A Igualdade e o Dever Fundamental de Pagar Impostos no Direito Constitucional Brasileiro

Page 1

ISBN 978-85-8425-509-2

editora

no direito constitucional brasileiro

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1977), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Na área do Direito, atuou nos campos da advocacia, da magistratura federal e do magistério superior. É Mestre em Filosofia pela FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2012), na área de concentração Filosofia da Religião e doutoranda no Programa de Pós-gradução em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, na área de concentração Filosofia da Religião.

A igualdade tributária e a capacidade contributiva atuam não somente como decisões axiológicas constitucionalizadas e normas objetivas de princípio, como também como direitos de defesa do particular frente ao poder estatal, neste último caso, com eficácia limitada à relação cidadão-Estado, ou seja, à relação do particular com o poder estatal. Sendo a capacidade contributiva o critério por excelência para a implementação do princípio da igualdade em matéria tributária, conferindo por isso um direito especial de igualdade em matéria tributária ao cidadão-contribuinte, direito esse que é um direito fundamental, as restrições a esse mesmo direito que, porventura, o legislador venha a impor deverão ultrapassar o teste da proibição do arbítrio e deverão respeitar o princípio da proporcionalidade, este último que, como demonstraremos, também encontrou agasalho na Constituição brasileira de 1988.

A igualdade e o dever fundamental de Maria Luiza Vianna pagar impostos Pessoa de Mendonça

MARIA LUIZA VIANNA PESSOA DE MENDONÇA

Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonça A igualdade e o dever fundamental de

pagar impostos no direito constitucional brasileiro

O objeto específico deste trabalho é o estudo da igualdade tributária considerada relativamente aos impostos tomados em seu conjunto e tomado o imposto na sua condição de espécie tributária com as características que lhe são específicas. O estudo que apresentaremos aqui foi feito sob o enfoque dogmático, isto é, consideramos a igualdade tributária na forma em que ela vem tratada no Direito Constitucional positivo brasileiro, vale dizer, a igualdade tributária será analisada aqui como se acha ela consagrada na Constituição Federal de 1988.



A igualdade e o dever fundamental de pagar impostos no Direito Constitucional brasileiro



A igualdade e o dever fundamental de pagar impostos no Direito Constitucional brasileiro Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonรงa

editora


Copyright © 2017, D’ Plácido Editora. Copyright © 2017, Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonça Editor Chefe

editora

Plácido Arraes Produtor Editorial

Tales Leon de Marco

Editora D’Plácido Av. Brasil, 1843 , Savassi Belo Horizonte – MG Tel.: 3261 2801 CEP 30140-007

Capa

Tales Leon de Marco Diagramação

Bárbara Rodrigues da Silva Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios, sem a autorização prévia da D`Plácido Editora.

Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de A Igualdade e o Dever Fundamental de Pagar Impostos no Direito Constitucional Brasileiro-- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017. Bibliografia ISBN: 978-85-8425-509-2 1. Direito 2. Direito Tributário 3.Democracia I. Título I. Direito III. Impostos CDU349

CDD 340


Como um tributo de gratidĂŁo ao Professor Washington Peluso Albino de Souza, brilhante e ardoroso Mestre.



Sumário

Apresentação 15 Introdução 17 1. A contextualização do princípio da igualdade tributária no Direito Constitucional positivo brasileiro e a teoria adequada para a interpretação dos princípios constitucionais 33 1.1. O contexto que emoldura a igualdade 34 tributária no campo constitucional 1.1.1. O Estado Brasileiro como um Estado Social e Democrático de Direito 34 1.1.2. O Estado Brasileiro como um Estado Fiscal 35 1.1.3. A dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a segurança jurídica e a solidariedade como valores superiores 38 do ordenamento jurídico brasileiro 1.1.3.1. A liberdade e a dignidade da pessoa humana 48 1.1.3.2. A igualdade 58 1.1.3.3. Igualdade e liberdade 65 71 1.1.3.4. A segurança jurídica 84 1.1.3.5. A solidariedade 1.1.4. O dever fundamental de pagar tributos, o dever fundamental de pagar impostos, os direitos fundamentais a eles coligados e a dialética que se desenvolve entre o imposto 93 e os direitos fundamentais a ele coligados


1.1.4.1. O dever fundamental de pagar tributos 93 94 1.1.4.2. O dever fundamental de pagar impostos 97 1.1.4.3. O direito de propriedade 99 1.1.4.4. As liberdades econômicas 1.1.4.5. A dialética entre o dever fundamental de pagar impostos (ou o imposto) e os direitos fundamentais a 101 ele coligados 1.2. A teoria que consideramos adequada para a interpretação e a aplicação dos princípios jurídicos previstos na Constituição 104 Federal de 1988 1.2.1. A diferença funcional entre os 104 valores e os princípios jurídicos 1.2.2. A normatividade dos princípios e a 105 atual hermenêutica constitucional 1.2.3. A teoria dos princípios de ALEXY e a interpretação da Constituição Federal 107 brasileira de 1988 109 1.2.4. A teoria dos princípios de ALEXY 1.2.4.1. O conceito de norma de direito fundamental 109 segundo ALEXY (1993:62-73) 1.2.4.2. A teoria dos princípios e o princípio 112 da proporcionalidade 1.2.4.3. A teoria dos princípios e a teoria dos valores; 116 a ponderação de princípios (ALEXY)

Nota

125

2. Igualdade, igualdade tributária e imposto no Direito Constitucional positivo brasileiro 129 2.1. As limitações dos direitos fundamentais 129 pelo dever fundamental de pagar impostos 2.2. As limitações jusfundamentais 135 ao poder de tributar 2.3. A atuação da igualdade no campo da tributação por meio do imposto no Direito Constitucional 139 Positivo brasileiro


2.3.1. A igualdade 2.3.1.1. O conceito de igualdade

139 139

2.3.1.1.1. A discussão filosófica da igualdade

140

2.3.1.1.2. O conceito jurídico da igualdade

142

2.3.1.1.3. Espécie de norma que consagra o direito fundamental de igualdade

157

2.3.1.1.4. A dupla dimensão do direito fundamental de igualdade

157

2.3.1.1.5. O princípio da igualdade no Estado Social contemporâneo

157

2.3.1.2. O fundamento da igualdade

158

2.3.1.3. Direito geral e direitos especiais de igualdade 164 2.3.1.4. As três concepções do princípio da igualdade

165

2.3.1.4.1. A igualdade perante a lei

166

2.3.1.4.2. A igualdade na lei

167

2.3.1.4.3. A igualdade pela lei

170

2.3.1.4.4. A síntese do princípio da igualdade

174

2.3.1.5. O conteúdo do princípio da igualdade material (igualdade na lei e igualdade pela lei) – a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e de criação de privilégios e a obrigatoriedade de diferenciação

174

2.3.1.6. Os parâmetros para o respeito ao princípio da igualdade pelo legislador

178

2.3.1.6.1. A eleição de um tertium comparationis pelo legislador

178

2.3.1.6.2. A proibição do arbítrio

187

2.3.1.6.3. O controle do respeito ao princípio da igualdade pela aplicação do princípio da proporcionalidade

201

2.3.1.7. O controle jurisdicional da obediência pelo legislador ao princípio da igualdade

204


2.3.1.8. O princípio da igualdade no Direito Constitucional positivo brasileiro em vigor

2.3.2. A igualdade como limite jusfundamental ao poder de tributar

207

212

2.3.2.1. O Estado brasileiro como um Estado Social e Democrático de Direito

212

2.3.2.2. Direito geral e direitos especiais de igualdade em matéria tributária

222

2.3.2.3. A capacidade contributiva

229

2.3.2.3.1 A capacidade contributiva: a questão terminológica, conceito, conteúdo, espécies, a sua inserção no sistema e espécie da norma que a consagra 229 2.3.2.3.2. Os fundamentos da capacidade contributiva 253

2.3.2.3.3. Proporcionalidade e progressividade: capacidade 277 contributiva e graduação do imposto 2.3.2.3.4 Pessoalidade e seletividade: capacidade contributiva e graduação do imposto

288

2.3.2.3.5. Não-cumulatividade: capacidade contributiva e graduação do imposto

293

2.3.2.3.6. Âmbito subjetivo da capacidade contributiva

299

2.3.2.3.7. A capacidade contributiva e as espécies tributárias

309

2.3.2.3.8. Obrigações acessórias e capacidade contributiva

320

2.3.2.3.9. Outras considerações sobre a capacidade contributiva: a renda auferida por meio da prática de atos ilícitos e a capacidade contributiva; a retroatividade da lei e a capacidade contributiva; a dupla e a múltipla tributação e a capacidade contributiva; os juros moratórios e compensatórios e a capacidade contributiva 321


2.3.2.3.10. A capacidade contributiva e os conflitos entre valores e princípios constitucionais 327

Notas

2.3.2.4. A extrafiscalidade e as derrogações do princípio da capacidade contributiva - a tributação extrafiscal e o princípio da igualdade

331

2.3.2.5 A proteção fiscal da família

347

2.3.2.6.Tipicidade, praticabilidade e igualdade em matéria tributária

358

2.3.2.7 A igualdade tributária no plano dos fatos

377

379

3. Os limites dos impostos 395 3.1. A propriedade e as liberdades econômicas 395 3.1.1. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988 395 3.1.2. A propriedade 405 3.1.3. A liberdade de iniciativa econômica 412 3.1.4. A liberdade de escolha e de exercício de trabalho, ofício ou profissão 415 3.2. Os limites constitucionais à tributação por meio dos impostos 418 3.2.1. O limite máximo dos impostos 419 3.2.2. Os limites mínimos dos impostos 427 3.2.2.1. Introdução 427 3.2.2.2. O limite mínimo dos impostos - a dignidade da pessoa humana e a tributação 428 3.2.2.3. Os limites mínimos dos impostos - o Imposto sobre a Renda e o princípio do rendimento líqüido as liberdades econômicas e a tributação 440 Conclusões 443 I. O princípio constitucional da igualdade 443 II. A igualdade como direito fundamental 447


III. Os parâmetros para o respeito pelo legislador ao princípio da igualdade IV. A igualdade como um limite jusfundamental ao poder de tributar IV.1. A igualdade tributária e os impostos IV.2. A capacidade contributiva 1) Conceito 2) Conteúdo da capacidade contributiva 3) Espécies de capacidade contributiva 4) Os fundamentos da capacidade contributiva 5) A capacidade contributiva e as espécies tributárias 6) Capacidade contributiva e graduação do imposto a) Proporcionalidade e progressividade b) Pessoalidade e seletividade c) O princípio da não-cumulatividade aplicável aos impostos sobre o consumo

448 452 453 454 454 456 457 458 460 460 461 462 463

7) O âmbito subjetivo da capacidade contributiva 464 8) Obrigações acessórias e capacidade contributiva 466 9) Outras considerações sobre a capacidade contributiva 467 a) Os atos ilícitos e a capacidade contributiva 467 b) O princípio da capacidade contributiva e a irretroatividade da lei c) A dupla e múltipla tributação em face do princípio da capacidade contributiva d) Os juros moratórios ou compensatórios e a capacidade contributiva

10) A capacidade contributiva e os conflitos entre valores e princípios constitucionais a) A extrafiscalidade e a derrogação do princípio da capacidade contributiva b) A gestão tributária e a capacidade contributiva

468 468 469

469 469 470


c) A praticabilidade e a capacidade contributiva IV.3. A proteção fiscal da família IV.4. A igualdade tributária no plano dos fatos V. Os limites dos impostos 1) O limite máximo dos impostos 2) Os limites mínimos dos impostos Referências bibliográficas

470 472 473 474 474 476 481



Apresentação

O tema deste livro constitui o núcleo da tese de Doutorado intitulada “Os direitos fundamentais e o dever fundamental de pagar impostos: a igualdade e o imposto”, que foi defendida pela autora perante a Faculdade de Direito da UFMG e que foi aprovada com nota máxima dada pelos membros da banca examinadora constituída pelos Professores Doutores Misabel Abreu Machado Derzi (orientadora), Sacha Calmon Navarro Coêlho, Roque Antônio Carrazza, Menelick de Carvalho Neto e José Alfredo de Oliveira Baracho. A autora é Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG e Doutora em Direito Tributário pela mesma Faculdade. A autora atuou como advogada militante nos campos do Direito Financeiro e Tributário, foi Procuradora Fiscal do Estado de Minas Gerais e é Juíza Federal aposentada. A autora foi Professora substituta de Direito Financeiro na Faculdade de Direito da UFMG; Professora de Direito Tributário na Faculdade de Direito da FUMEC, na Faculdade de Direito Arnaldo e na Faculdade Dom Helder Câmara; e foi Professora de Direito Processual Tributário na FGV Direito Rio.

15



Introdução

O objeto específico deste trabalho é o estudo da igualdade tributária considerada relativamente aos impostos tomados em seu conjunto e tomado o imposto na sua condição de espécie tributária com as características que lhe são específicas. O estudo que apresentaremos aqui foi feito sob o enfoque dogmático, isto é, consideramos a igualdade tributária na forma em que ela vem tratada no Direito Constitucional positivo brasileiro, vale dizer, a igualdade tributária será analisada aqui como se acha consagrada na Constituição Federal de 1988. Antes de ingressarmos no tema específico do nosso trabalho, fizemos uma contextualização da igualdade tributária no ambiente constitucional em que ela habita e se mostra apta a produzir os seus efeitos. Assim, no Capítulo 1 deste livro tratamos de temas que, se não dizem respeito diretamente à igualdade tributária (com exceção, é claro, da igualdade em geral tomada como valor, como princípio e como direito fundamental), constituem, pode-se dizer, a moldura constitucional em que ela se insere e que, harmonizados com seu conteúdo próprio, lhe dão o arcabouço dentro do qual se configura, traçando-lhe, desta forma, o seu raio de alcance dentro do marco da Constituição brasileira. No mesmo Capítulo 1 abordamos, ainda, em item separado, a teoria adequada para a interpretação dos princípios jurídicos no campo da interpretação das normas constitucionais, haja vista a dialética que se dá entre os deveres fundamentais em geral, em especial o dever fundamental de pagar impostos, e os direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana, o direito de propriedade e as chamadas liberdades econômicas e de exercício de trabalho, ofício ou profissão, todos considerados na sua dimensão objetiva de princípios constitucionais. 17


Além disso, como se verá no desenvolvimento deste trabalho, a igualdade genericamente considerada está assegurada na Constituição brasileira hoje em vigor como valor, como princípio objetivo que decide axiologicamente e como direito subjetivo do indivíduo. Por isto, antes de ingressarmos no tema da igualdade tributária propriamente dito, no início do Capítulo 2 deste livro apresentaremos um estudo da igualdade sob este tríplice enfoque. Ao consagrar a igualdade como valor, a Constituição brasileira erige em norma jurídica um valor que antigamente pertencia a um estádio anterior ao da positividade jurídica, portanto, um valor que não era jurídico no sentido estrito da palavra, e que passou a sê-lo. A igualdade, de mera aspiração ética ou política, hoje é também uma realidade constitucionalizada; por isso ela obriga não só os aplicadores da lei como também o órgão encarregado de elaborar a lei - o Poder Legislativo - e ainda os particulares1. Com a adoção dessa medida pelo Constituinte - a positivação dos valores como normas jurídicas (porque além da igualdade outros valores foram consagrados constitucionalmente como valores superiores do ordenamento jurídico brasileiro)-, a Constituição brasileira não é compatível com a teoria positivista do Direito. Veja-se o que escreveu BOBBIO (1995:136) a propósito da atitude do positivista jurídico: “... O positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao direito já que, como dizia Austin, ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser. O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal ...”. O constituinte brasileiro, ao positivar os valores superiores do ordenamento jurídico brasileiro - igualdade, liberdade, solidariedade, segurança jurídica e pluralismo político - tomou uma posição axiológica explícita em relação a certas matérias fundamentais, apontando para determinadas direções que obrigam a atuação no campo das respectivas competências de todos quantos criam, interpretam e aplicam o Direito. PECES-BARBA (1993: 243) ressalta o pioneirismo da Constituição espanhola na positivação dos valores superiores do ordenamento jurídico espanhol no seu artigo 1-1: “Assim o panorama do Direito histórico espanhol e do Direito comparado põe de relevo a inexistência absoluta de precedentes do artigo 1-1. É uma contribuição original do constitucionalismo espanhol à cultura jurídica e política contemporâneas. ...”. A Constituição brasileira, como veremos no desenvolvimento do nosso trabalho, adotou a mesma postura da Constituição espanhola, positivando os valores 1

18


O valor da igualdade não foi assegurado na Constituição brasileira de 1988 abstratamente; pelo contrário, a igualdade que o Constituinte brasileiro cuidou de assegurar teve seu conteúdo fundamental expressamente fixado no texto constitucional, desdobrando-se em igualdade formal e em igualdade material.2 À igualdade material, o Constituinte deu um tratamento específico3, o mesmo não podendo se dizer com relação à igualdade formal, prevista englobadamente no superiores do ordenamento jurídico brasileiro, fato este cujas consequências ainda não foram suficientemente exploradas por nossos doutrinadores.Vale transcrever, aqui, a título de exemplo, o seguinte trecho da lavra de Paulo de Barros CARVALHO (1999:140-141), que, ao conceituar os princípios constitucionais gerais, assim abordou a normatividade do valor: “Sendo objeto do mundo da cultura, o direito e, mais particularmente as normas jurídicas estão sempre impregnadas de valor. Esse componente axiológico, invariavelmente presente na comunicação normativa, experimenta variações de intensidade de norma para norma, de tal sorte que existem preceitos fortemente carregados de valor e que, em função do seu papel sintático no conjunto, acabam exercendo significativa influência sobre grandes porções do ordenamento, informando o vector de compreensão de múltiplos segmentos. Em Direito, utiliza-se o termo ‘princípio’ para denotar as regras de que falamos, mas também se emprega a palavra para apontar normas que fixam importantes critérios objetivos, além de ser usada, igualmente, para significar o próprio valor, independentemente da estrutura a que está agregado e, do mesmo modo, o limite objetivo sem a consideração da norma. Assim, nessa breve reflexão semântica, já divisamos quatro usos distintos: a) como norma jurídica de posição privilegiada e portadora de valor expressivo; b) como norma jurídica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como os valores insertos em regras jurídicas de posição privilegiada, mas considerados independentemente das estruturas normativas; e d) como o limite objetivo estipulado em regra de forte hierarquia, tomado, porém, sem levar em conta a estrutura da norma. Nos dois primeiros, temos ‘princípio’ como ‘norma’; enquanto nos dois últimos, ‘princípio’ como ‘valor’ ou como ‘critério objetivo’.” 2 A igualdade material expressa-se na concretização de critérios materiais que viabilizam o gozo de uma liberdade acessível a todos; a igualdade formal ou igualdade perante a lei, consubstancia-se na generalidade da lei, que implica o caráter abstrato da lei e que impõe que a lei seja aplicada indistintamente a todos os que se encontrem na situação que ela se propõe a reger, na igualdade como equiparação, que se exprime no princípio da não-discriminação, na igualdade como diferenciação, que impõe que as características relevantes dos indivíduos ou das situações regradas assim entendidas em relação aos efeitos a serem produzidos pela norma sejam levados em conta pelo legislador, e na igualdade de procedimento ou igualdade processual, que significa a existência de um procedimento igual para todos a ser estabelecido por meio de regras gerais prévias e imparciais destinadas a permitirem a justa composição dos conflitos. 3 No preâmbulo e nos incisos I e III do artigo 3.º.

19


gênero igualdade4; a igualdade formal, hodiernamente, constitui, de qualquer sorte, o conteúdo mínimo da igualdade. A expressa previsão da igualdade material no texto constitucional faz com o que o Estado brasileiro revista a configuração de um Estado Social. Como isto se dá será objeto de abordagem em item específico no Capítulo 1 deste livro; já a repercussão desta situação constitucional sobre a configuração do princípio da igualdade tributária será objeto de estudo no seu Capítulo 2. Além do valor da igualdade, a Constituição brasileira positivou, dentre outros, os valores da solidariedade, da liberdade, da segurança jurídica e do pluralismo político, os quais, todos eles, professados no seu preâmbulo e reafirmados em normas integrantes do corpo da Constituição5, exercem a função de valores superiores do ordenamento jurídico brasileiro. Entre esses valores superiores não existe hierarquia, mas apenas relações de complementaridade e de limitação recíprocas, dependendo um ou outro tipo de relação das dimensões próprias de cada um daqueles valores e do objeto específico que eles deverão informar e conformar. Os valores superiores do ordenamento jurídico brasileiro imantam-no na sua formação pela via da legislação e informam a interpretação e a aplicação das normas que compõem esse ordenamento para todos aqueles aos quais incumbe interpretar e aplicar a lei e a Constituição, não só o Judiciário e a Administração, mas também os particulares. Os princípios constitucionais, porque também veiculam valores, atuam igualmente como categoria informadora do ordenamento jurídico, apenas com a diferença de que esta função exercida pelos princípios é mais concreta do que aquela que os valores superiores do ordenamento jurídico realizam. O que ocorre com os princípios é que eles concretizam num determinado sentido os valores superiores, ainda que com um grau de concreção menor do que o grau de concreção das regras jurídicas.6 Estamos nos referindo No caput do artigo 5.º, no inciso I do mesmo artigo 5.º, sem embargo da igualdade como não discriminação ter sido expressamente prevista no inciso IV do artigo 3.º, e sem embargo dos direitos especiais de igualdade existentes ao longo do texto constitucional. O que se quer dizer é que não houve uma disciplina constitucional exaustiva da igualdade formal em matéria do conteúdo a ser a ela atribuído pelo legislador como ocorreu no caso da igualdade material. 5 Normas essas as quais serão referidas expressamente quando formos discorrer sobre os valores superiores do ordenamento jurídico brasileiro Capítulo 1 deste trabalho. 6 Consideramos aqui as normas jurídicas como gênero e os princípios e as regras como duas espécies de normas jurídicas. 4

20


especificamente aqui aos princípios jurídicos em sua dimensão de normas objetivas integrantes de uma ordem objetivo-axiológica. O princípio da igualdade concretiza num primeiro grau o valor da igualdade. E o princípio da igualdade tributária, como uma especialização do princípio geral da igualdade, concretiza num primeiro grau o valor da igualdade quando levado esse valor para o campo da tributação. Neste estudo iremos demonstrar como o princípio da igualdade tributária informa a atuação do legislador quando ele concretiza na lei de tributação o dever fundamental de pagar impostos ao institituir um determinado imposto. Por força do princípio da igualdade tributária, todos os indivíduos aptos economicamente devem contribuir coercitivamente para o custeio das atividades incumbidas ao Estado, sem privilégio de casta, ofício ou profissão ou decorrente de outro critério discriminatório qualquer, e isto em relação a todas as manifestações de capacidade contributiva que o legislador delibere tributar. Aqui se faz presente a generalidade ou universalidade, primeira característica da igualdade tributária, que significa que o ônus financeiro do custeio das atividades estatais deve ser repartido entre todos os cidadãos capazes economicamente para isto e por todas as suas manifestações de capacidade contributiva previstas na lei de tributação. Além disso, por força do princípio da igualdade tributária, o financiamento do custeio das atividades do Estado deve ser repartido igualmente entre os cidadãos com base em idêntico critério. Revela-se, aqui, a segunda característica da igualdade tributária que reside na uniformidade dos impostos. Abordaremos neste trabalho qual é o critério de repartição da carga tributária que mais serve para implementar o princípio da igualdade no campo tributário em matéria de impostos, para concluir que esse critério é o da capacidade contributiva, o qual foi objeto de expressa consagração constitucional no parágrafo 1.º do artigo 145 da Constituição Federal de 1988 e é o que melhor responde à justiça da tributação, como iremos deixar patente ao desenvolvermos esta temática. No decorrer da nossa exposição, demonstraremos que tanto a igualdade tributária como a capacidade contributiva, que dela é uma especialização, constituem autênticos direitos fundamentais veiculados por meio de normas principiais, apresentando ambos, como direitos 21


fundamentais que são, uma dimensão objetiva de princípio que decide axiologicamente e uma dimensão subjetiva de direito subjetivo público do cidadão-contribuinte. Portanto, a igualdade tributária e a capacidade contributiva atuam não somente como decisões axiológicas constitucionalizadas e normas objetivas de princípio, como também como direitos de defesa do particular frente ao poder estatal, neste último caso, com eficácia limitada à relação cidadão-Estado, ou seja, à relação do particular com o poder estatal. Sendo a capacidade contributiva o critério por excelência para a implementação do princípio da igualdade em matéria tributária, conferindo por isso um direito especial de igualdade em matéria tributária ao cidadão-contribuinte, direito esse que é um direito fundamental, as restrições a esse mesmo direito que, porventura, o legislador venha a impor deverão ultrapassar o teste da proibição do arbítrio7 e deverão respeitar o princípio da proporcionalidade8, este último que, como demonstraremos, também encontrou agasalho na Constituição brasileira de 1988. Por isto, como direito fundamental do cidadão-contribuinte, a capacidade contributiva só poderá ser afastada pelo legislador em favor de outro critério de comparação que ele pretender utilizar para implementação do princípio da igualdade, se esse outro critério superar o teste da proibição do arbítrio e se a restrição assim feita ao direito de contribuir com consideração da capacidade contributiva for adequada, necessária e proporcional ao fim que o mesmo legislador irá implementar. Esse afastamento da utilização do princípio da A proibição de arbítrio significa que ao legislador não é permitido estabelecer uma diferenciação de tratamento entre duas situações quando ela não esteja fundada em razões suficientes para isso, quando ela seja, portanto, arbitrária. Desenvolveremos este conceito no corpo deste trabalho. 8 Por meio do princípio da proporcionalidade se examina se um tratamento desigual é adequado ao fim que ele objetiva, se ele é necessário (no sentido de que não pode ser substituído por outra medida que lesione menos a igualdade), e se o bem perseguido por meio dele é proporcional à desigualdade que ele produz. O princípio da proporcionalidade com as suas três máximas parciais - a da adequação, a da necessidade e a da proporcionalidade em sentido estrito -, como veremos neste trabalho, deve ser aplicado também para se avaliar a constitucionalidade das restrições impostas pelo legislador aos outros direitos fundamentais quando autorizadas constitucionalmente, não tendo sua aplicação restrita apenas ao direito de igualdade, como ocorre com a proibição do arbítrio. 7

22


capacidade contributiva em favor da utilização de outro parâmetro para a concretização do princípio da igualdade tributária pelo legislador ocorre, como será objeto de desenvolvimento neste trabalho, no campo da extrafiscalidade, quando o tributo irá ser manejado não com o objetivo precípuo de carrear recursos para as burras estatais, mas com outra finalidade principal, que pode ser a de estimular ou desestimular determinados comportamentos do cidadão-contribuinte9. Distinguimos, em nosso trabalho, entre duas espécies de capacidade contributiva, a capacidade contributiva objetiva ou absoluta, que é considerada como pressuposto necessário da tributação, e a capacidade contributiva subjetiva ou relativa, que é avaliada considerando-se a real aptidão do sujeito passivo para suportar a carga tributária. Sendo possível implementar diversas soluções técnicas que respeitem o princípio da capacidade contributiva, há que se lhe atribuir um conteúdo específico, em face o tratamento dado na Constituição brasileira à igualdade em geral e, em particular, à igualdade tributária e à capacidade contributiva. Por isto, também iremos extrair do texto constitucional qual foi o conteúdo ali assinalado à capacidade contributiva, conteúdo esse que, como se verá, poderá ser enxergado pela adição dos seguintes elementos: A) a capacidade contributiva tem como conteúdo a riqueza manifestada na renda (produzida ou consumida) e no patrimônio (renda poupada); B) a capacidade contributiva a ser tributada deve ser a capacidade contributiva efetiva e não a capacidade contributiva meramente nominal ou fictícia; C) o gravame tributário só pode recair sobre a riqueza disponível, o que exige, sob o ponto de vista objetivo, que somente o rendimento líquido do contribuinte seja objeto de tributação; e sob o ponto de vista subjetivo, que os gastos pessoais e familiares imprescindíveis para a manutenção do contribuinte e sua família sejam resguardados da tributação; D) o limite máximo da capacidade contributiva é aquele em que começa a ter atuação concreta o princípio que veda a confiscatoriedade dos tributos; Na extrafiscalidade, como se verá, o tributo é utilizado como instrumento de política social ou econômica ou no exercício do poder de polícia.

9

23


E) o último elemento da capacidade contributiva reside na intensidade do gravame tributário, que se desdobra na pessoalidade e na sua forma atenuada, a seletividade; na progressividade; na proporcionalidade, e, no caso específico do Direito Tributário brasileiro, na não-cumulatividade dos impostos sobre o consumo.

Estes elementos, que conformam o princípio da capacidade contributiva, podem ser agrupados assim: o primeiro grupo compõe-se dos elementos que acarretam a imposição de limites à tributação (os das letras c e d supra); os segundo grupo é integrado pelos elementos que informam a justa repartição da carga tributária (os das letras a, b e e supra), donde o princípio da capacidade contributiva exercer esta dupla função. Estudaremos um a um aqueles elementos, considerando a forma como eles se acham estruturados no texto constitucional. Veremos, ainda, que a capacidade contributiva considerada na sua dimensão de direito fundamental do cidadão-contribuinte encontra fundamento no direito geral de igualdade; e que a capacidade contributiva considerada na sua função legitimadora da tributação alargada do Estado Social10, ou seja, enxergada sob o ponto de vista da concretização do dever fundamental de pagar impostos, encontra fundamento na solidariedade e na função social da propriedade, não só permitindo, mas recomendando a graduação do imposto fiscal pela técnica da progressividade. Estabelecidos quais são os elementos que configuram a capacidade contributiva, quais são as funções que ela exerce, e uma vez fincados os fundamentos da capacidade contributiva, teremos em mãos os elementos aptos para solucionarem os conflitos que vierem a surgir entre a capacidade contributiva e outros bens constitucionais, conflitos esses que, como veremos, não se limitam apenas ao campo da extrafiscalidade; pois, para que se possa levar a efeito a necessária ponderação dos bens constitucionais que se achem assim em conflito, como veremos em tempo oportuno, teremos que determinar primeiro qual é a ordem hierárquica dos princípios constitucionais que os acolhem, o Ao qual compete o exercício de uma gama maior de atividades e tarefas além das clássicas funções atribuídas ao Estado – estas sendo a defesa, a justiça, e os serviços públicos e atividades econômicas insuscetíveis de gerarem lucros e de atraírem a iniciativa privada para o seu desempenho.

10

24


que só se pode fazer após se identificarem o fundamento, a função e o conteúdo de cada princípio constitucional que se ache em conflito. Deve-se observar que esses conflitos se dão entre aspectos concretos elementos - da capacidade contributiva e aspectos concretos dos outros princípios constitucionais que com ele se acham em rota de colisão, ou seja, o conflito não se dá abstratamente entre a capacidade contributiva e outros princípios constitucionais. Uma vez explorada a capacidade contributiva em todas as suas vertentes, torna-se necessário pesquisar se ela se aplica ou não a todas as espécies tributárias consagradas na Constituição Federal de 1988 impostos, taxas, contribuições especiais – típicas e atípicas - e empréstimos compulsórios11. Concluiremos que o princípio da capacidade contributiva aplica-se apenas aos impostos, aos empréstimos compulsórios e às contribuições especiais atípicas, não se aplicando às taxas e às contribuições especiais típicas. Isto porque nas taxas, o aspecto material das respectivas hipóteses de incidência repousa no fato tributário realizado pelo ente público ou credor da obrigação tributária em favor do sujeito passivo da obrigação tributária, donde decorre o seu caráter remuneratório, ressaltando a estrutura comutativa dessas mesmas taxas; nas contribuições especiais típicas, o aspecto material das possíveis hipóteses de incidência repousa na especial vantagem ou na especial despesa decorrente ou desencadeadora, respectivamente, do fato da administração, recebida ou causada pelo sujeito passivo da obrigação tributária correspondente, donde decorre o seu caráter retributivo (da especial vantagem) ou reparador (da especial despesa). Analisamos, também, neste trabalho, a capacidade contributiva sob o enfoque do sujeito passivo da obrigação tributária, estudando se ela obriga apenas os nacionais ou também os estrangeiros e os apátridas, estudando os casos específicos de algumas espécies de pessoas coletivas, como, por exemplo, os partidos políticos e suas fundações, as entidades sindicais dos trabalhadores, as instituições de educação e de assistência social, os entes sem personalidade jurídica, incluindo nesta temática ainda o estudo da sujeição passiva indireta em função do princípio da capacidade contributiva, com isto fechando o seu círculo de abrangência. No item do Capítulo 1 dedicado à exploração do tema do dever fundamental de pagar impostos apresentamos, ainda que resumidamente, aquela que consideramos como sendo a classificação adequada das espécies tributárias no Direito Constitucional Tributário brasileiro.

11

25


A proteção fiscal da família, que exige que os contribuintes casados ou com filhos não sofram uma discriminação desfavorável em face dos contribuintes solteiros ou sem filhos, vem a ser outro direito especial de igualdade em matéria tributária e também merecerá, por isso, um estudo específico aqui. Para os tributos aos quais não se aplica a capacidade contributiva taxas e contribuições especiais típicas - aplica-se, no seu lugar, o princípio geral da igualdade; portanto, dois contribuintes que se encontrem nas mesmas situações de fato em face da legislação tributária deverão receber igual tratamento por parte dessa mesma lei, o critério de comparação a ser usado para esse fim devendo ser buscado não nas suas respectivas capacidades contributivas, mas sim na natureza das coisas12 envolvidas pela tributação. No entanto, este tema foge ao objeto do nosso trabalho, de vez que ele se voltou exclusivamente ao estudo do princípio da igualdade no que diz respeito ao dever fundamental de pagar impostos. A extrafiscalidade será também objeto de um estudo em separado da nossa parte na medida em que ela necessariamente implicará o estabelecimento, pelo legislador ordinário, de restrições ao direito de contribuir com consideração da capacidade contributiva, exigindo a implementação do princípio da igualdade por intermédio de outros parâmetros de comparação tendo em vista a natureza das coisas13 por ela envolvidas. Os impostos extrafiscais, como veremos, não são suscetíveis de uma aferição da sua justiça por meio da utilização do critério da capacidade contributiva, pois o que ocorre com eles é a desigualação de contribuintes com a mesma capacidade contributiva em vista dos objetivos visados por meio da sua imposição; quanto aos benefícios fiscais, é da natureza deles o fato de constituírem instrumentos de diferenciação e de seleção do comportamento dos contribuintes com o fito de os estimular ou incentivar o exercício de determinadas atividades. Em vista disso, concluiremos que a capacidade contributiva não é um direito definitivo, mas apenas um direito prima facie, que pode ser afastado em benefício de outros critérios de justiça tributária. Serão objeto, também, de um tratamento à parte, neste estudo, os conflitos que ocorrem entre a igualdade tributária e a praticabilidade Não estamos nos referindo aqui à natureza das coisas como fonte do direito tal como foi admitida pelo jusnaturalismo; e sim à natureza das coisas enquanto conteúdo da norma jurídica, ou seja, enquanto matéria fática da qual é extraída a norma jurídica. 13 Tomamos esta expressão aqui com o mesmo significado ressalvado na nota de rodapé antecedente a esta. 12

26


administrativa, incluindo-se aí a correlação que se pode fazer entre a capacidade contributiva e a praticabilidade; bem assim, os conflitos que ocorrem no campo da gestão tributária entre a capacidade contributiva e outros bens assegurados constitucionalmente, como o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio. Abordaremos, ainda que superficialmente, por não integrar ela o ponto central da temática desenvolvida neste trabalho, mas pelas suas atualidade e novidade e pela extrema importância da matéria a que ela diz respeito, a igualdade tributária no plano dos fatos, o que vem a ser o estudo da igualdade tributária no plano não da elaboração, mas sim no plano da aplicação das leis tributárias, quando indagaremos se uma lei pode ser considerada inconstitucional quando a sua aplicação leva a um resultado concreto que contraria o princípio da capacidade contributiva. A capacidade contributiva, embora exija que o legislador tribute efetivamente a capacidade de contribuir do cidadão, não afetando, de um lado, o mínimo existencial, e de outro lado, não ultrapassando o limite máximo da imposição respectiva com o confisco da propriedade ou com a vulneração do núcleo essencial das chamadas liberdades econômicas e de exercício de trabalho, ofício ou profissão, não oferece, no entanto, critérios concretos para a fixação desses limites, os quais são impostos pela dignidade da pessoa humana conjugada com os direitos sociais, no caso do limite mínimo dos impostos, e pelo direito de propriedade e pelas liberdades econômicase de exercício de trabalho ofício ou profisão, no que se refere ao limite máximo dos impostos. No campo do imposto sobre a renda, atua outro limite mínimo para a tributação que é exigido pela incolumidade das liberdades econômicas e de exercício de trabalho, ofício ou profissão. Para traçar toda a sua extensão a capacidade contributiva, abrangendo os temas mencionados neste parágrafo, abordamos em Capítulo à parte os limites dos impostos no direito constitucional brasileiro em vigor. A igualdade nasceu como um direito subjetivo; sob o ponto de vista do indivíduo, ela é, antes de tudo, um direito subjetivo, ou, em outras palavras, ela é um direito de defesa do indivíduo perante o Estado. Numa segunda fase, a igualdade, como os demais direitos fundamentais, passou a se apresentar também como norma objetiva de princípio que decide axiologicamente, vale dizer, ela recebeu além da sua dimensão subjetiva uma dimensão objetiva, passando a constituir um dos elementos da ordem jurídica objetiva do Estado. 27


O imposto, a seu turno, constitui antes de tudo um dever fundamental do cidadão-contribuinte, pois é através dos recursos arrecadados coativamente dos cidadãos aptos a contribuírem para os cofres estatais por via dos impostos - os quais vêm a constituir a principal fonte de receita do chamado Estado fiscal - que é financiado o custeio da máquina estatal, seja para mantê-la funcionando adequadamente, seja para permitir ao Estado que implemente as políticas sócio-econômicas que eleger. Além disso, os impostos possuem também dimensão objetiva de princípio14. Se analisarmos os direitos fundamentais e os deveres fundamentais no contexto maior em que eles se inserem, que é a subconstituição do indivíduo15, veremos que tanto os direitos fundamentais impõem limites Na sua dimensão objetiva de princípio os deveres fundamentais se prestam como suportes para o legislador restringir ou condicionar o gozo de direitos, liberdades ou garantias individuais. 15 Os deveres fundamentais juntamente com os direitos fundamentais integram a subconstituição do indivíduo. Não prejudica a ideia de integração do tema dos deveres fundamentais na matéria dos direitos fundamentais o fato de boa parte dos deveres fundamentais se encontrar fora da parte da Constituição dedicada ao indivíduo, dispersa, portanto, em outras partes relativas à organização política, administrativa e financeira do Estado e à organização econômica da sociedade. Isto porque os deveres fundamentais, ainda quando integrados nessas organizações, estão sempre a serviço da dignidade da pessoa humana enquanto esta seja membro da comunidade estatal. Há direitos fundamentais que são também deveres, havendo, em relação a eles, uma simetria parcial. Com este argumento aliado à ideia de integração na subconstituição do indivíduo dos direitos e deveres fundamentais, afasta-se uma ideia de uma assimetria absoluta entre direitos e deveres fundamentais. Pode-se afirmar que não há direitos fundamentais sem deveres fundamentais nem deveres fundamentais sem direitos fundamentais. Não se pode falar em direitos fundamentais sem deveres fundamentais porque o cumprimento dos deveres fundamentais do homem e do cidadão, sendo indispensável para a existência e o funcionamento do Estado, assegura a fruição dos direitos fundamentais só passível de acontecer dentro dessa comunidade organizada. O cumprimento dos deveres fundamentais constitui garantia jurídica para o gozo dos direitos fundamentais. E, num Estado Social e Democrático de Direito, não se concebe a existência apenas de deveres fundamentais, pois não haveria que se falar então em respeito aos direitos fundamentais que é a base da instituição dessa espécie de Estado. Os deveres fundamentais são consentidos pelos cidadãos através do Poder Constituinte, e, na sua regulamentação pela legislação infraconstitucional, através do Poder Legislativo. Afinal, o lema no tributation without representation foi uma das bandeiras das revoluções liberais, entre as quais sobressai, neste aspecto, a americana. Os direitos fundamentais e os deveres fundamentais não são categorias jurídicas totalmente separadas nem sobrepostas, mas existem numa relação de conexão funcional. A integração dos deveres fundamentais na matéria jusfundamental parte do princípio de que atrás dos deveres fundamentais está a dignidade da pessoa humana, 14

28


aos deveres fundamentais, como os deveres fundamentais impõem limites aos direitos fundamentais, pois, se de um lado, os direitos fundamentais limitam a atuação do legislador, ao qual compete concretizar os deveres fundamentais, dentre outros, por meio da legislação tributária, de outro lado, os deveres fundamentais, por fazerem recair obrigações de dar e de fazer sobre os ombros dos indivíduos e isto em benefício do Estado, que só existe em função do bem comum, limitam os direitos fundamentais, que, assim, não são direitos absolutos, definitivos, mas apenas direitos prima facie. É certo que o desenvolvimento da dogmática da igualdade tributária aplicável aos impostos exigiu a também eleição de uma linha metodológica de trabalho, que, no nosso caso, centrou-se principalmente na teoria das regras e dos princípios considerados como espécies do gênero norma jurídica. Esta teoria, como se sabe, foi construída pioneiramente pelo jurista americano Ronald DWORKIN, tendo sido desenvolvida por diversos outros autores nos países mais diversos, com um papel predominante da obra do jurista alemão Robert ALEXY, que representou um avanço em relação à teoria de DWORKIN. Utilizamos, como texto básico no caso dos direitos fundamentais, o contido na obra intitulada Teoria de los derechos fundamentales (tradução para o espanhol do original intitulado Theorie der Grundrechte,1993), de autoria de ALEXY, sem embargo de fazê-lo com um espírito crítico. No que diz respeito aos deveres fundamentais, a teoria por nós utilizada foi desenvolvida na obra intitulada O dever fundamental de pagar impostos (1998), de autoria do jurista português José Casalta NABAIS, e a utilizamos também com espírito crítico, afastando-nos, não poucas vezes, de posições adotadas por esse autor quando não condizentes com a linha de trabalho que viemos a abraçar aqui. Ao adotarmos a teoria dos princípios jurídicos de ALEXY, filiamonos à corrente pós-positivista do Direito, vale dizer, para nós, tal como ou seja, funda-se na idéia-chave de que o homem como ser autônomo, livre e responsável é o princípio e o fim do Estado, donde decorre a unidade de sentido do conjunto de normas que gira em torno dos direitos fundamentais. Essa integração em momento algum significa identidade de matérias, mas permite uma relativa assimetria de conteúdos decorrente da contraposição entre liberdade do indivíduo (direitos fundamentais) e responsabilidade desse mesmo indivíduo perante o Estado (deveres fundamentais), ou, sob outro prisma, entre limites a posições de vantagem do indivíduo (deveres fundamentais) e limites aos poderes ou interesses do Estado (direitos fundamentais).

29


pensa aquele autor, os princípios jurídicos constituem normas jurídicas positivadas no ordenamento jurídico, não havendo em nosso trabalho espaço para o pensamento jusnaturalista clássico, nem para o pensamento positivista, segundo o qual os princípios são enunciados gerais extraídos do ordenamento jurídico cuja função é apenas a de servir como base de decisão para os casos que a lei não regula expressamente, apresentando, ao contrário, lacunas.16 Os princípios - entre os quais o princípio da igualdade e a sua especialização na igualdade tributária - são para nós verdadeiras normas jurídicas, mais abstratas que as regras jurídicas, mas com uma força normativa própria, capazes de reger as situações de fato, embora conferindo direitos prima facie e não direitos definitivos como o fazem as regras jurídicas.17 Leia-se o que escreveu BOBBIO (1996:220) no seu O positivismo jurídico - lições de Filosofia do Direito, a propósito dos princípios como instrumentos aptos para sanarem as lacunas existentes na lei, isto na visão do positivismo jurídico:“A analogia juris (a saber, o recurso aos princípios gerais do ordenamento jurídico), por sua vez, é uma forma de interpretação diferente da analogia legis, pois não se baseia no raciocínio por analogia mas num procedimento duplo de abstração e de subsunção de uma species num genus. O processo de abstração consiste em extrair os princípios gerais do ordenamento jurídico: de um conjunto de regras que disciplinam uma certa matéria, o jurista abstrai indutivamente uma norma geral não formulada pelo legislador, mas da qual as normas singulares expressamente estabelecidas são apenas aplicações particulares: tal norma geral é precisamente aquilo que chamamos de um princípio do ordenamento jurídico. Uma vez formulada esta norma geral, o jurista a aplica àqueles casos que, não sendo disciplinados nas normas singulares expressas, são no entanto abrangidos no âmbito dos casos previstos pela mesma norma geral. Nessa segunda fase, o jurista executa precisamente um trabalho de subsunção de uma species (os casos não regulados pelas normas singulares) num genus (a categoria dos casos aos quais se refere a norma geral).” 17 Considerando o caráter fragmentário da Constituição, ou seja, a sua apresentação como um ordenamento-marco que “fixa estandardizadamente somente condições– marco e regras procedimentais para o processo de ação e decisão políticas e adota decisões (de princípio) fundamentais para a relação Indivíduo, Sociedade e Estado, mas não contém nenhuma regra singular suscetível de execução em um sentido judicial ou administrativo” (BÖCKENFÖRDE (1993:17), não se prestando para a sua interpretação o método hermenêutico-clássico de Savigny, apropriado apenas para a interpretação da lei, tivemos que optar por outra linha interpretativa para trabalhar com o texto constitucional brasileiro. Dentre os diversos métodos hermenêuticos que foram desenvolvidos para a interpretação constitucional, deixamos de lado a tópica, vez que ela coloca as normas constitucionais apenas como pontos de vista interpretativos cuja relevância é determinável em última instância pelo intérprete frente ao problema ou caso concreto a ser decidido, propiciando com isso a dissolução da Constituição como norma; deixamos de lado, também, a interpretação da Constituição orientada às ciências da realidade, que tem seu

16

30


Adotamos, ainda, a idéia de sistema, principalmente aquela desenvolvida pelo jurista alemão CANARIS (1989), como apoio para o desenvolvimento do nosso tema principal, considerando não só o fato de que a igualdade, como postulado da justiça, fundamenta a exigência da unidade e da ordenação, que são as duas características básicas do sistema do Direito considerado como Ciência, mas também o fato de que os direitos fundamentais e os deveres fundamentais, no geral, e a igualdade e o dever fundamental de pagar impostos, no particular, não devem ser tratados isoladamente, mas sim como princípios que integram ao mesmo tempo o sistema do Direito Constitucional positivo brasileiro e o subsistema do Direito Constitucional Tributário brasileiro. Ademais, a teoria dos princípios jurídicos por nós adotada como base para o desenvolvimento do nosso trabalho pressupõe o Direito como sistema. Por último, voltamos a afirmar que este trabalho não é um trabalho elaborado no âmbito da Filosofia do Direito, embora conceitos daquela Ciência tenham sido empregados nele quando isto se fez necessário. O enfoque deste trabalho é primacialmente dogmático e centrou-se sobre o Direito Constitucional positivo brasileiro em vigor.

ponto de partida na doutrina da interpretação de Smend e que privilegia o sentido e a realidade da Constituição sobre o texto literal e a abstração dogmática, constituindo, na verdade, um método de interpretação sociológica, os enunciados de função científico-sociais da Constituição assumindo relevância normativa em lugar de um mero valor declarativo que lhes é o adequado. Optando pelo caminho da vinculação normativa da Constituição sobre o problema, chegamos, então, ao método de interpretação constitucional hermenêutico-concretizadora, do qual um dos corifeus, na atualidade, é Friedrich Mülller, que procurou racionalizar e estruturar o processo de concretização da Constituição em vista da sua vinculação normativa. Concluímos, no entanto, que o método desenvolvido de MÜLLER não responde metodologicamente à questão da valoração que está na base da interpretação das normas constitucionais, optando, finalmente, pela teoria dos princípios desenvolvida por Robert ALEXY, que se presta para concretizar a Constituição no sentido de extrair dela a norma a ser aplicada ao caso concreto por meio do processo da ponderação de diversos princípios constitucionais que se acham em jogo para regular a espécie, privilegiando a norma sobre o problema e dando uma resposta à questão valorativa que está na base da interpretação das normas constitucionais.

31


ISBN 978-85-8425-509-2

editora

no direito constitucional brasileiro

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1977), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002). Na área do Direito, atuou nos campos da advocacia, da magistratura federal e do magistério superior. É Mestre em Filosofia pela FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (2012), na área de concentração Filosofia da Religião e doutoranda no Programa de Pós-gradução em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, na área de concentração Filosofia da Religião.

A igualdade tributária e a capacidade contributiva atuam não somente como decisões axiológicas constitucionalizadas e normas objetivas de princípio, como também como direitos de defesa do particular frente ao poder estatal, neste último caso, com eficácia limitada à relação cidadão-Estado, ou seja, à relação do particular com o poder estatal. Sendo a capacidade contributiva o critério por excelência para a implementação do princípio da igualdade em matéria tributária, conferindo por isso um direito especial de igualdade em matéria tributária ao cidadão-contribuinte, direito esse que é um direito fundamental, as restrições a esse mesmo direito que, porventura, o legislador venha a impor deverão ultrapassar o teste da proibição do arbítrio e deverão respeitar o princípio da proporcionalidade, este último que, como demonstraremos, também encontrou agasalho na Constituição brasileira de 1988.

A igualdade e o dever fundamental de Maria Luiza Vianna pagar impostos Pessoa de Mendonça

MARIA LUIZA VIANNA PESSOA DE MENDONÇA

Maria Luiza Vianna Pessoa de Mendonça A igualdade e o dever fundamental de

pagar impostos no direito constitucional brasileiro

O objeto específico deste trabalho é o estudo da igualdade tributária considerada relativamente aos impostos tomados em seu conjunto e tomado o imposto na sua condição de espécie tributária com as características que lhe são específicas. O estudo que apresentaremos aqui foi feito sob o enfoque dogmático, isto é, consideramos a igualdade tributária na forma em que ela vem tratada no Direito Constitucional positivo brasileiro, vale dizer, a igualdade tributária será analisada aqui como se acha ela consagrada na Constituição Federal de 1988.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.