As Lágrimas de Shiva César Mallorquí
Prêmio Edebé de Literatura Infantojuvenil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
)
Mallorquí, César As lágrimas de Shiva / César Mallorquí ; [traduzido por Socorro Acioli]. -- São Paulo : Biruta, 2009. Título original: Las lágrimas de Shiva. ISBN 978-85-7848-044- 8 1. Ficção espanhola I. Título
09-12843
.
CDD-863
Índices para catálogo sistemático
:
1. Ficção : Literatura espanhola 863 1ª Edição 2009 Edição em conformidade com o acordo ortográfico da língua portuguesa. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Biruta Ltda. Rua Coronel José Euzébio, 95 casa 100-5 Higienópolis CEP: 01239-030 São Paulo – SP – Brasil Tel (011) 3081-5741 (011) 3081-5739 E-mail: biruta@editorabiruta.com.br Site: www.editorabiruta.com.br A reprodução de qualquer parte desta obra é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
As Lรกgrimas de Shiva
Título da Edição Original Las Lágrimas de Shiva Copyright© Edebé 2002 Copyright© César Mallorquí Título da edição brasileira As Lágrimas de Shiva Tradução Socorro Acioli Revisão Mariana Mininel de Almeida Coordenação editorial Editora Biruta Capa e projeto gráfico AlôTodos Comunicação
Sumário O Bacilo de Koch 11 Villa Candelaria 27 Perpetuum mobile 45 A Estranha História de Beatriz Obregón 71 Savanna 95 A Mão no Espelho 111 Do Amor e Outros Desastres 125 A Velha Criada 147 A Carta 157 O Perfume dos Nardos 169 As Lágrimas de um Deus 181 Açucena 190
Este livro é dedicado a Isabel González Lectte e Antonio Martínez; ou, o que é a mesma coisa, a Patricia Montes e César Torre, meus dois santanderinos favoritos, meus queridos amigos de sempre.
Dizem que cada nova manhã nos oferece mil rosas, mas onde estão as pétalas das rosas de ontem? Omar Khayyam
13
O Bacilo de Koch Em certa ocasião, já faz muito tempo, eu vi um fantasma. Sim, um espectro, uma aparição, um espírito, pode chamar como quiser, o importante é que eu vi. Isso aconteceu no mesmo ano em que o homem chegou à Lua e ainda que eu tenha vivido momentos de muito medo, esta história não é o que se costuma chamar de um romance de terror. Tudo começou com um enigma: o mistério de um objeto muito valioso que esteve perdido durante sete décadas. Esse objeto extraviado chamava-se As Lágrimas de Shiva e ao redor dele aconteceram vinganças, amores proibidos e estranhos desaparecimentos. Havia um fantasma, um velho segredo oculto nas sombras. E havia muito mais. Às vezes, sem saber muito bem como nem por que, acontecem coisas que nos modificam por dentro e nos fazem ver o mundo de outra forma. Muitas vezes são acontecimentos banais, daqueles que na hora em que vivemos não tem a menor importância, mas que com o tempo adquirem uma inesperada transcendência. Foi isso que aconteceu quando meu pai ficou doente. Um ser microscópico, o bacilo descoberto por um alemão chamado Robert Koch, desencadeou uma série de acontecimentos que acabariam conduzindo aquele verão de 1969. E esse verão foi muito especial: meu pai adoeceu, eu saí de casa, o homem chegou à Lua, eu vi um fantasma e decifrei um antigo mistério. Sim, aconteceram muitas coisas esse ano e a mais importante foi o fato de ter reencontrado as quatro flores, como as chamava sua mãe: Rosa, Margarida, Violeta e Açucena. Elas me mostraram um mundo secreto e íntimo, uma realidade próxima e cotidiana, mas que até então era totalmente distante e desconhecida para mim. Tudo isso aconteceu há muito tempo, claro. Naquela época não
14
havia computadores, nem videogames, nem televisão com transmissão via satélite. Para dizer a verdade, não havia nem TV colorida. Era uma época em preto e branco, um tempo de mudanças, pelo menos além das nossas fronteiras. Em outros países os estudantes tomavam as ruas exigindo um mundo melhor; os hippies enfeitavam seus longos cabelos com flores; as mulheres lutavam para ter os mesmos direitos que os homens; os jovens se manifestavam contra a guerra do Vietnã, as moças usavam minissaias e biquínis, os rapazes imitavam Paul, John, George e Ringo. Isso tudo acontecia na França, Inglaterra, na Holanda e nos Estados Unidos, mas na Espanha as coisas eram diferentes. Havia uma ditadura e o velho general Franco ainda controlava com mãos de ferro tudo o que acontecia no país, ditando – era um ditador – o que podíamos ou não podíamos fazer, ver ou dizer. Enquanto o mundo fervia de criatividade e novas ideias, a Espanha dormia um sono longo que já durava trinta anos e do qual parecia que não iria despertar jamais. É claro que eu, nessa época, não era muito consciente de tudo isso. Na nossa casa não falávamos de política – ninguém falava de política no país, ao menos em voz alta e sem medo – e acho que não me dava conta do quanto as coisas eram injustas até que Margarida me ensinou o autêntico significado da palavra liberdade. Mas não é de política que eu quero falar e sim de um fantasma, de misteriosas aparições, uma tumba vazia, de velhas desavenças familiares e de um segredo oculto por muito tempo. *** Meu pai adoeceu no começo do ano, pouco depois do Natal. Há algum tempo ele não se sentia bem – tossia muito, com dores no peito – mas papai tinha horror a hospital e acho que se não fosse
15
pela insistência de minha mãe ele jamais iria ao médico. No fim das contas ele acabou cedendo e o doutor, depois de ver o resultado de muitos exames, diagnosticou tuberculose. Felizmente a doença foi descoberta a tempo e a cura era fácil, mesmo que o tratamento fosse longo. Ao fim de janeiro, papai foi a uma clínica situada na serra a uns sessenta quilômetros de Madrid. O ar puro das montanhas era o ideal para a sua cura e esse foi o motivo pelo qual meu pai ficou cinco meses fora de casa. Senti muita falta dele durante esse tempo, já que para evitar o contágio nem meu irmão nem eu podíamos ir visitá-lo. Mesmo falando sempre com ele por telefone, aguardávamos com impaciência o seu retorno. Mas quando isso aconteceu, eu não estava lá para recebê-lo. Mamãe o visitava duas vezes por semana, às quintas e aos sábados. Depois de deixar a mim e o meu irmão Alberto na escola, ela sentava ao volante de seu pequeno carro de modelo Seiscentos e saía em direção à serra. Passava o dia inteiro na clínica e voltava na última hora da tarde. Num certo dia de quinta-feira, em meados de junho, mamãe voltou para casa um pouco antes do horário normal. Convocou uma reunião comigo e meu irmão na sala para comunicar algo muito importante: — O pai de vocês está bem melhor e voltará para casa no final do mês. Meu irmão e eu recebemos a notícia com muita alegria, mas mamãe, em vez de ficar feliz junto com a gente, continuava calada e com uma expressão muito séria. Depois de alguns segundos, anunciou: — Ainda temos um pequeno problema. O pai de vocês não se recuperou totalmente e há risco de contágio – ela fez uma pausa e continuou – por isso decidimos que vocês passarão o verão fora de
16
casa. Você, Alberto, irá para a casa do tio Esteban. E quanto a você, Javier, vai para a casa da tia Adela. Fiquei com a boca aberta, passando da surpresa ao horror em apenas um segundo. Tio Esteban era irmão do meu pai e morava em Madrid com sua esposa e os três filhos. Mas a tia Adela… — Mas a tia Adela vive em Santander!!! – protestei. Ainda que mamãe tenha esboçado um sorriso, por trás da doce expressão do seu rosto pude adivinhar uma determinação indestrutível. Sem dúvida, ela sabia que eu iria protestar e sem dúvida também, não estava nem um pouco disposta a dar o braço a torcer. — Santander é uma cidade maravilhosa – ela disse – e lá você poderá ir à praia durante o verão inteiro. Além disso, minha irmã tem quatro filhos… — Quatro filhas! – eu corrigi, enfatizando muito a letra “a” da última palavra. — Sim, quatro filhas. E uma delas, acho que é a Violeta, é da sua idade e você terá uma amiguinha com quem brincar. Eu poderia ter dito a ela que eu já não tinha mais idade para brincar, principalmente com uma menina. Poderia ter dito que a ideia de ter uma “amiguinha” retorcia o meu fígado. Poderia ter dito que estava farto de ser o menos importante da família. Sim, poderia ter dito tudo isso, mas não disse, pois sabia que seria absolutamente inútil. ——Por que eu não posso ir pra casa do tio Esteban também? – insisti – Assim não teria que sair de Madrid e ficaria com o Alberto. ——Na casa do tio Esteban só há uma cama livre – respondeu mamãe, com toda paciência. ——E por que sou eu quem tem que ir? Por que o Alberto não vai para Santander e eu fico em Madrid? Mamãe suspirou. — Porque o Alberto já é mais velho, não dá pra ficar na casa da tia Adela.
17
Mais velho? Alberto faria dezessete anos em julho e eu já tinha quinze, a diferença de idade era mínima! — E qual a diferença de ser um pouco mais velho? Eu juro que não entendo! — Você entenderá daqui a alguns anos. — Mas… Mamãe fez que não com a cabeça e cruzou os braços: — Não insista, Javier. Eu e sei pai conversamos muito sobre esse assunto e tomamos essa decisão. Quando começarem as férias você vai pra casa da minha irmã e, pode acreditar, passará o melhor verão da sua vida. Agora volte pro seu quarto e continue estudando porque eu tenho muito o que fazer. Eu quase protestei novamente. Quase disse o quanto aquela decisão era injusta e arbitrária, mas qualquer tentativa de rebeldia estaria condenada ao fracasso. Quando minha mãe colocava uma decisão na cabeça era simplesmente impossível fazer com que ela mudasse de ideia. Por isso, adotei minha expressão facial de dignidade ofendida e voltei, junto com Alberto, para o nosso quarto. *** — Cara, como você é sortudo! – me disse meu irmão assim que entramos no quarto. Olhei pra ele com desconfiança. Estava zombando de mim? Sim, porque uma das principais ocupações do Alberto era encher o meu saco, mas agora ele parecia sincero, como se estivesse mesmo com inveja de mim. — Sortudo é você – eu respondi – que vai ficar em Madrid enquanto me mandam pro fim do mundo. Alberto moveu a cabeça de um lado pro outro, como se eu fosse um caso perdido e ele, um poço de sabedoria. ——Você é mais infantil que um monte de gibis! – disse em tom