Nordeste VinteUM

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CRISE

A blindagem nordestina no subdesenvolvimento FUNDOS SETORIAIS

Edição Nº 01 — Ano I — Maio/2009 — Revista Nordeste VinteUm – Publicação sobre economia, política e cultura — www.nordestevinteum.com.br - R$ 8,90

A ciência do desequilíbrio regional

NORDESTE MAIS PERTO DE

CELSO FURTADO? Cangaço e o “Brasil profundo” de Frederico Pernambucano de Mello


A DIFERENÇA ENTRE SEU VEÍCULO IMPRESSO E OS OUTROS Celso Furtado. Visão de Mundo

Insigths

O dilema sociológico

nossa criatividade

Em ciências sociais, pensamos o mundo para transformá-lo ou para defender o status quo Coluna Prestes “Quando a Coluna Prestes passou por perto, ouvi os adultos dizerem que era como uma praga de gafanhotos, que tomavam as reses dos ricos para comer e deixavam como pagamento papéis rabiscados. Poucos sabiam o que queriam aqueles homens, vistos como desertores do Exército comandados por um capitão de 26 anos.”

Cassação “Ouvi pelo rádio a leitura dos atos institucionais que excluíam da vida pública um grande número de cidadãos. Entre os nomes que constituíam o pelotão de frente, figurava o meu. Cassado de direitos! Proibido de ocupar-se da coisa pública! Processo secreto. Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade!”

Capitalismo brasileiro “O capitalismo subdesenvolvido não é um capitalismo menos desenvolvido que o dos países ricos. É um sistema de outro tipo, que não conduz ao bem-estar social, mas à concentração da renda. Precisamos compreender melhor a natureza do nosso capitalismo.”

Elite brasileira “Se eu não estivesse fora do Brasil provavelmente não teria prestado atenção, mas o fato de viver fora, de trabalhar numa equipe internacional, me obrigou a enfrentar esse desafio que era decifrar o Brasil, entender onde estavam os erros. Será que nós, brasileiros, éramos realmente inferiores, como muita gente insinuava? Ou será que a classe dirigente brasileira é que não tinha política, não tinha uma visão clara das coisas, não tinha projeto para alavancar o país?”

Sudene e o golpe militar “No Nordeste, as consequências do golpe militar foram muito graves, pois a repressão exercida, desde o início, liquidou com movimentos sociais de grande alcance, surgidos no decênio anterior e que prenunciavam ampla reconstrução de suas estruturas. O Nordeste acumulara, historicamente, o maior atraso social do país. A criação da Sudene, que me coube dirigir, desde sua implantação em 1959 até golpe militar, era uma tentativa de impulsionar o desenvolvimento nessa área tão desvalida.”

Graciliano Ramos

“Ia publicando em revistas de prestígio, escrevia para as que existiam na época. Por exemplo, a revista Cultura Política que era, na verdade, subsidiada pelo governo. Mas nós, que não éramos simpáticos ao governo – que éramos, pelo contrário, críticos –, tínhamos acesso a ela porque o seu secretário era Graciliano Ramos. Ele é que fazia o editing da revista, lia as provas dos artigos. Ele me chamou lá e me disse: ‘Esse filho é seu?’. Eu disse: ‘Sim’. Era um artigo sério, circunspecto.” Orson Welles

“Eu tinha conhecido Orson Welles aqui no Rio, porque, pela Revista da Semana, acompanhei-o em algumas saídas — me recordo uma à Tijuca – e então fiquei muito interessado nessa personalidade. E Orson Welles resolveu ir a Ouro Preto para filmar a Semana Santa. Levei comigo o fotógrafo e fiz uma reportagem sobre a Semana Santa de Ouro Preto. Só que o Orson Welles não foi.” Ernesto “Che” Guevara

“Che Guevara polarizava as atenções, o que criava inveja em muita gente. Estive com ele em mais de uma conferência e via como levava vantagem. É verdade que tinha a bandeira sedutora do mito da revolução... Che Guevara era brilhante nesse passe de mágica.”


CARTA DO EDITOR

Edição Nº 01 Ano I — Maio/2009 Revista Nordeste VinteUm Política, Economia, Cultura www.revistanordestevinteum.com.br

Por que a Revista? Em poucas palhetadas, como diz o matuto: a Nordeste VinteUm nasce porque queremos o universal pelo regional. Porque entendemos que construir e sistematizar um veículo de comunicação eficiente, moderno, abrangente e de conteúdo é imperativo para ajudar a região a sedimentar políticas públicas sustentáveis de desenvolvimento regional e local. E pronto. Aqui, está a missão a que nos rendemos. Em grande medida, inspirados nos pensamentos do professor Celso Furtado. Ele achava que era primazia para o Nordeste assumir um papel de liderança no combate ao subdesenvolvimento brasileiro. E o enfrentamento dessa tarefa se tornará tanto quanto mais eficaz, se o país, enfim, resolver peitar seu anacrônico e inveterado problema das desigualdades regionais. A essa luta Celso Furtado dedicou o melhor de sua criação intelectual e de sua atuação como homem público, no Brasil e no exterior. A tese do universal pelo regional nos impele a tratar questões políticas, sócio-econômicas e culturais com maior profundidade. Buscar o porquê da pobreza, do subdesenvolvimento e das desigualdades entre territórios deste imenso país. Através desse instrumento de mídia, abrir mais ainda as portas da região Nordeste para o mundo e com ele interagir. Conquistar público ávido por informação, cujo senso crítico o coloca entre seletos segmentos formadores de opinião. Por fim, um veículo impresso é, por excelência, um registro de fatos que passarão a perpetuar os feitos de uma liderança, de um grupo de pessoas que transformam a realidade e catapultam uma região para os anais indeléveis da história humana. Além do enfoque na discussão política, econômica e científica de questões relevantes ligadas ao desenvolvimento da região, falar em Nordeste significa também a obrigação de abordar a riqueza de sua cultura, sob os mais variados prismas. E mais: a revista agrega, em breve, um caderno especial sobre Ciência & Tecnologia, importante setor da economia cujo fortalecimento pode contribuir significativamente para ajudar a região a superar problemas históricos. A revista Nordeste VinteUm conta com uma equipe de profissionais experientes e, acima de tudo, conscientes da importância de construir um veículo de comunicação comprometido com o engrandecimento da região Nordeste. Isso dentro da concepção fundamental de um crescimento voltado para o homem, com a preservação das suas raízes e riquezas culturais. Sem esquecer de estarmos atentos ao papel colaborador das iniciativas que concorram para que o progresso sempre chegue acompanhado de responsabilidade ambiental.

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Economia NE x Crise Econômica: porque estamos blindados

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Sumário

Água

A necessidade de democratizar o acesso à água no Nordeste das grandes obras hídricas

Entrevista

32 História 39

Frederico Pernambucano de Mello: cangaço e o “Brasil profundo”

Seções 30. 52. 60. 74.

Caleidoscópio Saberes&Sabores Ciência&Tecnologia Ateliê

Dom Helder: 100 anos do Bispo Vermelho da política, das grandes polêmicas e da contestação

Especial

06

Celso Furtado vive no atual cenário de desenvolvimento do Nordeste?

Artigos 29.

Unicef comemora 21 anos no Ceará Ana Márcia Diógenes

59.

Patativa não era “analfa” Barros Alves

68

44 Poder Local &Cidadania

Como uma cooperativa digital ajuda a mudar as perspectivas de crianças e jovens do maior bairro pobre de Fortaleza

Editora Assaré Ltda ME

Rua Waldery Uchôa, 567 A  Benfica Fortaleza, Ceará  CEP: 60020-110 e-mail: assare@editoraassare.com.br Fone/fax: (85) 3254.4469 Francisco Bezerra Diretor de Negócios e Relações Institucionais negocios@editoraassare.com.br Orlando Júnior Diretor Administrativo Financeiro adm@editoraassare.com.br Wilton Bezerra Júnior Editor Executivo editor@editoraassare.com.br wiltonbezerrajr@hotmail.com wiltonbezerrajunior@gmail.com

Marcel Bezerra Editor Adjunto marcel@editoraassare.com.br Luiz Carlos Antero Repórter Especial reporter@editoraassare.com.br

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Cariri cearense A retomada do desenvolvimento de uma região através do geoturismo e da “economia do conhecimento”

Cultura Ave poesia: o centenário de Patativa do Assaré

Os Fundos Setoriais e os desequilíbrios regionais da produção científica brasileira

Claudemir Luis Gazzoni Diretor de Arte arte@editoraassare.com.br

Colaboradores ABA Film, Barros Alves, Mino Castelo Branco, Tiago Santana

Vladimir Pezzole Editor de Arte arte@editoraassare.com.br

Impressão Marcograf Tiragem 10.000 exemplares

Lucílio Lessa e Carolyne Barros Repórteres reporter@editoraassare.com.br Paulo Rocha Repórter Fotográfico reporter@editoraassare.com.br

Dimas de Oliveira Costa Consultor assare@editoraassare.com.br

Imagem Assessoria de Comunicação Marketing imagem.com@secrel.com.br

Editora

Fundada em agosto de 2005, com sede em Fortaleza (CE), a Editora Assaré atua no mercado editorial cearense, com a produção de jornais, revistas, livros e demais publicações gráfico-editoriais. Formada por profissionais com experiência nas áreas de comunicação, design e gráfica, a empresa criou e lançou diversos periódicos institucionais e comerciais, como os jornais de parlamentos e executivos municipais, de parlamentares e de entidades privadas, revistas comerciais, de gestão pública e empresariais. Além disso, publicou livros de personalidades consagradas como o cineasta Francis Vale e o escritor e poeta Juarez Leitão, entre outras obras.

Instituto

O Instituto Nordeste XXI surge no cenário de instituições não governamentais com objetivo precípuo de promover a difusão social do conhecimento em todas as áreas de atividade humana. Busca contribuir para a elevação de massa crítica de nossa sociedade, bem como fomentar o desenvolvimento local sustentável e o pleno exercício de cidadania. Outra missão do instituto é o da realização de encontros, debates, seminários, jornadas, congressos e fóruns. Enfim, promover eventos em todos os formatos, bem como elaborar e formatar projetos dentro do conceito de suas atividades finalísticas para encaminhamento aos órgãos governamentais e ao Terceiro Setor.

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Ciência

Flamínio Araripe Editor Adjunto de Ciência e Tecnologia editor@editoraassare.com.br

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A Revista Nordeste VinteUm, dentro de seu caráter pluralista, se pretende um veículo aberto à participação e à construção coletiva do seu conteúdo. Para tanto, trabalha com o Conselho Editorial designado pela Editora Assaré. Nesta instância, são discutidas estratégias para viabilizar e manter a periodicidade da revista, garantir o cumprimento da sua política editorial, definir os nomes dos colaboradores e acompanhar, através de ouvidoria, a relação público leitor-revista. Tudo em respeito aos ditames do bom jornalismo, cujo compromisso com a ética e a verdade são inarredáveis.


Especial

Distante da economia colonial, o Brasil de hoje arranca Celso Furtado do passado e o projeta para o futuro. Isso se dá pela via de ações estruturantes em curso na região. São iniciativas que podem levar adiante seus sonhos de combate ao subdesenvolvimento no Nordeste. Uma colheita das sementes que, de modo pioneiro, semeou no solo nordestino Por LUIZ CARLOS ANTERO Jornalista e sociólogo lcantero@uol.com.br

Obra de evocação ao desenvolvimento vive no Nordeste atual? 6

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Especial Foto: Marcello Casal Jr_ABr

A reestruturação do desenvolvimento do Nordeste teria que passar internamente, então, pelo crescimento e simultânea redistribuição da renda, com remoção do latifúndio como entrave estrutural, harmonizando a região com o conjunto do país.

C

elso Monteiro Furtado faleceu, aos 84 anos, lúcido, no Rio de Janeiro, em 20 de novembro de 2004, ainda acompanhado pela consciência dramática do presente como uma realidade distante do futuro que sonhou em sua juventude. Naquele momento, o Brasil perdia um nordestino submerso em sua época, bem nascido no sertão paraibano em 26 de julho de 1920, no município de Pombal. De vida tão útil e laboriosa, transformou-se na grande figura evocativa do Nordeste como cenário possível e passível de desenvolvimento. Enxergou na região o ambiente no qual uma nova estratégia substituiria a velha política de combate às secas. Promoveria ali o que já ocorria no Brasil desde a chamada Era Vargas: o desenvolvimento da indústria e, portanto, do emprego, do mercado interno, com a mudança da estrutura da propriedade. Neste ambiente ensolarado de extraordinária exuberância, onde guardava seus sonhos mais definidos, as políticas predominantes até o final da década de 1950 não atendiam ao Semi-árido. Não tratavam a questão da água e da produção de alimentos de um modo adequado às necessidades do imenso contingente de nordestinos. O paradigma econômico da região não conhecia nenhum horizonte além dos vastos domínios territoriais do latifúndio e da monocultura da cana-de-

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açúcar. Variava, no máximo, até o binômio algodão-pecuária. A mudança desse paradigma representou uma obsessão na vida de Celso Furtado. Inconformado até os seus últimos dias com a ostensiva presença de multidões de mendigos num território privilegiado em riquezas — generosas e diversificadas como o amálgama da sua formação. POR UMA NOVA INTERVENÇÃO DO ESTADO Em seu pensamento, o Nordeste brasileiro, iluminado pelas suas típicas condições climáticas e estrategicamente situado nas proximidades logísticas dos maiores mercados internacionais, despontaria no futuro para o aporte de investimentos que extrapolariam os limites do sentido indutor da intervenção de Estado. Confluindo em seus objetivos sociais, golpeariam a perversa realidade de uma região submersa no predomínio do latifúndio, do analfabetismo e de um largo contingente abaixo da linha da pobreza. Hoje, mesmo ainda distante das metas furtadianas de plena vitória sobre as raízes do subdesenvolvimento, este cenário que abarca 1,5 milhão de quilômetros quadrados — o equivalente aos territórios somados da França, Itália, Reino Unido e Alemanha —, passa a exibir indícios mais significativos de crescimento. Em especial, esse perfil tende

a um encontro com os investimentos capazes de mudar sua realidade econômica, com a recuperação e construção de rodovias, refinarias, ferrovias e obras no setor energético. A conseqüência é o despontar de uma moderna agroindústria, que leva os produtos nordestinos (entre os quais a soja, uva, manga, melão, acerola e outras frutas tropicais) para outros mercados continentais, a exemplo da América do Norte, Europa e Ásia. Nas últimas décadas, o Nordeste alcançou progressivas transformações, que o promovem da condição de produtor de bens tradicionais e introduzem a fabricação de produtos de base tecnológica, a exemplo dos aços especiais, automóveis, equipamentos para irrigação, software e produtos petroquímicos. Obras de reformulação aeroportuárias e as refinarias projetadas em Pernambuco, Ceará e Maranhão são elementos de impulso transformador nesse processo. Tais fatores podem reafirmar a consciência de que os avanços do Nordeste são indispensáveis ao desenvolvimento do Brasil, a partir da decisão política de direcionar os investimentos federais na região e equilibrar o crescimento ante as demais regiões do País. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), por exemplo, anuncia que pretende investir mais de R$ 128 bilhões nos Estados da Região Nordeste até 2010.

FORMULADOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA JK E JANGO

DIANTE DE LULA, A EXPOSIÇÃO DE DESAFIOS ESTRUTURAIS Numa das ocasiões memoráveis dos seus últimos tempos, Celso Furtado, na presença do presidente Lula, proferiu um discurso na cerimônia de criação da nova Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 28 de julho de 2003, no qual subordinou as novas idéias e o planejamento do Nordeste à soberania do País — particularmente, naquele momento, diante do Fundo Monetário Internacional (FMI). Celso ressaltou o Estado Nacional enquanto “instrumento privilegiado para levar adiante uma política de reconstrução estrutural”. Ao mesmo tempo, partiu na frente e declinou o desafio “em compatibilizar a ação estatal disciplinadora dos fluxos monetários e financeiros, ou processo de globalização, de crescente autonomia”. Destacou a batalha em curso no Brasil como “uma luta grande de transformação”, com três aspectos e finalidades principais: “Primeiro, o problema da fome e da exclusão social, já tão bem formulados por seu Governo. Em segundo lugar, os investimentos necessários ao aperfeiçoamento do

fator humano, afim de ampliar a oferta de pessoal qualificado. Em terceiro lugar, a subvenção do processo de globalização às prioridades do mercado interno. Quer dizer, o projeto de desenvolvimento do Brasil é feito a partir das potencialidades do mercado interno. E não pensar que basta exportar para resolver o problema brasileiro”. Foi a formulação de um método que acompanhou Celso Furtado em sua trajetória, amadurecida com sua experiência na Comissão Econômica para América Latina e Caribe da Organização das Nações Unidas (Cepal/ONU), nos anos 1950. Nesse momento, evidenciava que os países subdesenvolvidos eram uma realidade de dominação em sua forma política na relação centro-periferia. E questionava a idéia de que “o presente sempre promete um futuro melhor”. Para ele, os países que se integram de modo subordinado na divisão internacional do trabalho — enquanto fornecedores de matéria prima ao centro hegemônico — estariam condenados ao eterno subdesenvolvimento.

No final dos anos 1950, Celso Furtado submeteu um convite da então diretoria do Bndes à criação de uma área especializada na instituição para criar as bases destinadas a “cuidar dos problemas e do desenvolvimento do Nordeste”. Teve êxito e, em seguida, assumiu a difícil tarefa de expor ao presidente Juscelino Kubitschek, em 20 minutos, sua visão de desenvolvimento em convivência com a seca. A brilhante exposição despertou em JK uma forte sensação de “tempo perdido”, iniciando-se aí a saga da criação da Sudene. Foi desse modo que, antes do golpe militar de 1964, Celso aproveitou — a favor do Nordeste — a confiança em sua capacidade como formulador. Nomeado para o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), elaborou o estudo Uma política de desenvolvimento para o Nordeste — que lastreou a criação, em 1959, da Sudene. No momento seguinte, em 1962, no comando da instituição, se empenhava na organização de uma frente de governadores para a defesa estratégica do Nordeste, quando o presidente João Goulart o convidou para a elaboração do Plano Trienal do seu governo e o nomeou (o primeiro na História do Brasil) mi-

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nistro do Planejamento. No entanto, esse momento foi efêmero e logo o Nordeste assumiria novamente o centro de suas preocupações: em 1963 retornou à Sudene, criando e implantando a política de incentivos fiscais para investimentos na região. Entre suas inúmeras atividades, ainda na década de 1950, Celso presidira o Grupo Misto Cepal-Bndes, onde elaborou um estudo sobre a economia brasileira. Publicado em 1955, serviria de base para o Plano de Metas do governo JK. Ali, afirmaria suas con-

Aluno do Liceu Paraibano (1934)

vicções de que, na assimetria da realidade (no mundo, na América Latina e no Brasil), o subdesenvolvimento se reproduzia ao lado do desenvolvimento. Nessa época, no período 1957-58, elaborou no King’s College da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, os fundamentos de sua mais relevante de uma extensa relação de obras: o clássico Formação Econômica do Brasil. Não obstante o reconhecimento mundial de sua obra clássica, na qual percorria as diversas formações econômicas e sociais do país ao longo de

sua história, Celso a considerou inacabada. Acreditava que, nas duras circunstâncias da época, seria acusado de “esquerdista e marxista” se atacasse os problemas centrais da distribuição da renda em plena batalha contra o subdesenvolvimento e a concentração do poder nas oligarquias. “Então”, disse, “vou ficar por aqui”. DITADURA PRIVA O BRASIL DO PIONEIRO DO PLANEJAMENTO Com o golpe de 1964, a interrupção da

Celso Furtado e o governador de Pernambuco Cid Sampaio em Recife (1959)

O presidente Jango empossa o ministro do Planejamento Celso Furtado (1962)

O economista Celso Furtado com o presidente do EUA, John F. Kennedy, na Casa Branca (1961)

DOUTOR E JORNALISTA, ANTES DE TUDO NORDESTINO A trajetória inicial da formação de Celso Furtado coincide com o que se pensaria popularmente: nos anos seguintes, saiu da Paraíba, do Nordeste e do Brasil, mas esses lugares, cultura e recordações não se ausentaram da sua vida. Dos estudos secundários no Liceu Paraibano e no Ginásio Pernambucano do Recife, à Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1939, à experiência de

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Cepal, década de 1950. Raúl Prebisch está no centro. Da esquerda para a direita, Louis Swenson é o terceiro e Celso Furtado é o sexto

atuar como jornalista na Revista da Semana, ao CPOR e à convocação para a (FEB) Força Expedicionária Brasileira, essa condição de versátil nordestino apenas se aprofundou, acompanhando sua profícua formação intelectual. Muito jovem, adiante é um advogado nordestino com a patente do aspirante a oficial, na Itália (Toscana), e atua como oficial de ligação junto ao V Exército

vida democrática no Brasil sustou também uma formidável trajetória — que não seria retomada após o fim do regime militar. Após a transição negociada de 1985, foi ministro da Cultura no governo Sarney. Com essa nomeação, Sarney ignora uma recomendação de Ulysses Guimarães, que sugere o convite a Celso Furtado para a pasta do Planejamento após a crise do Plano Cruzado. Em sua gestão como ministro da Cultura, a partir de março de 1986, logrou aprovar a primeira lei brasileira de incentivos fiscais à cultura. Em julho

Oscar Niemeyer com Celso Furtado (1983)

Celso Furtado com Juscelino Kubitschek (1959)

dos EUA até que um acidente, em plena ofensiva final dos aliados no Norte da Itália, interrompe sua participação na guerra em sua breve carreira militar. Sua inspiração jornalística se desenvolve quando envia reportagens para a Revista da Semana, Panfleto e Observador econômico e financeiro, nas quais narra sua experiência como integrante de uma brigada francesa de reconstrução de uma estrada na Bósnia. No auge de sua formação acadêmica reafirmou sólidos vínculos com suas raízes. Foi assim em 1948, quando realizou o doutorado

em Economia pela Universidade de Paris, com o tema central da “Economia Colonial Brasileira”. MOMENTO DAS BARRICADAS Quando já repercutia pelo mundo o eco das barricadas de maio de 1968 na França, Celso Furtado veio em junho ao Brasil, a convite da Câmara dos Deputados, pela primeira vez após sua cassação. Nos anos 1970, seu périplo se estendeu aos países da África, Ásia e América Latina, em missões de agências da ONU (Organização das Nações Unidas), atuando

ainda como professor-visitante da American University, em Washington; da Columbia University, em Nova York; da Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de Cambridge. No período compreendido entre 1978 e 1981, integrou o Conselho Acadêmico da Universidade das Nações Unidas, em Tóquio. No mesmo período, recebeu um mandato do Commitee for Developement Planning, da ONU. Entre 1982 e 1985, coordenou seminários como diretor de pesquisas da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, da Universidade de Paris. Maio/2009

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Base do pensamento

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1968

“Um projeto para o Brasil”

1972

“Análise do modelo brasileiro”

1973

“A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina”

1974

“O mito do desenvolvimento econômico”

1976

“A economia latinoamericana”

1978

“Criatividade e dependência na civilização industrial”

1980

“Pequena introdução ao desenvolvimento, um enfoque interdisplinar”

1981

“O Brasil Pós-milagre” “A nova dependência, dívida externa e monetarismo” “Não à recessão e ao desemprego” “Cultura e desenvolvimento em época de crise” “A fantasia organizada”

1987

1967

“Teoria e política do desenvolvimento econômico”

1989

1966

“Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina”

1991

1964

“Dialética do desenvolvimento”

1992

1962

“A pré-revolução brasileira”

1997

1961

“Desenvolvimento e subdesenvolvimento”

“Brasil, a construção interrompida” “Obra autobiográfica de Celso Furtado, 3 vol”

1998

1959

“Formação econômica do Brasil” “A Operação Nordeste”

“Os ares do mundo”

“O capitalismo global”

1999

1958

“Perspectivas da economia brasileira”

“A fantasia desfeita” “ABC da dívida externa”

“O longo amanhecer”

2002

1956

“Uma economia dependente”

“Transformação e crise na economia mundial”

“Em busca de novo modelo, reflexões sobre a crise contemporânea”

2003

1948 1954

“A economia brasileira”

1982

Celso Furtado foi um especialista na arte de realizar caminhos — que compreendia originalmente como obra de conhecimento e reconstrução. O pós-guerra alimentou o desejo “enorme” de conhecer a Europa e o mundo como “um jovem mobilizado para ajudar a sociedade” — em suas próprias palavras. Percebe então, a partir do laboratório de reconstrução dos países pela via da inspiração keynesiana, uma novidade fundamental: a força do Estado como um protagonista decisivo nas grandes transformações.

“Economia colonial no Brasil nos séculos 16 e 17” (“L’économie coloniale brésilienne”, tese de doutorado, Universidade de Paris)

1983

EMERGÊNCIA E SUBDESENVOLVIMENTO

À esquerda, Carlos André Peres, presidente da Venezuela. À direita, Celso Furtado. Ao lado de Celso, Hélio Jaguaribe

LINHA DO TEMPO DA OBRA DE CELSO FURTADO

1984

de 1988 se exonerou e retornou às atividades acadêmicas no Brasil e no exterior. Encerrava-se aí sua vinculação com o executivo federal, sem que seus conhecimentos fossem plenamente assimilados. O primeiro Ato Institucional da ditadura, publicado três dias depois do golpe militar de 1964, cassara seus direitos políticos por dez anos. Quem perdeu com o exílio de Celso Furtado foi o Brasil e o Nordeste. Em 1965 aceitou um convite da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris — onde conquistou a inédita situação de primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa por decreto presidencial do general de Gaulle. Lá, permaneceu nos quadros da Sorbonne, pelos 20 anos seguintes de vigência do regime militar.

moniza o debate contra a corrente monetarista liderada por Roberto Campos — segundo a qual os países subdesenvolvidos deveriam continuar colhendo, de modo subordinado, os frutos do processo de industrialização indireto, enquanto conseqüência do desenvolvimento dos países centrais. Celso compreendeu que o processo histórico específico do Brasil engendra uma industrialização dependente dos países do centro capitalista e que, portanto, não seria superado sem uma enérgica intervenção estatal capaz de redirecionar o excedente. Mesmo que isso não significasse uma plena transformação do sistema produtivo, tal reorientação da política teria como referência um desenvolvimento mais avançado. Celso destacava o “problema do Brasil e do Nordeste” em sua natureza estrutural, a requerer reformas profundas “sempre consideradas marxistas no passado” — e considerando-se, ele próprio um reformista reconhecido. Para o sociólogo Chico de Oliveira e de acordo com escritor Antônio Cândido, foi o quarto demiurgo no panteão dos grandes “inventores” do Brasil, ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque. Nas poéticas palavras da economista Maria da Conceição Tavares, foi o grande pensador econômico do século XX, que tinha uma “enorme capacidade de levantar os olhos para o horizonte, mesmo o vendo se afastar como uma miragem no deserto”.

1985

Celso Furtado e o educar Anísio Teixeira, troca de idéias sobre o Brasil

Permaneceu por oito anos (de 1949 a 1957), inclusive como diretor da Divisão de Desenvolvimento, na Cepal, órgão das Nações Unidas que assume o lugar de única escola de pensamento econômico surgida no chamado Terceiro Mundo. Neste período, se inicia o debate sobre os aspectos teóricos do desenvolvimento, no qual orientou a metodologia e os objetivos da sua principal obra clássica. Nela, enquadra a evolução da economia brasileira no centro da realidade latino-americana, enfatizando conceitos vigentes na Cepal. Desponta aí, uma visão da economia internacional realçada por uma divisão do trabalho que se fundamenta nas relações de paradoxo, assimétricas, entre países centrais, industrializados, e países periféricos, agrícolas. Em 1954, o mito de que o subdesenvolvimento era uma questão de “baixa poupança” já caíra por terra no conceito do “círculo vicioso da pobreza”. Revelase que a retenção de uma parte do excedente exportado, poderia proporcionar a criação de uma indústria que gerasse emprego, salário e progresso técnico. Essa matriz de pensamento ganha a simpatia de Getúlio Vargas, que se opõe à pretensão dos EUA — voltada inclusive para a perpetuação do Brasil como exportador de matérias-primas — de extinguir a incômoda Cepal pelo estragos em seus interesses hegemonistas. Depois que assume a liderança do pensamento desenvolvimentista de orientação nacionalista, Celso hege-

“Raízes do Subdesenvolvimento”

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a

NORDESTE X CRISE ECONÔMICA

blindagem condicionada Os efeitos calamitosos da crise econômica mundial não atingiram o Nordeste com a mesma força com que chegaram a outras regiões do Brasil. Os pontos negativos que agem como anticorpos são a nossa menor participação nas operações de crédito/PIB do País, maior peso dos bancos públicos no total de empréstimos, baixo grau de abertura da economia e preponderância do Estado como empregador/investidor. Portanto, antes de soltarmos fogos de artifício, que fique bem claro: a região parece blindada contra intempéries financeiras muito mais por sua condição de subdesenvolvimento do que por um planejamento estratégico que a coloque em pé de igualdade para competir com outras regiões do país

economia do Nordeste está sendo menos afetada pela crise do que a economia do Brasil. Essa é a conclusão da versão preliminar do estudo Crise Financeira Global: Canais de Transmissão, Impactos Regionais e Perspectivas, divulgada em meados de abril deste ano, pelo Escritório Técnico de Estudos do Nordeste (EteneBNB). O órgão concluiu que as razões para essa “blindagem” estão mais ligadas aos aspectos de subdesenvolvimento da região do que numa suposta pujança da sua dinâmica de crescimento. O estudo do Banco do Nordeste identifica três canais de transmissão, ou seja, as resultantes da crise sobre a economia brasileira. O primeiro deles foi a redução global da oferta de crédito, principalmente privado, seguido da diminuição do comércio e da demanda mundial, geradora, por último, da deterioração das expecta-

tivas dos agentes econômicos – produtores e consumidores de forma geral. O primeiro ponto negativo a funcionar como anticorpo é o fato de que, no Nordeste, o percentual correspondente ao estoque total das operações de crédito do sistema financeiro em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) é inferior ao do país. Na região, a proporção operações de crédito/PIB é de é 15,8%, enquanto no Brasil ela chega a 41,3%. “Mesmo no nível do Brasil, isso é uma coisa atenuante. Em muitos países desenvolvidos há um volume muito maior de crédito privado, por que neles o crédito público é muito pequeno”, pontua o gerente do Ambiente de Estudos, Pesquisas e Avaliações (Aepa) do Etene, Biágio Mendes Júnior. Na sua análise, a baixa participação da região “não é boa em termos de desenvolvimento, mas nesse momento de crise passa a ser um

EFEITOS DA CRISE GLOBAL SOBRE AS ECONOMIAS NORDESTINA E BRASILEIRA (ANÁLISE DE ALGUNS INDICADORES) Variação em %

Períodos de comparação

Nordeste

Brasil

Produção industrial

Jan – 09/08

-10,7

-17,4

Pessoal ocupado na indústria

Jan – 09/08

-1,8

-2,5

Horas pagas na indústria

Jan – 09/08

-3,0

-3,6

Estimativa da produção de grãos

2009/2008

3,4

-7,3

Estimativa da área plantada de grãos

2009/2008

5,6

0,3

Estimativa produtividade de grãos

2009/2008

-2,1

-7,6

Volume de vendas do comércio varejista ampliado

Jan – 09/08

3,4

2,8

Exportações

Jan-Fev – 09/08

-26,3

-25,7

Importações

Jan-Fev – 09/08

-55,9

-25,4

Saldo nas operações de crédito

Dez/08 – Nov/08

-8,0

-11,6

Saldo nos depósitos bancários

Dez/08 – Nov/08

1,4

-17,2

Arrecadação de receitas federais IPI Imposto sobre a Renda COFINS CSLL

Jan-Fev – 09/08 Jan-Fev – 09/08 Jan-Fev – 09/08 Jan-Fev – 09/08 Jan-Fev – 09/08

-7,4 -11,9 0,8 -21,4 24,1

-15,2 -28,1 -8,4 -20,4 -5,0

Arrecadação de ICMS

Jan – 09/08

-7,1

-8,8

Saldo do emprego formal total

Jan – 09/08

246,8

-171,2

Indicadores

Elaboração: Equipe de Conjuntura do BNB/Etene. Fontes: IBGE, BACEN, TEM, MF e BNB Por Marcel Bezerra marcel@editoraassare.com.br

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SENSOR ECONÔMICO OTIMISMO EM 2009, MAS COM LIMITES Em um cenário de crise como o atual, a confiança do setor produtivo brasileiro pesa nas projeções quanto ao futuro da economia brasileira. O Sensor Econômico, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ouve mensalmente 115 entidades que representam mais de 80% do PIB entre as atividades da agropecuária, da indústria, do comércio e serviços, e de trabalhadores. Em sua avaliação, o estudo do Etene-BNB considerou a edição de março, com dados de fevereiro, para mostrar que, naquele mês, apenas o Nordeste se mostrava confiante em relação ao desempenho do país em 2009. Numa escala que vai do pessimismo (entre -100 e -60), passando pelo adverso (entre -60 e -20), pela apreensão (de -20 a +20), pela confiança (de +20 a +60) até chegar ao otimismo (de +60 a +100), a pesquisa revelou a região com o melhor índice (26,19), em oposição ao Sul (-4,23) e ao Sudeste (1,13). Já a edição de abril trouxe uma leve redução na apreensão do setor produtivo de forma geral, com o aumento do índice de 4,36 em fevereiro para 4,57 em março. Mas, as previsões mostram cautela quando o assunto é até onde essa blindagem do Nordeste vai resistir. Nesse sentido, o estudo sugere pontos para reflexão. Entre eles, estão os impactos sociais da crise global no Brasil e na região relativos à redução de emprego, da massa salarial e a diminuição da qualidade de vida. Também conta o aumento da inadimplência de pessoa física e jurídica e a queda na arrecadação devido à redução nas transferências governamentais – em parte dado o impacto da redução do IPI dos automóveis e eletrodomésticos. Quanto às perspectivas, os economistas são unânimes em transferir para o segundo semestre avaliações mais claras. “A partir do meio do ano as indústrias começam a produzir, ou seja, retoma a produção máxima para repor estoque no final do ano. E essa perspectiva de que vai haver compras no final do ano é que vai motivar as empresas a contratar mais gente, vai gerar renda e impostos. É com o que o governo está contando”, detalha Cavalcanti.

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ponto positivo”. Para sustentar um segundo ponto, o estudo aponta que, no Nordeste, os bancos públicos têm maior peso no total de investimentos. Ao todo, 75% do que é emprestado aqui provém de instituições financeiras estatais, tendência que se inverte em relação ao país, onde os bancos privados emprestam 63,2% do total de recursos. Isso num cenário em que os públicos vêm aumentando a oferta, ao contrário da estratégia da banca privada. Prova está na participação do Biágio Mendes Junior, Gerente crédito do BNB em reAmbiente Estudos Etene BNB lação aos demais bancos (inclusive os privados) no total do crédito da região Nordeste, que atingiu 36,3% (dados de dezembro/2008). “Num momento de crise como esse, é bom o Nordeste estar com essa dependência interna, mas no momento da competição normal, levamos muita desvantagem em termos internacionais e intrarregionais”, coloca o economista Frederico Cavalcanti, coordenador da Diretoria de Planejamento da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), ao avaliar um outro agente da blindagem da economia nordestina. Trata-se da preponderância do setor público na economia. Ela se materializa na participação relativa do Estado como empregador, investidor e executor dos programas de transferência de renda. Na prática, o estudo se refere ao Bolsa Família e às aposentadorias e pensões, pagas em grande parte com o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Esse dinheiro é responsável pelo aquecimento mensal das economias de pequenas, e muitas vezes pobres cidades do interior, fenômeno maior em escala regional do que nacional. O último fator que explica porque a crise não nos atingiu com tanta força é o baixo grau de abertura comercial da economia nordestina (14,2%) em comparação com o país (21,2%). Cavalcanti explica que isso se deve à maior formação comercial para o mercado interno, em contraponto à indústria de base, mais concentrada em São Paulo, por exemplo. “Não que o Nordeste não sofra. Temos mercados exportadores aqui como cana-de-açúcar, lagosta, frutas, que têm sofrido muito com a crise. No entanto, a maior parte da nossa renda advém da produção para demanda interna. E, nisso, temos certa estabilidade”, esclarece.

OBRAS ESTRUTURANTES SÃO SAÍDAS A LONGO PRAZO Entre as medidas chamadas anticíclicas para minimizar os efeitos da crise, o Governo Federal apostou na redução do Imposto sobre Produtos Industrializados ( IPI) para a indústria automotiva e de eletrodomésticos, no aumento do salário mínimo, na redução do Imposto de Renda, na ampliação do seguro desemprego e do Bolsa Família, no Plano Nacional de Habitação – Programa Minha Casa, Minha Vida – na redução da taxa básica de juros e no Fundo Garantidor de Crédito para pequenos e médios bancos. Todavia, na visão do coordenador da Diretoria de Planejamento da Sudene, Frederico Cavalcanti, a continuidade dos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é um dos caminhos que podem ajudar o Nordeste a começar a subverter sua condição de Complexo Portuário do Itaqui Itaqui, Ponta da Madeira e Alumar

SÃO LUÍS

Ramal de Itaqui

PA

Ferrovia Transnordestina

Porto do Pecém Itapipoca

FORTALEZA Porto do Mucuripe Baturité Nova Russas Limoeiro do Norte Macau Crateús Quixadá Sobral Ipu

Caxias

MA

Imperatriz

TERESINA

PI TO

Estreito Balsas

Uruçui Ribeiro Gonçalves

RN

CE

Patos do Piauí

Iguatu Crato

Patos

C. Grande

PB

Jacobina do Piauí

Canto do Buriti Colônia do Gurgueia S. João do Piauí

Parnamirim Juazeiro

BA

NATAL

Jucurutu

Salgueiro

PE

Itabaiana

Caruaru

RECIFE Porto de Suape

AL Arapiraca

SE

Porto de Cabedelo JOÃO PESSOA

Propriá

Porto de Jaraguá MACEIÓ

subdesenvolvimento econômico num prazo a partir de cinco anos. Ele coloca a Ferrovia Transnordestina, cujas obras devem começar nos próximos meses, como fundamental. “Essa obra vai criar infra-estrutura necessária. A questão do multimodal com o São Francisco, pois a revitalização vai permitir que você faça transporte pluvial. Juntar isso com a ferrovia e ligar os portos. Vai viabilizar empresas que antes não poderiam se instalar no Semi-árido”. Mesmo reconhecendo como é difícil prever o impacto exato da Transnordestina, Cavalcanti considera que a obra deverá dinamizar regiões, “quando se vê que os ramais ficam ainda mais baratos”. Ele diz que será possível interligar vários pólos econômicos dinâmicos à ferrovia principal, e viabilizar diversas produções antes impossíveis no semiárido. O coordenador cita ainda a duplicação da BR-101 entre Sergipe e Rio Grande do Norte, a refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, cujo estaleiro já começou a funcionar, a transposição do rio São Francisco e as refinarias e siderúrgica no Ceará e no Maranhão, além da reforma de portos e aeroportos como outros exemplos. “Se não atrasar nada, em torno de cinco, seis anos, o Nordeste começa a ter essa infraestrutura econômica pronta para ser utilizada por empresas que queiram se instalar no Nordeste”.

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NORDESTE X CRISE ECONÔMICA

ESTABILIDADE SEM AUTODESENVOLVIMENTO

TRANSFERÊNCIA CAI, INVESTIMENTO SE MANTÉM, ATIVIDADE INTERNA AINDA SALVA. E A SUDENE? ENTREVISTA COM FREDERICO CAVALCANTI, COORDENADOR DA DIRETORIA DE PLANEJAMENTO DA SUDENE NORDESTE VINTEUM  COMO O SENHOR VÊ O NORDESTE DIANTE DA CRISE? FREDERICO CAVALCANTI  A diferença do Brasil em relação à crise é que o Nordeste não é tão industrializado como São Paulo, e também não dependemos tanto do mercado exterior. Nós temos uma formação de comércio, de atividades internas que é muito grande, em termos da renda geral na região. De forma que essa crise, como afeta diretamente as economias externas, as mais ligadas ao comércio exterior, principalmente a indústria pesada que está mais instalada em São Paulo, sofre, primeiro, por conta de um impacto muito grande sobre os setores. Não é que o Nordeste não sofra. Nós

temos mercados exportadores aqui, como cana-de-açúcar, lagosta, frutas, que têm sofrido muito com a crise, e isso não quer dizer que não estão sendo afetados. No entanto, a maior parte da nossa renda advém da produção para demanda interna. E aí você tem uma certa estabilidade. No entanto, o Nordeste tem uma dependência grande das transferências governamentais, como o Bolsa Família e também o FPM. É provável que esse ano o Nordeste tenha uma redução, esperamos que não seja muito significativa, nesses repasses, já que o governo está arrecadando menos esse ano. Como esses repasses dependem de arrecadação, o Nordeste vai ter um certo impacto interno. Mas, de qualquer forma, a região pode ter uma compensação. Porque, por outro lado, os investimentos não

vão reduzir-se. Nem do PAC, nem de infra-estrutura, nem os investimentos do Banco do Nordeste (em torno de R$ 6 a 8 bilhões de investimento previsto), nem da Sudene, que deve ter em torno de R$ 2 bilhões. Então, esses valores vão compensar e muito essa redução dos repasses. NVU  O SENHOR ACHA ENTÃO QUE O ESTUDO DO ETENEBNB SEGUE A LINHA DO QUE É A REALIDADE MESMO DO NORDESTE. REFLETE BEM A SITUAÇÃO DA REGIÃO? FC  Eu tenho lido aqui que o emprego do Nordeste, ao contrário do que se pensava, não caiu. Estamos nos mesmos patamares, segundo os dados de fevereiro desse ano da Pnad, de desemprego que tínhamos ano passado. A situação não mudou. Se pode dizer que o emprego não cresceu. No entanto, não pioramos a situação em relação ao ano passado.

Sede da Sudene, em Recife (PE)

NVU  QUANTO ÀS POLÍTICAS DO GOVERNO, EM QUE SENTIDO ESSES RESULTADOS MOS TRAM O QUANTO O NORDESTE PRECISA CRES CER PARA SUPERAR ESSE PADRÃO DE SUBDE SENVOLVIMENTO? FC  Você precisa perceber: a presença do governo aqui é porque a região é muito pobre. E ela precisa da ajuda do Estado para poder sobreviver. Por um lado, isso é bom num momento de crise financeira externa, porque nós estamos protegidos por transferências públicas. Por outro lado, a Sudene percebe que a situação nordestina é muito ruim em termos de autodesenvolvimento, ou desenvolvimento sustentável. Se o Estado, por exemplo, hoje, cortasse esses repasses de verbas para cá, nós regrediríamos, teríamos uma queda brusca de renda e de produção, e o desemprego provavelmente cresceria muito. Num momento de crise como esse, é bom Nordeste estar com essa dependência interna, mas no momento que você está na competição normal, nós levamos muita desvantagem em termos internacionais e intrarregionais. NVU  O GOVERNO TEM PROJETOS ESTRUTU RANTES EM ANDAMENTO, A MAIORIA EM ES TÁGIO DE PERSPECTIVA, OU INICIANDO... FC  A Transnordestina já está aprovada, deve começar esse ano ainda. A transposição, apesar ainda de estar sendo feita a primeira parte da revitalização do rio, já se tem iniciadas as obras dos canais e adutoras. Da parte da refinaria Abreu Lima aqui em Pernambuco, o estaleiro, apesar de ainda estar sendo instalado, começa a funcionar. E tem outros investimentos grandes, como a duplicação da BR101, entre Sergipe e Rio Grande do Norte, que será concluída em breve, uma obra importante com gasto público, ou seja, diretamente dinheiro do Governo Federal. NVU  EM QUE MEDIDA ESSAS OBRAS PODEM IMPACTAR NO DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO NO LONGO PRAZO? FC  O Nordeste fala muito que a Transnordestina é fundamental para a Região, porque conseguimos cres-

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grandes lá para o Semi-árido porque não tem como tirar as mercadorias de lá, sem transporte, logística.

Se o Estado, por exemplo, hoje, cortasse esses repasses de verbas para cá, nós regrediríamos, teríamos uma queda brusca de renda e de produção, e o desemprego provavelmente cresceria muito Frederico Cavalcanti cer um pouco, mas no litoral. Esse problema do Semi-árido, da pobreza e da baixa renda, do emprego, ainda é muito grave. A Transnordestina vai criar infra-estrutura necessária. Além do multimodal com o São Francisco, que a revitalização vai permitir. Então, você junta isso com a ferrovia e liga os portos. Isso vai viabilizar empresas que antes não poderiam se instalar no Semi-árido. O impacto futuro disso é difícil prever, mas a Sudene sabe que vai dar um dinamismo muito grande. Quando você vê que os ramais ficam ainda mais baratos para ser feitos, você pode interligar vários pólos econômicos dinâmicos à ferrovia principal. Vai viabilizar diversas produções que antes eram impossíveis no semi-árido. Por isso, a grande concentração de empresas aqui no litoral, porque a infraestrutura toda necessária está aqui. Não tem como incluir as empresas

NVU  MAS ISSO É COISA PARA QUANTO TEMPO? FC  Os impactos no Nordeste devem começar a ser observados a partir da conclusão, no prazo em torno de cinco anos. A região teria dentro de cinco anos o estaleiro e a Transnordestina funcionando, a duplicação da BR-101 pronta, a reforma dos portos e aeroportos também. Mas até lá não se pode contar com isso. No futuro, se não atrasar nada, começaremos a ter essa infraestrutura econômica pronta para ser utilizada por empresas que queiram se instalar no Nordeste. NVU  AS AVALIAÇÕES SEMPRE APONTAM QUE O NORDESTE PRECISA SOBREPUJAR DE SAFIOS EM SETORES COMO SAÚDE, EDUCA ÇÃO, SANEAMENTO E ACESSO A ÁGUA. VOCÊ CONCORDA E ACREDITA EM EVOLUÇÃO NESSE SENTIDO DAS NECESSIDADES BÁSICAS? FC  Nós estamos falando de infraestrutura econômica. E essa parte de infra-estrutura social, é uma área que ainda carece muito da presença do Estado. Essa infra-estrutura que falei vai viabilizar o investimento privado na região. Um dinamismo para a renda e o emprego. Essas outras questões têm que ser analisadas sob o ponto de vista macro. Por exemplo, o problema da educação não é só no Semi-árido. É um problema nacional. A questão da Saúde também não se concentra só aqui. Lógico que tem algumas questões piores. O índice de analfabetismo é mais elevado, a mortalidade infantil é mais alta. Existe muito espaço para o Estado ocupar. NVU  O QUE SE PODE ESPERAR DE PLANEJA MENTO EM RELAÇÃO A ESSAS ÁREAS? FC  Nós estamos selecionando os projetos prioritários para a região, que vão compor nosso Plano de Desenvolvimento do Nordeste, que deve ser apresentado até dia 30 de junho. Dentro desses projetos, boa parte está ligada a saneamento. Essas

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obras devem impactar diretamente na mortalidade infantil. Obras de ampliação de educação, de edificações do ensino médio, de interiorização do ensino superior. Por outro lado, essa crise veio a atrapalhar. Mas, a idéia era ter um desenvolvimento maior na área de educação na região Nordeste, ou seja, o que se chamou de “PACinho” da educação. Só que esse ainda não deslanchou, existe muito espaço para trabalhar. Uma das grandes questões da Sudene é combater diretamente o analfabetismo, pois acreditamos que mesmo que a Sudene consiga botar empresas lá, elas não vão ter mão-de-obra qualificada. Estamos tendo problemas aqui em Pernambuco com o porto. Ou seja, você tem muitas empresas se instalando, e não tem mão-deobra. São ações mais macro, de Ministério da Educação e de secretarias estaduais de Educação. A Sudene está articulando via esse plano. Então, tentamos na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2010, a partir das prioridades que os Estados levantaram, incluir ações como prioridade para os ministérios dentro do PPA Federal, para que os recursos realmente cheguem, principalmente no Semi-árido. NVU  A SUDENE ESTÁ NA ORDEM DO DIA E ESTRUTURADA DE FATO? O QUE ELA FAZ? FC  Começamos a trabalhar em 2008, e a primeira coisa foi tentar estruturar o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste, para que a Sudene pudesse agir e também estruturar administrativamente a casa. Tocar o Plano de Desenvolvimento que a Sudene está concluindo agora. Esse plano vai dar as diretrizes da Sudene. O que está tramitando é a estrutura nova, que deveria ter sido aprovada para a Sudene, na qual temos mais uma diretoria dedicada a cuidar especificamente do desenvolvimento local. Mais focada no Semi-árido. E estamos sem poder fazer concurso público, etc. Ou seja, vai ser possível reestruturar a Sudene a partir dessa lei, que talvez saia até por Medida Provisória, devido à urgência. Na realidade, desde o ano passado, quando a Sudene foi criada, ela tinha a estrutura que está no Congresso, tramitando. Só que cortaram partes da lei, o que inviabilizou alguns projetos. Dessa forma, está novamente tramitando. NVU  É A LEI COMPLEMENTAR? FC  Tem os vetos a essa Lei Complementar que é uma coisa. E tem uma outra que é a estrutura da Sudene. Porque, como não foram aprovados os cargos, ela ficou inviabilizada de funcionar na forma como consta a Lei Complementar 125. E foi feita a lei para que possa reestruturar a parte administrativa, fazer concurso, reequipá-la de capital humano. NVU  E COM RELAÇÃO A ESSE FUNDO, UMA DAS COISAS QUE MAIS SE FALA DA SUDENE... FC  Fundo Regional de Desenvolvimento. Esse fundo vai englobar o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste atual, o FNE, e outros recursos que o governo também repassa para cá. O que a Sudene percebe é que, se isso for feito dessa forma, o Nordeste vai ficar com a mesma coisa. Vai parecer ser um dinheiro novo, mas vai ser o mesmo dinheiro com outro nome. Não queremos que o fundo saia desse jeito, a Sudene está querendo que o FNE seja protegido, ou seja, que ele fique fora, do jeito que é hoje, e se inclua os incentivos, outros fundos, dentro desse fundo maior. A idéia central é que o fundo seja mais uma fonte de recursos. Do jeito que estão querendo fazer, vai ficar a mesma fonte de recursos. Talvez até

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menos, porque entram outras regiões também na demanda. Perde-se a garantia anterior. Ficaria tudo num grande fundo, que poderia, de uma hora para outra, ser contingenciado. NVU  QUANDO VOCÊS ESPERAM RESOLVER ESSA QUESTÃO CRUCIAL DO ÓRGÃO? FC  Hoje, a Sudene tem o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste, o FDNE, que é da ordem de R$ 2 bilhões ao ano. Ele não tem nada a ver com o FNE, que é em torno de R$ 8 bilhões ao ano. Esse novo fundo vai incorporar o outro e também o FNE, que está sendo votado. Então, por exemplo, a Transnordestina, as usinas eólicas que financiamos, está tudo dentro do FDNE. Essa idéia de incorporar todas essas questões de apoios e incentivos regionais é que causa maior polêmica. É um fundo nacional de desenvolvimento regional. Para desenvolver as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, mas também entra a linha de fronteira, que é parte do Sul do país, etc. Ou seja, nós vamos incluir novas áreas que hoje não estão presentes na divisão do fundo. Por exemplo, o FNE só existe para o Norte e Nordeste. NVU  ATÉ O FIM DO ANO ISSO NÃO PODERIA SER RESOLVIDO? FC  Acho difícil, porque isso envolve reforma tributária e nesse ano ninguém quer falar sobre isso. É um ano de crise e a receita do governo está caindo, ele não quer falar em nada que mexa no estado que está atualmente. NVU  A SUDENE VIVE ENTÃO UMA ANGÚSTIA? FC  Na verdade, a Sudene está funcionando normalmente. Esse fundo vai mudar o perfil do que é hoje, mas nós temos recursos, continuamos financiando as obras, estamos com trabalho de desenvolvimento local, temos orçamento do FDNE que é uma parte, mas desses R$ 2 bilhões que estamos para liberar esse ano, das liberações do FDNE, 1,5% constituirá um fundo para ciência e tecnologia. É um outro fundo que estamos crian-

É preciso observar alguns setores foram fortemente prejudicados pela crise. Como a produção de cana de açúcar. Não é que a produção vai reduzir, o problema é que eles não estão recebendo as exportações que fizeram no ano passado do a partir da liberação de recursos desse FDNE. Temos os incentivos fiscais, que vão ser revistos. NVU  QUE É PARA RESOLVER ESSA GUERRA FISCAL ENTRE OS ESTADOS? FC  A idéia maior é evitar que as empresas consigam acessar os benefícios por Estado. Que seja por região. Mas, de qualquer forma, esse fundo não vai evitar isso, porque o ICMS, essas coisas, ficam a critério dos Estados, ainda. Eles têm autonomia para legislar, dar a isenção ou não. A alíquota de ICMS é definida pelo Senado, mas o estado tem autonomia para isentar ou não. NVU  O SENSOR ECONÔMICO DO IPEA MOS TROU A CONFIANÇA DO SETOR EMPRESARIAL BRASILEIRO DIANTE DA CRISE INTERNACIO NAL. DIZ QUE O SETOR PRODUTIVO MANTÉM A EXPECTATIVA APESAR DO AGRAVAMENTO. POR REGIÃO, ELE MOSTROU O NORDESTE

BEM CONFIANTE NO DESEMPENHO DA ECONOMIA... FC  É preciso observar: alguns setores foram fortemente prejudicados pela crise. Como a produção de cana-de-açúcar. Não é que a produção vai reduzir, o problema é que eles não estão recebendo as exportações que fizeram no ano passado. Isso vai criar uma crise aqui de desemprego agora, na safra, provavelmente, em setembro. Você tem a zona da mata toda que depende muito dessa renda que não vai ter, a não ser que haja uma reviravolta nos créditos das empresas. Ou seja, existem vários fatores, variáveis que não possibilitam uma previsão clara. Lógico que a perspectiva é favorável. Nós temos recursos, nosso dinheiro depende na maior parte de banco público, que continua emprestando, deve haver um crescimento muito grande dos empréstimos aqui tanto por parte do FNE como do FDNE, fora o Bndes que também está investindo muito aqui no Nordeste na atividade turística. Então, nós temos diversos investimentos grandes que estão tendo continuidade este ano. Não dependem só de recursos da iniciativa privada. Isso é muito bom para o Nordeste. NVU  COMO É A ARTICULAÇÃO DO CONSE LHO COM OS COMITÊS? FC  A Sudene está se organizando. Dentro do Conselho Deliberativo da Sudene foi criado o Comitê Regional das Instituições Financeiras Federais (Corife) e o Comitê Regional de Articulação dos Órgãos e Entidades Federais. Esses dois comitês conseguem juntar a parte financeira e econômica com a parte social, educação, saúde, para atuação no Nordeste. Essas articulações vão dar um resultado muito proveitoso. A questão desses desníveis sociais que é o que a Sudene deve atacar fortemente, via esses conselhos e articulações. Nós vamos tentar criar planos específicos para o Nordeste. Nós estamos caminhando bem rápido, por sinal, nessa parte de articulação com essas instituições.

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RECURSOS HÍDRICOS

Negar água é pecado NO SERTÃO Por Carolyne Barros reporter@editoraassare.com.br

DAS GRANDES OBRAS 22

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P

ara o Brasil, a tarefa é relativamente antiga do ponto de vista legal. Políticas públicas de gestão dos recursos hídricos já eram realidade antes mesmo da sanção da Lei das Águas, em 1997. O documento oficializa a necessidade de desenvolvimento das políticas de proteção aos recursos e outorga o domínio público da água, seu uso prioritário para o consumo humano e dessedentação de animais, em situações de escassez. Mas, só há pouco tempo o assunto parece ganhar maior atenção com os grandes investimentos em obras de infra-estrutura hídrica e a explosão do debate na esfera pública. Maio/2009

Foto: Agência Petrobras

Desde grandes projetos a iniciativas pontuais, a necessidade de democratizar o destino de uso dos recursos hídricos é quem dita o tom das polêmicas. Em foco, as populações difusas, excluídas do compartilhamento no espaço rural. A priorização da água como bem econômico limita o seu uso múltiplo e tradicional nas pequenas comunidades

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Na região do Semi-árido, composta por 1.133 municípios de nove Estados e norte de Minas Gerais, numa área de 969 mil km2, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) vai investir R$ 1,034 bilhão em 14 obras estruturantes até o final de 2010. O pacote de ações, com recursos alocados do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, prevê a construção de quatro açudes – Berizal (MG), Piauis (PI), Taquara e Figueiredo (CE) –, três adutoras – Adutora do Acauã (PB), Adutora do Oeste e Pajeú (PE) – e ampliação de perímetros irrigados nos Estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte. É com justiça e atraso histórico que para esse semiárido as atenções estão voltadas. Pesquisadores, ambientalistas e técnicos que atuam na gestão dos recursos hídricos têm à frente a missão de garantir o compartilhamento da água para toda a população, em um cenário de escassez geográfica perene. Instituições não-governamentais arregaçaram as mangas e também se engajaram nessa luta. Hoje, ações de edu-

A água como um valor coletivo e a instituição da gestão compartilhada do recurso, somadas a um conjunto de propostas, devem nos orientar no caminho a seguir Jémisson Santos, mestre em Geoquímica e Meio Ambiente pela Universidade Federal da Bahia

cação e conscientização ambiental seguem modificando a realidade dos atingidos pelas secas, ao passo que a gestão de obras e projetos hídricos reafirma a política universal da necessidade prioritária da água. Jémisson Santos, mestre em Geoquímica e Meio Ambiente pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), transformou seu objeto de pesquisa nas universidades em instrumento de debate sobre a realidade do Semi-árido brasileiro. “A água como um valor coletivo e a instituição da gestão compartilhada do recurso, somadas a um conjunto de propostas, devem nos orientar no caminho a seguir”, afirma o

pesquisador. Ele explica a necessidade legal para gerir o uso racional da água, seja pela utilização de agentes públicos, como privados. Na coordenação do Laboratório de Estudos da Dinâmica e Gestão do Ambiente Tropical (Geotrópicos), Jémisson acredita que para a manutenção e gestão dos recursos é preciso adequar novas perspectivas de trabalho. “O Brasil não possui legislação para disciplinar o uso da água. A aplicação do caráter indutor de uma lei como essa se constitui num aspecto importante para inibir comportamentos indesejáveis e incentivar os procedimentos corretos”, sugere. Essas questões interferem na vida das mais de 20 milhões de pessoas que vivem na região Nordeste. Nas comu-

nidades mais penalizadas pelas secas, principalmente os grupos difusos não integrados às águas, o caráter coletivo do recurso compreende a adoção de políticas públicas diferenciadas e adequadas a cada realidade. “A população rural difusa é um aspecto ainda complicado. O Governo Federal garantiu a segurança hídrica a regiões com grandes contingentes populacionais. Para grupos pequenos, o custo de investimento por unidade ainda é muito alto”, diz Antônio Félix Dominguez, da Agência Nacional de Águas (ANA). As alternativas são os projetos de convivência, frutos de estudos e experiências práticas de entidades que se articulam em defesa das pequenas quantidades.

A dimensão do Semi-árido Na região do Semiárido, composta por

1.133

municípios de nove Estados e norte de Minas Gerais, numa área de 969 mil km2, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) vai investir R$

1,034 bilhão em 14 obras

estruturantes até o final de 2010

Abundância e desperdício No ranking de recursos hídricos da Organização Mundial de Saúde

FÓRUM MUNDIAL, TURQUIA

Brasil e EUA: acesso à água não reconhecido como direito humano

O

tados” reforçam o empenho do governo com o projeto. E isso s últimos meses foram de rebuliço para as águas. Como é só parte da transposição, que tem orçamento estimado em lembra a música Águas de Março, de Tom Jobim, o fim do R$ 5,5 bilhões, divido em dois eixos: Leste e Norte. verão marcou também um momento de promessas. DuNo ranking de recursos hídricos da Organização Munrante o V Fórum Mundial da Água, realizado na Turquia, na dial de Saúde (OMS), o Brasil é o número um. Possui o rio de segunda quinzena de março, a delegação brasileira protamaior volume – Amazonas – e um dos principais aquíferos gonizou o debate da gestão e planejamento de recursos subterrâneos. Detém 12% da água doce do planeta. Mas, se hídricos. Uma esperança de vida para políticas públicas cenaqui os números são aliados, em se tratando de aproveitatradas na democratização do acesso ao uso da água mento da água, outros dados podem se apresentar de forEntre chefes de Estado, líderes locais, especialistas, pesquima lamentável. Calcula-se que cerca de 50% do que é colesadores e representantes de ONGs de 192 países, nossos parlatado é perdido por ineficiência nas operações. mentares estiveram por lá e, mesmo sem querer, renovaram o “Mesmo com 90% de nossa população tendo acesso à fôlego das discussões sobre a valorização da água no país. água encanada, apenas 50% dos esgotos gerados são coleNo mesmo período, em Cabrobó (PE), as obras de transtados. E destes, apenas metade é tratado”, alerta o coordeposição do rio São Francisco, que prevê a construção de nador geral das Assessorias da Agência Nacional de Águas canais, estações de bombeamento de água e pequenos re(ANA), Antônio Félix Dominguez. Ele foi um dos 150 brasileiservatórios, continuaram como previsto no projeto de Interos na Turquia a buscar formas de adaptação às mudanças gração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do climáticas, econômicas e aos problemas decorrentes da urNordeste Setentrional, do Governo Federal. banização. Também trocou expePara o secretário de Infra-Esriências sobre projetos que assetrutura Hídrica do Ministério da Fórum Mundial da Água, na Turquia guram água limpa a 900 milhões Integração Nacional, João Reis de pessoas no mundo, hoje sem o Santana Filho, em relatório apreacesso devidamente garantido. sentado no Encontro Regional Os dados do Fundo das Nações do Nordeste, também em marUnidas para a Infância (Unicef ) são ço, “o imenso maquinário preainda mais pungentes. Cerca de sente nas obras e os mais de R$ 4.200 crianças morrem por dia, em 3,2 bilhões com gastos já contra-

24

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(OMS), o Brasil é o número um. todo o mundo, devido a doenças relacionadas com a falta de água potável. Os 26 mil participantes do fórum até que fizeram barulho, mas o discurso universalizado muda de tom quando a abordagem chega perto de nossa realidade. Ao fim do V Fórum Mundial da Água, o Brasil se posicionou contra o reconhecimento da água como um direito humano. Dominguez é cauteloso ao comentar a questão. “Quem representa o Brasil no exterior é o Itamaraty, que assume uma postura muita crítica porque o nosso país é rico em (volume de) água. Só que a ANA ainda não tomou uma posição”, pondera. Em nota, a assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores explica: o posicionamento visa “evitar o risco de que a soberania do País sobre o uso do recurso seja afetada”. E a postura não foi não foi isolada. Grandes potências como os Estados Unidos e França, além do Egito e a própria Turquia também se opuseram a assinar o documento, cuja declaração final garantiria o reconhecimento jurídico de universalização do acesso à água. O fato gerou a especulação de que esses países “se negam a debater o assunto preocupados com a sobera-

nia sobre o controle territorial de suas águas”. A rachadura política causou mal-estar entre as delegações diplomáticas dos países participantes. De um lado, 20 países, entre Alemanha, Espanha, Holanda, Suíça e os nossos vizinhos Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela pressionaram a defesa do acesso como direito humano, enquanto o bloco dos opositores preferiu manter o discurso de que água deve ser definida como uma necessidade humana básica. Outro questionamento é a natureza privada do evento, que tem na sua organização o Conselho Mundial da Água (WWC, do inglês World Water Council), pertencente ao mesmo grupo que controla o Banco Mundial e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Pendengas à parte, após uma semana de debates, o documento oficial apresenta o comprometimento dos países em gerenciar os recursos hídricos de forma sustentável, impedindo a poluição dos recursos e tomando medidas para evitar inundações e escassez da água. A democratização do acesso e as condições sanitárias para todos parecem mesmo continuar delegados como grandes desafios às futuras gerações.

Possui o rio de maior volume – Amazonas – e um dos principais aqüíferos subterrâneos. Detém

12% da água doce do

planeta. Mas, se aqui os números são aliados, em se tratando de aproveitamento da água, outros dados podem se apresentar de forma

lamentável. Calcula-se que cerca de

50% do que é coletado é

perdido por ineficiência nas operações Mesmo com

90% de nossa

população tendo acesso à água encanada, apenas 50% dos esgotos gerados são coletados Cerca de

4.200 crianças

morrem por dia, em todo o mundo, devido a doenças relacionadas com a falta de água potável. Maio/2009

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Foto: Arquivo pessoal

CISTERNAS, TANQUES E BARRAGENS

Não adianta investir em grandes obras e não trabalhar habilidades e aptidões do povo. Na década de 1980, o governo implantou modelos de cisternas para famílias difusas. Não garantiram resultado. Não basta construir e entregar, é preciso entender a formação como a peça principal desse quebra-cabeça

Pesquisa dá resultado e se torna case de sucesso

O

Cisterna de placa

s projetos Um Millhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), coordenados pela Articulação do Semi-Árido (ASA), em parceria com o Governo Federal, mostram que pesquisar é a palavra de ordem

em se tratando de alternativas para a convivência com as condições geográficas desfavoráveis. A construção de cisternas de placa, que captam água da chuva em pequenas proporções, garante água potável

para o uso doméstico das famílias; enquanto as cisternas calçadão, as barragens subterrâneas e os tanques de pedra aproveitam a água da chuva para a produção de alimentos e a criação de pequenos animais. A eficácia das ações é resultado de muito estudo. A ANA traçou, no final de 2006, o diagnóstico da realidade de mais de 1.300 municípios no Semi-árido e organizou o Atlas Nordeste – abastecimento urbano de água, uma compilação de alternativas para demandas atuais e futuras, com orçamento das obras e foco no abastecimento humano. Por conseguinte, no desenvolvimento sustentável, em municípios com mais de 5.000 habitantes. “O atlas permite identificar qual a obra mais adequada em cada localidade, auxiliando as prefeituras com detalhamentos técnicos”, explica Dominguez. O estudo se projeta como case de sucesso e, aliado a outras pesquisas, garante ações com retorno efetivo até 2015.

Fundação Joaquim Nabuco e ONGs buscam alternativas

O

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gar, é preciso entender a formação como a peça principal desse quebra-cabeça”, explica Alessandro Nunes, assessor técnico da Cáritas Ceará, regional integrante da Rede Cáritas Internationalis. A entidade atua na defesa dos direitos humanos e desenvolvimento sustentável solidário em mais de 200

países. A entidade põe em prática os projetos coordenados pela ASA nos municípios do Semi-árido, que abrange ainda o Espírito Santo e o Maranhão. Com o objetivo de apresentar um panorama da região e suas características, bem como servir de canal de pesquisa, o Observatório do Semi-Árido

atua com visão diferenciada. A situação de seca e pobreza é colocada em contraposição às vivências da região, desmistificando o que é noticiado na mídia. As expressões culturais, os saberes do sertão e a proeza de encontrar vida digna em ambientes tão hostis são questões revalorizadas. Foto: Renato Lopes/Agência Minas

O Nordeste com a Transposição

SEMI-ÁRIDO

Semi-árido possui alguns dos piores indicadores sociais do país. A população é composta, prioritariamente, por crianças e jovens de até 17 anos, segundo o estudo Crianças e Adolescentes no Semi-Árido, realizado pelo Unicef ainda em 2003. Dos 13 milhões, 75% são pobres. Sem condições favoráveis a uma vida digna, 16 mil não completam nem primeiro ano de vida. E para quem escapa, o futuro reserva dificuldades já secularmente anunciadas como intransponíveis. Só que graças a grupos como o Núcleo de Estudos e Articulação Sobre o Semi-Árido (Nesa), outras expectativas começam a proliferar. Criado pela Fundação Joaquim Nabuco, o Nesa partilha projetos de

Alessandro Nunes, assessor técnico da Cáritas Ceará, regional integrante da Rede Cáritas Internationalis

desenvolvimento sustentável e inclusão social. João Suassuna, engenheiro agrônomo e pesquisador, revela que a problemática não é a falta de água e sim o mau gerenciamento dos recursos. “O Nordeste tem o maior volume de água represado em regiões semi-áridas do mundo, com cerca de 37 bilhões de m3. Nosso potencial foi construído com ações pontuais, com o empenho do Dnocs, com pesquisas assertivas. O que falta é o bom gerenciamento da água, em face a cada realidade específica. Nosso volume é suficiente para o abastecimento pleno da população”, aponta. O pesquisador defende os projetos de desenvolvimento e difusão das tecnologias de convivência, executadas por ONGs e associações. “Os movimentos

sociais colocam em prática ações públicas que oferecem alternativas eficazes”. A Articulação do Semi-Árido (ASA) é outro grupo que luta pelo desenvolvimento da região, desde 1999. Em formato de fórum de organizações da sociedade civil, reúne mais de 700 entidades. Os investimentos são repassados pelo Governo Federal, mas as ações são resultado de estudos e experiências vivenciadas pela população atingida, por meio dos saberes dos próprios agricultores. “Não adianta investir em grandes obras e não trabalhar habilidades e aptidões do povo. Na década de 1980, o governo implantou modelos de cisternas para famílias difusas. Não garantiram resultado. Não basta construir e entre-

ATLAS NORDESTE

Transposição do São Francisco: cara e injusta socialmente?

O

rol das grandes ações estratégicas para garantir o abastecimento do Semi-árido ainda vive turbulências. Em xeque, o projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, do Governo Federal. Há quem reivindique que o desvio do rio atenderá necessidades do agro e hidronegócio, preterindo a questão fundamental: o abastecimento humano universal. Especialistas afirmam que o caminho das águas desembocará em locais onde a oferta já é abundante. Maio/2009

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Foto: Mari Flos/ skyscrapercity

Artigo

Obras da Transposição do São Francisco

“Os dados apontam que é um projeto socialmente injusto. A própria população que vive à margem do rio não tem água, as comunidades ribeirinhas, para o onde o rio naturalmente se desloca, não são contempladas. Parece até uma piada, não é?”, reflete o mestre em Geoquímica e Meio Ambiente, Jémisson Santos. Para João Suassuna, engenheiro agronômico e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, a abrangência social do projeto não justifica o investimento “faraônico”. “O Atlas Nordeste garante um trabalho de abastecimento de cerca de 34 milhões de pessoas, com as águas já existentes na região, enquanto a transposição atende apenas 12 milhões de pessoas, com o dobro de recursos previstos para as obras do Atlas”, explica. Em meio ao debate, os números expressivos. Os investimentos com o projeto de Integração com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, iniciado em junho de 2007, é orçado em R$ 5,5 bilhões; enquanto as obras do Atlas Nordeste apontam soluções com um pouco mais da metade desse custo (R$ 3,6 bilhões). Na defesa, os argumentos são muitos: a transposição não compromete a saúde das águas, pois a vazão prevista é de apenas 1,4% de 1.850 m3/s, aquém do bombeamento das águas do São Francisco; os projetos de revitalização tem perspectivas de desenvolvimento econômico e social, a partir da gestão e monitoramento, proteção e uso sustentável dos recur-

sos naturais, saneamento ambiental e incentivo às economias sustentáveis. Sem se falar das muitas possibilidades de atração de investimentos. “O projeto original foi modificado. A vazão é relacionada ao volume do rio, em épocas de seca e épocas de cheia. O São Francisco tem condições de ‘fazer a transposição’ sem acometer seus usos”, justifica Antônio Félix Dominguez. O ponto unânime é que levar a água do rio para regiões atingidas pelas secas não é tarefa simples, nem tampouco representa a solução para os problemas de abastecimento de água. Muito mais do que a polêmica, o acesso à água se estende como um cenário de perspectivas e novas possibilidades, a partir do debate amplo e permanente.

O Atlas Nordeste garante um trabalho de abastecimento de cerca de 34 milhões de pessoas, com as águas já existentes na região, enquanto a transposição atende a apenas 12 milhões de pessoas, com o dobro de recursos previstos João Suassuna, engenheiro agronômico e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco

BALANÇO DAS ÁGUAS PREVISÃO DE OFERTA POR HABITANTE/ANO (m3) VAZÃO DA OFERTA DE ÁGUA EXISTENTE (m3/s)

UNICEF comemora 21 anos no Ceará Ana Márcia Diógenes

Coordenadora do Escritório do UNICEF para Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte

i

mplantar um escritório no Ceará foi uma decisão da instituição atendendo solicitação do então governador Tasso Jereissati. Lideranças da saúde estavam preocupadas em mobilizar parceiros em torno da redução da mortalidade infantil no estado. A instituição chegou para apoiar iniciativas do Governo Estadual, dos municípios e da sociedade civil, e sugerir novas estratégias e ações para potencializar resultados. O primeiro coordenador, em 1988, foi o educador catarinense Antenor Naspolini. À época, os indicadores de saúde remetiam para centenas de crianças morrendo por desnutrição infantil. Cinco anos depois, em 1993, os resultados levaram o Ceará a receber o Prêmio Internacional Maurice Pate por ter reduzido em 34% a mortalidade infantil em quatro anos. Pela primeira vez o Unicef havia concedido este prêmio ao Brasil, à América Latina, e vinha com um carimbo especial, remetendo o feito ao “povo e ao Estado do Ceará”. O segundo coordenador, o médico italiano Ennio Svirtone, que já era funcionário da instituição, apoiou uma grande estratégia gerada no Ceará: o Programa Agentes de Saúde. O Unicef trabalhou na metodologia, Sistema de Informação e no estudo que avaliou o programa no Ceará. A idéia dos agentes de saúde havia sido idealizada por Carlile Lavor, então secretário de Saúde do Ceará. Em 1987, quando o Estado passava por um período de seca, foram convocadas seis mil mulheres para conversar com outras mulheres sobre pré-natal, qualidade do parto, aleitamento materno, higiene com o bebê, vacinação, desenvolvimento infantil e aplicação do soro oral para evitar a desidratação. A conversa deu resultado: um número menor de crianças morreu. Isso fez com que, em 1988, fosse criado o Programa Agentes de Saúde. Em 1991 o Ministério da Saúde adotou o programa para todos os Estados nordestinos, disseminando-o posteriormente para todo o Brasil,

que hoje conta com mais de 240 mil agentes comunitários de saúde. A gestão do terceiro coordenador, o chileno naturalizado brasileiro Patrício Fuentes, foi marcada por um projeto de mobilização gerado no escritório do Ceará. Em 1998 a preocupação maior, dentre outras, era a situação da educação infantil no Brasil e em especial nos municípios do Ceará. Patrício, junto com a educadora Stela Naspolini, funcionária da instituição, buscou uma estratégia arrojada e ao mesmo tempo factível de ser implantada. Eles desenvolveram a metodologia junto com outros funcionários, parceiros e consultores; incorporaram temas como ensino fundamental, saúde e direitos e definiram que o reconhecimento deveria ser para municípios que colocassem em prática o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Estava nascendo o Projeto Selo Unicef Município Aprovado. Nascia para melhorar a vida das crianças cearenses, para que passasse a ser vista como cidadão de forma diferenciada através de creches e pré-escolas de qualidade, parques infantis em praças públicas, espaços lúdicos em postos de saúde e hospitais, brinquedotecas, espaço definido na gestão escolar, entre outros. Bastaram três edições do Selo Unicef para que o projeto encontrasse repercusão nacional e internacional. Enquanto vários países agendam visitas ao projeto, aqui no Brasil foi criado um movimento dos governadores de onze estados da região do Semi-árido que, junto com o Presidente da República, criaram o Pacto Nacional Um mundo para a criança e o adolescente do Semi-árido. Os números passaram a falar pelo selo. Em dezembro do ano passado foi concluída a quinta edição em nível local, e a segunda em nível nacional. Até agosto deste ano, o UNICEF estará lançando a nova edição. Comemorar esses 21 anos é pensar que o trabalho apenas começou. E, com tantos bons exemplos em que se espelhar, nos colocando cada vez mais a serviço da sociedade.

Fonte: Agência Nacional de Águas e João Suassuna/Fundação Joaquim Nabuco

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Caleidoscópio Arumã, fábrica da Crown instalada em Estância, Sergipe, representa o maior investimento privado da indústria de transformação dos últimos 10 anos no Estado. É a segunda planta industrial do grupo no Brasil. Vai produzir corpos de latas num investimento de R$ 120 milhões. A primeira começou a operar em 1996 em Cabreúva, distante 57 quilômetros da cidade de São Paulo. Hoje, produz 2,5 bilhões de unidades a cada ano. A meta da Arumã é de 1 bilhão de latas anuais, com o diferencial de que pode fazer os latões de 473 ml. A demanda só faz crescer. Dos 70 funcionários, 50 são técnicos em mecânica ou eletrônica. Em decorrência dessa necessidade específica, muitos colaboradores são de Aracaju. Com uso de tecnologia avançada, em parceria com a prefeitura de Estância e o Senai, a empresa vai desenvolver cursos que ajudem a formar mão de obra na região. Sergipe tem a melhor localização para o maior número de clientes com menor custo de frete, diante de outros estados nordestinos. Toda a produção será voltada para empresas no Nordeste, principalmente a Ambev, a Coca-Cola e a Schincariol. Na região, o consumo tem crescido acima da média brasileira devido aos programas sociais do Governo do presidente Lula. A previsão é ampliar a fábrica investindo mais R$ 10 milhões.

Foto: César de Oliveira/ASN3

Crown acerta na lata em Sergipe

Nordeste em números

Presidente do BNB comandará Alide

tem 42,5% da população e contribui

O presidente do BNB, Roberto Smith, é o novo presidente da Associação Latinoamericana de Instituições Financeiras para o Desenvolvimento (Alide), organismo internacional que representa mais de 80 bancos, oriundos de 23 países da América Latina e Caribe, além de Canadá, Alemanha, Espanha e China. A decisão foi tomada pelo conselho diretor da instituição, no último dia 30 de março. Roberto Smith, até então vice-presidente, assume em substituição a Luis Rebolledo, que deixou o cargo para se dedicar a outros compromissos no Peru. A 39ª Assembléia Geral da Alide será presidida por Smith nos próximos dias 19 e 20 maio, em Curaçao, nas Antilhas Holandesas. Ele permanece no cargo até maio de 2010, quando será realizada nova assembleia, desta vez na sede do Banco do Nordeste, em Fortaleza. “Isso principalmente em um momento no qual a economia mundial atravessa uma crise, tornando mais visível o papel dos bancos públicos voltados para o desenvolvimento e das intervenções importante dos bancos centrais para operar em termos contracíclicos em relação à crise que foi desencadeada", ressalta.

US$ 1,856.72; 18 terminais marítimos; 18 aeroportos; 405,3 mil km de rodovias; 8,2 mil km de ferrovias; 27,767.129 kw

1.5 milhão de km2. É a 3ª em área do país, com 18,3% do território. Tem 51,6 milhões de habitantes, o que equivale a 28% da população nacional. Possui o 2º maior colégio eleitoral (30.998.109 eleitores - IBGE/2002) do país. Abrange 9 Estados, o maior número do país. São eles: A região Nordeste do Brasil ocupa

Bons ventos para o Piauí

O cenário está propício para a abertura de negócios no Piauí. O Estado obteve no primeiro trimestre de 2009, o terceiro lugar nacional em aberturas de empresas. Um total de 1.306 novos negócios na praça. Em 2008, nesse mesmo período, o número foi de 965 empresas abertas. Portanto, um incremento de 33,3%. Mas, os números animadores não se limitam apenas à estréia de empreendimentos. Em relação ao número de empresas fechadas, houve uma queda de 8,46%. O governador Welington Dias (PT) assinala que o desempenho é mais que animador em tempos bicudos de crise econômica, além de reafirmar a blindagem da região contra a quebradeira externa.

Ceará

Maranhão

Rio Grande do Norte Piauí

Pernanbuco Sergipe

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Bahia

de capacidade instalada de energia.

6 é a média de anos de estudo

contra 8,5 no Sudeste; 8 no Sul e 7,6 no Brasil;

146% de crescimento no

consumo desde 2002, contra 126% de média nacional; 12,7% de emprego industrial em 2005 contra 10,7% em 1986; 14% de valor bruto da produção agropecuária do país; 45% da População Economicamente Ativa do campo; 50,9% da população ocupada trabalha no setor terciário em 2006, contra 25,7% em 1976; 8% do total das exportações brasileiras saem do Nordeste. Em 1960, a região participava com 20% (O porte da economia nordestina, no entanto, não dá razões para pessimismo. Colômbia, Venezuela, Chile e Peru, por exemplo, tem, cada uma, economias menores

5,7 milhões

Estadual de Fernando de Noronha e o

do que a do Nordeste);

Arquipélago de São Pedro e São Paulo),

de pessoas beneficiadas pelo BolsaFamília ou 51,8% das famílias em condições de extrema pobreza do País; R$ 13 bilhões anuais de investimento do Governo Federal em apoio à agricultura familiar, contra R$ 2,2 bilhões anuais em 2002; 40% da população vive no semi-árido, que contribui com apenas 20% do PIB regional; 4% e 7% das empresas apresentam capacidade de inovar; R$ 128 bilhões é a previsão de investimento em infra-estrutura

Rio Grande do Norte (incluindo a

Reserva Biológica Marinha do Atol das Rocas) e Sergipe

Alagoas

Estado e Desenvolvimento em pauta na Bahia Com o tema“Estado e Desenvolvimento: novo ciclo”, a Superintendência de Estudos Sociais e Econômicos do Estado e o Mestrado em Economia da Universidade Federal da Bahia realizam, nos dias 17 e 18 de setembro, em Salvador, o V Encontro de Economia Baiana. O evento vai abordar a economia local, regional e financiamento. Na última edição do evento foram apresentados 20 trabalhos produzidos por pesquisadores residentes na Bahia, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. Devem ser encaminhados à comissão científica do V EEB, que este ano é formada por membros da Universidade Católica do Salvador (UCSal), NPGA/UFBA, CME/UFBA, Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Funcape/Business School (ES). Para submeter os artigos e consultar o regulamento do Prêmio, acesse o site www.mesteco.ufba.br. Outras informações podem ser obtidas através do telefone (71) 3116-1780.

Paraíba

Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco (incluindo o Distrito

com 56,5% do PIB ); PIB per capita de

A bancada do Nordeste é formada por

151 deputados federais, o que representa 29,43% das cadeiras da Câmara, além dos 27 senadores, ocupando 33,3% das vagas.

E mais: 1.793 municípios; 3.300 km de litoral; PIB de US$ 93,6 milhões, o equivalente 13,1% do país (O Sul tem 14,5% da população e participa com 16,6% do PIB. O Sudeste

do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Maio/2009

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Foto: Arquivo pessoal

Entrevista com

FREDERICO Cangaço

Sem lei nem rei, “Guerreiros do Sol” mais universais e irredentos do que nunca Um desdobramento da reação nativa de corrente minoritária ao longo de cinco séculos. Um resultado da luta renitente contra os valores do colonizador, sua ideologia mercantilista e a escravidão da “raça castanha”. Nessa entrevista, é assim que o fenômeno do cangaço começa a ser descrito e analisado, num resgate da profunda e brilhante leitura lançada em 1985 pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello. Sucesso de edição esgotada há anos e raridade de alto preço nos sebos, a obra foi relançada em 2004. Aqui, o autor, entre outras abordagens, fundamenta como o cangaço, “no mais fundo da carne, foi uma tradição brasileira de resistência popular armada, contínua e metarracial” 32

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Pernambucano de Mello

Por Marcel Bezerra marcel@editoraassare.com.br Nordeste VinteUm – Nordeste Vinte Um - Há similaridades do cangaço com outros fenômenos em outras partes do mundo, especialmente nos moldes da amplitude alcançada pela figura de Lampião? Frederico Pernambucano de Mello – Em essência, o fenômeno do cangaço é universal, correspondendo àquele período cinzento da transição privado-público na história dos países, de modo particular nos países de colonização tardia, nos quais se mostrou mais renitente. Mas, houve em todos os continentes, no instante em que o braço da administração da justiça criminal pública, começando timidamente a chamar a si os conflitos sociais, vai lançando na marginalidade as práticas e os agentes da violência privada, no afã de monopolizar a coerção. Saindo do abstrato, diríamos estar tratando, com referência ao Nordeste do Brasil, daquele momento dramático em que a figura histó-

rica do valentão, instância privada de resolução de conflitos na ausência da justiça estatal, vai cedendo passo lentamente ao capitão-mor e ao juiz de paz, depois ao delegado, ao subdelegado, ao inspetor de quarteirão. E se transformando, sem o sentir, de justiceiro em criminoso. De figura socialmente exemplar a perseguido da justiça pública em ascensão. Não devemos deixar de assinalar que o caráter universal do cangaço, em sua essência, foi proclamado por Câmara Cascudo há muitos anos. Quanto à amplitude de espaço, de tempo, de engajamento de massa e de visibilidade pública alcançada por Lampião e seu bando, não há rival nos tempos modernos, sobretudo no Ocidente. NVU – Qual o contexto histórico do Nordeste no período présurgimento do cangaço? FPM – Diferentemente do que pensam muitos autores ilus-

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Foto: Benjamin Abrahão/ ABA Film

tres, que costumam datar do meado do século XIX o início da existência do cangaço no sertão — como se fosse um cometa surgido do infinito — o fenômeno é velho de cinco séculos. E não tem no sertão o seu berço. Há até quem crave um ano, tirado não se sabe de onde: 1870. O que o meado do Novecentos fez despontar, a partir do aumento da população do interior, foi a percepção daquela vida de aventuras pela opinião pública do litoral, na ocasião em que esta começava a cogitar sobre a presença de um lugar longínquo a que se dava o nome de sertão, onde, além da violência, havia a seca, como fenômeno natural recorrente, e uma poesia popular, cantada e escrita, que aliava à arte o sentido precioso da documentação dos fatos. Em Pernambuco, o donatário da Capitania, Duarte Coelho, queixava-se à Coroa das correrias de bandos de salteadores que “anarquizavam” os primórdios do empreendimento litorâneo do açúcar, nossa primeira economia não apenas de exportação, mas de transformação, ainda no meado do século XVI. Esse é o momento em que surge e vai-se afirmando, contra as exatidões da ideologia mercantilista brandida a ferro e fogo pelo colonizador europeu — e contra, sobretudo, a escravização das raças castanhas que implicava — o mito primordial de que

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seria possível viver-se, nesta parte do Novo Mundo, sem lei nem rei e alcançar a felicidade. NVU – E em que aspectos e proporção o mito se estabeleceu nesse Novo Mundo? FPM – Esse mito inspirou e deu vida a uma corrente minoritária de nativos e de adventícios que não se dobraria aos valores coloniais e se manteria irredenta, exprimindo-se através da atitude daqueles grupos sociais que não aceitaram fraternizar com os valores europeus de civilização. Nada de acumulação, nada de propriedade privada, nada do primado dos metais nobres, do tempo linear, da pontualidade, do comércio, da subjugação religiosa. Nada, enfim, daqueles cabrestos que recheavam o Mercantilismo pré-capitalista como ideologia dominante no Mundo Ocidental nos séculos XV e XVI, contrabandeados para a Terra dos Papagaios pelas concepções culturais portuguesas do Quinhentismo e do Seiscentismo. A essa gama de novidades, reagiam por trás de individualismo elegante, expresso na frase que permeia boa parte dos documentos reinóis do século do Descobrimento, escrita por quem observava os modos dos habitantes da terra recém-devassada: eles vivem sem lei nem rei e são felizes. Foi assim que o europeu que aqui aportava,

caráter intermitente e uma identidade étnica definida pela predominância do contingente racial que recheava suas fileiras, o cangaço mostrou-se contínuo no tempo e absolutamente metarracial. Você podia ter sucesso no bando, ascendendo à chefia, fosse branco alourado, como Corisco; negro, como Zé Baiano; índio, como Gato; ou mestiço dos mais diferentes matizes, como o caboclo Lampião, o mulato Sabino, o sarará Luiz Pedro, o cafuzo Jararaca, o cabo-verde Zé Sereno. Sem deixar de ser uma expressão de banditismo — porque sempre houve lei capaz de respaldar esse enquadramento jurídico de epiderme — o cangaço, no mais fundo da carne, foi uma tradição brasileira de resistência popular armada, contínua e metarracial. NVU – Por que o cangaço é sempre ligado ao sertão? FPM – O cangaço nasce no litoral e vai sendo enxotado para o sertão pelo sucesso do empreendimento econômico na zona costeira. Houve cangaço no verde e no cinzento, como mostramos em nosso livro Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil (São Paulo, A Girafa Editora, 2004, 2ª ed.). Com pontos em comum e pontos discrepantes, naturalmente. O cangaço no verde foi mais sedentário que o do sertão, por exemplo. De maneira que não se trata de fenômeno sertanejo na origem, como vimos não ser uma singularidade brasileira. A colonização no semiárido inicia-se na segunda metade do século XVII, com as doações de terra pela Coroa portuguesa, e não se faz sem muito sangue. O choque entre o branco invasor e o índio resistente foi tremendo. NVU – Que tipo de gente protagonizava esse conflito? FPM – Entre os primeiros, ao lado da gente áspera vinda da vila de São Paulo, os chamados bandeirantes, e dos não menos rijos vaqueiros das casas senhoriais da Torre e da Ponte, partidos de Salvador, encontravam-se,

Maria Bonita e Lampião em 1936

por exemplo, os soldados da guerra de quase trinta anos movida contra os neerlandeses a partir de Pernambuco, um exército luso-brasileiro de cerca de três mil homens, adestrado no emprego das armas brancas e de fogo, desempregado pela capitulação de 1654. Gente toda ela violenta, afeiçoada ao sangue. Ao aço frio. À pólvora. Pelo lado do índio, vale lembrar que o choque se dá, não com o tupi litorâneo, conhecido pela cordialidade, mas com as várias nações do ramo tapuia, conhecido pela ferocidade. Ao assentamento dos currais de gado no sertão, corresponde um banho de sangue. E à dizimação de um gentio que estava na escala mais baixa das formulações doutrinárias do colonizador, à frente o religioso José de Acosta, um erudito da Companhia de Jesus. Até o padre Antônio Vieira, de sua experiência de penetração do Brasil, asseverava a impossibilidade da catequese de canibais hostis, armados de flechas envenenadas, invisíveis na vegetação cúmplice. Será ali que o cangaço irá apropriar e desenvolver essa tradição de guerra brotada da intuição do caçador, recebendo o estímulo de um relevo propenso à ocultação e de uma vegetação toda feita de espinhos, como que trançada a capricho para barrar a presença do litorâneo. Paga com o nome pelo

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Fotos: Benjamin Abrahão/ ABA Film,

Fotograma do filme “Lampião Rei do Cangaço”. 1936

atolando o pé na carne opulenta de índias receptivas – segundo salientou Gilberto Freyre em sua linguagem plástica – retratou o nativo que estava encontrando. E quedou siderado no instante seguinte, acusando o impacto que tanta liberdade produzia sobre a alma de quem velejava vergado ao cambão de braúna da Coroa portuguesa e do Papado de Roma. Um Papado de fogueira acesa, com a chama da Santa Inquisição. E uma Coroa absolutista, a despachar para as masmorras do Limoeiro a quantos tropeçassem nas cavilações penais do Livro Quinto das Ordenações Manuelinas. NVU – O que foi o cangaço, finalmente? FPM – Em seu sentido profundo, ele é a expressão de irredentismo que falta agregar à historiografia brasileira dos cinco séculos de colonização. Uma historiografia de longa data, sensível às recorrências irmãs desse irredentismo de chapéu de couro, representadas pela intermitência plural do levante indígena, de que é exemplo maior a chamada Guerra dos Bárbaros; do quilombo predominantemente negro, à frente Palmares, e da revolta social branca ou mestiça, encabeçada por Canudos. Não é o cangaço, na visão moderna que temos proposto, fenômeno surgido do nada, solto no tempo e no espaço, como se pensou até ontem, mas parte – e parte tão ilustre quanto as demais – do desvio de fogo que correu parelhas com o leito central de nossa história, o de expressão majoritária, a impor, este último, os valores reinóis, no instante em que o índio e o negro baixaram finalmente a cabeça à subjugação pelo branco europeu. Não todos. Os que reagiram, agremiados na corrente minoritária, deram vida a um irredentismo militante que é a raiz comum de todas as insurgências vistas acima, sublimado, com o passar do tempo, numa tradição brasileira. Uma tradição guerreira de resistência popular. Deve ser notado que, enquanto o levante indígena, o quilombo e a revolta social possuíam

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Fotos: Benjamin Abrahão/ ABA Film

Corisco, Dadá e seu bando. 1936

qual o fenômeno ficaria imortalizado: cangaço. Que é voz sertaneja, como proclamava o cearense Juvenal Galeno já em 1871. Por tudo isso, não é de estranhar que o cangaço tenha-se desenvolvido no sertão de maneira extraordinária, a ponto de evoluir de endêmico a epidêmico em alguns períodos. É assim que a caatinga passa a ser o palco por excelência das correrias dos capitães chefes de bando. NVU – Em que patamar a “distribuição gratuita de marxismo simplificado” pelo meio acadêmico embotou a consciência sobre o fenômeno do cangaço? FPM – O marxismo prêt-à-porter desenvolvido no Brasil permitiu que muita gente deitasse falação sobre o cangaço, sobretudo no meio acadêmico do Sudeste, sem nem mesmo sentir a necessidade de conhecer o Brasil setentrional e o sertão. Ou de sujar-se na poeira de arquivos. Para armar o esquema da luta de classes, que tudo explicava em seu suficientismo orgulhoso, bastava caracterizarse o coronel como opressor e o cangaceiro como oprimido. Pronto. Para que mais? Para que queimar as alpercatas em Quixeramobim ou nas Lavras da Mangabeira? Acontece que Lampião – e vamos pegar logo o exemplo mais emblemático – era o queridinho dos coronéis de barranco, gostando de estar entre estes e combatendo apenas aqueles que se erguessem contra a sua violência meticulosamente organizada. Empresarialmente organizada. Essa era a regra, não sendo raro que as duas figuras se associassem nas empreitadas rentáveis da rapina. E até na agiotagem posterior. Foi assim com os chefes de grupo em geral. Mas isso desmontava a barraca marxista e não podia ser aceito. Historiadores ilustres, como José Honório Rodrigues, no Rio de Janeiro, e menos ilustres, como a paulista Cristina Mata Machado, embarcaram nessa canoa furada. E brilharam por muito tempo Antes de padronizar a maioria do armamento no potente e preciso Mauser 1908, os cangaceiros usavam uma verdadeira miscelânea de armas

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em livros e na sala de aula. Até que a voga marxista começasse a ser varrida lentamente, a partir dos anos 70 do século passado, quando a história volta a se assumir como ciência ideográfica, ocupada com o específico e o nãorepetível, e dá as costas para as constantes nomotéticas geradoras de estruturas generalizantes, com o perdão do leitor pelos nomes pesados. NVU – Então, como “desembotar” essa consciência do conflito de viés puramente ideológico? FPM – Na história do Nordeste, a dinâmica de conflito por excelência residiu sempre no divórcio litoral-sertão. Aí é que estão as placas tectônicas dos vulcões sociais que nos sacudiram de modo recorrente, fruto da falha no desdobramento do processo colonial. Da decadência precoce da colonização sertaneja, geradora do isolamento da caatinga e do que já chamamos em livro de mumificação dos costumes sertanejos, vis-à-vis da renovação que se produzia no litoral, aberto à via marítima. Isso vem até os nossos dias, ultrapassando o paroxismo de Canudos, na Bahia de 1897, e invadindo o século XX. É ver o Caldeirão, em 1936, no sul do Ceará, ou a também teocracia do Pau-de-Colher, de 1938, novamente na Bahia. O litorâneo não se via no sertanejo e vice-versa. Consideravam-se estrangeiros, quando postos um em face do outro, como se viu, dolorosamente, em Canudos. Mostramos isso, detidamente, em nosso livro A guerra total de Canudos (São Paulo, A Girafa Editora, 2007, 2ª ed.) No sertão, coronéis e cangaceiros entendiam-se a seu modo. E como se entendiam... NVU – O senhor identifica diferentes tipos de cangaço. Quais as características mais marcantes de cada um? FPM – No Guerreiros do sol, mostramos que houve grupos que fizeram do cangaço predominan01 temente um meio de vida, como no caso de Lampião ou de Antônio Silvino. E outros, que dele se valeram como instrumento de vingança, geralmente num contexto de 02 luta entre famílias, como se deu com Sinhô Pereira e Luiz Padre, de um lado, e Sindário, do outro, na guerra privada en-

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04 Lenço de seda – usados nas cores vermelha, verde ou no padrão xadrez. As pontas eram presas com anéis e moedas de valor

01 Cinta – de couro, com enfeites sertanejos próprias para carregar os cantis

02 Cantis – enfeitados, usados um de cada lado do corpo. Em um era guardado açúcar e no outro cachaça ou água 03 Fuzil Mauser, modelo 1908. Bandoleira enfeitada com moedas de prata e ilhoses brancos

tre Pereiras e Carvalhos. Ou com Jesuíno Brilhante, na guerra contra a família Limão, encabeçada por um cangaceiro não menos valente: Honorato Limão. Outros, ainda, o transformaram em asilo nômade de criminosos jurados de morte, como Ângelo Roque, o Labareda. A cada propósito correspondendo um estilo de vida, uma contenção de gestos e até uma dimensão de espaço e de tempo. Os primeiros mostrando-se mais longevos e de abrangência geográfica mais espalhada, chegando a atingir quatro Estados, como aconteceu com o bando de Lampião, e varando os vinte anos de sobrevivência. Uma tradição presta-se a muitos propósitos, não é? NVU – Por que Lampião acabou sendo a figura de maior relevo nesses domínios? FPM – O cangaço de Lampião – reinado derradeiro numa sucessão de “realezas” que caracteriza o desdobramento do fenômeno ao longo de séculos – marchando para se confundir com o próprio conceito, não foi senão o canto de cisne dessa vertente contínua, minoritária e metarracial em nossa história, sem que se esteja a amesquinhar o diferencial de volume, organização e requintes estratégico e tático presente nos mais de vinte anos de império daquele que seria chamado pela imprensa, ainda em vida, de Rei do Cangaço, Tigre do Sertão e Terror do Nordeste, à base do talento pessoal, do raciocínio fulgurante e do engajamento de massa que logrou atingir. Há ocasos portentosos. Lampião nos põe diante de um. NVU – Qual a influência de Gilberto Freyre em sua obra? FPM – Muito grande. Integramos sua equipe de trabalho por quinze anos, cumprindo aquilo que o professor Nelson Aguilar, de São Paulo, caracterizou um dia como o mais longo doutorado já feito por um cristão. Estava certo. Trabalhar com Gilberto era aprender a cada minuto uma lição. Graças a ele, demo-nos conta de que a história deve ir muito além do fato saliente na política e do registro de fatos objetivos. Que deve alongar-se num romance verdadeiro, incorporando o dia-a-dia, o ordinário, o cotidiano, o aparentemente banal, o universo ínti-

05 Cartucheiras – de couro, abrigavam 121 projéteis de fuzil

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06 Perneira – de couro enfeitada com ilhoses e 06

presa por pequenas fivelas

Rufino e os membros da volante do Estado da Bahia sob seu comando. Benjamin Abrahão, 1936.

mo. Nisso, ele se antecipou a Braudel, a Lefèbvre, a Bartes, a Bastide, a Abelès, a Ginzburg. A Escola dos Anais, consagrada na França de 1930, proclamou o pioneirismo desse ilustre brasileiro do Nordeste. Ele antecipou o ganho que a história recebeu modernamente ao incorporar, com humildade digna de louvor, umas tantas lições da antropologia. Boas lições. NVU – Onde evidenciamos tal influência em seu trabalho? FPM – Está no perfil que traçamos de Lampião, revelador de que o guerreiro insuperável, o homem de violência indiscutível, qualidades conhecidas no passado, era, ao mesmo tempo, um costureiro exímio, em pano e em couro, além de bordador caprichoso. Um sujeito preocupado surpreendentemente com questões de representação simbólica no traje e no equipamento de seu grupo, e com a alimentação dos mídia sobre os passos de seu bando. Que apreciava, incorporando o requinte de coronéis fidalgos com os quais privou, à frente Hercílio de Brito, de Propriá, Sergipe, o perfume francês e o uísque de Escócia. Que possuía cartões de visita e postal com a própria foto no anverso já em 1936, confeccionados na Aba-Film, de Fortaleza, para evitar falsificações em sua correspondência surpreendentemente ativa. Quando mostramos isso em livro, nos anos 80 do século passado, quase que o mundo desaba sobre nossa cabeça. A menor acusação era de que estávamos efeminando o Rei do Cangaço. Hoje, não há quem ignore ou conteste que Lampião possuía dores artísticas. Ao contrário. Há livros recentes, escritos aqui e lá fora, para desenvolver essas revelações, o que nos envaidece. É o salário moral de quem pesquisa. De quem come poeira e arranha os cotovelos sobre as fontes de primeira mão. O espaço de rebeldia do assistente ficou por conta da escolha do sertão como tema de estudos. Gilberto Freyre não gostava do sertão. Algumas vezes nos abordou com a ciumeira: “Você anda conversando muito com Ariano Suassuna!” Mas não se privou de reconhecer a seriedade dos estudos que empreendíamos, prefaciando nosso livro de estréia e cravando na imprensa estar diante de um “mestre de mestres em assuntos de cangaço”. Está lá, no Diário de Pernambuco de 28 de fevereiro de 1985. É muito bom para o aluno constatar que não decepcionou o professor. Maio/2009

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História

INSTITUTO CHICO ALBUQUERQUE

RELÍQUIAS ICONOGRÁFICAS DO CANGAÇO EM FORTALEZA QUEM É ESSE PERNAMBUCANO EMBRENHADO NUM “BRASIL PROFUNDO”?

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Benjamin Abrahão aperta a mão de Lampião cercado por seus cangaceiros.1936 Foto: Benjamin Abrahão/ ABA Film

Frederico Pernambucano de Mello é pesquisador de história social da Fundação Joaquim Nabuco, Recife, cidade em que nasceu no ano de 1947. Tem formação ainda em Direito e se aposentou como Procurador Federal. É membro da Academia Pernambucana de Letras, onde ocupa a cadeira 36 desde o ano de 1988. Na fundação, integrou a equipe do sociólogo Gilberto Freyre, de 1972 a 1987, período em que se especializou, sob a orientação deste, no estudo da História Social do Nordeste do Brasil, especialmente em seus aspectos de conflito. Pela originalidade dos estudos, volume da obra que produziu e por se dedicar a aspectos históricos tidos como ásperos e de pesquisa difícil ou penosa, tem sido considerado, sobretudo no meio acadêmico paulista, o "historiador do Brasil profundo". Na especialidade, publicou ainda A tragédia dos blindados (1991); Quem foi Lampião (1993); A Guerra total de Canudos (1997) e Delmiro Gouveia (1998). Tem, no prelo, o livro Estrelas de couro: a estética do cangaço, resultado de estudo profundo a que se dedicou desde o ano de 1997. O maior sucesso foi mesmo Guerreiros do Sol, o mais profundo e completo estudo sobre o fenômeno do cangaço no Nordeste. Sua pesquisa o torna o maior especialista no assunto, reconhecido tanto aqui quanto no exterior. Ariano Suassuna define assim a obra do autor: “Sem sombra de dúvida, a teoria do escudo ético de Frederico Pernambucano foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu convincente. Foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros”.

Durante 20 anos, Lampião e seu bando percorreram o sertão nordestino a perpetrar feitos que fizeram do capitão Virgulino um mito. Mitificação essa construída a partir do sertão interiorano ao litoral mais desenvolvido, para dele se espraiar a todo o Brasil de ainda precários meios e vias de comunicação. Durante muito tempo, a saga do cangaço foi noticiada através dos cantadores de feira, dos emboladores, dos cegos rabequeiros e da literatura de cordel. Para quem não tinha chegado a ver um cangaceiro de perto, Lampião poderia passar à história como um fora da lei que talvez nem tivesse existido além da xilogravura ou do desenho. Não fosse a visão de um mascate libanês cuja ousadia foi fundamental para a compreensão atual do fenômeno do cangaço. Benjamim Abrahão foi o responsável pela memória iconográfica do bando de Lampião. Trata-se de uma verdadeira façanha a captura exclusiva de momentos da intimidade cotidiana do cangaceiro e seu grupo, que virou tema do longa-metragem brasileiro “O Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira. Todo esse material está disponível hoje em Fortaleza (CE), sob os cuidados do Instituto Cultural Chico Albuquerque – pioneiro da fotografia publicitária no Brasil. A entidade é vinculada à rede de lojas especializada em materiais fotográficos Aba Film, e detém os direitos de uso do trabalho do fotógrafo. O acervo é composto por uma série de 99 fotos e um vídeo de 11 minutos, além de outras 400 fotos coletadas por Ricardo Albuquerque sobre o cangaço, a maioria de fotógrafos amadores. “Essas outras fotos são anteriores às de Benjamim. Existem outras de Lampião com vestimentas diferentes da habitual. Bem pobres em relação às usadas no final do cangaço”, revela Ricardo, presidente do instituto e filho de Chico Albuquerque. Ele diz que foi Dadá, mulher do cangaceiro Corisco, quem motivou os cangaceiros a usarem roupas enfeitadas. A história das fotos e imagens começa com a chegada de Benjamim Abrahão a Juazeiro do Norte. O viajante acabou conquistando a confiança de Padre Cícero e virou seu secretário. Com a morte do padre, decidiu renovar contato que já possuía com Lampião – o cangaceiro era devoto de Padre Cícero – e propôs a Ademar Bezerra Albuquerque, avô de Ricardo Albuquerque e fundador da Aba Film, registrar a rotina do grupo. Proposta aceita, o“mascate-fotógrafo”foi ao sertão, e após um mês de convívio com o bando e todo o equipamento para cobertura, verificou que o filme havia velado. Disposto a cumprir seu intento, Benjamim recebeu dicas de Ademar, voltou outras duas vezes e conseguiu os registros. O ano era 1937. Em 1938, Benjamim foi assassinado em Recife (PE). Segundo Ricardo Albuquerque, depois do episódio, Ademar tentou exibir o filme no Cine Moderno, em Fortaleza, ainda em 1938. Mas o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Governo Getúlio Vargas censurou e confiscou a película ao assistir uma prévia. Sorte que Ademar fizera uma cópia do material. As fotografias foram reproduzidas por diversos veículos como o jornal O Povo, de Fortaleza, e até pelo O Globo. O filme do grupo de Lampião foi exibido pela primeira vez em 1950 e serviu para outra película, “Memória do Cangaço”. Uma sala na sede da Aba Film (Rua Costa Barros, 915, 9º andar, Centro), abriga hoje todo o material em disponibilidade para publicações. As fotos que registram a história de Lampião e seu bando foram restauradas em 2003, quando Ricardo voltou de São Paulo para morar em Fortaleza. O vídeo teve sequências compiladas e foi recuperado graças a projeto bancado pela Petrobras. O direito autoral pertence à família Albuquerque, e o de imagem à família de Lampião. “É uma parceria. Há um contrato entre as partes, inclusive a família do Benjamim. E eu tenho uma procuração para cuidar disso tudo”, informa Ricardo Albuquerque.

Helder C Câmara DDom H

João XXIII me parece um pássaro numa gaiola de ouro... Dia virá em que o Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano. ”

100 anos do

“Bispo Vermelho”

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Por Lucílio Lessa reporter@editoraassare.com.br

O

s que agora estão prestando homenagens ao meu tio, o estariam combatendo se hoje ele estivesse vivo. A começar pela própria Igreja”. A frase é do pesquisador e memorialista cearense Cristiano Câmara, sobrinho do ex-arcebispo de Olinda, Dom Helder Câmara. Em fevereiro, o religioso completaria 100 anos, o que motivou homenagens em vários estados do país. O tom de crítica das palavras do parente vivo mais próximo do padre revela o ceticismo de alguém que dispensa o legado espiritual do tio, mas se orgulha do parentesco. A começar pelo que caracteriza a história de vida de Dom Helder. Sua postura, sempre voltada à defesa dos desvalidos, acabou celebrizando-o como o “Bispo Vermelho”, face sua associação aos movimentos de esquerda durante a ditadura militar. A hipótese de perseguição da Igreja ao religioso ganha fôlego na autodefesa da instituição à época. É o que denota um boletim interno do Secretariado Regional Nordeste I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 1970. Entre outras denúncias, o documento, intitulado Dom Helder: Acusações e Defesas, relata que em 1970, no auge da repressão, o então cardeal arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, afirmou, categoricamente, que Dom Helder deveria usar seu prestígio em círculos europeus para desmentir calúnias deformadoras da imagem religiosa, política e social do Brasil. Memória. Dom Hélder com seu pai, João Eduardo Torres Câmara Filho

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Foto: Acervo Cristiano Câmara

Dom Helder Câmara, prêmio Nobel da Paz. Por uma de quatro oportunidades, a manchete certamente seria de primeira página. Não fosse a contra-campanha dos governos militares, de parte da imprensa e da própria Igreja do Brasil. Nesse sentido, seu centenário marca o resgate da história de um homem fiel, sobretudo, à sua concepção de humanidade. Uma existência de atitude, que mesmo ao esbarrar em princípios da Igreja Católica, nunca se esquivou da política e das grandes polêmicas. Lembranças de familiares e da vida eclesiástica redesenham seu perfil

No jogo das aparências, Dom Helder se tornava um incômodo cada vez maior, para setores da Igreja e dos militares. Em artigo do Mestre em História Social, Márcio de Souza Porto, sobre o boletim da CNBB, consta que o religioso era atacado não só por padres, bispos, e arcebispos, mas também por políticos e jornalistas nacionais e estrangeiros. Dom Helder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza no dia 7 de fevereiro de 1909. Filho de família ilustre do início do século, foi ordenado sacerdote aos 22 anos. Desde o início, optou pela linha de defesa dos direitos humanos. Nada demais para um padre, a não ser pela constante transposição ideológica dos muros da Igreja e os enfrentamentos com regimes vigentes. A idéia era contribuir para uma congregação mais atuante, mais próxima dos movimentos sociais. “Quando dou de comer aos pobres, chamam-me de santo, quando respondo porque é que os pobres têm fome, chamam-me de comunista”, disse certa vez. Mas, tanta inspiração não foi suficiente para evitar graves e custosos erros de percurso. Em 1932, um ano após sua ordenação sacerdotal, entusiasmado com uma época de radicalização política, o padre aceitou militar na Ação Integralista Brasileira (AIB). Influenciado por ideologia fascista, o Integralismo havia sido fundado pelo jornalista, escritor e político Plínio Salgado, para se tornar um verdadeiro transtorno ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. O banimento para a ilegalidade não tardou com a instalação da ditadura do Estado Novo, em 1937. Na parceria Igreja e Governo Vargas, sobrou para o jovem sacerdote uma ordem de imediato afastamento da AIB, assinada pelo então cardeal do Rio de Janeiro, Sebastião Leme. Vida que segue mais reflexiva, ainda durante a década de 1930, já convertido aos ideais democráticos, Helder Câmara teria feito um comentário revelador: “O período na AIB foi um erro de juventude”. Após a turbulência desse episódio, aos 26 anos, o padre ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública do Estado do Ceará, hoje Secretaria de Educação. A oportunidade, a priori extraordinária para

aquele religioso de olhos azuis arregalados no futuro e do alto de seu 1,60m, não demoraria a virar sinônimo de aborrecimentos. O motivo eram as freqüentes intromissões da autoridade governamental, algo já bem recorrente. Preferiu sair do cargo. Arranjar uma nova colocação que não bastasse fugir do irritante “monitoramento”. Escolheu também sair do Estado do Ceará. O ano era 1936. Destino, o Rio de Janeiro. Em fase de industrialização, o Rio dessa época era preferencialmente o ponto de desembarque para levas de gente que caracterizavam o êxodo rural. Com o fim da ditadura Vargas, em meados da década de 1940, o cenário tornou-se propício aos movimentos sociais em todas as regiões. Nesse período, o sacerdote convenceu o alto clero de que, em função do grande avanço dos protestantes, seria necessária uma “Ação Católica” com atividade mais intensa na vida política do país. A proposta era alcançar, principalmente, a juventude. O resultado prático foi uma mudança positiva para a imagem da Igreja, ao promover perfis de evangelização que contemplavam não só a salvação do rebanho, mas a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

No Rio de Janeiro e Europa, o “Padre dos Pobres” ganha projeção Pela articulação e credibilidade à frente de iniciativas populares, Dom Helder foi nomeado bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, em 1952. Ele defendeu a promoção de uma reforma social através do Estado, dos sindicatos rurais e da Igreja. O prestígio do religioso pôde ser testado, quando em 1955 acontece na cidade o Congresso Eucarístico Internacional. O novo bispo revelou-se um fenômeno de popularidade. Sua figura foi o principal atrativo para mais de 1 milhão de pessoas. Ao final do congresso, um gesto de solidariedade. Dom Helder teve a idéia de utilizar toda a madeira dos milhares de bancos do local, para a construção dos edifícios da Cruzada São Sebastião, situada no bairro do Leblon. A obra, que urbanizava a favela, iria abrigar milhares de moradores da Praia do Pinto. Nessa época, o padre passou a ser o principal nome da CNBB, além de um de seus fundadores poucos anos antes. De 50 anos para cá, a instituição se consolidou como o órgão de maior influência na promoção da Igreja Católica no país. Durante o período em que representou a CNBB, Helder apoiou o Movimento de Educação de Base (MEB), projeto financiado pelo Maio/2009

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O religioso foi indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz (entre 19701973). Campanhas sigilosas realizadas pelos militares a fim de minar o prestígio do bispo no exterior impediram a conquista. Tanta popularidade pode ser ilustrada em comentários do então embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Certa vez, o diplomata elegeu Dom Helder como um pretenso presidente do Brasil, em uma hipotética derrocada do Regime Militar. Ainda sobre o boicote ao Prêmio Nobel, a teoria também é comentada no livro “Dom Helder Câmara – Entre o Poder e a Profecia”, dos escritores Nelson Pilleti e Walter Praxedes. A publicação revela uma trama do governo Médici para a não premiação de Dom Helder, que em todas as indicações era o favorito. Quanto à Igreja, a história denuncia o incômodo que as ações do padre Helder, como era chamado intimamente, causava em algumas alas do clero. O silêncio imposto pelo Vaticano incluiu até a restrição de suas viagens ao exterior. Ao ser retirado do cargo de Arcebispo de Olinda, em 1985, Dom Helder, de certa forma, afastou-se da vida pública, e passou a viver em um pequeno quarto nos fundos da Igreja das Fronteiras, em Recife. Faleceu em 27 de agosto de 1999, sem declarar nenhuma frase que comprometesse a Igreja Católica. “Quando ele mais podia fazer algo, ele foi silenciado”, diz o sobrinho Cristiano Câmara.

Imprensa: relações conflituosas, algumas homenagens No terceiro capítulo do seu livro “Memórias Profissionais – O que é ser Jornalista” e através do seu blog, o jornalista Ricardo Noblat descreve um episódio que envolve Dom Helder, do qual foi testemunha nos anos de violenta repressão. O cenário era uma manifestação de estudantes em frente a Universidade Católica de Pernambuco, em 27 de junho de 1968. Noblat revela que por volta das 11 horas

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Foto: Lucílio Lessa

Quatro indicações ao prêmio Nobel

Os que agora estão prestando homenagens ao meu tio, o estariam combatendo se hoje ele estivesse vivo. A começar pela própria Igreja Cristiano Câmara, pesquisador e memorialista cearense, sobrinho do ex-arcebispo de Olinda Governo Federal. A idéia era alfabetizar o trabalhador rural e possibilitar o desenvolvimento e a conscientização política, social e religiosa. Ao mesmo tempo, promover ações comunitárias junto aos trabalhadores. Sobre o seu legado, se destacam ainda projetos como a criação do Banco da Providência, que até hoje arrecada doações para os pobres, e ainda a criação do Instituto Obra do Frei Francisco, de 1984. Posteriormente, o projeto passou a se chamar Instituto Dom Helder Câmara. Os trabalhos do Instituto consistem em tornar acessível aos pesquisadores e ao público interessado, o conjunto dos escritos do padre. Os relatos, registrados em um acervo com milhares de textos, denunciam formas de violência. Tudo em benefício dos excluídos e bem ao estilo de Dom Helder. Um fato revelador, segundo integrantes da Igreja, é que a maioria dos escritos teria sido composta nas madrugadas. Ao todo, o padre escreveu 23 livros, dos quais 19 foram traduzidos para 16 idiomas. No auge do golpe militar, em 1964, Dom Helder tomou posse na Arquidiocese de Olinda, 12 dias após os tanques terem ocupado as ruas. A volta ao Ceará ocorreu devido a pressões políticas contra o já rotulado “Bispo Vermelho”. Não tardou para o religioso perceber a postergação dos direitos humanos na ditadura e, assim, travar a luta nos anos seguintes contra a tortura. A atitude gerou a revolta entre os militares. A pressão do governo pelo silêncio não intimidou Helder. Nem mesmo a partir do assassinato de seu secretário, padre Antônio Henrique Pereira Neto. Um crime até hoje não elucidado. Dom Helder contribuiu para a fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano (Ceplam) na luta por reformas internas na Igreja Católica durante o Concílio Vaticano II (1964-1965). Paralelamente, o então arcebispo, já também conhecido como Padre dos Pobres, iniciou um programa social de grande visibilidade, a Operação Esperança. Projeto de auxílio aos flagelados das enchentes. O propósito era o surgimento de lideranças populares. Foi por conta dessas obras que Dom Helder Câmara conquistou grande reconhecimento internacional. Viajou como um requisitado conferencista, a ponto de juntar mais de 20 mil pessoas na França, em 1970, para denunciar o regime militar no Brasil.

Críticas à Igreja Se parece verossímil que a relação entre Dom Helder e a Igreja Católica era pautada por visões de mundo divergentes, a conclusão fica ainda mais evidente a partir de escritos deixados pelo Padre dos Pobres. Por exemplo: você sabia que no quarto aniversário de coroação do papa, Dom Helder se escandalizou com o excesso de pompa da solenidade? “João XXIII me parece um pássaro numa gaiola de ouro... Dia virá em que o Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano”, escreveu ele. Na verdade, Helder defendia uma Igreja mais “servidora e pobre” e menos “senhora e rica”. O fim do Vaticano era uma de suas propostas. Em cartas escritas durante o Concílio Vaticano II, o religioso deixou clara sua intenção em mudar conceitos da Igreja. Por várias vezes chegou a classificar essa busca como o Sagrado Complô. A idéia era voltar os olhos da Igreja para a pobreza a partir do Concílio. Para isso reunia bispos em reuniões e palestras, a fim de trocarem idéias durante o encontro. O compromisso do religioso em defender seus ideais a qualquer custo promovia pérolas como seu discurso de posse na arquidiocese de Olinda. “Ninguém pretenda prenderme a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos. Abundantemente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno”.

da noite, “o silêncio da rua cedeu lugar ao leve barulho provocado pelo arrastar de botas dos soldados no asfalto, à medida que uma mancha pequena e sem contornos ia se infiltrando”. Era Dom Helder. Após ultrapassar gentilmente o bloco de soldados da Polícia Militar – “Com licença, boa noite... Com licença, boa noite”, dizia ele a cada soldado que tocava o braço, o religioso se aproximou dos estudantes e subiu em uma cadeira para discursar. Usava na ocasião uma boina e uma capa de lã “que lhe deixava à mostra apenas os sapatos de couro preto”. E em meio às centenas de pessoas perplexas, disse: - Eu vim para ficar ao lado de vocês... Só sairei na companhia de vocês”. E assim varou a madrugada com os manifestantes. Mas as relações entre imprensa e Dom Helder nem sempre foram apenas de respeito e admiração. No boletim interno da CNBB, de 1970, consta que parte da imprensa brasileira e estrangeira desencadeou intensa campanha contra o religioso. Em notícia publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, em 30 de maio de 1970, o jornalista Gustavo Corção desqualificou Dom Helder, quando ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Louvain, na França. “O Sr. Câmara não completou ainda a rede de viagens que sonhou, e ainda não percorreu todas as prostituídas universidades ex-católicas que lhe trarão uma bandeja, para ser cuspido, o título doutor honoris causa”, disse o jornalista. O periódico Combat, da França, publicou no mesmo ano um artigo de Jean Marc Kalfleche, que dizia: “Dom Helder não consegue iludir com seu simplismo que só produz boas manchetes”.

E de fato foi assim. Era comum o bispo receber no palácio episcopal a todos, sem distinção, e sem hora marcada. De pessoas ilustres a bêbados e prostitutas. Sempre ancorado no princípio da igualdade. Todos esses relatos podem ser conferidos nos livros "Circulares conciliares" e “Circulares inconciliares", que compõem o início das Obras Completas de Dom Helder. Maio/2009

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Foto: Setur/CE

GeoParkAraripe

Cariri cearense:

redescoberta pela rota do

GEOTURISMO GEO TURISMO

Por MARCEL BEZERRA marcel@editoraassare.com.br

Único nas Américas e no hemisfério Sul, um projeto na divisa do Ceará com os Estados do Piauí e do Pernambuco, é o carro-chefe de uma ambiciosa retomada do progresso da região do Cariri cearense. Certificado em 2006 e integrante de uma rede mundial coordenada pela Unesco, o Geopark Araripe quer incentivar o desenvolvimento territorial com base no geoturismo. Os investimentos iniciais são de US$ 6 milhões para sua estruturação em seis municípios. Mas é bom ir devagar com o andor. Tudo ainda está só no começo...

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ormada por nove municípios, a região do Cariri, no Sul do Ceará, hoje é pólo prioritário para qualquer iniciativa governamental que enseje uma retomada do processo de desenvolvimento territorial. Mais populoso centro urbano do interior cearense, com 550 mil habitantes, tem peso social, econômico, ambiental e cultural

relevantes para o Estado e regiões vizinhas. Fica em área geográfica estratégica da região Nordeste – a uma média de 600 quilômetros das principais capitais. Em termos de arrecadação, o Cariri só perde para as regiões Metropolitana de Fortaleza (RMF) e Norte. Ali, a principal fonte de recolhimento de tributos ainda é o comércio. Mas, a região possui uma forte indústria calçadista, uma tradicional e reconhecida ourivesaria, agronegócios e o turismo religioso.

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Fauna e Flora. No Cariri, os fósseis se destacam em função de sua excelente preservação e particular importância paleontológica

da Era Mesozóica, compreendido entre 145,5 milhões e 65,5 milhões de anos atrás. Foi nesse tempo que os continentes começaram a adquirir a atual conformação e os dinossauros dominaram o terreno. Em seguida, a extinção em massa desses seres marca o final do período, quando desapareceram também muitas outras espécies animais e vegetais. Restou, então, para a Paleontologia uma riqueza de lugar com seus exemplares fósseis de

O mundo no período Cretáceo

Imagens: Livro “O Geopark Araripe”

Este último, ao longo de cada ano, remotivado pelas multidões de fiéis a visitar a terra de um dos maiores líderes políticos e religiosos do Brasil, o Padre Cícero Romão Batista, nascido no Crato e fundador de Juazeiro do Norte. Além da religiosidade popular, o Cariri tem na sua cultura ricas personalidades e manifestações que o tornam singular e conferem projeção além-fronteiras. Seja pelo artesanato, a música das bandas cabaçais, a literatura de cordel, o maneiro-pau, o coco-de-roda, os Caretas de Jardim, os Penitentes de Barbalha, as romarias de Juazeiro do Norte, a poesia de Patativa do Assaré ou as festas do Pau da Bandeira. Mas, é em outro patrimônio, ainda não explorado devidamente, que reside uma das saídas para avanços na exploração do potencial de desenvolvimento desse conjunto de municípios reconhecido pelo triângulo denominado Crajubar (Crato, Juazeiro e Barbalha). Ele está na abundância dos recursos naturais e paleontológicos da região. Encravado em pleno semi-árido, o Cariri cearense é um oásis nordestino. Potencial hídrico, terras férteis, vegetação exuberante e a particular beleza da Chapada do Araripe com suas formas de relevo, flora e fauna. Um bioma que inclusive acabou digno de reconhecimento do Governo Federal, ao instituir em 1946 a primeira floresta nacional do país, a Floresta Nacional do Araripe (Flona). Só que a importância dessa área não fica apenas em tais evidências, mas também abaixo delas, e a olho nu. O Cariri tem no seu chão, uma das maiores reservas fossilíferas do mundo Cretáceo, último período

fauna e flora. Tudo encontrado, hoje, até em plena superfície do solo dos municípios de Barbalha, Juazeiro do Norte, Crato, Nova Olinda, Missão Velha e Santana do Cariri. Reconhecido esse patrimônio geológico e paleontológico, nasceu a inspiração de um projeto que pode vir a ser, na opinião do secretario das Cidades do Ceará, Joaquim Cartaxo, a transformação do Cariri no grande pólo de desenvolvimento no interior cearense. Ao final de 2005, o Governo Estadual, ainda durante a gestão Lúcio Alcântara, postulou a criação do Geopark Araripe junto à Divisão de Ciências da Terra da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O resultado veio menos de um ano depois, em setembro de 2006, quando a Unesco reconheceu o parque como primeiro das Américas. O intento cearense, à época, contou com a participação da Secretaria Estadual da Ciência, Tecnologia e Educação Superior, e do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, instituição vinculada à Universidade Regional do Cariri (Urca), hoje gestora do Geopark. Rastros da cultura. Pinturas pré-históricas, olarias e ferramentas líticas

REDE MUNDIAL. O reconhecimento não foi apenas um ato formal. A chancela do organismo se baseou em diversos critérios e integrou o Geopark Araripe à Rede Global de Geoparks da Unesco (World Geoparks Network), que criou o programa no ano 2000. A rede é composta atualmente por 57 geoparks em 18 países, entre eles União Européia e China. “A nossa tarefa é articular os diversos sujeitos políticos e sociais tanto públicos quanto privados, para desenvolver a economia local a partir desse local, gerando emprego e renda, dentro do foco turístico. Ele é um equipamento para o turismo, e um turismo de natureza, científico, o geoturismo”, explica Cartaxo. Geopark é uma área com expressão territorial e limites bem definidos, que contêm um número significativo de sítios de interesse geológico com particular importância – os geotopes –, raridade ou relevância cênica/estética, com muito interesse histórico-cultural e riqueza em biodiversidade. Estes sítios que reportam a memória da Terra fazem parte de um conceito integrado de proteção, educação e desenvolvimento sustentável. No Araripe, dentro dos mais de cinco mil quilômetros quadrados da área estabelecida para o geopark, está mais de um terço de todos os registros de pterossauros descritos no mundo, mais de 20 ordens diferentes de insetos e única notação da interação inseto-planta. Há similares destas mesmas espécies na África, indício de quando os continentes foram um só, na época do continente primaz Gondwanna.

Período Cretáceo. Está compreendido entre 145,5 milhões e 65,5 milhões de anos atrás, aproximadamente. Durante esse período, os dinossauros alcançaram seu ápice, mas ao fim do período acaba ocorrendo a extinção em massa desses grandes répteis e dos animais da Terra (cerca de 60% deles foi extinto).

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Geotopes

Projeto é a

Geopark Araripe G1. Geotope Exu/ Santana do Cariri

G4. Geotope Granito/ Juazeiro do Norte (Colina do Horto)

“ECONOMIA DO CONHECIMENTO”

(Pontal da Santa Cruz)

Unidade de Conservação Ambiental Estadual, fica no topo da Chapada do Araripe, no município de Santana do Cariri, a uma altitude de 750m, de onde se tem uma vista panorâmica de uma parcela considerável da Bacia Sedimentar do Araripe.

G2. Geotope Santana/ Santana do Cariri (Parque dos Pterossauros)

Unidade de Conservação Ambiental Estadual. Está instalado em área de 23 hectares de propriedade da Urca, na zona rural de Santana do Cariri, como um dos principais componentes do Geopark Araripe. Em sua primeira etapa, já concluída, a proposta pretende a proteção e preservação de uma área de escavação, visando à exposição dos diversos níveis sedimentares, os quais contêm relevantes camadas fossilíferas.

G3. Geotope Ipubi/ Santana do Cariri (Mina Chaves)

Joaquim Cartaxo. "Preparar a economia local para receber o turista de outra forma, criando a rede do que está em volta"

O

Geopark Araripe foi incluído na estratégia de desenvolvimento regional e local do atual governo cearense. “A idéia é tentar criar no interior do Ceará algumas regiões que possam efetivamente se estruturar e compartilhar com Fortaleza a atração de investimentos e pessoas”, coloca Cartaxo. Batizado de Cidades do Ceará – Cariri Central, a parceria do Estado com o Banco Mundial, prevê aplicar de R$ 65 milhões fundamentalmente nas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha entre 2009 e 2013. Algumas dessas obras terão impacto no geopark. Mas nele, especificamente, estão conjeturados investimentos N de R$ 6 milhões na construção da sede Nova – já iniciada, na Urca (Crato) – e Ceará Olinda Juazeiro obras de infra-estrutura dos geodo Norte topes, aquisição de bens e equiG5 Crato G4 G3 Missão pamentos, consultorias para G2 G7 Velha Santana do Carirí assistência técnica, capaciG9 G1 G8 tação e elaboração de esBarbalha G6 Milagres tudos e planos. Dinheiro Abaiara garantido, hoje aguardase apenas que o Senado conclua tramitação do Pernambuco A antiga Mina Chaves, hoje inativa, faz parte do complexo industrial de extração de gipsita da Chaves Mineração e Indústria, que explora diversas minas situadas no municípios de Santana do Cariri e Nova Olinda, fornecendo matéria-prima para a indústria de produção de cimento e produzindo gesso agrícola, gesso de fundição e revestimento, bem como aditivados especiais.

Localização dos Geotopes

Piauí

Paraíba 48

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ESCALA 0km

10km

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50km

processo para liberação dos recursos. A efetivação ideal de um geoparque se dá através da articulação dos objetivos primários de conservação, educação e turismo de natureza. No primeiro, o geoparque procura preservar os geotopes ao assegurar medidas de proteção adequadas em colaboração com universidades, serviços geológicos e outras instituições relevantes em acordo com as práticas locais e as obrigações legislativas. Em relação à educação, cabe ao geopark organizar atividades para o público e providenciar apoio logístico na comunicação do conhecimento geocientífico e dos conceitos ambientais. Este apoio realiza-se através da proteção e identificação de geosítios, desenvolvimento de museus, centros de informação, percursos pedestres, visitas guiadas, visitas de estudo, materiais de divulgação, painéis, mapas, material educativo, seminários, entre outros. Um geopark apóia a investigação científica em cooperação com as universidades e instituições de investigação, estimulando o diálogo entre as Ciências da Terra e as populações locais. Quanto ao terceiro objetivo primário, o do turismo de natureza, através dele o geopark estimula a atividade econômica e o desenvolvimento sustentável. Com efeito, existe o estímulo ao desenvolvimento socioeconômico local através da promoção de uma imagem de excelência intrinsecamente relacionada com um reconhecido patrimônio natural de importância internacional, que atrai um número crescente de turistas de todo o mundo. Este fato tende a encorajar a criação de empresas locais ligadas ao setor do Turismo de Natureza, com produtos de qualidade certificada. “Estamos tratando de uma coisa extremamente nova, que está ligada fundamentalmente à economia do conhecimento. É o conhecimento que atrai o turista, que quer ir conhecer a formação Santana, o pterossauro, visitar o cânion de Missão Velha. Isso é o atrativo. E você tem que preparar a economia local para recebê-lo de outra forma, criando a rede do que está em volta. Se você vai a um georestaurante, não vai encontrar lá um filé a parmegiana, e sim a culinária local, um geocardápio. Assim se fortalece a economia local”, detalha o secretario.

A Colina do Horto fica a 3 km da cidade de Juazeiro do Norte, onde abriga a estátua de 25m do Padre Cícero. Sua paisagem é inteiramente inserida na zona urbana de Juazeiro do Norte e, por este aspecto, está integralmente submetida às ocupações e edificações ali existentes. Pouco resta de aspectos naturais relevantes.

G5. Geotope Nova Olinda/ Nova Olinda (Mina Triunfo)

A Mina de Pedra Cariri situa-se a 3 km da cidade de Nova Olinda, com fácil acesso pela rodovia CE-166 entre Nova Olinda e Santana do Cariri. É uma formação fossilífera, que inclui grupos de invertebrados, vertebrados e plantas, composta de calcários laminados de cor amarela a creme com estratificação plano paralelo horizontal.

G6. Geotope Arajara/ Barbalha (Parque do Riacho do Meio)

Também Unidade de Conservação Ambiental Estadual, onde se destacam os aspectos paisagísticos da Bacia Sedimentar do Araripe que refletem a riqueza da flora, fauna e do potencial hídrico da região.

G7. Geotope Devoniano/ Missão Velha (Canyon do rio Batateira)

Unidade de Conservação Ambiental Estadual, o Canyon do Rio Salgado situa-se a 4 km da cidade de Missão Velha, próximo à ponte sobre o rio, na rodovia que conecta os municípios de Missão Velha e Aurora.

G8. Geotope Missão Velha/ Missão Velha (Floresta Fóssil)

Floresta Fóssil, com altitude de 360m, situa-se a 6 km a sudeste do município de Missão Velha, ao lado esquerdo da rodovia CE-293, que liga Missão Velha a Milagres.

G9. Geotope Batateiras/ Crato (Rio Batateira)

Nos pontos mais próximos à sua nascente, o Rio Batateira configura belas situações formadas por um conjunto de pequenas cascatas, onde é possível apreciar as formações rochosas do local inseridas em área de vegetação densa ainda pouco exploradas por atividades humanas. Maio/2009

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NATURTEJO:

MAS O POTENCIAL É GRANDE...

A

estruturação de um equipamento com a envergadura de um geopark não é tarefa fácil. E os resultados também não aparecem no curto prazo. De acordo com Cartaxo, ainda não há uma avaliação preliminar sobre o que ele pode significar em termos de impactos econômicos sobre a região. Ele adianta que estudos já estão sendo contratados. Para articular todas as diversas atividades, a Secretaria das Cidades coordena a montagem de um programa multisetorial que envolve as secretarias de Turismo, Cultura, Infra-Estrutura, o Conselho Estadual de Políticas e Gestão Meio Ambiente e a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e a própria Urca. O trabalho não pode dar errado, pois, a cada quatro anos, a Unesco faz uma avaliação para a revalidação do selo. Por ora, alguns programas científicos e sociais são desenvolvidos pelo Geopark Araripe com o objetivo de promover e divulgar os ideais da geoconservação, da geoeducação e do geoturismo. O Geopark nas Escolas procura integrar os estudantes dos colégios locais públicas ou privadas à realidade do local. Já para formar condutores para as visitas guiadas aos geotopes foi desenvolvido o Curso de Capacitação de Condutores com Enfoque na Geologia, Paleontologia e Biodiversidade da Chapada do Araripe, fundamentado na construção de um conhecimento regional interdisciplinar, que contemple o domínio de todos os temas e assuntos correlatos ao Geopark Araripe, e insere diretamente a comunidade acadêmica no projeto. A outra ação são as exposições itinerantes. Ao Geopark Araripe foi delegada pela Unesco a tarefa de ajudar a montar a rede americana de geoparks. “Vamos fazer no Cariri, em 2010 uma conferência internacional com o objetivo de sensibilizar os países da América Latina no sentido de que eles criem geoparks”, antecipa. No Brasil, a Companhia Nacional de Produção Mineral (CPRM) identifica 33 possibilidades de geoparks. Por outro lado, o potencial turístico de um geopark, se bem planejado e estruturado, é bastante expressivo. Sem

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Fotos: Geopark Naturtejo

Resultados só a médio e longo prazo.

Museu de Paleontologia de Santana do Cariri recebe uma média de 25 mil visitantes por ano. uma estrutura integrada e articulada que o inclua, o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, vinculado à Urca, recebe uma média de 25 mil visitantes por ano. Um exemplo desse potencial está no Geopark Naturtejo, em Portugal. Nos últimos três anos, o número de visitantes do território duplicou, atingindo 200 mil pessoas por ano. O número de leitos nos hotéis e pousadas cresceu 20% com perspectivas de chegar a 40% até o fim deste ano. “A expectativa para o prazo de três anos será do aumento da oferta hoteleira, qualificação e serviços restantes em mais 30%, e a visitação em mais 50%. Espera-se um aumento de 10% no número de empregos diretos e de 3% no PIB, considerando também os efeitos de arrastamento subjacente ao investimento previsto (efeito multiplicador)”, explica o presidente do Geopark Naturtejo, Armindo Jacinto. Jacinto destaca ainda o que é preciso para que a experiência se consolide. “O sucesso de um processo deste gênero está na capacidade de envolvimento de toda a sociedade. Só assim se conseguirá o que se pretende, fazer desenvolvimento econômico, criação de emprego e preservação do patrimônio para as gerações vindouras. É uma tarefa hercúlea, mas fundamental para estes territórios”, avalia. O envolvimento político é também fundamental para criar estruturas estáveis de desenvolvimento do geopark, que com o tempo se tornem imprescindíveis no seu funcionamento, independentemente dos ciclos da própria política.

O

Geopark Naturtejo da Meseta Meridional é o primeiro com o selo da Unesco em Portugal. Está integrado às redes Européia e Global de Geoparks. O presidente do Geopark, Armindo Jacinto, coloca o equipamento como uma abordagem inteiramente inovadora no panorama turístico português. Com 4.600 km2 de área, abrange o espaço territorial dos municípios de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Nisa, Oleiros, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão. O geopark oferece no seu conjunto um vasto e rico patrimônio natural, histórico e cultural. São 16 geossítios que contextualizam 600 milhões de anos de dinâmica do

experiência consolidada em Portugal planeta, no Parque Natural do Tejo Internacional e Serra de S. Mamede, nos sítios Rede Natura da Serra da Gardunha e de Nisa, nas Important Bird Areas, destinos singulares de natureza, nas 4 Aldeias de Xisto, 2 Aldeias Históricas e 70 monumentos classificados. As rotas dos 16 geossítios, desenvolvidas pela Naturtejo, empresa intermunicipal de promoção turística que dirige o Geopark Naturtejo, convidam os turistas a passear de barco pelo rio Tejo e seus afluentes, entrar pelas Portas de Ródão e do Vale Mourão, visitar o Parque Natural do Tejo Internacional “surpreendendo-se com os abutres, as cegonhas negras e as águias imperiais, os coloridos abelharucos, os rouxinóis a cantar, os veados na brama e a vegetação a florescer”, como diz o material de divulgação do geopark. No Naturtejo, os visitantes tem a oportunidade de viajar no tempo, através dos icnofósseis de Penha Garcia, por Monsanto, a aldeia mais portuguesa, pela outrora cidade romana e visigótica da Egitânea, podendo ainda descobrir os castelos e comendas dos Templários e Hospitalários, deambulando pelos meandros dos rios Zêzere, Ponsul, Erges, Sever e Ocreza, das ribeiras de Oleiros e Aravil, garimpando ouro entre conhais de exploração mineira romana. Segundo Armindo Jacinto, o Naturtejo tem animação garantida 365 dias por ano, entre os programas de SPAS e Termas, festas e feiras medievais, de saberes e sabores, com passeios de burro, de bicicleta, de páraquedas, de avião e a pé, por percursos ancestrais, com as marcas das invasões francesas e outras.

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De Cajazeiras a Tel Aviv

200 anos de Darwin na Bahia Para os meios científicos e acadêmicos do mundo, 2009 é um ano especial. Sobretudo nas ciências naturais, celebra-se os 200 anos de Charles Robert Darwin, o gênio britânico do naturalismo, nascido em 12 de fevereiro de 1809 e falecido em 1882. Darwin aprofundou seus conhecimentos sobre as espécies quando viajou a bordo do navio HMS, atuando como naturalista, entre 1831 e 1836. O ponto alto da programação será em outubro, no Encontro Charles Darwin, na Bahia, de 7 a 9. Também serão inaugurados marcos turísticos da passagem do Beagle e de Darwin por Salvador, como o monumento no local do antigo Hotel do Universo, na Praça Castro Alves, onde ele ficou hospedado. Placas comemorativas no Cemitério dos Ingleses serão afixadas onde foram enterrados dois marinheiros do Beagle (Charles Musters e Boy Jones). A série de eventos que tem à frente o professor Chabel Ninõ El-Hani, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), será concluída em novembro com o simpósio "O olhar estrangeiro sobre o Brasil", no dia 19 daquele mês. Mais informações sobre o assunto no site www.darwinnabahia.ba.gov.br

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Ba Freyre é um típico cidadão nordestino. Relaxado, simples e de uma calma cabocla. Nascido em Cajazeiras, na Paraíba, bem cedo migrou para o Ceará, onde adulto recebeu a influência musical do pai. De Fortaleza, se albergou no Crato para estabelecer profícua parceria com Rosemberg Cariry. Os dois foram bombardeados pela música de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e sonoridade dos cantadores de viola e emboladores. Como diria Belchior, o que pesa no norte cai no sul grande cidade. São Paulo, de cimento e lágrima, embalou o sonho de virar artista nacional. E nessas voltas que a vida dá, não é que Ba Freyre foi esbarrar em Israel? Na terra dos conflitos, virou figura carimbada, numa espécie de babel musical que é a capital Tel Aviv. Foi, de vez em quando, espalhar sua musicalidade em palcos europeus. Após compor divinamente o CD Às claras, está entre nós, divulgando o trabalho e fazendo shows pelo Brasil.

Tô sabendo, Jorge Portugal O professor Jorge Portugal dá mais uma demonstração de sua versatilidade. Ele idealizou e irá apresentar o programa Tô sabendo, que será veiculado nacionalmente pela TV Brasil, a partir do próximo mês. O anúncio oficial foi feito pelo Ministro da Cultura, Juca Ferreira, durante o Terceiro Encontro de Dirigentes de Cultura da Bahia, realizado em abril último, em Salvador. O programa se propõe a ser uma revista eletrônica de educação e cultura. O público-alvo é o estudante da rede pública que busca uma "vaguinha" na escola de nível superior. O Tô Sabendo contará ainda com uma competição de conhecimentos (uma espécie de game cultural) a ser disputada por estudantes da rede pública de todo o país, com premiação para alunos, professores e diretor da escola campeã. O projeto também conta com a participação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e está orçado em R$ 7,9 milhões, dos quais, R$ 6,32 milhões caberão ao MinC e o restante ao governo da Bahia.

FRANCIS E OS

CURTAS DO RECIFE Os filmes de curta metragem ficaram como o destaque do XIII CINE-PE/Festival do Audiovisual do Recife. Essas exibições sempre atraíam maior público e aplausos. Logo na primeira noite, a abertura da Mostra de Curtas, com o filme de Fernando Spencer, “Nossos Ursos Camaradas”. Aos 82 anos, o diretor continua a empolgar. Seu filme procura informar, de forma bem humorada, sobre a presença dos “ursos” no carnaval pernambucano. Outros “maurícios” muito aplaudidos foram “Eiffel”, de Luiz Joaquim, “Superbarroco” de Renata Pinheiro, “O Muro”, de Tião e “Um Artilheiro de meu coração”. Este último, realizado por três jovens de Recife Diego Trajano, Lucas Fitipaldi e Mellyna Reis, resgata a história do jogador de futebol Ademir Menezes, artilheiro da seleção brasileira na Copa de 1950. Entre os longas, apenas “Alô, Alô, Teresinha”, de Nélson Hoineff, chamou maior atenção . O cineasta cearense Francis Vale conferiu o festival e lançou seu livro “Cinema Cearense - Algumas Histórias” (Editora Assaré), no Café do Cinema, da Fundação Joaquim Nabuco. Na foto, Francis aparece ao lado do cineasta pernambucano Fernando Spencer.

ANAVANTUR, DILMA! A estratégia de exposição da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, aos eleitores terá mais um capítulo agitado. Convidada pelo deputado Wolney Queirós (PDTPE), ela participará, em 30 de maio, da abertura da Festa de São João, de Caruaru. O evento reunirá cerca de 1,5 milhão de pessoas, ao longo de 40 dias. Para fugir da concorrência de outras festas, Dilma foi convidada para acompanhar a abertura, no Parque de Eventos da cidade, quando ocorrerão shows dos cantores Fagner e Elba Ramalho. A expectativa é de que esses shows reúnam 100 mil pessoas. Lula também foi convidado, mas ainda não confirmou presença. Queirós nega, porém, que a participação de Dilma na festa tenha como objetivo central um viés eleitoral. A partir do momento em que sua candidatura à sucessão de Lula se tornou praticamente um consenso dentro do partido, Dilma tem ampliado a sua exposição pública. (da Agência Estado)

PARA A ESTANTE ASSUCAR CHEGA AOS 70 ANOS Prova do gênio multifacetado do escritor Gilberto Freyre é um rebento prodigioso que chega aos 70 anos, com doçura incomum. O mundo dos livros comemora o lançamento de Assucar — um abordagem em torno da etnografia, da história e da sociedade doce do Nordeste canavieiro. Nele, Gilberto Freyre assinalou que o açúcar ”adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização nacional”. O antropólogo e museólogo Raul Lody, comemora o jubileu afirmando que Assucar é livro sempre atual, e tem especialmente o olhar sensível do autor, motivando e dirigindo o leitor a descobrir em texto farto. O livro em sua primeira edição está à venda na rede mundial de computadores.

LEMBRANÇAS DO SABER VIVER Dona Claudionor Velloso passa dos 101 anos com lucidez e disposição para viver. Isto já é suficiente para render homenagens e histórias. Mas, o sabor é especial por Dona Canô ser quem é - filha de uma cidade de atividade cultural e matriarca de uma família de artistas. O livro de Guerreiro e Assis reúne lembranças dos anos de dedicação à cidade, aos amigos e filhos, dentre eles a escritora Mabel Veloso e os cantores Caetano e Bethânia. “Não é uma biografia, mas sim um registro da memória de Dona Canô, sobre os assuntos que tenham feito parte das suas rotinas e vivências ao longo de um século”, explica o autor.

MAR E VENTO, DE LUCIANO MAIA “Neste livro, o consagrado poeta Luciano Maia retoma a mística do Mar e do Vento, metáforas do desconhecido e dos impulsos, justamente sob aquela perspectiva da incerteza dos destinos e das histórias, quer individuais, quer coletivas, deixando à mostra suas lembranças do passado, como se fosse um continente, um território de onde partiram suas naus, abrindo as velas ao sopro de um terral (célebre expressão do Pe. Antônio Tomás) que as leva para as distâncias, mas sem apagar delas (das naus) os resquícios de terra nativa e de plantas rústicas, de modas violadas e de manhãs imaculadas, de sentidos e espaços unidos numa indissolúvel e mesma coisa, como se revela no soneto Relembro da Pátria IV, em que essas idéias vêm explicitamente maduras”. Do prefácio de Napoleão Nunes Maia Filho, escritor e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

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cultura

“Eu sou de uma terra que o povo padece Mas não esmorece e procura vencer Da terra querida, que a linda cabocla De riso na boca zomba no sofrê Não nego meu sangue, não nego meu nome Olho para a fome , pergunto: que há? Eu sou brasileiro, filho do Nordeste, Sou cabra da Peste, sou do Ceará.”

100 anos

muito alÉm do repente Da Assaré para a beleza do mundo, há 100 anos nascia o menino-agricultor que se tornou um mestre da lírica brasileira. Daquele tipo de versejar abordado do preconceito à exaltação extrema, mas sempre digno da consagração porteiras afora. Um fazer poético ainda alvo de reducionismos cá entre nós, quando referenciado apenas como “popular”. A vida, a extensa obra e a sua genialidade numa homenagem da NORDESTE VINTEUM ao maior poeta que essas terras já conheceram. Por Carolyne Barros - reporter@editoraassare.com.br - Fotos: Tiago Santana

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ntônio Gonçalves da Silva, o batizado pelo povo como Patativa do Assaré, dava o primeiro ar de sua graça em 5 de março de 1909, na Serra de Santana, distrito rural de Assaré, cidade do Sul do Ceará. Aos quatro anos de idade, ficou cego de um olho. Decorrência de um “mal que lhe acometeu a vista”, dizem. O revés não o tirou da lida árdua na roça ainda menino. Com oito anos, perdeu o pai. Seguiu com a mãe e os irmãos mais novos a cultivar seu chão, “resmungar” seus versos e inspirar a alma sertaneja. Escola formal só por um semestre, o suficiente para juntar letras, formar palavras e fazer poesia.

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Casou-se com a dona Belinha (Belarmina Paes Cidrão) e entregou também à roça sete filhos. A essa época, já fervilhava o cantar do sertão em sua memória. Junto à inclemência da seca, a esperança da chuvas e a súplica por um mundo mais justo. É também o início de seu passeio pela literatura, das poesias de Olavo Bilac e Castro Alves aos romances de Eça de Queiroz, Machado de Assis e José de Alencar. Sem esquecer o preferido: Luís Vaz de Camões. As freqüentes viagens ao Pará, levando a cantoria do sertão cearense e trazendo o apelido de patativa – referência aos poetas populares em suas idas e vindas, tal qual a revoada Maio/2009

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de pássaros da espécie – consagraram o menino violeiro. Mas, ele não foi uma patativa qualquer. Há quem diga que o reconhecimento veio tarde. O violeiro-agricultor não era mestre apenas em criar. Recitava sua poesia com maestria, ao pedido de cada povo. Guardava na memória a letra e a métrica de todos os versos, como um catálogo atualizado e sempre eficiente. Já passava dos 53 anos quando viu a primeira leva do plantio de suas palavras brotar em livro. “Inspiração Nordestina” revela a autobiografia do “poeta de mãos calosas”. Daí para ganhar o mundo, Patativa não silenciou. Continuava a formar versos, sem se importar muito com a idéia de sucesso. A poesia vinha da terra, dos problemas e alegrias ali vividos. E era por terra que ecoava. “Cantos de Patativa”, “Patativa do Assaré: Novos poemas comentados”, “Cante Lá que Eu Canto Cá”, “Ispinho e Fulô”. E entre tantas outras publicações, o semeador de palavras se fez notável além das fronteiras do sertão cearense. É fato que nasceu poeta, mas se fez um gênio pela construção de sua obra. No trajeto, além dos livros, versos musicados e imagens poéticas em fotografias e também no vídeo. Apesar da beleza e grandeza desses trabalhos, nosso Patativa, patrimônio cultural e afetivo do Brasil, foi e se perpetua como um artista genuinamente oral. Por vezes, retratando as problemáticas da vida sertaneja, Patativa fez política. Em seus poemas, as raízes da temática social, as injustiças e desigualdades. Para o pesquisador Luiz Tadeu Feitosa, doutor em Sociologia e autor dos livros “Patativa do Assaré: A trajetória de um Canto” (2003) e “Digo e Não Peço Segredo” (2001), a crítica mordaz, para além das inclinações partidárias ou ideológicas, deu o tom da poesia de Patativa. “Ele fingia ser limitado para, na hora certa, atacar. Seus poemas são como um chicote ideológico que ele usava quando achava que era necessário fazer”, explica. De seus versos vigorosos, comprometidos com as causas do povo, o hino nordestino “Triste Partida”, entoado em todo o país pelo “rei do baião”, Luiz Gonzaga (1964). Raimundo Fagner, com Sina (1973) e Vaca Estrela e Boi Fubá (1980). Rosemberg Cariri, cineasta cearense e afeto antigo do poeta, reuniu as

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mais de 100 horas de gravação da vida e obra do amigo para produzir o documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia” (2007). A genialidade de Patativa, mesmo destoando do rigor acadêmico, deu origem a enredos rebuscados da mais pura filosofia. Com o saber de homem do campo, ele relatou a natureza, a crença e a economia em um discurso atemporal e sem limites geográficos. “A poesia de Patativa traz as marcas da grande enunciação dos problemas que afligem os homens de todos os lugares, em todos os tempos”, afirma o professor Gilmar de

Carvalho, com autoridade de quem organizou seus versos e esquadrinhou sua vida em sete livros: “Patativa do Assaré” (2000), “Patativa Poeta Pássaro do Assaré” (2000), “Antologia Poética” (2001), “Patativa do Assaré Pássaro Liberto” (2002), “Cordel Canta Patativa” (2002), “Córdeis e Outros Poemas” (2006) e “Patativa do Assaré – Poeta Cidadão” (2008). Sua obra, regionalista e universal, se confunde com o cenário do sertão, mas é atual e vanguardista. “Os versos trazem marcas de nossas ancestralidades ao mesmo tempo em que têm dicção contemporânea”, acrescenta Tadeu Feitosa.

O canto do poeta segue em ebulição. De Sorbonne, na França, onde ainda nos anos 1970, o professor Raymond Cantel estudou os versos de Patativa e apresentou trechos de sua obra, até estudos mais recentes, com Martine Kunz, que esmiuça os cordéis de nosso “pássaro”, a poesia de Patativa desperta a atenção de pesquisadores em todo o mundo. Por aqui, já pesquisaram Ria Lemaire, Sylvie Debs, Ismael Pordeus Jr. e François Laplantine. Todos encantados pelas criações. “Patativa tem esse dom de encantar, não pela frivolidade, não por modismos, mas por cantar as verdades essenciais, aquilo que temos de mais profundo”, pontua Gilmar de Carvalho. E, de fato e de direito, Patativa encantou. Foi homenageado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), recebeu cinco títulos Doutor Honoris Causa - pela Universidade Regional do Cariri (CE), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Estadual do Ceará (Uece), Universidade Tiradentes (SE) e Universidade Federal Rural do Semi-Árido (RN) —, virou patrimônio cultural do Brasil em 1995, entre tantos outros títulos, comendas e homenagens. É leitura obrigatória para o vestibular da UFC e objeto de estudo de quem não se cansa de redescobrir sua poesia. O fotógrafo Tiago Santana conviveu com o poeta em Assaré e por vários momentos tornou-se foco de suas lentes. Em parceria com o professor Gilmar de Carvalho, responsável pelos textos, Tiago prepara o livro “ABC do Patativa”, que deve ser lançado em julho e se desdobrará em exposição de fotografia no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. Maio/2009

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Artigo

Barros Alves

Patativa não era “analfa”

Escritor e funcionário público

Esse Patativa abençoado por versos poéticos, com astúcia sertaneja e pensamentos ligeiros, ainda vive na lembrança da neta Isabel Cristina, depois de sete anos de sua morte. Em 08 de julho de 2002, o poeta se despediu de Assaré, mas deixou viva sua história na cidade. Aos 93 anos, Patativa, prejudicado pelas doenças da velhice, levou seu canto para longe da terra.A falência múltipla dos órgãos nos apartou de sua voz. “Mas, é como se ele estivesse entre nós. Sua obra é viva!”. A voz de Isabel ecoa o canto da esperança. Responsável por administrar o Memorial Patativa do Assaré, Isabel sabe da imortalidade dos versos de Patativa. “Quem vem de fora visita o memorial e se apaixona por sua obra”, explica. É também a neta, de 32 anos, herdeira de dona Lúcia, filha mais nova do poeta, quem administra os direitos autorais das publicações de Patativa. Há uma leva de poemas inéditos, que a família um dia vai publicar.

O caminho que liga os municípios de Assaré a Antonina do Norte, são 17 quilômetros de estrada asfaltada, na chamada “Rodovia Patativa do Assaré”. Para o embarque e desembarque dos ônibus, o “Terminal Rodoviário Assaré do Patativa” anuncia as muitas marcas do poeta que circulam pela cidade. Nas placas de rua, os versos estampados. Na praça da Igreja Matriz, a réplica da silhueta do poeta fica em cima de um pedestal, no mesmo quarteirão da casa que abrigou sua família, a partir dos anos 1970. À frente da estátua, o Memorial Patativa do Assaré, um casarão antigo, de três andares. É lá que a neta Isabel guarda os objetos pessoais do avô e parte de sua obra, entre discos, livros e cordéis publicados. O auditório, com capacidade para 70 pessoas, leva o nome de Dona Belinha, esposa de Patativa,

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que faleceu em 1994. Nos andares superiores, “uma sala de exposição para homenagem a outros artistas” e a biblioteca de cordéis. Na Serra de Santana, distrito rural que ouviu os primeiros versos, a casa em que o poeta nasceu foi reformada para as festividades do centenário, fruto da parceria entre a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e a Prefeitura de Assaré. “A casa continua simples, de barro e chão batido, mas está toda arrumadinha”, comenta a neta Isabel, que esteve presente na inauguração do espaço, junto com os tios e os primos. Para estrear os novos espaços, Isabel quer organizar uma exposição, já para maio deste ano, com todo o material publicado na ocasião do centenário do avô. A exposição deve acontecer no próprio Memorial, mas remetendo também a casa onde nasceu Patativa.

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ntônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, é, indubitavelmente, figura preeminente na história do povo nordestino, pontificando como um gênio do verso improvisado entre tantos que se alteiam através do tempo, nos sertões adustos do Nordeste, cantando as mágoas, os sonhares e alegrias de sua gente. Entre estes rapsodos do povo, Patativa foi poeta singular, improvisador de alto dom criativo que construiu versos matutos em rima aprumada e ritmo escorreito. Mas, soube também escrever poemas do mais fino lavor métrico e rítmico, sonetos verdadeiramente petrarquianos ou alexandrinos de fazerem inveja. E aqui reside a outra face do poeta que se vivo fosse no último dia 5 de março completaria cem anos de existência. A face oculta de Patativa, por assim dizer. O poeta do Assaré, autor de jóias do cancioneiro popular como “Triste Partida” não era aquela figura analfabeta estereotipada por alguns intelectuais de esquerda que queriam por fina força transformá-lo em um Maiakovski sertanejo. A prova concreta disto é que um criador literário que burila versos perfeitos à moda clássica, jamais seria analfabeto. Patativa, homem nascido e criado na roça, mantinha o seu código lingüístico e disto fazia uso para agradar à platéia, aos aficcionados da chamada poesia matuta. Na verdade, uma “parapoesia”, porque algo caricaturesco e não original. Quantos não deram de mão desse artifício para fazer este tipo de versos agradáveis aos ouvidos, aos turistas ávidos de nordestinidade, além de deixar boquiabertos os esquerdistas juramentados. Exemplo: Carneiro Portela, advogado, jornalista, radialista, apresentador de televisão e autor de vários livros de poemas no estilo moderno, não é nem de longe um analfabeto, mas sabe como poucos tecer os fios de uma boa poesia matuta. Tem talento poético e a convivência com poetas populares e cantadores incutiu-lhe o código lingüístico deles. F. S. Nascimento, crítico literário da melhor cepa, filho do mesmo Cariri de Patativa, certa feita ao ser por mim provocado, escreveu-me observando que Patativa

do Assaré não era, de fato, o analfabeto que se queria impingir ao povo através da orquestração midiática feita por políticos interesseiros. Ele estudara Teoria do Verso com J. de Figueiredo Filho, respeitado intelectual caririense. Daí, não ser surpresa a qualidade da poesia que escreveu nos moldes clássicos. De igual modo, também à vista de provocação minha, escreveu-me há alguns anos sobre o mesmo tema o professor Sânzio de Azevedo, escritor, poeta e doutor em Literatura. Segundo aquela autoridade em História da Literatura Cearense, Patativa quando jovem teria recebido aulas de metro e rima do Poeta Júlio Maciel, destacado magistrado cearense que esteve à frente de comarcas caririenses, entre as quais Juazeiro do Norte e Lavras das Mangabeiras. De sorte que Patativa do Assaré, era sim, homem rústico do sertão, dotado daquela ingenuidade que não significa estultícia, um crédulo na boa vontade dos homens do poder. Mas, não analfabeto. A poesia matuta que fazia era uma invenção bem arquitetada na forma e no conteúdo. Para os radicais estudiosos do assunto, uma farsa bem urdida por um matuto que mesmo dominando a norma culta da língua, sabia escrever poesia com um palavreado próprio da gente ignara, cuja prosódia encanta os citadinos letrados. E aqui um dado que merece ser explorado pelos biógrafos do poeta. Patativa foi explorado – com toda a carga de maldade e ideologia marxista que este vocábulo possa ter – por políticos da esquerda e da direita. A esquerda o apresentava como o denunciador das misérias e mazelas do sistema capitalista mantenedor das imensas distorções econômicas e sociais do povo nordestino. E ainda hoje existe intelectuais de esquerda ganhando uns bons trocados em cima da obra e da figura emblemática do velho poeta. A direita, pragmática, o levava a reboque para os palanques e o paparicava com mimos que, na verdade, o deixavam por demais grato na sua simplicidade de sertanejo sem vaidades pessoais e sem maiores ambições. Neste aspecto, abstraindo qualquer juízo de valor, Patativa foi um inocente útil para ambos os lados ávidos de poder. O poeta morreu pobre. Maio/2009

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Sua Carteira de Identidade vai mudar! China finaliza acelerador de partículas A China terminou a construção do seu acelerador de partículas, o SSRF (Shangai Synchrotron Radiation Facility), ou acelerador de partículas de Xangai, que já nasce como a maior plataforma de pesquisas na China na área de física, biologia e materiais. O acelerador do SSRF mede 432 metros de circunferência, opera com uma energia de 3,5 gigaeletron-volts (GeV). Sua construção levou cinco anos e custou US$176 milhões. O SSRF possui sete feixes e estações experimentais, permitindo que múltiplos experimentos sejam conduzidos em diversas áreas, como ciências biológicas e médicas, novos materiais, física e bioquímica. Os raios X superfortes produzidos pelo acelerador permitirão a análise detalhada em altíssima resolução de diversos tipos de materiais, incluindo proteínas e compostos destinados ao desenvolvimento de novos medicamentos. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Dnocs apresenta pacotes tecnológicos para captação de recursos na SEAP Cinco pacotes tecnológicos, fruto de pesquisas do Dnocs, prontos para a aplicação pela sociedade, extraídos do banco de projetos da Coordenação de Pesca e Aqüicultura (CPA), foram apresentados em maio em Fortaleza, no seminário de atração de parceiros institucionais para financiar as atividades. Depois da apresentação, os projetos serão encaminhados a instituições de fomento para a captação de recursos. Foram mostrados os projetos de microalgas de açudes, do super macho da tilápia e da sardinha de água doce, que estão prontos para ser repassados ao setor produtivo, assim como o do camarão canela. Jeanette Koch, professora do Instituto Centec do Ceará, discorreu sobre a necessidade de criação de um Centro de Referência de Água a ser instalado no Castanhão. “Não temos no Nordeste nenhum centro de pesquisa integrado que tenha uma complexidade total em termos de análise de água”, disse ela. (Fonte: Dnocs)

Economia ecológica exige Terceira Revolução Industrial

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mundial que comemora os 4 séculos desde as primeiras observações telescópicas do céu feitas por Galileu Galilei. Esta será uma celebração global da Astronomia e suas contribuições para o conhecimento humano. As atividades vem dando forte ênfase

Interface cérebro-Twitter permite twitar usando o pensamento

à educação, ao envolvimento do público e ao engajamento dos jovens na ciência, através de atividades locais, nacionais e globais. Destacará os méritos da ciência e seus métodos. (Fontes: www.astronomia2009.org.br/ e Unesco Brasil).

A Braskem desenvolveu uma tecnologia para fabricar plástico a partir do álcool. A empresa anunciou que usará nos próximos meses o etanol de cana-de-açúcar para fabricar polietileno de alta densidade linear, usado na fabricação de embalagens e outros produtos. Segundo a empresa, a resina é a primeira no mundo a conter 100% de matéria-prima renovável, atestada pelo laboratório americano Beta Analytic. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Brasileiros conseguem fabricar açúcar sem enxofre

“A única saída para atingir as metas ambientais é o início de uma terceira revolução industrial, que garanta a redução do consumo energético”. As palavras do secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha, Matthias Machnig, ditas durante o Congresso Ecogerma 2009, refletiram a urgência atribuída por cientistas, gestores públicos e empresários à busca de tecnologias e soluções sustentáveis para a redução dos efeitos das mudanças climáticas no mundo. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

2009: Ano Internacional da Astronomia As ONU elegeu 2009 o Ano Internacional da Astronomia (IYA 2009), e designou a Unesco a agência líder nas comemorações. A União Astronômica Internacional (IAU) atuará na implementação das atividades da celebração

Você sabia que sua Carteira de Identidade vai mudar? Ao longo de 2009, os órgãos emissores do documento passarão a disponibilizar o RIC (Registro Único de Identidade Civil). Muito mais seguro e tecnológico, o RIC traz um chip, igual ao dos cartões de banco, que guarda várias informações. Não só o seu biotipo (digitais, altura, cor dos olhos, etc.) mas também número de outros documentos (CPF, título de eleitor, carteira de habilitação e de trabalho) estarão reunidos em um mesmo lugar. (Fonte: www.olhardigital.com.br)

Plástico de cana-de-açúcar produzido no Brasil

Eletrodos instalados em uma espécie de capacete flexível detectam os sinais elétricos do cérebro e os transformam em ações físicas, como mover o cursor na tela do computador. Entre os alvos dessas novas tecnologias estão pessoas que sofrem de esclerose amiotrófica lateral, vítimas de derrames ou de danos na medula espinhal. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Uma mudança no processo de produção do açúcar cristal vai melhorar a qualidade do produto para o consumidor e poderá também abrir as portas do mercado mundial. Uma usina já produz o açúcar cristal sem usar o dióxido de enxofre, também chamado de sulfito, que serve para deixar o açúcar branco. No lugar do enxofre, é usado o ozônio, obtido na própria usina em uma máquina. (Fonte: jornalnacional.globo.com)

Músculo artificial de aerogel e nanotubos: superforte e super-rápido Um material especial composto por nanotubos flexíveis de carbono, poderá ser usado como músculo sintético. O músculo artificial, quando aplicado eletricidade, expande em mais de 200%. O músculo artificial conserva cerca de 70% da energia aplicada. Com os movimentos de contração muscular, será possível gerar energia elétrica através do rearranjo destes nanotubos, que por fim, poderá ser utilizado para alimentar dispositivos externos ou até mesmo em outros módulos musculares para sustentar locomoção de robôs ou sistemas avançados de próteses. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br) Maio/2009

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FUNDOS SETORIAIS

CIÊNCIA E DESEQUILÍBRIO BRIO REGIONAL SE EXPLICAM Os Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, criados em 1999, são a maior fonte de financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação do país. Até 2007, os fundos aplicaram R$ 5,1 bilhões. Por lei, 30% desses recursos deveriam financiar iniciativas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Só que o percentual não vem sendo cumprido. Resultado: deixaram de ser aplicados nessas áreas, pelo menos, R$ 460 milhões. Por outro lado, somente o Sudeste abocanhou no período mais de R$ 3 bilhões, ou seja, 60,41% do total Por Marcel Bezerra marcel@editoraassare.com.br

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e dez anos para cá, a produção científica brasileira deu um salto significativo. Mesmo questionados por pesquisadores como parâmetros de avaliação do panorama científico nacional, face ainda a imprecisão e desatualização dos dados, alguns levantamentos se mostram expressivos. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Brasil ocupa o 15º lugar no ranking do número de publicações em veículos científicos internacionais. A marca é de 2,2% de todos os artigos científicos publicados no mundo. Os 40 primeiros países da lista concentram 98% da produção científica global. Atualmente, estamos entre os 25 primeiros. Com cerca de 80 mil doutores, sendo entre 12 mil e 14 mil formados a cada ano, pode-se considerar que a ciência brasileira cresce a uma taxa anual média de 20%. Perde apenas para China e Coréia. A preço de hoje, o Brasil chega a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em financiamento público à ciência e tecnologia. Um patamar aproximado ao de diversos países desenvolvidos.

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torado, recém-doutor e PNPD (Programa Nacional de Pós-Doutorado) concedidas pela Capes subiu de 16,5 mil para 41 mil, somente no período de 1999 e 2008. O total de bolsas de formação e pesquisa no país outorgadas por agências federais – entre elas a própria Capes – dobrou, no mesmo período, atingindo 60 mil no ano passado. Para a próxima década, projeta-se uma proporção de doutores por 100 mil habitantes semelhante à dos Estados Unidos e do Japão. Segundo o ex-secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), doutor em Teoria da Computação e atual presidente da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Tarcísio Pequeno, se os países do mundo fossem divididos pela

é “sustentável” e se deve, primeiro, à fundação, em 1951, de duas instituições “extremamente importantes para a área”. No caso, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Capes. "Apesar das flutuações de financiamento e das descontinuidades, nunca sérias o suficiente para desmantelá-las”, coloca. O segundo motivo foi a criação, em 1999, ao final do governo Fernando Henrique Cardoso, dos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia. “A ciência e a tecnologia fizeram uma verdadeira revolução interna com a criação desses instrumentos”, considera Tarcísio, acrescentando que os fundos permitiram ao Brasil mais que duplicar a aplicação dos recursos em C&T.

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DESARMONIA DISTRIBUTIVA

R$ 465 MILHÕES NÃO CHEGARAM AO NE, NORTE E CENTRO-OESTE

Por região

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FUNDOS ESTABILIZAM CURSO DOS PROJETOS “Antes o pesquisador aprovava o projeto, e as parcelas a Finep desembolsava, por exemplo, em seis vezes. Liberava uma, o pesquisador aplicava o recurso, fazia o relatório e a prestação de contas. O que acontecia: faltava dinheiro, enquanto ele estava no meio da pesquisa. Era horrível, porque não tinha continuidade, o dinheiro ia para o lixo. Com os fundos setoriais, não. O projeto sendo aprovado, o recurso está garantido”, Lene Malveira, geógrafa com mestrado em Gestão Pública e estudiosa dos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia.

SEM MASSA CRÍTICA, NÃO VAI

“EDITAIS TRATAM IGUALMENTE OS DESIGUAIS” Foto: Flamínio Araripe

Foto: Flamínio Araripe

Principal instrumento do Governo Federal para alavancar o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) do País, através do financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, os fundos setoriais surgiram na esteira do processo de privatização de alguns setores da economia nacional, como exploração de petróleo, telecomunicações e energia elétrica. Eram uma resposta à necessidade de aumentar os recursos destinados ao setor e garantir constância em seu fluxo. Os fundos erigiram um novo modelo de gestão, com a participação de vários segmentos sociais, além de apoiar o desenvolvimento e consolidação de parcerias entre Investimento. Fundos Setoriais aumentaram recursos para a ciência universidades, centros de pesquisa e o setor produtivo. O objetivo foi induzir o aumento dos investimenEXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA DOS FUNDOS SETORIAIS tos privados em C&T e impulsionar o desenvolvimento tecnológico dos Por estado - Nordeste (1999-2007) (1999-2007) setores considerados. Hoje, há 17 fundos, sendo 15 Recursos Percentual Recursos Estado Regiões (em milhões (em milhões relativos a setores específicos e dois Brasil (%) R$) R$) transversais. Destes, um é voltado Norte 234,67 AL 0,54% 28,13 à interação universidade-empresa Nordeste BA 2,95% 151,34 734,47 – Fundo Verde-Amarelo –, e o outro, o CT-Infra, destinado a apoiar Centro Oeste 103,10 CE 2,51% 127,09 a melhoria da infra-estrutura das Sudeste 3.096,51 MA 0,41% 21,19 Instituições Científicas e TecnolóSul 603,45 PB 1,42% 72,79 gicas (ICTs). Distrito Federal 351,93 PE 3,64% 187,34 Um dos objetivos específicos TOTAL PI 0,23% 12,14 5.125,53 dos fundos setoriais é reduzir as Observação: RN 2,17% 111,24 desigualdades regionais por meio 1.537,65 30 % 5.121,00 da destinação de, no mínimo, 30% SE 0,45% 23,21 dos recursos para projetos a serem TOTAL 14,32% 734,47 implementados nas regiões Norte, 11,78% Observação: Total Brasil R$ 6,87% Nordeste e Centro-Oeste, “estimu5.125,53 bi 4,59% lando um desenvolvimento mais 15,14% 3,16% 1,65% harmônico para o País”. Mas, é jus14,32% 3,82% tamente nesse ponto onde reside 25,50% *20,94% um problema do setor de CT&I. Percentual 20,60% De acordo com o deputado feNordeste (%) deral Ariosto Holanda (PSB/CE), 2,03% desde a concepção dos fundos até 2007, deixaram de ser aplicados 9,91% nas três regiões R$ 465 milhões a 60,41% 17,30% 2,88% que elas teriam direito durante o Fonte: MCT

período. Para se ter uma idéia desse desequilíbrio, do total de R$ 5,1 bilhões empregados no país entre 1999 e 2007, a região Sudeste, maior pólo de produção científica brasileira, abocanhou R$ 3 bilhões, ou seja, 60,41% do total. Enquanto isso, os projetos do Nordeste receberam R$ 734,4 milhões (14,32%), os do Norte R$ 234,6 milhões (4,57%) e os do Centro-Oeste R$ 103,1 milhões (2,01%). Para chegar à cifra que deixa de vir às três regiões, os recursos apresentados na execução orçamentária relativos ao Distrito Federal – R$ 351,93 milhões – foram desconsiderados pelo deputado no cômputo do percentual da região Centro-Oeste. “Esse dinheiro vai para atividades-meio de custeio, como pagamento de pessoal, entre outras, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do CNPq, em Brasília. Não vão diretamente para financiar projetos”, explica o deputado. Pela conta do todo aportado, ao N/NE/CO caberia a fatia de R$ 1,5 bi. Entretanto, vieram pouco mais de R$ 1 bi.

É preciso respeitar o planejamento de Estados que não participam dos editais dos fundos setoriais por falta de base científica Ariosto Holanda, deputado federal (PSB/CE)

Ex-secretário de C&T do Ceará em duas gestões e deputado federal no quinto mandato, Ariosto Holanda defende uma política de editais que estejam mais de acordo com as realidades da região. “Quando se faz nacionalmente um edital, passamos a tratar igualmente os desiguais. Na distribuição dos recursos há uma desigualdade total”, revela. “O Semi-árido aqui no Nordeste, por exemplo. São pouquíssimos editais que enfocam esse aspecto”, pontua a geógrafa com mestrado em Gestão Pública, Lene Malveira, estudiosa do assunto. Não bastasse a disparidade entre as regiões, há ainda uma desigualdade dentro da outra. Entre os estados do Nordeste, o Piauí recebeu no período R$ 12 milhões e o Maranhão R$ 21 milhões, bem menos que Ceará (R$ 127 mi), Bahia (R$ 151 mi) e Pernambuco (R$ 187 mi). De acordo com Ariosto, o CT-Petro despendeu no perío-

do R$ 858 milhões no país, dos quais, por lei, deveria aplicar 40% no Nordeste – R$ 343 milhões –, contudo a soma atingiu R$ 210 milhões na região. Ciente do descompasso na distribuição de recursos de ciência e tecnologia no país, o MCT iniciou, desde o ano passado, discussões no sentido de fortalecer o setor no Nordeste. Em julho, o ministro Sérgio Resende teve um encontro com parlamentares da bancada nordestina em Brasília, quando foi formada uma comissão com objetivo de elaborar um plano de C&T para a região. Uma proposta de Ariosto, que apresentou os números dos fundos setoriais. O deputado cearense diz que na época a discussão centrou num ponto: a necessidade de respeitar o planejamento dos Estados que não conseguem participar de alguns editais dos fundos setoriais pela falta de base científica. Ele elaborou ainda o termo de referência para as dis-

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“TRANSFORMAR CIÊNCIA EM FELICIDADE HUMANA”

Foto: Flamínio Araripe

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QUATRO PONTOS FUNDAMENTAIS DE DESEQUILÍBRIO EM CIÊNCIA

DESAFIO

Foto: Jaime Muro Llosa

cussões de um Plano de Desenvolvimento Científico e Tecnológico para o Nordeste. A proposta colocou um modelo para discussão que previa a constituição de um conselho de desenvolvimento da área para o Nordeste (CDCTN), a definir a política regional de C&T e a aplicação dos recursos, dispostos em um fundo regional (FDCTN). Os recursos desse fundo teriam origem nos fundos setoriais, das fundações de apoio à pesquisa dos estados (FAPs), nas emendas ao Orçamento da União e outras fontes. Seriam administrados por uma instituição da região – inicialmente foi ventilada a possibilidade de o Banco do Nordeste, que tem o Fundo de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fundeci), ser o agente financeiro. Mas, os instrumentos de ação a serem utilizados teriam como base instituições do Nordeste que trabalham com C&T. Só que nas reuniões subseqüentes com a participação de representantes do ministério, a proposta não avançou no tocante à retirada dos recursos da administração da Finep. “Está se caminhando para a criação de uma instância direcionada para o Nordeste, que pode ser através de uma diretoria na Finep ou de uma secretaria no ministério. A única coisa que está fechada é a disposição do ministro em criar um fórum permanente de aplicação dos recursos dos fundos setoriais na região”, afirma Ariosto. Há ainda, relata o deputado, a disposição do coordenador da bancada nordestina, Zezéu Ribeiro (PT/BA) de colocar o assunto em pauta. Outro que se interessou pelo tema foi o ministro de Assuntos Estratégicos da Presidência, Mangabeira Unger.

O Brasil faz sua ciência a partir das suas elites educadas na escola particular e dos heróis das classes baixas educados nas escolas técnicas e nos colégios militares. Tarcísio Pequeno, professor e presidente da Funcap Ao mesmo tempo em que demonstram vigor quanto ao crescimento da produção, as estatísticas não deixam de refletir alguns desafios que a ciência no Brasil ainda precisa superar. Na opinião do professor Tarcísio Pequeno, se por um lado, na ciência, é o 15º, o país ainda ocupa a 70ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). “Isso permite a seguinte leitura: nós ainda não somos realmente bem sucedidos em transformar o conhecimento científico em bem-estar geral da sociedade. Como costumo dizer em palavras mais cruas, conhecimento científico em felicidade humana”, reconhece. Apesar do aporte público em relação ao PIB equivalente ao de nações desenvolvidas, o Brasil ainda não vê na iniciativa privada o mesmo comportamento, o que, de acordo com Tarcísio, eleva os investimentos totais em C&T nessas nações a percentuais que vão de 3% a 3,5%. A pesquisa é considerada pelo presidente da Funcap como uma das alternativas em tempos de crise econômica. Com o susto provocado por ela, o orçamento da área foi cortado

em R$ 1,2 bilhão pelo relator da proposta no ano passado, o senador Delcídio Amaral (PT/MS). Cerca de R$ 500 milhões a comunidade científica já conseguiu recuperar. “Enquanto isso, no centro da crise, nos EUA, o presidente Barack Obama está propondo aumentar para 4,2% do PIB o investimento em C&T naquele país”, contrapõe Tarcísio Pequeno. Não obstante o reconhecimento desses obstáculos, o professor aponta também o agronegócio e o petróleo como áreas em que a ciência brasileira tem registrado importantes avanços. Onde as pesquisas, realizadas em parcerias com universidades, registram resultados práticos no aumento da produtividade e conseqüente elevação do superávit da balança comercial do país. Outro aspecto, na visão dele, é que o crescimento tem proporcionado a elevação da qualidade do ensino superior, principalmente nas universidades públicas. “Com a pesquisa que se faz, você incrementa bastante a qualidade dos formandos, que hoje, inclusive, participam muito mais de programas de iniciação científica. Isso ou os direciona para se tornarem cientistas, ou melhora a qualidade do ensino”, considera.

Tarcísio elenca quatro grandes desequilíbrios da produção científica brasileira atualmente, que “urge combater e harmonizar, se a gente quiser realmente nos firmar e ter um progresso a longo prazo”. O primeiro deles é o desequilíbrio “profundo” entre a qualidade do ensino público superior, especialmente na pós-graduação, e o ensino público da escola básica. “O Brasil faz sua ciência a partir das suas elites educadas na escola particular e dos heróis das classes baixas educados nas escolas técnicas e nos colégios militares”, assevera. O segundo é o já citado desequilíbrio entre a pesquisa realizada e financiada pela esfera pública versus a pesquisa feita pela esfera privada. Problema que tem razões mais fortes no modelo industrial brasileiro, de substituição de importação. “Nossa indústria foi construída em cima de empresas multinacionais, que tem suas sedes fora do país, onde fazem sua pesquisa. Fazem muito pouco dentro do Brasil, e é preciso políticas que possam mudar isso”, sugere. O terceiro desequilíbrio está na graduação e na pós-graduação universitárias, que na interpretação do professor formam mais pesquisadores em áreas do conhecimento que não refletem as demandas da sociedade. “Em países como a Coréia, 70% das pessoas que estão nas universidades, na pós-graduação, são das áreas de tecnologia, e no Brasil, o nosso mix tem uma quantidade enorme nas ciências humanas, que são importantes, mas talvez não na quantidade que nós nos formamos, vis-à-vis a necessidade

de um país em desenvolvimento”. O quarto e último é o próprio desequilíbrio regional. Embora avalie como de boa qualidade a pesquisa científica feita no Nordeste, Tarcísio Pequeno não deixa de ressaltar a concentração da ciência produzida no Brasil na região Sudeste. Nesse sentido, ele concorda com a destinação de uma cota dos fundos setoriais para Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e aponta saídas para equacionar o problema. Uma delas seria estimular, ao lado das políticas competitivas dos editais, projetos de institutos que objetivam formar recursos humanos, como os Institutos Nacionais de C&T (INCTs), e os Programas de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex).

Além disso, ele defende ações institucionais indutoras para atender as reais necessidades de regiões e microrregiões, em alguns casos com estrutura para pesquisa e em outros com o incentivo à formação de mais doutores que se fixem nas regiões, por exemplo. Em relação aos fundos setoriais, Tarcísio se diz a favor de uma proposta que permita tratar das necessidades científicas do Nordeste. “Seria a favor de que fosse criado um fundo das três regiões para aqueles recursos residuais quando a aplicação não atinge os 30%, os 35% ou os 40%, conforme o caso. Esse fundo poderia aplicar dinheiro em pesquisa no Nordeste, e seria gerido por um comitê, composto, de maneira predominante, por pesquisadores, titulados e renomados dessas regiões. E não por instituições alheias à pesquisa científica”, explicita.

Como funciona a gestão dos Fundos Setoriais O modelo de gestão concebido para os fundos é baseado na existência de Comitês Gestores (CGs), um para cada. Cada CG é presidido por representante do MCT e integrado por representantes dos ministérios afins, agências reguladoras, setores acadêmicos e empresariais, além da Finep do CNPq. Com exceção do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), gerido pelo Ministério das Comunicações, os recursos dos demais Fundos são alocados no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC) do Ministério da Ci-

ência e Tecnologia (MCT) e administrados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) empresa pública ligada ao ministério, como sua secretaria executiva. Os fundos atendem a áreas diversificadas, mas têm características comuns em relação a sua operacionalização, como vinculação de receitas, plurianualidade, gestão compartilhada, fontes diversas e programas integrados. Além disso, podem ser acessados por meio de editais públicos, cartas-convite e encomendas. Saiba quais são os Fundos Setoriais em: www.finep.gov.br.

Fotos: Flamínio Araripe

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MADE IN

PIRA PI RAMBU BU Como a cooperativa Pirambu Digital, projeto implantado num bairro pobre da periferia de Fortaleza (CE), mudou a perspectiva de dezenas de jovens e melhora a vida de toda uma comunidade, vítima do preconceito e de inúmeros problemas sociais

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Por Lucílio Lessa – Texto e fotos reporter@editoraassare.com.br raneide, 21 anos. Filha de uma doméstica e de um vendedor de água de coco. Ao concluir o ensino fundamental em escola pública, não tinha noção do que faria. A falta de perspectiva também era um problema para a costureira Patrícia, 31 anos, que, embora tenha herdado a profissão da mãe, sonhava em ir mais longe. Só esbarrava nos desestímulos da vida real de quem, mesmo em casa, obrigava-se disciplinadamente a trabalhar os

dois expedientes. “Passava em frente às faculdades e achava que não era capaz de estar ali”, afirma. Numa realidade um pouco diferente das duas, estava Bruno, 23 anos. Filho de funcionários de uma multinacional, Bruno havia iniciado discreta carreira profissional, mas sonhava em alçar vôos mais altos. Três jovens à procura de dias melhores, distintas histórias de vida, um cenário em comum: o Pirambu, bairro mais populoso de Fortaleza, com 350 mil habitantes. É uma antiga favela formada pelos ajuntamentos em terrenos ocupados próximos

ao mar na zona oeste da Capital. Teve sua história construída à custa de grandes conflitos entre polícia e comunidade no cotidiano da luta por moradia. Falta de infraestrutura urbana e índices de violência sempre crescentes deixaram profundas marcas na identidade do lugar, que há décadas também é espreitado pelo tráfico de drogas. Hoje, a comunidade ainda cresce, o que leva o bairro possuir a maior densidade populacional do país, com 40 mil habitantes por quilômetro quadrado e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

www.nordestevinteum.com.br — Maio/2009

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de 0,391, entre os piores da capital cearense. Em 2008, ficou entre as 11 comunidades recordistas em assassinatos na Grande Fortaleza, ocupando o quinto lugar. Uma realidade a que Iraneide, Patrícia e Bruno tiveram que se habituar desde crianças. E foi nesse contexto que surgiu a cooperativa Pirambu Digital. Criada pelo Centro Federal de Educação e Tecnologia do Ceará (Cefet), hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (Ifet), a cooperativa está ligada ao Movimento Emaús - Amor e Justiça, ONG católica situada no coração do Pirambu. A parceria possibilitou à cooperativa ocupar o segundo andar do galpão da ONG. A proposta é criar soluções em Tecnologia da Informação (TI) para empresas de dentro e fora do Ceará. Ou seja, provar que o desenvolvimento de software pode ser feito em qualquer lugar, desde que haja oportunidades. A cooperativa possui quatro empreendimentos: o Pólo de Desenvolvimento de Software (Podes), responsável pelo desenvolvimento de sistemas e sites, bem como programas de alta tecnologia para o comércio local; o Fábrica de

Computadores (Fácil), que opera na recuperação de computadores doados, que em seguida são alugados à comunidade; o Treinamentos e Eventos (Trevo), criado para promover treinamentos e eventos em tecnologia da informação e comunicação; e o Negócios de Administração (Nega), o administrador dos negócios da cooperativa. O principal mérito da empresa consolida-se ao democratizar o acesso à Tecnologia da Informação no bairro. Tudo começa a partir de ações solidárias dos jovens, que totalizam 50% da população local. A perspectiva é simples: oferecer capacitação para que os alunos possam repassar conhecimentos, agregados ao valor do fruto de seus talentos, para outras pessoas do bairro. Uma espécie de reação em cadeia para construção de uma realidade local diferente. “A gente desenvolve mecanismos para os jovens contribuírem e serem felizes no bairro em que moram. O papel de uma instituição de ensino não é simplesmente resolver o problema de meia dúzia de pessoas. A grande ‘sacada’ do projeto é que os talentos revelados aqui podem mudar a vida da comunidade”, afirma o pesqui-

Inclusão Digital. Cooperativa democratiza acesso à Tecnologia da Informação.

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A grande ‘sacada’ do projeto é que os talentos revelados aqui podem mudar a vida da comunidade Mauro Oliveira, pesquisador e ex-secretário do Ministério das Comunicações

sador e ex-secretário do Ministério das Comunicações, Mauro Oliveira, idealizador da cooperativa à época em que foi diretor do Cefet. As atividades sociais realizadas pela Pirambu Digital primam pela originalidade. Um dos projetos é o Casa do Saber, trabalho realizado junto às famílias, através da orientação aos pais sobre o valor das propostas educacionais. Ao todo, são atendidas 100 crianças com atividades sócio-educativas como teatro e xadrez. A seleção das famílias é feita após visita de professores voluntários às residências. Outra opção da cooperativa é o Agente Digital. O projeto forma jovens em informática básica ou avançada. Alunos universitários e do Ifet são os monitores. Já o Pirambu Business School trata da capacitação de alunos com potencial empreendedor para o mercado de trabalho, através de aulas de Português, Matemática, Inglês e Informática. O ciclo se fecha com a Universidade do Trabalho, que prepara jovens para ingressarem no ensino superior e postos de trabalho dentro do contexto deflagrado a partir da Pirambu Digital.

Antevisão solidária na França

Cursos pagos com repasse de conhecimentos e esperanças As iniciativas da Pirambu Digital têm êxito reafirmado e possibilitam contribuição efetiva ao desenvolvimento do bairro. Retribuir é palavra de ordem e valor multiplicado quando se trata da forma de pagamento dos cursos. Cada aluno recompensa a oportunidade, ao se comprometer em repassar algum conhecimento a pessoas do Pirambu. Seja sobre o conteúdo do curso ou mesmo habilidades adquiridas e potencializadas no decorrer das atividades dos projetos de ensino. Resultado: cerca de 600 pessoas circulam, por dia, na cooperativa. Tudo começou em 1993, durante um doutorado na França, quando Mauro Oliveira ficou fascinado com o modelo educacional do país. “A minha filha, que é classe média, estudava com o filho do vigia e, ao mesmo tempo, com o filho do presidente da Câmara de Comércio. Então tive vontade de fazer alguma coisa assim no Brasil”, ressalta Mauro. No mesmo ano, professores voluntários liderados pelo pesquisador iniciaram uma parceria com a ONG Emaús, em atividades sócio-educativas no Pirambu.

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LG Eletronics apostou no projeto

Projetos especiais

“Condomínio Virtual”, “Personal Trainner de Informática”, “Biblioteca - Lan House”e “Agente Digital” A Pirambu Digital também possui os projetos especiais intitulados Condomínio Virtual, Personal Trainer de Informática, Biblioteca Ligada a Lan House (Bila) e Agente Digital. O primeiro centra na aquisição de uma antena viabilizada por uma empresa de internet, com sinal via rádio. O destaque se dá pela dinâmica do serviço. Ao adquirir a antena, o custo (R$ 230) é divido por três vizinhos. A mensalidade é de R$ 25 e, atualmente, 23 condomínios estão cadastrados. O despreparo das pessoas ao lidar com as ferramentas de acesso à internet, fez surgir o Agente Digital, programa que possibilitou também a criação de outro, o Personal Trainer de Informática. O mecanismo é simples. Após receber o treinamento e retribuir as aulas com orientações à comunidade, o jovem começa a dar aulas particulares de informática a clientes de outros bairros, previamente agendados pela Pirambú Digital. O valor das aulas é divido meio a meio entre a cooperativa e o personal. A provar que estímulos criativos ajudam o aprendizado, surgiu a Bila. O projeto, sucesso entre as crianças, também serviu para contradizer involuntariamente quem acredita que as facilidades da internet irão diminuir a procura pelo livro. Funciona assim: após utilizar uma hora de internet, o usuário deve ler um dos livros da biblioteca e realizar uma espécie de resumo, conferido por uma das duas monitoras do local. Diariamente, o local recebe a visita de aproximadamente 150 crianças. “O mais interessante é que a grande maioria já vem diretamente em busca dos livros”, revela a auxiliar administrativa, Marilu Alves. E sobre Patrícia, citada do início da matéria, após um excelente trabalho como instrutora da cooperativa em diversas empresas, a costureira, que tinha o sonho de vencer na vida, hoje vive bem mais dignamente, trabalhando em um negócio próprio na Itália. “Todos precisam de uma chance. E quando ela vem, cabe a gente fazer valer a oportunidade”, conclui.

A professora Dalci Souza Araújo lembra que no começo, apesar do esforço da equipe, as crianças tinham dificuldades em se sentir incluídas. Dez anos depois, 30 jovens foram selecionados para um curso de preparação de alunos para o Cefet. Nesse período, a LG Eletronics procurou o centro para fazer investimentos sócio-educativos, por meio da Lei da Informática. Com o incentivo, o projeto, hoje prestes a concluir a formação do segundo grupo, passou de 30 para 120 o número de jovens entre 18 e 24 anos, matriculados na primeira turma. Os cursos oferecidos são de Desenvolvimento de software e o de Conectividade. O projeto ainda inclui transporte, fardamento, 25% do salário mínimo aos estudantes, equipamentos de última geração e construção de um novo prédio no Cefet. A primeira etapa do processo foi aplicar provas destinadas a alunos oriundos de escolas públicas. Iraneide tirou de letra . “A seleção não era restrita a pessoas do bairro, mas o fato de estar ligada ao Pirambu praticamente anulou a procura de candidatos de outras localidades”, lembra. Ao final dos dois anos de curso da primeira turma, o professor Mauro Oliveira fez a proposta da Pirambu Digital. A idéia era fazer com que os jovens se realizassem com um negó-

cio próprio dentro do bairro, auxiliando no desenvolvimento sócio econômico da comunidade. “Foi um verdadeiro sonho o que ele colocou na cabeça da gente naquele dia”, ressalta a hoje coordenadora de projetos. Em janeiro de 2006, surge, então, a cooperativa. O empreendimento agora é composto por 48 cooperados, dois estagiários e 15 voluntários. Boa parte dos alunos do projeto optou por procurar empregos e estágios fora do bairro. Bruno está entre os que ficaram, com a obstinação de encarar desafios e deixar o antigo emprego, sob a crítica dos pais. O esforço foi recompensado. Hoje, o rapaz de discurso articulado e projetos ambiciosos é diretor de gestão estratégica da cooperativa. Em meio às explicações sobre o funcionamento da empresa, ele ainda se emociona. “Lembro de quando pintamos essas paredes. Hoje, meus pais têm certeza de que tomei a decisão certa”. A emoção de Bruno se justifica na dimensão e credibilidade alcançadas pela Pirambu Digital. Mas, tantos talentos não poderiam de fato ficar restritos ao bairro. Há pouco tempo a empresa deu passo importante para o seu crescimento, ao fechar convênio com a Universidade de Evry, na França, para intercâmbio de negócios no campo da informática. A iniciativa possibilitará estágios para integrantes da cooperativa. O presidente da Pirambu Digital, Gildenis Rodrigues, também aluno da primeira turma do Cefet, será um dos primeiros a investir na empreitada. Ele comemora o fato da empresa já possuir 15 clientes empresarias, além de dezenas na categoria pessoa física.

A Bila, projeto de sucesso entre as crianças de incentivo à leitura. Após utilizar a internet, o usuário deve ler e realizar um resumo da obra

Jovens participam de cursos dentro da Pirambu Digital www.nordestevinteum.com.br — Maio/2009

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Pintura a 贸leo sobre tela do artista pl谩stico Mino Castelo Branco


Meio ambiente É pr eciso pr eservar agora ou os efeitos mais dur os e d evastad or es r ecairão sobr e tod os nós

Instituto de Difusão Social do Conhecimento


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