Filhos do Medo Em Busca da Verdade
Marcus Vinícius
Filhos do Medo Em Busca da Verdade
São Paulo 2012
Copyright © 2012 by Editora Baraúna SE Ltda Capa AF Capas Projeto Gráfico Aline Benitez Revisão Vanise Macedo
Priscila Loiola CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________
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Brito, Marcus Vinicius Camargo de Filhos do medo: em busca da verdade/ Marcus Vinícius Camargo de Brito. - São Paulo: Baraúna, 2012. Inclui índice ISBN 978-85-7923-471-2 1. Ficção brasileira. I. Título. 12-0593.
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
31.01.12 02.01.12
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Às vezes, em noites chuvosas, recordo o dia em que nasci; talvez fosse meu segundo nascimento... Eu poderia ser o filho do medo, ou o da angústia. Ensinaram-me a ser um homem bom, mas se esqueceram de dizer-me como se deve amar. Não posso compreender a covardia, que tirou os que eu amava... Todavia, aprendi que todos os homens usam máscaras, e elas escondem seu ego verdadeiro. Nas minhas próprias trevas, encontrei a luz no medo e pude segurar nas mãos da esperança de meus temores; entreguei-me e, assim, adquiri a coragem necessária para ser feliz. Cresci na escuridão dos pensamentos. Quanto às máscaras, só as tornei reais. Ao tentar lembrar meu início, chego à conclusão de que não o tive; porém, tenho consciência de que aprendi a proporcionar um fim.
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CAPÍTULO I 200 anos A.C. Era final de tarde; como os outros dias, acabava de forma semelhante, talvez pela época do ano. O outono forçava a paisagem de um tom mais avermelhado; nas primeiras horas da entrada da noite, algumas tochas queimavam e diminuíam o tom da escuridão dado à lua tímida, que pouco servia como guia. A iluminação mantinha aceso o calor da discussão na sinagoga. Homens, apenas homens com certa classe e ar de intelectualidade, mantinham um padrão de vestimenta: túnicas negras desde a altura dos ombros, de um tecido não identificado de início; talvez uma seda. Aparentemente estavam organizados, e exalava hierarquia na sequência do debate. Naquele momento, exaltavam-se, e apenas o tumulto materializava-se, interrompido pelo som de pequenos sinos metálicos do escriba. As paredes do local eram ruspiosas e arcaicas, mas havia uma engenharia promissora, com armários de ferro e de madeira de boa qualidade; neles se aglomeravam perga7
minhos inacabáveis, com coloração amarelada, talvez houvesse uma metrópole de fungos naqueles manuscritos... Entre os homens, havia os mais velhos, com barbas robustas e grisalhas. Todos vestiam roupas que desciam aos pés, sem divisões, e feitas do mesmo material da túnica, compondo uma monotonia negra, com ornamentos dourados. Eram visíveis os cintos e alguns medalhões que refletiam conforme a tremulação das tochas iniciada pelo vagaroso vento frio a invadir o ambiente. Em uma mesa feita certamente por um carpinteiro hábil, jazia um mapa; mostrava constelações com algumas estrelas em destaque. Havia muitas pessoas; a mesa era demasiadamente grande, porém não o suficiente. Algumas delas estavam no compartimento superior da sinagoga, na esperança de ver e de entender o mapa astrológico, analisado por matemáticos e filósofos. O ambiente mostrava-se impregnado de pessoas ligadas à religiosidade. Paralisei, por um instante, meus olhos ávidos por descobrir os vastos detalhes que formavam o ambiente; e pude ouvir claramente um jovem. Ele gritou, utilizando toda a capacidade masculina. E, em um recrutamento rápido de memória, disse em pensamento: “Conheço-o; é Baltazar.”. — Aqui estamos, irmãos. Venho revelar o que as escrituras dizem. O bem se aproxima; haverá, em breve, a chegada do messias, que governará o mundo pela eternidade. Teremos mudanças no céu, e as estrelas indicarão quando e onde o Príncipe da Luz nascerá. Naquele instante, percebi que, em meio à alegria das pessoas que se exteriorizava por gargalhadas e largos sor-
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risos, um homem mudara a expressão facial com certo grau de preocupação. Entretanto, não fora notado pelos outros, por estarem ébrios de contentamento e de alívio. Era fato que havia algo estranho, mas decidi apenas observar, sem interferir no desenvolvimento dos fatos. A noite apenas avançava; era por volta das três da madrugada, e o frio feria os desprovidos dele. Todos se protegiam da baixa temperatura noturna com peles de animais, e a lareira assegurava a iluminação, amenizando a sensação desagradável do ar congelante. Os homens mantinham-se apenas sentados em almofadas coloridas, postas de forma desordenada sobre um tapete consideravelmente grande. Boa parte dos integrantes da reunião havia se retirado, restando poucos idosos e o jovem que se manifestara no debate. Taças de vinho douradas cravejadas de pedras preciosas fizeram-me pensar que se fazia presente a alta sociedade do local. Parei meus pensamentos ao ouvir um dos homens falar com o mais jovem: — Baltazar, como você chegou a essa conclusão? Aprecio seu brilhantismo teológico; como matemático, não há alguém na face do planeta com sua capacidade. Você é um cientista desde a infância e, sobretudo, conhece as escrituras como ninguém, mas me custa acreditar nas suas afirmações. — Lúcius, não espero que acredite em mim sem resistência, mas ter fé naquilo que não é visível será decisivo para o caminho da humanidade. Minhas previsões estão baseadas na ciência, pelo surgimento de novas constelações, nas estrelas isoladas que mencionei no mapa, e no
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embasamento da própria escritura sagrada. Entretanto, acalme seu coração, porque a época das grandes mudanças no mundo talvez seja presenciada pelos olhos de nossos filhos, talvez netos; a mudança não nos pertence. O diálogo foi interrompido pela entrada repentina da sentinela, mostrando uma feição de terror. Aos gritos, anunciou: — Lúcios, há algo errado lá fora; os cavalos estão em pânico, e ouço choro de criança por todas as partes. Não me atrevo a sair novamente. Antes do término da exclamação da sentinela, observei Baltazar enrolando o mapa das estrelas em uma adaptação feita de couro, própria para proteção de estudos, provavelmente feita por ele mesmo. Só pude ouvir seu sussurro. — Oh não, meu Deus! Ainda não! Por estar no telhado da sinagoga, ao lado da saída da lareira, só tive o trabalho de andar com um cuidado até o compartimento anterior para visualizar a situação. No meio do percurso, meu nariz foi esmagado pelo odor insuportável de decomposição cadavérica. No ar, o vento trazia enxofre que se agregava à minha roupa. Lembrava muito bem aquele odor, o suficiente para nunca mais o esquecer; minha coluna congelou-se com a possibilidade de ser quem eu pensava estar a metros da minha presença. Só sentia pena dos homens que lá estavam... — Lázarus, volte lá fora e sopre a trombeta para despertar os soldados. — Sim, Lúcius; precisamos deles. Há algo muito estranho.
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A sentinela Lázarus movimentou-se habilmente com sua adaga para os portões da sinagoga, com o objetivo de alcançar a trombeta e dar o sinal de emergência; porém, quando abriu os pesados portões de entrada, deu de encontro com uma velha segurando um bebê. A senhora exclamava: — Ajude, meu filho, por favor! O senhor está muito fragilizado! Em pânico, não pude conter um mero sorriso ao perceber como os homens são tolos; era evidente que uma velha aparentando ter mais de 100 anos não era a mãe de uma criança de colo. Lázarus, então, abandonou a ideia da trombeta momentaneamente, voltando-se à sinagoga, com a criança nos braços. Então, já no interior da sala, exclamou: — Baltazar, Lúcius! Encontrei esta criança lá fora; uma velha trouxe, em busca de ajuda. Tanto Baltazar como Lúcius tiveram náuseas terríveis ao perceberem a situação — Lázarus segurava um pedaço de carne apodrecida, transbordando de larvas. Quando ele mesmo percebeu, soltou aquela criatura que, ao cair, explodiu em vários pedaços menores. O pobre homem não aguentou e caiu de joelhos. Os pedaços menores transformaram-se, de forma macabra, em moscas e entraram como um turbilhão pela boca e pelos ouvidos de Lázarus. O pobre homem saiu em disparada, batendo as mãos sobre a cabeça, de forma desesperada, na tentativa de se livrar das moscas. Contudo, não obteve sucesso e apenas alcançou uma das pesadas cortinas vermelhas que caiu junto ao homem ao chão. Antes de seu corpo tocar o solo, ele já estava sem vida.
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— Eu tinha certeza de quem se tratava. Era a entidade que aparecera em meus sonhos! Não sabia como agir e, mesmo se o fizesse, seria destruído como Lázarus. Ao ver aquela cena sobrenatural, Baltazar ficou em choque; só dizia “Ainda não... Ainda não...”. Lúcios, aterrorizado, correu até a entrada para fechar os portões de acesso, mas foi de encontro à velha de aparência diabólica. — Entregue-me o mapa, ou queimará até os ossos. — disse ela. Ouvi a bravura de Lúcios: — Desapareça, demônio! Aqui é a casa de Deus. Fiquei imóvel e arrepiado quando escutei a resposta: — Então é a casa do meu pai. A velha adentrou na sinagoga. Lúcius afastava-se à medida que a criatura do inferno aproximava-se. Baltazar começou a orar, e suas lágrimas não cessavam de pavor e de medo. Quando resolvi interceder em favor daqueles pobres homens, mesmo que custasse minha vida (e provavelmente custaria!), ouvi da criatura: — Apareça, irmão, pois há tempos sei que espreita essa casa. — a voz daquele monstro era como rugido de leão; as paredes tremiam quando articulava uma palavra. Confesso que paralisei de medo ao saber que a velha sabia da minha presença; assim, resolvi não agir e tentei controlar meus músculos que insistiam na fasciculação. A criatura, percebendo que eu não agiria, continuou a caminhar em direção aos homens; a cada passo, a velha tornava-se mais alta, com os olhos flamejantes. De repente, sentenciou: — Dê-me o mapa das estrelas agora.
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Lúcios, símbolo da coragem, retirou a adaga e correu em direção à idosa de estatura cada vez mais elevada. No terceiro passo, o pobre entrou em combustão espontânea. E, para desespero de Baltazar, o corpo de Lúcios transformou-se em chama viva, que corria para o destino certo — a morte. Da vestimenta da velha demoníaca caíam serpentes negras, que rastejavam em direção a Baltazar. O infeliz permanecia imóvel, abraçando o pedaço de couro que protegia o mapa. Naquele instante, não suportei continuar a assistir à cena, em uma região fenestrada do frágil telhado com madeiras envelhecidas. Só tive de separá-las com as mãos, aumentando o espaço para caber meu corpo na passagem; entrei de forma caótica na sinagoga. Minha queda durou três segundos; ao bater com os pés no chão, senti dores nos tornozelos que, por pouco, não me fizeram perder o equilíbrio. Olhei para as serpentes próximas de Baltazar; elas apenas queimaram, assim como Lúcios; não sei ao certo se fui eu que fiz aquilo, mas aconteceu. — Até que enfim se mostra presente meu irmão! — disse a criatura. Num momento de distração, Baltazar correu, com todas as forças, para a saída dos fundos, enquanto eu permanecia com a criatura. — Saia do caminho, Raziel, ou sofrerá eternamente! Fiquei chocado ao saber que conhecia meu nome... Eu apenas disse: — Deixe o homem em paz e não me chame de irmão, sua aberração! Foi apenas um estalo de dedos, não sei ao certo, mas fui pregado, por uma força sobrenatural, ao teto da si-
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nagoga; havia uma força tão forte que parecia que meus ossos estavam sendo moídos. Simplesmente não pude respirar por um momento. A criatura apenas cresceu, esticou nove metros e alcançou-me: — Seu rosto era necrosado e exalava enxofre por todas as partes; seu hálito era quente como brasa. — sussurrou em meu ouvido — Vou lhe dar a pior punição para um anjo. Estendeu o braço e, com a unha do dedo indicador, riscou em meu tórax duas linhas, como se estivesse a desenhar. A dor era tão grande que não ouvia meus próprios gritos; as lágrimas saíam e não as sentia. O tempo parou; tudo ficou lento, só me restava a dor e a certeza de que Baltazar havia fugido para um lugar seguro, e que eu havia cumprindo a missão. Então, perguntei, por meio de um sussurro, mesmo já conhecendo a resposta, quem era ela. — Meu nome é Lúcifer; sou seu irmão mais velho, Raziel. Tenho a certeza de que ainda nos encontraremos... Em um instante, desapareceu de forma abrupta, assim como a terrível força que me prendia ao teto. Simplesmente caí, vendo tudo de forma demasiadamente lenta. A visão escureceu quando meu corpo encontrou o chão; virei-me, passei a mão sobre o peito ferido e notei que havia o desenho de uma cruz invertida. Não sabia o significado daquilo, mas certamente seria bem melhor se estivesse morto. ***
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Três dias antes... A luz feriu meus olhos, instantaneamente, assim que acordei. Senti uma fome que me consumia até os nervos; sensação de impotência física total! Quando tentei balbuciar uma palavra, a garganta contraiu-se, pois estava totalmente seca. Precisava de água para diminuir a dor, mas mal conseguia mover um músculo e sentia uma areia extremamente aquecida sobre meu corpo. Que desconforto! Contudo, a temperatura elevada sobre a pele, de alguma maneira, reduzia a dor. Eu ainda tentava fixar a visão, mas a claridade imposta pelo poderoso sol impedia; por isso, não sabia onde estava, nem por quê. “Estou sozinho; preciso de ajuda.” Consegui fletir levemente a cabeça e, assim, pude distinguir estar cercado por dunas; o calor do sol turvava a visão conforme o raio solar agredia o solo arenoso. Ventos moderados obrigavam-me a engolir areia. “Vou morrer.” De súbito, escutei uma gargalhada a alguns metros. — Morte... Você vai desejar muito ainda. — e continuou a gargalhar. Concentrei toda a força e, em um movimento, olhei para o lado; vi um homem alto, com vestimentas brancas e compridas até as sandálias. Sobre o peito, havia um tecido azul-celeste, que transcorria de ombro a ombro. Usava barba negra, discreta. Parecia ter pele clara demais para um morador da região. Segurava duas cordas com as quais aprisionava, lateralmente, dois camelos aparentemente saudáveis. — Levante-se, Raziel; não tenho o dia todo.
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