Prof. Doutor Cláudio Brandão
ISBN 978-85-8425-913-7
editora
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Especialista em Prevenção da Sonegação Tributária e da Lavagem de Ativos pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha) e em Anti-Corrupção pela Academia Internacional Anti-Corrupção (IACA), em Laxenburg (Áustria). É sócio no escritório Rigueira, Amorim, Caribé, Caúla & Leitão, com atuação exclusiva nas áreas criminal, compliance e investigações.
compliance e crime corporativo
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
“O seu trabalho se destaca pela singular qualidade e rigidez teórica, tendo o autor prezado não apenas pela coerência, como também pelo esforço metodológico e científico. De forma que, mesmo ao tratar sobre um tema já longamente debatido no âmbito doutrinário, conseguiu conceder ares de originalidade e inovação, através de uma contribuição notável para o debate científico nacional em torno da dogmática da responsabilização penal das pessoas jurídicas.”
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
compliance e crime corporativo
(...) Tudo isto para, ao final, tornar possível a pretensão de desenvolver uma visão crítica da normativa interna nacional, claramente defasada em relação às modernas discussões tratadas sobre o tema – tanto na doutrina quanto na normativa e na jurisprudência internacional –, concluindo-se pela necessária vinculação entre os programas de corporate compliance e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito penal brasileiro.
compliance e crime corporativo
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
compliance e crime corporativo
Copyright © 2018, D’Plácido Editora. Copyright © 2018, Eduardo Lemos Lins de Albuquerque. Editor Chefe
Plácido Arraes Produtor Editorial
Editora D’Plácido Av. Brasil, 1843, Savassi Belo Horizonte – MG Tel.: 31 3261 2801 CEP 30140-007 W W W. E D I TO R A D P L A C I D O. C O M . B R
Tales Leon de Marco Capa, projeto gráfico
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Letícia Robini
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios, sem a autorização prévia do Grupo D’Plácido.
Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica ALBUQUERQUE, Eduardo Lemos Lins de. Compliance e crime corporativo -- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. Bibliografia. ISBN: 978-85-8425-913-7 1. Direito. 2. Direito Penal. 3. Compliance. 4. Crime corporativo. I. Título. II. Direito CDU343
CDD341.5
Agradecimentos
Com o fim do presente trabalho, faz-se necessária uma rápida reflexão sobre todos aqueles que participaram direta ou indiretamente em sua elaboração. Escrever um livro, ao contrário do que pode parecer, não é – nem nunca será, suspeito –, um esforço meramente individual. Isto porque, sem a força e o estímulo diários de diversas pessoas, dificilmente seria possível chegar ao resultado ora alcançado. Neste sentido, em primeiro lugar, preciso agradecer à minha família, em geral, e aos meus pais, Fernando e Suzana, em particular. É sabido que as ausências durante o último ano foram bem maiores que os comparecimentos. Entretanto, o apoio incondicional e a compreensão estiveram, igualmente, sempre presentes, independentemente de qualquer circunstância. Do mesmo modo, o agradecimento a Lígia Cireno Teobaldo é obrigatório, por sua enorme participação na conclusão desta obra. Sem a sua paciência e interesse verdadeiro não apenas para corrigir, como também para debater, criticar, opinar, ouvir e estimular, dificilmente teria conseguido alcançar o resultado pretendido e que agora apresento. Não existem palavras suficientes para agradecê-la. Não poderia deixar de agradecer, ademais, a todos os membros da equipe do escritório de Advocacia Criminal Rigueira, Amorim, Caribé, Caúla & Leitão. O ambiente de constante aprendizado, tanto pessoal quanto intelectual, proporcionado pela nossa equipe, bem como a nossa luta diária em prol da defesa intransigente das garantias individuais e coletivas foram, sem dúvidas, elementos essenciais para a inspiração e para o desenvolvimento do presente livro. Por fim, é igualmente necessário expressar o meu profundo agradecimento aos professores Leonardo Siqueira, Ricardo de
Brito, Cláudio Brandão e, mais especialmente, ao meu orientador Edílson Nobre. Suas palavras de confiança e estímulo, bem como seus atentos ensinamentos foram fundamentais durante esta jornada que agora se encerra.
Sumário
Prefácio
11
Apresentação
15
Introdução
17
1. A tutela jurídico-penal na sociedade de risco: as razões de um direito penal em expansão
23
1.1. A proteção dos bens jurídicos coletivos e a natureza dinâmica da relação entre o direito penal e a vida social 23 1.2. Tempos de incerteza: o desenvolvimento da sociedade de riscos
28
1.3. As características do risco na sociedade contemporânea
36
1.4. A expansão do direito penal e a tentativa de contenção dos riscos globalizados
44
2. A crise regulatória e o fenômeno da autorregulação regulada
51
2.1. O estado em crise: a falência do modelo intervencionista e a necessidade de novas perspectivas
51
2.2. Fundamentos teóricos da autorregulação regulada: uma compreensão a partir da teoria dos sistemas autopoiéticos
63
2.3. O papel do estado e da sociedade dentro do contexto da autorregulação regulada 2.4. Autorregulação regulada e direito penal empresarial: uma relação possível
3. Os programas de corporate compliance 3.1. Fundamentos e delimitação conceitual dos programas de corporate compliance
80 87
97 97
3.2. Os modelos possíveis para um programa de corporate compliance: panóptico empresarial vs ética corporativa
105
3.3. Os pilares de um programa de corporate compliance
109
3.3.1. Estabelecimento de uma cultura de cumprimento a partir do exemplo que vem de cima (tone from the top)
110
3.3.2. A necessária independência do setor de compliance com relação aos demais departamentos da empresa
111
3.3.3. Integração com as demais áreas da empresa
113
3.3.4. Análise, gestão e controle dos riscos
113
3.3.5. Elaboração de um código de conduta e de políticas de cumprimento
117
3.3.6. Criação de um canal de denúncias
118
3.3.7. Aplicação de controles de auditoria em matéria contábil
122
3.3.8. Comunicação e treinamento dos integrantes da empresa em matéria de compliance
123
3.3.9. Realização de investigações internas em caso de potencial irregularidade
125
3.3.10. Elaboração e aplicação de um código disciplinar
132
3.3.11. Due dilligence
133
3.3.12. Auditoria, revisão e monitoramento periódico do sistema de cumprimento
135
3.4. Problemas inerentes à eficácia nos programas de corporate compliance: em busca de uma função preventiva 137
4. A responsabilidade penal da pessoa jurídica no Século XXI: em busca de um modelo de responsabilização criminal autônomo 147 para os entes coletivos 4.1. Planteamentos introdutórios sobre o debate doutrinário acerca da responsabilização penal das pessoas jurídicas 4.2. Uma tentativa inicial: o incoerente modelo de heterorresponsabildade penal da pessoa jurídica 4.3. Um giro conceitual necessário: os modelos de autorresponsabilidade penal da pessoa jurídica 4.3.1. A proposta de Klaus Tiedemann: uma reprovação pautada pelo “fato de conexão” e pelo defeito organizacional 4.3.2. O modelo de Ernst Lampe: o sistema de injusto, o injusto de sistema e a culpabilidade pelo caráter da empresa 4.3.3. A teorização de Gunther Heine: o management defeituoso dos riscos e a culpabilidade pela condução da atividade empresarial 4.3.4. Gehard Dannecker e a reprovabilidade ético-social da empresa 4.3.5. Adán Nieto Martín e a culpabilidade pelo déficit de autorregulação permanente 4.3.6. O modelo construtivista de responsabilidade penal empresarial de Carlos Gómez-Jara Díez 4.4. A responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário legislativo nacional e internacional
147 166 172
173
179
187 190 195 204 222
Conclusão: A necessária vinculação entre o corporate compliance e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito penal brasileiro
243
Referências
249
Prefácio
Muito me alegra prefaciar a presente obra. Tive o prazer de acompanhar a evolução tanto do presente trabalho quanto do próprio autor Eduardo Lemos Lins de Albuquerque desde antes de sua graduação, ainda enquanto aluno da centenária Faculdade de Direito do Recife, ao defender seu trabalho de conclusão de curso, o acompanhando em seus estudos no curso de Mestrado da Universidade Federal de Pernambuco, que culminaram no livro que ora prefacio. O seu trabalho se destaca pela singular qualidade e rigidez teórica, tendo o autor prezado não apenas pela coerência, como também pelo esforço metodológico e científico. De forma que, mesmo ao tratar sobre um tema já longamente debatido no âmbito doutrinário, conseguiu conceder ares de originalidade e inovação, através de uma contribuição notável para o debate científico nacional em torno da dogmática da responsabilização penal das pessoas jurídicas. A indagação acerca da possibilidade ou não de utilização do direito penal para perseguir criminalmente as pessoas jurídicas, apresentada ao leitor desde as primeiras linhas desta obra, se apresenta como verdadeiro fio condutor da investigação cientifica desenvolvida. Em que pese a oposição encampada pela doutrina nacional quanto ao uso do direito penal para responsabilizar diretamente as pessoas jurídicas pelos atos delitivos praticados em seu interior, a evolução legislativa de diversos países europeus e latino-americanos demonstra que o postulado da societas delinquere potest, já é uma realidade. Como muito bem desenvolvido no trabalho que ora se apresenta, as legislações oriundas de países cuja base legal encontra-se radicada tanto no civil law – Espanha, Chile, Suíça e Itália – quanto na common law – Estados Unidos, Austrália, entre outros – trouxeram um novo 11
contorno para a discussão. Em substituição ao modelo conhecido como responsabilidade vicarial (vicarious liability), no qual há a reprovação da pessoa jurídica exclusivamente pela ocorrência de atos ilícitos praticados por seus integrantes em seu benefício, passou-se a reprovar, de forma mista ou exclusiva, a pessoa jurídica em razão da inexistência, ou da existência ineficiente, de programas de corporate compliance no interior das organizações. Diferentemente do modelo vicarial, estas novas normatizações internacionais, detalhadas nesse precioso estudo, possibilitam a atenuação ou até mesmo a exclusão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas que põem em prática medidas efetivas de controle e prevenção de delitos inerentes à atividade por ela desenvolvida. O estudo aqui desenvolvido pelo autor Eduardo Lemos aborda pertinente discussão sobre essa nova realidade legislativa, que vem sendo modificada para se adequar aos anseios e desenvolvimento da sociedade e da economia globalizante. Entretanto, como se sustenta esta nova realidade sob o olhar da dogmática penal? Seriam estas construções legislativas alicerçadas apenas por desígnios de política criminal dos Estados, alheias ao estudo, fundamentação e bases teóricas do Direito Penal? Não parece ser este o caso, como bem demonstrou o autor, ao longo da sua investigação. Demonstra-se nas próximas páginas o lastro teórico que sustenta as novas regras impostas pelas legislações internacionais, o qual empreende um verdadeiro giro conceitual no edifício dogmático antes construído para responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Passa-se de uma heterorresponsabilidade para uma autorresponsabilidade penal dos entes coletivos. Mediante esta mudança de perspectiva, é possível perceber que a implementação de programas de integridade (compliance) voltados para a autorregulação das pessoas jurídicas, cujo fim último seria o de impor que estas passem a atuar em conformidade com as normas legais e extralegais vigentes, irá assumir um papel de protagonismo nesta discussão. Atento a estes fatos, o autor realiza uma minuciosa análise sobre os pontos fundamentais acerca deste interessantíssimo e atual debate doutrinário, firmando, com todo o rigor técnico, a sua posição sobre o assunto. Para isto, porém, são tratados ao longo deste livro, os pontos principais do debate, a partir de uma análise pautada nas motivações de política-criminal, em sua necessidade / proporcionalidade, na sua 12
viabilidade dogmática e na dicotomia existente entre a heterorresponsabilidade e a autorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas. Ademais, são igualmente expostos em detalhes, de forma pioneira na doutrina nacional, os modelos teóricos de autorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas formulados por seis autores distintos, especificamente Klaus Tiedemann, Ernst Lampe, Günther Heine, Gehard Dannecker, Adán Nieto Martín e Carlos Gómez-Jara Díez. Ao final desta exposição teórica, foi feita, ainda, uma análise de direito comparado de algumas legislações internacionais que tratam sobre o tema – Alemanha, Itália, Austrália e Espanha – bem como da normativa brasileira acerca da responsabilização penal das pessoas jurídicas. A exposição doutrinária aqui retratada, com uma linguagem de fácil acesso aos estudantes e operadores do direito torna possível o desenvolvimento de uma visão crítica da normativa interna nacional em relação às modernas discussões do direito estrangeiro. O livro aborda, ainda, além do viés doutrinário, a análise normativa e jurisprudencial. A presente obra, portanto, analisa de forma aprofundada soluções apresentadas tanto pela doutrina quanto pela legislação estrangeira sobre o tema, investigando em que grau os fenômenos do risco, da autorregulação e do compliance podem funcionar como bases teóricas aptas a sustentar um novo modelo de responsabilização penal, voltado, desta vez, exclusivamente para as pessoas jurídicas. O livro aqui apresentado, pois, oriundo, como já afirmado, dos estudos elaborados para a construção da dissertação de mestrado defendida perante a Universidade Federal de Pernambuco, se apresenta como uma primorosa contribuição para o debate doutrinário travado à nível nacional acerca de tão importante tema, mostrando-se de enorme valia a estudantes, professores e operadores do direito penal.
Prof. Doutor Cláudio Brandão Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas. Professor Titular da UFPE e da Faculdade Damas da Instrução Cristã. Professor visitante, ao abrigo do Programa Erasmus, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor colaborador do doutoramento em Altos Estudos Contemporâneos da Universidade de Coimbra
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Apresentação
Se a globalização se tornou uma realidade invencível, a partir do desenvolvimento tecnológico vivenciado desde o final da centúria passada, permitindo uma integração entre os diversos povos, favoreceu igualmente situações adversas. Destas se destacam as práticas, lamentavelmente cada vez mais assíduas, de atos de corrupção, envolvendo dirigentes de empresas privadas, muitas delas de grande porte, e, igualmente, agentes políticos, inclusive de governos estrangeiros. Por isso, as exigências internacionais vêm implicando, para os diversos Estados, a obrigatoriedade de aprovação de legislação, com o propósito de disciplinar o combate aos atos de corrupção. Inicialmente restritas no campo do direito criminal, repercutindo numa tipificação de novas modalidades de crimes, tais providências, de cunho normativo, igualmente repercutiram – e com intensidade -, no plano da responsabilização administrativa, sendo de destacar, entre nós, a Lei 12.843/2013. A responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, de que se ocupa o art. 225, §3º, da Lei Máxima de 1988, foi mais uma amostra da insuficiência dos institutos tradicionais do direito penal. Atento a esse cenário, EDUARDO LEMOS LINS DE ALBUQUERQUE se devotou a vislumbrar a necessidade de formulação de um modelo próprio de responsabilização criminal autônoma das pessoas jurídicas, no qual é alçada relevância especial para o instituto da compliance, relacionados com a exigência de aprovação interna de estatutos de integridade. O trabalho, inicialmente objeto de dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife - UFPE, a qual, no dia 20 de fevereiro de 2017, submetida à defesa perante seleta banca examinadora integrada pelos Professores 15
Francisco Cavalcanti, Cláudio Roberto Cintra Brandão e Marcos Antônio Rios da Nóbrega, é, merecidamente, alçado à literatura jurídica mediante publicação em formato de livro. Nesse diapasão, aborda as transformações pelas quais vem passando, aqui e alhures, a sociedade, qualificado na atualidade como uma sociedade de risco, a respaldar um novo – e mais expansivo – semblante para o direito penal em tempos de cibernética. Daí, diante da fragilidade que vem afetando a competência regulatória estatal, lança uma olhar reflexivo para a autorregulação, evidenciando a sua conexão com o direito penal empresarial. Num prosseguimento, passa a dissecar, como exímio anatomista, o conteúdo dos programas de corporate compliance, não somente para desvendar a nouvelle vague em seus componentes estruturais, mas para, igualmente, enfatizar que, a exemplo do que sucede com os modeles, não são isentos para ensejar adversidades. Após o desenvolvimento de densa e lógica argumentação, aporta na tentativa traçar – numa postura, pode-se dizer, avant la lettre nestas plagas – um contributo para a formatação dos novos paradigmas para a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas. Partiu-se, pois, de algo em andamento, até a realização do objetivo de fornecer uma balsa para uma travessia segura até a ilha desconhecida. O toque de científico fez com que o texto tivesse as suas asserções alicerçada em formidável pesquisa doutrinária que realizou e que é demonstrada pela extensa bibliografia que lhe dá suporte, mediante citações e referências, fazendo-se presente menção à doutrina nacional e estrangeira, consubstanciada principalmente em livros monográficos e artigos científicos. Não olvidar – e que me parece fundamental - a redação objetiva e prazerosa, mas sem o mínimo risco de perder em erudição, o que tornará sua leitura cativante. Em suma, o livro que se publica, além de render ensejo para a elogiável capacidade de percepção Editora D’Plácido, honra – e, para nossa satisfação, perpetua - a tradição de excelência da Escola do Recife. Recife(PE), 20 de março de 2018. Edilson Pereira Nobre Júnior Professor da Faculdade de Direito do Recife – UFPE; Doutor em Direito; Professor Orientador
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Introdução
Responsabilizar ou não as pessoas jurídicas através do direito penal? Tal questionamento, apesar de bastante atual, faz referência a um debate já centenário da doutrina jurídico-penal. Em lados opostos, defensores e detratores da referida possibilidade apresentam sólidos argumentos, tanto a favor como contra este gênero de responsabilização. Entretanto, em que pese a viva discussão teórica ainda existente, o fato é que a evolução legislativa de diversos países europeus e latino-americanos parece apontar que o postulado da societas delinquere potest, cedo ou tarde, se tornará uma realidade generalizada.Torna-se cada vez mais irrelevante, portanto, discutir acerca da possibilidade ou não desta modalidade de responsabilização, sendo o “como” desta pretensão de relevância bem mais significativa. Isto posto, é de se ver que as legislações mais recentes a tratar sobre o tema, oriundas de países como Espanha, Chile, Estados Unidos, Suíça, Itália, Austrália, entre outros, trouxeram um novo elemento de fundamental importância para a discussão, com potencial de alterar, em definitivo, os pressupostos lógicos da responsabilização penal das pessoas jurídicas. Ora, ao revés destas novas legislações direcionarem a reprovação dos entes coletivos, exclusivamente, pela ocorrência de atos ilícitos praticados por seus integrantes e em benefício da empresa, modelo conhecido pela doutrina como de heterorresponsabilidade ou de responsabilidade vicarial (vicarious liability), elas passaram a reprovar, de forma mista ou exclusiva, a pessoa jurídica em razão da inexistência, ou da existência insuficiente, em seu seio, de desígnios autorregulatórios, direcionados a prevenir a prática de delitos. Diferentemente das legislações que abordavam o problema apenas a partir do enfoque vicarial, o qual atribui uma responsabilização 17
reflexiva e automática da empresa em caso de delito cometido por seu representante para o benefício da corporação, estas novas normativas possibilitam a atenuação ou até mesmo a exclusão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas que põem em prática medidas efetivas de controle e prevenção de delitos inerentes à atividade por ela desenvolvida. De fato, tais alterações legislativas se coadunam com uma necessidade político-criminal bastante evidente dos Estados contemporâneos, causada tanto pela expansão do direito penal quanto pela complexidade inerente ao ambiente empresarial trazidos pelo processo de globalização. Diante de tal cenário, os Estados nacionais têm se mostrado categoricamente incapazes de realizar de maneira eficiente a regulação e prevenção de riscos oriundos da atividade corporativa, se fazendo necessária a transferência desta função, originariamente estatal, para as empresas, mantendo-se a regulação apenas em segundo plano, em um fenômeno conhecido como autorregulação regulada. Juridicamente, todavia, como se sustenta esta nova realidade? Seriam estas construções legislativas teoricamente alienadas, alicerçadas apenas por desígnios político-criminais do Estado, sem contar com a devida fundamentação dogmática? Este não parece ser o caso, visto que, a partir de uma análise a priori, estas novas regras estariam, sim, amparadas por uma fundamentação jurídica hábil, a qual, inclusive, possibilitará a realização de um verdadeiro giro conceitual no edifício dogmático que alicerça a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. As primeiras chaves para este giro parecem se encontrar em uma mudança de perspectiva. Enquanto os antigos modelos tinham como cerne a reprovação penal das corporações como reflexo da atuação dos representantes da empresa e de seus atos em nome desta, ou seja, em uma heterorresponsabilidade, os novos modelos doutrinários invertem esta lógica, passando a ocupar o cerne deste novo juízo reprobatório não mais os atos dos integrantes das empresas, mas as medidas de autoorganização empreendidas pela própria corporação para evitar que em seu âmbito sejam praticados delitos. O enfoque, pois, desloca-se da heterorresponsabilidade para a autorresponsabilidade penal empresarial. A partir destes lineamentos, autores como Klaus Tiedemann, Ernst Lampe, Günther Heine, Gehard Dannecker,Adán Nieto Martín, Carlos Gómez-Jara Díez, entre outros, construíram distintos mode18
los de autorresponsabilidade empresarial baseados em uma premissa fundamental: os esforços realizados pelas pessoas jurídicas no sentido de desenvolver instrumentos hábeis de controle, prevenção e reação perante os delitos devem, necessariamente, passar a interferir na responsabilização levada a cabo pelo direito penal. Mediante este câmbio de perspectivas, é possível vislumbrar, de maneira ainda inicial, que a implementação dos chamados programas de cumprimento normativo (corporate compliance) – cujo escopo encontra-se, essencialmente, em realizar / estimular a autorregulação das empresas, com o fim último de que estas passem a atuar em conformidade com as normas legais impostas – assume, e continuará a assumir, um papel de protagonismo na presente discussão. Isto porque, se com os modelos de heterorresponsabilidade o compliance tinha pouco ou nada a oferecer, visto que a implementação de controles internos e de medidas para prevenir delitos não seriam relevantes para atenuar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, tal instrumento se torna decisivo quando o modelo escolhido é o da autorresponsabilidade penal empresarial, ou até mesmo um modelo misto. Feitas estas exposições aclaratórias, é de se evidenciar que o objeto da presente pesquisa consiste em uma detalhada investigação acerca da influência que os conceitos de risco, autorregulação e, em especial, o compliance exercem, atualmente, na discussão envolvendo a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. A hipótese, ora vislumbrada, é que os programas de corporate compliance devem figurar como um elemento central na responsabilização penal das pessoas jurídicas, fornecendo à dogmática penal uma gama de elementos basilares para a consolidação de um modelo autônomo de reprovação das pessoas jurídicas em sede do direito penal. Entretanto, apesar de ser possível entrever, a priori, esta conexão entre o compliance e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, subsistem duas inegáveis indagações: (i) de que maneira os programas de corporate compliance podem auxiliar na elaboração de um modelo autônomo de responsabilização das pessoas jurídicas em sede do direito penal? (ii) como a referida discussão pode impactar a normativa penal brasileira sobre o tema da responsabilidade penal das pessoas jurídicas? São, portanto, os referidos questionamentos que conduzem a presente investigação. O presente livro foi estruturado didaticamente em quatro capítulos. No primeiro capítulo, foi feita uma exposição acerca da tutela 19
jurídico-penal na sociedade atual, denominada por Ulrich Beck como sociedade de riscos, com o objetivo de esclarecer o evidente movimento expansivo do direito penal hodierno. Para isto, buscou-se (i) explicitar a natureza dinâmica da relação entre o direito penal e a vida social e de que maneira tal fenômeno repercute na proteção dos bens jurídicos coletivos, (ii) descrever o desenvolvimento da chamada sociedade de riscos, a partir do paradigma teórico de Ulrich Beck, em que o referido autor explicita como a radicalização da modernidade levou a sociedade atual a conviver com riscos de elevada magnitude, outrora impensáveis, (iii) delimitar quais são as características do risco na sociedade contemporânea, e, por fim, (iv) atestar como os riscos de um mundo globalizado provocam uma reação expansiva do direito penal, forçando-o a proteger, ou ao menos tentar, muitas vezes de forma ineficiente, diversos bens jurídicos que outrora lhe eram irrelevantes. No segundo capítulo, foi estabelecida a conexão entre a crise regulatória do Estado moderno, em especial do modelo Keynesiano de intervenção, e a expansão do movimento da autorregulação regulada. Em primeiro lugar, explicou-se como, diante do aumento da complexidade social e da elevada demanda regulatória em face ao incremento dos riscos contemporâneos, o Estado mostra-se incapaz de, por si só, capitanear a regulação das atividades produtivas, impondo-se a necessidade do surgimento de novas perspectivas, dentre as quais se destaca o fenômeno da autorregulação regulada.Ademais, se examinou como a autorregulação regulada possui um arcabouço teórico robusto, especialmente relacionado com a teoria dos sistemas autopoiéticos, cujo maior expoente é Niklas Luhmann. Explicitados os fundamentos do fenômeno da autorregulação regulada, buscou-se delimitar qual o papel exercido tanto pelo Estado quanto pela sociedade nesta nova dinâmica. Por fim, tratou-se da possível relação complementar entre o direito penal empresarial e a autorregulação regulada. Já o terceiro capítulo teve como premissa a análise detalhada dos programas de corporate compliance. Neste momento, o estudo dividiu-se em quatro apartados que buscaram analisar: (i) os pressupostos destes programas, desde seu conceito até os fenômenos correlatos ao seu desenvolvimento; (ii) os modelos possíveis sobre os quais estes programas podem se desenvolver; (iii) os elementos essenciais que cada um destes programas deve contar, atentando-se, obviamente, para as particularidades de cada um dos setores da indústria; e, ao final, (iv) 20
quais os problemas inerentes ao referido instituto, que precisam ser solucionados para que eles realmente cumpram com a função preventiva que pretendem exercer. Por fim, no quarto e último capítulo são tratados os pontos fundamentais do debate atual acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas. De início, foram delimitados os pontos principais do debate, a partir de uma análise pautada nas motivações de política-criminal, em sua necessidade / proporcionalidade, e na sua viabilidade dogmática. Posteriormente, foram detalhados os modelos tanto de heterorresponsabilidade penal quanto de autorresponsabilidade penal das pessoas jurídicas, apontando-se os seus benefícios e os seus questionamentos. No âmbito da autorresponsabilidade penal das empresas, delineou-se, em maiores detalhes, os modelos teóricos formulados por seis autores distintos, especificamente Klaus Tiedemann, Ernst Lampe, Günther Heine, Gehard Dannecker, Adán Nieto Martín e Carlos Gómez-Jara Díez. Ao final desta exposição teórica, foi feita uma análise de direito comparado de algumas legislações internacionais que tratam sobre o tema – Alemanha, Itália, Austrália e Espanha – bem como da normativa brasileira acerca da responsabilização penal das pessoas jurídicas. Tudo isto para, ao final, tornar possível a pretensão de desenvolver uma visão crítica da normativa interna nacional, claramente defasada em relação às modernas discussões tratadas sobre o tema – tanto na doutrina quanto na normativa e na jurisprudência internacional –, concluindo-se pela necessária vinculação entre os programas de corporate compliance e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito penal brasileiro.
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Prof. Doutor Cláudio Brandão
ISBN 978-85-8425-913-7
editora
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Especialista em Prevenção da Sonegação Tributária e da Lavagem de Ativos pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha) e em Anti-Corrupção pela Academia Internacional Anti-Corrupção (IACA), em Laxenburg (Áustria). É sócio no escritório Rigueira, Amorim, Caribé, Caúla & Leitão, com atuação exclusiva nas áreas criminal, compliance e investigações.
compliance e crime corporativo
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
“O seu trabalho se destaca pela singular qualidade e rigidez teórica, tendo o autor prezado não apenas pela coerência, como também pelo esforço metodológico e científico. De forma que, mesmo ao tratar sobre um tema já longamente debatido no âmbito doutrinário, conseguiu conceder ares de originalidade e inovação, através de uma contribuição notável para o debate científico nacional em torno da dogmática da responsabilização penal das pessoas jurídicas.”
Eduardo Lemos Lins de Albuquerque
compliance e crime corporativo
(...) Tudo isto para, ao final, tornar possível a pretensão de desenvolver uma visão crítica da normativa interna nacional, claramente defasada em relação às modernas discussões tratadas sobre o tema – tanto na doutrina quanto na normativa e na jurisprudência internacional –, concluindo-se pela necessária vinculação entre os programas de corporate compliance e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito penal brasileiro.