Dependências da paixão e outros contos.

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DependĂŞncias da paixĂŁo e outros contos



Eliana Matosinho

Dependências da paixão e outros contos

São Paulo 2012


Copyright © 2012 by Editora Baraúna SE Ltda Capa e Projeto Gráfico Aline Benitez Diagramação Thaís Santos Revisão Daniel Vinicius

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ _______________________________________________________________

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Matosinho, Eliana Dependências da paixão e outros contos / Eliana Matosinho. - São Paulo : Baraúna, 2012. ISBN 978-85-7923-596-2 1. Conto brasileiro. I. Título. 12-5034.

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

16.07.12 26.07.12

037367

_______________________________________________________________ Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua da Glória, 246 - 3º andar CEP 01510-000 Liberdade - São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br


Sumário Lobas de Thaurus.....................................................7 Sapatos de Verniz......................................................9 Aimberê..................................................................12 Primavera 77...........................................................15 O Balcão das Comunhões.......................................27 Fiéis........................................................................ 28 Signos..................................................................... 37 Templo................................................................... 40

Estojo Ancestralidade e o Natal...............................42 Simbiose sobre a Terra............................................. 43 O Curral............................................................44 O Estábulo.........................................................46 O Frango...........................................................48 A Leitoa.............................................................50 Vinte e Quatro de Dezembro.............................51

Regalos...................................................................53


Estojo Horas da Noite.............................................64 Reminiscências........................................................ 65 Ônibus.................................................................... 67 Languidez............................................................... 68 Renascer.................................................................. 69 Medem-se olhos escuros.......................................... 70

Uma Imagem..........................................................71 Restaurante.............................................................73 Lida do Porco.........................................................75 Estojo dependências da Paixão:...............................79 A desconstrução...................................................... 80 Teurgia pela Palavra................................................ 86 A Chama Sutil....................................................87 O Pasto de Anjos................................................88 As Águas Benfazejas............................................89 O Senso.............................................................90 A Sala de Ausências............................................91

Amor Clandestino...................................................92


Lobas de Thaurus Uma das lobas é velha, e por entre seus dentes aprendi a me ajeitar. Então, acho que sempre escapo. Outro dia, tirei de suas tripas uma mulher que ela recentemente havia engolido. A outra se faz de mansa, quer parecer desligada, mas quando menos se espera: não me reconhece, e rosna para mim, enquanto fica rondando pelo que vê como seus domínios. Rômulo e Remo. Aleitamento de lobas. Roma. São Paulo. Lobas. Quem sou? Leitura de lobas sobre minhas manifestações, febre produtiva e afirmação pessoal: algumas desdenham, e, mesmo assim, textos foram escritos, alguns, reescritos, outros. As de almas fragilizadas e olhares baços os acham bonitos, porém, não os entende; avaliação de quem já foi do ofício. Algumas ainda me atemorizam, como quando engolem pessoas à minha vista; outras, contudo, apenas as examinam e avaliam, estas lidam com a serpente, a paixão e o poder.

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Uma, ainda espero, descobrirĂĄ, sobre o escrito, e o falado tambĂŠm, do que me vai por dentro, e, deveras, me aleitara. E vou escrevendo em meio a tantos perigos. Inspirada, ĂŠ verdade.

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Sapatos de Verniz É um par de sapatos de verniz exposto na vitrina. Luzidio e rangente: ouvi-lo deve ser irritante. Ao seu lado, modelos semelhantes. Abaixo, pares obedecem à ordem do conjunto na organização exposta. Entre minutos de exame e longos intervalos, são observados pelos transeuntes. Lá estão eles: reluzentes. Olhados de frente, enquanto calculam as razões de sua utilidade: para quais ocasiões? Durabilidade? Não irão rachar o verniz na proximidade do artelho mínimo? Os observadores tímidos, depois de fria avaliação, entreolham-se. Sorriem entre si e para os sapatos. Comunicam sutilmente suas sensações e querências, e retornam às ruas para as azáfamas de suas vidas. Um tímido tem o nome de Irineu: desejos reservados, satisfaz-se a prestações. Entretido, imagina, cria, sempre espreitando. No seu peito explodem vontades; por ser contido, satisfaz-se aos pingos. Olhos pertinazes, que sugam posses disfarçadamente, miram aquela figura meio que sem jeito. A simples representação contem-

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plativa espinha quem tem objetivos perscrutadores, tais como os do lince para o alvo. — Pois não, senhor, deseja ver esses sapatos? Irineu responde engasgado, um grunhido: — Humpf... Os olhares convergem no calçado de verniz preto — sapatos que se de tão vaidosos de si não fossem, tornar-se-iam rubros assombrando a cidade. Ansioso, sem perda de tempo, propõe: — Quer provar esse, senhor? Qual o seu número? Soco na fantasia, na estrutura. Estonteado, Irineu pensa: — Fui inconveniente, incomodei o homem. Como ousei? — Com os devaneios devassados, exige-se, agora, a ação. Os olhares são direcionados. — Sim. Número 40. Mas se pequena a forma, 41, dependendo da fábrica. — Temos os dois tamanhos. — Diz o perscrutador. Entram na loja. Irineu percebe o cheiro do couro e o do feltro dos chapéus. Poeira em ambiente de agitação. Sorri nervoso. Os sapatos chegam. Mais bonitos quando em suas mãos. Olha, apalpa-os para medir a flexibilidade. O atendente, calçadeira em punho, alcança os calcanhares, enquanto o comprador contorce o pé esquerdo para facilitar o encaixe. Este é bom, reflete Irineu. Sente a firmeza do couro. O ajuste modelador. — Qual é o preço? — Pergunta animado, pronto para a compra. — Trezentos. Tristeza, vergonha, frustração. E o embaraço, então, nem se fala. Como pagar essa quantia? E o tempo do vendedor? Acabou o mundo. O de sua cabeça, é claro.

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— Temos outros modelos interessantes e mais em conta. O moço da loja se aproveita do tímido atônito. E mais caixas são colocadas à sua frente para escolher. O primeiro da vitrina, preto de verniz. Os de agora, uns pretos sem verniz, e outros marrons, sendo calçados em seus pés. É ativamente inquirido quanto ao seu conforto. — Está apertando nos cantos? Ande até o espelho e observe. — Intervém o vendedor. Depois de várias trocas, a opção: o marrom de elástico nos cantos. Tudo resolvido. Estes não foram remarcados. — Cento e cinquenta. — Afirma o perscrutador. — Quer que embrulhe ou leva na sacola plástica? — Na caixa, por favor! Garbosamente na vitrina, os sapatos de verniz preto. Num relance, olha para eles uma última vez. Outros curiosos assistem à exposição da loja. O próximo tímido, o próximo indeciso. Há desperdício, quando atuam os esquivos.

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Aimberê Flores, bexigas, apitos, papéis repicados das balas de café. Tintas para todas as expressões derivarem à tona da imaginação ou emoção, de um momento qualquer, a serem impressas em paredes brancas, caiadas. Colares, papagaios de empinar, reco-reco, bolo branco de coco, brigadeiros, licores, óculos de plástico, sombrinhas de papel colorido. Tudo em profusão de cores para a algazarra do dia. Aimberê, como santinha, uma flor na testa presa pela tiara de couro, corria em seus sapatos brancos de pulseirinha pela casa da comemoração. Já no oitavo ano de sua existência, ela percorria alegre a doce ilusão do tudo que viria a ser: a festa e a continuação da vida. Noitinha, expectativa: é chegada a hora. Luzes, luzes e mais luzes no jardim onde tinha a fonte e o caramanchão. Diminutos relógios de hora imóvel, em plástico rosa, passeando por entre caras, sobre cabeças, nos pulsos dos quase púberes. Pipas fosforescentes empinadas no céu da noite. Ventos da primavera as levavam junto com a imaginação das crianças. Esvoaçantes: os cabelos,

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vestidos brancos ou rosa de organdi, ramos das árvores em harmonia com a cena. Mãos meladas lambuzavam, deixando impressões digitais nos adornos pueris. Olhos brilhantes, vivíssimos, percorriam os ambientes devorando gulosamente tanto doces, como brincadeiras e brinquedos. Dos presentes, o mais precioso era o sino de bronze, do tamanho de duas crianças. Fora fixado, através de cabos de aço e roldanas, a uma talha toda colorida. A ponta da corda do badalo, puxada pelos corpos pequenos, dava a alegria da sonoridade. Adultos fizeram seu local para o festejo! No terreiro para secagem do café. Ali passava um aqueduto, interconectado em certas passagens com latão, que deixava cair a água e seu barulho. A roleta de aro de bicicleta dava o número premiado. A prenda, ora um frango assado, ora uma pipa de vinho. Barril de chope era trocado a cada hora. O sabor do churrasco. Cheiro de carne exalando, anestesiando a rigidez dos corpos normalmente aflitos. Nesses dias, moles eram os corpos, lépidos eram os espíritos, que, fortalecidos pela alegria, esqueciam-se de envelhecer ou que já eram velhos. Vivas as almas! Havia liberdade para os convivas serem alegres abastados, despreocupados e corteses. Bonança. Aimberê perscrutava as coisas e pessoas. Sua memória repassava os fatos sucedidos em câmera lenta. Sentia as expressões dadas a cada gesto feito, cada odor exalado, as cores. Depois de muitos minutos recostou-se em um monte de paina e adormeceu. Sonhou que a exaltação planejada em festa seria a constatação, entre eles, os con-

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vivas, do aniversariante com a data imediatamente mais próxima ao dia comemorado. Aimberê, irritada pela luz do sonho e do sol já chegando, acordou amolecida pela exaustão e pela incômoda posição em que pernoitara. Mas, nessa época da vida, o mau humor não tem nome, nem perdura sem antes arriarem as energias. Aimberê, com uma alegre complacência, ainda sorriu aos presentes recebidos, e olhou o restante da festa, a desordem suja e melada. Dormiu. O eterno seriam as recordações da memória, quando esse tempo estivesse muito distante.

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Primavera 77 Eu dormia profundamente. A respiração era difícil, pesada, embora a janela estivesse aberta e ventasse. Calor de verão forte. Silêncio de noite de introspecção. Folhas do coqueiro agitavam-se, farfalhando ao vento. Quarto simples de hotel. Cidade pequena e praiana. Cama oposta à janela, guarda-roupa próximo à parede que se iniciava ou se interrompia na porta simples. Mais um banco apenas compunha o cenário. Vinte e duas horas. Em mim, as moléculas começaram a irradiar uma vibração tão intensa que me inquietava. Articular movimentos era difícil. Boca seca. Olhos muito abertos, parados, sem ponto de fixação. O comando do cérebro não ditava ordens suficientemente fortes. Ou, paradoxalmente, a parte motora não coordenava mais do que o desconhecido pedaço da mente adormecida nos humanos. A palpitação e o aquecimento que lapidavam a tensão no meu organismo estavam no auge, eu já não tolerava nem continha a sensação. Decompondo a imagem física, transpunha o próprio corpo.

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