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DE CONVERSA EM CONVERSA
POR ANTONIO BIVAR
ARISTOCRATAS O papel das mulheres na sociedade, a política, o poder do consumo. Parece que nada muda, não importa o momento histórico
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Acabo de ler um excelente livro. Desses que caem na mão quando menos se espera. Meus olhos o avistaram numa feira de livros encalhados. Aristocratas, seu título. Por Stella Tillyard. Ótima tradução de Maria Alice Máximo. Quase 400 páginas, o livro é sobre quatro irmãs da aristocracia inglesa da época georgiana. É biografia e história com charme de romance. O original, inglês, foi publicado em 1994. A tradução brasileira saiu pela Record em 2003. Não encontrado em livrarias, pode ser adquirido on-line na infalível Estante Virtual, entregue em sua casa.
A história acontece durante o reinado de Jorge 3º (entre 1740 e 1832), mas o encanto do livro é que parece estar falando de hoje, com a elegância que só os [verdadeiros] aristocratas têm. Costumo assinalar com marcador amarelo a essência do que leio. A seguir, alguns trechos marcados, na sequência em que foram lidos. Na colagem, os trechos (a começar pela página 55, com “a defenestração”) me parecem ter tudo a ver com o momento que atravessamos, em 2019.
“A política era uma profissão com regras próprias cada vez mais complexas, sutis e tortuosas.” Não parece coisa de hoje? E segue, umas vinte páginas depois: “[No seu apego à verdade] obcecado com suas responsabilidades e com sua honradez, ele se opunha a se sujeitar a razões de conveniência. Ocupava-se tanto em detectar
algo errado que chegava a prejudicar sua carreira. Nomeações e emolumentos. Inúmeras pensões e inúmeros cargos a membros da família e seus amigos. Para complicar esse quadro de generosidades à custa do estado, havia entre eles desentendimentos políticos que envolviam as mulheres da família tão profundamente quanto aos próprios políticos. O rei pediu-lhe que formasse um gabinete. A chave daquele gabinete era também de enormes riquezas. (E mais adiante:) Foi assim que, abarrotado de dinheiro e opróbrio, encerrou sua carreira política.” Mas as quatro irmãs – Caroline, Emily, Louisa e Sarah – personagens centrais do livro, bisnetas do rei Carlos 2º e sua amante Louise de Kéroualle, mulheres de políticos, educadas acima dos padrões das jovens da aristocracia inglesa, traçaram em sua correspondência o painel da época. A atividade epistolar era algo que se aprendia e se exercitava. A arte de escrever cartas, ao mesmo tempo informava, entretinha e revelava o caráter do missivista. (Uma certa semelhança com, hoje, o que se escreve e se comenta no WhatsApp, no Facebook e outras páginas.) Naquela época, há mais de três séculos, as irmãs Lennox achavam que o estilo epistolar devia estar de acordo com os ditames da estética, e que as cartas eram, de certa forma, públicas também. O estilo mais perfeito era cândido e brejeiro, íntimo e insinuante, mas sempre culto e elegante.
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“Já que você foi tão gentil de se queixar”, escreveu Sarah a Emily, em meados de 1770, “sinto-me inclinada a escrever minha própria revista mensal de variedades, pois acho que minhas cartas assemelham-se muito a elas: um apanhado de assuntos desconexos, com um pouco de nexo, par-ci, par là.” Nas cartas, as irmãs eram prolixas e tinham dificuldade em parar de escrever. Vivia-se num ambiente cultural marcado pelo modismo e pelo maneirismo. O marido de Louisa logo deixou de cuidar dos negócios dos outros para cuidar dos seus próprios. Desde cedo na vida Louisa percebeu que fazendo o bem seria amada. Ao deixar a Irlanda em direção a Londres, Louisa já havia adquirido a mentalidade do colonizado. E páginas adiante o rei Jorge lê num tratado de filosofia que “apesar de a lei dizer que o homem só pode ter uma mulher, a natureza lhe permite ter mais de uma” e ele conta ao primeiro-ministro que tinha vivido uma paixão havia trinta anos. Renunciara a mulher amada para casar-se com outra. Mas nunca esqueceu Sarah que, segundo a própria, o rei escreveu-lhe uma carta na qual se revelava conhecedor dos mínimos detalhes da vida dela, concedendo-lhe uma excelente pensão.
Das quatro irmãs, três delas bem casadas com duques, condes e lordes, Sarah era a mais obstinada e rebelde. Fugira com um aristocrata pobre, o que causou vergonha e escândalo na família – a maioria cortou relações com ela, mas depois foi perdoada e respeitada por se casar com um mais digno (seria hoje um aristocrata de esquerda). As irmãs, cada uma tinha sua personalidade bem definida. Caroline era a mais racional; aos 35 anos escreveu a Emily: “Nunca apreciei um estilo de vida agitado e agora que estou envelhecendo creio que posso me dar ao luxo de levar a vida que gosto, poder fazer da meia-idade meu período mais feliz”. Aos 40, Caroline assumiu o papel de uma senhora de idade, pronta para “uma velhice longa e tranquila”. Joshua Reynolds a pintou na nova imagem, como mulher so
fisticada e elegante, uma senhora de cabelos brancos, muito digna, por sua posição social e experiência de vida. Coerente com sua maneira de ser, Caroline achava que praticado com moderação, o jogo era um passatempo inofensivo. Em excesso, era um vício. Sabia que a linha que separava o prazer da ruína era tênue. Caroline achava que o comércio gerava progresso; fazer compras era, além de passatempo prazeroso, um bom exercício para com as forças do progresso. Emily e Louisa, que moravam na Irlanda, escreviam pedindo que ela ou Sarah comprassem em Londres e despachassem para elas, roupas, acessórios, móveis e decoração que elas não encontravam em Dublin. Tanto na Irlanda quanto na Inglaterra suas várias residências eram verdadeiros castelos, de acordo com a arquitetura da época. Manter funcionando todo esse imenso conjunto, as terras, fazendas, imensos jardins, seus feudos contavam com centenas de serviçais e empregados mais graduados, como o administrador e a governanta. O mordomo trabalhava em acordo com a governanta. Essas obrigações eram supervisionadas pelos donos, e divididas entre os casais e com o tempo também com os filhos. Para Louisa, as diferenças sociais, como, por exemplo, as que havia entre a dona da casa e uma empregada, eram parte do plano divino.
Emily era uma apaixonada. Teve 22 filhos. Do primeiro casamento, e viúva, do casamento seguinte. Da filharada, dez morreram e 12 sobreviveram. Anualmente, ou a cada dois anos, Emily dava à luz um filho, fazia seu mês de resguardo (cujo término era ansiosamente aguardado pelo marido apaixonado), ovulava e engravidava novamente.
E o livro segue, com as irmãs se adaptando às mudanças, à política, jogos do poder, tragédias... Às vezes levando ao pranto o leitor sensível. Mas o espaço aqui da coluna acabou e não dá para contar mais. Mas nestes tempos bicudos, Aristocratas também serve como um ótimo manual.
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ANTONIO BIVAR, escritor e dramaturgo, acredita que devagar e sempre, nesse passo, vai até honolulu