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REDIMINDO‑SE DO PASSADO PARA LIBERTAR‑SE

As crises de hemoptise se repetiam implacáveis. O sr. Rogério havia perdido vinte quilos em duas se manas. A tuberculose aproveitou‑se da fragilidade fí sica somada ao excesso de trabalho, para instalar‑se. Às vezes, estava tranquilo, e de repente, uma angús‑ tia sem causa aparente, anunciava que uma nova cri se estava próxima, o que cinco a dez minutos depois se confirmava: uma sensação de algo borbulhando no tórax, a tosse seca, para que instantes depois, o sangue de um vermelho rutilante brotasse em golfa‑ das angustiantes.

Naquela tarde, no seu leito, buscando refazer‑se de outra crise, o sr. Rogério estava pensativo. Lem brava da infância pobre, porém feliz, das dores nos músculos e nas articulações que começou a sentir aos quatorze anos de idade, e que o acompanhavam du rante toda vida. Apesar de fazer exames periódicos, todos com resultados satisfatórios, desde a adolescên cia, sentia fisicamente, e às vezes, como uma intuição, que algo havia em seu pulmão direito, que mais de vinte anos depois, iria manifestar‑se como doença. Que mistério! Pensava.

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Estava cansado, emagrecido, porém tranquilo e com muita esperança. De repente a angústia. Era ela, uma nova crise. O borbulhar no tórax, a tosse e o san gue, muito sangue. Ele ora, e o inusitado acontece: ele vê entrar no quarto uma mulher. Era uma mulher jovem, cabelos em cachinhos e amendoados, vestido longo de uma beleza discreta, com babados de renda fina nos punhos e na borda inferior, e fechando o ves‑ tido na altura do pescoço, um lindo broxe branco com o desenho preto difícil de caracterizar. Ela aproximou‑ ‑se e falou docemente:

— Rogério, meu querido, seja forte e resigna‑te, pois vai passar e é para o teu bem. Acredita na Pro vidência Divina, você está se redimindo. Tenha fé e bom ânimo.

Rogério ainda não tinha se recuperado da surpre sa, quando por detrás da visitante, surge um homem negro, com quase dois metros de altura, muito forte, com uma calça branca, muito parecida com as de uso dos capoeiristas, nu da cintura para cima, apresentan do correntes partidas nos punhos. Ele olhou humilde para Rogério e disse:

— Eu vim para cuidar do sinhô! Desapareceram. Rogério, fortemente, impressio‑ nado pensava: creio nas vidas sucessivas. A miseri córdia Divina deve estar dando‑me a oportunidade de agora, mais consciente, redimir o meu passado. Mas, o que será que fiz? Seja lá o que for, creio que o amor de Deus deve ter de alguma forma, atenuado o meu resgate.

No mesmo dia, durante o sono, Rogério teve um sonho onde se via em um engenho no século XVIII, fa zendo as maiores atrocidades com os escravos: tronco, chibatadas, salmoura nas úlceras, castigos dolorosos. Acordou pela madrugada, completamente, encharca do de suor, bebeu um copo d’água que estava em seu criado mudo, sentou‑se e avaliou a situação:

— Meu Deus, se, realmente, ocorreu o que eu so nhei, a Tua misericórdia se fez. Creio que as dores que sinto, desde a infância, são resultado das dores que causei aos escravos, e o sangue que estou vertendo, foi o que eu derramei deles. Comparando o que fiz com o que sofro, percebo, que, talvez, pelo esforço que faço para ser uma criatura melhor, tenha atenuado e muito o meu processo de resgate. Obrigado, Senhor!!

Os dias iam passando e o enfermo em tratamento. Em determinada manhã, após outra golfada de san‑ gue, deitado no leito, com a roupa e o lençol molhados de suor, ele olhou o céu azul pela janela e orou:

— Senhor, sei que está tudo certo, tenho convicção de que os sofrimentos que não podem ser evitados, por mais que tentemos, são para nosso bem e cresci mento, entretanto estou me sentindo muito cansado, sinto que meu corpo não vai resistir por muito tempo, mas de qualquer forma me entrego aos Teus cuidados.

Ao terminar a oração, Rogério percebeu uma luz. Eis que então, surge, em sua frente, um homem com uma roupa branca reluzente e lhe diz:

— Meu filho, não se preocupe, acabou. Hoje aca‑ bou tudo. Vamos cuidar de você, não mais haverá as crises de hemoptise. A de hoje foi a última.

O paciente fatigado dormiu profundamente. Ao acordar, percebeu que o homem ainda estava lá, fazen‑ do como que umas anotações em algo que parecia um prontuário. Olhou para Rogério, sorriu e desapareceu.

Depois daquele dia, Rogério melhorou, sensi‑ velmente, e as crises de hemoptise desapareceram. Surpreendentemente, um mês depois, ele retomava as suas atividades, refeito, feliz, e com a convicção de que estava se redimindo do passado em busca da libertação.

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