Cada Caso, um Caso...Puro Acaso - Os processos de evolução biológica dos

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cada

caso, um caso...

puro acaso

Os processos de evolução biológica dos seres vivos

Fábio de Melo Sene

2009


© 2009 Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Todos os direitos desta edição reservados à editora.

Gravura da capa: Francisca Carolina do Val

Sene, Fábio de Melo Cada Caso, Um Caso... Puro Acaso: Os processos de evolução biológica dos seres vivos / Fábio de Melo Sene. – Ribeirão Preto – SP: Sociedade Brasileira de Genética, 2009. 252 p. ISBN 978-85-89265-11-9

1. Evolução biológica. 2. Seres vivos. 3. Biologia Genética. 4. Biologia Evolutiva. I. Autor. II. Título.

Diagramação e capa:

Editora SBG Sociedade Brasileira de Genética Ribeirão Preto, SP


Sumário Agradecimentos............................................................................ viii Apresentação .................................................................................ix Prefácio ..........................................................................................xi

Capítulo 1 Primeiras Palavras ......................................................................... 1

Capítulo 2 Charles R. Darwin e Alfred R. Wallace ......................................... 17

Capítulo 3 Conceitos Básicos para o Entendimento da Evolução Biológica ....................................................................... 31

Capítulo 4 Teoria Sintética ou Neodarwinismo .............................................. 45

Capítulo 5 Revisão da Teoria Sintética .......................................................... 53

Capítulo 6 Os Fatores Evolutivos .................................................................. 61

Capítulo 7 Adaptação .................................................................................... 77

Capítulo 8 Interação entre os Fatores Evolutivos .......................................... 95


Capítulo 9 Diferenciação entre Populações e Origem das Espécies ................................................................. 103

Capítulo 10 Evolução dos Grandes Grupos .................................................. 129

Capítulo 11 O Documentário Fóssil ............................................................... 139

Capítulo 12 O Cenário da Evolução .............................................................. 149

Capítulo 13 A Distribuição dos Seres Vivos na Terra .................................... 161

Capítulo 14 A Espécie Humana ..................................................................... 179

Capítulo 15 Últimas Palavras......................................................................... 207 Índice remissivo .......................................................................... 231 Referências bibliográficas .......................................................... 237


Dedicatória (em linha direta) f1 – Patrícia e Fabiana, queridas filhas; f2 – Bartira e Mariama, amadas netas, descendência compartilhada com Alzira Célia, minhas mulheres prediletas.


Agradecimentos Sou muito grato aos seguintes amigos e colegas por terem lido total ou parcialmente a prova deste livro e apresentado sugestões para corrigi-lo, quer fossem erros ou omissões: os biólogos – Eliana Maria Beluzzo Dessen, Fernando Faria Franco, Luis Eduardo Maestrelli Bizzo, Maria Ângela Niero M. Moreira, Maura Helena Manfrin, Rogério Pincela Mateus, Vera Nisaka Solferini; o médico Renato Barroso Pereira de Castro; as professoras de português e literatura: Elisabete de Carvalho Sposito, Maria Marta Botelho de Sá Cabarite, Marina Ferreira; as professoras: Dulce Regina Roquete Loures e Marisa Colherinhas Alarcon pelo senso crítico e pela formação religiosa. Nenhum deles é responsável pelos erros e pelas omissões que eventualmente ainda persistirem no livro, pois não acatei todas as sugestões que me foram dadas e também porque, depois de ser lido por eles, o livro foi revisado sem que eles pudessem opinar sobre o que foi alterado. Agradecimento especial à minha companheira Alzira Célia Soares Sene, educadora, escritora, pela leitura, correção, reorganização do texto em todas as etapas e versões do trabalho, e pelas discussões sobre pontos polêmicos que ajudaram muito no ajuste das ideias. Durante mais de um ano, este livro ocupou principalmente meus finais de semana, quando fiquei por mais de dez horas por dia, no escritório de casa, por ela apelidado de caverna.


Apresentação Escrever um livro-texto sobre evolução exige, da parte do autor, ou autores, muita experiência, conhecimento, desprendimento para gastar seu tempo com revisões da literatura e outras atividades relacionadas, bem como uma grande dose de interesse nos eventuais leitores. A presente obra não é um livro-texto no sentido tradicional, mas as demais qualificações são as mesmas. Fábio de Melo Sene é um professor com larga experiência no ensino universitário, tanto no nível da graduação como da pós-graduação. Suas atividades como pesquisador de genética e evolução das moscas do gênero Drosophila, sempre estiveram juntas com a atividade didática e com a orientação de bolsistas, em todos os níveis. Justamente esta experiência como docente, pesquisador e orientador o qualifica para escrever uma obra como a presente. Este é um livro especial, onde os conceitos, os métodos de estudo da evolução, bem como suas implicações, são tratados na forma de uma “longa conversa”, qual um “longo argumento” darwiniano. É notável a capacidade do autor de apresentar e discutir temas complexos, como se estivesse a conversar com seu leitor ou leitora. Não há citações bibliográficas que interrompam esta conversa-narrativa. Certamente que foi uma obra amadurecida ao longo do tempo, com muita reflexão e naturalmente com a criatividade de quem convive com o tema da evolução, no campo e no laboratório. O livro é tal qual Fábio Sene “vê” a evolução ! Ter o privilégio de ler esta obra previamente, me lembrou de outro inesquecível professor, escritor e evolucionista brasileiro: Newton Freire-Maia. Ambos, Fábio e Newton, se aproximam quanto ao estilo da narrativa, da fluência argumentativa e do interesse em transmitir ao leitor(a) todo o entusiasmo pelo tema da evolução. Cada caso, um caso...puro acaso, trata dos problemas que são usualmente apresentados em disciplinas de evolução nos cursos de graduação da maioria das universidades brasileiras. É mais um mérito do livro: qualquer estudante poderá utilizá-lo como um complemento dos livros-texto disponíveis. É como se após as aulas ele fosse conversar com outro professor para ajudá-lo a entender os padrões e os processos da evolução, mas com uma linguagem diferente daquela que ele ouviu em sala de aula. Obrigado Fábio, por disponibilizares aos leitores brasileiros um texto tão pessoal, tão rico e informativo como este. Creio que era o que te faltava, para completar o dito popular que fala de realização pessoal através de “um filho, uma árvore, um livro” ! Aldo Mellender de Araújo Departamento de Genética, Instituto de Biociências, UFRGS



Prefácio Geralmente a explanação sobre as ideias que explicam o processo evolutivo tem sempre um caráter pessoal e varia muito de um autor para outro, muito mais do que em qualquer outro assunto em Biologia, provavelmente pela complexidade das relações e pelas implicações decorrentes das ideias. Este livro não fugiu desta característica. Quanto mais estudo o processo evolutivo, mais dúvidas surgem e, a respeito dele, ter convicções rígidas, ou se achar autoridade no assunto, é muito perigoso. Em relação a assuntos que envolvem ética, moral e religião, como no caso da origem da espécie humana, evitei expor opiniões pessoais que extrapolassem o conhecimento científico. No entanto, foi impossível evitar eventuais tendenciosidades provocadas pela minha formação de geneticista, com especialidade em genética de populações. Obviamente não tive a intenção de esgotar todos os aspectos que envolvem o assunto e procurei abordar os que fundamentam as ideias sobre o processo evolutivo. O principal interesse sobre a teoria da evolução são as hipóteses e teorias que a compõem e, por isso, em todos os casos, procurei apresentá-las.


“Só a dúvida salva.” Millôr Fernandes

Da observação de todos os seres vivos atuais, dois fatos se destacam: a incrível variedade das formas de vida de organismos acelulares, unicelulares e os pluricelulares, todos representados pelos organismos atuais como os vírus, as algas, as bactérias, os protozoários, os fungos, as plantas, os animais; outro fato marcante é a adaptação de cada forma de vida às condições ambientais onde vivem, como os organismos aquáticos, de água doce ou salgada; os terrestres, vivendo em diferentes temperaturas, altitudes, umidades, com mais luz ou menos luz e nos mais diversos ambientes da Terra – das profundezas dos oceanos ao pico das cadeias de montanhas, dos desertos às florestas úmidas, dos polos às regiões equatoriais – e, ainda, os parasitas intracelulares.

Figura 1.1 – Algumas das milhares de formas do mundo animal que vivem nos diferentes ambientes terrestres.

Capítulo 1

Primeiras Palavras


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É compreensível que um observador, por não saber as causas e os processos que deram origem a toda essa complexa variedade e adaptação dos seres vivos atuais, não aceite, facilmente, a explicação científica de que tudo tenha surgido sem intenção, por puro acaso, principalmente porque, nesse processo, um dos casos é a origem da espécie humana. Supondo que a ciência seja uma coisa séria, ou deveria ser, e que os cientistas não sejam bobos e nem totalmente loucos, é natural que haja curiosidade em saber em quais informações científicas eles estão se apoiando para afirmarem, há mais de 150 anos, que o processo evolutivo ocorre sem planejamento. A dúvida sobre a origem e a diversidade da vida deve ter sempre acompanhado a humanidade, sendo que os primeiros registros de tentativas de explicação para a diversidade dos seres vivos são encontrados nos gregos. Porém, apenas em meados do século 19 o acúmulo de informações científicas permitiu que o estudo, na forma como entendemos atualmente, tenha sido iniciado. Com o conhecimento científico atual, estamos vivendo, no início do século 21, um momento muito importante para o destino da vida humana na Terra. A diferença entre nossa geração e as gerações humanas passadas é que nós temos consciência do risco de extinção e, portanto, temos a responsabilidade de tentar evitá-la. Há séculos a espécie humana tem destruído o ambiente no qual evoluiu. Não estou falando apenas da destruição das matas e da poluição dos rios e oceanos que são questões mais visíveis. Falo em termos do ambiente terrestre como um todo, da temperatura, da composição atmosférica, da umidade do ar. Também me refiro ao tamanho da população humana atual, que já passou de seis bilhões de indivíduos. Esse é o maior risco para a sobrevivência da espécie. A dificuldade para o controle do tamanho populacional, que necessariamente passa pelo controle da natalidade, é agravada pela falta de informação/conhecimento, pela falta de assistência médica e pelas restrições impostas por muitas religiões.

Este livro O objetivo deste livro é expor os dados e as informações nos quais os cientistas baseiam-se para explicar a teoria evolucionista, ou o processo evolutivo dos seres vivos, levando as discussões aos limites do conhecimento atual sobre o assunto. Não são discutidas as hipóteses científicas sobre os eventos que culminaram na origem da vida, quando uma primeira estrutura foi capaz de autoduplicarse. Essa estrutura, uma molécula de RNA ou de DNA, tanto pode ter surgido espontaneamente na Terra como pode ter vindo do espaço. Independentemente disso, foi aqui, na Terra, que ela evoluiu para os seres vivos que conhecemos e é esse processo de evolução o assunto deste livro. Serão expostas as provas científicas de que todos os seres vivos da Terra surgem e se extinguem por processos naturais, sem eventos sobrenaturais.


Capítulo 1 – Primeiras Palavras

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As informações a respeito dos conhecimentos científicos referentes ao processo de evolução dos seres vivos é que norteiam o trajeto deste texto, portanto, a atenção do livro é voltada para o que já é conhecido. Um conhecimento novo só tem sentido quando o novo saber é acrescentado a um saber anterior. Quando ministro cursos, tenho uma ideia geral do que os estudantes já ouviram ou sabem sobre o assunto e busco acrescentar conhecimentos ao saber anterior. Quando sou palestrante já é mais difícil conseguir adequar o assunto por não saber o grau de conhecimento de um público mais amplo. Quanto à exposição em livro, sinto que a situação é intermediária, pois o fato de o texto ser escrito permite ao leitor a releitura do que tiver dificuldade para entender e, eventualmente, antes de prosseguir, pesquisar algum conhecimento prévio em outras fontes. Para assuntos polêmicos há a tentativa de não ultrapassar o limite do conhecimento científico atual, evitando especulações. A teoria evolucionista já é interessante e complexa em si e não precisa de polêmicas especulativas para se tornar atraente. Como o processo evolutivo é biocêntrico, voltado para a vida, e não antropocêntrico, voltado para o Homem, a espécie humana é tratada como uma espécie animal, parte da cadeia alimentar. Algumas pessoas se incomodam com essa designação, mas isso é apenas uma classificação biológica (taxonômica), e decorre, entre outras coisas, da óbvia constatação de que a espécie humana não é vegetal. Quando fiz o curso primário, década de 1950, foi-me ensinado que os animais se dividiam em racionais e irracionais, sendo que a única espécie pertencente ao grupo dos racionais era a espécie humana. As demais espécies do reino animal pertenciam ao outro grupo. Este, para mim, é o melhor exemplo de taxonomia com visão antropocêntrica. Taxonomia (taxo do grego tássein – agrupar, classificar + nomia do latim nominare – dar nomes) é a classificação dos seres vivos em grupos semelhantes de acordo com correlações evolutivas.

A evolução dos seres vivos como um problema científico Para que a ciência ou um cientista se preocupe com um assunto é preciso que haja dúvidas sobre ele e que existam perguntas para as quais não existam respostas satisfatórias. Quanto à origem e à diversificação dos seres vivos, até o início do século 18, havia uma explicação que satisfazia os estudiosos e, portanto, não era um problema que deveria ser investigado. A explicação de que tudo teria sido projeto e obra de um criador onipotente era perfeita e incontestável. A teoria do fixismo das espécies, dominante na época, propunha que as espécies teriam sido criadas com a mesma forma e estrutura atuais, e seriam imutáveis, fixas.


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Considerando o fixismo das espécies como verdadeiro, Linneu (17071778) criou o código de nomenclatura, Systema Naturae, publicado em 1735, como uma maneira de catalogar e organizar a classificação das espécies. A ele é atribuída a frase “Deus creavit, Linnaeus disposuit” (Deus criou, Linneu organizou). Chegou-se a imaginar na época que, com certo esforço, chegaria o momento em que todas as espécies existentes no mundo teriam sido descritas e seria possível ter uma ideia de toda a obra do criador em relação à vida. Mesmo a importante viagem de Charles Darwin iniciada em 1831, a bordo do navio Beagle, coletando amostras da fauna e flora por onde passava, tinha como objetivo inicial uma catalogação. O lema da viagem do Beagle era: ad majorem Dei gloriam (para maior glória de Deus). Em Biologia existem os fatos. Os biólogos tentam encontrar explicações para os fatos. Assim, inicialmente fazem hipóteses, as mais lógicas possíveis. Se a hipótese for confirmada, vira uma teoria. Se a teoria for sempre confirmada, vira uma lei. Quando uma teoria deixa de explicar os fatos, precisa ser revista e, eventualmente, alterada. Impossível é mudar os fatos. Em pesquisa biológica, os fatos são revelados pelos dados, tanto os coletados na natureza como os resultantes de experimentos e, quando não estão de acordo com a teoria, nunca devem ser alterados para serem ajustados a ela. A coleta ou o experimento deve ser refeito. Nunca se deve descartar a possibilidade de a teoria estar errada. Foi o que aconteceu no final do século 18 e durante o século 19. A teoria do fixismo das espécies começou a não explicar os fatos, fazendo com que a origem dos seres vivos passasse a ser um problema a ser investigado cientificamente. Vários eventos foram responsáveis pela deflagração dos processos de contestação e, entre eles, dois fatores devem ser destacados: – primeiro fator: a ampliação territorial das coletas biológicas, possível graças à expansão das navegações. Enquanto os taxonomistas trabalhavam apenas com a fauna e flora européias, a distinção entre as espécies era mais fácil. Com a ampliação das coletas para a Ásia e outros continentes, começou-se a observar que os seres vivos apresentavam diferenças de uma região para outra, o que se convencionou chamar de variação geográfica. A variação tanto podia ser gradual, criando um gradiente de variações contínuas, como ser abrupta, com variação descontínua. Começou a ficar difícil estabelecer até que ponto as diferenças entre os organismos distantes geograficamente eram suficientes para que eles fossem classificados como espécies diferentes, abalando o conceito de fixismo. Além da dificuldade para decidir os limites da espécie, com base no fixismo, começou a ficar ainda mais difícil explicar a origem da variação geográfica. A enorme diversidade de seres vivos encontrada a partir da ampliação da área de observação para além da Eurásia tornou difícil a manutenção de crenças até então indiscutíveis e, além do fixismo das espécies, também foi abalada a lenda da arca de Noé. São muitas as histórias incríveis nas quais a humanidade já acreditou por falta de informação e de conhecimento;


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– segundo fator: o momento histórico/cultural da época. Era o fim da inquisição religiosa e o aparecimento de filósofos do movimento conhecido como Iluminismo, entre eles, Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778), Diderot (1713-1784), d’Alembert (1717-1783). A pesquisa científica, como hoje é conhecida, teve início nessa época, baseada nas afirmações de que o uso leigo da razão, na pesquisa filosófica e científica, tinha como missão comum: a) promover o saber antimetafísico, fundado no sucesso do método experimental; b) banir os preconceitos e as superstições; c) fazer triunfar o espírito de tolerância; d) iluminar as consciências; e) difundir, em todos os extratos sociais, a educação e a cultura; f) reformar as instituições; g) limitar a influência das igrejas nos Estados e na educação.

Daquele movimento fez parte o método científico de Descartes (René Descartes, 1596-1650) que, em síntese, diz o seguinte: a) jamais aceitar como exata coisa alguma da qual não se conheça a evidência como tal, evitando a precipitação e só fazendo o espírito aceitar aquilo, claro e distinto, sobre o qual não pairem dúvidas; b) dividir cada dificuldade a ser examinada em quantas partes forem possíveis e necessárias para resolvê-la; c) pôr em ordem os pensamentos, começando pelos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para atingir, aos poucos, os mais complexos; d) fazer, para cada caso, uma enumeração tão exata e uma revisão tão ampla e geral para se ter a certeza de que não se tenha esquecido ou omitido algo.

A partir do final do século 18, naquele ambiente cultural, a discussão sobre a origem das espécies e ou origem da diversidade biológica intensificou-se no meio científico.

As primeiras hipóteses sobre a evolução dos seres vivos Uma das primeiras publicações de textos sobre evolução foi Zoonomia, publicado em 1795 por Erasmus Darwin (1731–1802). Embora não mencionasse a seleção natural, discutia a questão das adaptações e especulava sobre a possibilidade de uma espécie poder evoluir a partir de outra espécie. Embora sem muitos dados ou experimentos, o trabalho mostra que o fixismo já estava sendo questionado e tem importância histórica pelo fato de o autor ser avô paterno de Charles Darwin. Em 1808, o biólogo francês Jean Baptiste Lamarck propôs uma hipótese para explicar a incrível adaptação das espécies aos diferentes ambientes. Embora essa hipótese seja tratada nos livros escolares como uma teoria evolutiva, o impacto emocional para a época não foi muito grande porque


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propunha uma explicação para a adaptação das espécies, mas não postulava, necessariamente que, através das adaptações, a espécie poderia passar a ser outra espécie. Ou seja, a hipótese de Lamarck não questionava a origem das espécies. As hipóteses sobre o uso e desuso e da transmissão dos caracteres adquiridos tiveram muito sucesso, tendo sido adotadas até pelo próprio Darwin a partir da sexta edição do livro Origem das Espécies. As principais razões para o sucesso é que elas são muito lógicas, intuitivas e fáceis de serem explicadas e entendidas. É muito fácil explicar a teoria de Lamarck até para uma criança e costumamos dizer que as pessoas nascem lamarckistas. Para surpresa nossa, há alguns anos, estudantes do último ano do curso de Ciências Biológicas, embora tenham ouvido, desde o ensino fundamental e médio, que a teoria de Lamarck é errada, ao serem instigados a resolver questões evolutivas, cerca de 60% deles empregaram um raciocínio lamarckista. Muito importante para a época, o trabalho de Lamarck, embora muito lógico, contém erros biológicos graves e fundamentais e deixou de ser considerado a partir do final do século 19, motivo pelo qual não será discutido neste livro.

A diversidade biológica Quando os ingleses Charles Robert Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) visitaram o Brasil, na primeira metade do século 19, a grande diversidade biológica das Américas, especialmente a da América do Sul, já era conhecida. Antes deles, inúmeros pesquisadores/coletores europeus já haviam estado aqui e promovido verdadeiros arrastões coletando espécimes da flora e da fauna, dando início ao que se denomina, hoje, biopirataria. Entre dezenas e talvez centenas de nomes, citarei: Johann von Spix (1781-1826); Karl von Martius (1794-1868); Saint-Hilaire (1779-1853); Johann Natterer (1787-1843); Max von Braunsberg (1782-1867); Georg von Langsdorff (1774-1852); Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855); Thomas Ender (1793-1875); Jean Agassiz (1807-1873); Robert Hermann Schomburgk (18041865); Peter Wilhelm Lund (1801-1880), Ludwig Riedel (1790-1861)1. Todos esses pesquisadores/coletores permaneceram aqui por mais tempo do que Darwin e Wallace e coletaram muito mais materiais do que os dois juntos, com uma agravante: a maior parte do material coletado por Wallace foi perdida pelo naufrágio do navio a caminho da Europa. Por falta de uma teoria unificadora da diversidade dos seres vivos, todo material era coletado e catalogado como uma coleção de selos, respeitando-se a localização e data da coleta e o tipo de material coletado por semelhanças e diferenças. 1.

Para mais informações sobre as expedições científicas no Brasil consultar o livro Episódios da Zoologia Brasílica, de autoria de Paulo E. Vanzolini, publicado em 2004 pela Editora Hucitec.


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Wallace e Darwin Tentar explicar por que só Wallace e Darwin tiveram, independentemente e quase simultaneamente, a mesma ideia para explicar a origem de tanta diversidade é um exercício puramente especulativo. Dizer que eles eram mais inteligentes, mais geniais ou mais espertos do que os outros também é uma afirmação leviana. Porém, um fato muito importante aconteceu aos dois: depois de terem visto a grande diversidade biológica em áreas continentais sul-americanas, Darwin contornando o continente, e Wallace viajando pela Amazônia, ambos entraram em contato com a fauna e flora de arquipélagos. Darwin, em Galápagos, Wallace, na Malásia. E, o que diferencia os arquipélagos das áreas continentais? A descontinuidade das populações, isoladas umas das outras pelos limites das ilhas. A diferenciação entre populações isoladas é muito maior do que se elas tivessem uma distribuição geograficamente contínua e, embora o processo evolutivo atue igualmente nas ilhas ou nos continentes, o resultado da diferenciação fica muito mais evidente nas ilhas. Tanto as discussões anteriores sobre evolução, como as ideias de Darwin e Wallace, questionavam exclusivamente o fixismo e a origem das espécies. Até então não era aventada pelos biólogos a questão da origem da vida, portanto, não se discutia a existência ou não de um criador.

Os criacionistas Embora a ciência já tenha explicação bem comprovada do processo de evolução biológica, a maioria da humanidade ainda acredita que tenha havido um planejamento, uma intervenção divina. Não estou considerando, nesta maioria, pessoas que são criacionistas por interesse econômico ou de qualquer ordem de poder étnico ou religioso. Como ninguém nasce sabendo, tudo o que a humanidade já descobriu ou já fez tem de ser aprendido. Não adianta a pessoa nascer no século 21 porque, se ela não estudar, será tão ignorante quanto uma pessoa nascida em qualquer época anterior, na Idade Média, na pré-história. É normal que uma pessoa, sem conhecimento, ao se confrontar com a dúvida sobre a origem da vida, sobre a origem das espécies, pense exatamente como na Idade Média, que tudo seja obra de um criador, que tenha seguido um planejamento inteligente perfeito. Não é demérito algum não se ter conhecimento sobre alguma coisa que ainda não se aprendeu. O problema da compreensão do processo evolutivo é que existe resistência ao seu ensinamento e aprendizado, pois teme-se que esse conhecimento possa abalar a fé religiosa das pessoas. Embora essa resistência seja bem conhecida como existindo nos Estados Unidos, nós, aqui no Brasil, não estamos livres dela. Em 1982, dando uma palestra para mais de 80 professores de Biologia de ensino médio, da rede pública,


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constatei que o processo evolutivo não era tema em cursos de nenhum deles. Se a teoria de evolução é considerada unificadora de todo o conhecimento biológico, como pode um professor dar um curso de Biologia sem ensinar Evolução? As desculpas, ora fracas, ora esfarrapadas, variaram entre a falta de tempo e a de interesse. Em minha opinião é falta de conhecimento e/ou medo das eventuais reações dos estudantes e de suas famílias. Estou usando a expressão falta de conhecimento, pois é preciso ter cuidado com o termo ignorância. Embora o limite entre o conhecimento e a ignorância seja o mesmo – onde termina um, começa o outro – a reação das pessoas é diferente quando é dito que ela não tem conhecimento sobre tal assunto do que quando se diz que ela é ignorante sobre tal assunto. Ou, simplesmente, quando se diz – você é um ignorante – em vez de dizer – o que falta a você é conhecimento. São diferentes modos de dizer a mesma coisa e que têm efeitos diferentes. Aprendi sobre o perigo do uso do termo ignorância bem no início da minha carreira como palestrante, em 1967, em Maringá-PR. Depois de uma exposição sobre a evolução biológica, a primeira pergunta que veio do público (só depois eu soube que a pessoa era freira) foi: – Onde está Deus no seu processo? E eu, jovem, inexperiente, rapidamente respondi: – Tanto para o processo evolutivo, quanto para a ciência em geral, Deus está onde sempre esteve – no limite da ignorância humana. Não é preciso dizer que o que falei pegou muito mal. Por mais de meia hora tentei contornar o mal-estar causado, mas, certamente, não consegui. Em vão foram minhas tentativas de dizer que o limite do conhecimento era o mesmo da ignorância, e que à medida que o conhecimento avança, o apelo a Deus se afasta, ou seja, quando o Homem não sabia por que chovia, era Deus que fazia chover; quando aprendeu sobre a origem da chuva, passou a atribuir a Deus a responsabilidade pela energia solar que faz a água evaporar e formar as nuvens; quando soube que no Universo havia vários astros como o Sol, atribuiu a Deus a criação do Universo. Não adiantou dizer que o limite do conhecimento científico estava na origem dos átomos, na origem do Universo e, em tudo sobre cuja origem não se tem ainda uma explicação pode-se imaginar a presença de um criador. Por mais exemplos que eu desse, ficou sempre no ar a ideia de que se a necessidade de Deus está sempre além do limite do conhecimento, ele estará sempre no âmbito do desconhecido, ou seja, dentro da zona da ignorância. Após outra palestra, anos depois, já mais experiente, diante da pergunta: O acaso, dentro do processo evolutivo, não pode ser Deus? Respondi sem pestanejar: Pode. E passei para a pergunta seguinte. Tudo ficou tranquilo, pelo fato de eu ter dito que podia. Acalmou-se e apaziguou-se o ânimo de todos. Ao responder, pode, eu não afirmei que era, e nem expus a minha opinião a respeito, porque se a pergunta tivesse sido – não é Deus?, a resposta seria embaraçosa porque eu teria de responder: Não sei. E isso também é algo que incomoda porque, como um cientista diz que não sabe alguma coisa?... se ele fala assim, é porque não acredita... e esta também é uma situação difícil. É famosa a pergunta feita por Bóris Casoy


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a Fernando Henrique Cardoso, durante um debate com Jânio Quadros, candidatos à prefeitura de São Paulo, em 1985: – O senhor acredita em Deus? – Ao invés de responder sim, pois com essa resposta encerra-se o assunto e ninguém pergunta por quê, a primeira reação de Fernando Henrique foi: – Bóris, você me prometeu que não faria esta pergunta! – e depois alegou que se tratava de questão de foro íntimo, sem utilidade para avaliar o desempenho de um prefeito. Embora a resposta tenha sido dada ao vivo e publicada na íntegra nos jornais do dia seguinte, foi interpretada como ele tendo enrolado para responder, o que levou à conclusão de que ele não acreditava em Deus. Segundo os analistas políticos da época, foi uma das causas de ele ter perdido a eleição, pois até aquele momento tinha ampla vantagem nas pesquisas de intenção de voto.

Categoria de criacionistas Embora a designação criacionista seja aplicada de forma geral a todos que acreditam que os seres vivos não têm uma origem natural, existem diferenças entre eles. As principais categorias de criacionistas são: a) os que aceitam literalmente o texto bíblico; acreditam em Adão e Eva; no dilúvio e na Arca de Noé; creem que os fósseis de animais extintos, como os dinossauros, por exemplo, decorrem do fato de Noé ter deixado alguns animais de fora da arca; recusam os dados de datação geológica e acreditam que a Terra tenha no máximo 10.000 anos; b) há os que acreditam na datação geológica e argumentam que os tais seis dias da criação seriam simbólicos e que cada dia poderia durar milhões de anos; c) outros admitem a mutação, a seleção natural e admitem que uma espécie possa dar origem a outra. Porém, o aparecimento dos grandes grupos taxonômicos, também chamada de “macroevolução”, teria origem divina; d) existem também os que aceitam todo o processo proposto pelos cientistas, mas o recusam no que se refere à ideia do acaso e postulam que ele seja produto de uma intenção, de um projeto (intelligent design). Embora alguns desses adeptos afirmem que isso não tenha conotação religiosa, o projetista é de origem sobrenatural.

De maneira geral, a maioria das pessoas, apesar de ter estudado sobre evolução nas escolas, não entende cientificamente como o processo funciona, e esse entendimento tem importância muito grande no debate entre evolução e criacionismo. Existe um outro grupo formado por cientistas, alguns biólogos, que sabem tudo sobre a teoria científica da evolução, não acreditam no fixismo das espécies e não se dizem criacionistas. No entanto, acreditam na existência do Criador. É um paradoxo interessante: acreditar no Criador e não acreditar que ele criou a vida e as espécies. As pessoas com essa posição não eram


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questionadas aqui no Brasil até bem pouco tempo, quando a polêmica sobre criacionismo e evolução ocorria em outros países, como nos Estados Unidos, e não fazia parte das nossas discussões e elas podiam permanecer indefinidas, em cima do muro. Com a expansão das religiões no Brasil, a questão passou a existir por aqui, o que, cada vez mais, passa a exigir um posicionamento dos cientistas sobre o assunto. Penso que a explicação para essa postura seja decorrente da maneira com que adquirimos conhecimento ao longo da vida, à medida que histórias vão sendo contadas desde a infância. De vez em quando a gente ouve uma história que é conflitante com alguma história ouvida anteriormente e o conflito só se resolve, se o baú das histórias for remexido e o embate entre as histórias for resolvido. E, geralmente, quando o conflito envolve histórias religiosas, nem sempre a revisão é feita. E por falar na importância das histórias, conto aqui um episódio: certa ocasião, eu estava fazendo compras em uma feira livre, vestindo uma camiseta da Associação Nacional dos Criadores de Saci. Duas senhoras, provavelmente mãe e filha, mostraram ar de espanto ao lerem o que nela estava escrito – Associação Nacional dos Criadores de Saci – e eu aproveitei para falar: – É, eu crio saci. As duas se entreolharam, olharam de volta para mim, olharam para a camiseta e eu perguntei: – Vocês não sabem como se cria saci? Com a resposta negativa, dada pelo balançar da cabeça, eu falei: – É simples... basta contar uma história de saci para uma criança e, neste momento, um saci estará criado! Senti nelas um certo ar de alívio, e a mais nova perguntou sorrindo: – Mas, você acredita em saci? Ao que respondi de pronto: – Claro que sim! A mais velha não se conteve e perguntou: – Mas, você já viu um saci? Ao que eu também respondi: – Claro que não! Diante do sorriso meio decepcionado das duas, eu perguntei à mais velha: – Você acredita em Deus? Ao que ela respondeu de pronto: – Claro que sim. Em seguida perguntei: Mas, você já viu Deus? Houve um silêncio incômodo, elas começaram a pegar as compras para ir embora, mas ainda pude acrescentar: – Ah! É que um dia contaram uma história para você! Ao contrário do que se possa pensar, a ciência não é uma coleção de fatos e teorias, mas sim um processo de reflexão e entendimento de fenômenos naturais, o que exige, regularmente, uma reorganização mental diante de novos conhecimentos. Um dos principais argumentos dos criacionistas contra o acaso no processo é o de que o acaso não pode produzir estruturas complexas. Porém, a ciência diz o seguinte: – estruturas complexas se fixam por seleção natural, que é um processo determinístico; – os fatores casuais, ou estocásticos, no processo são a mutação e a deriva genética e eles não são os responsáveis pela evolução de complexidades.


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