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FUNDO NA QUEBRADA
De volta ao Brasil após sete anos de exílio americano, André Szajman se sensibiliza com a favela e prepara fundo de investimento de impacto para fazer a máquina girar nas comunidades
POR PAULO VIEIRA FOTOS JOÃO LEOCI
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De todas as desgraças brasileiras, a desigualdade talvez seja a pior delas. Ou, recuando mais um pouco, a pior desgraça brasileira é aquilo que forja a desigualdade: o preconceito social, o angu pouco meu pirão primeiro das classes mais privilegiadas – a elite, os servidores públicos com benefícios em cascata, o estamento militar e seu regime previdenciário especialíssimo, os que usam o nome de Deus para oprimir, aquele que se locupleta com as emendas secretas etc.
Assim, soa panglossiano acreditar que a favela deixará de ser favela, ao menos enquanto o “asfalto” não fizer renúncias. Uma dessas renúncias é simples e, ao mesmo tempo, de efeito poderoso: deve-se pensar na favela. Não da maneira usual, que a associa à violência, ao crime, aos massacres policiais impunes, ao tóxico. Por mais que as comunidades tenham se organizado de maneira exemplar, como se viu nos meses mais trágicos da pandemia, é necessário que esse gesto aparentemente banal seja feito por diversos atores para que conexões reais sejam criadas.
André Szajman, 50 anos, filho de Abram Szajman, fundador da VR, a empresa de vale-refeição que no fim dos anos 2000 vendeu seu principal ativo para a transnacional francesa Sodexo, pensava exatamente da maneira descrita acima: para dizer pouco, favela para ele era um lugar a ser evitado. Mas de volta ao Brasil em 2019, depois de sete anos entre Nova York e Miami, ele precisou de poucos dias para se encantar com a quebrada. Um encontro no Insper para debater a força econômica das favelas brasileiras, em que teve acesso a dados compilados pelo Data Favela, e, a partir daí, uma amizade com Celso Athayde, o criador da Cufa e da Favela Holding, definiu seu caminho nestes últimos anos. “Vi que aquilo que eu decidi fazer o Celso já estava fazendo”, disse André a PODER no escritório da empresa de sua família em São Paulo. “Deu uma liga fenomenal. Chamei ele aqui e ficamos nesta sala por cinco horas.” A frase “a favela é um local de potência, não de carência”, sempre vocalizada por Athayde, virou mantra para André, que, depois de testar a quente um projeto de impacto social no Recife, agora estrutura um fundo de venture capital de R$ 50 milhões para financiar empreendedores das comunidades. O produto, que ainda não tem nome e que o investidor pretende colocar na praça em até três meses, é sua primeira grande ação para integrar aquele lado da ponte, para usar a antiga imagem dos Racionais MC’s.
Embora acredite que doações e filantropia sejam necessárias – mesmo que isso sirva para alívio de consciência dos mais ricos e para a manutenção do status quo –, André não pensa em investir nada a fundo perdido. Citando os R$ 120 bi de poder de consumo dos moradores das comunidades, o PIB das favelas brasileiras calculado pelo Data Favela, ele busca escala e re-
sultados. Não já, mas num horizonte de dez anos. “Quero atrair um capital mais tranquilo, que não visa retorno de curto prazo”, diz. O perfil do investidor ideal, para ele, é “mais direcionado e menos varejão”, ou, como explica, de “pessoas que têm essa visão de transformação social, de famílias e até empresas que já olham esse território, que não exigem um trabalho de convencimento”.
André não é, evidentemente, o primeiro empresário brasileiro a “olhar esse território”. Os negócios de impacto vêm crescendo no país e no mundo, e hoje já compõem um mercado global de US$ 715 bi, na estimativa do Global Impact Investing Network, termômetro do setor. A Vox, de Daniel Izzo e Antonio Ermírio de Moraes Neto, benchmark brasileira, surgiu há 12 anos e recentemente aumentou sua paleta de investimentos. Além do fundo de venture capital, oferece crédito privado, uma modalidade em que não há cogestão dos projetos a ser financiados. A Vox está na lista de 50 gestoras de impacto da Impact Assets, que organiza o ranking de distinção dessa indústria, e tem mais de 25 investidores – sendo que os três principais não detêm mais de 25% do patrimônio da gestora.
André não pretende seguir modelos já estabelecidos, como o da Vox e de outra pioneira que ele cita, a Artemisia, mas um “caminho próprio”. Diz que atua há 15 anos com venture capital fora do país e que, portanto, tem expertise. Sua principal preocupação é na “originação”, ou seja, na triagem de empreendedores nas favelas que receberão os investimentos. De “6 a 10” projetos deverão ser selecionados e curados. Ele diz que pretende dedicar “80% de seu tempo ao fundo” – os outros 20% ficam para os negócios dos Szajman – e que irá trabalhar com as aceleradoras que atuam diretamente com os players da quebrada. Um mapeamento vem sendo feito desde o começo da pandemia, e ele acredita firmemente que encontrar o empreendedor, aquele que leva jeito para a coisa, é o xis da questão: dificuldades posteriores de execução, por exemplo, podem ser resolvidas com contratações e apoios.
MVP
O fundo de venture capital que André Szajman quer lançar em 2022 é precedido por uma experiência de investimento num projeto de impacto que já havia, e que ele encampou, servindo assim de protótipo e fazendo com que o investidor não chegue completamente cru à quebrada. É o que ele chama de “jogar o jogo”. Seu “MVP”, do acrônimo em inglês “minimum viable product”, são na verdade duas startups, a Nossa! Cozinhas, uma dark kitchen que envolve um grupo de cozinheiras de uma região popular do Recife, e o Silva, pool de entregadores que levam comida para locais da capital pernambucana que tanto o iFood como o Rappi preferem manter distância. As startups visam lucro e escala, justamente a premissa de André, mas o investimento, feito ao lado do amigo e conselheiro Eduardo Mufarej – o mesmo que criou o curso de formação de políticos RenovaBR –, ainda não tem a amplitude do que ele busca para 2022. De qualquer forma, ele diz que o negócio se multiplicou, saiu de uma cozinha para cinco, mais que decuplicou o número de cozinheiras e que fecha 2021 atendendo a 100 restaurantes. Em 2022, o modelo deve ser replicado em Fortaleza, na primeira incursão para além do Capibaribe.
Em entrevista por telefone a PODER, Hamilton Silva, que fundou as duas startups, diz que a “confiabilidade” é uma das grandes características do parceiro investidor. “Nestes cinco anos de jornada, falei com muitos interessados em investir, mas sempre parecia faltar sinceridade e confiança. O Edu Mufarej e agora o André têm isso, transmitem confiança. As cobranças acontecem de maneira transparente”, conta, completando que “se André não tivesse entrado, o negócio poderia quebrar”. “Era sustentável, mas muito pequeno.” Hamilton explica que mantém uma conversa de trabalho com o parceiro “religiosamente” às segundas-feiras, quando então André toma ciência dos números e dá sua visão de planejamento e gestão. “Ele tem faro”, revela Hamilton.
Desde que conheceu no Insper os números da quebrada, André decidiu, com o colaborador Danilo Lima, rastrear o ecossistema de investimento de impacto – em corte 100% favela. E mesmo que não queira emular a estratégia de ninguém, ele jamais deixou de ouvir quem já está de alguma forma nesse sendero. Um de seus interlocutores é André Bar-
CONVERGÊNCIA NEGRA
Num texto de setembro de 2020, André Barrence, head do Google for Startups na América Latina, relata que a maior parte dos empreendedores negros inicia seu negócio no Brasil com “poupança própria ou de familiares e amigos” e que 30% tiveram “crédito negado sem explicação”. Ele lançava o Black Founders Fund, ação do Google então já em curso nos Estados Unidos e que aqui distribui R$ 5 milhões a cerca de 30 startups fundadas por pessoas negras, sem contrapartidas financeiras nem participação societária. As razões de o Google implantar o fundo no Brasil são óbvias – pretos e pardos compõem a maior parte da população nacional. O Brasil foi o segundo mercado a receber a iniciativa, numa modelagem diferente da americana, com “acompanhamento mais próximo” das empresas beneficiadas . Barrence, que “troca figurinhas com André Szajman”, explicou a PODER que sua tese de investimento não é a do “CEP” – o local de origem dos empreendedores –, premissa que orienta o futuro fundo de Szajman, mas que há clara convergência entre os projetos, citando, por exemplo, a startup apoiada pelo Google TrazFavela, delivery para comunidades de Salvador. O líder do Google diz que, desde que lançou seu fundo, vê emergir iniciativas análogas, como o fundo Semente Preta, do Nubank. “Praticamente toda semana converso com alguém interessado em ser aliado dessa causa. É um movimento bem-vindo, mas ainda insuficiente. Quero acreditar que consigamos criar um caminho para atender empreendedores em seus diferentes momentos”, conta. Barrence é otimista: “Vai crescer mais. Há muitas pessoas como o André [Szajman] que têm colocado muita energia nisso e farão um trabalho espetacular”.
rence, head do Google for Startups na América Latina, braço da big tech que há cinco anos investe nessas empresas. Barrence, que como Mufarej é cofundador do RenovaBR, implantou no Brasil o Black Founders Fund, projeto do Google que surgiu nos Estados Unidos e agora também investe no mercado europeu. O fundo acelera, sem contrapartidas ou participação societária, empresas com sócios negros. Em entrevista por videconferência, Barrence diz que há pontos de contato no Black Founders com o projeto de André, embora seu foco não seja a transformação das comunidades. O fundo, de R$ 5 mi, será distribuído para cerca de 30 empresas – 29 já foram definidas. Mesmo que de maneira incipiente, elas precisam já estar rodando, ou seja, ter clientes e já ter realizado serviços. Outras rodadas poderão vir.
Se o fundo de R$ 50 mi ainda está para se tornar realidade, André Szajman não ficou exatamente parado de 2019 para cá. Nesse meio tempo ele deu sobrevida à plataforma Tem Meu Voto, um app também originalmente financiado por Mufarej que funciona como uma espécie de “Tinder” eleitoral, oferecendo candidatos ao Legislativo com grau de afinidade com o eleitor/usuário. Ele também serve para seguir mandatos. André vê o app como uma “superferramenta de auxílio” e elogia quem escolhe a vida pública pensando “no bem do Brasil”. O problema com o app é torná-lo autossuficiente. “Os empresários não querem saber de política. Falei com uma dezenas deles.” Seus investimentos no Tem Meu Voto têm sido a fundo perdido, e o aplicativo deve continuar auxiliando eleitores em 2022, mas André busca formas de monetização que não passem pela filantropia – o modelo a ser evitado no fundo da quebrada. n