gênero literário. Rodrigo era um cara animado, mas naquele fim de tarde a animação dele parecia ainda maior. Ele brincava com a plateia, soltando piadinhas a cada comentário sobre o livro, como se estivesse ao vivo em algum programa humorístico sem graça.
– Comecei a frequentar o clube porque queria conhecer melhor a literatura brasileira – queixou-se Keeya. – Mas há várias semanas o Rodrigo só fala de autores de fora. Se continuar assim, acho que vou deixar de vir.
Não faz isso – reagiu Joaquim. – Se você não vier mais, com quem vou conversar?
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Joaquim descobrira o Clube de Leitura por acaso. Ele morava com a mãe e a avó num prédio ali perto e fora à livraria num fim de tarde em busca de um livro de literatura que tinha sido adotado pela escola e cuja prova aconteceria na semana seguinte. Como sempre, tinha deixado para providenciar na última hora. O clube estava acontecendo naquele momento e, enquanto a vendedora buscava o livro no estoque da livraria, Joaquim ficou observando a conversa empolgada sobre literatura daquela galera jovem, como quem fala do lançamento de algum filme concorrido ou do game do momento. Havia umas garotas bonitas, mas todas eram mais velhas e, é claro, não dariam bola para ele.
Depois de comprar o livro, em vez de ir embora, Joaquim resolveu ficar um pouco mais e foi nesse momento que avistou Keeya. Ela era a única ali que tinha a mesma idade que ele – 15 anos –, enquanto todos os outros participantes do clube aparentavam mais de 20, incluindo Rodrigo Quaresma, que devia estar próximo dos 30. Descobriu, mais tarde, que Keeya era de Kawânia, um pequeno país no sudeste da África, e que estava fazendo um intercâmbio no Brasil para estudar português. A língua portuguesa, segundo ela, era a terceira mais falada em Kawânia, depois do sekawana e do inglês.
Ela contou que soubera do clube ao procurar pela internet sugestões de livros brasileiros e acabou chegando ao site de Rodrigo Quaresma. Naquele fim de semana, o clube falaria do lançamento de uma jovem
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escritora brasileira, e Keeya se animou em participar. As edições seguintes do clube também focaram autores nacionais, mas depois disso Rodrigo praticamente só selecionou estrangeiros, o que foi deixando Keeya cada vez mais decepcionada.
– Esses livros americanos também são vendidos nas livrarias de Kawânia – comentou ela, com o leve sotaque que tornava a sua voz musical e única. – Nada contra, mas eu queria aproveitar essa temporada no Brasil para conhecer melhor os autores daqui.
– Por que não procuramos outro clube de leitura? Tem vários pela cidade – sugeriu Joaquim. – Não andam dizendo que o Rodrigo pensa em desistir do clube e se mudar do Rio?
Keeya deu de ombros. – Acho que isso é boato. Olha só o entusiasmo dele. Não é o de alguém que pensa em largar tudo. E eu gosto de vir aqui. Já me acostumei.
– Então, por que não conversa com o Rodrigo e pede a ele para falar mais de literatura brasileira? Ele parece ser um cara legal e, com certeza, vai te ouvir.
Lá na frente, Rodrigo falava sem parar, gesticulando muito.
– Antes de distribuir os números para o sorteio de hoje, queria pedir a sugestão de vocês – disse ele, abrindo os braços teatralmente. – Qual livro vocês gostariam de ver aqui no clube nos nossos próximos encontros?
Keeya se animou.
Acho que ele acabou de me dar uma deixa.
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Ela e Joaquim estavam sentados numa das últimas fileiras, e as pessoas acomodadas nas cadeiras à frente eram mais velhas e mais altas. Para azar de Keeya, a garota mais alta de todas estava acomodada na cadeira bem em frente à dela, e sua farta cabeleira cor de trigo ajudava ainda mais a bloquear a visão do que acontecia lá na frente. Keeya precisava se levantar para ser ouvida e, ao fazer isso, não percebeu que a alça de sua bolsa envolvia o braço direito. A bolsa acabou virando e, por estar meio aberta, alguns objetos se espalharam sob as cadeiras da frente. Ao se agachar para pegá-los, Keeya derrubou, sem querer, o livro que estava sob a bolsa, piorando a situação. Ele caiu no chão, produzindo um baque surdo, e se abriu sozinho bem na parte em que Keeya colocara um marcador de páginas. Joaquim se inclinou para apanhá-lo. O livro era escrito em inglês, e, sem querer, ele leu um trecho:
A pesquisa revelou que Dom Pedro I teria sabido tardiamente da ação heroica de Mogotsi e destinado a ele um tesouro como retribuição por, na véspera da declaração da Independência, ter salvado a sua vida. No entanto, essa informação só foi encontrada numa carta, supostamente escrita por uma das damas de companhia da Imperatriz Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro, e é possível que a história tenha sido inventada ou exagerada.
Joaquim conferiu a capa do livro. Ela trazia a pintura de um homem altivo, com vestes reais africanas,
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tendo algumas imagens em preto e branco no fundo, incluindo uma que Joaquim reconheceu logo: era o famoso quadro Independência ou Morte , pintado por Pedro Américo em 1888 e que mostrava uma versão épica do Grito do Ipiranga. O título do livro, em grandes letras verdes, era Mogotsi – A Biography (Mogotsi – Uma Biografia, em inglês).
– Que livro é esse? – É o que eu estou lendo.
– Eu sei que você está lendo. Mas quem é Mogotsi?
E que tesouro é esse de Dom Pedro I?
– Oh, pelo que estou vendo, você entende bem inglês... – brincou Keeya.
– Vai me contar ou não?
Keeya soltou um suspiro.
– Mogotsi foi o fundador do reino de Kawânia. Nasceu no Brasil, filho de escravos, e voltou à África para reassumir as terras do povo Kawana e refundar o reino que, antes, era governado pelo pai dele.
– E o que Dom Pedro I tem a ver com isso?
Keeya apontou para o livro.
É o que você leu. Um dia antes da proclamação da Independência do Brasil, Mogotsi teria evitado que Dom Pedro fosse assassinado. Quando soube disso, o imperador resolveu dar a ele um tesouro como retribuição, mas, a essa altura, Mogotsi já tinha voltado para a África.
Joaquim aprendera nas aulas de História que o Grito do Ipiranga, embora importante, não garantiu sozinho a independência de todo o território
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brasileiro, que corria o risco de se fragmentar em diversos países, assim como aconteceu com a América espanhola. Algumas províncias se rebelaram, com o apoio de tropas portuguesas, e uma guerra sangrenta aconteceu por muitos meses até os últimos focos da resistência serem derrotados. A Independência do Brasil só seria formalmente reconhecida por Portugal em 1825.
– Caramba... – Joaquim olhou boquiaberto para Keeya. – Um tesouro? Como o autor desse livro ficou sabendo?
Um burburinho acontecia agora na plateia. Aparentemente, Rodrigo Quaresma estava fazendo um showzinho antes de entregar as senhas do sorteio, mas Joaquim e Keeya tinham se esquecido momentaneamente dele e do clube.
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