9 minute read

FUNDO NA QUEBRADA

Next Article
NA MÃO DELAS

NA MÃO DELAS

De volta ao Brasil após sete anos de exílio americano, André Szajman se sensibiliza com a favela e prepara fundo de investimento de impacto para fazer a máquina girar nas comunidades

POR PAULO VIEIRA FOTOS JOÃO LEOCI

Advertisement

De todas as desgraças brasileiras, a desigualdade talvez seja a pior delas. Ou, recuando mais um pouco, a pior desgraça brasileira é aquilo que forja a desigualdade: o preconceito social, o angu pouco meu pirão primeiro das classes mais privilegiadas – a elite, os servidores públicos com benefícios em cascata, o estamento militar e seu regime previdenciário especialíssimo, os que usam o nome de Deus para oprimir, aquele que se locupleta com as emendas secretas etc.

Assim, soa panglossiano acreditar que a favela deixará de ser favela, ao menos enquanto o “asfalto” não fizer renúncias. Uma dessas renúncias é simples e, ao mesmo tempo, de efeito poderoso: deve-se pensar na favela. Não da maneira usual, que a associa à violência, ao crime, aos massacres policiais impunes, ao tóxico. Por mais que as comunidades tenham se organizado de maneira exemplar, como se viu nos meses mais trágicos da pandemia, é necessário que esse gesto aparentemente banal seja feito por diversos atores para que conexões reais sejam criadas.

André Szajman, 50 anos, filho de Abram Szajman, fundador da VR, a empresa de vale-refeição que no fim dos anos 2000 vendeu seu principal ativo para a transnacional francesa Sodexo, pensava exatamente da maneira descrita acima: para dizer pouco, favela para ele era um lugar a ser evitado. Mas de volta ao Brasil em 2019, depois de sete anos entre Nova York e Miami, ele precisou de poucos dias para se encantar com a quebrada. Um encontro no Insper para debater a força econômica das favelas brasileiras, em que teve acesso a dados compilados pelo Data Favela, e, a partir daí, uma amizade com Celso Athayde, o criador da Cufa e da Favela Holding, definiu seu caminho nestes últimos anos. “Vi que aquilo que eu decidi fazer o Celso já estava fazendo”, disse André a PODER no escritório da empresa de sua família em São Paulo. “Deu uma liga fenomenal. Chamei ele aqui e ficamos nesta sala por cinco horas.” A frase “a favela é um local de potência, não de carência”, sempre vocalizada por Athayde, virou mantra para André, que, depois de testar a quente um projeto de impacto social no Recife, agora estrutura um fundo de venture capital de R$ 50 milhões para financiar empreendedores das comunidades. O produto, que ainda não tem nome e que o investidor pretende colocar na praça em até três meses, é sua primeira grande ação para integrar aquele lado da ponte, para usar a antiga imagem dos Racionais MC’s.

Embora acredite que doações e filantropia sejam necessárias – mesmo que isso sirva para alívio de consciência dos mais ricos e para a manutenção do status quo –, André não pensa em investir nada a fundo perdido. Citando os R$ 120 bi de poder de consumo dos moradores das comunidades, o PIB das favelas brasileiras calculado pelo Data Favela, ele busca escala e re-

sultados. Não já, mas num horizonte de dez anos. “Quero atrair um capital mais tranquilo, que não visa retorno de curto prazo”, diz. O perfil do investidor ideal, para ele, é “mais direcionado e menos varejão”, ou, como explica, de “pessoas que têm essa visão de transformação social, de famílias e até empresas que já olham esse território, que não exigem um trabalho de convencimento”.

André não é, evidentemente, o primeiro empresário brasileiro a “olhar esse território”. Os negócios de impacto vêm crescendo no país e no mundo, e hoje já compõem um mercado global de US$ 715 bi, na estimativa do Global Impact Investing Network, termômetro do setor. A Vox, de Daniel Izzo e Antonio Ermírio de Moraes Neto, benchmark brasileira, surgiu há 12 anos e recentemente aumentou sua paleta de investimentos. Além do fundo de venture capital, oferece crédito privado, uma modalidade em que não há cogestão dos projetos a ser financiados. A Vox está na lista de 50 gestoras de impacto da Impact Assets, que organiza o ranking de distinção dessa indústria, e tem mais de 25 investidores – sendo que os três principais não detêm mais de 25% do patrimônio da gestora.

André não pretende seguir modelos já estabelecidos, como o da Vox e de outra pioneira que ele cita, a Artemisia, mas um “caminho próprio”. Diz que atua há 15 anos com venture capital fora do país e que, portanto, tem expertise. Sua principal preocupação é na “originação”, ou seja, na triagem de empreendedores nas favelas que receberão os investimentos. De “6 a 10” projetos deverão ser selecionados e curados. Ele diz que pretende dedicar “80% de seu tempo ao fundo” – os outros 20% ficam para os negócios dos Szajman – e que irá trabalhar com as aceleradoras que atuam diretamente com os players da quebrada. Um mapeamento vem sendo feito desde o começo da pandemia, e ele acredita firmemente que encontrar o empreendedor, aquele que leva jeito para a coisa, é o xis da questão: dificuldades posteriores de execução, por exemplo, podem ser resolvidas com contratações e apoios.

MVP

O fundo de venture capital que André Szajman quer lançar em 2022 é precedido por uma experiência de investimento num projeto de impacto que já havia, e que ele encampou, servindo assim de protótipo e fazendo com que o investidor não chegue completamente cru à quebrada. É o que ele chama de “jogar o jogo”. Seu “MVP”, do acrônimo em inglês “minimum viable product”, são na verdade duas startups, a Nossa! Cozinhas, uma dark kitchen que envolve um grupo de cozinheiras de uma região popular do Recife, e o Silva, pool de entregadores que levam comida para locais da capital pernambucana que tanto o iFood como o Rappi preferem manter distância. As startups visam lucro e escala, justamente a premissa de André, mas o investimento, feito ao lado do amigo e conselheiro Eduardo Mufarej – o mesmo que criou o curso de formação de políticos RenovaBR –, ainda não tem a amplitude do que ele busca para 2022. De qualquer forma, ele diz que o negócio se multiplicou, saiu de uma cozinha para cinco, mais que decuplicou o número de cozinheiras e que fecha 2021 atendendo a 100 restaurantes. Em 2022, o modelo deve ser replicado em Fortaleza, na primeira incursão para além do Capibaribe.

Em entrevista por telefone a PODER, Hamilton Silva, que fundou as duas startups, diz que a “confiabilidade” é uma das grandes características do parceiro investidor. “Nestes cinco anos de jornada, falei com muitos interessados em investir, mas sempre parecia faltar sinceridade e confiança. O Edu Mufarej e agora o André têm isso, transmitem confiança. As cobranças acontecem de maneira transparente”, conta, completando que “se André não tivesse entrado, o negócio poderia quebrar”. “Era sustentável, mas muito pequeno.” Hamilton explica que mantém uma conversa de trabalho com o parceiro “religiosamente” às segundas-feiras, quando então André toma ciência dos números e dá sua visão de planejamento e gestão. “Ele tem faro”, revela Hamilton.

Desde que conheceu no Insper os números da quebrada, André decidiu, com o colaborador Danilo Lima, rastrear o ecossistema de investimento de impacto – em corte 100% favela. E mesmo que não queira emular a estratégia de ninguém, ele jamais deixou de ouvir quem já está de alguma forma nesse sendero. Um de seus interlocutores é André Bar-

CONVERGÊNCIA NEGRA

Num texto de setembro de 2020, André Barrence, head do Google for Startups na América Latina, relata que a maior parte dos empreendedores negros inicia seu negócio no Brasil com “poupança própria ou de familiares e amigos” e que 30% tiveram “crédito negado sem explicação”. Ele lançava o Black Founders Fund, ação do Google então já em curso nos Estados Unidos e que aqui distribui R$ 5 milhões a cerca de 30 startups fundadas por pessoas negras, sem contrapartidas financeiras nem participação societária. As razões de o Google implantar o fundo no Brasil são óbvias – pretos e pardos compõem a maior parte da população nacional. O Brasil foi o segundo mercado a receber a iniciativa, numa modelagem diferente da americana, com “acompanhamento mais próximo” das empresas beneficiadas . Barrence, que “troca figurinhas com André Szajman”, explicou a PODER que sua tese de investimento não é a do “CEP” – o local de origem dos empreendedores –, premissa que orienta o futuro fundo de Szajman, mas que há clara convergência entre os projetos, citando, por exemplo, a startup apoiada pelo Google TrazFavela, delivery para comunidades de Salvador. O líder do Google diz que, desde que lançou seu fundo, vê emergir iniciativas análogas, como o fundo Semente Preta, do Nubank. “Praticamente toda semana converso com alguém interessado em ser aliado dessa causa. É um movimento bem-vindo, mas ainda insuficiente. Quero acreditar que consigamos criar um caminho para atender empreendedores em seus diferentes momentos”, conta. Barrence é otimista: “Vai crescer mais. Há muitas pessoas como o André [Szajman] que têm colocado muita energia nisso e farão um trabalho espetacular”.

“Quero atrair um capital que não visa retorno de curto prazo. O perfil do investidor é o de quem já tem essa visão de transformação social”

rence, head do Google for Startups na América Latina, braço da big tech que há cinco anos investe nessas empresas. Barrence, que como Mufarej é cofundador do RenovaBR, implantou no Brasil o Black Founders Fund, projeto do Google que surgiu nos Estados Unidos e agora também investe no mercado europeu. O fundo acelera, sem contrapartidas ou participação societária, empresas com sócios negros. Em entrevista por videconferência, Barrence diz que há pontos de contato no Black Founders com o projeto de André, embora seu foco não seja a transformação das comunidades. O fundo, de R$ 5 mi, será distribuído para cerca de 30 empresas – 29 já foram definidas. Mesmo que de maneira incipiente, elas precisam já estar rodando, ou seja, ter clientes e já ter realizado serviços. Outras rodadas poderão vir.

Se o fundo de R$ 50 mi ainda está para se tornar realidade, André Szajman não ficou exatamente parado de 2019 para cá. Nesse meio tempo ele deu sobrevida à plataforma Tem Meu Voto, um app também originalmente financiado por Mufarej que funciona como uma espécie de “Tinder” eleitoral, oferecendo candidatos ao Legislativo com grau de afinidade com o eleitor/usuário. Ele também serve para seguir mandatos. André vê o app como uma “superferramenta de auxílio” e elogia quem escolhe a vida pública pensando “no bem do Brasil”. O problema com o app é torná-lo autossuficiente. “Os empresários não querem saber de política. Falei com uma dezenas deles.” Seus investimentos no Tem Meu Voto têm sido a fundo perdido, e o aplicativo deve continuar auxiliando eleitores em 2022, mas André busca formas de monetização que não passem pela filantropia – o modelo a ser evitado no fundo da quebrada. n

This article is from: