PLATAFORMA - Ainda Sobre Liberdade

Page 1

PLATAFORMA Ainda Sobre Liberdade



Carlos Holthausen

PLATAFORMA Ainda Sobre Liberdade

S達o Paulo 2013


Copyright © 2013 by Editora Baraúna SE Ltda Capa e Projeto Gráfico Monica Rodriguês Revisão Daniel Vinícius Diagramação Camila C. Morais

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ H711p Holthausen, Carlos Plataforma: ainda sobre liberdade/ Carlos Holthausen. - 1. ed. - São Paulo: Baraúna, 2013. ISBN 978-85-7923-735-5 1. Ficção brasileira. I. Título. 13-00504

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

-------------------------------------------------------------------------------25/04/2013 26/04/2013 ________________________________________________________________

Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

Rua da Glória, 246 – 3º andar CEP 01510-000 – Liberdade – São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br


PRIMEIRA PARTE

ANTES DA PLATAFORMA

CAPÍTULO 1 (Nasce um menino no Brasil )

A cidade de São Paulo estava muito esquisita naquela madrugada. Ao amanhecer, a paisagem urbana apresentava-se fosca, embaçada, sem brilho. Por entre os prédios da Metrópole, pairava uma espécie de fumaça bolorenta, suarenta, que mais parecia o resultado do resfolegar de um monstro pegajoso, ainda adormecido. Pelas ruas, nas calçadas, o ambiente era ainda mais tenebroso, como se isso fosse possível. Na Praça da Sé, as pessoas que circulavam por ela, naquele começo de dia encardido, andavam rápidas, cabisbaixas, encurvadas. Os homens quase corriam, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. As

5


mulheres, um pouco mais lentas, mantinham os braços encolhidos na frente do peito, apertando suas bolsas. Todos que transitavam por ali pareciam incomodados com o ar que respiravam, amedrontados com a cidade, inseguros com o tempo ruim que tinham pela frente. O Sol, então, nem dava sinal de vida, escondido por trás das altas nuvens escuras, eletrificadas, chuvosas. Dava arrepios ao se imaginar o que aquele ambiente tétrico poderia significar. Saindo da praça, passando pelo Largo São Francisco até o Vale do Anhangabaú, além daquela gente que se esgueirava pelos cantos dos prédios, também os carros rodavam modorrentos pelo asfalto úmido, gelatinoso. Ali, tudo que se mexia parecia travado, engolfado pelo ar poluído e denso do dia que começava. Começava sem se anunciar, clareando ainda muito pouco a capital dos paulistas. Saindo de São Paulo, nos seus arredores, a claridade estava ainda mais opaca. Ao longe, pela Rodovia Castelo Branco, nos sopés das montanhas, onde ficavam as mansões dos milionários, uma fina camada de névoa cobria tudo. Lá, a paisagem que era naturalmente bonita parecia de outro mundo, esbranquiçada, sem alma, tenebrosa. Mesmo sem querer, dava para se pensar em tragédia iminente, naquele dia. Na casa dos italianos, não! Dentro dela, tudo era diferente. Um ambiente luxuoso, colorido, enfeitado como se fosse dia de festa. A casa, na verdade, era um palacete de dois andares, montado em torno de um imenso salão, cujo teto, arqueado numa abóbada altíssima, dava a impressão de que ali não se fazia outra coisa além de ser feliz.

6


Naquele ambiente sofisticado, de ar temperado, com tapetes pelo chão, grandes quadros nas paredes e enormes lustres pendurados, o dono, o milionário Pedro Towazottis, tomava o café matinal. Sentado na cabeceira da longa mesa preta, que decorava o centro da sala, não aparentava ser tão alto como de fato era, e nem os olhos verdes-escuros demonstravam a vitalidade que de fato tinha, mas os cabelos longos, com os fios ralos e grisalhos, jogados para trás, aumentavam ainda mais o tamanho do seu nariz. Tinha uma aparência jovial, apesar de seus cinquenta e cinco anos de idade, mas a sua testa já estava marcada por rugas mais profundas, talvez em consequência de seu gênio atribulado de empresário. No momento, ele se preparava para ir ao trabalho. Era o proprietário de uma grande empresa da construção civil. Ao lado direito do italiano Pedro, sentava-se a sua atual esposa, Gilda, que, bem mais nova do que ele, com apenas vinte e cinco anos, fazia de tudo para deixá-lo satisfeito. Ao seu lado esquerdo, Marcus, de cinco anos, filho do primeiro casamento de Gilda. O garoto, gorduchinho de bochechas rosadas, mantinha-se de mau humor, sem tocar no leite com chocolate que a empregada lhe preparara. O pequeno fazia birra pelo novo carrinho de controle remoto que desaparecera, e ele jurava ter deixado na sala de televisão. — Depois encontraremos o seu brinquedo, querido, — a mãe lhe havia dito, fingindo impor ao filho a educação necessária para que ele se comportasse bem à mesa. Na saída do milionário italiano, Gilda despediu-se do marido com um forte abraço e um beijo apaixonado,

7


levantando uma das pernas para trás, como se fosse atriz de Hollywood. Ela fazia cena para os empregados da casa, que nem disfarçavam seus olhares irônicos. Igual ao marido, também era alta e magra, elegante, ainda que os traços finos de seu rosto, com a pele muito branca, contrastassem com a cor dos cabelos longos, muito encorpados, pintados de vermelho. Era uma mulher extravagante. Depois, Gilda chamou Marcus, recomendando-lhe dengosamente que desse até logo ao papai. O menino não disse nada, mas Pedro passou a mão na cabeça do enteado, que, fazendo língua, tentou se desviar do toque do padrasto. — Venha Marcus — chamou a empregada. — Vamos procurar seu carrinho — disse, tentando ajudar Gilda, que ficara sem saber o que fazer frente ao mau comportamento do filho. Pedro sorriu meio forçado, e foi rapidamente para a sua Mercedes reluzente, que já o esperava de porta aberta, com o motorista ao volante. Começava, então, sua tarefa quase que diária de supervisionar as obras que sua empresa executava nos municípios próximos da capital paulista. Enquanto isso, no andar de cima, Jonas, o filho de Pedro e seu principal herdeiro, preparava-se para sair de casa, também. Ele iria ao trabalho, mas, como era seu costume, usaria no lugar de carro o helicóptero da família, que já o aguardava estacionado no heliponto, atrás da piscina, junto à quadra de esportes. Naquele dia, antes de ir para o escritório da firma do pai, na Avenida Paulista, Jonas foi surpreendido pela esposa Rebeca, que lhe informou estar sentindo contrações no útero. Ela estava no sétimo mês de gravidez.

8


— A bolsa d’água já se rompeu — disse a mulher, parecendo despreocupada. Jonas, ainda dentro do quarto, vestindo terno cinza, camisa branca, sem gravata, e calçando sapatos pretos, também não se mostrava ansioso, mas falava o tempo todo ao telefone. Decidido a acompanhar Rebeca à maternidade, dava ordens e fazia recomendações aos subordinados para que o escritório não parasse na sua ausência. No final dos preparativos, enquanto o marido se penteava, passando gel nos cabelos pretos e curtos, fazendo um pequeno topete à moda dos roqueiros modernos, a mulher começou a se agitar com a demora, e recomendou à empregada do casal rapidez nos preparativos. — Vamos logo, sua incompetente, mecha-se com essas malas, estúpida! A agressividade de Rebeca, fora de seu comportamento usual, sem que ela soubesse, substituía a expressão do medo que ela começava a sentir de que o filho nascesse imediatamente, antes dela chegar à maternidade. Podia ser também que quisesse transferir aos outros, a culpa que sentia de se achar responsável pelo nascimento antecipado do filho. Ela não via a hora de dar à luz o primeiro neto do poderoso Pedro para exibi-lo aos parentes, orgulhosa da sua posição na família. Tanto isso era verdade, que até o nome do menino já fora escolhido por ela, há muito tempo. Nome, aliás, que sofria a resistência de quase todos da casa, inclusive do próprio Jonas. Gilda, então, nem queria ouvi-lo. Chegava a tapar os ouvidos de Marcus para que o filho não escutasse também.

9


— Por que João Paulo? Que coisa mais sem criatividade, que coisa mais pobre — comentava Gilda, sempre que tinha uma oportunidade de fofocar sobre aquele assunto. Rebeca não sabia explicar direito o motivo de sua escolha, mas era definitivo. João Paulo Towazottis! Pedro, saindo da propriedade, ao passar pela guarita do segurança, pediu ao motorista que reduzisse ainda mais a velocidade do carro, curioso que ficou ao ver um automóvel muito antigo, mas bem conservado, estacionado próximo dali, numa parte mais alta, ao lado da rodovia de trânsito rápido. Um casal, que saíra do veículo, andava em círculos em torno do carro parado, e discutia calorosamente entre si. O homem, de altura mediana, magro, que trajava um terno de linho claro, tinha a barba e os cabelos brancos e parecia ser um velho, quase idoso, não fosse a sua agilidade ao caminhar. Tinha um sorriso franco, daqueles que, quando a boca mostra os dentes, os olhos quase se fecham. A mulher, mais alta do que o homem, de rosto angelical, olhos castanhos e cabelos pretos, lisos e curtos, era elegante. Vestia um tailleur branco, cuja saia deixava à amostra as longas pernas e os bonitos joelhos arredondados, e estava mais agitada do que seu parceiro. Seus rostos, apesar da discussão, mantinham-se serenos e até, de vez enquanto, sorriam. Eram duas pessoas muito simpáticas, e não pareciam nada agressivas. — Senhora Euricleia, — dizia o homem — o prazo daqui foi antecipado, e isso está complicando o nosso trabalho, sim, sim, sim! — Senhor Menelau, — falava a mulher — para

10


mim não tem complicação. Este menino entrará hoje; o outro não, porque a Plataforma lá foi fechada! — Fechada, senhora Euricleia? As suas Luzes estão ficando fracas? A senhora devia ter mantida aberta a Plataforma pelo tempo que fosse necessário, sim, sim, sim! — Senhor Menelau, como eles dizem por aqui, não adianta chorar sobre o leite derramado. Vou acompanhar o menino de lá até que ele venha para cá e entre na Plataforma, como o Towazottis vai entrar hoje! — Muito bem, senhora Euricleia, mas a senhora não estará sozinha neste trabalho; eu irei acompanhá-la para ter a certeza de que não desperdiçaremos nenhuma das duas vagas que temos na Plataforma, sim, sim, sim! — Finalmente, estamos de acordo! O menino daqui entrará pela lagoa, e, depois, iremos acompanhar o menino de lá, concluiu satisfeita a mulher. Pedro, que abrira o vidro do carro para apreciar melhor o automóvel do casal — sua curiosidade —, não prestou muita atenção ao que diziam aquelas pessoas, e, se tivesse prestado, não compreenderia coisa alguma daquelas palavras. Ele até pensou ter escutado um deles dizer seu sobrenome, mas achou que era sua imaginação, e perdeu o interesse no carro e naquela gente de classe social incerta. Apressado, fechou o vidro e mandou o motorista acelerar o veículo para seguir com os seus compromissos de empresário. Outro que também estava impaciente era o piloto do helicóptero que, esperando para transportar Jonas e Rebeca, via o tempo piorar. A neblina já se tinha dissipado, mas, além das nuvens densas que persistiam, a biruta do

11


heliponto marcava pequenas e crescentes rajadas de vento. — Daqui a pouco não vai rolar coisa alguma, nem vai dá pra levantar do chão — resmungava, chateado. Na despedida de Rebeca, somente a governanta mais graduada veio até a saída principal do casarão e, da varanda, por entre as altas colunas gregas, desejou boa-sorte à nora de Pedro. Enquanto isso, a empregada de quarto já acomodara a bagagem da parturiente no helicóptero, e retornava para casa. A moça, ao cruzar com Rebeca, vendo que a grávida andava encurvada, segurando com as duas mãos o largo vestido por baixo do ventre crescido, resolveu ajudá-la. Passou a caminhar ao lado da patroa e lhe tomou o braço, tentando lhe prestar apoio. Rebeca nem falou nada, simplesmente empurrou a empregada para o lado e seguiu se arrastando sozinha para a aeronave, quase que desesperada, lentamente apressada, pressentindo a tragédia. A serviçal não caiu, mas ficou para trás, parada no meio do caminho, estupefata. Foi neste estado de desolação que ela e a governanta viram Jonas e Rebeca subirem no helicóptero, que suavemente alçou voo em direção de São Paulo. Ninguém notou o carro antigo, que Pedro observara na entrada da propriedade, seguindo rápido, por uma via secundária, no mesmo sentido do aparelho. O que se viu e fez a empregada de Rebeca se benzer, foram dois ou três relâmpagos riscando o céu por cima da aeronave. O helicóptero logo estabilizou seu voo um pouco acima de dois mil pés, parecendo estar encostado nas nuvens que, de repente, ficaram ainda mais enegrecidas. — Não dá para voar mais baixo? — perguntou Re-

12


beca, extremamente ríspida, ainda tentando esconder o medo que sentia, notando que suas contrações estavam se acelerando muito rapidamente. O piloto, sem qualquer comentário, tratou de descer um pouco de altitude. Neste exato momento, o helicóptero foi atingido por uma rajada de vento lateral, e jogado de encontro a um raio que riscava o céu de cima até embaixo. — Droga! Estou sem gás! — gritou o piloto. — Quê!? — Potência, estou perdendo potência no motor! — corrigiu com a voz alterada, mas firme. — Vou ter de descer! — comunicou, iniciando o procedimento de emergência. O helicóptero, no início, ainda pode ser mantido em descendência planejada, com o aeronauta tentando retornar à região da qual saíra, onde poderia mais facilmente encontrar uma área livre para pousar. No entanto, logo o motor entrou em pane total e só restou o desespero do voo planado de autorrotação, com a aeronave descendo muito mais rápido do que poderiam desejar seus ocupantes. No acento de trás, Jonas ao lado da mulher abriu a porta lateral, como que querendo ajudar a identificar no solo um lugar para pousar. Rebeca, apavorada, mas sem gritar, havia se deitado na poltrona, que agarrava forte, espremendo o ventre que já expelia voluntariamente o filho, que nascia. Ela fazia força, cada vez mais desesperada, tentando se livrar das dores do parto e ao mesmo tempo se prevenindo do impacto mortal, que se anunciava. Há poucos metros do chão, o helicóptero aproximava-se de um gramado plano, ao lado de uma pequena

13


lagoa de águas calmas, dando a impressão de que seus ocupantes sobreviveriam à brusca descida, e teriam, no máximo, algumas costelas quebradas e alguns poucos arranhões na pele. Não foi imperícia do piloto, o fato é que sem motor para manobrar, já quase tocando o solo, a hélice do aparelho atingiu uma rede de alta tensão, que passava por cima da lagoa. Impulsionado pela velocidade que desenvolvia naquele momento, o helicóptero executou um giro de balanço, momentaneamente preso à linha elétrica, deixando a porta aberta para baixo. Rebeca ficou por poucos e infindáveis segundos com o corpo no ar. O marido tentava segurá-la, com uma das mãos, pela axila. A parturiente, ela mesma, grudava-se ao assento, com os braços por sobre a cabeça. Rebeca mantinha-se com as pernas abertas, uma em cada lateral da porta, para não cair fora do helicóptero. João Paulo Towazottis nasceu assim. Expelido pelas contrações do ventre materno, impulsionado por uma descarga elétrica, puxado pela gravidade, sugado do helicóptero e jogado dentro da lagoa de águas serenas, como se mãos invisíveis tivessem promovido seu parto. Nasceu, num evento inusitado, salvando-se do acidente em que morreram seus pais, carbonizados, dentro do helicóptero que explodiu ao cair no gramado. O senhor Menelau e senhora Euricleia, aquele casal estranho, do carro antigo, que Pedro viu na saída de sua propriedade, estavam bem ao lado das águas em que o neto do milionário italiano mergulhou ainda vivo.

14


CAPÍTULO 2 (Nasce outro menino no Paraguai)

Naquele mesmo dia, em Ciudad Del Este, no Paraguai, com a claridade do sol forte, Ramiro terminava de se lavar na bica de água fria que acabara de montar, nos fundos de sua velha casa de madeira, numa viela às margens da rodovia de Assunção. Ele passava a toalha rala e desbotada nas axilas, enxugando-se displicentemente, vendo a água da bica a correr forte pela vala aberta na terra, atrás da sua morada. Depois, Ramiro caminhou, margeando a vala, como se apreciasse uma grande obra de engenharia, e subiu num pequeno platô. Ficou assim, despreocupado, olhando a poucos metros dele a água da bica jorrar, caminhar pela vala e cair no caudaloso rio que passava quase ao seu lado e descia forte por um desnível, até alcançar a planície mais lá embaixo. Do pequeno elevado, ele podia contem15


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.