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As Metamorfoses de Ovídio
De Mvndi Origine Ante mare et terras et quod tegit omnia caelum unus erat toto naturae vultus in orbe, quem dixere chaos: rudis indigestaque moles nec quicquam nisi pondus iners congestaque eodem non bene iunctarum discordia semina rerum. nullus adhuc mundo praebebat lumina Titan, nec nova crescendo reparabat cornua Phoebe, nec circumfuso pendebat in aere tellus ponderibus librata suis, nec bracchia longo margine terrarum porrexerat Amphitrite; utque erat et tellus illic et pontus et aer, sic erat instabilis tellus, innabilis unda, ignibus armata est, qui nutu concutit orbem, induitur faciem tauri mixtusque iuvencis mugit et in teneris formosus obambulat herbis.
3. “Este era o Caos”: em grego, a palavra χάος significava basicamente um espaço vazio, mas com uma aura simbólica que a aproximava do conceito de “abismo”. Na cosmogonia antiga, ela é usada para designar o estado primordial do mundo, uma espécie de massa amorfa, como mostra o poeta nos versos seguintes. Um dos traços dessa matéria bruta é que nela todos os elementos estão misturados até o ponto da indistinção. Daí o sentido mais recente da palavra “caos” como simples confusão. 3-4. “massa indigesta”: “Indigesto” deriva do latim digero, que significa separar, distribuir, ordenar. “Inerte” vem de in + ars, e originalmente significa “desprovido de arte”. “Rude” possuía sentido semelhante ao moderno, sugerindo falta de sofisticação ou até de educação. Os três adjetivos indicam a necessidade de um artífice, que tome essa matéria bruta
em suas mãos e lhe confira a ordem e arte que lhe faltam. Esse artífice será Deus. 5-6. “Das cousas”: “as priscas e discordes sementes das cousas, não bem juntas, jaziam em montão”. A metáfora em “sementes das cousas” indica que, no Caos, os objetos do mundo já existiam, individualmente, em potência. Essas possibilidades se encontravam “não bem juntas”, isto é, desconexas; “juntar” deve ser entendido como “ligar” ou “conectar”, e o estado das coisas “mal juntas” é aquele em que os elementos do universo não se encaixam perfeitamente uns nos outros – numa palavra, a ausência do cosmos, da ordem universal. 7-16. “O sol”: Ao construir as orações desse trecho, em que busca descrever o Caos primordial, o poeta usa as coisas do mundo – o sol, a lua, o oceano etc. – como sujeitos, enquanto nos predicados contradiz alguma de suas características essenciais. Assim, o sol não
Tradução de Bocage
A Fundação do Mundo Antes do mar, da terra, e céu que os cobre Não tinha mais que um rosto a Natureza: Este era o Caos, massa indigesta, rude, E consistente só n’um peso inerte. Das cousas não bem juntas as discordes, Priscas sementes em montão jaziam; O sol não dava claridade ao mundo. Nem crescendo outra vez se reparavam As pontas de marfim da nova lua. Não pendias, ó terra, dentre os ares, Na gravidade tua equilibrada, Nem pelas grandes margens Anfitrite Os espumosos braços dilatava. Ar, e pélago, e terra estavam mistos: As águas eram pois inavegáveis, Os ares negros, movediça a terra. Forma nenhuma em nenhum corpo havia, brilha, a lua não muda de fase, o mar não é navegável, e assim por diante. Ao tomar esses elementos como sujeitos, reforça a ideia de que eles já existiam no Caos; mas por lhes negar suas qualidades fundamentais, põe o leitor perplexo, sem saber como imaginá-los. É justamente o que quer o poeta: que entendamos, sem no entanto podermos imaginar; e a perplexidade do leitor, derivada desse modo de existência confuso e paradoxal, reflete a natureza mesma do Caos. 7-13. “O sol”: o sol, a lua, a terra e o oceano sugerem uma correspondência com os quatro elementos: fogo, ar, terra e água. O procedimento aqui é negar explicitamente alguma característica de cada elemento: o sol não dava claridade, etc. 14-16. “Ar e pélago”: reforçada a idéia de mistura, o poeta volta a atribuir aos elementos características incoerentes, com uma dife-
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rença: a “água inavegável” e o “ar negro” não chocam a imaginação com a intensidade de um “sol que não brilha” ou do “oceano que não toca a praia”. Porém, a vagueza dos adjetivos não deve confundir o leitor: estas águas são inavegáveis, não no sentido comum de serem muito agitadas e perigosas, mas porque são sólidas e gasosas ao mesmo tempo que líquidas, isto é, não são águas no sentido atual do termo. A terra não é movediça por sofrer terremotos; ela é instabilis, isto é, não possui estabilidade, não permanece a mesma. Em suma, aqui também se trata de negar características essenciais dos elementos, embora os termos da negação se tornem mais abstratos. 17-21. “Forma nenhuma”: resumidos os versos anteriores na primeira oração, acrescenta-se a idéia de conflito interno. Pode-se entender a conjunção aditiva “e” com um sentido puramente complementar: forma nenhuma
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As Metamorfoses de Ovídio
Evropa a Iove Rapta sevocat hunc genitor nec causam fassus amoris ‘fide minister’ ait ‘iussorum, nate, meorum, pelle moram solitoque celer delabere cursu, quaeque tuam matrem tellus a parte sinistra suspicit (indigenae Sidonida nomine dicunt), hanc pete, quodque procul montano gramine pasci armentum regale vides, ad litora verte!’ dixit, et expulsi iamdudum monte iuvenci litora iussa petunt, ubi magni filia regis ludere virginibus Tyriis comitata solebat. non bene conveniunt nec in una sede morantur maiestas et amor; sceptri gravitate relicta
2. “o amor que o fere”: a saber, o amor por Europa, que fere Júpiter. 3-9. “Vai, ministro” etc: tudo isto é uma fala de Júpiter para Mercúrio, mas a indicação verbal (“lhe diz”) só aparece no terceiro verso da fala, entre parênteses. Poderia ser reordenado assim: “e, sem lhe declarar o amor que o fere, lhe diz: ‘Vai, ministro fiel’ etc.”. 3. “dos meus decretos”: como se vê por este mito, Mercúrio não serve apenas a “decretos”, mas a qualquer desmando de Júpiter. O decreto é uma decisão de valor público e oficial; a ordem do pai dos deuses que se seguirá é particular e sigilosa, pois tem propósitos inconfessáveis. O uso figurativo do termo “decreto” neste contexto é, assim, abusivo; sendo abusivo, é irônico, e a ironia é toda de Bocage. Ovídio no original diz iussa, “ordens”. 5-7. “tua mãe”: a mãe de Mercúrio é a estrela Maia. Os habitantes de Sídon, na Fenícia (atual Líbano) estariam do lado esquerdo
(“sestra parte”) de Maia: portanto, Mercúrio, que viaja por meio de suas sandálias aladas, deve usar a estrela de sua mãe como ponto de referência para encontrar Sídon. Além disso, observe-se que Maia é uma das Plêiades, grupo de estrelas que faz parte da constelação de Touro. A figura dessa constelação é tradicionalmente explicada como sendo o touro que raptou Europa – precisamente a estória que será contada neste poema. O uso da constelação logo no começo do poema, quando o rapto ainda não aconteceu, é uma prefiguração codificada do que ocorrerá a seguir no poema. Note-se ainda que Ovídio é cuidadoso na construção da fala: o fato de Maia ser mãe de Mercúrio é suficiente para justificar, segundo a verossimilhança, que Júpiter a escolha como referência astronômica, mencionando assim, veladamente, a constelação de Touro, da qual Maia faz parte. Dessa maneira, não parece que foi intenção de Júpiter confessar
Tradução de Bocage
O Roubo de Europa por Júpiter O grão Jove no céu Mercúrio chama E, sem lhe declarar o amor que o fere, “Vai, ministro fiel dos meus decretos, Vai, filho meu, co’a sólita presteza; Desce à terra (lhe diz) donde se avista Tua mãe reluzindo à sestra parte, E que os seus naturais Sidon nomeiam. O armentio real, que ao longe a relva No monte anda a pascer, dirige à praia”. Disse, e já da montanha o gado expulso Caminha à fresca praia, onde costuma A do sidônio rei mimosa filha Espairecer, folgar co’as tírias virgens. A majestade e o amor não bem se ajustam; Jamais o mesmo peito os acomoda. Do cetro a gravidade enfim depondo seus planos de transformar-se num touro; a relação entre a constelação e os acontecimentos seguintes passa por “mera coincidência”. 7.“E que os seus naturais Sidon nomeiam”: os “naturais” (i.e. nativos) da terra à qual Mercúrio se dirige chamam-na de Sídon. A convenção hoje é pronunciar “Sídon” com acento tônico na primeira sílaba, mas no verso de Bocage deve-se dizer “Sidón”, sob pena de estragar o ritmo. 8-9.“O armentio real” etc: “dirige à praia o armentio real, que anda a pascer a relva no monte, ao longe”. Júpiter ordena a Mercúrio que desvie o gado do rei de Sídon, Agenor, dos montes para a praia. De fato, a filha do rei, Europa, costuma passear pela praia, e a presença do gado visa a tornar menos estranha a aparição de certo touro branco – Júpiter transfigurado. 10-13. “já da montanha” etc: “o gado, expulso da montanha, já caminha para a fresca
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praia, onde a mimosa filha do rei sidônio costuma espairecer, folgar com as virgens tírias”. 10. “Disse”: isto é, Júpiter disse (o conteúdo dos versos 3-9). 12. “A do sidônio rei mimosa filha”: a princesa Europa, filha de Agenor, rei de Sídon. 13. “tírias virgens”: moças de Tiro, cidade próxima de Sídon. Em outra versão do mito, Europa vivia em Tiro, não em Sídon. 14-15. “A majestade” etc: a transformação em touro por si já é espantosa; sendo Júpiter o transformado, é um rebaixamento monstruoso.Sendo duplo o escândalo, primeiro pela metamorfose, segundo pela qualidade do metamorfoseado, é muito decoroso antepôr-lhe uma observação ética, que suaviza o justo espanto do leitor, explicando de antemão que o amor erótico não coexiste com o respeito próprio; além disso, por meio dessa sentença, a humilhação de Júpiter deixa de ser escandalosa e torna-se contra-exemplo edificante.
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