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O equilíbrio de Djamila Ribeiro
A MENTE RESISTE
Contrariando as previsões de que veríamos uma onda de casos de transtornos psíquicos, estudos indicam que não houve aumento por causa do confinamento. Mas claro que as consequências diretas e indiretas da pandemia causam sofrimento mental, como explicam os especialistas. É preciso estar atento e forte
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POR ALANA DELLA NINA ILUSTRAÇÃO NANDO SANTOS
Amente humana é um elástico. É resiliente, suporta mais tensão do que imaginamos”, compara José Gallucci-Neto, psiquiatra da Universidade de São Paulo. A ponderação do especialista é feita à luz de pesquisas recentes sobre a saúde mental durante a pandemia. Contrariando as previsões de que veríamos uma onda de casos de transtornos psíquicos, os estudos revelaram que não houve um aumento significativo de ocorrências – o levantamento publicado no periódico Psychological Medicine, da Universidade de Cambridge, por exemplo, analisou 25 estudos, considerando o estado de saúde de mais de 70 mil pessoas antes e depois dos períodos de lockdown. Conclui-se que apesar do aumento na intensidade de sentimentos depressivos e ansiosos, não houve crescimento de diagnósticos de transtornos psiquiátricos e nem no risco de suicídio.
Essa discussão torna-se ainda mais importante no momento que estamos vivendo, com o severo avanço da pandemia de Covid-19 no Brasil, e após as críticas do presidente Jair Bolsonaro às medidas restritivas de isolamento social impostas por governos estaduais. Em uma live em março, Bolsonaro leu uma suposta carta de um suicida, atribuindo o ocorrido ao lockdown e afirmando que, por causa do confinamento, estamos testemunhando diversos casos de suicídio. Apesar das mais de três mil mortes diárias no país, o presidente mantém seu discurso de que os efeitos colaterais da quarentena são mais prejudiciais do que o próprio vírus – dados que, vale repetir, já foram refutados por pesquisas robustas.
Para Rodrigo Bressan, psiquiatra e professor livre-docente da Unifesp e do King’s College London, a associação direta entre confinamento e suicídio pode ser rasa e perigosa. “Atribuir problemas de saúde mental ou suicídio ao lockdown é uma inverdade. Os dados atuais não estão conectados ao confinamento, esses números não se alteraram significativamente em comparação ao período anterior à pandemia. Temos que levar em conta que, especialmente no Brasil, não houve ainda um longo período de quarentena radical. Então, associar as duas coisas é uma apropriação de uma informação de uma forma superficial, grave e errada. Nosso problema nesta crise não é o lockdown, é a falta de controle sobre a pandemia.”
Se 2020 não viu um aumento de casos de transtornos mentais, Gallucci ressalta que essa história pode ser diferente em 2021, já que estamos enfrentando uma segunda onda da pandemia ainda mais agressiva do que a primeira e uma falta de perspectivas positivas para o futuro. “Acho que em 2021 pode ser que surja aquilo que a gente esperava em 2020 e não viu. Não sei até onde essa nossa resiliência pode aguentar sem nenhuma perspectiva”, diz. Para Bressan, o estresse, que, de certa forma, estimulava nossa resistência emocional, agora pode nos sobrecarregar. “Quando aumenta
José Gallucci-Neto, psiquiatra
o estresse, aumenta também a performance, nossa capacidade de superação, de enfrentamento. Mas o estresse vai se prolongando, se nivela com a performance, que, então, começa a cair. O estresse torna-se crônico e muito alto. Naturalmente, vai criando esses sintomas.” Em outro aspecto da discussão, vale diferenciar sintoma mental e emocional de transtorno psiquiátrico. Afinal, há uma linha tênue que divide as duas coisas e a primeira, se não cuidada, pode evoluir para a segunda. “A gente apresenta sintomas ao longo da vida, como tristeza, ansiedade, medo, insegurança – eles são próprios da natureza humana e regulam nossas reações frente aos eventos da vida. Esses sentimentos são normais quando acontecem num
contexto apropriado, numa intensidade apropriada e de forma transitória. Ninguém fica o tempo todo triste ou melancólico, nem alegre ou eufórico”, explica Gallucci. “Portanto, para essa diferenciação, há critérios quantitativos e qualitativos. Para eu chamar de transtorno, preciso ter determinados sintomas em determinadas intensidades e por determinados períodos de tempo. Já no aspecto qualitativo, preciso entender o impacto que esses sintomas têm na vida da pessoa, o quanto ela perde a funcionalidade por conta deles.”
Dentro da equação da resiliência, vale dizer que, além da questão particular – ou seja, algumas pessoas têm naturalmente mais resistência emocional que outras –, a pandemia tem muitos e longos tentáculos, atingindo a todos nós de diferentes formas e intensidades. Por isso, como ressalta Gallucci, não é uma questão monocausal – não é o confinamento, por si só, que causa sofrimento mental; mas todas as consequências diretas e indiretas da pandemia.
A neurocientista e psiquiatra Natália Mota endossa essa opinião. Segundo ela, os principais elementos causadores do sofrimento mental são justamente os reflexos da falta de adoção de medidas eficazes para conter o vírus, como o aumento de casos e de mortes, lutos sem direito a despedida, a falta de amparo social e de uma consciência coletiva – vemos uma boa parte da população que não segue as orientações de isolamento e de prevenção –, e a expansão desenfreada da pandemia no nosso país e uma gestão ineficiente da vacinação. “Essas são questões que também afetam a saúde mental das pessoas, são fatores ansiogênicos que
causam muito sofrimento. O isolamento social poderia ser vivenciado de uma maneira muito mais segura”, diz Natália.
Para dimensionar o impacto que essa crise tem na saúde mental é importante organizá-la em macro e microcenários. Todos nós somos afetados em algum nível pelos saldos da pandemia, como o medo de contrair a doença ou de precisar de atendimento hospitalar em um sistema à beira do colapso. Mas profissionais de saúde que atuam diretamente no enfrentamento da Covid-19 são certamente mais afetados do que as pessoas que podem trabalhar de suas casas em áreas não relacionadas, por exemplo. Assim como quem perdeu entes queridos para a doença, seus empregos ou que adoeceu gravemente. E, ainda, as mulheres, um dos grupos mais impactados: são as mais sobrecarregadas, as que mais sofrem violência doméstica e as que mais lutam e morrem na linha de frente con-
“Atribuir problemas de saúde mental ou suicídio ao lockdown é uma inverdade. Temos que levar em conta que, especialmente no Brasil, não houve ainda um longo período de quarentena radical. Nosso problema não é o lockdown, é a falta de controle sobre a pandemia”,
Rodrigo Bressan, psiquiatra
tra a Covid-19 – só no Brasil, 3 mil enfermeiras morreram em decorrência da doença. “Quando pensamos no macro, é relativamente mais fácil de lidar porque estamos todos passando por ele, é uma tensão coletiva. Precisamos olhar com cuidado para esses microcenários, porque não existem prevenções específicas e só veremos o impacto disso lá na frente”, afirma Gallucci.
O confinamento restringe nosso espaço fí-
ajuda”, Natália Mota, neurocientista e psiquiatra
sico, mas ele não precisa ser emocional nem intelectual, muito menos relacional. Tentar manter a rotina, respeitando os horários para dormir e trabalhar, além de comer bem, descansar e se exercitar, não são recomendações inéditas, mas seguem sendo vitais. Manter uma rede de afetos ativa e viva, mesmo que de forma remota, também é uma ação de enorme importância. “Muitas vezes, quando ficamos isolados, não compartilhamos nossos sofrimentos, não temos a oportunidade de relativizar esses pensamentos, nossa leitura da realidade e nos tranquilizar com outras opiniões. Quando estamos em contato com pessoas em quem confiamos, isso pode criar uma sensação de segurança”, diz Natália.
Ficar de olho na saúde mental também parece óbvio, mas tendemos a naturalizar certos sintomas, como insônia ou ansiedade, principalmente diante de notícias catastróficas. Regular o acesso às informações é um passo importante na manutenção da nossa saúde psíquica. “Esse excesso de conteúdo negativo pode causar uma sobrecarga mental. Se a gente começa a consumir muitas informações de conteúdo emocional intenso, é como se estivéssemos comendo uma grande porção de feijoada: fica difícil de metabolizar, não digerimos”, completa a especialista. “Cada pessoa precisa ter consciência do seu limite, saber seu ponto de resiliência, e não deixar chegar nele, procurar ajuda.” n