Adriano Messias de Oliveira
Histórias mal-assombradas em volta do fogão de lenha Série Contos para não dormir volume 1
São Paulo, 2004
HISTÓRIAS MAL-ASSOMBRADAS...
Copyright © Adriano Messias de Oliveira Capa Rex Design Revisão Waltair Martão Editoração Eletrônica Oficina Editorial Coordenação Editorial Editora Biruta 1a edição – 2004 Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do LIvro, SP, Brasil)
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Biruta Ltda Rua Coronel José Eusébio, 95 - Travessa Dona Paula, casa 120 Consolação CEP 01239-030 São Paulo - SP Brasil Tel (11) 3214-2428 Fax (11) 3258-0778 E-mail biruta@editorabiruta.com.br www.editorabiruta.com.br A reprodução de qualquer parte desta obra é ilegal, e configura apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
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Dedico este primeiro livro da série ao meu avô materno, José Messias, meu contador de causos predileto
Sumário Prólogo
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1. Um uivo na montanha Tudo sobre Lobisomens
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2. A porca, ora, a porca
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3. O roubo das melancias e a Mãe d’Água
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4. “Saci-Pererê, minha perna dói como o quê!” 39 5. Matinta Pereira rondando a casa, cruz credo!, e a felicidade de pai antônio
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6. Por um pedaço de couro e o Diabo e a capela 57 7. O Diabinho da Garrafa ou Famaliá
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8. O Caboclo d’água
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9. A procissão e a missa das almas
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10. A Mula-sem-cabeça
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Epílogo
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Prólogo*
Saiba um pouco sobre mim
Meu nome é André. Moro em Belo Hori
zonte, cidade grande que você sabe ser a capital de Minas Gerais. Aqui vivo com meus pais, sou filho único e estudo. Gosto de cinema, shopping, colecionar selos, criar página na internet, des montar coisas (confesso que às vezes me esqueço de como montar de novo) e namorar. Ah... mas esta apresentação tá meio chata. Não pense que sou careta. Vamos lá ao que interessa: quero que seja meu parceiro neste livro e nos outros da sé rie. Aliás, eu pre-ci-so de você, meu leitor amigo, * Vai ver no dicionário o que significa isso, tá?
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para me acompanhar em algumas aventuras e experiências que são, no mínimo,... digamos... sobrenaturais! Brrrr... Mas não tenha medo. Aliás, TENHA MEDO! Ao menos um pouco, ou não justificará ser este um livro sobre assombrações. Está confuso? Não se preocupe, eu também cos tumo ficar assim... Na escola, desde pequeno, sempre fui um me nino diferente porque queria ser um vampiro. Não apenas para morder o pescoço das meninas ou as sustá-las pelos corredores nos dias de tempestade... É que gosto mesmo do personagem vampiresco, com aquela capa preta que ele costuma jogar sobre os ombros, caminhando solenemente em seu enorme castelo. É... Sempre achei vampiro o máximo, porque sou mais da noite do que do dia. Gosto mesmo é dos espaços escuros em que nossa imaginação pode voar de um castelo a uma vila zinha. E como um vampiro, não sei ao certo que idade tenho. Dizem que estou “virando homem” (e detesto essa expressão, porque homem já sou desde que nasci; se você for homem, vai entender
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minha raiva). Bom, deixa pra lá... É coisa de tios. Meus pais dizem que tem hora em que ajo como se tivesse oito anos, outras vezes, que pare ço ter uns vinte. Peço que eles decidam e entrem em um acordo, porque isso me funde a cuca um pouco. Como não poderia deixar de ser, gosto de filmes, dos de terror e de outros, desde que tenham uma boa história para contar. Também leio tudo: livros de aventura, revistas de viagens, blogs, sites. Tento arrumar meu quarto dia sim, dia não e, sendo adolescente, não me identifico com a palavra “organizado” (também não acho que todo adolescente tenha de ser bagunceiro. A Mariana, por exemplo, minha vizinha de prédio – só a conheço por causa de uma luneta, sabe? – deixa o quarto impecável e guarda toda a roupa no armário assim que chega da escola... Ela separa as roupas vermelhas de um lado, depois as rosinhas, depois as brancas... Uma coisa doi- da! Aliás, coisa doida é ela, com aqueles olhos azuis). Sou filho único. Ah, já disse isso, desculpa. Tenho muito tempo para ler (e gosto de ler, nin
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guém me obriga). Não que o fato de ter irmãos justifique alguém não gostar de ler, mas é que tenho “sossego”, se é que me entende... Estudo inglês e francês e, por me interessar muito por aventuras, leio livros de um autor chamado Júlio Verne, conhece? Já pensou em viajar até o centro da Terra? Meus pais não são ricos, mas minha cria tividade não me deixa reclamar de nada. Entre a casa e a escola pública, a imaginação do menino-vampiro também voa, castelo-vilarejo, vilarejo-mundo, de onde um dia sairei para escre ver livros. Ao menos é o que penso. Mas, para ser escritor, uma professora me disse que tem de ler e ler e ler... e ter talvez um certo talento. Será que eu tenho? Assim como meu avô, acho que as raízes da gente têm de ser preservadas a todo custo, mas não deixo uma boa viagem por nada. Por isso, estou sempre aqui e acolá, mochileiro de carteirinha. Nas férias e feriados, costumo ir para Lavras, cidade em que nasci, no Sul do estado de Minas
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Gerais. Em seus arredores, nas terras de um muni cípio chamado Ijaci, de onde provém parte de minha família, meus avós maternos guardam ainda um sítio, meio fazenda, meio recanto-perdidono-mundinho-de-Deus. Lugar encantado, alegre, apesar da neblina forte e da serração que, na época do frio, cobrem as serras e o telhado das casas até quase o meio-dia. Sou urbano e sou rural (com isso não estou me considerando vira-latas e nem boi manso, ok?). Sou mais solitário do que social (desculpe a rima feia). Tenho lá meus amigos como você deve ter os seus, mas existe uma certa dificuldade em ser compreendido (à medida que você for me conhecendo, acho que poderemos ser amigos). Pelo fato de gostar muito de ler, crio minha bi blioteca particular, no canto escuro do quarto de tranqueiras, no apartamento da rua do bairro de Santa Tereza em que moro, em Belo Horizonte. Junto dos livros, ficam uns vidros com insetos, co bras e lagartos – mortos, claro. Gosto de biologia. Pois é... Tamos chegando ao fim deste papo e
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ao início da incrível “viagem número 1”... Se eu não fosse menino-escritor e se não fosse mineiro, o que seria eu, uai? Tem coisa melhor do que a terra da gente? É por isso que muitas vezes eu uso a linguagem própria dos lugares em que moro e visito em meu estado. Ou seja, cada brasileiro fala português, mas à sua maneira. É como se cada um pusesse o tempero de sua região na língua para as palavras saírem mais saborosas... Caso não entenda alguma coisa, não se acanhe em perguntar. Se você gostar deste livro e se identificar comigo em alguma coisa, entre em contato. No final da leitura vai saber como. Até lá.
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1 UM UIVO NA MONTANHA
E no breu da noite apareceu o bicho com os
olhos grandes, arregalados e vermelhos como brasa, chispando fumaça pelas ventas e bufando igual boi brabo. Era escuro de não se enxergar nada no pasto e o vendaval piorava. O bicho ficou de frente a mim, me olhando como a pensar de que lado morderia primeiro. Eu só tremia com a garrucha enferrujada e sem munição, pensando em meter uma coronhada na cabeça dele. A tempestade vinha que só vendo, as nuvens passavam corridas pela lua cheia e tampavam o alto dos morros. Era chuvisco, era relâmpago, era rimbombar de trovão na serra. Ai, que medo, que
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dor de barriga, que desespero! Era quinta para sextafeira, por que fui eu caçar tatu? Pra arrumar confusão com o coisa-ruim, com o dito-cujo, com o cão, com o sem-nome que naquela hora tinha se vestido de... LOBISOMEM!!! A porta bate e caem uns pratos da prateleira da cozinha, aquela que fica sobre o fogão de lenha. Eu e meu avô damos um pulo. Com esse “causo”, eu fico com os pêlos arrepiados, mas a noite está só começando. Antes de prosseguirmos, tenho de me (re) apresentar, pois nossa convivência noite afora será longa... Eu me chamo André, como já sabe, e adoro histórias de assombração. Aqui, em Minas Gerais, parece que todos os fantasmas vieram de férias há muito tempo e resolveram não mais ir embora. São muitas as lendas em torno de apa rições que já quase se perderam no tempo, mas meu avô sabe contar todas. Todas elas (lógico, que com um pouquinho de esforço de memória e de imaginação, pois ele já tem quase 90 anos!). Mesmo com o barulho da queda dos pratos
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esmaltados, meus pais e minha avó não acordam. O sítio tem esse casarão grande para onde a gente vem passar boa parte das férias. Sair da cidade grande, da agitação de Belo Horizonte, e respi rar o ar puro das montanhas do Sul de Minas parece que faz a gente gostar mais de histórias de assombração... Fantasmas combinam muito com lugares antigos, com o campo, com os elementos da natureza. Eu, por exemplo, desconheço muitos fantasmas de apartamento e isso me dá segurança na hora de dormir lá em casa (bom... um vizinho meu costuma uivar para a lua cheia, mas isso não chega a ser um ato fantasmagórico). Mas, além dos fantasmas amantes da natureza, há, obviamente, os que invadiram castelos, fortalezas, hotéis e até mesmo carrinhos de pipoqueiro e fazem um escar céu para assustar as pessoas. Não tem o monstro do lago Ness, na Escócia? Pois é... Alguns viram até atração turística! Estou me alongando. Foi bom, pois deu tempo de vovô se aproveitar para enrolar um cigar rinho de palha, que é mania antiga. Às vezes, ele
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me conta suas histórias assentado no banquinho; de vez em quando, é acocorado mesmo, enrolan do o cigarro com cuidado nas pontas úmidas dos dedos. Quando ele precisa de mais conforto, eu o ajudo a trazer a cadeira de balanço que demos a ele no natal passado. Carregamos da salona para a cozinha, porque vovô diz que dedo bom de prosa tem de ser em volta do fogão de lenha, “quentan do” as mãos do frio doído de julho aqui nas serras da Bocaina. Vida na roça é coisa boa, mas faz frio de gear. Venho para cá todas as férias do meio do ano. Meu avô e eu ficamos comendo amendoim, pipoca, pinhão e tomando leite com açúcar queimado até altas horas... e ouvindo passos no corredor só para aumentar o suspense. Do outro lado da salona, o restante de minha família dorme com os anjos, ausentes de nosso bate-papo. Só minha avó de vez em quando, na curva que dá para o banheiro, me olha sorrateiramente de longe como quem busca entender o que se passa. – André, mas você não quer saber o que acon-
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teceu com o lobisomem? – Quero, vô. Mas lobisomem que se preza tem de dar uns uivos e depois sair correndo. Nada de matar ninguém. Talvez assustar umas galinhas e só. – Ah, mas não foi isso o que aconteceu e quem assusta galinha é gambá. Vou contar tudinho já-já... Mas prepare-se, que essa vai ser de arrepiar mesmo. Só para garantir que essa história será real mente segura, vou verificar se a porta está mesmo fechada! E você, já trancou a sua? – Assenta, André. Pára com essa mexeção. Sabe, o lobisomem é um bicho ladino. Quando ele me viu tremendo todo, começou a babar que achei que fosse me engolir. Aquele pêlo dele parecia uma piaçava, todo cheio de carrapatos e de percevejos. – Uai, vô. Como o senhor viu isso se era de noite e mal dava para enxergar a carantonha do monstro? – Quieto, menino. Só sei que o bicho começou
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a uivar, a uivar, a uivar tanto que as árvores começaram a fechar as copas de medo. Ficou um silêncio mortal, só o eco do grito do coisa-ruim era escutado naquela várzea. Eu estava com a bota cheia de lama do brejo, não dava nem pra correr muito. Achei que fosse morrer e comecei a rezar o Credo... – E isso ajuda? Vovô pigarreia e solta um riso de quem sabe tudo. – Para se proteger do lobisomem no momento do ataque, André, basta abrir os braços em cruz e rezar o Credo. Alho e lâmina de facão ou machado também são úteis. Mas, para matar o monstro, deve-se atirar no dedo mindinho do pé dele com bala benta ou bala lambuzada em cera de vela de altar. Aí, já viu, né? Quem é que anda munido dessas coisas? Pelo menos rezar valeu. O animal saiu quase que galopando, fugindo daquelas palavras sagradas. Ele foi para um lado, eu, para o outro. E por muito tempo ficamos sem trombar, graças a Deus. – E o tatu? – Tatu?! Ah, André, e depois disso eu ia lá pensar
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em tatu? Voltei pra casa que sua avó já estava me esperando. Isso aconteceu há muito, muito tempo e seu pai nem era nascido ainda... Você já percebeu que vovô exagera um pouco nas histórias. Mas coitado, ele só quer agradar e uma coisa a gente tem de admitir: ele sabe contar um causo. Eu fiz umas anotações em meu “Ca derno de Segredos Misteriosos” sobre lobisomens. No decorrer de nossa conversa, você vai poder ler o que eu pesquisei nessas páginas diferentes, que foram escritas com minha própria letra. E você pode fazer o mesmo. Eu tive de entrar na inter net, li alguns livros e anotei coisas que meu avô me disse. Se você quiser fazer uma pesquisa sobre assombrações de sua cidade, isso vai ser muito bom e podemos trocar cartas. Agora é só virar a página que você vai se tornar cúmplice de meu livro de anotações.
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TUDO SOBRE LOBISOMENS
( Desculpem a letra, mas é que minha borracha sumiu... Deve ser coisa do Saci! )
Você conhece alguém que é primeiro ou últi mo de uma série de sete filhos? Conhece homens que permaneceram dez anos sem confissão, co munhão ou sem molhar os dedos em água benta? Não tenha dúvidas: você pode estar diante de um lobisomem! Auuu! Os primeiros sinais de que um homem é lobi somem aparecem logo após o nascimento, ou aos sete, doze, quatorze ou vinte e quatro anos. Mas, se a pessoa for amaldiçoada pelo padrinho, pode se transformar em lobisomem em qualquer idade. O homem que carrega a maldição do lobisomem é sempre magro e pálido, com grandes orelhas, pêlos abundantes pelo corpo, com calos nos antebraços e nas mãos, que são as partes do corpo usadas como patas, quando transformado em quadrúpede. Mas
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cuidado para não ficar achando que aquele seu vizinho barbudo de quem não gosta é um lobi somem. Pode ser, mas pode não ser... A transformação acontece em qualquer dia da semana, exceto aos sábados e domingos. O melhor momento, no entanto, é na noite de quinta para sexta-feira, em especial se a lua estiver cheia. Durante a Quaresma, apenas na Sexta-feira da Paixão vira-se lobisomem. A maldição obriga o lobisomem a percorrer sete cidades em cada noite e a voltar ao lugar de partida antes que o galo cante e o dia clareie. Curiosamente, nunca ouvi falar de “lobis mulher”. Talvez por isso os lobisomens sejam tão nervosos. Coitados, não têm namorada. E, já que história ninguém sabe onde começa nem onde termina, acho que vou criar um dia (e não está longe esse dia) a lenda da “lobismulher”. Existem várias maneiras de se acabar com a maldição de um lobisomem: ferindo-o com um objeto de prata, fazendo-o perder sangue; sau dando-o com o sinal-da-cruz; contando-lhe que é
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um lobisomem; queimando as roupas que ele tira no momento da transformação e substituindo-as por outras novas; chamando o monstro pelo nome de batismo; dando-lhe uma surra com duas cordas de fumo e amarrando-lhe uma terceira no pescoço; jogando-lhe água benta. Decorou? Haja paciência para treinar essas táticas todas! Mas cuidado: quem se suja no sangue do monstro ou é mordido por ele, torna-se lobiso
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2 A PORCA, ORA, A PORCA
Já leu? Você lê rápido, heim? Agora meu avô
abriu a janela e está olhando o escuro lá fora. Acho que é quando ele se inspira para contar as coisas que lembra... Daqui a pouco vai trazer outra história. Enquanto isso, deixa eu te contar um caso que conheço? Este caso de assombração minha avó Dorica, mãe de meu pai, me contava e eu fi cava ao mesmo tempo fascinado e amedrontado, a ponto de ela ter de mudar o final da história e dizer que tudo não passava das artimanhas de um mágico, só pra me adoçar... Mas vou contar como era horripilante...