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ACUSAÇÃO INDÉBITA

— Agora, Norma, tenho certeza que as coisas vão começar a melhorar em minha vida – comentava Elisa animada. Consegui um emprego de doméstica e vou poder ajudar a Antônio nas despesas da casa, afinal de contas, são cinco filhos para criar, e todos menores de idade.

— Eu não sei como vocês sobrevivem, porque em relação à pobreza, não é viver, é sobreviver.

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— Antônio é um homem trabalhador – falou Eli‑ sa – é um dos melhores vendedores de peixe da feira livre, e quando a coisa aperta, eu e os meninos vamos para rua catar latas para vender. Nunca aprovei as pessoas que usam as crianças para pedir esmola, acho que todo trabalho é digno, e assim, meus filhos apren dem que mesmo sendo dura e difícil, a vida pode ser vivida com honestidade.

— Eu concordo – disse Norma – mas tem muita gente que diz que as crianças não devem fazer esses tipos de trabalhos.

— Eu também acho, porém, seria bem melhor se essas pessoas que andam falando aos quatro ventos, que as crianças não devem ir trabalhar, fizessem al‑ guma coisa. É muito fácil falar, apontar a ferida, mas ajudar a tratar e cicatrizar, ninguém se mobiliza. Às vezes, aqui e ali, surge um iluminado que ajuda, en‑ tretanto, a grande maioria só faz discurso, e não estou falando somente de político. Uma vez um rapaz me contou um caso da Madre Teresa de Calcutá. Disse que, um dia, um homem a procurou e disse que ela estava estimulando a preguiça ao alimentar os mendi gos, e disse um ditado popular para ela: “melhor que dar o peixe é ensinar a pescar”. Madre Teresa sorriu e disse a ele que os mendigos estavam tão fracos que não teriam forças, nem para segurar a vara de pescar, e que ela ia dar a comida, para eles ficarem fortes, e que ele, o falador moralista, deveria ensinar a pescar, conseguindo emprego para eles. Por isso que eu digo: julgar é muito fácil. Sentir na pele é outra coisa.

— Você hoje está uma filósofa, mas voltando ao assunto, onde seus futuros patrões moram?

— Num bairro nobre da cidade, é um casal de mé‑ dicos muito ricos, eles têm dois filhos, um de dez e o outro de oito anos. Eu começo a trabalhar na pró xima segunda‑feira, dia três. Só Deus sabe o quanto estou feliz! * * *

— Mariana, estou muito feliz. – Dizia dr. Adriano abraçando forte a esposa. – Daqui a dez dias, estare‑ mos completando quinze anos de casamento, e você sabe, como eu sou ansioso, adiantei o presente. Tome... Abra!

Dr.ª Mariana abriu a caixa. Tinha outra dentro. Abriu novamente e outra caixa. Fez isso umas seis ve zes e falou emocionada:

— Meu querido, este anel é maravilhoso! Deve ter custado uma fortuna!

— Você merece todos os anéis do mundo. Agora, guarde para usá‑lo no jantar em comemoração ao nos‑ so amor.

Os dias se passaram sem maiores acontecimentos. Elisa iniciou o trabalho na residência do casal Mariana e Adriano e estava muito feliz. Muito simpática, logo conquistou os filhos do casal.

Na noite do jantar em comemoração aos quinze anos do casal, Mariana estava deslumbrante. Adriano ficou tão encantado que lembrou a primeira vez que se encontraram, e disse sorrindo:

— Para você ofuscar todas as pessoas do restau‑ rante só falta colocar o anel.

— Desculpe querido, na ânsia de arrumar‑me para você, esqueci de colocá‑lo. Eu vou buscar.

Em minutos, retornou pálida e nervosa.

— Meu querido, o anel sumiu!

— Sumiu como?

— Eu não sei, desapareceu. Eu tenho certeza que quando você me deu, eu coloquei dentro da minha caixa de joias, eu não saí do quarto com ele – falou irritada – alguém nos roubou.

— Mas em nossa casa só temos nós e as crianças. A última festa que demos, aqui, faz mais de um mês, não temos recebido visitas.

— Elisa, só pode ter sido ela. Elisa – gritou a mu lher – venha cá urgente.

Elisa chegou ao quarto do casal ofegante por ter subido correndo a escada que dava acesso ao cômodo.

— Sim senhora – falou sorridente como sempre.

— Onde está o anel?

— Que anel?

— Que anel? O anel que o Adriano me presenteou. Você pegou.

— Senhora – disse Elisa já em prantos – eu não peguei o anel. Dona Mariana, eu sou pobre, a minha vida é difícil, eu passo muitas dificuldades, mas eu nunca roubei ninguém.

— Meu anel é muito valioso, você ia ter muito di‑ nheiro com ele, – disse com ódio no olhar – confesse e não chamarei a polícia.

— Eu já disse doutora, pelo amor de Deus, eu não roubei o seu anel.

A mulher, completamente possuída pelo ódio pegou o telefone e em uma hora a polícia chegou e foram todos para a delegacia. Como acontece muito, frequentemente, o pobre diante do rico, em questões como essas é sempre o lado mais fraco. Por mais que

Elisa falasse, não era ouvida. A verdade era que o anel havia desaparecido, e ela era a única suspeita. Diante do poder, às vezes, o suspeito é quem tem que provar que é inocente, e não o acusador provar que ele é cul pado, coisas da “justiça” do mundo.

A verdade é que, após presa e julgada, Elisa foi condenada e levada para o presídio feminino, onde iria sofrer por muito tempo.

O tempo passou inexorável. A vida transcorria tranquila para o casal Mariana e Adriano. O objetivo agora era reformar a casa, ou melhor, a mansão. E as sim o fizeram. Numa manhã, Mariana é surpreendida pelo pedreiro:

— Senhora – disse ele – quebrando o piso do seu banheiro, olha o que eu encontrei!

Era o anel. Elisa estava com a razão, ela não ha‑ via roubado o anel. Mariana pôs as mãos na cabeça, pois apesar de se descontrolar, facilmente, e às vezes se precipitar, ela também tinha um lado bom. Meu Deus – disse – cometi uma enorme injustiça. Em ato contínuo, chamou o marido, contou a história e mos trou o anel. Resolveram ir juntos à penitenciária na tentativa de corrigir o grande erro. Chegando à peni‑ tenciária, notificaram às autoridades e pediram para falar com Elisa.

Ali estavam eles sentados, e no outro lado da mesa estava Elisa, olhar triste que denotava uma grande melancolia, porém com uma expressão serena, que só os inocentes possuem. Mariana começou o diálogo:

— Elisa, eu não sei o que dizer, por favor, me perdoe.

— E a mim também – interferiu Adriano – sabe‑ mos que não temos perdão e não há justificativa, mas só havia você como suspeita.

— Mas vocês não pensaram na possibilidade de terem perdido o anel, não me deram chance de defe‑ sa, eu disse que era inocente. A pobreza não estimula a marginalidade em quem é honesto. Existem muitos ricos ladrões.

— Elisa, nós vamos lhe restituir todos os prejuízos para você recuperar a sua vida.

— Que vida? – disse Elisa triste – Depois que fui presa, meu marido me abandonou, se casou com ou‑ tra mulher. Ele veio me visitar apenas três vezes em dois anos e meio. As mulheres são mais fiéis aos presi diários que os homens. Hoje, outra mulher cuida dos meus filhos que, dificilmente, terei de volta por que este estigma, mesmo sendo eu inocente, ficará para sempre em minha vida. Vocês dois acabaram com a minha vida.

Um silêncio profundo se fez. O casal extremamen te abatido se despediu. Duas semanas depois, Elisa re cupera a liberdade, entretanto as úlceras em sua alma, mesmo que tratadas, se transformariam em cicatrizes para o resto da vida.

Visita Aos Esquecidos

O jardim era de uma beleza indescritível. As rosas atapetavam o chão de forma tão graciosa que parecia ser um pedaço do céu. O aroma do jasmim embevecia e a visão dos jambeiros em flor de primavera encan tava. Os bancos arrumados com esmero denotavam o cuidado dos dirigentes daquela instituição, entretanto a sensação de vazio contrastava com a beleza do local, que afinal de contas era um asilo, casa de repouso, ou para outros, abrigo para idosos.

Sentada em um dos bancos estava dona Carlita. Em seus oitenta e cinco anos demonstrava uma vivacida de no olhar que impressionava. Os cabelos brancos e as rugas na face morena eram as provas dos inver‑ nos da vida que proporcionam marcas indeléveis na alma. Portadora de um sorriso encantador, apesar da ausência de dentes, era de um otimismo a toda prova. Sentei‑me ao seu lado e iniciou‑se o diálogo:

— Como é seu nome meu menino?

— Antônio – respondi sorrindo. – E a senhora o que está fazendo nesta manhã de primavera, sentadinha aqui nesse banco?

— Estou tentando encontrar um namorado – dis‑ se brincando. – Estou viúva há nove anos, já está no tempo de casar, novamente, afinal de contas sou uma coroa bonita.

Sorrimos, e percebendo que a nova amiga enfren tava a dificuldade em morar num asilo com muito oti mismo, me arvorei a aprofundar no diálogo:

— Há quanto tempo a senhora mora aqui? A se‑ nhora se incomodaria em contar‑me a sua história, evidentemente, se não for uma inconveniência de mi‑ nha parte.

— Meu filho – falou agora com diferente ento nação na voz – a última visita que tivemos faz dez meses: foi no Natal. Um grupo de jovens esteve aqui com presentes e muita música. Depois do Natal, você é o primeiro, e eu não vou perder a oportuni dade de conversar. Vou contar a você um pouco da minha história: filha única de uma família muito po‑ bre, comecei a trabalhar muito cedo, meu pai teve derrame e minha mãe não podia trabalhar, pois tinha que cuidar dele. Eu vendia doces no cais do porto, e assim cresci.

Depois da morte do meu pai, eu conheci um rapaz e me apaixonei – nesse momento, os seus olhos brilha‑ ram mais intensamente. – Casamos e mamãe foi mo‑ rar conosco. Ele também era pobre, entretanto o nos so amor era tão grande que seria capaz de enfrentar todos os problemas do mundo. Tivemos treze filhos, dos quais, quatro nós adotamos.

— Como? – Não contive a surpresa, interrompen‑ do a narrativa.

— Eu sei – disse ela, como a ler meus pensamentos – você deve estar pensando: como pode com tamanha pobreza ter nove filhos e ainda adotar mais quatro? Meu filho, você ainda é muito jovem e, com o tempo, irá perceber que os caminhos de Deus, às vezes, são insondáveis aos homens. Os meus quatro adotivos, meus meninos, estão morando na Espanha há uns dez anos.

— E os outros, onde estão?

— Deixe de ser apressado, menino – disse sorrin do, apertando a minha bochecha. – Você me pediu para contar minha história, então não tenha pressa, afinal de contas são oitenta e cinco anos. Eu fui muito feliz em meu casamento. Ernesto foi o melhor marido que a vida me poderia dar. Depois de uma vida de muitos sacrifícios e privações, conseguimos formar a maioria dos filhos. Faz nove anos que Ernesto foi para junto de Deus preparar o lugar para mim.

— Acho que ele vai ter muito tempo para preparar, – falei tentando animá‑la – pois a senhora ainda vai passar muito tempo aqui.

— Vá pensando... A verdade foi que depois da morte dele, eu me senti um peso para meus filhos. Uma semana na casa de um, uma semana na casa de outro. Fizeram até uma escala anual, isso, evidente‑ mente, sem pedir a minha opinião. Têm pessoas que pensam que a velhice tira de nós a vontade, o prazer e a capacidade de decisão. Alguns acham até que o idoso fica assexuado, não tem mais desejos, prazer, sonhos e nem ideais, isso tudo é prova de ignorância e falta de compreensão do significado da vida. Pois bem, depois de ficar como bola de ping‑pong, decidi que iria para um asilo. Disse isso, mas no fundo que ria ouvir: não mamãe, a senhora no asilo nunca, não depois de tanto sacrifício para nos criar.

— E aí?

— E aí, foi uma grande surpresa. Eles aceitaram sem nenhum pedido para eu ficar. Em uma semana, eu estava chegando aqui e já se passaram oito anos. As duas primeiras semanas foram terríveis. A minha individualidade e privacidade estavam sendo inva‑ didas. A minha casa foi reduzida a uma cama e um pequeno armário de uma só porta. A solidão e o silên cio da noite cortado por alguns gemidos me angus‑ tiavam. E o pior foi o esquecimento dos filhos que me visitavam aos domingos, nos primeiros dois meses, e esqueceram‑me em pouco tempo.

Naquele momento, o sorriso contagiante de dona Carlita foi substituído por grossas, quentes e longas lágrimas que lhe escorriam pela face.

— Aqui meu filho, – disse ela cortando o silêncio – é o “local dos esquecidos”. Às vezes, a solidão é es‑ pantada por pessoas como você que apesar de não ter parentes aqui, vêm trazer carinho e amor para esses velhos que o mundo esqueceu. Mas, depois da segun da semana, disse recuperando o ânimo, eu percebi que a vida continua, e eu sendo uma nordestina, for‑ te por natureza, não iria deixar a peteca cair. Mudei a atitude mental e vou vivendo na alegria que Deus me deu.

Ela se levantou e me abraçou bem apertado. Pediu que me abaixasse e me osculou na testa, se despediu e saiu andando, lentamente, olhou para mim sorrindo, e mais uma vez, falou como a ler meus pensamentos:

— Eu ando devagar porque eu quero. O tempo me ensinou a não ter pressa para viver.

E vendo dona Carlita caminhando em direção ao prédio, foi a minha vez de chorar, e chorei muito. Vol tei para casa com reflexões para o resto da vida. * * *

Duas semanas se passaram, retornei ao asilo e con‑ fesso estava com muitas saudades de dona Carlita, porém uma surpresa me aguardava. Ao chegar ao seu quarto, encontrei‑o vazio, totalmente vazio. Desespe‑ rado fui à direção buscar notícias, e como é comum no ser humano, pensando o pior. No entanto, com gran de felicidade, soube que os quatro filhos adotivos que moravam na Espanha, e não sabiam que ela estava há oito anos no asilo, chegaram ao Brasil de surpresa e a levaram com eles para a Espanha fazia dois dias. Muito feliz, estava saindo, quando a diretora do asilo disse‑me ter deixado ela uma carta para mim. Sentei ‑me, abri o envelope perfumado e li:

— Meu filho lembra o que eu te disse quando nos conhecemos? Que você ainda é muito jovem, e com o tempo, irá perceber que os caminhos de Deus, às ve‑ zes, são insondáveis aos homens. O que o sangue que corre nas veias não conseguiu fazer por mim, o amor que pulsa no coração fez. Vai meu filho, ama, crê e sê fiel a Deus, continua visitando os idosos nos asi‑ los. Estimula as pessoas para fazerem o mesmo, faze o possível, seja sempre grato à vida, e o impossível Deus fará.

Um beijo de Carlita, agora, a espanhola feliz.

O Cupim

Numa vila muito distante, se difundiu a história da existência de um tesouro de grande valor locali‑ zado no pico de uma montanha de difícil e perigoso acesso. Imediatamente, formou‑se um grupo de trinta pessoas, com o objetivo de conquistar a montanha to mando posse do valioso tesouro.

Reuniram‑se, traçaram a estratégia, escolheram o lí‑ der, dividiram as tarefas, prepararam os mantimentos, e marcaram o dia da partida. Todos sabiam dos riscos, entretanto a confiança e a amizade existentes entre eles traziam uma tranquilidade e a certeza da vitória.

No dia aprazado, toda a vila estava em festa, pois a vitória do grupo iria refletir na vida de todos. Partiram.

No início da viagem, tudo era alegria e entusias mo. Alguns dias se passaram, e uma tempestade caiu sobre a montanha, trazendo grandes dificuldades aos componentes do grupo que resistiram bravamente armando com muita rapidez e destreza as barracas, evitando assim uma tragédia.

No dia seguinte, surgiu na frente deles um imenso abismo, e mais uma vez, munidos dos equipamentos e de um senso de companheirismo nunca vistos supe‑ raram o grande obstáculo.

Dois dias depois, surgiu um obstáculo praticamente intransponível. Um rio extremamente caudaloso, impe‑ dindo a sequência da jornada. Difícil a decisão a tomar, mas o grupo surpreendeu demonstrando uma grande união e confiança. Utilizaram cordas, amarraram‑se uns aos outros, e com uma força hercúlea, atravessa‑ ram o rio. Outros obstáculos surgiram no caminho, e o grupo, superando todos, chegou a uma área mais ame‑ na. Agora tudo parecia mais fácil e a vitória era certa.

A calmaria aparente cedeu oportunidade a outros desafios. Alguns pensamentos começaram a assediar as mentes: “eu acho que eu poderia ser o líder”. “Eu trabalho mais enquanto Antônio se encosta”. “Maria acha que é a melhor do grupo”. “Paulo, o líder, quer os aplausos só para ele”. “Será que o tesouro vai ser dividido em partes iguais?”. “Raimundo pensa que a verdade está só com ele”. “Não sei para que dividir o tesouro com o pessoal da vila”. “A verdade é que não dá para confiar em ninguém”. “Nesse grupo não se pode brilhar muito por causa da inveja”.

Em pouco tempo, esses pensamentos tomaram proporções gigantescas nos corações e as discussões tiveram início. Atritos, agressões verbais, desconfian‑ ças, formação de pequenos grupos com antagonismo recíproco. Cada grupo tomou um rumo.

Na vila, a expectativa era imensa. Foram escolhi das as pessoas mais capacitadas, por isso a esperança na vitória era muito grande. Porém, o sonho se desfez. À medida que os dias se passavam, os subgrupos iam chegando, fatigados, feridos, tristes e derrotados. E o tesouro continuava intocável no pico da montanha. * * *

Quando um grupo se forma para fins elevados, as agressões, as dificuldades, os obstáculos e todas as formas de impedimentos externos são superados. Se o grupo está verdadeiramente unido, respaldado pelo amor, pela confiança e pela fraternidade, a mon tanha se transforma em um grão de areia. Entretanto, se existe uma contaminação interna, como a descrita neste conto, um grão de areia se transforma em uma montanha de dificuldades. É o que ocorre na madeira infestada de cupins: Por fora parece intacta, porém no momento em que é submetida ao teste, esfarela‑se e para mais nada serve.

A Ab Bada Celeste Como Teto

Era uma noite fria apesar da primavera, e do céu estar atapetado de estrelas. Era uma noite fria, mesmo a lua a derramar a sua luz diáfana umedecendo com seu orvalho as flores belas dos jardins. Era uma noi te de domingo, de ruas quase desertas, praticamente sem automóveis e raros ônibus.

Sentado numa pedra, encostado em um muro, es‑ tava um homem. Pele negra, barba longa e branca, raros cabelos brancos na cabeça, roupa velha, bem ve‑ lha, quase rota, porém exalava um aroma de jasmim. A sua figura chamava a atenção. Ele estava só, vez por outra o vento balança a sua longa barba.

E o que fazia eu na rua àquelas horas da noite? Não sei, verdadeiramente, não sei. Só sei que algo dentro de mim, de forma imperiosa e irrefreável impelia‑me para rua. Um desejo muito forte de caminhar, respi‑ rar fundo o ar da noite. Ao ver o homem, senti‑me, irresistivelmente, atraído para ele. Sim, era um mora dor de rua, para alguns um mendigo, entretanto me atraía como nenhum dos viventes havia conseguido. Aproximei‑me, e antes da saudação para apresentar‑ ‑me, disse‑me:

— Sente‑se, meu filho.

— Qual o seu nome? – perguntei tentando desfa‑ zer a forte impressão.

— Qual a diferença?

— Diferença do quê? – tornei a perguntar um pou co confuso.

— Qual a diferença dos nomes? Você tem um nome porque alguém lhe deu, seja seu pai, sua mãe, sua tia. Entretanto não é o nome que diz quem você é. Você poderia ter outros nomes e continuaria sendo a mesma pessoa. De longe, você me olhou, e avaliou quem você pensa que sou pela minha roupa, e por es tar sentado aqui na rua. Você pensou: eis ali um pobre morador de rua. Sinto em desapontá‑lo, porque não sou morador de rua, eu moro na rua.

— Não entendi. Como o senhor diz que não é mo‑ rador de rua, mas mora na rua?

— A questão, meu jovem, está no verbo. Eu não sou morador de rua, eu estou morador de rua. Como você não é morador de uma residência, você está morador de uma residência. Repentinamente tudo pode mudar.

— O senhor poderia me esclarecer melhor, dando mais exemplos?

— Tudo o que nos cerca, tudo o que vemos e pode mos pegar é ilusão.

— Mas como pode ser ilusão se eu estou pegando e vendo?

— Observe, meu jovem! O homem passa boa parte da vida desejando ter as coisas; outra parte, lutando para ter; depois, se desespera com o medo de perder, e depois chora por ter perdido. Por quê?

— Ilusão.

— Exatamente – disse sorrindo – você está come çando a entender. Existe uma verdadeira posse que não é ilusão. A posse de si mesmo. A matéria que nos cerca é forma temporária de uma energia primitiva em estado transitório.

— Já sei! O senhor deve ser um grande estudioso, faliu, ficou pobre e veio morar na rua. O senhor falou para mim de Física Quântica.... O senhor falou de uma energia primitiva. Que energia é essa?

— Essa energia está em semente, dentro de todos os seres, em diferentes graus, inclusive no homem. É ela que criada, guiada e mantida por uma Força ainda maior, sustenta todos os universos que estão dentro do Universo maior. Essa energia é o AMOR, que um dia será o estado natural e comum de todos os seres.

— Agora eu peguei o senhor! Olhe o senhor nomi‑ nando: AMOR.

— Filho, se a palavra AMOR, por mais que fa lada, ainda não é compreendida, como entender a sua essência?

— Um a zero para o senhor – falei desapontado.

— Não fique assim, um dia chegaremos lá. Quan‑ do o ser humano mergulhar dentro de si, e descobrir quem verdadeiramente é, entenderá e viverá o amor.

— Voltando a fita: o senhor falou em universos, mas o universo não é um só?

— Quem disse? Depende do nome, das palavras. Vou dar um exemplo menor. Observe o nosso sistema solar, para nós da Terra, ele é imenso. O sol, nosso astro rei, é o fulcro, e em volta dele giram os planetas. Pois bem, o átomo é tão minúsculo que é impossível ser visto a olho nu, porém é também um sistema, onde o núcleo faz o papel do sol e os elétrons circulam na eletrosfera, como os planetas. O macro está no micro, que por sua vez está no macro, por isso muitos dizem que tudo está em tudo.

— Então, o mal também está em tudo. – Disse cheio de convicção e orgulho.

— O mal não existe – respondeu derrubando meu orgulho. – Ele não tem vida real, assim como a escu ridão que não existe onde há luz. O mal é apenas a expressão da ignorância sobre a existência do bem e do amor. Um dia, o amor conquistará o homem, e quando este se deixar conquistar, encontrará, assim, a felicidade.

— Volta a fita novamente: o senhor falou que a energia do amor é mantida por uma força ainda maior. Que força é essa?

— Deus. – Respondeu de forma direta, sem rodeios.

— Deus, como?

— Deus é o como, o quando, o porquê, o tudo, o início, o fim, o meio. E para descomplicar a nossa mente primitiva, Jesus disse: o Pai. E João comentou: Deus é Amor. Sinta‑se filho, pois Ele sempre foi e será o nosso Pai. Quando o homem, verdadeiramente, en tender, sentir e viver essa verdade perceberá que é o grande herdeiro do Universo, e como eu que tenho as estrelas do céu como teto, será, verdadeiramente, feliz. * * *

A alvorada rompeu a noite com o seu vestido de luz. O sol aqueceu o meu rosto, e acordei vendo‑me só, sentado na pedra, encostado num muro.

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