Claudia Camara
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Quinze Dias, Sete Anos e Alguns Minutos
Claudia Camara
Quinze Dias, Sete Anos e Alguns Minutos
S達o Paulo, 2004
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QUINZE DIAS, SETE ANOS E ALGUNS MINUTOS
Copyright © Claudia Camara
Capa Rex Design Revisão Waltair Martão Editoração Eletrônica Oficina Editorial Coordenação Editorial Editora Biruta
1a Edição - 2004
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Camara, Claudia. Quinze dias, sete anos e alguns minutos: Claudia – São Paulo : Biruta, 2004.
ISBN 85-88159-31-7.
1. Literatura infanto-juvenil. I. Título. 04-3800
Camara.
CDD – 028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infanto-juvenil
028.5
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Biruta Ltda Rua Coronel José Eusébio, 95 - Travessa Dona Paula, casa 120 Consolação CEP 01239-030 São Paulo - SP Brasil Tel (11) 3214-2428 Fax (11) 3258-0778 E-mail biruta@editorabiruta.com.br www.editorabiruta.com.br A reprodução de qualquer parte desta obra é ilegal, e configura apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
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Sumário
Cenas dos Próximos Capítulos
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Conversa Amarela
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Vou
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Fui!
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Silêncio
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Minhas Queridas Férias
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Bruno, Muito Prazer
27
Primeiro Dia
35
I Apologize (Eu me Desculpo)
41
Emília
43
Ô
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Bastante Mais do que Muito
51
Amor de Morrer
55
Senzala
61
Sou de Barro, sou Oco
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QUINZE DIAS, SETE ANOS E ALGUNS MINUTOS
Estrada Real
71
Apartheid (Segregação)
77
Felicidade
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Primeiro Eu
85
Bunda de Vagalume
91
Tesouro
99
Eu te Amo
105
Herança
109
Pandora
117
Ciclo de Vida
123
Chocolate com Menta
127
What´s Love Got to do with It? (O que o Amor Tem a Ver com Isso?)
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Pense sobre Isso
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Cenas dos próximos capítulos
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ois meninos, não, dois adolescentes. Tá bom, segundo eles mesmos, dois homens de 16. Amigos compulsórios, que a sorte reuniu quando um veio fazer intercâmbio na casa do outro. O um é o Jeremy, que nasceu na África do Sul, mas há dois anos mudou-se para Londres, onde os pais foram trabalhar. Veio passar um ano no Brasil, mais exatamente em Minas Gerais, e caiu, por essas coisas do destino, na casa do Bruno. Bruno, o outro, nasceu e cresceu em Belo Horizonte. Sua experiência internacional se resume a uma ida de dez dias à Disney, patrocinada pela madrinha rica e generosa. Até a chegada do Jeremy, ele não sabia a diferença entre África do Sul e sul da África. A chegada daquele menino loirinho de olhos transparentes representou mais uma revelação cultural para ele, que descobriu que na África nasciam e viviam pessoas brancas. Depois, ele viria a aprender sobre coisas mais graves, preconceitos, apartheid, mas isso fica para depois. Tem muita coisa para acontecer antes disso. Como a ida dos dois para a Fazenda da Caieira. Por exemplo, a mania do Jeremy de filmar tudo. Tudo. Tudo mesmo (dizem que ficou assim depois que assistiu ao filme A Bruxa de Blair). Tem também a raiva que o Bruno ficou ao ter que passar suas preciosas férias de julho no que ele, em princípio, achou ser o fim do mundo. E depois as
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descobertas. Muitas descobertas. Históricas e pessoais. Místicas e físicas. A imaginação se misturando à realidade. A ausência de energia elétrica iluminando a fantasia dos dois, abrindo espaço para experiências “cegas” que acontecem em meio ao breu absoluto. É o caso da vivência do Jeremy com a história (memória) dos escravos e sua atração (quase obsessão) pelo calabouço da fazenda. O modo como sua história pessoal, sua formação impregnada pela descriminação racial reage à descriminação escravocrata brasileira. Uma primeira paixão carnal que ele vai dividir, sem que Bruno soubesse, com seu amigo brasileiro. Por exemplo, os medos do Bruno, que virão à tona com a mesma fúria da sua curiosidade a respeito de tudo. A respeito da história de tudo e de todos. Sua superação, sua reconciliação com o pai. Sua primeira vez com uma mulher. São muitas as histórias que acontecerão dentro de um cenário histórico: a Fazenda da Caieira. A fazenda é citada nas Cartas Chilenas, de Critilo (pseudônimo usado por Tomás Antônio Gonzaga para criticar o então governador J. Cunha de Menezes), escritas em 1789. Em seus versos, o inconfidente referiu-se à Fazenda da Caieira como sendo o lugar onde os escravos iam buscar pedras para a construção da monumental cadeia, hoje transformada em Museu Histórico da antiga capital. O livro é sobre esses dois meninos, sua formação e o modo como a Inconfidência Mineira conspirou a favor do amadurecimento deles. O modo como as paredes de uma casa de quase 400 anos testemunharam mais um fato histórico: o princípio de uma revolução pessoal que viria a culminar, mais tarde, com uma declaração de independência. Uma história dentro da outra. Personagens do passado se confundindo com personagens do presente. E, durante todo o tempo, o olhar eletrônico
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CONVERSA AMARELA
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– ô contá não, fio. É por demais triste o ocorrido. Triste demais mesmo. Ceis vão ficá impressionado e a dona vai brigá cumigo que eu sei. – Por favor, dona Almerinda, conta! Jeremy já estava falando bem o português. Bem até demais pra quem tinha chegado havia apenas quatro meses ao Brasil, vindo da África do Sul sem saber falar coisíssima nenhuma nesta língua. Ele veio para passar um ano, vivendo com uma família brasileira como intercambista. Junto com o seu “irmão” brasileiro Bruno, que, como ele, tinha 16 anos, Jeremy estava sentado na cozinha da Fazenda da Caieira. Estavam bem perto do fogão a lenha, que queimava o dia inteiro. Era o lugar mais quente e mais iluminado do casarão, que não tinha energia elétrica. Olhavam para dona Almerinda, a cozinheira, com fascinação. Ela era uma negra velha, bem velha mesmo. Devia ter uns cem anos ou mais. Nem tanto pela aparência, mas pelo alcance da sua memória, que ia para tempos remotíssimos. Ela parecia forte, era imponente, altiva, sentava-se ereta em um banquinho e falava com aquela voz estranha. Voz rouca, de homem. Dona Almerinda não tinha um dedo e isso impressionava muito os dois, que nada perguntavam, mas a toda hora grudavam os olhos naquela mão
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Ele era dono da verdade, dono da lei, dono de tudo e de todos que viviam sob seu comando. Mas não era dono do destino e morreu sem conseguir deixar um filho homem para continuar seu nome. Ele era o rei absoluto e a fazenda, seu castelo. Ele tinha poder. Por sua casa passaram pessoas que hoje estão nos livros de histórias de Minas. Aliás, a Fazenda da Caieira era histórica porque era antiga, claro, mas também era histórica porque muitas vidas inteiras tinham acontecido ali, dentro daquela casa. Histórias de pessoas comuns e histórias que mudariam vidas, como a Inconfidência Mineira. Esses outros tantos fatos e casos saíam em profusão da boca murcha de dona Almerinda. E ela gostava de contar. Como gostava de atiçar a curiosidade de quem a ouvia. Gostava de saber que sabia o que ninguém mais sabia. E gostava, principalmente, de inventar um detalhe aqui, outro lá. Pouco se me dá – quem ia poder confirmar ou não? Quem ia ter o atrevimento de contrariá-la? – Conta desse tal de Bento, dona Almerinda... Bruno não desistia. As conversas com a velha cozinheira eram para ele como assistir televisão. Era melhor, pra dizer a verdade. Também, no casarão não tinha nada pra se fazer. Nada mesmo. Sem energia elétrica, nada de internet, nada de videogames, nada de som. Ou seja, nada do que eles estavam acostumados a fazer sempre quando estavam em casa. Tinham os outros hóspedes: um grupo de cinema do Rio que estava filmando um documentário sobre a Inconfidência. E nos fins de semana o hotel enchia de casais melosos vindos de Belo Horizonte, do Rio e de São Paulo. Esse pessoal passava a noite na balada em Ouro Preto, que ficava a menos de dez quilômetros da fazenda. Mas eles não podiam ir. A mãe de Bruno teve a bondade de deixar ordens expressas para proibir a saída dos dois durante a noite. Então, era assim. Gente nova mesmo, só os dois. Além disso, o dono da Caieira queria garantir um lugar tranqüilo, sem as pressões e informações do mundo. Como dizia no folder, aquele era “um lugar parado no tempo e no espaço, onde se respiram história e sossego secular”. Ou seja, um saco. E ainda tinha a tal proibição da entrada de menores de 16 anos. O que reduzia os dois à humilhante condição de crianças da casa. E, pra completar, ainda tinha aquele frio de doer os ossos. E tinha aquele medo do escuro e do silêncio e dos bichos e dos lobos e das cobras.
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sem um dedo, imaginando como ela o teria perdido. Era hora de perguntar não. Era hora de insistir pra ver se ela contava mais casos e, assim, adiar a ida para o quarto escuro e silencioso. Tão silencioso que eles ouviam a falta de som num zumbido surdo que era duro de agüentar até se acostumarem e, finalmente, dormirem. E também eles tinham medo, mas prefeririam morrer a confessar isso um para o outro. – A senhora já está com sono? – Num durmo não, fio. Vê lá se véio dormi... puxo uma páia e oiá lá. Tenho coisa dimais pra fazê e outro tanto pra pensá. E oceis inda cheiram a bosta de leite pra intendê isso, mas gente antiga como eu tem luxo de sono não. É tempo di menos pra vivê. Às vezes Bruno tinha que traduzir o que dona Almerinda falava para o Jeremy entender. Ele mesmo tinha vez que custava... Mas depois aprendeu a ouvir aquele português tão diferente. Tão musical, tão cheio de antigüidade e fumaça. Era como um mantra. Embriagava, dava sono, fascinava. Era muito bom ouvir a voz da dona Almerinda falando. Mesmo quando ela falava coisas do tipo: – Num vô nem durmi, nem contá nada proceis... Já disse, eu quasi num durmo... Inda mais quando sinhô Bento vem sabê da vida, coferí as novidadi. Ele inda pensa que a fazenda é dele e eu minto. Me dá um dó dele. Ele nem sabe que tá morto, coitado do desgraçado. Quando ele vem, aí é qui eu toco a cunversá a noite intirinha com o homi que continua brabo feito um cão chupanu manga... – Quem é esse tal de Bento? Benedito Bento de Andrade Lopes, bisneto de Cláudio de Andrade Lopes, que, em 1760, havia recebido a Caieira como forma de pagamento de uma dívida. Não se sabe o que Bento tinha de benedito, porque tudo o que se falava e se sabia sobre ele era que tinha sido um homem ruim de dar medo. Ruim com força. Era dono de duas das três fazendas que hoje compunham a Caieira. Era dono de tudo: “Até onde suas vistas alcançarem, tá vendo? Tudo meu. Meu”. Era dono das terras, dono de mais de 200 escravos, dono da mulher Alcina e das suas nove filhas. Nove mulheres, para tristeza de nhô Bento, que queria desesperadamente ter um filho macho.
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E dos fantasmas e de tudo. Mas um não contava pro outro. Nem mortos contariam. Pelo menos por enquanto não. – A senhora tá amarrando mixaria pra chegado, conta, por favor! – Xô fedelho, chega de conversa amarela1, qui agora eu vô rezá. Xispa, vão! Jeremy se levantou falando em inglês para o amigo. – “Give up, Bruno, this fucking negro wont tell us anything”. (Vamos Bruno, este negro fodido não vai nos dizer nada). – Não fale assim com a dona Almerinda. Fico puto quando você fala com esse jeito de lorde inglês. Dona Almerinda ouviu seu nome e quis saber sobre o que falavam. Nem precisava. Negro era uma palavra que ela conhecia bem, mesmo naquela língua embolada dava pra entender o peso com que ela tinha sido dita. Ela reconhecia aquele tom. Não ia perder tempo e mandou os dois pra cama. – Vão pra cama vão. Ceis tão no quarto treis né? Intão, era o quarto da sinhá Emília que Deus a tenha e da fia dela, a Dadade, que morreu sofrida dimais da conta naquele quarto. Quarto treis, esse mesmo qui oceis tão, o quarto treis. Ceis são corajoso, viu? Si ficá quietim é capaz de oceis ouví o chôro da minina. Agora vão... vão com São Bento e qui Nosso Sinhô vos acompanhe. Ba noite proceis. Falou de maldade, sabia que eles ficariam com medo. Mas não falou mentira. O quarto que hoje era o número 3 do casarão era mesmo onde dona Emília viveu até sua morte, há mais de 40, 50 anos. E foi nele também que ela viu sua filha, Felicidade, a Dadade, morrer no auge da mocidade, vítima da gripe espanhola. Desde que a menina nascera nem ela ou a mãe jamais saíram da fazenda. Mas isso faz parte da história que dona Almerinda aos poucos contaria para eles. Ou não. Deu certo. Eles foram para o quarto quietos. Andando um atrás do outro num cortejo quase solene. Bruno, na frente, ia segurando o castiçal de cristal, iluminando o caminho. Jeremy vinha logo atrás. Tão imediatamente atrás que pisou no calcanhar do amigo. Nem assim eles falaram alguma 1. Conversa amarela - Conversa pra boi dormir; conversa fiada; papo ruim.
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vou!
O
que você espera encontrar no Brasil?
A resposta pipocou na cabeça de Jeremy: “meninas, beijos, bocas e bundas”. Mas respondeu como deveria, ou como achava que deveria, falando em um inglês exageradamente perfeito: “Espero encontrar uma cultura exótica por meio da qual eu possa aprender a conviver com as diferenças. Espero representar bem o meu país, quero ser, tipo assim, um embaixador mirim da África do Sul. Da Inglaterra. Quero dizer, bom, é isso. Além do mais, acho importante para minha formação experimentar essa independência vivendo em um país tão distante e quero que o senhor saiba que eu estou pronto para tudo – gosto de conviver e conversar com todo tipo de pessoa, sou louco por crianças, tenho o maior respeito pelos idosos e adoro cachorros. Pode ter tudo isso na casa que o senhor escolher pra mim. Eu também sou independente nas minhas coisas, eu lavo, passo, cozinho umas coisas e não deixo bagunça. Obrigado.” Mr. Spears encerrou a enxurrada ansiosa do menino, que obviamente queria impressioná-lo de todas as maneiras possíveis. Ele já foi assim um dia