Organizadoras
Ana Cláudia de Souza Cristiane Seimetz-Rodrigues Claudia Finger-Kratochvil Luciane Baretta Angela Cristina Di Palma Back
Diálogos linguísticos para a leitura e a escrita
Ana Cláudia de Souza Cristiane Seimetz-Rodrigues Claudia Finger-Kratochvil Luciane Baretta Angela Cristina Di Palma Back (Organizadoras)
Diálogos linguísticos para a leitura e a escrita
Florianópolis
2019
Comissão Editorial e Científica Ana Aparecida de Oliveira Machado Barby (Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro) Ana Cláudia de Souza (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) Angela Cristina Di Palma Back (Universidade do Extremo Sul Catarinense – Unesc) Clarícia Otto (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) Claudia Finger-Kratochvil (Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS) Claudia Rahal (Centro Universitário Metodista – IPA) Cristiane Seimetz-Rodrigues (Universidade Federal de Santa Catarina –UFSC) Dalva Godoy (Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc) Eliane Debus (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) Flávia Ramos (Universidade de Caxias do Sul – UCS) José Reinaldo Nonnenmacher Hilário (Instituto Federal Catarinense – IFC) Lêda Maria Braga Tomitch (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) Lílian Cristine Hübner (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS) Luciane Baretta (Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro) Maria Aparecida Lapa de Aguiar (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC) Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig (Universidade Regional de Blumenau – FURB) Ronei Guaresi (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB) Rosangela Abreu do Prado Wolf (Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro) Vera Wannmacher Pereira (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS) Wladimir Antônio da Costa Garcia (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC)
Editora Insular
Diálogos linguísticos para a leitura e a escrita Ana Cláudia de Souza Cristiane Seimetz-Rodrigues Claudia Finger-Kratochvil Luciane Baretta Angela Cristina Di Palma Back (Organizadoras) Conselho Editorial Editora Insular Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Jali Meirinho, Jéferson Silveira Dantas, Nilson Cesar Fraga, Pablo Ornelas Rosa e Salvador Cabral Arrechea (ARG) Editor Nelson Rolim de Moura
Capa Eduardo Cazon
Projeto gráfico e Editoração Silvana Fabris
Conceito e arte da capa Claudia Finger-Kratochvil
Revisão textual Cristiane Seimetz-Rodrigues, Fernanda Cizescki Diálogos linguísticos para a leitura e a escrita. Ana Cláudia de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues, Claudia Finger-Kratochvil, Luciane Baretta, Angela Cristina Di Palma Back (orgs.). Florianópolis: Insular. 2019. 347 p. : Il. ISBN 978-85-524-0118-6 1. Linguística. 2. Leonor Scliar-Cabral. 3. Leitura. 4. Escrita I. Título. CDD 410
Apoio
EDITORA INSULAR (48) 3232-9591 editora@insular.com.br twitter.com/EditoraInsular www.insular.com.br facebook.com/EditoraInsular
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Sumário Prefácio................................................................................................................8 Ana Cláudia de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues Claudia Finger-Kratochvil, Luciane Baretta Angela Cristina Di Palma Back Parte I Histórias e diálogos com Leonor Scliar-Cabral
1
Cristal da docência e da pesquisa: as contribuições da Professora Leonor Scliar-Cabral em favor de uma alfabetização de qualidade..... 17 Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig Ana Cláudia de Souza, Claudia Finger-Kratochvil Parte II Letramento e alfabetização para a democracia
2
Educar todos os seres humanos para serem letrados, capazes de pensamento livre, crítico e criativo..................................................... 45 José Morais, Régine Kolinsky
3
Pela qualidade no alfabetizar, requisito para a inclusão social na sociedade da informação..................................................................... 66 Leonor Scliar-Cabral Parte III Leitura, escrita, professores e ensino
4
Uma breve abordagem à leitura e à escrita na perspectiva da Psicolinguística........................................................... 85 Maria da Graça Lisboa Castro Pinto
5
O papel do professor no processo da construção de sentido na leitura....................................................... 107 Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig
6
Ensino, aprendizagem e utilização de estratégias de leitura: um retrato das pesquisas conduzidas no Brasil................................... 130 Carlos Alberto Ramos Souza, Luciane Baretta
7
A compreensão leitora do futuro professor de letras em formação:..... 147 observando as habilidades de reflexão e avaliação............................... 147 Gabriel Augusto Scheffer, Claudia Finger-Kratochvil
8
Ensinar a estudar ensinando a ler: potências dos roteiros de leitura............................................................. 164 Ana Cláudia de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues Helena Cristina Weirich
9
As tarefas de leitura, o livro didático e a formação do leitor.............. 201 Luciane Baretta Parte IV Ensino de leitura nos anos iniciais e no contexto da surdez
10
A prática sistematizada da leitura de livros de literatura infantil no processo de alfabetização.......................... 227 Ana Carolina da Conceição Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig
11
Jogos virtuais para desenvolver compreensão leitora e consciência textual de crianças de 2º ano inicial.......................... 243 Vera Wannmacher Pereira, Leandro Lemes do Prado
12
A estratégia de predição na leitura de fábulas: uma proposta para o ensino da leitura nos anos iniciais............... 255 Caroline Bernardes Borges
13
O início da alfabetização para uma criança com desvio fonológico: algumas reflexões....................................... 272 Cristiane Lazzarotto-Volcão
14
Uma reflexão teórica acerca do papel atribuído à imagem no ensino da leitura a surdos........................................... 282 Cristiane Seimetz-Rodrigues
15
Ato de ler e o leitor: pistas de um processo (não) emancipatório de leitura em um 5º ano do ensino fundamental............................ 298 Marina Vieira Cardoso, Angela Cristina Di Palma Back
16
“Ursinho Pooh 1, 2, 3”: uma contribuição fílmica para a alfabetização matemática na infância............................................ 325 Rosangela Silveira da Rosa, Mauro José da Rosa Sobre os autores............................................................................................. 339
Prefácio Ana Cláudia de Souza Cristiane Seimetz-Rodrigues Claudia Finger-Kratochvil Luciane Baretta Angela Cristina Di Palma Back
[...] Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. [...] (Clarice Lispector, Felicidade Clandestina)
Tal como no conto de Clarice Lispector, o que nos mobiliza à leitura é a paixão, um sentimento de contemplação e êxtase que, em alguma medida, só o livro nos dá. Tão só e ao mesmo tempo tão completas diante de um livro, que o desejo se estende para além do corpo e nos leva a querer que todos e todas tenhamos este direito: o direito de sonhar, de sentir, de viver plenamente, a partir daquilo que a leitura nos proporciona. Foi esse movimento que nos levou a aceitar o desafio de produzir este livro, por meio da rede que se criou, quando da realização, em 2016, na Universidade Federal de Santa Catarina, de uma das edições da Jornada Internacional de Alfabetização. Não apenas o evento, mas as parcerias que dele surgiram ou se consolidaram permitem, considerando as possibilidades de reverberação do trabalho realizado, discutir leitura e discutir escrita a partir de seus níveis mais elementares, de modo a criar espaços nos quais, por meio de pesquisa e ensino, seja possível levar leitura e escrita e o acesso ao livro ao maior número possível de crianças e adolescentes da Educação Básica 8
no Brasil. A menção ao evento neste prefácio justifica-se, sobretudo, para reiterar a importância de espaços como este para a integração entre pesquisadores na instalação de redes de colaboração. Evidentemente, do ponto de vista de sua inserção social, é inegável a aproximação que se estabelece com a Educação Básica e as relações que se criam entre os pesquisadores. A produção de um livro denso, como este que ora apresentamos, em função das inúmeras pesquisas que ele move e envolve, é possibilitada por eventos nos quais se vislumbram projetos em comum. A partir da Jornada, foi possível estabelecer uma rede de contatos, com vistas à promoção de parcerias interinstitucionais e internacionais, que culminou com esta obra que socializamos com toda a comunidade acadêmica. Este livro é, portanto, fruto das parcerias que se criaram, sendo também mais uma homenagem à Professora Leonor Scliar-Cabral, uma das mais proeminentes pesquisadoras e professoras da área da alfabetização e da formação de professores/as alfabetizadores/as no Brasil. É com gratidão e orgulho que organizamos a obra, tanto pela homenagem que prestamos quanto pela relevância social, política e educacional do tema e pela qualidade dos trabalhos apresentados. Este volume reúne pesquisas acadêmicas recentes referentes à leitura e à escrita, desde a alfabetização, considerando aspectos de inclusão social, ensino, aprendizagem e método, até as fases mais avançadas da Educação Básica. Reúne, ainda, estudos teóricos envolvendo os temas da leitura e da escrita, a educação inclusiva de surdos e a pesquisa sobre alfabetização matemática. Acreditamos que a obra seja de grande valia para professores, pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação, interessados em questões concernentes aos estudos da leitura e da escrita. O livro se inicia pelo capítulo intitulado “Cristal da docência e da pesquisa: as contribuições da Professora Leonor Scliar-Cabral em favor de uma alfabetização de qualidade”, de autoria de Otília L. O. Martins Heinig (Universidade Regional de Blumenau), Ana Cláudia de Souza (Universidade Federal de Santa Catarina) e Claudia Finger-Kratochvil (Universidade Federal da Fronteira Sul), que constitui a primeira parte da obra, “Histórias e diálogos com Leonor Scliar-Cabral”, e visa apresentar a professora homenageada, falando sobre sua carreira, analisando seu extenso e produti9
vo currículo e dialogando com ela, por meio de uma agradável entrevista, concedida às autoras. O texto ilumina faces da história de vida da professora Leonor que seu currículo não permite enxergar. Os quinze capítulos seguintes estão agrupados em outras três partes, segundo seus eixos proposicionais. A segunda parte, “Letramento e alfabetização para democracia”, abriga os textos de autoria de José Morais e Régine Kolinsky, pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas, “Educar todos os seres humanos para serem letrados, capazes de pensamento livre, crítico e criativo” (capítulo 2), e de autoria de Leonor Scliar-Cabral, professora da Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, “Pela qualidade no alfabetizar, requisito para a inclusão social na sociedade da informação” (capítulo 3). Morais e Kolinsky, além de também homenagearem a professora Leonor, tratam, assim como ela mesma o faz em seu texto, da alfabetização para a inclusão social e a democracia no Brasil, respaldados por consistentes e recentes conhecimentos científicos. Especificamente, os pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas enfocam a alfabetização e a literacia em uma abordagem histórica e sociopolítica, analisando dados da Unesco e da OCDE, que evidenciam a insuficiência da alfabetização e da literacia no Brasil como, nas palavras dos autores, “o maior obstáculo ao desenvolvimento democrático da sociedade brasileira”. Em seu texto, eles relatam uma bem-sucedida experiência de Curso de Alfabetização de Adultos, realizada em Portugal, propondo que esse tipo de programa seja oferecido em ampla escala para jovens e adultos. Por sua vez, o capítulo da Professora Scliar-Cabral defende a importância de se fundamentarem os responsáveis pela proposição de políticas públicas em alfabetização com as importantes descobertas das ciências que se dedicam ao estudo da linguagem verbal, a saber: a Linguística, a Psicolinguística, a Neuropsicologia e a Neurociência. Com base nas pesquisas dessas ciências no que diz respeito à arquitetura e ao funcionamento dos sistemas linguísticos e seus correlatos no sistema nervoso central, a autora critica as categorias da escala elaborada pela Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), argumentando que os avaliadores ignoram o que há de mais específico nos processos de leitura. A terceira parte do livro é dedicada à “Leitura, escrita, professor e ensino” e engloba seis capítulos. Inaugura essa parte da obra o capítulo de 10
Maria da Graça Lisboa Castro Pinto, professora e pesquisadora da Universidade do Porto, intitulado “Uma breve abordagem à leitura e à escrita na perspectiva da Psicolinguística” (capítulo 4). Nesse texto, a autora se dedica à história da Psicolinguística, desde a sua origem até a contemporaneidade, caracterizando-a, com base em observação de Slama-Cazacu, como uma ciência que ultrapassa a interdisciplinaridade, constituindo-se por conexões multidisciplinares e possibilitando importantes investigações acerca do que se passa nos processos verbais da leitura e da escrita. Objetiva, por meio desse texto, considerar esses dois processos sob a perspectiva da Psicolinguística, como ciência explicativa que relaciona a linguagem verbal às bases psicológicas nela implicadas. Segue esse capítulo aquele proposto por Otília L. O. Martins Heinig, professora da Universidade Regional de Blumenau, “O papel do professor no processo da construção de sentido na leitura” (capítulo 5), que, por inspiração provocada pela leitura do texto Reading as a Meaning-Construction Process: the reader, the text, and the teacher, de autoria de Ruddell e Unrau (1994), visa ponderar sobre a função do professor no ambiente de ensino e de aprendizagem, levando em conta, conforme propõem os autores-base, o leitor, que neste caso é o estudante, a sala de aula, o contexto, o texto e as atividades propostas. No capítulo 6, Carlos Alberto Ramos Souza e Luciane Baretta, da Universidade Estadual do Centro-Oeste, com o objetivo de mais claramente compreender como as fragilidades da educação brasileira, nas esferas pública e privada, influenciam os (baixos) índices de proficiência leitora nos níveis fundamental, médio e superior, debruçam-se sobre as pesquisas produzidas em universidades públicas e privadas brasileiras, em nível de mestrado e doutorado, no período de 2000 a 2016, as quais abordaram o ensino e o uso de estratégias de leitura em língua materna e estrangeira, inglês. Por meio desse estudo, os autores produziram o texto “Ensino, aprendizagem e utilização de estratégias de leitura: um retrato das pesquisas conduzidas no Brasil”. A seu turno, Gabriel Augusto Scheffer e Claudia Finger-Kratochvil, da Universidade Federal da Fronteira Sul, no capítulo 7, intitulado “A compreensão leitora do futuro professor de letras em formação: observando as habilidades de reflexão e avaliação”, ao questionarem se os potenciais profissionais da área de Letras estão chegando à formação superior inicial com suficiente baga11
gem leitora que lhes permita enfrentar os desafios do estudo acadêmico, voltam-se à análise da competência leitora de estudantes ingressantes no Curso de Letras de uma instituição superior catarinense, visando verificar seus conhecimentos em leitura, especificamente no que concerne à habilidade de reflexão e avaliação. O capítulo 8 traz a pesquisa de Ana Cláudia de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues e Helena Cristina Weirich, sendo as duas primeiras autoras da Universidade Federal de Santa Catarina e a terceira professora da Educação Básica do Colégio Salesiano de Itajaí-SC. Sob o título “Ensinar a estudar ensinando a ler: potências dos roteiros de leitura”, o texto versa sobre ensino e aprendizagem da leitura, descrevendo e discutindo as possibilidades de emprego dos roteiros de leitura, a fim de se implementarem atividades específicas que possam promover a aprendizagem. As autoras desenvolvem e explicam dois tipos de roteiro: um para ensino e outro para avaliação de leitura. Por sua vez, Luciane Baretta, no texto “As tarefas de leitura, o livro didático e a formação do leitor” (capítulo 9), produz sua pesquisa guiada pela seguinte questão: “de que forma o livro didático das diversas disciplinas do currículo tem contribuído para a formação e desenvolvimento das competências e habilidades em leitura?”. As respostas a essa pergunta passam pela fundamentação baseada nas contribuições de pesquisas sobre leitura que se dedicam a analisar materiais didáticos e a buscar soluções para dirimir os problemas de leitura e também pela análise de livros didáticos, realizada pela autora. Por fim, a quarta parte da obra é dedicada ao “Ensino de leitura nos anos iniciais e no contexto da surdez”. Fazendo parte de uma pesquisa de dissertação de mestrado que aborda as ações docentes para a sistematização da linguagem escrita, abre a seção o texto “A prática sistematizada da leitura de livros de literatura infantil no processo de alfabetização” (capítulo 10), de autoria de Ana Carolina da Conceição, professora da Rede Municipal de Brusque-SC, e Otília L. O. Martins Heinig, cujo objetivo é analisar o recurso de leitura de livros da literatura infantil para os estudantes, mobilizado na sala de aula pela professora, a fim de compreender se e como os diferentes materiais didáticos atuam no processo discursivo de sistematização de conhecimentos sobre a linguagem escrita. O capítulo 11, “Jogos virtuais para desenvolver compreensão leitora e consciência textu12
al de crianças de 2.º ano inicial”, de Vera Wannmacher Pereira e Leandro Lemes do Prado, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tem como seu objetivo central verificar em que medida jogos virtuais, gerados para fins de aprendizagem, contribuem para o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual dos estudantes desse nível de escolaridade. Com perspectiva integradora, o projeto desenvolveu 16 módulos de jogos virtuais de compreensão leitora e de consciência textual, utilizando gêneros textuais que circulam na vida pessoal e escolar dos estudantes. Cada um desses jogos se caracteriza pela exploração dos planos linguísticos (fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático e textual). Por sua vez, o texto de Caroline Bernardes Borges (capítulo 12), “A estratégia de predição na leitura de fábulas: uma proposta para o ensino da leitura nos anos iniciais”, também da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, focaliza a explicitação da importância do desenvolvimento do uso das estratégias de leitura, mais especificamente a estratégia de predição leitora, nas aulas de Língua Portuguesa que envolvem o ensino da leitura nos anos iniciais. Para desenvolver a pesquisa, a autora escolheu o gênero fábula para servir de suporte à criação de atividades pedagógicas que podem contribuir para estimular o desenvolvimento da estratégia em questão. O capítulo 13, “O início da alfabetização para uma criança com desvio fonológico: algumas reflexões”, de Cristiane Lazzarotto-Volcão, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, considerando que, para aprender a escrever em um sistema alfabético de escrita, a criança precisa, de algum modo, relacionar o sistema fonológico aos grafemas e que algumas crianças iniciam esse aprendizado sem ter terminado o processo de aquisição fonológica, por apresentarem um Desvio Fonológico (DF), pretende contribuir com os estudos sobre a aprendizagem da escrita, por meio da análise das produções escritas dirigidas de um menino com DF, em tratamento fonoaudiológico, a fim de verificar como essa criança está aprendendo o sistema alfabético do português brasileiro. O capítulo 14, de autoria de Cristiane Seimetz-Rodrigues, a seu turno, a partir da análise teórica sobre o emprego de imagens aliadas ao texto escrito para a comunicação em uma sociedade midiatizada e da consideração crítica de recomendações de práticas pedagógicas voltadas ao ensino da língua portuguesa es13
crita a surdos, procede a uma reflexão acerca do lugar atribuído ao uso de imagens para o ensino da língua portuguesa escrita a surdos. A autora não nega a existência de um importante e efetivo papel do emprego de recursos visuais durante o processo de instrução em leitura de estudantes surdos, bem como de ouvintes. O que ela pretende é combater a assunção de que a compreensão de imagens pode levar à compreensão do texto escrito. Tal posicionamento está associado à falta de clareza entre o que seja leitura de textos escritos e o que seja compreensão de imagens, levando a uma prática pedagógica que enfatiza o uso de textos ilustrados como recurso didático para o ensino da língua portuguesa escrita a surdos. O penúltimo capítulo, de número 15, de autoria de Marina Vieira Cardoso e Angela Cristina Di Palma Back, da Universidade do Extremo Sul Catarinense, sob o título “Ato de ler e o leitor: pistas de um processo (não) emancipatório de leitura em um 5º ano do ensino fundamental”, analisa, a partir do processo de leitura instalado com estudantes de 5º ano do Ensino Fundamental, os avanços ou as lacunas do ato de ler pertinentes à formação do sujeito (não) emancipado. Por meio de duas aulas práticas de leitura, as autoras desenvolvem a pesquisa de campo, de natureza exploratória e qualitativa, cujos resultados apontam que, por meio do ensino da leitura num viés interacionista, é possível contribuir com a formação do leitor autônomo, que sabe ir e vir no texto quando precisa, a fim de compreendê-lo. Fecha esta quarta parte o capítulo 16, de autoria de Rosangela Silveira da Rosa e Mauro José da Rosa, ela professora da Rede Municipal de Ensino de Santa Catarina e ele professor da Universidade do Vale do Itajaí. Em seu texto, intitulado ““Ursinho Pooh 1, 2, 3”: uma contribuição fílmica para a alfabetização matemática na infância”, os autores defendem que a criança, no período de alfabetização, precisa receber estímulos para que possa enriquecer o seu universo lúdico e desenvolver a atenção, a memorização, a criatividade e a imaginação. Propõem um trabalho a partir do filme Ursinho Pooh 1, 2, 3 – Descobrindo os Números e as Contas, que pode contribuir para potencializar o desenvolvimento das crianças, além de significar conceitos relevantes para a alfabetização matemática. O filme roteiriza a história de um ursinho que não sabia contar e é estimulado a participar de diferentes métodos de contagem. Ilustra, também, a escrita e a leitura dos números, a importância 14
da ordem numérica, bem como sua relevância no mundo em que vivemos. Nesse contexto, o propósito da pesquisa apresentada, além de discutir a importância do lúdico na alfabetização matemática, é sugerir a apresentação do filme Ursinho Pooh 1, 2, 3 para a introdução do processo de contagem, bem como da escrita e leitura dos números. Encerra este volume uma seção dedicada à apresentação da síntese dos currículos acadêmicos dos 21 autores cujas pesquisas contribuíram para que o projeto desta obra pudesse ser realizado. Somos um grupo constituído por pesquisadores, professores do ensino superior e da educação básica, estudantes de pós-graduação e graduação, que, juntos, optamos por unir esforços, a fim de contribuir não apenas para o desenvolvimento da ciência, mas também e sobretudo para a melhoria do ensino e então da aprendizagem da leitura e da escrita. Agradecemos a cada um e a cada uma pela importante e consistente parceria, desejando que as reflexões aqui desenvolvidas possam inspirar e motivar o leitor à pesquisa e ao ensino consistentemente fundamentados, e as políticas públicas a garantir o pleno acesso à leitura e à escrita a todas as pessoas neste país. Agradecemos, também, o apoio concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que financiou a publicação do livro. Primavera de 2018
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Parte I
Histรณrias e diรกlogos com Leonor Scliar-Cabral
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1 Cristal da docência e da pesquisa: as contribuições da Professora Leonor Scliar-Cabral em favor de uma alfabetização de qualidade Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig Ana Cláudia de Souza Claudia Finger-Kratochvil
Palavras iniciais sobre brilho, qualidade, nobreza e sensibilidade Como ex-alunas e colegas de trabalho, propomo-nos relatar um pouco da história da Professora Emérita Leonor Scliar-Cabral, nossa homenageada nesta obra. Neste texto, que visa demonstrar o que significa para a Linguística, para a Psicolinguística, para a Educação e para cada uma de nós, em particular, a professora Leonor, assumimos ora tom e estilo pessoais, revelando nossa proximidade, carinho e admiração a ela e à sua história, ora tom acadêmico, focalizando suas ações de pesquisa, docência e formação de professores. Elegemos, para nos referir a ela, uma metáfora: a do cristal. Além das nossas vozes, que estarão marcadas ao longo do texto, damos voz à própria Professora Leonor, entrevistando-a e buscando conhecer suas perspectivas em relação à sua caminhada com vistas à erradicação do analfabetismo pleno e funcional. Os cristais apareceram na história da humanidade há milhares de anos. Atribui-se aos fenícios, por volta de 7.000 anos a. C., a obtenção dos vidros. Esse povo improvisou fogões usando blocos de salitre sobre a areia e observou que, após algum tempo de fogo vivo, escorria uma substância líquida e 17
brilhante, que se solidificava rapidamente. Estava descoberta, aí e ao acaso, a existência do cristal. Com o passar do tempo, notou-se que a utilização de componentes nobres, como o chumbo e o bário, transferia ao vidro um aprimoramento na qualidade, surgindo, assim, efetivamente, o cristal, que é um vidro, mas um vidro diferente, especial que, devido a matérias-primas nobres, tem como resultado um produto com maior brilho, regularidade e transparência. A Professora Leonor, tal qual o cristal, é nosso componente nobre, nossa inspiração, na pesquisa e no fazer docente. Seus conhecimentos linguísticos, trazidos e combinados aos processos de ensino e de aprendizagem da alfabetização, deram-lhe mais brilho, sensibilidade e transparência. Seus estudos sobre os Princípios do sistema alfabético do português do Brasil (Contexto, 2003) e sobre as orientações aos alfabetizadores, no Guia prático de alfabetização (Contexto, 2003), sua investigação no âmbito do projeto Ler & Ser: combatendo o analfabetismo funcional, sua dedicação ao desenvolvimento de método de ensino de leitura inicial: o Sistema Scliar de alfabetização – Fundamentos (Lili, 2013), a elaboração da cartilha Aventuras de Vivi (Lili, 2013), Sistema Scliar de alfabetização – Roteiros para o professor: Módulo 1 (Lili, 2017) e os incessantes, incansáveis e dedicados cursos de formação inicial, continuada e especializada (em nível de pós-graduação) de alfabetizadores – a exemplo do longo e intenso Curso Sistema Scliar de Alfabetização, Módulo 1, ministrado a distância, e da disciplina de pós-graduação “Tópicos especiais em Psicolinguística: processamento da produção oral e escrita”, o primeiro iniciado em 2016 e finalizado em 2017 e o segundo, no 2º semestre de 2017 – são formas de acrescentar ao vidro da educação o brilho, a delicadeza, a regularidade e a vivacidade de que ela tanto carece. Suas pesquisas ajudaram a transferir ao vidro da alfabetização um aprimoramento da qualidade e da sensibilidade. O desenvolvimento de um método para a aprendizagem da leitura foi uma das suas grandes contribuições recentes, que se somou ao lugar que a Professora Leonor já ocupava na história da Linguística e da Psicolinguística no Brasil. Temos, neste material voltado ao ensino da leitura inicial, um presente precioso, que irá auxiliar muitos professores e crianças, junto com a Vivi, a viver as aventuras do aprender a ler. Refletir sobre os co18
nhecimentos necessários à formação do professor alfabetizador em grupo de pesquisa e também sozinha a levou à produção dos fundamentos para o Sistema Scliar de alfabetização. Produzir um método, quando tantos se sentem receosos e evitam falar sobre métodos e cartilhas, é mais uma das suas nobres contribuições. Revela o valor que a Professora Leonor atribui à educação, a forma séria como compreende a alfabetização e, sobremaneira, a formação dos professores. No espaço deste capítulo, ratificamos a necessidade de a universidade e seus professores-pesquisadores se aproximarem da escola, dos professores da educação básica e dos temas que precisam ser investigados, explorados e tratados. A Professora Leonor esteve e está disposta a dialogar com os professores em seu processo de formação, seja inicial ou continuada. Como pesquisadoras participantes, lembramo-nos de nossos encontros e eventos dentro do projeto Ler & Ser: combatendo o analfabetismo funcional. Tantos professores se dirigindo a ela, perguntando, ávidos e ansiosos por conhecer um pouco das contribuições da Psicolinguística, da Linguística e da Educação para uma escola acolhedora e de qualidade, para uma alfabetização que atenda ao desejo e às necessidades dos alunos e professores: um processo que seja lógico, organizado, fundamentado e produza os tão esperados resultados de formação de leitores. A Professora Leonor é um cristal que brilha entre nós, que distribui luz e saber. No Império Romano, os cristais e pedras preciosas foram associados a palavras de poder para que suas energias fossem aproveitadas. Os seus cursos e aulas ministrados, os artigos, capítulos e livros produzidos estão repletos de palavras de poder; são cristais que guardamos para sempre, que nos remetem ao aprendido, ao vivido. Seus escritos têm brilho como o cristal, têm objetos e fundamentos preciosos; são formas de voltarmos a aprender, sempre que queremos renovar ou ampliar nossos conhecimentos. Na luta contra o analfabetismo funcional que a Professora Leonor vem travando, encontramos textos e falas que possibilitam compreender seu posicionamento e refletir sobre ele de forma ativa e responsável. Entre alguns dos textos, estão os que revelam seu poder de produzir, intervir, de fazer circular, de disseminar o conhecimento. Assim como uma joia precisa ser usada e mostrada para que a apreciemos, é igualmente interessante 19
tirar do porta-joias os nossos cristais, as nossas pedras preciosas. Para isso, vamos, na próxima seção deste texto, relembrar alguns dos títulos de suas produções acerca da leitura, da escrita e da alfabetização1, a fim de dar visibilidade ao seu compromisso com as palavras de poder, com a pesquisa e com a docência acerca deste grande tópico do conhecimento.
Um pouco da história: o que revelam as produções acadêmicas da Professora Leonor Scliar-Cabral Na natureza, o cristal aparece de diversas formas, a começar por amostras que encontramos no dia a dia dentro de nossas próprias casas, como, por exemplo, o grão de sal ou de açúcar. Ou o floco de neve, que é composto por partículas congeladas de água em estado cristalino. A maioria dos minerais é formada por cristais, que podem variar muito, tanto nas possibilidades de sua utilização, quanto no valor a eles atribuído. A professora Leonor, como um cristal, também se manifestou e se manifesta de diversas formas. Tendo obtido seu grau de doutoramento em Linguística, em 1977, pela Universidade de São Paulo (USP), e seu pós-doutoramento, em 1981, pela Universidade de Montreal/Canadá, a Professora Leonor desenvolveu a maior parte de seu trabalho acadêmico estando vinculada à UFSC. Já são 36 anos de trabalho nesta instituição, onde se aposentou, recebeu o título de Professora Emérita e continua atuando como docente colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Linguística, na qualidade de professora voluntária. Foi também docente, entre 1968 e 1981, da Faculdade Ibero-Americana de Letras e Ciências Humanas (FIA), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), então, Escola Paulista de Medicina (EPM), e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/ Campinas), como Coordenadora da Pós-Graduação em Linguística. Consta de sua trajetória como pesquisadora a presidência da International Society 1 O extenso e consistente currículo completo da Professora Leonor está disponível em: <http://lattes. cnpq.br/7747923041329769>. Acesso em 14 de abril de 2017 (atualizado em 12 de abril de 2017). Optamos por, neste capítulo, tratar apenas de parte de sua produção, em razão do espaço no qual este texto se situa e do objeto de interesse particular deste livro.
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of Applied Psycholinguistics (ISAPL), da qual atualmente é Membro Honorário, a presidência da União Brasileira de Escritores em Santa Catarina, a presidência da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), entre tantas outras atividades. Implantou a Cátedra UNESCO para o Desenvolvimento da Leitura e da Escrita (MECEAL) no Brasil, por meio do convênio assinado pelos reitores da Ufsc e da Universidade de Calli. Desde o ano de 1970, é pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mas sua atuação como escritora não se limita ao universo da pesquisa. Ela foi indicada como finalista do Prêmio Jabuti, em 2010, na categoria poesia, pela obra Sagração do alfabeto. Sua produção conta com: 144 artigos; 54 livros; 119 capítulos de livros, 75 trabalhos completos em anais de eventos, 97 textos em jornais ou revistas, 387 apresentações de trabalho (entre conferências, comunicações, simpósios e seminários), 37 cursos ministrados (excetuando-se os cursos regulares em disciplinas de graduação, mestrado e doutorado), 3 supervisões de pós-doutoramento, 22 orientações de teses, 56 de dissertações e 47 de projetos de iniciação científica. Isso sem contar as inúmeras orientações que não podem ser aqui computadas, porque não foram e não são formais, mas marcam a história e a constituição de muitos pesquisadores e professores no Brasil. Individualmente ou em coautoria com pesquisadores nacionais e estrangeiros, a professora Leonor tem vasta produção de pesquisa vinculada à leitura e à alfabetização e significativo envolvimento com os processos de formação de pesquisadores e professores, como já mencionado. O que apresentamos, nesta seção, não são senão recortes extraídos de seu dinâmico currículo, fragmentos que iluminam a amplitude de sua dedicação à formação de leitores e de formadores de leitores em nosso país. Dirigindo o olhar aos seus projetos de pesquisa, percebemos que, desde 1982, há 36 anos, portanto, a Professora Leonor já estava interessada em estudos que dizem respeito à aprendizagem dos processos relativos à leitura. Naquele momento, desenvolveu o projeto Narratividade em crianças e os processos de leitura (INEP, 1982), cujo objetivo central era melhorar as capacidades da criança para a leitura e a escrita, mediante o desenvolvimento da competência narrativa. A partir daí, foram muitos os projetos 21
desenvolvidos na área, entre os quais citamos: Efeito das capacidades metalinguísticas de processamento fonológico sobre a decodificação do código escrito, Efeito recíproco das capacidades metalinguísticas de processamento fonológico sobre a decodificação do código escrito, Pesquisas sobre as relações entre a alfabetização e o desenvolvimento das capacidades cognitivas e linguísticas, Relações entre letramento e capacidades metalinguísticas em situação experimental, Da oralidade ao letramento: continuidades e descontinuidades, Capacidades metalinguísticas e os princípios do sistema alfabético do português do Brasil (PB), Princípios do sistema alfabético do português do Brasil: socialização I e II. Estes dois últimos projetos trouxeram à tona a formalização realizada em duas obras publicadas em 2003, pela editora Contexto, que figuram como as principais acerca do sistema de escrita do português do Brasil, quais sejam: Princípios do sistema alfabético do português do Brasil e Guia prático do alfabetizador. Em 2008, em uma proposta ousada envolvendo várias instituições e ações, assume a frente do projeto Ler & Ser: combatendo o analfabetismo funcional, ação que se mantém até hoje, tendo sido geradora do projeto Sistema Scliar de Alfabetização, que continua sendo desenvolvido em Validação da Proposta Scliar de Alfabetização e Rede nacional para melhorar a qualidade da alfabetização e competência em leitura e escrita; este teve início em 2016 e é bastante vasto e ambicioso, envolvendo pesquisadores de várias instituições de ensino superior do país. Como visto, são muitas ações investigativas a fim de contribuir para a compreensão da aprendizagem e do ensino da leitura e da escrita. No que diz respeito às publicações na área, a lista de trabalho é bastante ampla e significativa. Há mais de 30 anos, em 1983, a Professora Leonor produz a obra Narratividade em crianças e os processos de leitura, publicada pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão que ainda hoje agrega muitas ações e programas relacionados à educação brasileira e, no que diz respeito à educação básica, inclui as avaliações em larga escala. Dois anos mais tarde, em 1985, contempla os leitores com o livro Análise de Cartilhas, em uma edição monográfica da revista Roteiro da Unoesc/SC. Neste mesmo período, além de capítulos de livros, publica artigos em torno do mesmo tema, a exemplo de “Psicolin22
guística aplicada à alfabetização e leitura”, Revista Roteiro, “Um exemplo de psicolinguística aplicada para minorar o insucesso escolar”, Revista Perspectiva, “Processos psicolinguísticos de leitura e a criança”, Letras de Hoje. Passada mais de uma década, que se centrou em pesquisas dedicadas à análise linguística, aquisição da linguagem e a diversos outros processos psicolinguísticos e também em desenvolvimentos teóricos, surgem cada vez mais publicações da Professora Leonor em torno dos temas leitura, escrita, alfabetização, entre as quais citamos apenas alguns exemplos: “A leitura e os Parâmetros Curriculares Nacionais”, Perspectiva, “Princípios do sistema alfabético do português, Estudos Linguísticos, ambos publicados em 1999, este último antecipando os estudos que culminaram na publicação da mais importante e detalhada obra acerca do sistema alfabético do português brasileiro que se tem publicada até o momento, conforme já mencionado anteriormente. Surge, em 2005, o artigo “Revendo a categoria analfabeto funcional”, pela Crear Mundos/Espanha, texto precursor de um de seus mais importantes projetos de pesquisa, cujo objetivo é erradicar o analfabetismo no Brasil. Assim, suas discussões acerca da alfabetização vão sendo levadas para além do Brasil, o que já acontecia com todas as suas pesquisas na área da Linguística. Em 2007, publica, na Atos de Pesquisa em Educação, o artigo “Metas para a formação de professores”. Atentemos para isto: há mais de 10 anos, a Professora Leonor já falava em metas, focando sua atenção nos professores alfabetizadores! O artigo “Aprendizagem neuronal na alfabetização para as práticas sociais da leitura e escrita”, de 2009, pela Revista Intercâmbio, é uma produção que traz um novo tema e agrega área a ser contemplada nos estudos da alfabetização: a neurociência. No mesmo ano, escreve “Desafios a melhores resultados em alfabetização”, publicado na revista Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa. Em 2007, focou em metas; em 2009, falou em desafios: e são muitos efetivamente; por isso, merecem tão cuidadoso, transparente e polido olhar investigativo. Ainda em 2009, pela Confraria, oferece ao leitor o artigo “Avanço das neurociências para o ensino da leitura”. No ano seguinte, dá continuidade às produções sobre as contribuições da neurociência e publica, na Letras de Hoje, “Evidências a favor da reciclagem neuronal para a alfabetização”. O mesmo tema é reto23
mado em 2013 e, também na Letras de hoje, publica “Avanços das neurociências para a alfabetização e a leitura”. Em meio a isso, em 2012, é apresentada ao público sua tradução da obra de Stanislas Dehaene, Os neurônios da leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler, pela editora Penso, o que veio possibilitar o acesso a mais pessoas à parte do que há de atual acerca das pesquisas de ponta em alfabetização e leitura. Essa obra teve grande influência nas pesquisas da Professora Leonor. Suas mais recentes publicações na área em periódicos no exterior são “Applied psycholinguistics to early literacy development” (Scientia Paedagogica Experimentalis, v. 1-2, 2017) e “Neuron Recycling for Learning the Alphabetic Principles” (Folia Phoniatrica et Logopaedica (online e papel), v. 66, nº 1-2, 2014). Os estudos sobre métodos e alfabetização desenvolvidos pela Professora Leonor se manifestam de maneiras diversas: de aulas e cursos a orientações formais e informais de professores e estudantes de graduação, pós-graduação e colegas de trabalho. Mesmo já tendo alcançado significativo espaço de difusão de suas ideias e pesquisas, faz questão de escrever, em 2013, o artigo intitulado “A desmistificação do método global”, publicado na Letras de Hoje, a fim de esclarecer, ainda mais, o nefasto papel que esse(s) método(s) teve(tiveram) – e ainda tem(têm) – no ensino inicial da leitura. E, em 2015, contempla o leitor com o artigo “Pela melhoria da qualidade na alfabetização”, pela Estudos Legislativos. O capítulo “Psicolinguística e alfabetização”, do livro Psicolinguística, psicolinguísticas: uma introdução, cuja organização esteve sob a responsabilidade de Marcus Maia, em 2015, ratifica a aproximação que estamos evidenciando desde o início de sua trajetória, aqui relatada. Em 2017, publica o capítulo “Conversa com pais e professores sobre leitura”, no livro O que precisamos saber sobre a aprendizagem da leitura. Embora existam jazidas de cristais em outros locais do mundo, esse mineral, encontrado em rochas magmáticas, é localizado com maior frequência no Brasil. Há muitos pesquisadores, muitos cristais, mas a temos como o nosso cristal mais precioso. Seu diálogo com outros pesquisadores e associações como ALFAL, ISAPL, Cátedra Unesco para a Leitura e a Escritura na América Latina, ABRALIN, ANPOLL, Comitê de Linguagem 24
da Criança da Ialp, e a alimentação do maior banco de dados da linguagem do mundo, o CHILDES, fazem com que suas pesquisas dialoguem com o Brasil e com o mundo. A Professora Leonor Scliar-Cabral é uma pessoa que aproxima os conhecimentos da Linguística, da Psicolinguística e da Neurociência à escola e à formação dos professores, sendo nosso cristal com maior brilho. Por isso, merece a nossa homenagem, o nosso reconhecimento. Todos nós, em sua companhia, aprendemos que é preciso ser cristal, é preciso se manifestar de diferentes formas, é preciso deixar nossa contribuição. A fim de conhecermos um pouco de sua história, envolvimento e memórias, relativos ao universo em que a Linguística, a Psicolinguística, a Neurociência, a alfabetização e a formação de professores e pesquisadores se encontram, damos voz à Professora Leonor, entrevistando-a, na tarde do dia 23 de agosto de 2017, em uma casa de chá de Florianópolis. Optamos por organizar a entrevista de modo semiestruturado, com o propósito de permitir dar vazão aos desejos, às perspectivas, à criatividade e aos processos de memória de nossa entrevistada.
A voz da Professora Leonor Iremos apresentar a questão que motivou a conversa e, em seguida, a fala da entrevistada. Dessa forma, poderemos conhecer seu ponto de vista sobre cada tema. A entrevistadora 2 explica que a entrevista está centrada em questões diretamente relacionadas aos propósitos deste livro, “focando mais em leitura, alfabetização e no processo de formação de professores em que a senhora está envolvida já há bastante tempo”. Feito isso, apresenta a primeira questão cujo propósito foi incitar o resgate de memórias, a fim de que a entrevistada contasse parte “da sua trajetória no que diz respeito à aproximação à leitura e à alfabetização”. Leonor2: Minha trajetória começa há 50 anos. Eu estive rememorando o meu currículo Lattes, as minhas publicações, para ver onde eu poderia de2
A entrevista que consta deste texto foi submetida à revisão da Professora Leonor.
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tectar o início da minha trajetória que você acaba de mencionar. Eu encontro ali, no ano de 1967, por isso mencionei exatamente há 50 anos, a minha participação no Centro de Estudos da Língua Portuguesa da PUCRS, porque, nesse ano de 1967, embora eu ainda fosse aluna do curso de Letras, eu já estava, a convite do irmão Elvo Clemente, atuando nesse Centro. As nossas atividades consistiam em ministrar cursos para a formação de professores [...] e, depois, publicar também um material que fundamentava esses cursos, o chamado Boletim do Centro de Estudos da Língua Portuguesa da PUCRS, quando vou ter uma primeira publicação no volume I desse Boletim. Mas por que eu estava em condições de fazer isso? Porque se tratava, na verdade, de um trabalho de Linguística Aplicada ao ensino do português: como autodidata, eu já tinha começado as minhas leituras em Linguística antes de entrar no curso de Letras. Em 1967, participei do 1º Instituto Linguístico, patrocinado pela Associação de Linguística e Filologia da América Latina (ALFAL) e pelo Programa Interamericano de Ensino de Línguas (PILEI). Esse Instituto oferecia disciplinas em nível de pós-graduação. Na época, eram pouquíssimos os cursos de pós-graduação em Linguística na América Latina, inclusive no Brasil. [...] O Instituto Linguístico de Montevidéu funcionou no verão de 1966, durante dois meses, quando cursei quatro disciplinas, inclusive Introdução à Linguística, ministrada pelos Professores Luis Jorge Prieto, que havia sido expulso da Universidade de Córdoba, e pelo antropolinguista, Prof. Emeritus Norman A. McQuown. Com o Prof. Aryon Dall’Igna Rodrigues, também recentemente expulso, então, da Pós-graduação em Linguística da Universidade de Brasília, cursei Fonética e Fonologia. Lembrem bem: 1965. O golpe militar foi em 1964 e uma das primeiras medidas foi fechar algumas pós-graduações, entre as quais, a de Brasília. A disciplina de Fonética e Fonologia foi ministrada por dois professores, Aryon Dall’Igna Rodrigues e Luis Jorge Prieto. Tive grandes mestres...! Outra disciplina que realizei foi a de Lexicologia, proferida pelo Prof. José Pedro Rona. Eu assisti, ainda, como ouvinte, ao curso de Estrutura da Língua Portuguesa, ministrado pelo maior linguista brasileiro até hoje, Professor Mattoso Câmara Jr. Foi meu primeiro curso com ele. Depois, fiz mais outros. Como ouvinte, no 1º Instituto Linguístico da ALFAL e PILEI, pela primeira vez, tomei contato 26
com a Gramática Gerativa Transformacional. Quando retornei de Montevidéu, em 1966, comecei a escrever artigos semanais no Diário de Notícias, de Porto Alegre, para divulgar tais conhecimentos, tornando-me pioneira na difusão das teorias mais recentes da Linguística. Nessa condição, comecei a trabalhar com o irmão Elvo Clemente, titular de Língua Portuguesa na PUCRS, com quem iniciei, conforme já mencionado, minha trajetória pela Linguística Aplicada à formação de professores de português. Na ocasião, eu ainda não tinha formação em Psicolinguística. Entrevistadoras: E quando foi que a senhora migrou para a Psicolinguística? Leonor: Eu me formei na PUCRS, em 1968. Nessa condição, organizei a delegação gaúcha que foi ao 2º Instituto Linguístico da ALFAL, no México, realizado no Museu de Antropologia. No retorno desse Instituto, começamos a projetar a Pós-graduação em Linguística da PUCRS; primeiro, com um seminário de Linguística, cujas aulas eu ministrei e, logo em seguida, a implantação da pós-graduação em Linguística. Sou organizadora desse projeto, junto com o irmão Elvo Clemente. A Pós-graduação em Linguística da PUCRS começou oficialmente, embora ainda não credenciada, no ano de 1970. Em 1971, transferi-me com minha família para São Paulo. Fiz uma tentativa de realizar o mestrado, no Museu Nacional de Antropologia no Rio de Janeiro, chegando a ter aulas com Brian Head, Aryon Dall’Igna Rodrigues e Miriam Lemle, mas era muito complicado, morando eu, em São Paulo, deslocar-me todas as semanas para o Rio de Janeiro e ficar dois dias lá, concentrando as aulas em três disciplinas. Em 1972, matriculei-me na Pós-graduação em Linguística da USP: a área de concentração escolhida foi a Psicolinguística. Então, respondendo à sua pergunta, é nesse momento que eu enveredo para a Psicolinguística. A minha orientadora foi a Dra. Geraldina Porto Witter, que é comportamentalista, seguidora de Skinner, mas me deu toda a liberdade para eu seguir os referenciais chomskianos. Provinda da Linguística e da Linguística Aplicada, quando de minha tentativa, no Rio de Janeiro, havia escolhido a Sociolinguística e o Brian Head seria o meu orientador. Mas, como no Rio não deu certo, conforme expliquei, optei pela Psicolinguística, sendo a minha orientadora a Dra. Geraldina Witter: fui para o segmento da Psicolinguística que trata de aquisição da 27
linguagem, inclusive traduzi com a Dra. Witter o livro Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem de Paula Menyuk, cabendo à Dra. Witter o enfoque psicológico e a mim a parte referente à Linguística. No doutorado, não realizei disciplinas sobre leitura, processamento ou alfabetização. Entrei diretamente no doutorado e não fiz mestrado, porque, na ocasião, eu já tinha cursado oito disciplinas de pós-graduação, nos Institutos de Linguística, com eminentes professores. Além disso, já tinha várias obras publicadas, inclusive o livro Introdução à Linguística, que foi publicado em 1973. Nesse período todo, paralelamente ao Doutorado, trabalhei com Psicolinguística Experimental, com aquisição da linguagem, com distúrbios da comunicação, com tradução: adaptei ao português o teste de afasia, versão Alfa, de André Roch Lecours, que acabou sendo objeto de uma dissertação de mestrado de Ana Maria Soares Barbosa, publicada em 1981 (Adaptação ao português do Teste M1-Alpha de André Roch Lecours e respectivo protocolo). Na década de 90, delineiam-se mais precisamente minhas preocupações para com as semelhanças e diferenças entre o processamento da linguagem verbal oral e o da escrita. No meu curriculum vitae, encontra-se, na data de 1995, a publicação de um artigo na revista Letras de Hoje, “Da oralidade ao letramento: continuidades e descontinuidades”, produto de um projeto de pesquisa para o CNPq, onde havia começado, até chegar à posição de pesquisador A1. Nesse projeto, debato as diferenças entre a aquisição do sistema oral e a aprendizagem do sistema escrito, distinção esta que eu faço questão de pontuar, uma vez que ainda hoje, em muitos centros de educação, o nome da disciplina é aquisição da escrita. Sabemos que, nesse caso, não se trata de uma aquisição, conforme o conceito que se tem em Psicolinguística. Trata-se de uma aprendizagem. Em 1992, realizei meu semestre sabático. Entrevistadoras: A senhora estava na UFSC já? Leonor: Sim. Iniciei minhas atividades na UFSC, em agosto de 1981, concursada para titular, com um trabalho que resultou do meu pós-doutorado na Universidade de Montreal, sobre o sistema fonológico do português brasileiro, a partir da análise de sonogramas das consoantes e vogais, num corpus em que eu fui a própria informante. Trata-se de um trabalho no campo da fonética acústica. Em 1992, quase dez anos depois, saí para o 28
meu semestre sabático, com estágio no Instituto Arias Montano do Consejo Superior de Investigaciones Científicas, em Madri, quando desenvolvi pesquisas sobre o cancioneiro sefardita, do qual resultaram a primeira pesquisa de campo com as damas sefarditas no Brasil e muitas publicações, dentre as quais o livro Memórias de Sefarad (1994). Sobre o mesmo tema, durante meu semestre sabático, realizei outro estágio em Paris, sob a orientação da maior autoridade na língua judeu-espanhol, o Professor Haim Vidal Sephiha, recentemente falecido, e outro estágio na Universidade de Birmingham, sob a orientação de meu grande amigo. Prof. Malcolm Coulthard. Nesse estágio, na Universidade de Birmingham, realizei consultas bibliográficas exaustivas sobre processamento oral e escrito e tive contato com uma obra decisiva para a minha formação: Language by ear and by eye – The Relationships Between Speech and Reading (Mattingly; Kavanagh, 1972). Algumas obras foram catalisadoras no meu percurso. Essa é uma delas, porque resultou de um encontro de pesquisadores, exatamente, para focalizar a diferença entre o processamento dos enunciados orais e o dos escritos. Nesse encontro, foram proferidas frases que ficaram famosas, como, por exemplo, “Por que adquirir a fala é tão fácil e por que aprender a ler é tão difícil?”. Acontece que um dos autores, promotores, organizadores desse encontro foi o Prof. Alvin Liberman, que foi diretor do Haskins Labs, casado com Isabelle Liberman, uma das pioneiras na abordagem científica da alfabetização, tendo formulado a teoria dos princípios dos sistemas alfabéticos e os conceitos e pesquisas sobre consciência fonêmica e fonológica. Então, essa obra, como já referi, foi marcante para despertar em mim o interesse em desenvolver investigações nessa linha, resultando numa série de artigos em periódicos, em livros e apresentações em congressos. O projeto “Da oralidade ao letramento: continuidades e descontinuidades”, por exemplo, com início em 1994, ocorre um pouquinho depois da experiência que acabo de narrar. No 4º Congresso Internacional da ISAPL, realizado em Bologna e Cesena, em 1994, quando fui reeleita presidente da ISAPL, apresentei a versão em inglês, numa conferência plenária, From the aural-oral system to literacy: Continuities and discontinuities, a partir do projeto de pesquisa “Da oralidade ao letramento: continuidades e descontinuidades”. Posso assinalar aí o início da minha perspectiva de aplicar a Psicolinguística à alfabetização, o que venho desenvolvendo até o momento. 29
Entrevistadora 2: E em que momento entra essa dedicação à formação de professores alfabetizadores? Leonor: Bom, esse momento é até anterior, porque eu sempre acreditei na necessidade de formar o professor para que se obtenham bons resultados na aprendizagem. Sempre fui convidada para ministrar cursos principalmente para pedagogos, por exemplo, no estado de Santa Catarina, além daqueles que mencionei no início da minha carreira, em 1967, 50 anos atrás. Desde lá, eu sempre acreditei na importância de formar o professor em bases científicas mais sólidas. Sempre achei que à Linguística, aos linguistas, cabia essa responsabilidade de que os conhecimentos não ficassem confinados à academia, mas servissem para melhorar a qualidade do ensino, e isso obviamente passa pela formação dos professores. Essa convicção se reforçou quando ficou bem clara para mim a diferença entre aquisição da linguagem verbal oral e aprendizagem da linguagem verbal escrita e suas repercussões na formação do professor alfabetizador, porque aí, não só se trata de aprendizagem, como tem que ser sistemática. A aprendizagem do sistema alfabético não só não é uma aquisição espontânea, compulsória e natural, como também se defronta com dois pontos essenciais que vão de encontro a como os neurônios processam, por um lado, o sinal luminoso e, por outro, o sinal acústico da fala. Você quer algo mais difícil do que isso? Em consequência, o professor, que vai propiciar essa aprendizagem, não só tem que conhecer, dominar o que é a leitura, como ela se dá, como tem que conhecer profundamente o processo da aprendizagem para que o aluno se torne um leitor competente, fluente, que compreenda os textos que lê. Tudo que eu estou argumentando demonstra a necessidade de você fundamentar esse alfabetizador. Por quê? Os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2016 acusam mais do que qualquer libelo. Entrevistadora 2: E o que foi compreendido nesse processo de alfabetização? Leonor: Eu batalhei tanto para entendê-lo, que cheguei a uma formulação, aplicando um dos princípios da ciência, a Occam’s razor, isto é, a simplicidade, para definir a aprendizagem da alfabetização para a leitura: os neurônios da leitura têm que aprender a automatizar quais são, quantos são e como se combinam os traços invariantes que formam as letras e chegar até o reconhecimento e sua identificação. Segundo, têm que automatizar o 30
reconhecimento do grafema (no português brasileiro, formado por uma ou duas letras invariantes) e dos seus respectivos valores que não são senão os fonemas. Terceiro, tem que automatizar a atribuição do acento de intensidade e aprender a reconhecer rápida e fluentemente a palavra escrita, encadeando-a aos clíticos, para atribuição dos padrões de entoação. O reconhecimento da palavra permite chegar ao seu significado básico e, cruzando os conhecimentos prévios com as informações extraídas do texto, possibilita a construção do sentido pelo leitor, armazenado provisoriamente na memória de trabalho, amalgamando-o com os sentidos subsequentes, até chegar ao sentido global do texto. Ou seja, expus os passos da alfabetização para a leitura, cujo objetivo é formar um leitor fluente, que compreenda criticamente os textos que circulam na sociedade. Entrevistadora 2: E de que conhecimentos o alfabetizador precisa dispor para conseguir ensinar a ler? Refiro-me a esse processo inicial de aprendizagem da leitura. Entrevistadora 1: E da escrita também, porque a escola ainda insiste em colocar a escrita primeiro e a leitura depois. Entrevistadora 2: De que conhecimentos o alfabetizador precisa dispor para alfabetizar? Leonor: Essa tem sido a questão mais difícil de satisfazer e de contornar no Brasil, porque, na verdade, para chegar aos conhecimentos específicos que o professor alfabetizador necessita para se tornar um bom alfabetizador, ele teria que ter os conhecimentos e pré-requisitos que, desafortunadamente, os nossos alfabetizadores não têm. Em primeiro lugar, ele próprio teria que ser um leitor competente. Desculpem, mas eu devo confessar para vocês a seguinte realidade: se fossem aplicados testes nos nossos professores, esses testes que o INAF, Instituto Nacional do Alfabetismo Funcional, aplica nas populações (talvez entre os sujeitos das amostras deles se encontrem muitos professores alfabetizadores), chegaríamos ao resultado de uma porcentagem altíssima de analfabetos funcionais. Então, não adianta, já aí nós estamos sem os pré-requisitos básicos para chegar aos conhecimentos específicos que os alfabetizadores necessitam. Isso que a Otília acaba de mencionar: em primeiro lugar, ele tem que saber compreender as leituras. Se não souber, como é que eu vou formar um alfabetizador em neurociên31
cia aplicada à alfabetização, pedindo que ele leia um capítulo do livro Os Neurônios da Leitura, do Dehaene? Então, como primeira coisa, eu precisaria que ele fosse leitor, que ele saísse daqueles níveis mais baixos de alfabetismo. Eu precisaria colocá-lo, no mínimo, no nível antes do alfabetismo pleno, não é? Depois, ele também tem que saber escrever. Certo? Então, isso é a primeira coisa. Suponhamos que eu tenha, entre os alfabetizadores, professores que realmente compreendem o que leem e sabem escrever, mas não tiveram os conhecimentos necessários à formação de um alfabetizador, simplesmente porque nos cursos de Pedagogia e, mesmo nos cursos de Letras, não se ministram as disciplinas necessárias, específicas à formação do alfabetizador. Citemos um fato básico: o sistema escrito do português brasileiro é alfabético. Isso significa que, para a leitura, ele é baseado em que os grafemas se traduzem em fonemas, ou seja, o grafema vale um fonema, representa um fonema. O que é que decorre dessa constatação? Que, primeiro, o alfabetizador conheça o sistema fonológico do português brasileiro. Ele tem que saber que fonema não é som, apesar de os “teóricos” do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, PNAIC, colocarem que a criança tem que converter a letra em som quando lê. Não é isso que eles dizem lá? Eles dizem isso, ipsis litteris, os teóricos do PNAIC. Dizem textualmente: na leitura a criança converte uma letra em som. Então, o alfabetizador tem que conhecer o sistema fonológico do português brasileiro e saber o que é fonema para poder falar em consciência fonêmica... Está todo mundo enchendo a boca aí, “Vamos desenvolver a consciência fonológica, vamos desenvolver a consciência fonêmica!” Não sabem nem a diferença entre a consciência fonológica e a consciência fonêmica. Não sabem o que é fonema. Como é que vão desenvolver uma coisa que elas não sabem nem o que é? E, me diz, nós temos uma letra para cada som? Quer dizer que, quando tu dizes ‘carta’ [Leonor fala usando a aproximante retroflexa [ɻ]: [‘kaɻtɐ]], tu vais ter uma letra para aquele [ɻ]? Depois quando tu dizes ‘carta’ [fala empregando a vibrante múltipla uvular [ʀ]: [‘kaʀtɐ]], tu vais ter outra letra para aquele som? O outro diz ‘carta’ [fala usando a vibrante múltipla alveolar [r]: [‘kartɐ]], mais uma letra para aquele [r]. É isso? Nós temos uma letra para cada som? É o exemplo flagrante de que não entendem os princípios essenciais de como funciona um sistema alfabético. Não 32
sabem a diferença entre som e fonema. Não sabem que o que o grafema representa é o fonema. Entrevistadora 1: Posso te fazer uma pergunta aqui nesse meio? Tu não achas que isso se deve ao fato de que, na maioria das vezes, o professor da graduação, que trabalha com alfabetização, não é uma pessoa formada na área da Linguística e é uma pessoa formada na área só da Educação? [...] Leonor: Mas eu coloco o problema da seguinte maneira: se, entre os alfabetizadores, o que predomina, é aquele que vem da área da Educação, na Educação, no curso de alfabetização, tem que haver uma carga horária pesada para isso que eu estou dizendo, mas, como isso não é fácil de ensinar, qual é a defesa do pessoal que se recusa a isso? “Ah, nós somos contra as cartilhas matracas. A alfabetização tem que ser para compreender o texto”... Entrevistadora 1: É... houve uma desmetodização da alfabetização. Leonor: Acusam: “Isso aqui é cartilha matraca. Não trabalha com a significação.” Ora, é porque eles não sabem nem a definição de fonema, não é? Porque o que é fonema senão um feixe de traços fonéticos distintivos? Distintivos do quê, gente? Da significação básica das palavras! Em segundo lugar, o alfabetizador tem que conhecer os princípios do sistema alfabético do português brasileiro. Tem que saber que o valor de alguns grafemas independe do contexto, que outros valores dependem do contexto grafêmico: é o que está escrito que vai determinar o valor do grafema. E, pelo nosso sistema ser muito transparente para a leitura, apenas alguns grafemas são imprevisíveis, não é? Infelizmente, não se explora essa transparência. Então, isso é a segunda coisa que é preciso conhecer. Em terceiro lugar, o alfabetizador tem que conhecer quais os princípios, também, através dos quais, na escrita, se atribui o acento de intensidade. O grande codificador dos princípios do sistema alfabético do português foi Gonçalves Viana, no início do século XX, aplicando a Occam’s razor, certo? Já há mais de 100 anos, gente, isso... ele captou [Leonor faz uma brincadeira com a palavra “captar”, falando “capetô”] que as palavras mais frequentes da língua portuguesa escrita (agora nós estamos trabalhando com leitura, não é?) se escrevem [...] com “a”, “e”, “o”, seguidas ou não de “s”, e que, na oralidade, são paroxítonas, ou seja, recebem acento de intensidade maior na penúltima sílaba. Esse é o padrão! Logo, Viana aplicou aquela regra da linguística Otherwise 33
condition. Quer dizer, por ser a forma padrão a mais frequente, é a forma não marcada e não recebe nenhum acento gráfico; só nos demais contextos é que se usará o acento gráfico. Então, o que Viana orientou? O princípio da negativa, também utilizado na Linguística: o de que as palavras que se escrevem com “a”, “e”, “o”, seguidas ou não de “s”, sem acento gráfico, devem ser lidas como paroxítonas. Esse princípio é importantíssimo. O professor tem que conhecer isso para poder ensinar, certo? Como é que a criança, na leitura, vai atribuir o acento, sem o quê, não reconhece a palavra escrita? Em quarto lugar, o professor tem que conhecer, ainda, o que são os vocábulos átonos, certo? E como é que eles aparecem no sistema de escrita. Aí são conhecimentos de língua portuguesa que ele tem que ter, certo? E, sobretudo, tem que conhecer princípios de metodologia de ensino-aprendizagem na alfabetização. Primeira regra: não alfabetizar pelo nome das letras, que é uma calamidade na sala de aula. Ontem, na Pós-Graduação em Linguística, no curso de Tópicos em Psicolinguística, eu estava dando aquele exercício que eu gosto muito: “Os vasos preciosos” (modéstia à parte, eu acho genial aquele exercício). Trabalho com ele para mostrar a significação que têm os artigos definidos e indefinidos. Os indefinidos introduzem a informação nova e os definidos, a informação conhecida. Então, eu fui passando aluno por aluno, para eles me dizerem o que é que estava fazendo aquele tal artigo. E, no caso da informação já conhecida, qual o processo de substituição da informação velha usada: se era metonímia, metáfora, paráfrase etc. Chego a uma das alunas (aliás, todas as alunas são excelentes) – ocorria um artigo [u] que se escreve com “o”, seguido de um nome. Quando ela foi ler, eu disse: “Então, agora, você fale sobre o artigo” E ela disse: “O artigo [ɔ]…” [transcrição da vogal baixa posterior arredondada]. Ela leu o nome da letra. Mudou o significado, porque [ɔ] é uma interjeição! Não é mais artigo. Por quê? Porque foi alfabetizada pelo nome das letras. Aconteceu uma coisa semelhante, com um aluninho, lá de Natal [Leonor se refere a um estudante do 1º ano do ciclo da alfabetização de escola de Natal/RN onde estava sendo aplicado o Método Scliar de Alfabetização], que estava lendo um dos textos do Aventuras de Vivi, cujo título era: “Vovó Eva e Vivi”... Entrevistadora 2: Leu: “É Vivi… Vovó Eva é Vivi”... 34
Leonor: Gente! Ele leu como se fosse uma proposição! Leu como se “e” tivesse acento agudo porque na Educação Infantil decorou o nome das letras que estavam afixadas na parede e ainda não sabe a diferença que para ser lido como [ɛ] [vogal baixa anterior], o monossílabo, que representa esse fonema, em primeiro lugar, é tônico e, na escrita, vem assinalado por um acento gráfico agudo. Do contrário, ele tem que ser lido, na maior parte das variedades sociolinguísticas, como um vocábulo átono [i] [vogal alta anterior]. E nós, pelo Sistema Scliar de Alfabetização, ensinamos desde o início o valor dos grafemas que representam as vogais, pelo contexto grafêmico em que eles estão inseridos. Assim, se “e” estiver entre espaços, só pode ser a conjunção coordenativa, que é um vocábulo átono (clítico) e seu valor vai ser realizado como [i] (na maioria das variedades sociolinguísticas) ou como [e]. Vocês que trabalham com leitura, principalmente com compreensão, vejam como, se o aluno for alfabetizado pelo nome das letras, vai determinar que ele compreenda mal o que está lendo. Entrevistadora 1: Posso abrir parênteses, Leonor? Eu sou contra. Mas eu queria saber a tua opinião, de afixar as letras na educação infantil [...] Leonor: Mas, claro! Aí vai rezar como o Padre Nosso? Entrevistadora 1: As crianças vêm da educação infantil decorando as letras. Tanto foi que o meu filho escreveu “água” só com “h”, em vez de “g”?! Entrevistadora 2: O problema, na verdade, não é só porque elas estão afixadas. É por causa daquilo que se faz com o que está pendurado nas paredes, não é?! Entrevistadora 1: Mas porque as crianças não reconhecem aquilo como letra e, sim, como desenho, não é?! Leonor: Começa pelo seguinte, gente, o que que aquilo tem a ver com texto? Entrevistadora 1: Não tem nada. Olha, pode fazer uma visita a todas as escolas. Leonor: Errado, sob todos os pontos de vista. Entrevistadora 2: E, para piorar, eles colocam a letra enfeitada ainda, com cara, com laço... Entrevistadora 1: Eu acho muito importante discutir isso… Entrevistadora 2: As classes de alfabetização têm muito isso, professora. As classes de alfabetização e até de educação infantil têm sempre alfabeto 35
na parede, e isso é regra, não é? É característica marcada das salas de alfabetização, e as letras, normalmente, são enfeitadas, são decoradas… Leonor: Os traços invariantes é que devem ser o foco para o reconhecimento da letra e, com o que você está dizendo, até isso vai para o espaço! Mas o que é isso, gente? É falta de conhecimento... Entrevistadora 1: Porque a gente está discutindo os conhecimentos necessários ao professor, não é?! A ordem alfabética tem outra função. Entrevistadora 2: Ela só entra em cena quando o sujeito já está alfabetizado, nessa outra função. Leonor: Claro! Para alguma coisa serve! Por exemplo, para consultar o dicionário, para consultar uma agenda. Entrevistadora 2: Para dar sequência, não é?! Leonor: Mas essa sequência só funciona nessas situações que acabo de mencionar. Entrevistadora 2: E só funciona para sujeito já alfabetizado. Leonor: Lógico. Isso vem depois. Tu vais consultar um dicionário antes de estar alfabetizado? Entrevistadora 1: É, eu queria deixar isso bem claro na nossa entrevista. Leonor: Claro! Então, gente, voltando ao que vocês estavam perguntando, quais são os conhecimentos que o alfabetizador necessita, já mostrei alguns. Mas ele também tem que ter conhecimentos sobre processamento da leitura. Por quê? Tem que saber onde começa a leitura: é uma atividade que exige volição, vontade, intencionalidade. Começa aí. Você vai ler qualquer coisa, porque você quer aprender alguma coisa, quer saber se alguém lhe mandou uma informação lá pelo Whatsapp, não é? São exemplos de como começa a leitura. Primeiro porque, para a pessoa ler, ela precisa estar motivada. Ela não vai ler qualquer coisa, se não tiver interesse [...] Então, tem que haver motivação para a pessoa ler. Primeira coisa sobre processamento, certo? Entrevistadora 3: Professora! Me permite só colocar... Eu quero fazer uma pergunta e que a senhora responda no momento em que a senhora desejar nessa sua fala. Em que medida a senhora vê essa questão da motivação, permeando ou não tanto a informação do professor quanto o interesse dos alunos que chegam à escola hoje, sendo que isso é um fator importantíssimo para a aprendizagem? 36
Leonor: Não, a sua pergunta é mais do que oportuna porque é exatamente onde nós começamos as etapas da leitura. Sem motivação, nada acontece tanto no ensino, que é a posição do professor, quanto na criança que está se alfabetizando, que é a questão da aprendizagem. Sem motivação, não conseguimos nada. É essa a resposta que eu dou. Bem, mas a motivação está ligada à escolha do que se vai ler, que gera o momento da pré-leitura. Eu não vou falar sobre isso, porque vocês conhecem e estão trabalhando a fundo com tudo isso. Eu só quero dizer que, no caso da criança que está se alfabetizando, é evidente que ela tem que ter algum conhecimento prévio sobre o texto que vai ser lido. Vocês sabem que na minha proposta, no início da alfabetização, primeiro, ocorre a leitura interativa do texto entre professor e alunos e, depois, o professor lê todo o texto com expressividade. De qualquer maneira, esse texto tem que ter informação conhecida e nova, ele não pode conter só informação nova. Então, o professor tem que saber como vai lidar com isso. Aqueles conhecimentos que forem novos em grande quantidade devem ser, então, fornecidos por um trabalho de pré-leitura antes de começar a leitura interativa. Têm que ser fornecidos, porque a criança não tem aquele conhecimento. Às vezes, o esquema cognitivo é até ausente. Ela não tem nenhum conhecimento sobre aquilo. Por exemplo, há um texto, em Aventuras de Vivi, em que a personagem está fiando numa roca. Essa proposição, esse esquema, a criança não tem. Então, isso tem que ser dado, ministrado antes de entrar na leitura interativa. Bom, esse é o momento da pré-leitura e, depois, vocês sabem o que acontece na leitura propriamente dita, que é o fatiamento. Eu não vou entrar agora nesses detalhes, mas saliento que o professor tem que compreender o papel da memória de trabalho no processamento da leitura, porque está aí um dos argumentos decisivos para rejeitar a alfabetização pelo nome das letras, porque se você fizer a leitura por soletração, o tempo gasto no processamento é tão grande, que ao chegar ao final da soletração, a informação processada já foi para o espaço, já não está mais lá na memória de trabalho. Para que haja um processamento rápido, insistimos, os neurônios da leitura têm que automatizar o reconhecimento de quais, quantos e como se combinam os traços invariantes das letras, bem como automatizar o reconhecimento delas e dos grafemas, e de seus valores, para chegar ao reconhecimento rápido da pa37
lavra, tendo, também, automatizado a atribuição do acento de intensidade. Eu insisto muito nisso, pois a criança tem que ler rápida e fluentemente. Essa é outra coisa que o professor tem que saber: como ensinar ao aluno a ter fluência, então ele precisa saber o que é juntura externa fechada, que é para a criança aprender a ter fluência na leitura. As regras são poucas, sabem? O que vou dizer a seguir se refere aos grafemas realizados por letras, os quais representam fonemas, pois estamos tratando do contexto escrito para a leitura. Em virtude de que o fenômeno vai incidir quando você tem palavra terminada por consoante, seguida de palavra que inicia por vogal (como em “olhos azuis”), ou quando você tem um encontro de vogais átonas idênticas, tanto no final quanto no início dos vocábulos (como em “casa amarela”), ou quando você tem vocábulo terminado pela vogal a átona e o seguinte começa por vogal átona (como em “casa escura”). Então, são três situações que o professor precisa conhecer bem para poder ensinar para criança para que ela tenha a leitura fluente, condição para colocar um padrão de entoação. E o padrão de entoação não recai sobre palavras separadas por espaços, por silêncios, certo?... A frase tem que fluir para você colocar um padrão de entoação. Acresço, ainda, que o professor necessita conhecer quais os instrumentos anafóricos no PB escrito, para poder ensinar os alunos a recuperar as referências. Eu diria que esses seriam, para a alfabetização para a leitura, os conhecimentos fundamentais. Entrevistadora 3: Leonor! Acompanhando teu trabalho há mais de 20 anos, a gente percebe que a apropriação dos conhecimentos que as tuas pesquisas têm trazido, por parte da escola, tem sido muito, muito, muito lenta. Ou seja, questões importantes que tu tens apontado há décadas, me parece que agora, devagarinho, mas devagarinho, começam a adentrar a escola por meio, digamos assim, dos teus filhotes. Mas muito devagar. Como é que a professora percebe a questão, como é que a professora entende que poderíamos mudar esse quadro? Em partes, você respondeu antes apontando para a formação do professor, mas de que forma a gente poderia ser mais efetivo nisso? Isso é uma grande preocupação. Leonor: Bom, há uma diferença entre efetividade e urgência. O problema passa pela vontade política, e acontece que os detentores do poder das políticas da alfabetização não estão interessados e, mais do que isso, fazem 38
resistência à mudança. O obstáculo maior tem sido este. Os detentores do poder, na maior parte, seguem o construtivismo, e/ou, o que dá na mesma, os métodos globais de alfabetização. Então, na verdade, a maneira mais contundente de a gente provocar a mudança seria uma infiltração nos órgãos de poder que decidem sobre a política de alfabetização, as políticas públicas de alfabetização. Entrevistadora 2: Então, a nossa última questão é a respeito de currículo para os anos iniciais. A senhora tem alguma proposta de currículo? Leonor: Não. Eu ainda não examinei a nova proposta curricular unificada para todo o país e eu acho que, para eu me pronunciar sobre isso, eu teria que, primeiro, examiná-la em profundidade [Leonor se refere à Base Nacional Comum Curricular]. Porque eu acho que qualquer comentário deve ser em cima dessa proposta que vai viger, não é? Mas eu posso antecipar que, pelo menos para o desenvolvimento da alfabetização para a escrita, o eixo principal tem que ser trabalhar com planejamento. Ensinar a criança a planejar o que ela vai escrever, simultaneamente com o desenvolvimento da capacidade para resolver problemas. Eu não estou me referindo só a problemas de matemática, mas ao desenvolvimento do raciocínio lógico. Isso é uma disciplina essencial para aprendizagem da escrita de textos. Entrevistadora 1: [...] Eu acho que quando a gente pensou essa pergunta, Leonor, a gente pensou um pouco até no teu método. Não está muito claro para os professores por onde começar a alfabetizar. Tu entendes? Leonor: [...] Tem que se começar pela alfabetização para a leitura, é por onde começar. Na alfabetização para a leitura, a gente adota algumas estratégias, que estão bem claras no livro de roteiros, [Aqui, Leonor faz referência ao seu livro Sistema Scliar de Alfabetização – Roteiros para o professor: Módulo 13], que é o desenvolvimento da competência narrativa, a primeira atividade. Depois, o princípio da ordem na introdução das letras e grafemas. Aí, o princípio é de começar pelos mais fáceis, seguindo a ordem de complexidade crescente. A questão teórica poderia ser resolvida se, definido o eixo, se completasse dizendo: “aplicando os conhecimentos mais avançados das ciências que se ocupam da linguagem”, e aí elencar quais 3
SCLIAR-CABRAL, Leonor. Sistema Scliar de Alfabetização:Roteiros para o professor: Módulo 1. Florianópolis: Lili, 2017.
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são essas ciências. Pelo menos, nessa parte do referencial teórico, você estaria se posicionando em favor de uma fundamentação científica, embora, em cada uma dessas ciências, haja vários posicionamentos epistemológicos distintos. Mesmo se você mencionar a Neurociência, você vai ter a postura conexionista e a postura que é mais da neurociência da cultura. Se você falar na Linguística, você vai ter as correntes inatistas, vai ter a corrente da linguística cognitiva e assim por diante. O importante é assinalar que a base da alfabetização seja científica, com evidências empíricas atuais. Mas uma coisa é o currículo para formação do professor, outra coisa é o currículo da criança. [...] O currículo da criança... Ele não deve abranger só a alfabetização para a leitura, porque tem que abranger, no mínimo, o conhecimento matemático. Então, eu acho que o currículo para a criança tem que abranger a alfabetização para a leitura e para a produção textual, o letramento matemático inicial. [...]. Tem que abranger conhecimentos de ecologia já no primeiro ano. E as atividades que vão contribuir para os outros aspectos do desenvolvimento da criança, que envolvem estética e os aspectos emocionais, ou seja, música, teatro, dança, artes plásticas, poesia, literatura oral e educação física. E atividades de socialização. Entrevistadora 2: E por que que a senhora elegeu a Ecologia? Leonor: Por causa do momento atual, em que o futuro do planeta Terra está em jogo. A educação ecológica tem que começar desde o primeiro ano, em nível da criança, é claro! Se tu perguntas, assim, do ponto de vista do currículo, o que tem que integrar o currículo básico no primeiro ano, no mínimo, eu vejo esses itens, porque a gente visa à educação integral da criança. A alfabetização para a leitura não é um fim em si mesma, certo? Na alfabetização para a leitura, alguns daqueles objetivos que estão nas outras disciplinas já serão atendidos. [...] A alfabetização para a leitura é pré-requisito para o desenvolvimento da cognição. Vai desenvolver a percepção... E, também, no caso de ser uma alfabetização para a leitura que envolva textos como poesia, também vai desenvolver aqueles aspectos estéticos que, especificamente, você vai encontrar nas atividades de música, de dança, de teatro, de artes plásticas, de literatura. Tudo isso tem que integrar o currículo, certo? Entrevistadora 2: E os conhecimentos de História e Geografia não integrariam? 40
Leonor: [...] Eu acho que isso tu podes colocar no currículo em Ciências Sociais. História e Geografia são ciências sociais, mas não só elas, certo? [...] Algumas dessas disciplinas não envolvem só trabalhar com textos, envolvem principalmente atividades. Eu, por exemplo, recomendo, no primeiro ano, na disciplina de Ecologia, cultivar a horta na escola. Eu acho que deve haver uma disciplina de Ciências, no primeiro ano, que envolva atividades de como observar e como fazer experiências. Eu tinha indicado a socialização, porque, é claro que a socialização a criança vai começar a aprender fora da escola, quando ela vai brincar com seus amiguinhos. Aí começa a socialização, não é verdade? Vai aprender a conhecer os papéis, a respeitar o tempo e o espaço dos outros, a partilhar e a conquistar alvos em conjunto, a se identificar como pessoa e como grupo. Entrevistadoras: Professora, muito obrigada!
Palavras finais [...] Ao som inaugural de uma palavra imprimirás a letra como um selo. A parte evoca o todo e o elo lavra as frases e a história com que narras como D’us te exortou em seu apelo de fixares eternas as amarras. (Scliar-Cabral, 2009, p. 154)
Sentimo-nos honradas e agradecidas pela oportunidade de, mais uma vez, revisitar, analisar e refletir sobre a trajetória profissional da Professora Leonor, no que diz respeito ao seu precioso e raro trabalho de pesquisa e de formação de professores, com o firme propósito de aplicar a ciência Linguística, a Psicolinguística e, mais recentemente, a Neurociência, além de contribuir com ações concretas e bem fundamentadas, que possibilitam o movimento de erradicação do analfabetismo funcional no Brasil. É uma 4
Estes tercetos integram o soneto ALEF, o primeiro da obra Sagração do Alfabeto, de autoria de Leonor Scliar-Cabral, cujos sonetos foram traduzidos para o espanhol, o francês, o inglês e o hebraico, publicado em 2009, pela editora Scortecci, de São Paulo, finalista na categoria poesia, do Prêmio Jabuti.
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grande alegria, também, termos tido mais um belo e agradável momento de conversa descontraída e sensível, acompanhada de risadas e chás, por mais de 5 horas, durante a entrevista na qual ela nos apresentou sua perspectiva da própria história, contando detalhes que as lentes e a formalidade de um currículo não permitem capturar. Nosso robusto cristal não se apresenta nobre apenas no fazer ciência e no fazer docência. Apresenta-se nobre e brilhante também nos momentos em que as falas são despidas das vestimentas acadêmicas e docentes, nos momentos em que se desvelam detalhes e elementos ricos e profundos de sua própria existência, de seu trabalho e de sua relação conosco, suas ex-alunas. Conforme detalhado nas seções deste texto, é patente, visível e maciça a dedicação que a Professora Leonor vem empreendendo ao longo da vida para garantir a formação em leitura a todos os cidadãos brasileiros. E, hoje, aos 89 anos de idade, ela continua batalhando, pesquisando, se expondo, explorando e buscando respostas para o ensino inicial não apenas da leitura, mas também da escrita a nossas crianças. Seu último curso de pós-graduação, há pouco ministrado, revela a dedicação a este problema. E já está em andamento um novo curso de extensão a distância, de fôlego, ofertado aos alfabetizadores, em moldes semelhantes ao primeiro, ocorrido em 2017, desta vez, dedicado à aprendizagem da escrita. Analisar a trajetória da Professora Leonor exige bastante de quem se propõe fazê-lo. Afinal, ela não para um só instante. Demos mais uma espiadela em seu consistente currículo e – qual não foi a surpresa – lá estavam novas produções escritas, novas participações em eventos. A dinamicidade, o brilho e a vivacidade são tantos, que nos sentimos orgulhosas por poder compartilhar um pouco de tudo isso entre nós e com os leitores e, sobremaneira, nos sentimos compelidas a continuar o trabalho diário de pesquisa, de ensino e de extensão, com o propósito de fomentar e garantir o acesso à leitura e à escrita a todos/as os/as brasileiros/as. Vemos a perspectiva da Professora Leonor quanto ao papel da alfabetização muito bem representada na fala do Professor José Morais quando da introdução do seu livro Alfabetizar para a democracia (2014, p. 105): “A ação de alfabetizar, de fazer de todos os seres humanos leitores e letrados, 5
MORAIS, José. Alfabetizar para a democracia. Porto Alegre: Penso, 2014.
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não é concebida apenas como um instrumento para a democracia, mas como uma afirmação e uma manifestação de democracia real”. E, ainda, sonhando o sonho de Morais (id. ibid. p. 138-139): Sonhei! Que um governo no Brasil - não sei que governo, nem que Brasil criou e aplicou o PRIME: [...] 2. Todas as famílias com filhos receberão, cada uma, 500 livros infantis, juvenis e para adultos, de variados gêneros e domínios, e serão visitadas periodicamente por um especialista em leitura e literacia. [...] 9. Todas as autoridades municipais, estaduais e federais no setor da educação e, em particular, da alfabetização realizarão anualmente seminários com especialistas nacionais e estrangeiros para atualizar os seus conhecimentos com base nas evidências científicas mais recentes. 10. Todas as crianças saberão ler e escrever com autonomia no fim do 1º ano, de maneira correta e altamente fluente no 4º ano, e continuarão a ler com gosto e vontade para aumentar os seus conhecimentos, sentir a beleza e o sentido profundo dos textos literários, sendo capazes de ter espírito crítico e criatividade. Se formos muitos a sonhar, talvez tudo isso deixe de ser um sonho.
Para o nosso cristal de maior brilho, há muito já deixou de ser só sonho. Todo o seu esforço e empenho reais na formação de professores não apenas no sul e sudeste brasileiro, mas também no Nordeste, uma das regiões onde se situam as piores taxas de alfabetismo do Brasil, vêm surtindo efeitos. E, quiçá, em um futuro não distante, estejamos diante da realização do sonho de que todas as crianças, ainda enquanto crianças, leiam e escrevam com autonomia até o final do primeiro ano do ensino fundamental. E que Vivi, com suas aventuras, esteja cada vez mais presente nessa empreitada.
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Parte II
Letramento e alfabetização para a democracia
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2 Educar todos os seres humanos para serem letrados, capazes de pensamento livre, crítico e criativo José Morais Régine Kolinsky
Apresentação Redigido em homenagem à Professora Leonor Scliar-Cabral, este capítulo trata da questão da alfabetização e da literacia, atribuindo a esta um conteúdo que a insere numa perspectiva histórica e sociopolítica. Analisamos e discutimos dados de instituições internacionais, UNESCO e OCDE, que documentam o estado lamentável da alfabetização e da literacia no Brasil relativamente aos adultos e aos adolescentes, e que mostram que essa situação, produto de sucessivas gerações oligárquicas, tem sido e continua a ser o maior obstáculo ao desenvolvimento democrático da sociedade brasileira. Descrevemos sucintamente uma aplicação bem-sucedida de um Curso de alfabetização de adultos, realizado em Portugal e elaborado com base no conhecimento científico, a um pequeno grupo de pessoas totalmente analfabetas. Propomos que este tipo de programa de alfabetização, na condição de se formar corretamente o necessário contingente de alfabetizadores, seja utilizado em larga escala tanto para adultos como jovens. Enfim, comentamos positivamente a possibilidade de uma inflexão importante na maneira como as instituições públicas têm tratado os objetivos e os conteúdos curriculares do ensino fundamental no Brasil e acrescentamos sugestões para um desenvolvimento mais acelerado e consistente numa perspectiva democrática. 45
Introdução Foi em 1986 que pela primeira vez chegamos ao Brasil, com um destino marcado: a casa da Leonor. Para nós, já então, era simplesmente Leonor. Um de nós (J. M.) tinha-a conhecido quatro anos antes numa soirée de festa em casa de nosso mestre Paul Bertelson. Tinha ela vindo à Bélgica para participar num grande evento de Linguística. Estava linda e elegantíssima. Na realidade, como sempre fomos confirmando há já mais de 30 anos, a língua portuguesa manda-nos dizer que ela não estava, ela é. Quando Leonor nos convidou para sua casa, já tínhamos conversado muito sobre tanta coisa (a ciência, a linguagem, a escrita, o Brasil, a vida, a amizade...) e até preparado o primeiro artigo fruto da nossa colaboração, que seria publicado no ano seguinte, no Quarterly Journal of Experimental Psychology (Morais; Castro; Scliar-Cabral; Kolinsky; Content, 1987). Também já tínhamos, das nossas adolescências, e independentemente um do outro, uma grande atração pelo Brasil, sobretudo transmitida pelos seus grandes escritores. Mas foi Leonor quem nos pôs no caminho de amá-lo tão profundamente e de virmos a ser (não foi preciso muito tempo) brasileiros de coração. Se a nossa história não tivesse sido esta, este artigo não teria existido. Porque Leonor, com sua lucidez e conhecimento, acabou também por ser nossa mestra e por fortalecer nossa vontade de pesquisar sobre os processos mentais da literacia e de considerar tanto esta como aqueles no seu contexto histórico, social e político. E porque aquilo que hoje pensamos sobre essas questões, sem ser necessariamente coincidente com o que delas pensa Leonor, provavelmente não teria tomado esta configuração se não tivéssemos interagido tanto. E a ambição, que é a nossa atualmente, de contribuirmos para mostrar que é possível alfabetizar adultos iletrados e fazer com que eles se tornem cidadãos capazes de participar no debate democrático, não teria provavelmente uma base suficientemente sólida se não tivéssemos tido o exemplo da grande educadora que, além de cientista, tem sido Leonor, pela voz, pela escrita e, recentemente também, pela via virtual. Neste artigo, abordaremos sucessivamente os seguintes tópicos: O que é ou deve ser literacia. O estado da literacia no Brasil. O que é alfabetizar. 46
Como alfabetizar adultos totalmente iletrados. O que se está fazendo e o que se deveria fazer pela literacia no Brasil.
O que é ou deve ser literacia A literacia, do inglês literacy, palavra oriunda do latim, já introduzida nos países de língua francesa e extensivamente utilizada também em Portugal, é basicamente as habilidades de ler e de escrever, qualquer que seja o sistema de escrita. Mas só basicamente. De fato, para nós, ela é muito mais do que isso: é a competência cognitiva que resulta direta ou indiretamente da aquisição daquelas habilidades. Isso porque o letrado não difere do iletrado do seu tempo apenas por saber ler e escrever. Difere também por todo o impacto que o uso da leitura e da escrita teve no seu sistema cognitivo, no seu conhecimento e, por conseguinte, nas suas capacidades de interpretação das situações, de decisão apropriada e de planificação das suas ações (Kolinsky, 2015). Dissemos: comparado com o iletrado do seu tempo, que já foi e continua a ser influenciado pelo fato de viver, na grande maioria dos casos, em sociedade letrada. Esse iletrado não é, portanto, um puro iletrado no seu funcionamento mental, embora não saiba ler e escrever, e nós temos uma melhor estimação dos efeitos diretos e indiretos das habilidades de leitura e escrita quando contrastamos o letrado de hoje com o iletrado das sociedades pré-letradas (Morais, 2017). Além disso, há uma diferença importante entre a literacia que é, e a literacia que deveria ser. Para entendermos essa diferença, temos de considerar que, enquanto capacidade, a literacia, para além de variar entre os indivíduos pelo seu grau de eficiência e pelo seu objeto, varia também (1) pela profundidade e qualidade dos processos mentais utilizados, e (2) pela originalidade dos seus produtos. Toda a literacia é produtiva, sendo o letrado simplesmente produtivo aquele que, através da leitura, adquire informação e conhecimento já disponíveis e, através da escrita, os comunica a outrem; isto é, o letrado produtivo pode não ser muito mais do que um reprodutor (sem desmerecimento, porque a reprodução do existente é socialmente importante). Parece-nos desejável, no entanto, que os letrados não sejam apenas reprodutivos, mas também capazes de analisar a infor47
mação recebida (escrita e oral) de maneira crítica, e de fazer conhecer a sua análise e avaliação crítica de maneira racional e solidamente argumentada. Esta é a literacia que chamamos de crítica e argumentativa, e que pensamos deveria estar ao alcance de todos os membros da espécie Sapiens, obviamente excetuando os casos de distúrbio cognitivo. A sociedade ela mesma só é realmente democrática quando todos os seus membros são capazes de analisar criticamente os projetos e as propostas relativos à sua governança. Enfim, há a literacia criativa, que utiliza não só o pensamento racional, mas também outras capacidades cognitivas tais como a intuição, a imaginação e processos analógicos, projetivos e integradores, que os autores de língua inglesa designam habitualmente por blending (Morais, 2016). Assim, é nossa proposta, aberta naturalmente à crítica dos nossos leitores: distinguir entre a literacia que é simplesmente produtiva e dois outros tipos de literacia produtiva, a crítica e argumentativa, e a outra criativa. Esta última distinção referindo-se muito mais ao tipo de atividade letrada do que ao sujeito de literacia, posto que é possível muitos – e por que não a grande maioria? – serem sobretudo críticos-argumentativos quando seja apropriado (por exemplo na discussão de leis), mas também criativos com outros fins (por exemplo na literacia científica e na literacia literária, cf. Morais; Kolinsky, 2016).
O estado da literacia no Brasil Segundo os últimos dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2016), os analfabetos eram cerca de 9% da população adulta (a partir de 15 anos), ou seja, mais de 13 milhões. Note-se que, dada a obrigação escolar, a proporção de analfabetos na faixa etária de 15 a 24 anos era bem menor: cerca de 1%, ou seja, 431 mil. Porém, as perspectivas são inquietantes, visto que as crianças em idade de frequentar a escola primária mas não escolarizadas eram, em 2014, mais de 790 mil. Em 2014, na população de 15 anos ou mais, os índices de escolarização (obviamente não exatamente coincidentes com os de alfabetização) são desoladores: 11,7% eram não escolarizados e 11,4% não tinham completado o 48
ensino primário. Além disso, 13,8% tinham-se ficado pelo ciclo secundário inferior. No topo da escala, entre os 42,5% que completaram o ensino secundário, 29,4% não foram além dele. Entre os 13,1% que tiveram educação superior, 8,5% só completaram o ciclo curto. Assim, o ensino superior, com ou sem doutorado, só foi completado por 4,5% dos brasileiros adultos. Se considerarmos mais informativo o número médio de anos de escolarização, ele mantém-se baixo: 7,4 em 2014 (aumentou desde 2004 – era de 6,2 – mas apenas três décimos desde 2011). Em todo o caso, se compararmos com outros países de grande população (10,2 na África do Sul, 11,5 na Federação da Rússia), obviamente está muito longe de alcançar os países do pódio como a Alemanha (14) e a Suíça (13,9). Quais as perspectivas relativamente aos adultos analfabetos? Segundo o LAMP, Programa de Avaliação e Acompanhamento da Alfabetização, também da UNESCO, em 2009, só 3,8% da população adulta analfabeta, no Brasil, participava de programas de alfabetização, um pouco acima do Paraguai (3,4%) e do Uruguai (2,9%), mas claramente inferior a outros países da América latina: República Dominicana (6,8%), Equador (11,5%), Colômbia (14,4%) e El Salvador (16,9%). Será que a política educacional brasileira tem descurado o adulto analfabeto para poder ocupar-se melhor das crianças e dos jovens? Segundo a UNESCO, se compararmos a percentagem de obtenção do diploma da educação primária no Brasil com a dos outros países da América Latina, não parece ser o caso. Assim, em 2014, ela foi de 80% no Brasil, certamente melhor do que na Guatemala (71%) e na Nicarágua (72%), mas um pouco abaixo da República Dominicana e da Colômbia (92%), assim como do Peru (93%), mas muito abaixo da Argentina, do Equador, do Uruguai (97%) e do Chile (98%). Estes níveis de educação são globais, no sentido de que não distinguem as diferentes formas de educação, e portanto de literacia, definidas segundo o seu domínio ou objeto de estudo. Nos níveis de ensino mais baixos, dá-se, sobretudo, relevo à compreensão em leitura e à matemática. Os dados revelados pela UNESCO põem em evidência um desnivelamento muito grande entre estas duas formas de literacia. Assim, no que respeita ao período 2009-2014, no segundo e no terceiro ano da escola primária, 49
o nível mínimo de proficiência foi alcançado por 89% das crianças em leitura, mas por apenas 60% em matemática. Do mesmo modo, no fim do ciclo secundário inferior, essas percentagens foram respectivamente de 96% e 65%. Sem que possamos afirmá-lo, avançamos uma hipótese plausível, que combina duas ideias interdependentes: à exigência de compreensão textual que pode ser relativamente vaga contrapõe-se a maior exigência de rigor na solução dos problemas aritméticos, algébricos e geométricos; e aos processos de interpretação de textos abertos ao pensamento indutivo e analógico contrapõem-se na matemática os processos de raciocínio lógico e operacional. É portanto provável que um ensino de medíocre qualidade no plano cognitivo e conceitual crie mais dificuldades em matemática do que em leitura. Os dados indicados acima constituem médias nacionais e, por conseguinte, não tomam em consideração as grandes diferenças socioeconômicas no seio de cada país. Acontece que a UNESCO faz comparações entre países desenvolvidos e não desenvolvidos, assim como em função do sexo dos alunos, mas só raramente entre classes sociais, o que é lamentável. No entanto, ela diz-nos, ainda que, sem analisar as suas consequências, que 75% da população do Brasil, que em 2015 era de mais de 209 milhões, vive com menos de 1,9$ US por dia. O impacto deste fato em todo o desenvolvimento, físico, de saúde e mental das crianças pobres brasileiras não pode deixar de ser enorme. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por seu lado, tem examinado, a cada três anos, o nível de competência em leitura, em matemática e em ciência dos adolescentes escolarizados de 15 anos, o que para muitos países, e entre eles o Brasil, significa sobrestimar a competência real da população desta idade. Infelizmente, o PISA (Program for International Student Assessment) não avalia a escrita, nem a ortografia lexical nem a produção de textos, e no que respeita à leitura avalia somente a compreensão de textos, ignorando a fluência e o reconhecimento das palavras escritas. Ora, essas informações seriam muito importantes porque nos permitiriam ter uma ideia de como será a literacia adulta no futuro próximo. O Brasil tem ficado entre os países com os piores resultados tanto globalmente como na compreensão de textos (ver OECD, 2016). Esta é avalia50
da segundo 7 níveis, de 1a e 1b (os mínimos) até 6 (o máximo). E nós temos proposto interpretar estes níveis em função da nossa distinção entre não letrado, letrado produtivo e letrado crítico e argumentativo (Morais, 2017). Quem não é hábil na leitura e na escrita, ou seja, quem não reconhece as palavras escritas (na leitura) nem acede à sua ortografia (na escrita) de maneira automática, mas só o faz de maneira sequencial, controlada e, portanto, lenta, pode ser alfabetizado mas não é letrado. Portanto, quem no teste de leitura do PISA não lê pelo menos ao nível 3 (para o qual é suficiente “integrar várias partes de um texto de maneira a identificar a ideia principal, compreender uma relação ou construir o significado de uma palavra ou frase”) não pode ser letrado. Seriam necessários outros testes, de leitura de palavras, para verificar se a leitura é automática, assim como seriam necessários testes de escrita. Na falta deles, atribuir o estatuto de letrado produtivo ao leitor de nível 3 no PISA conduz provavelmente a um grande número de falsas atribuições, mas neste caso parece-nos mais correto pecar por falsa atribuição do que por omissão. A média do PISA referente a 2015 para nível 3 ou superior no conjunto dos países da OCDE é de 58%, o que implica que neles há 42% de não letrados. Para o Brasil, apenas 24% são letrados (dos quais 16% de leitores, simplesmente produtivos), e 76% não o são. A exigência para que o leitor atinja pelo menos o nível 4 é que ele seja capaz de “localizar e organizar vários pedaços de informação contida no texto, [...] interpretar o significado de nuances de linguagem numa seção do texto tendo em conta o texto global [...] compreender e aplicar categorias num contexto não familiar, (e utilizando) conhecimento formal ou público fazer hipóteses sobre um texto ou avaliá-lo criticamente” (OECD, 2016, p. 162), tradução dos autores a partir da edição em inglês). Podemos, portanto (embora lamentando que não haja informação sobre a escrita), considerar que tal leitor não só é produtivo, é também crítico (e talvez argumentativo). Os leitores (e por hipótese, letrados) críticos no conjunto dos países da OCDE são, em média, 30%. No Brasil, são apenas 8%. Os relatórios PISA também têm examinado a evolução da distribuição segundo os níveis desde 2000. Em muitos países da OCDE tem havido estabilidade ou um pequeno aumento dos muito bons leitores (níveis 5 e 51
6) mas, em contrapartida, um aumento também dos muito maus leitores (abaixo do nível 2), cujo futuro escolar e profissional seria, segundo o PISA, severamente comprometido. No Brasil, entre 2000 e 2012, houve estabilidade na proporção de alunos nos níveis muito altos (são apenas cerca de 2%) e uma pequena diminuição na proporção de alunos abaixo do nível 2 (de 53% para 50%). O que deve sobretudo chamar a atenção é o fato de metade dos adolescentes de 15 anos escolarizados no Brasil não ter futuro na sociedade para que se caminha. Importa acrescentar que a tendência mais recente no mundo é para um aumento das desigualdades em literacia, ou pelo menos em capacidade de leitura. Entre os dois últimos inquéritos, de 2012 a 2015, o padrão de desigualdade não diminuiu, antes pelo contrário: a percentagem abaixo do nível 2 voltou a subir (no Brasil, para 52%), ao passo que a dos leitores críticos (nível 4 e acima), que eram apenas 6%, subiu para 8%. Aquelas e aqueles que estão a ler este texto fazem provavelmente parte dos leitores críticos (poderão, portanto, achar que há falhas na nossa análise e argumentação), mas por viverem sobretudo no meio de seus iguais em literacia e de tantos outros leitores produtivos, terão tendência a subestimar a enorme massa de leitores não críticos ou sequer simplesmente produtivos. Pensem que, se no Brasil os simplesmente produtivos e os críticos são 16% e 8% (total: 24%), no Canadá são 30% e 40% (70%), na Noruega 28% e 38% (66%), e até em Portugal são 31% e 30% (61%), respectivamente. Em resumo, a projeção para o futuro próximo do Brasil é que, no quadro das instituições atuais, o debate político e as decisões sobre as questões importantes do País continuarão a estar nas mãos (ou nas mentes letradas) de uma oligoliteracia reduzida a menos de 10% da população adulta. Só uma revolução educacional poderá, num prazo um pouco mais longo, fazer o Brasil caminhar no sentido de uma democracia letrada. E entre os “relativamente’ poucos leitores críticos de que o Brasil dispõe, aqueles que estão conscientes desta situação e não a aceitam, têm de assumir essa responsabilidade. Aumentar e generalizar a literacia depende, em primeiro lugar, de alfabetizar. Alfabetizar depende de saber como se deve alfabetizar, o que implica formar professores que compreendam o que é a alfabetização e que esta não 52
é mais do que o patamar da literacia, e que a literacia serve para reproduzir e criar conhecimento, cultura e arte. A profissão de professor tem perdido prestígio assustadoramente, o seu estatuto social é quase nulo, só o professor universitário ainda é reconhecido, mas pode não ser por muito mais tempo. O poder político sabe que não há uma educação, mas três, a dos ricos, a dos pobres, e a dos que gostariam de ser ricos mas têm pânico de vir a ser pobres (Morais, 2017). Cada uma com suas gradações internas. Em todos os países, mas com grandes diferenças entre eles, a discriminação começa antes mesmo do nascimento, porque a pobreza tem influência nas condições de saúde e de alimentação da futura mãe e, através desta, do feto (ver Morais, 2017). Nos países em que a discriminação precoce é menor, o poder político pseudodemocrático encontra suas maneiras de garantir uma seleção mais tardia das elites, de maneira a favorecer as classes ricas e assegurar a manutenção do seu domínio. Assim, em França, as Grandes Écoles, que recebem do Estado três vezes mais dinheiro do que as universidades públicas e formam a elite da nação, só admitem alunos depois do terceiro ano universitário e selecionam-nos na base de exames orais e escritos altamente competitivos. E nos USA é nas mais prestigiadas universidades privadas, essas de caríssima frequentação, como Harvard, que se concentram muitos dos futuros membros da classe financeira e dirigente (ver Morais, 2016, capítulo 2). No Brasil os mecanismos de seleção apresentam um padrão com tendência oposta aos dos da França e dos USA, posto que nele é ao nível pré-universitário que o ensino de qualidade é proibitivo para as classes populares e média-baixa, e, sádica ironia, deixa de sê-lo ao nível universitário. Por que o seria neste se, entretanto, a grande ceifa já ocorreu? Para que o ensino pré-universitário e em particular o primário seja de qualidade, é necessário formar bem grandes contingentes de professores (bem, quer dizer fornecendo-lhes e levando-os a examinar criticamente e a integrar o conhecimento científico mais recente nos domínios em que vão ensinar). Segundo a UNESCO, para se atingirem os objetivos da educação em 2030 (já falta pouco!), serão necessários no mundo inteiro 24,4 milhões de novos professores, isto só no ensino primário. Não será exagerado estimar que no Brasil deverão ser formados imediatamente algumas centenas de milhares de professores, muitos deles alfabetizadores. Nenhum governo 53
o fará! Compete então à parte consciente dos 24% de leitores produtivos do país tomar a alfabetização nas suas “mãos” letradas. Para isso, entendamo-nos primeiro sobre o que é a alfabetização.
O que é alfabetizar Para saber o que é a alfabetização, é preciso começar por compreender o que é o alfabeto. Talvez ninguém no Brasil tenha explicado melhor o que é o alfabeto, e o que é a sua concretização (o chamado código ortográfico) no Português brasileiro, do que a Professora Leonor Scliar-Cabral (Scliar-Cabral, 2003). O alfabeto é o sistema de escrita que representa fonemas. O que são fonemas? Comecemos por dizer o que não são. Não são sons. Por exemplo, em “ba” há dois fonemas mas só há um som, como se pode compreender abrindo e fechando a boca para se dizer “ba”. Quando dizemos “dá cá”, não emitimos quatro sons, apenas dois. Portanto, as letras do alfabeto servem para exprimir pela escrita outra coisa. Serão unidades dentro dos sons? Temos essa impressão, mas ela é falsa. Na realidade, só quem aprendeu uma escrita alfabética tem essa impressão. O alfabeto não foi inventado para representar unidades, pelo contrário, foi porque inventamos o alfabeto há quase três mil anos que começamos a ter a impressão de que no som “ba” há duas unidades. O ser humano tem dessas ingenuidades: se utilizo duas letras, é porque há duas unidades no som. Na realidade – mas isso só começou a ser entendido já perto do fim do século XIX e comprovado experimentalmente na segunda metade do século XX – os fonemas não são unidades, mas sim propriedades abstratas da dinâmica articulatória da fala (Morais, 2016). Elas são abstratas porque não são isoláveis fisicamente. Elas manifestam-se nas relações entre os articuladores. O alfabetizador alfabetiza melhor, se tiver entendido o que o alfabeto representa, porque assim compreenderá melhor por que razão os alunos têm dificuldade nesse primeiro obstáculo – como fazer corresponder a escrita alfabética à linguagem oral? – e saberá encontrar a melhor maneira de fazê-los superar tal dificuldade. Claro que não é explicando o que são “propriedades abstratas da dinâmica articulatória da fala”, mas adaptando a cada aluno as várias maneiras possíveis de fazer entender a relação com a fala. 54
O princípio alfabético – expressão sábia para designar outra expressão sábia, a de relação grafema-fonema – só pode ser entendido (ou melhor, intuído) já no contexto de uma atividade, a mais elementar possível, de leitura e escrita. Neste ponto há uma divergência entre a Professora Scliar-Cabral (Scliar-Cabral, 2013) e nós (Morais, 2013), porque, contrariamente a ela, entendemos que a alfabetização deve pôr sempre em relação leitura e escrita, por razões tanto teóricas como ideológicas e porque há muitos estudos experimentais que apoiam esta ideia – mas esta divergência não nos impede de avançar para o que segue, em que a concordância é total ou quase. Por que só no contexto de leitura (e, melhor, também de escrita)? Porque o princípio alfabético não tem sentido fora dessas atividades. Os seres humanos falam e percebem a fala em referência às tais relações articulatórias (fonemas), mas provavelmente nunca teriam formulado o conceito de fonema sem a tecnologia da escrita alfabética. É assim: amiúde, as necessidades criam problemas, os problemas conduzem a soluções práticas (tecnologias), e estas depois são conceptualizadas e tornam-se objeto de estudos científicos. Voltando às atividades elementares de leitura e escrita, elas destinam-se à compreensão (ou intuição) do princípio alfabético, mas fazem-se desde logo no quadro da utilização do código ortográfico de uma língua particular. Não tem outra maneira, porque o princípio é abstrato, mas o código é concreto, e portanto o princípio não existe sem o código. Os códigos ortográficos podem ser muito transparentes (para o finlandês é praticamente biunívoco, tal fonema corresponde a tal grafema e vice-versa), muito opacos (é o caso do inglês) ou situarem-se entre estes dois extremos, e o do português brasileiro (bem menos o do português europeu) é relativamente transparente, sobretudo na leitura. No caso do português, a intuição do princípio alfabético pode fazer-se em algumas horas, mas tem de ser consolidada ao longo do tempo (isto é, dar lugar à nossa falsa impressão de que há na fala unidades que correspondem aos fonemas), enquanto a aquisição do código ortográfico (em parte explicitamente ensinado e aprendido, e em parte implicitamente, isto é, sem consciência precisa) pode levar perto de um ano. Entendemos por aquisição do código não um saber verbal (só linguistas o conhecem intei55
ramente dessa maneira), mas a aprendizagem da decodificação e recodificação, quer no sentido da leitura, quer da escrita, em função das regras do código, inicialmente na base das “unidades” elementares (grafema-fonema) e depois de unidades fonográficas complexas (partes de sílaba como “br-“, sílaba, ou para além da sílaba: “-mente, etc.). A alfabetização chega a seu termo quando o aluno é capaz de ler e escrever com autonomia (isto é, tudo e por ele mesmo, sem necessidade de pedir ajuda a alguém), embora o faça ainda de maneira sequencial e consciente, ou seja, controlada. O processo de literacização continua através da prática acompanhada da leitura e escrita. A leitura e a escrita de textos devem começar logo que possível, isto é, quando o léxico oral e o léxico escrito contidos no texto ou a converter em texto já são conhecidos pelo aluno em pelo menos 90% deles. No entanto, antes disso, quer com as crianças quer com os adultos, é de todo o interesse ler para os alfabetizandos (textos de conteúdos e formas narrativas diferentes em cada caso, obviamente) e suscitar reflexões individuais e coletivas quer sobre aspectos da relação entre as versões escritas e oral, quer sobre aspectos estruturais de cada uma, quer ainda – o que é muito importante – sobre o conteúdo, que podem conduzir a debates para exercício do raciocínio lógico, do pensamento crítico e de discussões sobre questões axiológicas, em particular éticas (Morais, 2016; Gabriel; Morais, 2017).
Como alfabetizar adultos totalmente iletrados Há duas excelentes razões para alfabetizar todos os adultos que, por discriminação social, não foram alfabetizados na infância. A primeira é que eles merecem que lhes seja proporcionado aquilo a que têm direito e que lhes foi recusado, e que eles não estavam em condições de reclamar, afetando assim grandemente as suas vidas. A segunda – que responde à iníqua proposta de deixá-los morrer e consagrar o dinheiro poupado à educação das crianças – é que a educação começa na família e que a alfabetização dos pais é o caminho mais curto e mais propício para a alfabetização dos filhos. De fato, os estudos científicos mostram que o meio sociocultural e socioeconômico pobre em que as crianças se desenvolvem desde o nascimento, e 56
até antes, impede-as de beneficiar-se das características idiossincráticas do seu patrimônio genético, contrariamente ao que acontece com as crianças de meio sociocultural elevado (cf. Morais, 2016). Sabemos que os adultos conservam a plasticidade cerebral necessária para serem alfabetizados. Nos nossos estudos, temos testado ex-iletrados, que aprenderam a ler já na idade adulta (Dehaene; Pegado; Braga; Ventura; Nunes; Jobert; Dahaene-Lambertz; Kolinsky; Morais; Cohen, 2010; Kolinsky; Morais; Cohen; Dahaene-Lambertz; Dehaene, 2014). No entanto, não sabemos até que ponto essa plasticidade diminui com a idade, nem se todos os processos e mecanismos da aprendizagem são idênticos aos das crianças. Contudo, um de nós (J. M.) conheceu um ativista político que, trabalhador agrícola na sua juventude e analfabeto, aprendeu a ler com os seus camaradas na prisão. Mais tarde, tendo fugido e integrado a militância clandestina, tornou-se um quadro político, tendo entre outras funções a de redator principal de um jornal político destinado aos camponeses. Embora não tenha sido testado, os seus textos e as discussões com ele a propósito de textos mostram claramente que era um letrado produtivo, e crítico pelo menos até certo ponto. Uma equipe dirigida por R. K., e incluindo Isabel Leite (da Universidade de Évora), Cristina Carvalho (ex-pesquisadora no Max-Planck Institut de Nijmegen), Ana Franco (da ULB), e J. M., elaborou um Curso de Alfabetização de Adultos e aplicou-o a oito participantes portugueses, todos do sexo feminino, da região de Lisboa, durante 3 meses (3 ou 4 lições de 2 horas por semana). Essas senhoras eram totalmente analfabetas (algumas conheciam algumas letras, mas nenhuma foi capaz de ler palavras, mesmo curtas, simples e frequentes). Seis delas nunca tinham frequentado a escola em criança, as outras duas só por pouco tempo e muito irregularmente. As suas idades iam de 22 a 64 anos, e a média era de 40 anos. Oficialmente não tinham emprego, embora três fossem vendedoras ocasionais. Todas estavam em boa saúde e não apresentavam deficiências cognitivas. O curso, que consiste em 17 módulos, baseia-se nos princípios fônicos (Kolinsky; Leite; Carvalho; Franco; Morais, 2018). Assim, os dois primeiros módulos têm por objetivo fazer compreender o princípio alfabético. A aprendizagem do código obedece ao princípio geral de progressão do mais 57
simples (ver também exemplos na alfabetização de Zeus, Morais; Kolinsky, 2014) ao mais complexo. Elas foram testadas duas vezes antes de iniciar o curso e três vezes depois de ter começado o curso. Foram testadas depois do módulo 2 (em que foram ensinadas as vogais A, I, U, O, E, cada uma só com um valor fonético, e as consoantes F, V, L, assim como R e S sempre em posição inicial, portanto com só um valor fonético), mais tarde depois do módulo 8 (até aí tinham sido vistas todas as realizações vocálicas com exceção dos ditongos, e as consoantes V, F, L, M, N, R e S, estas simples e dobradas), e depois do último módulo (portanto tendo sido vistos todos os outros grafemas, simples e complexos, e todos os ditongos e encontros consonantais). A ordem de introdução das correspondências grafema-fonema obedece a cinco princípios: princípio de acessibilidade do fonema (assim, fricativas e líquidas são todas introduzidas antes das explosivas); princípio de incremento progressivo do grau de inconsistência (por exemplo, a letra “i” foi introduzida antes da letra “o” porque, no português europeu, “i” se pronuncia sempre /i/ e nenhum outro fonema vocálico se escreve com “i”, ao passo que a pronúncia de “o” depende da sua posição na palavra; princípio de incremento progressivo da complexidade do grafema (por exemplo, os grafemas simples como “f ” antes dos complexos como “ch” e letras com diacrítico); princípio de introdução progressiva dos pares de letras mais dificilmente discrimináveis ao nível visual, como “b” e “d”; e princípio de incremento progressivo da complexidade fonológica da estrutura silábica (primeiro sílabas CV, depois palavras CVCV, mais tarde sílabas CCV). Além desses princípios, dois outros foram aplicados ao longo do curso: as letras foram ensinadas em paralelo nas suas formas maiúscula e minúscula; e a leitura e a escrita (manual) foram sempre ensinadas e exercidas conjuntamente. Nos dois primeiros módulos (5 lições), só foram apresentadas correspondências grafema-fonema simples e evitaram-se os dígrafos, em estruturas CV e CVCV. Algumas regras contextuais e posicionais foram introduzidas nos módulos 4, 5 e 6, juntamente com alguns dígrafos (por exemplo, “ss”). As explosivas começaram a aparecer no módulo 11 (/t/ e /d/), seguidas no módulo 12 de /b/ e /d/, cujas letras são imagens em espelho uma da 58
outra e, por isso, mais difíceis de discriminar. Depois, foram apresentados os ditongos nasais e, no módulo 16, os ataques complexos (por exemplo, “pr-”) que implicam estruturas de tipo CCV. E o último módulo (17) foi consagrado à letra “x”, altamente inconsistente em português (5 pronúncias pouco previsíveis). Não é objetivo deste artigo descrever o curso ou apresentar os seus resultados mais detalhadamente. Isso é feito num artigo em inglês atualmente submetido a uma revista científica. Resumindo os resultados, no final do curso, uma das senhoras não conseguiu ler nada, outra muito pouco, mas todas as outras mostraram ter aprendido, embora com grandes diferenças entre elas. As suas médias de leitura correta das palavras, testadas entre as centenas que tinham visto durante o curso, atingiram entre 48 e 88%. Se tivéssemos podido dedicar mais tempo e mais atenção a cada atividade e a cada participante, se por exemplo o curso tivesse durado 8 ou 9 meses, muito provavelmente todas elas teriam se beneficiado mais e muitas estariam realmente alfabetizadas, segundo um critério que consiste numa leitura correta de palavras acima dos 90%. Por que 90%? Porque, como já dissemos, é o nível aproximativo de reconhecimento de palavras escritas que permite ler um texto com compreensão. O nosso teste de leitura de palavras incluiu também palavras que nunca tinham sido apresentadas no curso. Em média, as seis senhoras que revelaram ter aprendido, leram melhor as palavras já vistas do que as novas, o que é habitual; e para as palavras novas, o desempenho foi de 30 a 85%. Depois de apenas 3 meses de aulas, consideramos que é um resultado muito bom! Tanto mais que ler palavras novas implica ter aprendido pelo menos aquelas partes do nosso código ortográfico que comandam a sua escrita. Vejamos alguns exemplos de palavras novas. Ilustrando correspondências estudadas nos módulos 3 a 7: VALE, safa; FORRO, russa, LUSA, fere; FALAS, rifas; NAMORO, marina. E nos módulos 13 a 17: MEDIU, moita; CEGONHA, caroço; PENSÕES, órfãos; GREGO, plástico; FEIXE, explico. Note-se que as senhoras que aprenderam a ler chegaram ao fim do curso tendo adquirido a noção de que a letra é uma categoria independente da sua realização particular: tanto a forma maiúscula como a minúscula eram referidas à mesma identidade de letra. 59
O nosso objetivo será agora de aplicar uma nova versão do curso a uma amostra maior da população adulta analfabeta, quer portuguesa, quer brasileira, durante o tempo correspondente a um ano escolar. Pensamos também que, com as necessárias adaptações, esse curso poderá ser muito útil à alfabetização de crianças na condição de os alfabetizadores serem formados de maneira a compreenderem de maneira aprofundada os princípios subjacentes.
O que se está fazendo e o que se deveria fazer pela literacia no Brasil Morais (2014) dedicou um capítulo à situação do alfabetismo e da literacia no Brasil, em que criticou impiedosamente “uma ideia falsa: a idade certa” (ver também Gabriel; Kolinsky; Morais, 2016), segundo a qual seriam necessários três anos para fazer (e mal, sem garantia de alcançar) o que pode e deve ser feito em um ano escolar, numa só palavra: alfabetizar; em que criticou outra ideia falsa: o alfabeto-notação”. Também mostrou que, no que respeita a ensinar a ler, o Brasil está seguindo “o caminho errado”, antes de propor “o caminho certo”. Não voltaremos a tratar aqui sobre o profundo atraso e as enormes tragédias individuais para que contribuiu uma ideologia educacional, pseudo-humanista e pretensamente centrada na criança, chamada “construtivista” e baseada numa teoria do desenvolvimento mental que já foi ultrapassada, a de Piaget. Durante todos esses anos de fanatismo e negação da ciência, houve pesquisadores e acadêmicos que resistiram e que mantiveram viva a voz da ciência cognitiva, em particular da “ciência da leitura”, e alguns deles procuraram aplicá-la na prática à alfabetização e, mais largamente, à educação das crianças. Acreditamos que esse trabalho e essa persistência não foram em vão porque talvez estejamos assistindo hoje, esperando que se confirme porque isso se faz num contexto político muito difícil, a uma promissora mudança de orientação. O Movimento pela Base Nacional Comum, grupo não governamental e maioritariamente de acadêmicos, está na origem da proposta da Base Nacional Comum Curricular (Brasil. Ministério da Educação, 2017), oficialmente promovida de início pelo ministro Mercadante e que, no momento em que escrevemos, foi submetida ao Conselho Nacional 60
da Educação. Esse documento dá um passo em frente na configuração do ensino infantil e fundamental (este entre 6 e 14 anos) e insere-se na linha de uma homogeneização dos currículos do ensino público e privado. No entanto, as suas sucessivas revisões (analisamos aqui a sua segunda versão, que parece já ter sido ultrapassada) e, sobretudo, o atual momento político que põe em perigo a laicidade e a prossecução na escola de uma educação orientada para o pensamento livre e crítico, são muito preocupantes. Indicamos abaixo de maneira muito sucinta e incompleta o que nesse documento nos parece positivo, mas também o que é insuficiente ou falta, primeiro no que respeita à alfabetização e ao desenvolvimento da literacia, depois na sua concepção geral1. A alfabetização é agora (antes não o era) considerada como “importante porta de acesso ao mundo letrado” (p. 64-5) e a leitura e a escrita são claramente definidas na primeira fase como requerendo “a aprendizagem da decodificação” e “da codificação de palavras e textos” (p. 64). A referência à relação das letras com os “sons” da fala (neste contexto, “som” aparece sistematicamente entre aspas) é logo precisada: “as letras representam fonemas” (p. 69), acrescentando que é para a criança que o princípio alfabético é “uma ‘letra’, um ‘som’”. Citamos estas linhas: Apropriar-se do sistema de escrita depende, fundamentalmente, de compreender um princípio básico que o rege, a saber: os fonemas, unidades de “som”, são representados por grafemas na escrita. Grafemas são letras ou grupos de letras, entidades visíveis e isoláveis. Os fonemas são as entidades elementares da estrutura fonológica da língua, que se manifestam nas unidades sonoras mínimas da fala. É preciso que o aluno aprenda as regras de correspondência entre fonemas e grafemas, por meio do tratamento explícito e sistemático encaminhado pelo professor na sala de aula. (p. 69)
Dessa passagem não aprovamos o uso, frequente no Brasil, da palavra “apropriação”, porque a escrita alfabética não pode ser propriedade de 1 Nota posterior à redação final do presente artigo: É importante ter em conta que, quando este artigo foi escrito, ainda não tinha sido publicada a versão definitiva da BNCC. Esta é decepcionante no que respeita à alfabetização, mantendo ideias e orientações incompatíveis com as evidências científicas. Os presentes autores fizeram a crítica dessa versão em no seguinte texto: MORAIS; KOLINSKY, 2018.
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alguém, é um bem comum. A decodificação é, com razão, explicitamente associada à “construção da autonomia na leitura” (p. 70) no 2° ano, mas poderia ser desde o 1°; a fluência também é associada à construção da autonomia (p. 75). No que respeita à aprendizagem da leitura e da escrita, lamentamos que falte completamente a distinção que indicamos acima entre alfabetização e literacia (ou leitura e escrita) produtiva. Os autores da BNCC não conhecem provavelmente, ou desprezam, os numerosos estudos científicos que mostram que, durante a aprendizagem da leitura e da escrita, à autonomia se vem juntar a automaticidade no reconhecimento das palavras escritas, como consequência da prática com êxito da decodificação. Esta mudança qualitativa na habilidade de leitura é extremamente importante e deve estar consumada para o léxico habitual do leitor no 3° ou no 4° ano (Morais, 2016). Ainda no que concerne à literacia, exprimimos a nossa adesão à importância atribuída desde cedo à educação literária e ao reconhecimento dos laços que unem a literacia à ética, aos “valores e ideologias” (p. 66) e à “construção humana, histórica e social” (p. 62). Tal como nós valorizamos a literacia crítica e argumentativa, também a BNCC apresenta como objetivos, desde o 3° ano, “produzir texto com o intuito de opinar e defender ponto de vista sobre tema polêmico relacionado a situações vivenciadas na escola” (p. 130; porém, não teríamos limitado à escola). São também objetivos, no 7° ano, escrever “texto argumentativo ou de reivindicação [...] sobre problemas que afetam a vida escolar ou a vida da comunidade” (p. 130); no 8° ano, “analisar criticamente as relações entre mídia, sociedade e cultura, e os efeitos das novas tecnologias na cognição e na organização social.” (p. 137); e no 9° ano, “Expor, de modo resumido, resultados de debate em sala de aula sobre tema polêmico, enumerando os argumentos e contra-argumentos apresentados, orientando-se por anotações feitas durante o debate” (p. 143). Consideramos também positivo que, contrariamente aos programas de outros países, a BNCC dê tanta importância às Artes (que aparecem em segundo lugar, depois da Leitura e da Escrita, integrada na Área das Linguagens). Isto deve-se em parte à utilização de um conceito, o de “lin62
guagens”, que recobre na realidade os diferentes modos de expressão, com o objetivo de incluir artes visuais, dança, música e teatro, o que nos parece comportar o risco de destruir a especificidade da linguagem (tal como, no caso da leitura, é corrente afetar a sua especificidade quando se utilizam expressões do tipo “a leitura facial das emoções”). Porém, não é contrário ao requisito de especificidade estabelecer relações entre as artes e outros domínios. Nesse sentido, a BNCC considera como objetivos “problematizar questões políticas, sociais, econômicas, científicas, tecnológicas e culturais por meio de exercícios, intervenções e apresentações artísticas” tal como “desenvolver a autonomia, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas artes” (p. 156). No mesmo espírito, no domínio das Ciências da Natureza, são objetivos “Avaliar aplicações e implicações políticas, socioambientais e culturais da ciência e da tecnologia e propor alternativas aos desafios do mundo contemporâneo, incluindo aqueles relativos ao mundo do trabalho” e “Construir argumentos com base em dados [...] negociar e defender ideais e pontos de vista que respeitem a promovam a consciência socioambiental e o respeito a si próprio e ao outro, acolhendo e valorizando a diversidade de indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza.” (p. 276). Nas Ciências Humanas, é formulado o objetivo de valorizar “os direitos humanos, o respeito ao meio ambiente e à própria coletividade: o fortalecimento de valores sociais, tais como a solidariedade, a participação e o protagonismo voltados para o bem comum; e, sobretudo, a preocupação com as desigualdades sociais.” (p. 307). Especificamente na Geografia: debater ideias e pontos de vista que respeitem e promovam a consciência socioambiental e respeito à biodiversidade e ao outro, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outro tipo”, “agir pessoal e coletivamente (...) propondo ações sobre as questões socioambientais, com base em princípios éticos democráticos, sustentáveis e solidários. (p. 318)
Ainda é objetivo para essa disciplina “discutir as desigualdades sociais e econômicas e as pressões sobre a natureza e suas riquezas [...], o que resul63
ta na espoliação desses povos (refere-se aos da América e África)” (p. 345). Quanto à História, “posicionar-se criticamente com base em princípios éticos democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (p. 352) e conhecer, entre outros assuntos, “a ditadura militar e os processos de resistência”, “a Constituição de 1988 e a emancipação das cidadanias (analfabetos, indígenas, jovens, etc.)”; e as atuais “pluralidade e diversidade indentitárias” (p. 380). Se esse programa vier a ser realizado tal como é anunciado – o que não estaria previsto para antes de 2019 entre outras razões pela necessidade de formar professores –, ele poderá contribuir para melhorar muito a situação da literacia no Brasil e, desse modo, iniciar um verdadeiro processo de democratização. Mas isso não acontecerá se esse trabalho, essencialmente de cientistas e acadêmicos, não for sustentado pelo povo brasileiro. É difícil um povo tão pouco letrado estar em condições de entender a importância dessa iniciativa educacional (e para entendê-la é preciso que venha a conhecê-la, o que não estará nas prioridades da mídia...), por isso há que dá-la a conhecer ao povo brasileiro. Não há combates incertos. O combate pela literacia tem de ser travado em duas frentes: pelos adultos e jovens iletrados e não letrados que da literacia foram injustamente arredados, e pelas crianças que, todas, sem discriminação, têm direito à literacia e a tudo o que só ela lhes abre.
Referências BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Proposta preliminar. Segunda versão revista. Brasília: MEC, 2016. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documentos/bncc-2versao.revista.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2017. DEHAENE, S.; PEGADO, F.; BRAGA, L.; VENTURA, P.; NUNES, G.; JOBERT, A.; DEHAENE-LAMBERTZ, G.; KOLINSKY, R.; MORAIS, J.; COHEN, L. How learning to read changes the cortical networks for vision and language. Science, v. 330, p. 1359-1364, 2010. GABRIEL, R.; KOLINSKY, R.; MORAIS, J. O milagre da leitura: de sinais escritos a imagens imortais. D.E.L.T.A., 32, 919-951, 2016. doi: 0.1590/0102-445082050428939. GABRIEL, R.; MORAIS, J. A leitura partilhada na família e na escola. In: FLÔRES, O. C.; GABRIEL, R. (Orgs.). O que precisamos saber sobre a aprendizagem da leitura: contribuições interdisciplinares. p. 23-48, 2017. 64
KOLINSKY, R. How learning to read influences language and cognition. In: POLLATSEK, A. R.; TREIMAN, R. (Orgs.). The Oxford Handbook of reading. New York, NY: Oxford University Press, p. 377-393, 2015. ______; LEITE, I.; CARVALHO, C.; FRANCO, A.; MORAIS, J. Completely illiterate adults can learn to decode in three months, Reading and Writing, v. 31, n. 3, p. 649677, 2018. ______; MORAIS, J.; COHEN, L.; DEHAENE-LAMBERTZ, G.; DEHAENE, S. L’influence de l’apprentissage du langage écrit sur les aires du langage/The impact of literacy on the language brain areas. Revue de Neuropsychologie, v. 6, p. 173-181, 2014. MORAIS, J. Criar leitores. Para professores e educadores. São Paulo: Manole, 2013. ______. Alfabetizar para a democracia. Porto Alegre: Penso, 2014 ______. Lire, écrire et être libre. De l’alphabétisation à la démocratie. Paris: Odile Jacob, 2016. ______. Literacy and democracy. Language, Cognition, and Neuroscience, DOI: 10.1080/23273798.2017.1305116, 2017. MORAIS, J.; KOLINSKY, R. A última metamorfose de Zeus. Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2014. ______; ______. Literacia científica: leitura e produção de textos científicos. Educar em revista, v. 62, p. 143-162, 2016. ______; ______. Mudar a educação no Brasil, Pátio Ensino Fundamental, v. 85, p. 7-9, Porto Alegre: Penso. 2018. ______; CASTRO, S.-L.; SCLIAR-CABRAL, L.; KOLINSKY, R.; CONTENT, A. The effects of literacy on the recognition of dichotic words. Quarterly Journal of Experimental Psychology, v. 39A, p. 451-465, 1987. OECD. PISA results (Volume I): Excellence and equity in Education, Paris: Author, 2016. doi:10.1787/9789264266490-en. SCLIAR-CABRAL, L. Princípios do sistema alfabético do Português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003. ______. Sistema Scliar de Alfabetização. Fundamentos. Florianópolis: Editora Lili, 2013. UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Global Education Monitoring Report 2016. Education for people and planet: Creating sustainable futures for all. Paris: UNESCO Publishing, 2016 (ver também LAMP – Programme d’évaluation et de suivi de l’alphabétisation. Paris: Institut de Statistique de l’UNESCO, 2016.
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3 Pela qualidade no alfabetizar, requisito para a inclusão social na sociedade da informação Leonor Scliar-Cabral
Introdução A maior exclusão, hoje, é aquela que nega ao indivíduo o acesso ao conhecimento, privando-o de inserir-se na sociedade caracterizada pelas novas tecnologias da informação e das comunicações (TICs). Afinal, quem não consegue, sequer, reconhecer rapidamente as palavras escritas, para agregar a informação nova ao que talvez também não identifique prontamente, não poderá incorporar novos saberes e, muito menos, opinar sobre o que não entendeu. Não poderá, igualmente, preencher os requisitos exigidos para o preenchimento de vagas para o trabalho qualificado. Conforme bem acentuaram Costa Santos e Grossi Carvalho (2009, p. 47), “a exclusão está centrada na falta de recursos financeiros dos países do Terceiro Mundo, na desigualdade social, no analfabetismo e na alfabetização precária”. Com efeito, os dados confirmam o despreparo dos candidatos no mercado de trabalho qualificado. Para se ter uma ideia de como a falta de domínio na língua escrita barra o ingresso no trabalho qualificado, registrei o seguinte caso extremo: Nenhum dos 2.600 inscritos conseguiu passar no concurso para juiz do Trabalho na Bahia. O resultado foi divulgado na segunda-feira (2). Os candidatos pagaram R$ 217 para participar da seleção e poderiam ganhar vencimento base de R$ 14 mil caso passassem no certame, que teve cinco etapas. 66
Após a primeira prova, em dezembro de 2012, sobraram 300 pessoas para a segunda etapa. Na terceira etapa, quando apenas 61 pessoas concorriam, a prova exigia a redação de uma sentença sobre prazos processuais e incorporação de gratificações. A nota mínima exigida era seis, mas nenhum candidato conseguiu mais do que cinco, segundo o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5) (Globo.com, 2013).
O exemplo mostra a gravidade da situação, mas, até hoje, as políticas públicas para resolvê-la se caracterizaram pelo imediatismo, pela superficialidade, pela fragmentação, pela falta de fundamentação científica e, no mínimo, pela ausência de continuidade. Tome-se outro exemplo, o Programa “Sociedade da Informação no Brasil”, lançado no Livro Verde (Takahashi, 2000) pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, cujas metas eram a convergência da base tecnológica, a dinâmica da indústria e o crescimento da Internet, alteradas em 2002, com a mudança de governo, para a inclusão digital. Nenhum desses programas, no entanto, contemplou metas fundamentais como a da alfabetização digital, a da produção de conteúdo e a da troca de informações (Costa Santos; Grossi Carvalho, 2009, p. 47). A alfabetização digital apresenta suas especificidades, particularmente no que diz respeito à aprendizagem e funcionamento dos gestos motores responsáveis por executar a digitação: dada a sua simplicidade, não excluem o concurso da mão esquerda, o que pressupõe o mínimo de especialização necessária para sua automatização. Mas, atenção! O planejamento para obtenção dos objetivos pragmáticos, o mapeamento dos conceitos nos respectivos léxicos mentais, a linearização das ideias em proposições, a codificação dos fonemas em grafemas, a execução dos gestos motores e a monitoria online que se efetua sobre a tela (leitura), ainda dependem de uma aprendizagem complexa que se inicia com a alfabetização para que o indivíduo esteja apto a redigir os textos de que necessitará para atingir seus alvos. É claro que a Internet, através das redes sociais, possibilitou a criação de novas variedades linguísticas em que predominam as abreviaturas, uma sintaxe simplificada e uma ilusão de que os interlocutores estão face a face, como se fosse possível escrever como se fala. A criação dessas novas 67
variedades praticadas não isenta os indivíduos de uma alfabetização fundamentada nos avanços das ciências que possam contribuir para equacionar as dificuldades inerentes a tal aprendizagem, quais sejam: a linguística, a neuropsicologia, a psicolinguística e a neurociência. Essa lição não foi incorporada pelos gestores das políticas públicas em educação, no Brasil, o que vem atestado pelo quadro geral da baixa qualidade do ensino no país, a começar pela Educação Básica, em especial, nos anos iniciais do Ensino Fundamental (EF), onde se dá a alfabetização. Embora tenha sido implantada a medida salutar da matrícula compulsória nos anos iniciais, ela não foi precedida pelas medidas que garantissem a inserção dos brasileiros na sociedade da informação e das comunicações, a saber, a reformulação dos currículos de todos os cursos de formação dos professores dos anos iniciais, em especial, dos alfabetizadores, incorporando, nesses últimos, os conhecimentos das ciências avançadas, acima elencadas; exigências maiores para o ingresso em tais cursos; remuneração atrativa do magistério; reformulação fundamentada e coerente do currículo do EF e controles mais rigorosos na seleção do material didático a ser recomendado pelo MEC, a fim de evitar o carnaval de asneiras que enriquece muitas editoras, como o exemplo a seguir, num livro distribuído pelo MEC em larga escala para os alunos do 4º ano do EF: “Os verbos não possuem variação de gênero, porém mudam de terminação de acordo com o tempo passado, presente ou futuro” (Carpaneda; Bragança, 2014, p. 26, grifo meu). Até admito que as autoras tenham esquecido a existência do particípio, necessário, entre outras coisas, à formação da voz passiva, concordando, em gênero e número com o sujeito paciente, mas afirmar que os verbos terminam com a marca de tempo (esqueceram também do modo, que é cumulativo) é ignorar que a terminação, nas formas finitas, marca coesiva da concordância verbal é de pessoa e número (cumulativamente), nem que seja zero!
Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) Dos 2,3 milhões de crianças avaliadas pela ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização, INEP) no 3º ano do ensino fundamental, conforme Foraque (2015), um quinto não sabe ler. 68
A ANA “é uma avaliação externa que objetiva aferir os níveis de alfabetização e letramento em Língua Portuguesa (leitura e escrita) e Matemática dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental das escolas públicas” (INEP, 2013, p. 1). Os critérios de avaliação em leitura e escrita podem ser observados nos quadros a seguir. Quadro 1: Escala de leitura
Reprodução
Fonte: Inep (2015)
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Quadro 2: Escala de escrita
Reprodução
Fonte: Inep (2015)
Examinando-se os quadros 1 e 2 com as categorias contempladas pela ANA para avaliar as habilidades de leitura e escrita nos alunos do 3º ano do ciclo de alfabetização do EF e os resultados obtidos, saltam à vista os seguintes aspectos primordiais, que explicam, em parte, o insucesso das políticas públicas na área: a desvalorização das habilidades de automatização na leitura e na escrita e o desconhecimento sobre a estrutura e funcionamento das línguas e a respectiva estrutura e funcionamento do sistema nervoso central, a seguir expostos.
Desvalorização das habilidades de automatização na leitura As habilidades de automatização dos processos indispensáveis à leitura fluente e compreensiva são: reconhecimento dos traços invariantes que diferenciam as letras entre si (reciclagem neuronal) e das letras; atribuição dos valores fonêmicos aos grafemas; atribuição do acento de intensidade no vocábulo tônico e reconhecimento dos clíticos (vocábulos átonos) e, o que é fundamental à leitura fluente e compreensiva, a atribuição dos padrões de entoação que requer o reconhecimento dos valores dos sinais de pontuação, bem como a automatização dos processos de juntura externa e interna (sândi), isto é, das modificações decorrentes do encontro da consoante com vogal ou de vogal com vogal em limite de palavras ou de morfemas internos, como em “mar azul” /´ma-ra-´zU/; “casa azul” /´ka-za-´zU/; “inimigo”/i-ni-´mi-gU/. 70
Tal menosprezo às habilidades que necessitam ser automatizadas para o reconhecimento da palavra escrita a ponto de reduzir tais complexidades à mera distinção entre sílaba CV e sílaba complexa só nos leva à conclusão de que os responsáveis pela ANA sejam adeptos do Método Global de Alfabetização e de que o aluno vai aterrissar direto na leitura dos vários gêneros (cujo detalhamento a ANA supervaloriza), por obra e graça do Espírito Santo! Por que é necessária a automatização dos processos acima elencados para a compreensão leitora? Por várias razões: Em primeiro lugar, porque para se atingir o alvo principal da leitura, que é a compreensão, é necessário o reconhecimento rápido dos traços invariantes que compõem as letras, pareando-as com o que foi registrado na memória durante a alfabetização (se foi bem realizada), passando, em seguida, no caso de textos em PB, ao grafema, formado por uma ou duas letras, com seu valor fonêmico, para se chegar ao reconhecimento da palavra escrita, com a respectiva atribuição do acento de intensidade e a sua respectiva imagem acústica. Conforme pontua Dehaene (2012, p. 43), “[n]enhum leitor, mesmo extremamente advertido, não pode se impedir de converter inconscientemente os grafemas em imagens acústicas, em apenas algumas dezenas de milissegundos”. A rapidez de processamento é necessária para que os resultados dos processamentos não se apaguem na memória de trabalho antes de o leitor chegar ao término da oração, impedindo-lhe, assim, de aplicar o padrão de entoação. É o que acontece quando o aluno titubeia por ter sido mal alfabetizado pelo nome das letras, como na soletração, na palavra “pato”, do tipo pê-a-pá-tê-ó-tó: quando chegar à última sílaba, a informação da primeira já se apagou e ele estará impedido de reconhecer a palavra escrita e, em consequência, de capturar o seu significado. Isto é tanto mais grave, quanto maior for a palavra. Em segundo lugar, a automatização do reconhecimento dos traços, das letras, dos valores dos grafemas e da atribuição do acento (princípios do sistema alfabético do PB para a decodificação) é necessária para liberar a 71
mente para os processos criativos da leitura, como a construção do sentido das palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e texto e como a identificação das diferentes vozes no discurso (polifonia) e de suas intenções pragmáticas.
Automatização de processos na produção escrita No que diz respeito à escrita, é necessária a automatização dos gestos motores que executem os traços que distinguem cada letra, com as respectivas ligaturas, na manuscrita e daqueles necessários à digitação no teclado; das regras de conversão dos fonemas em grafemas; das regras de derivação morfológica, inclusive das formas verbais primitivas irregulares de uso mais frequente no PB escrito; da codificação fonética, da palavra fonológica e da silabização; e, finalmente, das regras sintáticas básicas para a pontuação. Aliás, essa dicotomia dialética entre processos automáticos e criativos é garantida pela própria arquitetura das línguas e de seu funcionamento que espelha a estrutura e funcionamento para a linguagem verbal do sistema nervoso central.
A arquitetura das línguas e de seu funcionamento A ANA desconhece a arquitetura das línguas e seu funcionamento que espelham a estrutura e funcionamento para a linguagem verbal do sistema nervoso central. O desprezo da ANA pelas habilidades de automatização dos processos indispensáveis à leitura fluente e compreensiva e pelas necessárias à produção de um texto legível, coerente e coeso decorre de seu desconhecimento sobre a arquitetura das línguas e de seu funcionamento, a qual espelha a estrutura e funcionamento para a linguagem verbal do sistema nervoso central. A arquitetura através da qual se erguem tais sistemas (com uma contrapartida nas áreas especializadas do sistema nervoso central), que existe em todas as línguas, na recepção, começa no nível mais baixo, constituído 72
de um número muito pequeno de traços fonéticos distintivos; sua integração constituirá, por seu turno, um número muito pequeno de fonemas em cada língua; os fonemas se combinam para constituir as unidades mínimas dotadas de significado gramatical (também em número fechado e limitado), que carregam, sobretudo, informações sintáticas e as unidades que vão referenciar as significações externas à estrutura gramatical, mas que também carregam parte da informação sintática, arroladas no léxico mental fonológico (substantivos, verbos, adjetivos etc.), por seu turno, vinculado à memória semântica. Circuitos que integram a componente sintática irão determinar as combinações entre as classes sintáticas, com as respectivas funções temáticas, para a formação das frases, das proposições, orações, sentenças e texto, restando, ainda, outros mecanismos (processados no hemisfério direito) que permitem reconhecer as modalidades (afirmação, ordem, interrogação, negação e suas combinatórias). A arquitetura para a produção percorre o caminho inverso e começa nos níveis mais altos, na seguinte sequência: intencionalidade pragmática, preparação conceitual de acordo com conceitos lexicais (mapas mentais), conceitos lexicais (memória semântica), seleção lexical (léxico mental fonológico), silabização (silabário mental fonológico), palavra fonológica, codificação fonética, gesto motor (programa motor articulatório), execução (Levelt; Roelofs; Meyer, 1999, p. 3).
Avanços da neurociência e da neurobiologia molecular Tal arquitetura das línguas tem sustentação na arquitetura do sistema nervoso central e seu funcionamento, cujas partições vêm sendo refinadas através dos resultados empíricos obtidos pelas técnicas mais avançadas, como, por exemplo, as de ressonância magnética funcional associadas aos experimentos comportamentais da neuropsicologia; as da neurobiologia molecular etc. Os avanços mais importantes que assinalo de forma sintética para o entendimento da arquitetura e respectivo funcionamento da linguagem verbal oral são os seguintes:
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1. Refinamento e ampliação da citoarquitetura do SNC Cito, como exemplo, as subclassificações da área de Broca, responsabilizada anteriormente pela produção oral generalizada e agora subdividida em áreas especializadas, associadas à parte anterior do giro temporal superior (STG) esquerdo, junto com o opérculo frontal esquerdo (vide Figura 1); além do controle para a execução dos gestos fonoarticulatórios, constata-se o das relações sintáticas locais iniciais e também do léxico mental das classes de palavras puramente gramaticais (fechadas e em número limitado, como, por exemplo, as preposições), conforme comprova “o deslocamento negativo frontal mais vagaroso na fase entre 350 e 500 ms, maior no lado esquerdo do escalpo” (Brown; Hagoort; Ter Keurs, 1999, p. 261). Figura 1: Novas partições do SNC para as funções da linguagem verbal oral, adaptação Reprodução
córtex pré-motor (AB 6)
córtex motor primário, Área de Brodmann (AB 4) sulco central
lobo parietal
lobo frontal
sulco temporal superior (STS)
sulco frontal inferior (SFI)
lobo occipital
área de Broca (AB 44/45)
lobo temporal opérculo frontal (OPF)
giro de Heschl (GH)
área de Wernicke (AB 42/22)
córtex auditivo primário (CAP)
superior (dorsal) anterior (rostral)
posterior (caudal)
giro frontal inferior (GFI) giro temporal superior (GTS)
inferior (ventral)
giro temporal médio (GTM)
Fonte: Friederici (2011). 74
Um exemplo de ampliação da citoarquitetura do processamento verbal é a inclusão de algumas das estruturas límbicas, compostas pelo hipocampo, o córtex cingulado, o córtex olfativo e a amígdala, conforme demonstrou Ramon y Cajal (Squire; Wixted, 2011, p. 259-288). Outros avanços são a abordagem dinâmica com a evidência dos pathways, circuitos formados por fibras de massa branca que associam os vários centros especializados para a linguagem verbal (Friederici, 2011). 2. Papel dos receptores neurotransmissores A análise recepto-arquitetônica dos circuitos especializados para a linguagem verbal tem revelado um parcelamento ainda mais refinado da especialização cerebral, como o papel dos receptores neurotransmissores em nível molecular para o processamento da informação (Zilles et al. 2015, p. 79–89). Assim, observam-se subdivisões ainda mais específicas, como da área 45, subdividida em duas partes, a mais anterior (45a), limitando com a BA 47 e a mais posterior (45p), limitando com a 44 (Amunts et al., 2010). Concluindo, o insucesso das políticas públicas na área da alfabetização se explica, em parte, pelo desconhecimento sobre a estrutura e funcionamento dos sistemas linguísticos e da contraparte no Sistema Nervoso Central: sem alicerces sólidos, nenhum edifício se sustenta, e o fato de não serem percebidos à superfície não significa que não existam. Embora quando lemos não possamos inspecionar conscientemente os processos de reconhecimento dos traços invariantes das letras – a síntese em uma ou duas letras que formam uma categoria mais abstrata, os grafemas, associados aos respectivos fonemas –, dadas a rapidez e automatização de tal processamento, ele é compulsório no leitor fluente, como atestam os resultados empíricos da neurociência. Mas há outro aspecto primordial, que também explica, em parte, o insucesso das políticas públicas na área da alfabetização, exemplificado com as categorias contempladas pela ANA para avaliar as habilidades de leitura e escrita, sobre o que discorrerei a seguir.
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Desconhecimento dos três fatores que determinam a aquisição da linguagem verbal oral e a aprendizagem dos sistemas alfabéticos e suas diferenças específicas Os três fatores que determinam a aquisição da linguagem verbal oral e a aprendizagem dos sistemas alfabéticos e suas diferenças específicas são o inato, o da maturação neural e o ambiental. O fator inato depende de como a estrutura e o funcionamento do SNC humano está biológica e psicologicamente programado para a aquisição da linguagem verbal oral e já foi explanado, com exceção de uma capacidade, exclusivamente humana, essencial à nossa argumentação: a capacidade que os neurônios humanos têm de aprenderem coisas novas e de, compulsoriamente, ordenarem os dados sensoriais que lhe chegam de modo bruto, amorfo e redundante, base para o surgimento da cultura, inclusive para a invenção dos sistemas de escrita. O fator da maturação se ancora na forma como os neurônios ainda no feto buscam o seu sítio, desenvolvem seus prolongamentos (axônios e dendritos), revestindo-se de mielina, formando redes cada vez mais densas, entrecruzadas entre áreas cada vez mais distantes e especializadas, graças ao terceiro fator, o ambiental, isto é, o efeito da experiência cultural, que possibilita a aprendizagem dos processos, alguns dos quais vão de encontro à programação inata, conforme explicarei com o que acontece com a aprendizagem dos sistemas de escrita, em particular, com os sistemas alfabéticos. Nenhum dos três fatores prepondera sobre os demais: os três são interdependentes e essenciais à aquisição da linguagem verbal oral e à aprendizagem dos sistemas alfabéticos.
Os sistemas de escrita são uma invenção tardia Compreender que os sistemas de escrita são uma invenção tardia, particularmente os sistemas alfabéticos, e não o meio de comunicação compulsoriamente adquirido por ser essencial à sobrevivência do indivíduo e da espécie, é fundamental “para que se possam evidenciar quais serão os maiores desafios que o aprendiz deverá enfrentar, quais os métodos e ma76
terial pedagógico mais adequados ao ensino-aprendizagem e, finalmente, quais os conteúdos essenciais à formação de quem ensina, o mediador” (Scliar-Cabral, 2015, p. 113-128) e, acrescento, quais as categorias que devem ser analisadas quando se avalia se o estudante se alfabetizou ou não, ao término do 3º ano de alfabetização. A invenção dos sistemas de escrita (não os confundir com os desenhos rupestres) se dá tardiamente: o proto-cuneiforme e os hieróglifos egípcios, os mais antigos sistemas de escrita conhecidos, datam ambos do final do quarto milênio a.C. A escrita chinesa data da segunda metade do segundo milênio a.C., e a escrita maia mais antiga foi atestada em Oaxaca, na região costeira do Golfo do México e na região montanhosa da Guatemala, datando entre 500 a 150 a.C. A própria evolução dos sistemas de escrita demonstra não uma mudança nos genes que processam as línguas naturais, mas uma adaptação crescente aos limites dos circuitos neurais que processam a palavra escrita (Dehaene, 2012). Dada a incipiência do sistema sinaítico, os gêneros a serem cultivados eram limitados: destinava-se, de início, a registrar de forma permanente textos religiosos, como é o caso das inscrições bilíngues (em proto-sinaítico e hieróglifos), gravadas na pequena esfinge de arenito em louvor da deusa Hathor, datadas de 1.400 a.C. Os limites do sistema se deviam ao fato de só representar as consoantes e de ser acronímico, isto é, só registrava a consoante inicial de cada palavra. Foram os gregos que aperfeiçoaram a representação das vogais, iniciada pelos fenícios, e o registro das palavras por inteiro. O aperfeiçoamento do sistema de escrita possibilitou o surgimento do gênero filosófico, do científico e do histórico, graças ao fato de que somente um sistema permanente enseja a reflexão mais complexa, a metalinguagem e a metacognição. A cosmovisão grega dá um salto gigantesco ao ultrapassar a visão mítica consignada nos textos homéricos orais. A permanência, sobrepondo-se aos limites de processamento da memória imediata e de trabalho, enseja a transposição de argumentos encadeados e complexos a períodos com vários encaixes, precedendo e/ou sucedendo a oração matriz, característicos do registro da modalidade escrita. Surgem as bibliotecas como a de Alexan77
dria (desafortunadamente incendiada), nas quais as obras de Aristóteles, de Heródoto, de Safo, de Dioscórides estariam disponíveis para as gerações vindouras. O arquivamento, pois, dos conhecimentos produzidos socialmente e sua transmissão às novas gerações deixaram, por um lado, de estar limitados pela capacidade de registro da memória permanente de um só indivíduo e, por outro, pela capacidade de codificação oral do narrador e de decodificação do(s) ouvinte(s). A constatação de que os sistemas de escrita são uma invenção, corroborada pelas evidências experimentais da neurociência de que os neurônios da leitura não são geneticamente programados para o reconhecimento da palavra escrita, tem profundas repercussões sobre a psicolinguística aplicada à alfabetização, uma vez que tal processo decorre da aprendizagem, de modo algum simples, pois não só a alfabetização não é compulsória e espontânea como ocorre com a aquisição do sistema oral, como ela esbarra com processos que vão de encontro a como os neurônios da visão processam o sinal luminoso e a como a fala é percebida. A invenção da escrita e os incrementos tecnológicos introduzidos, na sequência, determinaram o surgimento de novos gêneros, cujo ensino não deve ter como escopo principal o reconhecimento das diferenças estruturais entre si, mas, no caso da leitura, fazer com que o aluno aprenda a identificar, compreender e interpretar os diferentes recursos utilizados por cada um e, no caso da produção, fazer com que ele domine os recursos dos gêneros que ele necessita em cada uma das séries de seu percurso acadêmico e, paralelamente, na sua vida social, familiar e pessoal. Insistir para que o aluno aprenda a produzir um anúncio só teria sentido se todos os alunos do Ensino Fundamental e Médio se destinassem à carreira de redator publicitário. Cabe assinalar nesse passo a ignorância de um dos princípios da psicolinguística, o de que a competência para compreender sempre é e será superior à competência de produção (esse princípio será retomado, logo a seguir, quando examino a questão das variedades sociolinguísticas). Sendo assim, deve-se trabalhar em sala de aula com o desenvolvimento da competência do aluno para compreender e interpretar criticamente (inclusive para inferenciar) os textos publicitários, em especial, numa sociedade 78
consumista como a em que vivemos: o mesmo não se aplica, como já explicado, à necessidade de ensinar o aluno a produzir um anúncio. Outro exemplo da psicolinguística aplicada à alfabetização provém da neurociência.
Conflito entre o reconhecimento espontâneo do sinal luminoso e o da palavra escrita À medida que se foram aperfeiçoando os sistemas de escrita, por um lado, mais se aproximaram da arquitetura organizacional do sistema oral, mas, por outro, dado o fato de ser uma invenção cultural cuja característica fundamental é garantir a permanência textual, portanto, o acúmulo e a universalização dos conhecimentos e, em consequência, o surgimento de novos gêneros, com complexidades cognitivas e de processamento, houve a necessidade de criar novos traços invariantes a serem automatizados, para o reconhecimento das letras, cujo processamento vai de encontro àquilo para o que os neurônios da visão foram biológica e psicologicamente programados. Tais neurônios, situados na região occipitotemporal ventral esquerda, deverão aprender (ser reciclados) e automatizar o reconhecimento da direção, da posição (aspectos topológicos) e do número (aspectos matemáticos) dos traços que entram na composição das letras. Os neurônios da visão para reconhecer rostos, artefatos, casas ou demais entidades da natureza foram programados geneticamente para desprezar a posição e direção de uma dada entidade no espaço: tanto faz uma porta estar fechada ou aberta, abrir para a direita ou para a esquerda, será, sempre, reconhecida como uma porta; um copo pode estar emborcado sobre a mesa, ou com a boca para cima, mas será, sempre, reconhecido como um copo. Este mecanismo de reconhecimento é extremamente útil para que as respostas do organismo aos estímulos sejam rápidas e eficientes. Mas com os sistemas de escrita, invenção cultural, isto não ocorreu. A evolução dos sistemas de escrita, desde os quase icônicos, os ideográficos, os silábicos, até os alfabéticos, conduz à aproximação gradativa para representar a comunicação oral, em que os níveis mais baixos devem 79
possuir um elenco com um número pequeno de elementos, a fim de serem automatizados. Assim, enquanto na escrita hieroglífica e chinesa o leitor e o redator tinham que memorizar centenas de milhares de símbolos, o que restringia o acesso aos sistemas a uma minoria de letrados, os sistemas alfabéticos possibilitaram, junto com a escolarização e, posteriormente, com o advento da imprensa, a socialização do saber escrito. A introdução nos sistemas alfabéticos de um novo nível na arquitetura, o da segunda articulação, isto é, o nível em que uma ou mais letras se constituem em grafemas e, tal como os fonemas nos sistemas orais, passam a distinguir o significado entre as palavras escritas, implica a diminuição do número de símbolos a serem memorizados: os traços que diferenciam as letras entre si, os valores condicionados ou não pelos respectivos contextos e as palavras irregulares. Tal economia tem, porém, um preço: dominar a direção, a posição (aspectos topológicos) e o número (aspectos matemáticos) de traços que entram na composição das letras, como requisito para reconhecer e produzir as letras, vai de encontro a como os neurônios da visão processam o sinal luminoso, conforme já mencionado. Esta é uma das razões pelas quais a alfabetização não ocorre de forma espontânea e compulsória, pois os neurônios de uma área específica da região occipital (a caixa das letras) precisam ser reciclados. A intuição dos inventores dos sistemas alfabéticos sobre a invariância dos fonemas e sua representação aproximada nos sistemas de escrita alfabéticos pelos grafemas vieram ao encontro da necessidade pragmática de registrar de forma permanente as informações e assim difundi-las por vastos espaços geográficos a uma mesma comunidade linguística. Dada a maior complexidade dos textos escritos, com seus léxicos especializados, urgia evitar ambiguidades, como é o caso dos homófonos: passou-se, então, a utilizar além da correspondência fonema/grafema, o critério etimológico, mantendo-se a grafia original do radical primitivo. Surgiram, então, os homófonos não homógrafos, fonte de grandes dificuldades para os redatores avessos à leitura. Um exemplo, no contexto brasileiro atual, é o de nossos alunos que não sabem por que ascender (subir) se escreve com “sc” e acender (fazer fogo) se escreve com “c”. 80
No entanto, pelo fato de os sistemas orais se modificarem continuamente, cria-se uma distância entre eles e sua representação gráfica, maior ainda, nos países onde não se realizam reformas ortográficas periódicas, como é o caso dos países anglo-saxões e da França. A intuição que os inventores dos sistemas alfabéticos tiveram sobre a realidade psicológica dos fonemas os levou a um dos maiores feitos culturais de que se tem notícia, indo de encontro a como a cadeia da fala é percebida pelos ouvintes, ou seja, conseguiram desmembrar a sílaba, recobrindo a consoante inicial, fossem quais fossem as variantes fonéticas que apresentasse, por um símbolo escrito, revelando outra intuição de um princípio essencial às teorias de reconhecimento, o de invariância (Dehaene, 2012, p. 151 e segs.).
Conclusões Propus-me, neste capítulo, justificar a necessidade de fundamentar os responsáveis pelo traçado das políticas públicas em alfabetização com os recentes achados das ciências de ponta que se ocupam da linguagem verbal: a linguística, a psicolinguística, a neuropsicologia e a neurociência. Tal fundamentação se faz necessária diante da exclusão, a cada dia constatada, da maioria dos brasileiros do mercado de trabalho qualificado, por serem analfabetos funcionais. Ilustrei o despreparo dos responsáveis pelo traçado das políticas públicas em alfabetização, examinando as categorias de análise da ANA para a avaliação em leitura e escrita, nos alunos do 3º ano do Ensino Fundamental (término do Ciclo da Alfabetização), ao constatar que ignoram a arquitetura subjacente aos sistemas linguísticos e sua contraparte no Sistema Nervoso Central, bem como os respectivos funcionamentos. De não menor importância é ignorar que os sistemas de escrita são arduamente aprendidos, havendo a necessidade de automatizar os níveis mais baixos, para liberar a criatividade, sem a qual não se compreendem nem se produzem os textos que circulam socialmente.
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Parte III
Leitura, escrita, professores e ensino
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4 Uma breve abordagem à leitura e à escrita na perspectiva da Psicolinguística Maria da Graça Lisboa Castro Pinto
Apresentação Conquanto se possa fazer remontar a origem da Psicolinguística (PL) a autores como Wilhelm Wundt, um dos responsáveis pelo começo da Psicologia Experimental, em 1879, e passível de ser considerado um dos primeiros psicolinguistas, neste texto situa-se o aparecimento da PL no início da década de cinquenta do século pretérito. Empenhados, então, no arranque da PL, como ciência que vai buscar as suas raízes à Psicologia e à Linguística, encontravam-se os psicólogos Osgood, Carroll e Miller e os linguistas Sebeok e Lounsbury (Bronckart; Kail; Noizet, 1983). Como, para todos os acontecimentos dignos de nota, se revela necessária a existência de documentos que atestem a sua fundação, no caso da PL é tomada como marco a obra “Psycholinguistics. A survey of theory and research problems”, datada de 1954, organizada pelo psicólogo Charles Osgood e pelo linguista Thomas Sebeok. Esta publicação resultou dos escritos provindos de um seminário realizado na Universidade de Cornell, em 1951, sob a égide do Social Science Research Council, com a presença de especialistas de Psicologia e de Linguística, que procuravam estudar as relações entre as duas ciências (Slama-Cazacu, 1972). No seu percurso até aos nossos dias, a PL, com a sua índole explicativa e apoiada numa metodologia experimental, acaba por se tornar, como bem observa Slama-Cazacu (2007), já não uma área unicamente interdisciplinar, mas sim uma ciência com conexões multidisciplinares, que, porque assente numa visão mais abrangente da linguagem, 85
permite, entre outros, ver também o que se passa na leitura e na escrita, enquanto processos verbais. O objetivo deste texto reside precisamente em observar esses dois processos em matéria de implicações e aplicações à luz da PL, na qualidade de ciência explicativa que procura relacionar factos da linguagem com as bases psicológicas dos atores neles envolvidos.
Introdução A alusão, no princípio da apresentação, a Wilhelm Wundt, associado à ideia de poder ser considerado um dos primeiros psicolinguistas (Bronckart, 1977), serve de pretexto para se relevar o papel que foi outorgado, nos estudos realizados na área da Psicologia já no século XIX, à linguagem, embora, seguindo Bronckart, Kail e Noizet (1983), esta tenha sido objeto de uma leitura ainda restrita e não compaginável com a sua especificidade própria. Interessa lembrar que o mesmo século acompanha também grandes avanços na esfera da linguagem no âmbito da Neurologia, podendo ser assinalados, de entre um grupo notável de especialistas interessados nessa área de pesquisa, Broca, Wernicke, Lichtheim e Freud. Os estudos em ambas as áreas então realizados não poderão, por isso, ser ignorados sob pena de se subestimar um legado que não deixa de ser um alicerce do que veio a ser desenvolvido até à data no plano das relações entre a linguagem e as bases psicológicas e neurológicas que a sustentam. Se, à primeira vista, um psicólogo pode estudar a linguagem, na linha do que podemos designar por Psicologia da Linguagem, como um comportamento, entre vários, suscetível também de contribuir para o desenvolvimento de outros (percepção, memória e resolução de problemas), seguindo a tradição de Wilhelm Wundt, responsável, já no fim da década de setenta do século XIX (1879), pelo papel que se passou a conferir à linguagem em Psicologia Experimental, não será de excluir igualmente que haja linguistas que, numa perspectiva mais condizente com uma Linguística em Aplicação, a não confundir com Linguística Aplicada (Pinto, 2009a), se interessem por ver como determinada teoria encontra resposta em determinados desempenhos verbais. Para reforçar o que se deixa expresso, importará ter presente o pensamento de Lantolf (2006) quando se interroga por que não 86
integrar na aplicação da Linguística, enquanto validação de teoria, a pesquisa em aquisição da linguagem na criança, sobretudo a que se insere na teoria gerativa. Não resultará estranho alargar este entendimento a outros temas quando se quer investigar o que se passa em situações concretas, normais ou desviantes, em que a linguagem esteja em discussão. Nem sempre se verifica, por consequência, que quem estuda a aquisição da linguagem ou qualquer outra subárea da linguagem que busca explicar o seu processamento e que se enquadra, em grande parte, na PL, tem formação nas duas áreas (Psicologia e Linguística) ou joga com elas de modo a olhar o objeto de estudo com duas lentes em simultâneo, numa “fusão interdisciplinar”, se for usada a expressão de Slama-Cazacu (1979, p. 35). Por outras palavras, ainda na segunda década do século XXI, não se depara sempre com psicolinguistas que conjuguem de modo explícito, dependendo da sua formação, as bases que possuem com outras que merecem ser contempladas. Se os que provêm da Psicologia não detêm sempre a formação esperada em Linguística, também os que têm formação essencialmente linguística nem sempre relacionam devidamente os desempenhos verbais que analisam com os processos cognitivos que os acompanham, mesmo que não se coíbam de utilizar o termo “desenvolvimento” e de se servirem, nos seus estudos, de participantes que, se forem crianças, atravessam momentos do maior interesse no plano operatório com as repercussões inevitáveis na linguagem, uma vez que esta não se restringe a ser adquirida com base simplesmente no conhecimento figurativo. No caso de a população a estudar ser constituída, por exemplo, por pessoas idosas, os linguistas terão de estar também atentos às diferentes atividades cognitivas, porquanto não seguem todas percursos idênticos no processo de envelhecimento, já abstraindo o que se passa fisiologicamente, dado que se repercutem seguramente nos desempenhos verbais, o que torna imprescindível a sua caracterização antes da chegada a quaisquer conclusões associadas à linguagem. Quanto aos psicólogos, cabe-lhes analisar mais de perto diferentes aspectos verbais que possam estar a ser afetados pelo envelhecimento e não fixarem a sua atenção só em palavras soltas ou numa observação superficial dos discursos produzidos. Usufruir uma capacidade que concilie um olhar conjunto linguístico e psicológico, sem chamar, de 87
momento, outras áreas para a ribalta, constitui sem dúvida uma mais-valia a fim de se poder partir, com mais distância e de diferentes ângulos, para a análise de um objeto de estudo como é a linguagem. Quem realiza estudos psicolinguísticos deveria, em circunstâncias tidas como desejáveis, deter formações de ambas as áreas – Linguística e Psicologia –, para que os trabalhos que compartilham encerrem uma leitura mais completa e vasta do que se passa nos processos que ligam fatos da linguagem ocorrentes em situações de comunicação concretas às bases psicológicas dos locutores reais neles imiscuídos, independentemente da idade e dos perfis que possam apresentar. Vem, aliás, nesta senda, uma possibilidade de definição da PL, a saber: “A psicolinguística trata diretamente dos processos de codificação e de descodificação enquanto relacionam estados da mensagem com estados dos comunicadores” (Slama-Cazacu, 1979, p. 42). Esta formulação não deixa dúvidas, como adianta a autora citada, que uma formação em PL se reveste inclusive de toda a pertinência quando estão também em foco estudos na área da Linguística, muito em especial da aplicada. É que a Linguística Aplicada (LA) não pressuporá em exclusivo a Linguística, posto que o epíteto “aplicada”, que integra a designação “Linguística Aplicada”, lhe incute um cunho transdisciplinar que não pode ser escamoteado (ver Pinto, 2009a). Os que realizam estudos que integrem uma parte empírica, como acontece com grande parte dos que se enquadram na LA, conhecem bem o alcance do termo “transdisciplinar” quando, na seção metodologia, têm de apresentar de forma pormenorizada, os participantes, o material a analisar e as técnicas de procedimento. Não admira, portanto, que nesses estudos se entre numa esfera de ação verbal que pode integrar aspectos psicológicos, sociológicos ou mesmo neurológicos. Basta a referência à alfabetização e à linguagem no idoso, dois temas com implicações verbais que têm vindo a despertar um interesse especial na atualidade, para deparar, de imediato e sem rodeios, com conexões a disciplinas que se identificam com os aspectos apontados. Atentando a que não se afigura fácil estudar os temas enunciados de um ponto de vista que não inclua a PL, convém que, nas circunstâncias, esta seja concebida como uma “true ‘Science’, with ‘Multidisciplinary’ connections” e não como um “mere ‘Interdisciplinary Field’” (Slama-Cazacu, 2007, p. 80). 88
A leitura interdisciplinar não se revela, portanto, a única quando se procura realizar um estudo completo da linguagem e da comunicação, razão pela qual Slama-Cazacu (2007), que sempre atribuiu um papel de destaque ao ato de comunicação para o qual propôs, em 1961 [1959], um modelo contextual dinâmico, prefere que se veja na PL uma ciência com conexões multidisciplinares. Aspectos de ordem neurológica e sociológica, além necessariamente dos linguísticos e psicológicos, não poderão ser menosprezados em temáticas como as aludidas: alfabetização e linguagem no idoso. Quem partir para estudos da linguagem nesta ótica e quiser gerir devidamente todas as variáveis em jogo terá de possuir seja uma formação englobante, seja uma capacidade de trabalho em equipe. A leitura e a escrita serão versadas neste texto com o espírito de abertura patenteado.
O surgimento da Psicolinguística Importa iniciar por advertir que o termo “psicolinguística” não deixou de suscitar nos estudiosos interessados na sua origem alguma curiosidade relativamente ao ano e ao local em que terá surgido, pela primeira vez, no século XX. Ademais, não se sabe se terá sido usado, aquando das suas primeiras ocorrências, como adjetivo ou como nome e com ou sem hífen. Significa o exposto que as pesquisas levadas a cabo em torno do termo em análise podem mesmo levar a considerar com algumas reticências a sua criação americano-inglesa e com uma certa prudência a sua formação lexical (Pinto, 2009b). Afastados os aspectos terminológicos, é possível adiantar, com grande segurança, que a PL “nasceu”, com certidão de nascimento oficialmente passada, no começo dos anos cinquenta, nos Estados Unidos. A referida certidão mais não é do que uma publicação intitulada “Psycholinguistics. A survey of theory and research problems”, datada de 1954, organizada pelo psicólogo Charles Egerton Osgood, da corrente bahaviorista, e pelo linguista Thomas Albert Sebeok, que se viria a tornar num famoso (zoo) semioticista (Slama-Cazacu, 1972). 89
Já em 1951, contudo, segundo a mesma referência, a discussão em torno da clarificação das relações entre a Psicologia e a Linguística constituiu o tema de um seminário que se realizou na Universidade de Cornell, sob a égide do Social Science Research Council, que contou com seis especialistas das duas ciências. Há quem aponte, porém, 1952 como o ano da fundação da PL por psicólogos como Osgood, Carroll e Miller e linguistas como Sebeok e Lounsbury (Bronckart; Kail; Noizet, 1983). A preceder a publicação do volume de Osgood e Sebeok, muito provavelmente destinado à sua preparação, observa Slama-Cazacu (1972) que se realizou na Universidade de Indiana, em 1953, um seminário que contou com a presença dos organizadores do mencionado volume, de três outros investigadores e de cinco estudantes. Apesar de se terem verificado encontros com o mesmo intuito em datas anteriores a 1954, como se torna sempre imprescindível um documento que certifique os acontecimentos, a obra organizada por Osgood e Sebeok, datada desse ano, poderá ser tida como documento para registrar o aparecimento da PL. Embora o objeto de estudo não fosse totalmente novo e já viesse a despertar o interesse de estudiosos, é possível dizer-se que, a partir da obra indicada, se passou a sentir que a PL ficou mais bem definida conceptualmente e também no plano de métodos e dos seus limites (Titone, 1979). À época, as ligações ao behaviorismo e à teoria da informação eram visíveis e isso fez com que a definição de trabalho da PL proposta no mencionado volume de 1954, coordenado por Osgood e Sebeok, fizesse referência, como anuncia Slama-Cazacu (1972, p. 14), ao modo como essa disciplina trata diretamente dos processos de codificação e de descodificação que ligam as mensagens aos estados de quem comunica. Estava lançada a primeira escola psicolinguística, apoiada na teoria da informação, que conferia à linguagem um estatuto distinto do dos outros comportamentos psicológicos e que permitiria um estudo mais original (Bronckart; Kail; Noizet, 1983). Uma outra abordagem à linguagem com outro potencial e que fazia salientar melhor a sua especificidade não tardaria a emergir com o aparecimento da gramática gerativa. Acrescenta ainda Bronckart, Kail e Noizet 90
(1983), que este quadro teórico viria a fornecer conceitos (competência, criatividade, regras de transformação, estrutura de superfície e profunda, entre outros) que serviriam de sustentáculo, em especial, à segunda escola de PL. Nem tudo o que à linguagem diz respeito se podia limitar ao que, então, era oferecido pela gramática gerativa, o que motivou a emergência de análises semânticas ou pragmáticas da língua. Como comentam Bronckart, Kail e Noizet (1983), a ausência de um modelo global que levasse a um estudo psicolinguístico mais completo terá levado ao ressurgimento de trabalhos em Psicologia da Linguagem que se abstinham de fazer qualquer referência a modelos linguísticos. A partir de 1970, seguindo a mesma fonte, com o célebre artigo de Bever (1970), intitulado “The cognitive basis of linguistic structures”, via-se a PL liberta de modelos formais particulares a que tivesse de fazer referência obrigatoriamente. Em foco, passa a estar, sim, com base nos contextos teóricos achados mais oportunos, o estudo da aquisição da linguagem pela criança e do seu funcionamento no adulto com toda a sua abrangência. Estava lançada a terceira escola de PL, que abriu o caminho aos estudos que se realizam ainda presentemente. O objeto de estudo da PL passa a ser muito amplo ao colocar-se como desígnio penetrar nos processos psicológicos implicados nas mais variadas situações que envolvam a linguagem. Pode avançar-se, na trilha de Slama-Cazacu (2007), que, relativamente a outros pontos de vista, a PL traz mais vantagens porque é uma ciência explicativa que procura ir à raiz da linguagem e da comunicação e que liga os fatos da linguagem às bases psicológicas do indivíduo que se encontra empenhado nesses processos. O fato de a PL ser uma ciência explicativa significa que tem em consideração realidades concretas e sujeitos reais, recorrendo para o efeito ao método experimental. Além disso, como se apoia em sujeitos reais e em contextos particulares, acaba por fornecer soluções para a vida prática, o que a torna também aplicada. Nota, ainda, Slama-Cazacu (1979) que a PL, vista como uma ciência com ligações multidisciplinares e já não como um campo unicamente interdisciplinar, vai obrigar a adotar uma 91
posição de complementaridade entre a Psicolinguística e a Psicolinguística Aplicada. Não surpreende, pois, que, a este respeito, Prucha (1994) adiante que “[p]rovided we accept the concept which has been developed by some European psycholinguists (...) as the base of psycholinguitic research, then the applicability is included as an inherent quality of psycholinguistics” (p. 150). Revelam-se, assim, várias as tarefas que podem ser atribuídas à PL neste século. A finalizar o texto de 2007, Slama-Cazacu elenca as seguintes: I. PL and activities on Computer; II. PL confronted with political actions (Incl. financial-economic-social, etc.); III. PL and some almost neglected topics, aspects of life that might be of great interest in the XXIst Century; IV. PL and some psycho-somatic aspects or changes in the psyche of Humanity. (p. 84-85)
Não foram expressamente listadas as subtarefas de cada uma das tarefas aduzidas. Abre-se, contudo, uma exceção em relação a uma das subtarefas da tarefa III, isto é, a que se reporta à leitura/escrita de textos longos e breves em papel ou no computador, visto que este texto objetiva apreciar esses dois processos verbais numa perspectiva psicolinguística, sem deixar de contemplar, naturalmente, as conexões multidisciplinares da PL como ciência.
A leitura e a escrita como processos verbais É legítimo começar por estabelecer a distinção feita tradicionalmente pelos linguistas, como lembra Emig (1977), entre os processos verbais de primeira ordem – falar e ouvir – e os processos verbais de segunda ordem – ler e escrever. Diferem estes dois tipos de processos por serem, os primeiros, adquiridos sem instrução formal ou sistemática e, os segundos, por meio de instrução formal e sistemática. Seria até plausível acrescentar-se que os primeiros são adquiridos enquanto os segundos são aprendidos, apesar de aquisição e aprendizagem não se excluírem mutuamente e de ser difícil precisar, em determinadas circunstâncias, qual está em jogo. Os quatro processos podem, como é irrefutável, ser tratados psicolinguisticamente, por estarem em discussão fatos de linguagem associados a 92
processos psicológicos ativados por quem neles está envolto. Sem embargo, serão aquilatados neste texto os processos ditos de segunda ordem, a leitura e a escrita, correspondentes a atividades receptiva e produtiva respectivamente, dado que são os que se encontram mais ligados à alfabetização, tema que motivou este texto. Volvendo a Emig (1977), leitura e escrita contrastam em virtude de a primeira, compreendida para lá da decifração, implicar criar e até recriar e de a segunda, para além de criar, implicar originar um construto verbal registrado graficamente. A escrita, entendida como composição, ao fazer intervir a vista, a mão e o cérebro, é tida pela autora como um processo verbal único e com uma importância particular em matéria de aprendizagem. A observação de Emig a respeito da escrita encontra eco na abordagem multissensorial e multicognitiva de Odisho (2007), que insta a que se tire partido da congregação de sentidos e da conjugação de atividades cognitivas para que se almejem melhores desempenhos em tarefas que lucrem com um modo de atuação sensorial e cognitivo plural.
A leitura Vista a leitura como processamento, interessa atender aos modelos de índole mais psicolinguística que procuraram dar conta de vias diferentes de leitura de material impresso. Convém, todavia, atentar ao fato de o desenho destes modelos, que tomam como metáfora o computador, se servir para a sua elaboração de palavras isoladas. Paradis (2007) não poupa, porém, críticas a quem trabalha unicamente com essas palavras porque acha que os resultados obtidos por essa via não podem generalizar-se à língua como sistema,tampouco ao que se entende por ler, se estiver em análise a capacidade de leitura. Tudo depende evidentemente do que se quer analisar em matéria de linguagem. De qualquer forma, o fato de esses modelos de leitura contemplarem, em exclusivo, esse material verbal só pode contribuir para lhes retirar o poder explicativo que deles se espera, caso se queira que a leitura ultrapasse esse nível e abranja “uma tridimensionalidade que se traduz em 93
conhecimento linguístico, capacidades de literacia (ou de processamento de informação) e conhecimento prévio ou capacidades cognitivas” (Lopes; Martins; Pinto, 2015, p. 74). Capacidades cognitivas essas que podem até ser sociocognitivas porque muito devem às vivências do sujeito leitor e consequentemente ao seu contato com o social. Se se entender que a leitura não é só decifração e reconhecimento de palavras, mas é essencialmente compreensão tendente também à interpretação, ou melhor, o criar e o recriar mencionados por Janet Emig (1977), vem a propósito a seguinte passagem de Bernhardt (2011, p. 72): “[c]omprehension comes with baggage. The task for advanced language learners is not only to learn words but to create the baggage that they carry with them”. Quer dizer que, para Lopes, Martins e Pinto (2015, p. 77), a compreensão bem-sucedida da mensagem impressa nasce do processo de extrair e integrar a informação contida em determinado texto que, por sua vez, combinada com o conhecimento prévio do leitor e com a sua destreza na manipulação dos elementos de que dispõe, [...] [cria] um produto aproximado daquilo que o autor teve em mente [...] [originar].” É que, ao recriar, o leitor pode, muitas vezes, chegar a um resultado que transcende a mensagem que o autor originou e quis transmitir.
Os supracitados modelos que distinguem diferentes vias possíveis de leitura, como muito do que se passa no plano do processamento verbal, conhecem, em grande parte, a sua gênese naquilo com que se depara em patologia. Tanto a patologia como a aquisição da linguagem originam desempenhos que contribuem para penetrar numa “caixa negra” que se reveste de opacidade quando o processamento verbal é operado, de modo normal e automático, por um ser humano sem problemas aparentes. Como diz Susan Curtiss, com base no caso da Genie, a criança selvagem por ela estudada psico e neurolinguisticamente nos anos setenta do século passado, os resultados obtidos levam a pensar que “[l]anguage no longer looks like a uniform package” (Pines, 1981, p. 34). Esse “uniform package” mais não será do que uma boa designação do que antes foi intitulado “caixa negra”, uma caixa que se supunha impenetrável. 94
Não obstante os modelos de leitura a que se dedicará algum espaço neste momento serem, de um modo geral, resultantes da leitura de palavras soltas, não se pode deixar de lhes atribuir um papel importante, quer no atinente à novidade que traz uma abordagem psicolinguística nesta área relativamente a outras anteriores, sobretudo de índole clínica, quer em relação às suas implicações no plano da intervenção terapêutica. Dependendo do tipo de abordagem, clínico-anatômica ou psicolinguística, as perturbações de leitura por lesão cerebral apresentam classificações distintas. Na primeira situação, são conhecidas por alexias (pura, com agrafia e afásica); na segunda, em resultado da via de leitura comprometida – o que deixa em aberto a hipótese de nem todas as vias (semântica, fonológica e direta) estarem danificadas pela lesão e permitirem que se passe a usar o termo “dislexia” em vez de “alexia” –, ocorrem as designações: dislexia visual, dislexia de superfície e dislexia profunda (Montañés; Brigard, 2005). De entre as alexias enumeradas, convirá dar um destaque especial à alexia pura, motivada por lesão do lobo occipital esquerdo e do esplênio do corpo caloso, zonas irrigadas pela artéria cerebral posterior esquerda, que foi descrita pela primeira vez por Déjerine, nos anos noventa do século XIX, com base na autópsia realizada que evidenciava lesão na área descrita (Caplan, 1987). Terá interesse avançar que doentes que tenham a parte posterior do corpo caloso afetada, ou seja, o esplênio, podem não apresentar a leitura perturbada quando não lhes é solicitada a visão. Podem ler por via tátil, atendendo a que, para tal, a transmissão da informação entre hemisférios se faz através de um outro fragmento do corpo caloso que não apresenta ligações às entradas visuais. Quanto às dislexias, Temple (1985) dá-nos conta de dois modelos de processamento da leitura: um de via dupla e outro de via tripla. No de via dupla, são manifestas duas possibilidades para ler uma palavra em voz alta: uma através do sistema semântico e outra por meio de um conjunto abstrato de regras grafema-fonema. O modelo de via tripla, como adianta ainda a mesma autora, conta com a possibilidade de transitar diretamente dos detectores de palavras à saída fonológica sem recorrer ao sistema semântico. Os erros que possam ser cometidos pelos pacientes remetem para problemas numa ou em mais do que uma das vias realçadas. 95
Os modelos focados, bem como todos os que pretendem traduzir o modo como se processa a informação da linguagem no plano da produção e da compreensão, embora sejam dados pela escola de Neuropsicologia Cognitiva por meio de diagramas, que recorrem a caixas e setas para fazer corresponder os distúrbios encontrados nos pacientes a determinadas componentes dos modelos, não se aproximam, exatamente por essa razão, dos diagramas usados no século XIX por Wernicke, Lichtheim, Broadbent e Bastian, em que as caixas representavam centros no córtex cerebral e as setas, por sua vez, as ligações entre esses centros (Howard; Hatfield, 1987). Nos modelos neuropsicológicos cognitivos em discussão neste enquadramento (ver, entre outros, Morton; Patterson, 1980), como ainda notam Howard e Hatfield (1987), qualquer localização cerebral do que vier a ser encontrado nos desempenhos verbais é secundária. Já será basilar, no entanto, a qualidade dos erros cometidos tendo em conta variáveis definidas psicolinguisticamente. É justo sublinhar, nesta oportunidade, os contributos originais trazidos para a classificação das paralexias por Marshall e Newcombe (1966; 1973) que, ao enveredarem por uma terminologia apoiada na PL, optaram por chamar semânticos, visuais, derivacionais, de substituição de functores e mistos aos erros encontrados, afastando-se, assim, das anteriores classificações clínicas (ver Pinto, 1994). Convém ressaltar como as duas abordagens relevadas, clínico-anatômica e psicolinguística, ao revelarem preocupações distintas, originam também outras terminologias. No plano da leitura e da escrita, as alexias e as agrafias passam a ser chamadas, na ótica psicolinguística, dislexias e disgrafias, em virtude de não se encontrar perturbado todo o processamento da leitura e da escrita, mas antes parte dele. Esta mudança de enfoque abre ainda novas pistas no terreno da intervenção terapêutica por facultar entradas à recuperação através das vias não atingidas pela lesão cerebral, que são identificadas por meio dos erros cometidos. Revela-se, pois, de toda a justiça realçar, neste cenário, o papel dos neuropsicólogos cognitivos e dos psicolinguistas. A terminologia de erros com base psicolinguística teve como ponto de partida pacientes com lesões adquiridas; todavia, para Johnston (1983) e Temple (1984), essa terminologia pode perfeitamente ser admitida nas dis96
lexias de desenvolvimento quando, nesses quadros clínicos, surgirem erros similares aos verificados nos diversos tipos de dislexia adquirida.
A escrita Neste contexto, conta sobretudo tomar a escrita como composição, pois é esta forma de escrita e não a decifração que abre caminhos mais propícios a uma análise psicolinguística aprofundada do que representa o processo verbal em debate. O que a escrita/composição comporta de processo cognitivo é visível na sua subdivisão nos três conhecidos processos cognitivos: a planificação, a tradução e a revisão (Mccutchen; 2006, p. 115), que ainda apresentam, por sua vez, subprocessos (Hayes; Flower, 1980; Flower; Hayes, 1981). Quando a escrita é tida como um processo/movimento, deixa de ser vista como um simples produto assente em estágios rígidos (“pre-writing”, “writing”, “re-writing”) (Flower; Hayes, 1981, p. 367), cuja ordem teria de ser respeitada no momento da sua concretização (Hayes; Flower, 1986; Rohman, 1965). Foi a teoria do “produto” ou da “retórica corrente tradicional” que colocou a ênfase no produto composto em detrimento do processo de composição (Matsuda, 2003). Na década de setenta do século pretérito, Sommers (1979) questionava já os modelos de processo de escrita que se organizavam por etapas/ estágios/atos independentes. A mesma autora queixava-se, ainda, da pouca atenção conferida à revisão em virtude de os modelos do processo de escrita que vigoravam estarem presos a um movimento linear da escrita. E chega mesmo a escrever: “What this movement fails to take into account in its linear structure – “first... then... finally” – is the recursive shaping of thought by language; what it fails to take into account is revision” (Sommers, 1980, p. 378). Esta autora não via razão para a revisão ser supérflua no processo da escrita, na medida em que está em apreço um processo que acentua a ideia de que o movimento recursivo traduz melhor o processo inerente à escrita do que um movimento que seja linear. Na verdade, quando está em discussão a escrita, não é o produto por si só que deve suscitar interesse, mas o processo que comporta, resultando a 97
revisão, enquanto processo que a integra, somente menorizada se for tida como um ato isolado, não criativo, uma autópsia, em suma, um ato destinado a limpar a prosa (ver Sommers, 1979). Será justo convocar, neste momento, o testemunho de Dethier em relação ao papel que Donald Murray teve, já no início da década de setenta do século passado, na defesa da escrita como processo. No dizer de Dethier (2013), Donald Murray, ao colocar o foco na escrita como processo e não como produto, terá marcado, com a sua publicação intitulada Teach writing as process, not product (Murray, 1972), o “unofficial birth of the writing process movement” (Dethier, 2013, p. xiv), tornando-o, em conformidade com a mesma fonte, a voz do movimento. Nesta mesma linha, Crowley (1977) adverte que o processo da escrita ideal corresponde a um movimento recursivo que vai da síntese à análise. Existe uma parte do processo da escrita que se prende a um trabalho de busca de uma melhor relação entre o escritor e o assunto a tratar e uma outra parte, mais analítica, que compreende a revisão ou alterações estilísticas. Remata, então, Crowley o seu pensamento com a seguinte passagem: “The whole process is not linear; it moves forward and backward between synthesis and analysis” (Crowley, 1977, p. 168). Em resposta a Crowley, Sommer, por sua vez, acrescenta: “The composing process is neither linear, nor recursive, but must be by its very nature both linear and recursive” (1978, p. 210). O grau de experiência de escrita dos que escrevem/compõem também se repercute no modo como veem e tiram partido dos três processos acima assinalados (planificação, tradução/redação e revisão). Ao encontro do exposto vem o que é relatado no século presente, num estudo da autoria de Fabretti e Zucchermaglio (2002), acerca do papel consignado no processo de escrita à revisão (14%), à planificação (36%) e à redação (50%) por estudantes universitários italianos. Ressaltam das percentagens indicadas a pouca atenção que é dedicada à revisão e sobretudo a preocupação que despertam nos estudantes, em especial, os aspectos superficiais dos textos. Em relação à revisão, que é porventura o processo mais exigente da escrita, Sommers (1980) adianta que os estudantes viam nela uma atividade destinada a dar outra ordem às palavras, sem se ocuparem com a 98
sua representação conceptual. Quanto aos que detinham mais experiência de escrita, esses já revelavam uma preocupação com o todo, contrariando qualquer modelo linear. Não se suponha, contudo, que esta diferença não se verifica nos revisores profissionais. Também existem diferenças entre os modos de rever dos revisores mais novos e dos mais experientes. Em períodos de tempo idênticos, seguindo estudos realizados, os revisores com mais de doze anos de prática fazem quase três vezes mais modificações do que os que possuem menos de quatro anos de experiência (Laflamme, 2009). Sommers (1980) dá um relevo particular à revisão porquanto, na sua opinião, será ela e não a planificação ou a redação que leva quem escreve/compõe a criar/descobrir o significado à medida que vai escrevendo. Faigley e Witte (1981) sublinham também os efeitos da revisão da escrita no significado, apelando para as necessidades e os desejos da audiência, e para a importância de se criar distância em relação ao que se está a redigir antes de se reler e partir para a revisão. A referência à importância de se propiciar um distanciamento relativamente ao que se está a redigir, para depois se voltar a ler com o intuito de rever e até de reescrever, evocada por Faigley e Witte (1981), pode remeter para a teoria da citação da escrita (“The quotation theory of writing”) de Olson e Oatley (2014). Respeitando essa teoria, a distância necessária ao trabalho de releitura e de reescrita que anda associada à revisão, só é possível quando se aceita a língua como algo de mencionado, de “citado”, de colocado entre aspas, e não como algo que está a ser usado. Em consonância com Olson e Oatley (2014), só uma língua tornada objeto por via da citação é que permite olhar o material do exterior e refletir sobre ele através do uso metalinguístico da língua. Dessa forma, na senda da fonte aludida, tudo o que se encontra citado distingue o que é significado no texto daquilo que o autor quis significar, gerando-se, assim, um desfasamento temporal que propicia qualquer interpretação ou intervenção menos comprometida. Para os autores aduzidos, com base nesta forma de ver a escrita, os escritores são livres de agir sobre a expressão citada na qualidade de artefato sujeito à revisão. Acrescentam ainda que os leitores, por seu lado, passam a 99
estar isolados da intenção original do escritor e a dispor de uma estrutura linguística que pode ser usada ou não livremente em função dos objetivos. Interessa, nesta oportunidade, notar como Olson e Oatley (2014), retomando a ideia de revisão de autores como Hayes e Flower (1986) e Bereiter e Scardamalia (1987), avançam que esta demanda um ajustamento do conteúdo à forma retórica, o que significa uma obediência às convenções do gênero em análise. Adiantam, ainda, que o escritor recorre, então, a um conhecimento metalinguístico que se coadune com o enquadramento retórico exigido pelo gênero escolhido e usa-o para recuperar e organizar a informação. Dito diferentemente, como advertem Olson e Oatley (2014), a revisão traduz-se em “work on paper” (p. 15), no sentido de interagir com uma forma escrita que já se distanciou das intenções do escritor. Sobressai, pois, a ideia de que o que se encontra escrito se apresenta sob forma de objetos isolados que foram “citados”, registrados, e já não em fase de uso. Trata-se da escrita como uma tecnologia capaz de tornar a linguagem “off-line” (Olson; Oatley, 2014, p. 4), com tudo o que isso pode querer dizer em termos de manipulação desse material por parte do autor e do leitor. Registra-se aqui, na oportunidade, com recurso a Olson e Oatley (2014), a forma como Marcel Proust captava a relação entre a forma e o conteúdo: Marcel Proust [...] captured the relation between form and content in his perspicacious statement that good poets are those for whom “the tyranny of rhyme” forces them “into the discovery of their finest lines [...] (Olson; Oatley, 2014, p. 15).
A respeito das autobiografias das participantes no “Nun Study”, Snowdon (2002), depois de ter ouvido a explicação de Susan Kemper acerca da relação, por um lado, da densidade de ideias com a capacidade de processamento da linguagem e, por outro lado, da complexidade gramatical com a memória operatória, perguntou-lhe como era possível imaginar um escritor como Ernest Hemingway, conhecido pelas suas frases curtas, na análise proposta. A resposta de Susan Kemper foi a seguinte: “I have never claimed that complex sentences or idea-dense sentences make for good literature” (Snowdon, 2002, p. 109). 100
O trabalho árduo que acompanha a revisão, executada a partir de sucessivas leituras críticas prévias, comporta uma força recursiva tal que não deixa, todavia, inalteradas nem a planificação, nem a redação. Nesta inter-relação em nível dos processos cognitivos da escrita, gera-se, como é natural, um labor psicolinguístico entre a escrita e o pensamento que Donald Murray (2013) atesta com toda a clarividência na seguinte passagem: “writing [...] is an effective way of testing what we know and how we think about what we know. Writing is the most disciplined and revealing form of thought” (p. 2). A ideia de olhar a escrita/composição como um processo cognitivo, individual, expressivo, que abarca as fases atrás listadas, e também como um pós-processo que traduza um “social turn” (Atkinson, 2003a; 2003b; Matsuda, 2003) leva a que se examine a escrita como um processo não somente cognitivo, mas já sociocognitivo, em que a mente, o corpo e o mundo ecossocial funcionam de modo integrado e não como fenômenos separados (Nishino; Atkinson, 2015). Acontece que se podem ver já na pré-escrita ligações com o Outro, podendo esse Outro corresponder também às fontes, elevando, assim, qualquer processo cognitivo a sociocognitivo. Não se deve, por isso, associar a revisão, tal como é tão bem retratada por Donald Murray (2013), a um mero processo cognitivo sem ligações com o mundo e com o que este nos transmite, sobretudo quando o autor pensa na sua audiência e na forma de tornar o que escreve ajustado à mesma. Para tal, o autor tem mesmo de conhecer o Outro e de saber que informação, depois da pesquisa realizada, o satisfará ou não.
Breves notas conclusivas Não moveu o autor deste texto equacionar os pressupostos cognitivos que permitem olhar para os começos da leitura e da escrita como um processo com características fortemente psicolinguísticas ou mesmo, seguindo o pensamento de Slama-Cazacu (1979), sócio-psicolinguísticas, por nele se poderem já ver “as determinantes sociais que aí operam” (p. 62). Seriam exemplo dessas determinantes sociais tudo o que se conjuga para preparar a instalação, no bom momento, da literacia emergente e a eventualidade de 101
estarem por detrás dessa instalação o que Olson (1994, p. 253) designa por “bookish parents”. Essa fase não foi, todavia, incorporada neste texto, se bem que fosse digna de o ter sido por razões de ordem também neurológica (ver Fitzakerley, 2015). Julgou-se, contudo, mais pertinente partir para uma abordagem psicolinguística centrada na leitura enquanto processamento e na escrita como composição. Foi selecionada a escrita como composição por esta avivar com mais intensidade a existência de um diálogo firmemente vigoroso entre a esfera das ideias e a das palavras usadas para as concretizar. Teve este texto como principal objetivo, à luz da PL, após uma rápida passagem pela sua gênese, não só desmontar, com base na patologia, o que, à primeira vista, se revela opaco no processamento verbal, nomeadamente na leitura, mas também fazer ressaltar a leitura e a escrita enquanto processos verbais que visam criar e recriar, na leitura, e criar e originar, na escrita, recorrendo à terminologia de Emig (1977), quando está em questão o que representa o processamento destas habilidades por parte de quem as pratica. A linearidade do processamento verbal obrigou a que se tivesse optado por invocar uma das habilidades em primeiro lugar, tendo a escolha recaído sobre a referência à leitura antes da menção à escrita, não obstante ambas terem de ser concebidas como um todo feito de cumplicidades e de a escrita tender a destacar-se, quer em virtude do seu forte envolvimento no plano neuro-sócio-psico-linguístico, quer porque representa, sem dúvida, uma mais-valia em várias vertentes (Pinto, 2014). Também foi dado, no momento achado oportuno, um certo realce à “teoria da citação da escrita” de Olson e Oatley (2014), porque se acredita que traz contributos relevantes para que se sinta a importância de distanciar os que leem e os que escrevem do artefato criado pela escrita, visto de modo isolado, “off-line”, na qualidade de referência mencionada, posição que faz pensar no efeito de distanciamento (“Verfremdungseffekt”) de Bertolt Brecht, e que, nesta situação particular, confere uma maior abertura a uma abordagem psicolinguística reflexiva da leitura e da escrita por parte dos seus atores. Leitores e escritores vivenciam, dessa forma, com mais lucidez os recursos usados nos processos de (re)criar e de originar 102
(Emig, 1977) em que participam e podem, jogando com as implicações que se geram entre a leitura e a escrita, tomar consciência do que se passa entre os fatos da linguagem e os processos psicológicos a eles vinculados, ou melhor, do que é, afinal, o objeto da PL enquanto ciência explicativa.
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5 O papel do professor no processo da construção de sentido na leitura Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig
Ler é um acontecimento que marca a vida de todos nós, pois mudamos a forma de olhar e compreender o mundo. Para que isso ocorra, não basta estarmos expostos a materiais escritos, ainda que sejam eles que nos despertem o desejo de decifrar o que ali se apresenta. Portanto, partimos do princípio de que ler é um processo de ensino e de aprendizagem aliado aos eventos e práticas de letramento escolares e não escolares. O objetivo deste texto é refletir sobre o papel do professor no ambiente de aprendizagem considerando o leitor, nesse caso o aluno, a sala de aula, o contexto, o texto e as atividades que são realizadas. Esta reflexão tem como inspiração o texto Reading as a Meaning-Construction Process: the reader, the text, and the teacher, de Ruddell e Unrau, escrito em 1994, e chegado a minhas mãos em 2000, por indicação da professora Dra. Loni Grimm-Cabral na UFSC. Depois de mais de dez anos, o texto é retomado para nova leitura e, consequentemente, novas atribuições de sentido, a fim de mobilizar conhecimentos, saberes e fazeres acerca do ensino da leitura. Tal movimento reflexivo se deve ao fato de haver ainda, nas escolas, crianças e jovens que não leem ou que leem, mas não compreendem o texto, o que leva a um questionamento sobre o papel do professor no processo de ensino da leitura. Nesse viés, há alguns pontos a considerar. A leitura é um processo de construção de sentidos, ou seja, há uma ação do leitor sobre o lido, que lhe permite atuar num movimento de ir e voltar ao texto numa relação com o dito pelo autor, não ficando apenas na extração do significado, mas inte107
ragindo sobre/com o escrito a fim de relacionar o que se apresenta, a sua composição, a escolha lexical, a ordem dos argumentos ou informações. O sentido que o leitor constrói exige dele ações sobre o dito e o não dito. Considerando a perspectiva teórica aqui adotada, são componentes principais desse processo: texto e contexto da sala de aula, leitor e professor, os quais serão apresentados e relacionados ao longo do capítulo. Inicialmente, situa-se o leitor quanto ao ambiente de aprendizagem e aos conceitos de leitura para, a seguir, refletir acerca do que se sabe sobre o leitor para que haja uma ação educativa no ensino da leitura. Também é apresentado o uso e o controle do conhecimento pelo leitor e pelo professor para que se possa perceber as proximidades entre ambos e as especificidades de cada um. A discussão maior fica para o final, quando se reflete qual o papel do professor no ensino da leitura e de que maneiras as práticas em sala de aula auxiliam o aluno a construir sentido.
Palavras de ancoragem Para a reflexão que aqui se propõe, é preciso destacar o ambiente de aprendizagem, pois é nele que ocorre o processo de negociação de sentidos, isto é, os sentidos são criados como resultado da interação entre leitor, texto, professor e a sala de aula. Além disso, o ambiente de aprendizagem tem forte influência sobre a motivação dos alunos para se engajarem na leitura a fim de agirem sobre o texto para que ocorra a sua compreensão, o que pode ocorrer apenas pela ação do leitor ou com a mediação de um leitor experiente. Nessa perspectiva, destaca-se o papel do professor como o que seleciona ou indica os textos para leitura, bem como é responsável pelas tarefas que antecedem ou precedem a leitura do texto; ele assume o papel crítico na orquestração e negociação dos sentidos do texto no contexto da sala de aula, sendo este espaço o da interação. Ainda neste ambiente de aprendizagem, é preciso considerar outros aspectos: a tarefa, a origem da autoridade e os significados socioculturais, ou seja, é preciso ler mais que o texto. Portanto, no ambiente de aprendizagem ocorrem as relações entre leitor, professor e sala de aula, o que exige conhecimento prévio sobre a 108
comunidade na qual se atua, conhecimento científico no que se refere aos aspectos linguísticos dos textos a serem analisados, compreensão sobre como ocorre o processo de leitura e conhecimentos sobre procedimentos didáticos e pedagógicos para o ensino da leitura. Isso sinaliza que a tarefa de ensinar a ler não pode ser feita por qualquer profissional e requer uma metodologia desenvolvida pelo professor para atuar em seu ambiente de aprendizagem. Diante desse cenário, uma questão se apresenta para a reflexão dos professores: como ocorre em sala de aula o processo que envolve o contexto do leitor, a escolha do texto e a atuação do professor? Como o professor se percebe nesse processo? Antes de refletir sobre a leitura em sua perspectiva educacional, é preciso apresentar pontos de vista sobre a compreensão de leitura adotada neste texto. Para isso, apresentam-se, inicialmente, perspectivas teóricas de alguns autores para, posteriormente, travar um diálogo entre eles. Morais (1996, p. 112), ao responder à pergunta “o que é a leitura?”, título de uma das seções de seu livro, sintetiza: “a leitura é um modo particular de aquisição de informação”. Na compreensão de Goodman (1971, p. 260): A leitura é um processo seletivo que envolve o uso parcial das mínimas pistas de linguagem disponíveis as quais são selecionadas do input perceptual com base na expectativa do leitor. Conforme a informação parcial é processada, as decisões provisórias são tomadas para serem, então, confirmadas, rejeitadas ou refinadas à medida que a leitura progride. De forma mais simples, pode-se dizer que a leitura é um jogo de adivinhação psicolinguística que envolve uma interação entre pensamento e linguagem1.
Leffa, ao aproximar as diferentes definições de leitura, faz um alerta quanto à incompletude dos modelos adotados inicialmente: Ao definirmos a leitura quer como um processo de extração de significado (ênfase no texto) quer como um processo de atribuição de significado (ênfase no leitor), encontramos, em ambos os casos, uma 1
Reading is a selective process. It involves partial use of available minimal language cues selected from perceptual input on the basis of the reader’s expectation. As this partial information is processed, tentative decisions are made to be confirmed, rejected, or refined as reading progresses. More simply stated, reading is psycholinguistic guessing game. It involves an interaction between thought and language.
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série de problemas mais ou menos intransponíveis. A complexidade do processo da leitura não permite que se fixe em apenas um de seus polos, com exclusão do outro. Na verdade, não basta nem mesmo somar as contribuições do leitor e do texto. É preciso considerar também um terceiro elemento: o que acontece quando leitor e texto se encontram. Para compreender o ato da leitura temos que considerar então (a) o papel do leitor, (b) o papel do texto e (c) o processo de interação entre o leitor e o texto. (1996, p. 17)
Essas compreensões sobre leitura ratificam a discussão que estamos iniciando neste texto, na qual a leitura é considerada um processo interativo para a construção de sentidos, conforme já anunciado, que deve levar em conta o ambiente de aprendizagem e seus elementos constitutivos, especialmente quando se quer a aplicação desses conhecimentos teóricos no espaço educativo. Ao trazer a discussão sobre leitura para a sala de aula, considerando os seus atores, deseja-se, inicialmente retomar alguns dos pressupostos, apresentados por Ruddell e Unrau (1994), decorrentes de pesquisas que observaram a interação professor-aluno em sala de aula. Ressalta-se que os pressupostos foram revisitados considerando o contexto histórico e social no qual a leitura é compreendida no presente texto. O primeiro pressuposto afirma que os leitores, mesmos os iniciantes, são construtores ativos de teoria e testadores de hipóteses. Por isso, já na educação infantil é importante um planejamento que inclua a leitura em sua rotina, levando a criança a compreender as diferentes funções que a mesma tem. Além disso, o professor dos pequenos ou dos anos iniciais pode lançar mão de estratégias de leitura, orientando o leitor a adotar atitudes e comportamentos para facilitar a construção de sentidos durante a leitura do texto, ainda que esta seja feita para ele, pois, quando for feita por ele, as estratégias já farão parte de sua ação leitora. O desempenho na linguagem e na leitura está diretamente relacionado com o ambiente do leitor, por isso é importante conhecer outros ambientes diferentes do escolar. Nesse aspecto, consideram-se as agências de letramento que são espaços sociais ou instituições situadas em um tempo, em uma cultura e onde se pode aprender a ler e a escrever. É nesses espaços que 110
os eventos de letramento ocorrem, e, observando-os, é possível depreender os valores e crenças que circulam para compreender os sentidos que os participantes atribuem tanto à leitura como à escrita. A força por trás do desempenho linguístico e do crescimento em leitura é a necessidade do leitor de obter sentido. Esse é o terceiro pressuposto, o qual conduz a três aspectos: razões para ler; interlocutores; escolhas sobre o que ler. Diante deles, uma série de questionamentos podem ser realizados pelos atores educacionais: ler para quê? Ler para quem? Como esses dois pontos são considerados na leitura? Quem escolhe o texto? O que se faz com o texto? E, por fim, qual o papel do professor nesse processo? O desenvolvimento da linguagem oral e escrita, que afeta o processo do pensamento, contribui diretamente para o desenvolvimento das capacidades de leitura. Também diante desse pressuposto algumas reflexões podem ser apresentadas. Por exemplo, no planejamento do professor, como oralidade e escrita são articuladas em relação à leitura? Para além disso, como se avalia essa relação no processo de aprendizagem considerando a especificidade de cada eixo (oralidade, leitura e escrita) e seus processos? Percebe-se, então, que, ao planejar, o professor precisa levar em conta as capacidades a serem desenvolvidas e as formas de avaliar como isso ocorreu ao longo do processo. Os leitores constroem sentido não só a partir do texto impresso, mas também a partir de eventos, fala e comportamento, à medida que leem gestos, imagens, símbolos, sinais que estão embutidos no ambiente social e cultural. Segundo Grotta (2001), a figura do professor como leitor para seus alunos é uma das experiências escolares mais significativas no processo de formação destes como leitores. Portanto, é preciso sensibilidade docente também em relação à leitura. Para isso, é preciso que o professor reflita: como se revela leitor a seus alunos; como os livros são indicados; que atividades de leitura são realizadas e como elas estão relacionadas ao contexto dos alunos. O penúltimo pressuposto circula entre leitor, textos e sentidos, pois os textos são reinventados constantemente, uma vez que os leitores constroem sentidos diferentes para eles em um círculo hermenêutico. Os sentidos para os textos são dinâmicos e são mobilizados à medida que textos e con111
textos mudam e interagem. Assim, diante de um texto, o professor pode se perguntar quantas leituras são possíveis e, partindo dessa reflexão, pode convidar o leitor a ler e reler o texto, levando a uma experiência que transcende as atividades escolares nas quais, na maioria das vezes, um texto tem uma leitura e uma interpretação. Por fim, é preciso considerar que o papel do professor é crítico na negociação e facilitação da construção de sentido do texto e do contexto social da sala de aula. Nesse pressuposto, vale destacar dois pontos: as ações em sala de aula e a formação inicial e continuada, que estão articulados entre si, uma vez que, para ser um negociador de sentidos, o professor precisa ter formação para tal. Não cabe aqui uma análise dos currículos dos cursos de licenciatura, mas um olhar atento para esse espaço investigativo a fim de que as pesquisas possam revelar que professor está sendo formado e como essa formação teórica e didática se reflete nas ações da sala de aula, o que inclui a motivação, as propostas a partir da leitura do texto, as estratégias mobilizadas, a seleção dos textos, a avaliação do processo. Até aqui, foram apresentados alguns pressupostos para o ensino da leitura com base na compreensão de que os sentidos são construídos em um processo interativo no qual o professor precisa conhecer o ambiente de aprendizagem, considerar os sujeitos que dele participam, ter domínio teórico sobre leitura, antes de se aventurar a ingressar nesse universo educacional.
O leitor: o que sabemos sobre ele? Responder a essa questão não é tarefa fácil ou simples e requer de quem ensina uma pergunta inicial: como leitor é definido? A compreensão do que é um leitor é fundamental para que se possa pensar em ações didáticas. Além disso, é preciso considerar que o leitor não está sozinho nesse processo, pois se forma em diferentes ambientes leitores, tem experiências de vida, crenças, valores e conhecimentos. Portanto, o professor está diante de um sujeito que traz para a sala de aula seus sentidos sobre o que é ler e como se faz. Também ele, ao longo de sua vida e atuação docente, encontrou diferentes leitores, o que irá lhe permitir conhecer melhor o grupo com que atua, levando-o a compreender que se lê para construir sentidos. 112
O leitor, em seu ambiente de aprendizagem, mobiliza crenças e conhecimentos prévios, pois a motivação, o contexto, os valores influenciam, por exemplo, na aquisição de novos conhecimentos e na interpretação de textos. Mas o que as crenças e conhecimentos prévios incluem? As condições afetivas e as cognitivas. No que diz respeito às primeiras, nelas estão presentes a motivação para ler; os valores e as crenças socioculturais sobre ler e sobre a escola. Já, no que tange às cognitivas, estão incluídos os seguintes aspectos: conhecimento linguístico; esquema de análise de palavra; estratégia de processamento textual; compreensão sobre a sala de aula e a interação. As condições afetivas influenciam na decisão de ler considerando o que ler; como a leitura ocorre e os objetivos. Para compreender melhor esse componente do modelo aqui em discussão que representa a interação entre professor e leitor, são destacadas quatro condições afetivas: a) motivação que inclui as condições que promovem a intenção de ler e está ligada às experiências bem-sucedidas vividas pelo leitor; b) atitude para com a leitura e com o conteúdo, ou seja, como o indivíduo vê o ato de ler e o tema, o que influencia o leitor a continuar ou não. É preciso considerar também que há ações que ocorrem antes, durante e depois de ler, as quais são influenciadas pela natureza do texto; c) posicionamento do leitor que abrange o foco na atenção e o propósito da leitura, pois o leitor tem maneiras de ler que são influenciadas pela natureza do texto e pelo desejo de interação com ele. Neste ponto, vale questionar como a escola atua; d) valores socioculturais e crenças que apontam para integração entre família e escola, sendo, nesse cenário, papel do professor integrar os diferentes conhecimentos, conforme já se mencionou anteriormente. As condições cognitivas interagem com as afetivas e têm um papel vital no processo da leitura. Para compreender as cognitivas, é preciso abordar o papel que três tipos de conhecimento exercem: 1) o declarativo inclui o “o quê” do leitor, ou seja, o que conhece de fatos, objetos, conceitos, eventos, linguagens, entre outros sobre o mundo; 2) o procedimental consiste no “como é?”, relacionado a estratégias para uso e aplicação do conhecimento); 3) o condicional está relacionado ao “quando” e “por que”, incluindo o contexto e as intenções, é usado para compreender o contexto social no 113
qual a leitura tem lugar. Esses diferentes conhecimentos do leitor são essenciais para a construção do sentido e estão armazenados em estruturas denominadas esquemas, os quais incluem: conhecimento da língua e da linguagem; análise da palavra; estratégias de processamento de texto; estratégias metacognitivas que dizem respeito à monitoria do leitor sobre o texto lido; conhecimento da sala de aula e dos padrões de interação social entre alunos-leitores e professor; conhecimento pessoal e de mundo que afeta os efeitos de interpretação. Desses aspectos enumerados, optou-se por refletir acerca de três deles. Por ser a leitura um processo linguístico, essa requer conhecimento linguístico no que concerne à construção do sentido. Esse conhecimento do leitor consiste nas formas como o conhecimento fonológico, o sintático e o lexical são representados em esquemas. Já a análise da palavra inclui a alfabetização, na qual há quatro fases a serem consideradas: logográfica, transição da logográfica para a o início da alfabética, alfabética e ortográfica. Estar plenamente alfabetizado é condição para ser um leitor que constrói sentidos. Por fim, há as estratégias de processamento de texto que estão relacionadas ao conhecimento sobre a organização textual, por exemplo, como o leitor interpreta uma narrativa e um texto expositivo, o qual não será abordado nesse momento. No caso das narrativas, deve-se levar em conta a “gramática de histórias” que, segundo Scliar-Cabral (1991), são teorias que procuram dar conta de como o conhecimento de mundo é representado na memória de modo a explicar a forma como as narrativas são compreendidas. A experiência de leitura de narrativas leva o leitor a desenvolver um senso de modelo de história que lhe permite fazer predições e ter expectativas, o que auxilia na construção do sentido e na compreensão das narrativas, pois o esquema já está internalizado. Considerando que há um processo que envolve a mobilização e o controle de conhecimentos que envolvem também as crenças e conhecimentos prévios tanto do leitor como do professor, na seção que segue, apresentamos um esquema que ilustra como esses diferentes aspectos se inter-relacionam.
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Uso e controle do conhecimento pelo leitor e pelo professor O esquema abaixo é uma releitura de dois esquemas apresentados separadamente por Ruddell e Unrau (1994; p. 1002; 1024) com destaque para as ações do leitor e do professor no processo que leva à construção do sentido tanto para a leitura do texto como para a ação docente. Figura 1: Modelo de uso e controle de conhecimento USO E CONTROLE DO CONHECIMENTO Processo de construção do conhecimento LEITOR-ALUNO Estabelecer objetivos
intenção instrucional
Planejar e organizar
conh. do processo de construção textual
Construir sentido (processo interativo)
Construção de estratégicas
Monitor e professor executivo
Monitor e leitor executivo
estratégias
motivação/interação
Processo de tomada de decisão instrucional PROFESSOR
Representação instrucional
Representação textual
Fonte: A autora.
O que se apresenta aqui é um modelo de processamento que conduz a um modelo de resultados de processos expressos que dizem respeito à construção de conhecimento para o leitor e de tomada de decisão instrucional para o professor. Cada um desses atores é também influenciado por suas crenças e conhecimentos prévios que apontam para o que está armazenado e que interfere nos seus usos e controles do conhecimento. 115
Como se pode ver na figura 1, tanto o leitor-aluno como o professor estabelecem, no início do processo, o que irá guiar e controlar suas ações. O primeiro, que já sabe o que gosta de ler, precisa ser convidado à leitura, o que demanda ter uma intenção ou motivação para tal. Conforme Solé (2009), há diferentes objetivos que levam à leitura e delas decorrem as estratégias das quais lança mão o leitor, pode-se ler para: obter uma informação; seguir instruções; aprender; revisar um texto escrito seu ou de outro autor; comunicar um texto a um interlocutor; praticar a leitura em voz alta; verificar o que compreendeu do texto; ler por prazer. Quanto ao professor, em seus objetivos há intenção instrucional, a qual é moldada e influenciada pelas condições do ambiente de aprendizagem. Ao planejar e organizar, durante o processamento, diferentes ações são realizadas pelo leitor e pelo professor. Enquanto o primeiro opta por estratégias para construir sentido tendo em vista que a leitura é um processo interativo, e lança mão da representação textual que foi construída em suas experiências anteriores; o outro usa o conhecimento do processo de construção textual para poder usar as estratégias mais eficientes para o ensino da leitura, considerando a sua representação instrucional. Ao fazer isso, ambos mobilizam a monitoria que é um processo metacognitivo que consiste em acompanhar de uma forma reflexiva, nesse caso, a leitura. Quanto ao leitor, a representação textual inicia na sua mente, reflete a interpretação do sentido do aluno, influenciado pelo texto e por outros fatos como a discussão entre pares ou com o professor. A representação textual é monitorada pelo monitor e leitor executivo. Os conhecimentos e crenças prévios são usados para confirmar, rejeitar ou suspender julgamentos de novas interpretações, o que leva à construção do sentido pelo leitor de forma interativa, pois é um processo que se constitui de uma série de fatores como objetivos, conhecimento linguístico, plano de ação. Nesse processo, o professor é responsável pela representação instrucional e o sentido construído por ele pode ser diverso do construído pelo leitor-aluno. Decorrente desse processo, há os resultados da construção de sentido que indicam a compreensão criada por cada leitor através do texto e da interação em sala de aula: desenvolvimento do conhecimento léxico-semântico (novas palavras, seu sentidos e usos); interpretação do texto que é 116
o objetivo principal para o leitor; produção de respostas escritas que possibilitam sintetizar e clarear o lido; discussão decorrente das respostas e do conhecimento base; aquisição de conhecimentos; mudanças de motivação, por exemplo, continuar lendo sobre o assunto que interessou; mudanças de valores e crenças uma vez que experiências pessoais com livros podem influenciar o leitor quanto a seus sentimentos, atos e formas de perceber o mundo.
O professor: seu papel e suas ações no ensino da leitura Se o professor é aquele que engaja o aluno em um processo cooperativo no qual ambos refinam seus esquemas e conhecimentos, não é seu papel prover as respostas definitivas, mas levar o aluno a construí-las, agindo como seu mediador. Assim como o leitor, o professor tem seus conhecimentos e crenças prévios. No que tange às condições afetivas, baseadas em opiniões, convicções, suposições, estão: a) motivação para engajar os alunos, a qual é fundamental para o desenvolvimento da intenção de ler, por isso o professor deve criar um ambiente de aprendizagem que leve os alunos a participarem do processo, deve também ajustar o contexto, a dificuldade, os interesses dos alunos e a habilidade de ler; b) o posicionamento instrucional que inclui os objetivos instrucionais e pedagógicos, moldando o propósito leitor e o foco de atenção; c) valores e crenças socioculturais do professor e do leitor que precisam ser avaliados pelo professor, o qual deve considerar a negociação e construção de sentido com a turma. Além das condições afetivas, existem as cognitivas que consistem no conhecimento do processo de construção de sentidos do leitor, o que leva à negociação em sala de aula. Assim como já discutido no caso do leitor, também o professor mobiliza os conhecimentos declarativo, processual e condicional. Para a sua ação didática, o trabalho docente envolve outros aspectos, entre eles: a) conhecimento de leitura e áreas de conteúdo, o qual é adquirido em experiências acadêmicas aliadas ao conhecimento pessoal e de mundo, o que pode ser exemplificado pelas formas como se lê um texto narrativo e um expositivo; b) estratégias de ensino que dizem respeito 117
a saber selecionar, observar e analisar as estratégias usadas; c) estratégias metacognitivas2 das quais o professor lança mão para orientar o aluno na leitura do texto, chamando atenção, por exemplo, para recursos linguísticos e formas de escrever do autor e os sentidos decorrentes disso; d) conhecimento pessoal e de mundo, os quais são adquiridos fora da escola e diferem dos conhecimentos acadêmicos. Entre os resultados da tomada de decisão instrucional, estão a percepção do professor sobre as compreensões dos leitores e as próprias compreensões do professor e suas novas tomadas de decisão para a ação pedagógica. Analisar a interação de professor e leitor, no ambiente de aprendizagem, sob o ponto de vista teórico aqui adotado, permite também reflexões acerca das práticas que cada professor, leitor deste texto, realiza ou pode promover em sala de aula e das novas pesquisas que precisam ser desenvolvidas a fim de que se compreenda o ambiente de aprendizagem, seus atores, as ações e a mobilização teórica. Há, então, um diálogo entre prática e pesquisa a ser trazido para o centro das discussões sobre o ensino e a aprendizagem da leitura. Para auxiliar nessa reflexão, trazemos as implicações que Ruddell e Unrau (1994) apresentaram em seu texto, mas com um olhar para as experiências vividas pela autora deste capítulo para que se possa efetivamente ver os pontos que aproximam a prática de sala de aula e a pesquisa. Considerando que a ativação dos conhecimentos prévios e crenças do leitor relativos ao texto é muito importante para a efetiva construção de sentido, cabe ao professor, ao selecionar o texto e planejar sua aula de leitura, ter conhecimento do grupo com o qual atua. Diante dessa necessidade, dois pontos podem ser levados em conta: perfil leitor da turma e material de leitura utilizado, incluindo o livro didático. Para exemplificar, trazemos uma experiência de uma professora de ensino médio que, para conhecer os alunos com quem iria atuar pela primeira vez no primeiro ano do ensino médio, preparou um instrumento para coleta de informações sobre a leitura dos alunos com base na proposta de Souza, Corti e Mendoça (2012). 2 Brown (1980) define estratégias metacognitivas como o controle deliberado e consciente das ações cognitivas próprias do indivíduo: predizer, checar, monitorar, testar a realidade, coordenar e controlar tentativas deliberadas para estudar/aprender/resolver – problemas/desafios.
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O mesmo lhe foi de grande valia para o planejamento das aulas e pode ser inspiração para outros instrumentos e professores que querem conhecer o contexto leitor de seus alunos. Depois de aplicado o questionário aberto, a professora tabulou os dados, apresentou aos demais professores que atuavam na mesma turma para que houvesse uma ação coletiva e interdisciplinar. Além disso, socializou com seu grupo de formação continuada GPLP3 a fim de que outros professores pudessem avaliar o instrumento e discutir os dados. O que se percebe nessa ação docente é uma aproximação entre pesquisa e prática, o que faz com que o ambiente de aprendizagem seja compreendido em suas diferentes formas de ler e entender a leitura. Outra questão que muitas vezes surge é como trabalhar com o livro didático. Isso se deve pelo fato de se ter uma obra para todo o grupo, mas este ser formado por leitores com diferentes conhecimentos para dar conta de ler o que se propõe. Experiências docentes revelaram que textos longos, quando apresentados a leitores que ainda não são proficientes, conduzem ao abandono da leitura por não conseguirem mobilizar estratégias suficientes. Diante de um contexto como esse, é melhor, muitas vezes, partir para leitura de textos que estejam de acordo com o perfil do grupo, auxiliando-os com a mobilização de conhecimento de leitura e áreas de conteúdo, bem como com a seleção de estratégias de ensino que facilitem a negociação do sentido. Nesse cenário exemplificado, mas que não é apenas de uma experiência, pode-se apresentar mais uma implicação: a mobilização de atitudes, valores e crenças do leitor relacionados com o conteúdo do texto, a qual é crítica para a focalização da atenção, persistência e processo de compreensão. Isso provoca ações docentes como: conhecer o leitor; selecionar o texto; mobilizar outros textos; planejar as estratégias de apresentação e exploração do texto a ser apresentado aos leitores. Percebe-se, então, que há aproximação entre o conhecimento prévio e as mobilizações que os professores realizam, mas isso ainda não é suficiente. É preciso ampliar a compreensão sobre as implicações que decorrem das práticas e pesquisas realizadas. 3 O Grupo de Professores de Língua Portuguesa, fundado em 2000, é constituído por professores de diferentes segmentos e formação que dedicam a manhã de um sábado, a cada mês, para discutir temas relacionados à linguagem, ler textos, trocar experiências em sala de aula, planejar coletivamente. É um espaço de interação e formação contínua cujos relatos estão publicados em “Baú de práticas: socialização de projetos de letramento”.
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Na sala de aula, circulam indagações tais quais: por que iremos ler esse texto? Para que se lê determinado texto? Muitas vezes, o aluno só toma conhecimento da razão da leitura ao terminar a ação de ler todo o texto. Por isso, a criação de um objetivo para guiar a construção do sentido proporciona maior interesse no processo de leitura compreensiva, bem como alterar a seleção de estratégias de leitura e o foco da atenção. Em minha experiência como professora no ensino superior, percebi o estranhamento dos alunos ao serem informados do objetivo da leitura e qual a atividade decorrente dela. Isso sinaliza que, durante a sua vida escolar, a leitura foi realizada dentro de uma mesma perspectiva, não considerando o tipo textual a ser lido ou mesmo as ações a serem realizadas pelo leitor conforme o objetivo para o qual o texto foi apresentado em sala de aula. Se o objetivo final é a produção escrita de um resumo, o foco de atenção do sujeito será para os aspectos que aproximam as ideias principais das secundárias, irá usar estratégias como as de sublinhar, anotar, relacionar. Poderá produzir esquemas, usar cores distintas para marcar ideia principal e secundária, realizar releitura do texto. Partindo dessa premissa, pode-se afirmar que a formação de professores para o ensino da leitura deve incluir conhecimentos como os sobre as estratégias de leitura, as estratégias de ensino, as formas de engajar o aluno na leitura para a produção de sentido. Além disso, pode-se considerar a produção escrita decorrente da leitura a fim de revelar o sentido construído pelo aluno-leitor, levando-o a sintetizar as ideias, a discutir argumentos e pontos de vista, a levantar perguntas e questionamentos tanto sobre o que o texto apresenta como quanto à forma de construir linguisticamente os enunciados. Tudo exige do professor uma tomada de decisão instrumental a qual, como já se afirmou neste texto, demanda formação docente e participação em experiências pedagógicas. Outra implicação decorrente do que aqui se propõe para a prática pedagógica e para a pesquisa, é o reconhecimento de que a construção de sentido é um processo objetivo, interativo e estratégico fundamental para a efetiva compreensão de narrativas e textos expositivos. Por isso, devem ser consideradas as estratégias de processamento do texto, já mencionadas nas condições cognitivas, o que permite a compreensão da organização textual. Quanto a esse aspecto, optou-se por abordar as narrativas considerando sua 120
estrutura organizacional e a necessidade da relação de causa-consequência. Antes, porém, será apresentado o contexto no qual a prática docente e decorrente pesquisa se desenvolveram. O subprojeto de Letras (2011-13) participante do PIBID (Programa Institucional De Bolsa de Iniciação à Docência) foi norteado por três grandes ações: formação teórica do professor em formação no que concerne ao sistema de escrita e organização textual; desenvolvimento de diagnóstico que possibilitasse o levantamento de facilidades e dificuldades de escrita de alunos do ensino fundamental; análise dos problemas textuais de produções escritas de alunos matriculados no ensino fundamental a fim de que o professor em formação identificasse as dificuldades de acordo com o nível de escrita do grupo e proponha atividades e produzisse materiais para o ensino e aprendizagem da escrita. A base teórica foi a da teoria dos esquemas com atenção para os estudos do modelo de Stein e Glenn (1979) e os acréscimos realizados por Scliar-Cabral e Grimm-Cabral (1984) que definem os tipos de unidades informativas e os tipos de relação entre elas. Segundo Stein e Glenn, “a história é constituída por uma categoria de configuração e por um sistema de episódios. Essas duas categorias são ligadas por uma relação de permissão4”. Para diagnosticar e acompanhar a produção de narrativas dos 164 alunos dos anos finais de três escolas do Vale do Itajaí (SC), foram apresentadas três propostas de escrita de histórias ao longo dos três anos de atuação, as quais foram analisadas conforme as regras da gramática de história considerando também outras facilidades e dificuldades dos participantes. No primeiro grupo de textos, os resultados iniciais revelaram cinco problemas: o gênero textual (não distinguiam, por exemplo, conto de fadas e fábula), a estrutura da narrativa (ausência de muitas regras), coesão textual, relação causa-consequência frágil ou ausente e ortografia. Um dos textos produzidos a partir da sequência de cinco imagens é o que segue e que será comparado com as produções do mesmo aluno ao longo do processo, sendo o segundo texto (2012) também decorrente de sequenciamento de imagens, mas organizadas pelo próprio produtor do texto e o último texto narrativo (2013) produzido conforme o trabalho realizado pelos professores em formação e pela professora supervisora em cada turma. 4
A story consists of a setting category plus an episode system. These two categories are connected by an ALLOW relation.
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Boas Ações5 (2011) Certo dia um garoto resolveu sair de sua casa para fazer uma boa ação. Ele plantou em um jardim duas árvores, que, todo dia ia regando e cuidando. Meses depois deste fato ele viu que as árvores já estavam bem grandes, então alegre com sua boa ação pendurou lá uma rede, para poder aproveitar um pouco da natureza que restava.
Diante de narrativas que não descreviam com detalhes o cenário e nele o personagem, que não estabeleciam uma relação ampla de causa e consequência e cuja coesão se fazia basicamente pelo uso da pontuação, os professores em formação, auxiliados pela supervisão no que tange à prática e orientados teoricamente pela coordenação do subprojeto, promoveram ações de leitura de textos narrativos, levando os alunos, ao longo do ano, a compreenderem o esquema narrativo, bem como a lerem e relerem as narrativas produzidas pelo grupo. Foram ações que mobilizaram estratégias de processamento de texto e depreensão das relações de permissão entre um episódio e outro na estrutura narrativa. No final de um ano de trabalho, a narrativa produzida já apresentava uma significativa diferença, como pode se observar no texto que segue. Quinta-feira assustadora (2012) Estava passeando com meu cachorro, era uma quinta-feira ensolarada, íamos atravessar a rua para comprar a ração de Bob Jonatan, o meu cachorro. Fomos então procurar uma faixa de pedestres para atravessar. Eu e Bob estávamos quase atravessando quando Bob Jonatan arrebentou sua coleira e saiu correndo para o outro lado da rua, no certo estava apressado para ganhar sua ração, e mesmo com o semáforo livre, um carro em alta velocidade atropelou meu cachorro. Por sorte o homem que atropelou Bob Jonatan parou e ligou para uma ambulância. O homem, João, como descobri mais tarde, disse que sentia muito e que estava distraído e não tinha visto o cachorro. Eu o desculpei e disse que estava tudo bem, que ele podia ir embora pois dava pra ver que estava atrasado para um com por isso que eu esperava pela ambulância. A ambulância chegou um pouco depois ao homem ter saído. Alguns homens botaram Bob na ambulância e eu pedi para ir junto. Chegamos no hospital, me surpreendi pois pensei que estávamos indo a um veterinário, um médico pediu pra eu esperar um pouco e depois ele voltou e disse que eu pude ver meu cachorro. Peguei umas flores que encontrei num canto do hospital e levei para Bob Jonatan, que aliás está muito bem agora, apesar de ainda mancar um pouco. 5
Os textos foram digitados respeitando a redação do aluno.
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Comparando o cenário das duas narrativas (parte inicial), observa-se que, na primeira, o autor não apresenta muitos elementos a seu leitor, informa a temporalidade (certo dia), apresenta de forma indefinida o personagem (um garoto) e indica uma atividade (resolveu sair de sua casa para fazer uma boa ação). Entretanto, todos esses elementos são pouco articulados e desenvolvidos ao longo do texto. O que não ocorre com a segunda produção na qual há um detalhamento inicial que permite ao leitor já levantar algumas hipóteses para o que irá ocorrer ao longo dos episódios. Há indicação também da temporalidade (era uma quinta-feira ensolarada), mas que justifica a ação (íamos atravessar a rua para comprar a ração) dos personagens (eu e Bob Jonatan, o meu cachorro). Há o uso, no texto produzido, dos elementos analisados em outros textos narrativos lidos, ou seja, houve a ação de ler para compreender o modelo e o sistema de episódios, para que, a partir do cenário, a narrativa vá se desenvolvendo. Foram também observadas e analisadas as marcas linguísticas características da tipologia e dos gêneros discursivos lidos. Houve, assim, uma mobilização de conhecimentos acerca do texto, formando o leitor e, por conseguinte, o produtor de textos narrativos. O último texto produzido atende bem à primeira regra descrita por Stein e Glenn (1979), na qual o cenário é condição para o desenvolvimento dos episódios e nele o personagem é apresentado indicando estado ou atividade, o que já encaminha para a segunda regra desse esquema. No caso da terceira narrativa (reproduzida a seguir), o personagem (Henry Miller) tem uma descrição detalhada a fim de que o leitor possa perceber que há nele um elemento (era bastante bonitinho, mas um tipo de bonito que não chamava atenção de ninguém) que irá desencadear a narrativa (se não fosse por aquele último verão no lago) que também já foi indicativo para o título. No mais, há um sistema de episódios que se desenvolve ao longo do texto, há relações de causalidade que motivam respostas, plano de ação, resolução, consequência direta e reação. O verão no lago (2013) Henry Miller era só mais um garoto comum de Illinois, particularmente não tinha nada de mais, era alto, magro, tinha cabelos pretos e era bastante bonitinho, mas um tipo de bonito que não chamava atenção de ninguém. Henry Miller na verda123
de era o tipo de garoto que nunca chamaria a atenção em nada, e, provavelmente continuaria assim pelo resto da vida, se não fosse por aquele último verão no lago. Henry tinha acabado de completar 16 anos quando seus pais decidiram deixá-lo num acampamento de verão por um tempo, pra quem sabe fazer uns amigos novos. O garoto não viu problema algum nisso, afinal ele não tinha muitos amigos, mas assim que ele entrou no quarto em que ia ficar, quase deu meia volta e saiu correndo. Sentado em uma das camas estava Michael Tenner, o valentão mais temido e idiota de Illinois. — Alô Miller – Michael falou – Oi Michael – respondeu Henry – Espero me divertir muito com você nesse verão – disse Michael fechando a porta atrás de Henry. E assim se passou uma, duas, três semanas, com Michael aprontando sem parar com Henry, e Henry sempre tentando escapar do valentão. E o verão teria acabado assim, se não fosse o que Henry provocou no lago. Era umas três da tarde da última semana do acampamento e todos os campistas estavam perto do lago para assistirem à competição de natação. Henry não iria nadar, mas Michael sim, por isso o rapaz estava livre por um tempo do valentão, provavelmente Henry teria aproveitado esse tempo para ler ou relaxar, se não fosse a repentina ideia que teve. Ele chamou Ben, seu e de Michael companheiros de quarto e pediu para ele o pó de mico emprestado. A parte de Ben era a fácil, já a parte de Henry complicava. A parte de Henry era ir sorrateiramente até o quarto deles e despejar o pó de mico na sunga de Michael. E foi isso que ele fez, porém, não imaginou que seu plano sairia tão bem. Quando Michael chegou na competição de natação, começou a se coçar todo, e sem pensar, arrancou sua sunga fora. Todos os que estavam ali caíram na gargalhada, alguns até tiraram fotos. O diretor do acampamento descobriu um pouco depois que foi Henry quem causou tudo aquilo e o suspendeu pelo resto do verão. E mesmo sendo suspenso, aquele foi o melhor verão de Henry, porque quando todo o pessoal do acampamento soube que foi ele que zoou com o maior valentão, fizeram de Henry o cara mais conhecido de Illinois.
A experiência docente vivida pelos professores em formação e pelos alunos do ensino fundamental foi também material de pesquisa sobre o ensino da leitura e da escrita, permitindo chegar a conclusões que foram socializadas na mesa-redonda “The portuguese language in daily school: knowing and understanding the writing system in the early years of elementary school” no 10th International Congress of ISAPL (Moscou) em 2013. A pesquisa indicou que: a) um diagnóstico completo de narrativas 124
permite compreender quais os principais problemas e tentar resolvê-los; b) é necessário organizar um plano de trabalho para a sala de aula ao longo do ano; c) também são necessárias intervenções com cada grupo de alunos, ajudando-os a refletir sobre o modo como as suas narrativas são e estão organizadas. A discussão apresentada até aqui corrobora com a afirmação de que a utilização de estratégias metacognitivas para auxiliar na monitoria, releitura e verificação na construção de sentido são essenciais para o processo de compreensão. Além dessas, há outras implicações da compreensão do processo de ensinar e aprender a ler que podem ser aprofundadas em pesquisas e práticas pedagógicas. Uma delas diz respeito à consciência do posicionamento mais apropriado do leitor e do professor relativo ao texto e ao propósito da leitura, o que é importante para desenvolver níveis mais altos de motivação e compreensão. Quando se fala em posicionamento, se considera a influência dele na perspectiva e na orientação dada para determinado texto. Vale lembrar que o leitor tem maneiras de ler que são influenciadas pela natureza do gênero discursivo ou tipologia textual, pelo desejo de interação com o escrito pelo autor. Por isso, é importante colocar o leitor no lugar do escritor, é necessário o exercício de seguir as pistas linguísticas deixadas pelo autor ao longo do texto a fim de que se (re)construa o caminho trilhado por quem escreve (Kleiman, 2002). Afinal, a leitura é um processo interativo. Retomando a compreensão de leitura deste texto bem como o ambiente de aprendizagem discutido inicialmente, há uma implicação que deve ser considerada: a compreensão e o uso dos valores socioculturais variados da comunidade da sala de aula, assim como suas crenças por parte do leitor e do professor, proporcionará maiores oportunidades para negociação ativa de sentido em sala de aula. Portanto, no espaço de interação entre alunos e professor, os valores e crenças socioculturais têm efeito no sucesso escolar e no desenvolvimento em leitura. Além disso, as diferenças socioculturais e as expectativas de aluno e professor podem quebrar a comunicação e impedir a aprendizagem escolar, por isso é papel do professor conhecer seus alunos e integrar família e escola, adotando uma perspectiva etnográfica 125
no ensino que é peculiar da pesquisa quando se tratam das práticas de letramentos. Como os sentidos são muitos e a interpretação do texto é um movimento, se faz necessária a interação em sala de aula, partilhando a autoridade (não só o professor, mas todos os integrantes) e considerando os saberes dos alunos a fim de guiá-los na construção dos sentidos, pois o encorajamento dos leitores para aceitarem a premissa de que sentidos evoluem tanto para o professor como para o leitor facilita a construção ativa do sentido em sala de aula. Diante desse pressuposto, é necessário também o engajamento na compreensão e reflexão sobre sentidos divergentes, o que aumentará a riqueza da interpretação dentro da comunidade da sala de aula, bem como mobilizará a reflexão acerca das diferentes estratégias de leitura das quais o aluno se vale para compreender o texto e perseguir as pistas deixadas pelo autor. A provisoriedade e a nova interpretação fazem parte do aprendizado da leitura e precisam ser provocadas pelo professor, desestabilizando a prontidão das respostas que muitas vezes é comum ao espaço escolar. Atividades como a leitura de diferentes textos sobre o mesmo tema podem auxiliar o aluno a perceber que os sentidos não dependem apenas do texto, mas há um autor-leitor que traz suas crenças e valores socioculturais para o que escreve, deixando ali seu estilo, autoria e certezas que são sempre provisórias, pois dependem do sentido que o leitor constrói. Portanto, o professor deve saber lidar com as divergências e conduzir o processo lançando mão de estratégias de instrução, pois o desenho das atividades instrucionais, que abrigam compreensão, discussão e inclusão, constrói, nos leitores, a percepção de que eles são parte de uma comunidade de sala de aula. Por fim, cabe ao professor auxiliar os leitores a compreender que eles constroem sentido não só de textos impressos, mas também de tarefas, fontes de autoridades. Considerando uma discussão mais atual sobre os múltiplos letramentos e os diferentes textos que exigem distintas formas de ler, há que se refletir acerca de como esses textos têm chegado à escola, como têm sido apresentados aos alunos e que ações instrucionais são mobilizadas pelo professor. Antes de prosseguir na reflexão, se faz necessário compreender o que são os multiletramentos, cujo conceito, segundo Rojo (2012, 126
p. 13): “aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossas sociedades, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica”. Sendo assim, o professor está diante de um novo leitor e isso exige dele conhecimento teórico sobre essas novas demandas de leitura e do próprio grupo de alunos, pois seus ambientes socioculturais promovem a criação de um contexto para a aprendizagem que envolve ativamente o leitor e a comunidade de sala de aula. Atualmente o leitor está diante de enunciados impressos e digitais, que relacionam texto e imagem, os quais são distribuídos no espaço em branco para atingir o leitor e produzir sentidos através de muitas linguagens. Isso exige, conforme Rojo (2012, p. 19), “capacidades e práticas de compreensão de cada uma delas (multiletramentos) para fazer significar”, o que leva também à partilha da autoridade, possibilitando que alunos e professores aprendam a ler essas semioses e a compreender que há intenções também na forma de organização do texto que traz o leitor para si já com uma proposta. As novas mídias, as novas ferramentas, os novos gêneros discursivos estão dentro e fora da sala de aula e exigem que o leitor interaja com eles, perceba que são heterogêneos e que, diferente do texto em papel, podem estar em vários suportes e espaços. Devido a esse funcionamento, as próprias estratégias de leitura precisam ser reaprendidas, fazendo com que novos recursos possibilitem relacionar as partes do texto, imagem e texto, texto e contexto a fim de que o sentido seja construído. Novos desafios em novos tempos, mas que guardam em si as mesmas condições afetivas e cognitivas, porque é preciso agir sobre o escrito quando se lê.
Palavras de aprendizagem O objetivo deste texto foi refletir sobre o papel do professor no ambiente de aprendizagem considerando o leitor, nesse caso o aluno, a sala de aula, o contexto, o texto e as atividades que são desenvolvidas. Esta discussão teve como motivação o texto de Ruddell e Unrau (1994) que levou a outros caminhos, outras leituras e novos sentidos. Um diálogo com o produzido 127
para outro contexto cultural e temporalidade possibilitou pensar a leitura na escola como um aspecto a ser ensinado, não apenas como um eixo que compõe a disciplina de língua portuguesa. Entretanto, para ensinar, é preciso conhecer tanto o objeto de ensino como os caminhos instrucionais. Contudo, isso muito raramente é ofertado em cursos de graduação que formam professores para o ensino da leitura, seja para anos iniciais como finais; como se o fato de saberem ler (ou serem leitores) fosse suficiente para ensinar a ler. A reflexão construída ao longo do texto revelou que o conhecimento para o uso não é suficiente para formar professores, pois o papel destes, no ambiente de aprendizagem, é crítico para a negociação do sentido e para facilitar a construção do sentido do texto, considerando os valores socioculturais dos alunos que participam do processo interativo. É preciso que o professor desenvolva com os alunos capacidades e habilidades para compreender tanto os aspectos globais do texto como para identificar a intencionalidade do autor, a qual é depreendida tanto pelas pistas locais e contextuais quanto por outros elementos se considerarmos as múltiplas linguagens e os espaços/suportes pelos quais os textos circulam na atualidade. O espaço pode não ter sido suficiente, mas o desejo é que cada leitor, ao final do texto, se pergunte: e eu? Como me situo nesse processo de construção do sentido? Que leitor sou? Que professor desejo ser? Afinal, a proposta é mesmo de reflexão, pois as práticas são singulares e culturalmente situadas, não sendo possível, então, um programa único de ensino de leitura, mas sim uma formação teórica sólida que permita a promoção de práticas que façam a diferença em cada ambiente de aprendizagem.
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6 Ensino, aprendizagem e utilização de estratégias de leitura: um retrato das pesquisas conduzidas no Brasil1 Carlos Alberto Ramos Souza Luciane Baretta
Introdução É possível observar que os países geralmente têm posturas diferentes quando olham criticamente para a sala de aula nos níveis fundamental e médio de ensino, fato que reflete diretamente na qualidade da educação. Existem diversas pesquisas, conduzidas em níveis nacionais e internacionais (National Institute of Child Health and Human Development-NICHD, 2000; Alves; Franco, 2008; Brooke; Soares, 2008; UNESCO, 2008, 2014; OECD, 2014), que buscam aferir a qualidade de ensino das escolas, com vistas a melhorar o sistema educacional. Buscando tecer uma compreensão sobre a qualidade do ensino dos países do mundo, o TALIS – Teaching and Learning International Survey, realizou um teste internacional envolvendo 34 países, usando de “perguntas sobre a formação inicial e continuada de professores, suas práticas e crenças pedagógicas, além de levantar informações sobre o ambiente escolar” (MEC; INEP, 2014, p. 3), para melhor compreender a realidade da educação no mundo, ainda que de forma generalizada. Os dados da pesquisa foram disponibilizados no Brasil pelo INEP e revelaram que, dentre os países pesquisados, o Brasil é o que tem menor tempo médio gasto para 1 Esta pesquisa descreve os resultados da pesquisa de Iniciação Científica Voluntária conduzida pelo primeiro autor, sob orientação da segunda, entre 2015 e 2016.
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o ensino de fato. Isto quer dizer que, considerando aulas de 50 minutos, os professores brasileiros dedicam apenas 33 minutos às suas práticas pedagógicas. Com essa informação, aliada aos resultados de provas nacionais, como a Provinha Brasil, SAEB e ENEM, aos dados de indicadores nacionais, como o INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional), e aos dados internacionais, como o PISA (Programme International for Student Assessment), tivemos informações iniciais para refletir sobre o ensino no país. Os dados relativos a essas diferentes avaliações, frequentemente divulgados pela mídia, infelizmente não são animadores para os estudantes brasileiros. De acordo com os resultados da Prova Brasil de 2015, por exemplo, em torno de 60% dos estudantes de 5º ano de escolas públicas não conseguem localizar informações explícitas em contos de fada ou reportagens; 88% dos estudantes de 9º ano não conseguem identificar a ideia central de um poema ou uma crônica, habilidades mínimas requeridas aos estudantes nesses níveis de escolaridade (Revista Época, 2015). Os dados do INAF-2015, apesar de mostrar melhoras quanto ao nível de alfabetismo de brasileiros entre 15 e 64 anos, continuam a desvelar uma triste realidade: além de 4% da população que ainda é analfabeta, 23% é capaz de localizar informações explícitas num texto e de realizar operações matemáticas básicas; outros 42% são capazes de ler uma ou mais unidades de informação em textos diversos e de extensão média, realizando inferências simples e com condições de resolver problemas envolvendo operações básicas; um quarto (23%) dos brasileiros revela um nível intermediário de alfabetismo, ou seja, são aqueles capazes de ler, escrever e resolver problemas condizentes com a localização de informações múltiplas, resolver problemas matemáticos complexos e sintetizar ideias centrais e compreender as entrelinhas dos textos (Instituto Paulo Montenegro; Ação Educativa, 2016). Pesquisadoras estadunidenses publicaram, em 1991, uma revisão de literatura em que avaliam o ensino e o uso de estratégias de leitura no nível superior de ensino. Segundo as autoras, havia na época um pequeno número de estudos que consideravam o uso de tais estratégias. Apropriando-nos das conclusões e das sugestões de encaminhamentos propostos por Nist e Mealey (1991), paralelamente ao frágil desempenho obtido pelos estudan131
tes brasileiros em exames nacionais e internacionais de leitura, conforme mencionado anteriormente, interessou-nos investigar se os apontamentos elencados pelas autoras na conclusão de seu estudo são recorrentes nos estudos conduzidos no Brasil, acerca do ensino e aprendizagem de estratégias de leitura. Conforme observado por Nist e Mealey, a falta de: (a) pesquisas longitudinais, que têm como participantes estudantes com baixo desempenho em leitura nos diferentes níveis de escolarização; (b) embasamento teórico sobre estratégias e comprovação empírica – segundo Nist e Mealey (1991), pouquíssimos estudos comprovam a eficácia do ensino e utilização de estratégias; (3) estudos que envolvem períodos instrucionais e (4) que indicam que a instrução direta do professor leva à autonomia do leitor, que consequentemente melhora suas habilidades leitoras, são (alguns dos) indícios que poderiam contribuir para a fragilidade da situação leitora. Diante desses apontamentos, interessou-nos saber qual é o quadro das pesquisas conduzidas sobre estratégias de leitura no Brasil (tanto em língua materna, quanto em língua estrangeira, inglês), para avaliarmos como esse tema tem sido abordado em pesquisas. Decidimos, então, fazer um levantamento dos estudos brasileiros que enfocam o ensino, a aprendizagem e o uso de estratégias de compreensão leitora para avaliar a frequência com que esse tema tem sido investigado e os tipos de pesquisa desenvolvidos em nível de pós-graduação. Pesquisas nas áreas da educação, psicologia cognitiva, psicolinguística, linguística, linguística aplicada, entre outras, apontam que é possível auxiliar os estudantes a exercer mais controle e a refletir sobre sua própria aprendizagem, por meio da instrução direta de estratégias de aprendizagem, mais especificamente, de estratégias de compreensão em leitura (Carrell; Pharis; Liberto, 1989; O’Malley; Chamot, 1990; Solé, 1998; Nist; Mealey, 1991; Farrell, 2001; Duke; Pearson, 2008). O ensino de estratégias de aquisição do conhecimento lexical, contextual e morfológico a estudantes universitários, por exemplo, demonstrou que os leitores tiveram melhor desempenho nos testes de leitura (perguntas de compreensão e síntese do texto lido) após um período instrucional (Finger-Kratochvil, 2010). Mas o que são estratégias? De acordo com Oxford (2001), o termo tem sua origem no grego antigo, strategia e está relacionado aos “passos ou 132
ações que os generais adotam para ganhar uma guerra” (Oxford, 2001, p. 362). Atualmente, essa relação direta e exclusiva com a guerra já não existe, mas o controle e o foco no objetivo permanecem no significado moderno da palavra (Oxford, 1990). Essa definição vai de encontro ao que é discutido por Solé (1998), ao propor que as estratégias são “suspeitas inteligentes, embora arriscadas” (p. 69) sobre o caminho mais adequado a ser seguido. Segundo a pesquisadora, as estratégias são independentes de um contexto em particular e podem se generalizar a diferentes situações; contudo, para que seu uso seja eficaz, é necessário a contextualização para o problema concreto. Tendo-se em vista o foco desta pesquisa, as estratégias de leitura, ou de compreensão, são, conforme definido por Young e Oxford (1997) planos ativos que demonstram como os leitores reagem a uma dada tarefa, como eles transformam o input escrito num código significativo e o que eles fazem para superar (no caso de) um problema de compreensão (Block, 1986; Solé, 1998; Baretta, 1998; 2003). Para alcançar os objetivos propostos para esta pesquisa exploratória, de cunho bibliográfico, isto é, mapear os estudos realizados no Brasil tendo como enfoque as estratégias de leitura, fizemos um levantamento de investigações conduzidas em nível de mestrado e doutorado, em 180 universidades públicas e privadas de todos os estados brasileiros, que tratam do ensino, da aprendizagem e/ou da utilização de estratégias de leitura, nos níveis fundamental, médio e superior de educação. É importante mencionarmos aqui, que optamos por considerar os estudos que enfocam as estratégias de leitura na língua materna e na língua estrangeira, inglês, por entendermos que, independente do contexto de instrução sobre uso de estratégia de leitura (disciplina de língua materna ou estrangeira), o estudante adquire maior controle e reflete sobre aquilo que está lendo. Assim, mesmo que o estudante não tenha recebido instrução sobre estratégias de leitura na língua materna, mas aprendeu a utilizá-las ao ler textos nas aulas de língua estrangeira, ele tenderá a incorporar o seu uso em toda leitura que realiza, melhorando, desta forma, seu desempenho enquanto leitor. A seguir, apresentamos a metodologia utilizada no levantamento de dados, seguida da análise e discussão dos resultados, e as considerações finais. 133
Encaminhamentos metodológicos O principal objetivo desta pesquisa foi realizar um estado da arte sobre os estudos conduzidos no Brasil que têm como enfoque o ensino, aprendizagem e/ou utilização de estratégias de leitura em língua materna e língua estrangeira, inglês. Para alcançar esse objetivo geral, fizemos um levantamento dos estudos desenvolvidos no Brasil, a partir de 2000, agrupando-os em relação a: tipo de estratégias investigadas; público-alvo (quem e quantos participantes, no caso de estudos exploratórios); língua (materna ou estrangeira, inglês); finalidade da pesquisa (exploratória, descritiva, explicativa, metodológica, intervencionista); método de pesquisa (protocolos verbais, testes de compreensão, instrução direta, entrevista...). A coleta dos dados foi realizada por meio do acesso aos sites dos Programas de Pós-Graduação em Letras (PPGL – adotaremos esta nomenclatura, independente se o programa de pós-graduação adota outra designação, como Estudos Linguísticos, na UFFS, ou Linguística, na UFSC, por exemplo). Foram pesquisados os sites de 180 universidades, nos 27 estados do Brasil2. Para reunir pesquisas em nível de mestrado e doutorado, tanto qualitativas quanto quantitativas que consideram o ensino, a aprendizagem e o uso de estratégias de leitura, foram consideradas instituições de ensino superior (IES) que recebem o título de universidade (para os objetivos deste estudo, foram desconsideradas as faculdades e centros universitários). Para ter acesso à lista de universidades em nível nacional, recorreu-se, na Região Sul, à página do 4º Encontro SulLetras (www.unisul.br/sul.letras), que lista as universidades que tiveram trabalhos submetidos para a apresentação no evento. Para as demais regiões do país, recorreu-se a uma lista de universidades apresentada por uma página wiki3 (https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lista_de_universidades_do_Brasil, acesso em 20 de outubro de 2015). A busca nos bancos de dissertações e teses das IES com PPG em Letras ocorreu por meio da seleção de trabalhos que apresentassem as pa2
Muitas dessas universidades não possuíam, no momento da coleta dos dados, PPG e outras várias, não tinham PPG em Letras ou afins, ou então, trabalhos concluídos em nível de mestrado e/ou doutorado.
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Uma página wiki é uma coleção de documentos interligados que podem ser visitados e editados constantemente, por qualquer pessoa. Esse software colaborativo torna bastante rápido o acesso à informação, fazendo jus à origem do termo: veloz, ligeiro, rápido, em alguns dialetos havaianos.
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lavras-chave (em seu título ou resumo): estratégias de leitura; ensino de leitura; uso e/ou instrução de estratégias; estratégias de leitura em língua materna e/ou estrangeira; professor de leitura. Nos casos em que o título sugeria a abordagem do tema, mas não fazia remissão a nenhuma dessas palavras-chave, os resumos foram lidos para incluir ou descartar a pesquisa no nosso corpus. As pesquisas que se enquadraram aos propósitos de nossa busca foram sistematizadas, considerando-se a seguinte sistematização: universidade/data da primeira defesa do PPG; tipo de IES (pública ou privada); nível do trabalho (mestrado ou doutorado); título do trabalho; orientador; autor/ano da defesa; enfoque do estudo (objetivos definidos pelo autor); tipo de estratégia investigada, conforme taxonomia de Català, Molina e Monclús (2005); idade/número de participantes envolvidos; língua do texto estudado/investigado; finalidade da pesquisa e metodologia adotada para a condução da pesquisa, conforme descrito anteriormente. Passemos para a análise e discussão dos principais resultados.
Apresentação, análise e discussão dos dados Conforme mencionado anteriormente, 180 IES foram investigadas. Sua distribuição por região e tipo (pública, privada), pode ser visualizada no Gráfico 01, a seguir. Ao longo do desenvolvimento do trabalho, notamos que embora todas as instituições investigadas tivessem o status de universidade, a metade (51,1%) não tinha PPG em Letras (ou afins) nas listagens de cursos de pós-graduação, nos sites de suas IES. Outras universidades (5,5%) não apresentavam informações claras sobre a (in)existência de curso de pós-graduação em Letras, uma vez que não era possível ter acesso a estas informações por meio dos sites institucionais. A saber, outras universidades ofertavam cursos em nível de especialização e MBA (Masters of Business Administration), cursos esses que foram desconsiderados, haja vista os propósitos desta pesquisa. Constatou-se que, assim como há um pequeno número de cursos de pós-graduação lato sensu nas áreas da Linguística Aplicada e Psicolinguística, há consequentemente, uma quantidade pouco expressiva de estudos que investigam o tema “estratégias de leitura”, em nível de pós-graduação. 135
Gráfico 1: Universidades investigadas (por região)
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Fonte: Dados da pesquisa.
Feita a delimitação dos trabalhos, uma análise mais apurada foi realizada, reduzindo ainda mais o corpus coletado, pois muitas das pesquisas que foram selecionadas, não abordavam especificamente as estratégias de leitura para o ensino, aprendizagem e/ou sua utilização em tarefas de compreensão leitora. Desta forma, pudemos constatar que o número de pesquisas sobre estratégias de leitura, em nível de pós-graduação, conduzidas no Brasil é relativamente baixo, estando de acordo com Nist e Mealey (1991), que destacaram esta lacuna nas pesquisas em leitura, revisadas por elas há 26 anos. Como podemos observar, no Gráfico 2, a seguir, a concentração de pesquisas encontradas em nível de mestrado e doutorado que atendem aos propósitos desta investigação está na Região Sul. Inicialmente, foram encontradas 84 pesquisas em nível nacional, que à primeira vista tinham como foco as estratégias leitura. Ao fazermos a leitura dos resumos dessas pesquisas, e em alguns casos, parte do método de pesquisa e resultados encontrados, para eliminarmos quaisquer dúvidas, excluímos mais da metade daquele número, sobrando-nos 33 pesquisas que, de fato, investigam o ensino, a aprendizagem e/ou o uso de estratégias de leitura, como mencionado anteriormente. É importante destacar que, apesar de algumas pesquisas mencionarem o tema estratégias de compreensão leitora nos seus resumos, não foi possível detectar uma análise específica a respeito do tema 136
ou identificar um instrumento que investigava a utilização de estratégias de leitura na metodologia de coleta dos dados. Algumas pesquisas apontaram, por exemplo, que os alunos leitores apresentaram bom desempenho em determinada tarefa leitora em razão da utilização de estratégias, mas os tipos e frequência das estratégias não foram delimitadas nem na análise, nem na discussão dos dados. Por este motivo, essas pesquisas foram excluídas de nossa análise. Gráfico 2: Dissertações e teses sobre estratégias de leitura
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Fonte: Dados da pesquisa
Ao analisarmos mais detalhadamente as pesquisas delimitadas para o nosso estudo, observamos a pluralidade dos tipos de estratégias investigadas. As estratégias foram agrupadas de acordo com a taxonomia proposta por Català, Molina e Monclús (2005), e observamos o percentual dos trabalhos que investigam cada uma das categorias relativas aos tipos de compreensão leitora envolvida, no Gráfico 3, a seguir. Conforme podemos visualizar, as estratégias de leitura mais estudadas são aquelas relativas à compreensão inferencial (35%), ou seja, a capacidade que o leitor tem de compreender o que não está explícito no texto, por meio do estabelecimento da relação entre o seu conhecimento prévio e a informação textual. De acordo com a categoria proposta por Català et al., as estratégias que se 137
enquadram neste nível de compreensão são: dedução de uma sequência, de detalhes, de comparações, de relações de causa-efeito, de traços de caráter de personagens, de características e aplicação a uma situação nova, predição de resultados, hipóteses de continuidade de uma narrativa e interpretação de linguagem figurativa. As estratégias relativas à compreensão crítica, ou seja, aquelas relacionadas à formação de juízos próprios, com respostas de caráter subjetivo (relativas aos personagens de uma narrativa, à linguagem do autor) e de juízos de atos e opiniões, perfazem um total de 20% das pesquisas conduzidas. Estratégias de leitura relativas à reorganização das informações durante a leitura de texto perfazem 19% e as estratégias relativas à compreensão literal somam 16% das pesquisas. É importante mencionarmos aqui, que algumas pesquisas investigam mais de um tipo de compreensão leitora, por exemplo, compreensão literal e compreensão inferencial, pontuando desta forma, em duas categorias distintas. Gráfico 3: Classificação das estratégias pesquisadas
Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.
A pluralidade de estratégias investigadas nas pesquisas parece-nos bastante positiva, pois reflete que há preocupação por parte dos pesquisadores em estudar o processo de compreensão leitora como um todo. Conforme proposto por Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), para que a compreensão 138
se efetive, são necessários dois tipos de conhecimento: o declarativo, que envolve os processos mais básicos, porém não menos importantes da leitura, que consistem no conhecimento sobre grafemas, fonemas, morfemas, palavras, ideias, esquemas e tópicos, e o conhecimento procedimental, que envolve o conhecimento sobre habilidades e estratégias. O conhecimento procedimental, de acordo com esses pesquisadores, está dividido em diferentes níveis, que podem ser interpretados como relativos ao nível de profundidade que o leitor alcança ao ler. O primeiro nível envolve o processo de decodificação (subdividido em associação e recodificação), momento que o leitor atribui significado ao símbolo escrito; no segundo nível, o da compreensão literal (acesso ao léxico e análise sintática), o leitor compreende o que está explícito no texto; no terceiro nível, o da compreensão inferencial (subdividido em integração, resumo e elaboração), o leitor relaciona as informações oriundas do texto com o seu conhecimento de mundo, extrapolando o texto; no último nível, o do monitoramento da compreensão, requer consciência por parte do leitor, pois ele necessita ter clareza de seu objetivo de leitura para selecionar a(s) estratégia(s) adequada(s) para alcançar sua meta, que é a compreensão, seja ela mais básica, como a localização de uma informação específica, i.e., horário de atendimento a alunos ingressantes no ensino universitário, ou mais aprofundada, i.e., entender porque o Brasil atravessa uma crise econômico-política (para visualização do processo de compreensão em leitura, ler Andrade, Gil e Tomitch, 2012, que apresentam um diagrama com os tipos de conhecimento e os seus respectivos níveis). Tendo-se em mente esses diferentes níveis, percebe-se que não há como ser um leitor estratégico, sem ser um leitor hábil no nível da decodificação (Dehaene, 2012; Finger-Kratochvil, 2010; Morais, 2013; Scliar-Cabral, 2013; Souza, 2012, entre outros) e da compreensão literal. Dessa forma, a abordagem dos pesquisadores em investigar diferentes tipos de estratégias revela e corrobora o fato de que leitura estratégica só é passível de ser alcançada e ensinada quando os níveis basilares da leitura estiverem solidamente construídos. Também pudemos detectar grande variedade quanto aos métodos de pesquisa adotados pelos pesquisadores para investigar as estratégias de 139
leitura, assim como os instrumentos (24) utilizados para conduzir a coleta de dados. Acreditamos que esta variedade está diretamente relacionada aos objetivos e enfoques específicos de cada pesquisa. A fim de agrupar tais métodos e instrumentos de forma lógica, recorreu-se à distinção proposta por Riley e Lee (1996): pontual-específico (discrete-point) e global. De acordo com Baretta (1998), o modo pontual-específico envolve aquelas tarefas que são relativas a partes isoladas, específicas do texto, como por exemplo, questões de associação, de verdadeiro-falso, de múltipla escolha, de resposta fechada. O modo global, por outro lado, envolve tarefas de leitura integrativas, elaborativas, como a redação de resumos, de reconto, de livre recordar, de respostas abertas, que ampliam e combinam a informação textual num significado que leva à resposta para a tarefa. Alguns dos instrumentos/métodos adotados nas pesquisas não se enquadram ou vão além da classificação proposta por Riley e Lee, por combinar os modos de resposta para as tarefas de leitura; estes instrumentos foram categorizados como complementares, como pode ser observado no Gráfico 4 a seguir. Podemos observar que as pesquisas adotaram, com certa frequência, instrumentos tradicionais de pesquisa para avaliar a compreensão leitora, como tarefas de múltipla escolha (6 estudos), questões dissertativas (5) e questionários (4). Por outro lado, salientamos a frequência do uso do protocolo verbal (7 estudos), que permite o acesso online do que ocorre na mente do leitor, de período instrucional (6) e de testes para verificar as estratégias de leitura utilizadas na tarefa proposta ou percebidas pelos leitores (5). Esta variedade de instrumentos e métodos parecem mostrar a preocupação dos pesquisadores na busca para entender como a compreensão se efetiva e de que forma o uso das estratégias pode contribuir para o aprimoramento do leitor eficiente e autônomo, haja vista os baixos índices mantidos pelo Brasil nos diferentes indicadores nacionais (INAF, SAEB, ENEM) e internacionais (PISA). Cabe mencionar aqui, que das 33 pesquisas analisadas, 28 são exploratórias, o que novamente, revela a preocupação dos pesquisadores em entender o panorama que ora se apresenta.
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Gráfico 4: Classificação e frequência dos instrumentos adotados
Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa
Finalmente, outro fato que se mostrou bastante positivo foi o público alvo mais investigado nas pesquisas por nós avaliadas: 13 pesquisas foram conduzidas com estudantes do Ensino Fundamental, 6 com estudantes do Ensino Médio, 10 com universitários, conforme demonstrado na tabela 1, a seguir. Essas informações parecem demonstrar que os pesquisadores estão mais atentos às dificuldades enfrentadas na educação básica e que é necessário intervir o quanto antes, pois o estudante que está nessa etapa da escolarização hoje com lacunas no seu processo de formação de leitor, será o universitário, o cidadão amanhã, que trará em sua bagagem tais deficiências. Tabela 1: Nível de escolaridade dos participantes nas pesquisas Nível Número de estudos conduzidos Pré-escola 1 Ensino fundamental 13 Ensino médio 6 Educação de Jovens e Adultos 2 Universitários 10 Licenciatura 3
Fonte: Dados da pesquisa. 141
Destacamos a pequena quantidade de pesquisas realizadas no âmbito das licenciaturas: apenas 3 das pesquisas coletadas foram realizadas com estudantes de algum curso de licenciatura e apenas 1 foi conduzida com graduandos em Letras. Esse é um dado bastante preocupante, tendo-se em vista que os licenciandos, independente de sua área específica, serão os futuros professores de leitura, e que além de utilizarem estratégias para uso próprio, precisam saber quando e como ensiná-las aos seus alunos. Parece-nos que os professores dos cursos de formação de professores ainda não se conscientizaram da importância da habilidade de ler com fluência e competência e da sua responsabilidade na formação de seus pares. A grande área dos cursos de formação de professores é deficitária em pesquisas aplicadas que podem desvelar os (muitos) aspectos que precisam ser aprimorados nos cursos de licenciatura das diferentes áreas do conhecimento. A partir do momento que as licenciaturas receberem a atenção, o incentivo e o respeito que merecem, os professores terão condições de aperfeiçoar o seu papel na construção do leitor autônomo, crítico e consciente que contribui significativamente para a sociedade.
Considerações finais O interesse central desta pesquisa foi investigar os estudos que foram conduzidos no Brasil em nível de mestrado e doutorado a partir do ano de 2000. Tivemos como ponto de inquietação os índices do INAF e do PISA, que explicitam nacional e internacionalmente a situação da educação brasileira, além de resultados de testes nacionais, como a Provinha Brasil e o ENEM. Os preocupantes resultados em testes de leitura dos estudantes brasileiros fizeram-nos questionar quais são os esforços realizados na pós-graduação das universidades deste país para compreender o que ocorre nas escolas brasileiras e quais as possíveis medidas a se adotar para melhorar este quadro. Artigos e revisões de literatura de diversos pesquisadores da área da Psicolinguística, da Linguística e da Linguística Aplicada indicam que o uso de estratégias metacognitivas como o monitoramento, por exemplo, pode contribuir positivamente para que se atinja a proficiência leitora. Da 142
mesma forma, o uso de estratégias de leitura pode ajudar o leitor a tornar-se autônomo em seus estudos. Com esta pesquisa, que investigou 180 universidades em todos os estados do Brasil, tanto na esfera pública como na privada, percebemos que existem poucos estudos que exploram o papel das estratégias de leitura para o desenvolvimento da compreensão leitora. Compreendemos que as estratégias de leitura são mais uma das muitas formas possíveis para melhorar a habilidade leitora, mas por questões de delimitação de estudo, uma apuração rígida foi necessária para determinar as pesquisas do nível stricto sensu com que esperávamos trabalhar. É importante destacarmos aqui, que ao delimitar nossa busca pelas palavras-chave (estratégias de leitura; ensino de leitura; uso e/ou instrução de estratégias; estratégias de leitura em língua materna e/ou estrangeira; professor de leitura) no título ou resumo das pesquisas, é possível que algumas pesquisas que abordam o tema estratégias de leitura, mas não empregam esses termos nos títulos e/ou resumos de seus estudos, tenham sido acidentalmente excluídas de nosso corpus. No entanto, ainda assim, como explicita o Gráfico 4, acima, a gama de instrumentos utilizados nas pesquisas é bastante grande – considerando que, ao final, trabalhamos com 33 pesquisas que enfocaram seus estudos em ensino, aprendizagem e/ou utilização de estratégias de leitura, nos dando possibilidades de estabelecermos um panorama das pesquisas realizadas entre 2000 e 2016. Conforme apontado anteriormente, o retrato das pesquisas sobre estratégias de leitura revela uma concentração de estudos na Região Sul do país, possivelmente em decorrência das áreas de concentração em Linguística e Linguística Aplicada e das linhas de pesquisa dos PPGs que se encontram nesta região. Parece-nos que os resultados de avaliações educacionais nacionais, alcançados pelas diversas escolas inseridas nessa região têm uma relação direta com os resultados das pesquisas que aos poucos chegam até às escolas, ou ainda melhor, incluem a realidade escolar como contexto de investigação (relembramos que das 33 pesquisas analisadas, 13 foram conduzidas com estudantes do Ensino Fundamental, 6 com estudantes do Ensino Médio). Outro ponto que merece ser destacado, é referente aos tipos de estratégias de leitura mais investigados nos estudos, que estão associados à compreensão inferencial, isto é, à capacidade do leitor de compreen143
der o que está implícito. Pode-se perceber que a academia está interessada em saber porque o estudante compreende muito pouco além daquilo que está explícito no texto, utilizando-se de diferentes instrumentos para verificar o que ocorre na mente do leitor enquanto lê (protocolos verbais) e quais são as estratégias de leitura utilizadas ou percebidas pelos leitores durante a realização de uma dada tarefa (questionários, entrevistas). Apesar de incipiente, 6 estudos valeram-se do método de pesquisa-ação, por meio de período instrucional sobre estratégias de leitura, demonstrando (quem sabe?) o acordar dos professores pesquisadores para a mudança do quadro de leitura no Brasil, que deve focar na escola e na formação (continuada) de professores. Finalmente, apesar de termos encontrado um número baixo de pesquisas sobre estratégias de leitura neste período de 16 anos, parece-nos que encontramos um retrato relativamente animador, haja vista a variedade de métodos selecionados para compreender porque o estudante brasileiro ainda não consegue compreender informações mais complexas inseridas em textos longos e contínuos, por exemplo. Falta inserir nesse retrato um número maior de pesquisas longitudinais com estudantes com baixo desempenho em leitura nos diferentes níveis de escolarização que comprovem a eficácia do ensino direto de estratégias de leitura, conforme sugerido por Nist e Mealy (1991). Este é apenas um dos vários aspectos que precisam ser incluídos e atualizados no nosso retrato brasileiro das pesquisas no âmbito da leitura.
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7 A compreensão leitora do futuro professor de letras em formação: observando as habilidades de reflexão e avaliação Gabriel Augusto Scheffer Claudia Finger-Kratochvil
Introdução Nas mais diversas esferas e sob diferentes perspectivas, a leitura e a formação de leitores têm sido tema para estudiosos e pesquisadores, gestores públicos, agências internacionais de desenvolvimento, mídia, entre outros. Nesse contexto, em especial, a questão da formação de leitores tem sido pesquisada por aqueles que se dedicam aos estudos da leitura e à formação de professores, no Brasil, sendo a universidade um espaço privilegiado para essa tarefa. Várias instâncias e muitos profissionais reconhecem e valoram a leitura como um dos elementos fundamentais para o êxito na construção de saberes dos mais variados tipos, como a própria escolarização e as atividades de leitura no cotidiano em geral. Dessa forma, é possível constatar que a leitura não se constitui como uma tarefa simples e espontânea, mas como uma atividade de construção de sentidos1 e significados ao se levar em consideração as intenções, objetivos e expectativas do leitor no ato de ler (Kleiman, 1999). 1
Considerando a concepção de leitura adotada para o presente trabalho, concorda-se que a construção de sentidos em um texto “[...] implica ouvir o que o texto tem a dizer e relacionar aquilo que se puder escutar, de modo bastante assimétrico, alinear e difuso, aos conhecimentos já elaborados e (in)compatíveis com o que o texto propõe” (SOUZA, 2012, p. 48).
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Nessa perspectiva, Cain (2009) explica que o processo de compreensão na leitura se constitui como uma atividade complexa e que vários conhecimentos são requeridos, desde aqueles provenientes do texto até os saberes do próprio leitor. Entretanto, esse (re)conhecimento ainda tem abrangência restrita e prevalece uma equivocada concepção de que o processo de ensinar e aprender a ler é uma tarefa simples e que não demanda um conjunto de conhecimentos, habilidades e estratégias que são desenvolvidos no percurso de envolvimento do leitor com as diferentes formas de leitura com que se depara no seu dia a dia, seja na escola, ou fora dela. Dados que corroboram para essa constatação são os resultados desanimadores que os estudantes brasileiros têm obtido em avaliações em leitura, tanto de caráter nacional quanto internacional (Finger-Kratochvil, 2010). Dentre as avaliações, menciona-se o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA)2, edições realizadas nos anos 2000, 2003, 2009, 2012 e 2015, que vêm mostrando que o Brasil apresenta baixas pontuações em relação ao conjunto de habilidades em leitura analisadas. Nesse indicador, o país inclusive tem figurado entre os dez últimos no ranking de desempenho analisado (OECD, 2016) juntamente com outras nações da América Latina. Outras avaliações de caráter nacional têm sido realizadas. Algumas são voltadas aos estudantes e, dessa forma, realizadas pelo Ministério da Educação – MEC, por meio do Instituto Nacional de Pesquisas Anísio Teixeira – INEP, como a Prova Brasil e o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM. Elas têm demonstrado fragilidades na construção do leitor e, dessa forma, endossam as constatações resultantes de outras mensurações, como a já mencionada. O Instituto Paulo Montenegro – doravante, IPMN –, responsável pelos dados do Indicador de Alfabetismo Funcional – próximas menções, INAF –, busca entender a leitura na sociedade de forma mais ampla, e revela, por meio de seus dados, que um percentual muito pequeno da população pode 2 O Programme for International Student Assessment, PISA – sigla em inglês, se constitui como um avaliador das habilidades e conhecimentos de jovens na faixa dos 15 anos de idade que estão concluindo o ensino fundamental. A mensuração deste indicador leva em consideração as capacidades em relação à leitura, matemática e ciências dos estudantes. No que se refere ao domínio da leitura, o PISA aborda três habilidades essenciais na compreensão de textos: Interpretação da Informação, Recuperação da Informação e Reflexão e Avaliação da Informação (OECD, 2007).
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ser considerado funcionalmente alfabetizado em um nível avançado de acordo com seus respectivos critérios que estudam os níveis de alfabetismo no Brasil. De acordo com as avaliações realizadas em diferentes edições, menos de 30% da população brasileira, entre 15 e 64 anos de idade, pode ser considerada funcionalmente alfabetizada (Instituto Paulo Montenegro, 2016). Na edição de 2015, 22% do público que estava cursando ou deixou o ensino superior pode ser categorizado como funcionalmente alfabetizado em um nível Proficiente3. Esses dados requerem atenção. Por esses motivos, uma desafiadora questão tem surgido: estariam futuros profissionais da área de Letras chegando no ensino superior com uma bagagem leitora insuficiente de acordo com os novos desafios – especificamente no que se refere à leitura que o âmbito acadêmico exige? O presente trabalho procurou analisar a competência leitora de estudantes ingressantes de um curso de Letras em uma Instituição de Ensino Superior (IES), localizada no estado de Santa Catarina, com o intuito de verificar seus conhecimentos em leitura, especialmente, no que se relacionava à habilidade de Reflexão e Avaliação no início e nas fases finais do curso. A investigação procurou analisar como os participantes lidam com tarefas que exigem a capacidade de relacionar determinadas informações do texto com as experiências e conhecimentos de mundo construídos.
Referencial Teórico O presente referencial teórico apresenta uma perspectiva de leitura como uma atividade cognitiva que exige tanto conhecimentos advindos do texto, como também as contribuições que o próprio leitor ativa para se chegar ao estado que aqueles que exploram um determinado texto almejam: a compreensão do texto lido. Dessa forma, entende-se que a construção de significados na leitura não ocorre somente a partir da reflexão sobre o código escrito. Ao invés disso, esse ato pode ser considerado como um pro3 De acordo com os critérios estabelecidos no Indicador de Alfabetismo Funcional, se enquadram no grupo de analfabetos funcionais os Analfabetos e os Alfabetizados Rudimentares. No grupo dos considerados funcionalmente alfabetizados, estão os de nível Elementar, Intermediário e Proficiente, sendo os inseridos neste último aqueles indivíduos capazes de ler textos de maior complexidade. Para compreender melhor as habilidades e conhecimentos que compreendem cada nível de classificação, sugere-se acessar: <http://www.ipm.org.br/pt-br/programas/inaf/Paginas/default.aspx>.
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cesso complexo no qual, ao final, o leitor apreende as informações do texto a partir do seus conhecimentos, relacionando-os ao conteúdo lido (Gerber; Tomitch, 2008). Além disso, a leitura também pode ser considerada como uma das atividades que propiciam crescimento pessoal e profissional. Alliende e Condemarín (2005), nessa perspectiva, analisam que quanto mais elevados são os níveis em leitura dos indivíduos de uma determinada nação, mais altos são os respectivos índices econômicos do país. Ao assumir esse ato como uma atividade complexa que exige habilidades múltiplas, o entendimento de algumas concepções de leitura é relevante na compreensão de diferentes fatores que se relacionam para o êxito da tarefa nas mais variadas leituras que são realizadas no cotidiano.
Concepções e abordagens de leitura Admitindo que a leitura se estabelece como um processamento em diferentes níveis (De Sousa; Gabriel, 2009) e que alguns fatores contribuem para a obtenção de sucesso na tarefa, convém explorar as principais concepções de leitura abordadas na literatura específica da Psicolinguística. Leffa (1996) propõe quatro acepções que caracterizam a leitura como um processo que exige diferentes formas de conhecimentos para a construção de sentidos para o texto: modo de representação do mundo, extração de significados do texto, atribuição de significados ao texto e a leitura interativa. Essas concepções determinam atitudes distintas do leitor ao realizar uma determinada tarefa de leitura (Smith, 1989). Além disso, elas são importantes ao se levar em consideração os objetivos do leitor ao efetuar uma leitura, além do seu nível de compreensão diante do texto. A leitura expressa como uma representação de mundo consiste na compreensão como produto do conhecimento de uma realidade fragmentada, que é reformulada a partir dos saberes prévios do leitor. Ou seja, é o cérebro que seleciona as informações mais relevantes de acordo com o conhecimento que já se encontra armazenado na mente (Smith, 1989). A partir disso, percebe-se que nem sempre o que está exposto em um texto reflete realmente seu significado real. Nesse contexto, Leffa (1996, p. 10) 150
afirma que, “ler é, na sua essência, olhar para uma coisa e ver outra”. Sendo este um conceito mais abrangente de leitura. Na concepção de que ler é extrair significado do texto, o processo é ascendente e a ênfase está no texto (Leffa, 1996). O leitor assume o papel de descobridor. As informações relevantes estão prontas e acabadas no texto. Entende-se a leitura dessa forma, porque o leitor se vê obrigado, em algumas situações, a ficar “o mais próximo possível do texto, tentando extrair dele todos os elementos que possam ser úteis para o alcance dos objetivos” (Souza, 2012, p. 69). Atenta-se para uma leitura ponderada e cuidadosa na construção do significado, com base no próprio conteúdo lido, para obtenção de sucesso na passagem de todas as etapas até a compreensão, mesmo se for necessário efetuar releituras frequentes. Diante disso, verifica-se que o processo ascendente é mais comum nas tarefas de leitura inicial ou emergente, devido ao fato de o aprendiz ainda possuir um conhecimento de mundo limitado e do funcionamento do sistema (Alliende, Condemarín, 2005; Souza, 2012). Também a leitura ascendente é explorada nos momentos em que o leitor se depara com textos de difícil compreensão, seja por conter palavras desconhecidas, um gênero não familiar ou, até mesmo, um tema ainda inexplorado por parte do leitor. Já quando se adota um modelo de leitura em que a atribuição de significado vai do leitor para o texto, realiza-se uma leitura que ativa os conhecimentos do próprio leitor (Leffa, 1996). Essa concepção, também conhecida como modelo descendente, caracteriza-se por considerar a compreensão não como um produto final, mas como um percurso seguido pelo leitor ao ser guiado pelos seus conhecimentos prévios. Ou seja, os sentidos e significados não estão totalmente incluídos no texto. Somente com a contribuição das experiências e conhecimento de mundo do leitor é que será possível construir um sentido global para o que está escrito, para assim chegar ao entendimento do texto. Nessa acepção, é possível perceber a leitura como “um registro das ideias principais na memória de longo prazo por meio do acesso e comparação do que foi previamente armazenado” (Finger-Kratochvil, 2010, p. 87). Na leitura descendente, ao contribuir com seus conhecimentos prévios e utilizar inferências relevantes para construção de significados em um 151
texto, o leitor consegue realizar previsões do assunto a ser explorado (Sternberg, 2010). Neste contexto, Smith (1989, p.35) afirma que a estratégia da previsão se constitui como “a eliminação de alternativas improváveis”. Assim, ao realizar previsões, o leitor é capaz de descartar as informações que são desnecessárias ou que são empecilhos na leitura. Souza (2012), nessa perspectiva, argumenta que com o estabelecimento do modelo descendente, a leitura torna-se um ato menos exaustivo, resultando numa ação eficiente. Leitores competentes frequentemente adotam essa abordagem em diferentes situações de leitura. Entretanto, considerar somente o modelo ascendente ou o descendente não é suficiente para que a compreensão no ato de leitura se consolide com êxito: precisa haver uma relação mútua entre o leitor e o texto (Leffa, 1996). É através dessa interação que são construídos os sentidos e significados em um ato de leitura. Por isso, o processo de interação de leitor e texto tende a ser um modelo ideal para compreender aquilo que foi lido, visto que a complexidade do ato de ler não permite focalizar apenas o modelo descendente ou ascendente, mas sim os dois ao mesmo tempo (Leffa, 1996). E, para o êxito na interação texto-leitor, o desenvolvimento de habilidades e estratégias de leitura, além da construção de saberes prévios, tende a auxiliar o leitor no processo de compreensão de textos.
Habilidades, estratégias de leitura e conhecimento prévio Assim como outros saberes e conhecimentos que são adquiridos no decorrer da vida, as habilidades de que necessitamos para compreender um texto também precisam de prática para que contribuam no processo de construção de significados para um determinado texto. Nesse sentido, Afflerbach; Pearson e Paris (2008) explicam que uma habilidade de leitura se caracteriza por seu caráter automático na execução, como, por exemplo, o processo de reconhecimento de palavras por intermédio da decodificação. Entretanto, para interpretar as informações do texto com êxito, o leitor também necessita usufruir de processos conscientes e deliberados que o façam refletir sobre o seu respectivo desempenho na leitura: Estou entendendo? Preciso voltar alguns parágrafos? O que essa palavra significa? etc. 152
Ou seja, ele precisa fazer uso de estratégias para prosseguir na leitura com sucesso. Dessa forma, um leitor competente se caracteriza justamente por sua capacidade no desencadeamento de estratégias para se desvencilhar das possíveis armadilhas que um texto impõe. Nesse contexto, Souza (2012) explica que um leitor competente, além de ser estratégico, possui o hábito de pensar em decisões pertinentes conforme a exigência da leitura, assumindo diferentes processamentos em relação ao texto (ascendente, descendente, interativo). Para Solé (1998), esse leitor estratégico é capaz de identificar e avaliar os empecilhos impostos pelo texto, enaltecendo sua versatilidade no encontro de soluções: é capaz de reconhecer se realmente está compreendendo ou somente realizando uma leitura sem monitoramento e esquecendo os objetivos que tinha em mente. Logo, o leitor estratégico tende a adotar flexibilidade nas leituras que realiza. Isso torna-se relevante “quando o assunto é letramento e, de forma mais específica, leitura, pois o desenvolvimento de capacidades e habilidades é processo contínuo” (Finger-Kratochvil, 2010, p. 86). De qualquer maneira, verifica-se que, no processo de compreensão de textos e também no ensino-aprendizagem de conhecimentos exigidos para a construção de significados para o texto, o leitor se utiliza de recursos tanto inconscientes, as habilidades, quanto conscientes, as estratégias. Nesse sentido, torna-se possível observar que, para se aprender uma habilidade, recursos estratégicos são requeridos. Após ter automatizado o processo, como o reconhecimento de palavras, estratégias são requeridas para focar a atenção consciente em outros recursos cognitivos, por exemplo o monitoramento da compreensão (Morais, 2013). Esse cenário ocorre especialmente na formação de bons leitores, desde a fase de alfabetização até a leitura autônoma, visto que eles necessitarão lidar com os desafios que os textos impõem: iniciar aprendendo a reconhecer palavras a partir de metodologias estratégicas e, após automatizar esse processo, utilizar recursos conscientes para compreender aquilo que leu, como a elaboração de inferências a partir de conhecimentos já construídos e armazenados na memória (Gerber; Tomitch, 2008). Em relação a isso, verifica-se que a capacidade humana de armazenar informações, especialmente aquelas estocadas na memória de longo 153
prazo, se torna fundamental, pois é justamente esse tipo de memória que permite às pessoas realizarem as suas tarefas do cotidiano. Nela estão contidas as memórias que se adquirem no decorrer da vida, sejam visuais ou dos demais sentidos (Izquierdo, 2002). Diante disso, percebe-se que, para a leitura, essas experiências se tornam importantes para que o leitor possa contribuir na construção de significado e sentidos do texto para compreensão, que podem ser a partir dos conhecimentos prévios, sejam linguísticos, textuais e de mundo (Kleiman, 1999). No que se refere ao último, observa-se que os conhecimentos adquiridos a partir das experiências humanas não se encontram desorganizados no sistema cognitivo humano, mas sim organizados por estruturas relacionadas, que Rumelhart (1981) chamou de esquemas cognitivos. A teoria de esquemas se estabelece como uma tentativa de explicar como unidades de sentido são organizadas na mente humana na relação com outras, a partir das conexões entre variáveis que se diferenciam em diversas situações (Leffa, 1996). Em parte, isso explica o porquê as pessoas procedem de maneira diferente em situações variadas. Com o passar do tempo, a tendência é que esses esquemas possam se expandir e, um dos principais meios de fortalecimento dessas relações, pode ser a leitura frequente. Dessa forma, visto que os textos não trazem consigo todas as informações de que se necessita para a sua compreensão; isto é, são imprescindíveis os conhecimentos registrados pelo código escrito e, portanto, advindos do sistema linguístico, mas também os conhecimentos que o leitor já possui, observa-se que os esquemas são relevantes para que a compreensão ocorra com sucesso. Assim, quanto mais específicos e quanto maior for o número de esquemas e subesquemas que o leitor possuir, provavelmente, tanto melhor as lacunas, que o texto possui, serão preenchidas, visando à construção de sentidos que propiciará ao leitor novos aprendizados e, consequentemente, o fortalecimento dos seus esquemas cognitivos (Anderson, 2004). Isso, por sua vez, propiciará ao leitor uma leitura menos árdua pelo fato de conseguir construir sentidos que muitas vezes não estão explícitos no texto e cujo alcance necessita da memória de longo prazo para poder relacionar as informações presentes no texto. 154
Método Participantes Os participantes deste estudo foram estudantes de curso de Letras de uma IES localizada no estado de Santa Catarina que efetuaram os testes em duas etapas da graduação. Na primeira etapa, envolveram-se na pesquisa 15 acadêmicos. Transcorridos sete períodos do curso, 9 deles estavam regularmente matriculados e participaram do segundo momento da coleta de dados.
Instrumentos Aplicou-se aos participantes envolvidos na investigação o Teste CF-K (Mendes, 2016; Finger-Kratochvil, 2010), composto de três Unidades de Leitura, doravante ULs, compostas por textos de circulação na esfera jornalística e questões abertas e fechadas em diferentes níveis de complexidade. O instrumento foi construído a partir dos critérios do PISA para estudar a competência leitora dos estudantes considerando as seguintes habilidades de leitura: Recuperação da Informação (RI), Interpretação da Informação (II) e Reflexão e Avaliação (RA). Os níveis de complexidade das questões variaram de 1 a 5. A UL01 foi composta de seis questões a partir do texto Sob o império da dúvida. Já a UL02, com o texto Celulares acessam do banco ao MSN, propomos quatro questões. E, por fim, a partir do texto Muito além do champignon, os participantes realizaram oito atividades de compreensão4. Para o presente trabalho, dedicou-se à análise das questões referentes ao Domínio Reflexão e Avaliação, com o intuito de verificar como os participantes relacionam as informações do texto com os seus conhecimentos, saberes e experiências prévias na construção de sentidos para os textos lidos.
Critérios de Análise dos dados Visando ao desempenho geral do grupo, a partir das respostas apresentadas nas tarefas de leitura, calculou-se o escore obtido pelos partici4
Para maiores esclarecimentos a respeito do teste, veja Finger-Kratochvil (2010).
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pantes, sendo total ou parcial, conforme o grau de proficiência requerido na tarefa. Algumas questões possuíam dois escores possíveis, dependendo das respostas que se esperavam do participante de acordo com o nível de complexidade da questão. Com relação à habilidade de leitura Reflexão e Avaliação, verificou-se o desempenho nas questões referentes ao domínio em específico, distribuídos nas questões das ULs para uma posterior interpretação dos resultados de acordo com o embasamento das avaliações do PISA (OECD, 2007).
Procedimentos Em um primeiro momento, aplicaram-se os testes aos estudantes na qualidade de participantes ingressantes. Nessa etapa, eles realizaram apenas dois testes de leitura: a UL01 e UL02. Passadas sete fases da graduação, os participantes foram convidados a realizar novamente os dois testes e mais a UL03. Este mais complexo em se tratando do nível de complexidade das questões.
Análise e Discussão dos resultados Na verificação dos resultados, decidiu-se analisar separadamente o desempenho dos participantes nas ULs considerando o grupo nos dois momentos da realização dos testes: ingressantes e graduandos da sétima fase do curso. Por fim, comparou-se o desempenho dos estudantes nas duas fases sob olhares atentos de questões referentes à habilidade de leitura que o trabalho procurou estudar: Reflexão e Avaliação.
Verificação do desempenho dos participantes: grupo ingressante A principal questão que este estudo procurou investigar diz respeito às habilidades de leitura que os participantes da pesquisa trouxeram e/ou desenvolveram (ou não) no decorrer do ensino superior no que diz respeito à capacidade de refletir e avaliar informações específicas do texto. Primeiramente, dedicou-se a atenção ao desempenho nas tarefas de leitura do grupo enquanto ingressantes do curso de Letras: 156
Quadro 1: Pontuação geral nas ULs: sujeitos como grupo ingressante UL Escores esperados Média do grupo UL01 2812 1930, 2 UL02 2067 819, 5 Fonte: os autores
Analisando o Quadro 1 acima, percebeu-se que os participantes obtiveram resultados abaixo do desejado, visto que o teste CF-K espera que os estudantes ingressantes no ensino superior tenham alto escore, pois as habilidades de compreensão em leitura requeridas, supostamente, deveriam ter sido desenvolvidas até o final do ensino médio. As duas ULs, ora aplicadas, abrangem questões com menor demanda em sua complexidade, mas dada a sua significância estatística (veja Finger-Kratochvil, 2010) indicam a fragilidade do leitor ingressante em algumas habilidades em específico. A fim de entender melhor os resultados quantitativos gerais, decidiu-se analisar o domínio Reflexão e Avaliação em específico, observando o desempenho dos estudantes nessas questões. Na sequência, apresenta-se a questão 5 da UL01 do texto Sob o império da dúvida. Quadro 2: UL01Q05 UL01 Questão 5 – Por que motivos se afirma que a princesa Isabel não teria papel representativo na história do Império? Justifique sua resposta com dados do texto, se possível. Fonte: Finger-Kratochvil, 2010
Nessa questão, do domínio Reflexão e Avaliação de nível 2 em complexidade, esperava-se que os participantes realizassem uma conexão entre o texto e seus conhecimentos anteriores. Percebeu-se que 93,3% dos participantes não obtive êxito na tarefa de ativar seus conhecimentos prévios na construção de relações e conexões entre a figura da mulher na época do Império (seus direitos e deveres) e as regras estabelecidas para a sucessão governamental em uma determinada monarquia, visto que a princesa Isabel era a segunda filha do imperador Pedro II. A informação está apresentada no próprio texto proposto aos participantes para a leitura. Notou-se que a maior parte dos acadêmicos não foram capazes de relacionar o con157
teúdo do texto, posicionando-se em relação aos critérios de sucessão do Império: o fato de na época as mulheres não possuírem os mesmos direitos que os homens, por exemplo. Observa-se ainda para o fato dessa tarefa, junto com as outras 5 questões da UL01, estarem distribuídas nas questões mais baixas em complexidade, i.e., nos níveis 1, 2 e 3, considerando o PISA como balizador do teste CF-K. Por essas razões, essa UL apresentava-se com um maior grau de facilidade na resolução comparativamente. Situação semelhante observou-se no desempenho verificado nas tarefas realizadas na UL02. Para fins de ilustração, apresenta-se a UL02Q02 do texto Celulares acessam do banco ao MSN: Quadro 3: UL02Q02 UL02Questão 2 – O redator chefe da seção Saiba Como, do jornal O Estado de São Paulo, após ler o texto de Diego, chamou sua atenção para o último parágrafo e para as últimas quatro linhas. Mas, atenção, se for acessar um site com fotos, sons e afins usando o celular como modem, prepare o seu bolso. Ele aconselhou Diego a mudar a redação afirmando que ela não esclarece o leitor adequadamente e sugerindo a troca da expressão “prepare o seu bolso”. Você concorda que o trecho mencionado não é esclarecedor e a expressão “prepare o seu bolso” deveria ser substituída? Justifique sua resposta. Fonte: Finger-Kratochvil, 2010
Esperava-se que os participantes fossem capazes de comparar o assunto abordado pelo texto, em relação ao avanço das novas tecnologias e suas respectivas repercussões ao conhecimento que já possuíam sobre essa temática, a fim de avaliar a adequação (ou não) do uso da expressão “prepare o seu bolso”. Tem-se, então, mais uma tarefa do domínio Reflexão e Avaliação, porém, dessa vez, de nível três. Os resultados apontam que quase três quartos dos participantes, mais precisamente 71,4%, não se mostraram seguros para refletir e avaliar a respeito do desafio proposto pelo texto, utilizando-se de conhecimentos e experiências anteriores. Essa habilidade é de grande importância na construção de sentidos e construção do letramento 158
crítico. Verificou-se a constância de respostas vagas e insuficientes, como: “que ela ficou boa na frase” e/ou “que é possível entendê-la”, sem ao menos uma avaliação direta, ou indireta, na apresentação de razões para o posicionamento que julgassem adequado.
Análise e comparação dos dados dos testes realizados pelos participantes na sétima fase do curso Passados sete períodos do curso de Letras, aplicou-se novamente o teste CF-K, aos estudantes que continuaram matriculados no curso de graduação, somando-se a UL03. Os dados revelam que, em comparação com o desempenho nas ULs no primeiro semestre, houve desenvolvimento da compreensão em leitura dos participantes. Observando o Quadro 4, verifica-se o aumento dos escores apresentados pelos estudantes em ambas as ULs que foram desenvolvidas nos dois momentos da testagem: UL01 e UL02. A UL02, especialmente, aponta uma significativa melhora nos resultados. Comparados os níveis de dificuldade entre as ULs, a UL03, composta por questões nos níveis mais altos dos três domínios - RI, II e RA – também indica crescimento na qualidade da compreensão em leitura dos participantes. Quadro 4: Pontuação geral nas ULs dos sujeitos como grupo da sétima fase UL UL01 UL02 UL03*
Média do grupo (Sétima fase) 2180, 1 1875, 3 3449, 8
Média do grupo (Ingressantes) 1930, 2 819, 5 -
Escores esperados 2812 2067 4962
*UL aplicada somente aos participantes remanescentes do curso
Fonte: os autores
Os escores revelam a evolução nos resultados obtidos pelos participantes ao longo da graduação, constatando, inclusive, que eles se apropriaram de novas habilidades nos três domínios nos níveis mais altos. Entretan159
to, a discussão de algumas questões a respeito desse desempenho torna-se necessária visto que caberá a esses futuros profissionais da área de Letras trabalhar com o processo de ensino e aprendizagem da leitura. No que diz respeito às tarefas de leitura proposta na UL01, percebeu-se uma grande evolução na resolução das questões por parte dos participantes. Entretanto, verificou-se um alto grau de insucesso na questão UL01Q05 (veja quadro 2). Mais uma vez os participantes demonstraram dificuldade de relacionar seus conhecimentos prévios, a partir das suas experiências de mundo, com as informações em conflito no texto para solucionar um problema, visto que alguns não obtiveram escores nesta questão. Dessa forma, notou-se que, mesmo passadas sete fases do curso, permaneceram lacunas no que se refere à habilidade de refletir e avaliar certas passagens do texto. Esse cenário foi reforçado pelo dado de que quanto mais alto o nível de complexidade da questão, maior tem sido o grau de insucesso em sua resolução. Esse fato é evidenciado pelo desempenho dos participantes em questões referentes ao texto Muito além do champignon, da UL03, especificamente aquelas que demandaram habilidades de Reflexão e Avaliação: Quadro 5: UL03Q04 UL03Questão 4 – Por que podemos afirmar que os cogumelos são espécies ameaçadas de extinção? Fonte: Finger-Kratochvil, 2010
A partir da questão 4 da UL03, esperava-se que os participantes refletissem a respeito do conteúdo do texto, utilizando-se de conhecimento e experiência armazenados na memória para formular uma hipótese coerente com as informações lidas. Diante disso, notou-se que 77,7% do grupo falhou na tarefa de leitura estabelecida. Visto que essa questão se constituía no mais alto nível de complexidade do domínio Reflexão e Avaliação, observou-se novamente a dificuldade dos estudantes em trabalhar com conceitos contrários às expectativas em textos extensos e com alto grau de complexidade, reforçando o cenário de que os estudantes chegam à graduação trazendo na 160
sua bagagem de leitor apenas habilidades de nível básico referentes à leitura (Finger-Kratochvil; Baretta; Klein, 2004; Finger-Kratochvil, 2010). Nesse contexto, percebeu-se que, na exigência de tarefas com alto teor de elaboração como avaliar informações competitivas ou mesmo a realização de inferências para compreender determinadas passagens do texto, o grau de sucesso diminui consideravelmente (Finger-Kratochvil, 2010). Além disso, esperava-se um resultado não tão inconstante nessas tarefas de leitura, visto que o gênero de texto proposto nos instrumentos, da esfera jornalística, deveria ser bastante familiar aos participantes da pesquisa, considerando que a maior parte dos ingressantes concluíram o ensino médio pouco tempo antes de iniciarem seus estudos em uma instituição de ensino superior.
Considerações finais Os dados por ora analisados demonstram, mais uma vez, a fragilidade das habilidades em leitura tanto do ingressante quanto do acadêmico em fase avançada de um curso superior de Letras. A partir do presente estudo, percebeu-se que quanto mais alto o grau de complexidade das questões distribuídas nos diferentes domínios de letramento, menor foi o sucesso na resolução das tarefas. Comparando o desempenho dos dois grupos de participantes, a partir do estudo realizado, confirmou-se o ingresso de estudantes no ensino superior com uma bagagem leitora insuficiente, visto que as exigências em leitura nesta etapa de formação requerem um alto índice de habilidades em leitura. Contudo, percorridos sete fases da academia, percebeu-se a ocorrência de uma evolução nestas habilidades, porém ainda com a presença de fragilidades no aperfeiçoamento de algumas delas. Verificou-se, ainda, inclusive dos participantes enquanto concluintes do curso, problemas na habilidade de Reflexão e Avaliação da informação. Constatou-se que, quando se exigia o trabalho com informações competitivas, relacionando-as com seus próprios conhecimentos sobre o assunto, na maioria das vezes, os participantes não conseguiram apresentar desenvolvimento de habilidades a respeito do que fora solicitado em relação a este domínio nas ULs. Observou-se que, até mesmo em questões com os mais 161
baixos índices de dificuldade no domínio, os participantes não obtiveram os resultados esperados, o que é especialmente preocupante, considerando o seu grau de formação. Pelos dados anteriormente apresentados, entende-se ser urgente a abordagem dos temas relativos à leitura, considerando-se as ciências que a têm estudado – psicolinguística, linguística aplicada, neurociências, por exemplo –, a fim de aprofundar a discussão nos cursos de formação de professores. Só uma sólida e científica formação de professores poderá auxiliar em mudanças nesse quadro lamentável que se apresentou (e se apresenta), pois ele acaba se tornando um circuito fechado e vicioso: uma formação precária formará outros com precariedade. Urge se ensinar a respeito dos processos da leitura aos futuros professores de Letras e Pedagogia principalmente, mas não exclusivamente. Os professores de todas as áreas precisam estudar a compreensão em leitura. Esses profissionais trabalharão com a leitura em sala de aula, sendo especialmente eles que deverão desconstruir um cenário, que em grande medida não tem se revelado propício para a formação de leitores críticos, autônomos e estratégicos.
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8 Ensinar a estudar ensinando a ler: potências dos roteiros de leitura Ana Cláudia de Souza Cristiane Seimetz-Rodrigues Helena Cristina Weirich
5. QUINTA SUGESTÃO. Ensine Chizalum a ler. Ensine-lhe o gosto pelos livros. A melhor maneira é pelo exemplo informal. Se ela vê você lendo, vai entender que a leitura tem valor. Se ela não frequentasse a escola e simplesmente lesse livros, provavelmente se instruiria mais do que uma criança com educação convencional. Os livros vão ajudá-la a entender e questionar o mundo, vão ajudá-la a se expressar, vão ajudá-la em tudo o que ela quiser ser – chefs, cientistas, artistas, todo mundo se beneficia das habilidades que a leitura traz. Não falo de livros escolares. Falo de livros que não têm nada que ver com a escola: autobiografias, romances, histórias. Se nada mais der certo, pague-a para ler. Dê uma recompensa. Sei dessa nigeriana incrível, Angela, uma mãe solo, que estava criando a filha nos Estados Unidos. A menina não gostava de ler, então a mãe decidiu pagar cinco centavos para cada página lida. Mais tarde, ela dizia brincando: “Saiu caro, mas o investimento valeu a pena” (Adichie, 2017, p. 34-35).
Introdução Tal como sugere Chimamanda Adichie, no manifesto Para educar crianças feministas, o maior objetivo que se persegue com o que está proposto neste capítulo é ensinar a ler, ensinar a ler não apenas livros escolares 164
e não apenas para a escola. Ensinar a ler para a democracia real, ensinar a ler para promover a equidade de gêneros, ensinar a ler para muito além do que preveem os campos disciplinares. Ensinar a ler, ler e ler, fazendo com que, tal como propõe Morais (2014), a recompensa acabe por estar no prazer, na alegria e nos benefícios inerentes à leitura e à escrita. Como professoras e como pesquisadoras envolvidas com o estudo da leitura, propomos ir além do bom e importante exemplo de leitura e de leitor que, tanto em casa quanto na escola, se pode almejar que a criança tenha. Buscamos abordar, de modo sistemático, um ensino de leitura que participe da promoção e da consolidação da democracia. Assim, apresentamos ao leitor proposta de reflexão e demonstração acerca de papéis potenciais que os roteiros de leitura podem desempenhar nos espaços e tempos destinados a ensinar a ler nos ambientes de educação formal – institucionalizada ou não – dos quais a escola faz parte. Esta proposta é fruto de pesquisas, experiências docentes e interação com professoras e professores da educação básica por meio de projetos, aulas, minicursos e oficinas de leitura e ensino. Para chegar aos lugares e funções que podem ser ocupados pelos roteiros, esta exposição é iniciada, na segunda seção, tratando de questões teóricas acerca dos conceitos e processos de leitura, de compreensão leitora e de ensino de leitura com os quais operamos. Se para ter acesso a muitos dos conhecimentos que circulam nos espaços formais de educação é preciso estudar textos escritos e, portanto, ler; para ler é preciso estudar e aprender a lidar com um objeto que não se mostra disponível e acessível ao sujeito, se este não souber desvendá-lo: o texto escrito. Por isso, neste capítulo, discutem-se aspectos do ensino da leitura, objetivando propor estratégias, ações e atividades que propiciem o ensinar a ler e o ensinar a estudar ensinando a ler, por meio de roteiros de leitura. Com base na exposição e discussão travadas, são apresentados, descritos e analisados dois exemplos que evidenciam potenciais do roteiro em sala de aula: um deles com o propósito de ensinar a ler (apresentado na quarta seção deste texto) e outro com o propósito de avaliar a leitura, observando seu resultado e os caminhos percorridos, com vistas ao desenho de um projeto instrucional para o ensino da leitura (quinta seção). A terceira seção oferece ao leitor o texto-base a partir do qual os roteiros foram elaborados. 165
Da leitura ao roteiro de leitura no processo de ensinar a ler e a estudar O que é leitura? Ou qual perspectiva de leitura é assumida neste texto? Leitura se ensina? Começando de trás para frente, a última questão já está respondida, uma vez que, se propomos ações, ferramentas e atividades instrucionais, é sobre ensino que estamos falando e, mais especificamente, sobre o ensino da leitura, que é por nós concebida como uma competência desenvolvida a partir da relação que o leitor (que sempre se encontra em processo de formação e novas aprendizagens) estabelece com o texto escrito, com vistas a alcançar determinado objetivo, relativo a alguma compreensão, em situação e contexto específicos. Dizer que a leitura é uma competência implica, neste caso, considerá-la como um conjunto de habilidades não compulsórias e não espontâneas (ou, pelo menos, não espontâneas enquanto não forem aprendidas) que precisam ser elaboradas, desenvolvidas e praticadas, a fim de que se saiba o que fazer e como fazer quando se lê, para que o propósito de alguma sorte de produção de sentidos (tal sorte depende daquilo que o leitor ou o professor ou instrutor almejam) tenha chance de ser obtido, ou seja, de que haja possibilidade de desencadeamento de um processo de representação mental e retextualização do escrito. Isso envolve necessariamente a visão ou o tato como meio de recepção do estímulo e o conjunto de conhecimentos prévios disponíveis e relevantes do leitor, de modo a permitir a compreensão1 (Souza, 2012). Considerando o exposto e sintetizando com base no que propõem Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), a leitura requer um conjunto de conhecimentos, fundamentalmente declarativos, que ora se vai chamar de 1 Morais (2014, p. 38) opta pelo termo “extração de sentido” ao tratar do objetivo da compreensão do texto. Ele refuta o termo “construção” e, provavelmente, refutaria também “produção” ou “retextualização” – termos pelos quais optamos –, argumentando acerca da inapropriação deles, já que a existência do texto independe do leitor e que “seu sentido não é construído como se constrói uma casa”. Tampouco aceita o autor o termo “reconstrução”, posto que esta “implicaria que a casa tivesse sido derrubada para ser construída de novo”. Argumentamos pela manutenção dos termos que selecionamos, porque concebemos “produção” e “retextualização” de maneira diversa daquela explicitada pelo autor. Por produção de sentido no contexto de leitura, entendemos os mecanismos que levam o leitor a confrontar as informações provenientes – e aí, sim, extraídas – do texto àquelas oriundas dos seus sistemas de memória, que são incitadas pelo texto, mas não são por ele geradas. É do encontro entre esses dois conjuntos de informação que o sentido se produz em leitura ou que se retextualiza o dito no texto escrito, por meio de uma representação mental, o que não gera necessariamente um produto acessível a outros leitores.
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conceituais, e um conjunto de habilidades, que implica ações estratégicas e procedimentais2 e que leva à competência3. Juntos, esses dois conjuntos, que se dosam de modo não necessariamente semelhante, buscam equilibrar o leitor para otimizar a produção de sentidos coerentes e relevantes tanto ao texto quanto às intenções da leitura. Trata-se de condição fundamental para a relação que o leitor estabelece com o texto, cujas características podem indicar graus variados de qualidade, de intensidade, de elaboração e de durabilidade e consolidação. Dos conhecimentos conceituais necessários, salientam-se os linguísticos, os formais, os temáticos e os socioculturais. Nos conhecimentos de natureza linguística4, está implicado o que o leitor sabe sobre a língua na qual ele se dispõe ou é convidado a ler, conhecimentos de uso e também conhecimentos sobre como essa língua funciona e como um sistema de escrita alfabético e, a partir dele, o sistema ortográfico a ela se relacionam, os chamados conhecimentos metalinguísticos. Aqui estão envolvidos os conhecimentos fonéticos, fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos e as suas inter-relações. Os de natureza formal dizem respeito a como os textos se constituem e se organizam na escrita, como seus propósitos, temas, áreas, públicos-alvo (conhecidos e reais ou apenas almejados), espaços de circulação e os próprios autores e autoras participam da composição daquilo que se materiali2 Os conhecimentos declarativos ou explícitos se podem constituir a partir do conhecimento sobre o mundo, sobre como a sociedade funciona, sobre a língua etc. e também a partir da experiência. As memórias explícitas se referem a situações que pensaríamos como referentes à memória e que poderiam ser lembradas, por exemplo. Os conhecimentos não declarativos ou implícitos dizem respeito a situações nas quais obtemos desempenho, por ter havido aprendizagem, mas tal aprendizagem não está disponível à lembrança, à evocação. Para saber mais sobre o que são as memórias e como se constituem e organizam, recomendamos a leitura de Baddeley, Anderson e Eysenck (2011). 3 Para uma síntese do que propõem Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), recomendamos a leitura de Tomitch (2012), principalmente do mapa constante da página 17. 4
Embora este não seja o objetivo deste texto, importa destacar que os conhecimentos linguísticos dizem respeito ou constituem traços tanto de memórias de natureza declarativa quanto procedimental, uma vez que há aspectos da língua que estão disponíveis à evocação e há aspectos que não estão, embora tenham sido aprendidos e estejam disponíveis ao uso. Aqui, aos interessados em alfabetização, recomendamos a leitura de textos, frutos de pesquisa, que tratam da consciência metalinguística, da consciência fonológica (especialmente a fonêmica) e de outras consciências que precisam ser desenvolvidas para a aprendizagem da leitura e da escrita, a exemplo da morfológica, da sintática, da semântica e da textual. Recomendamos as seguintes leituras: Pereira e Scliar-Cabral (2012), Scliar-Cabral (2013); Koch (2014); Flôres (2014), Soares (2016) e capítulos do livro organizado por Naschold e colegas (2015).
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za para o leitor como texto, daquilo que se apresenta para ser lido. Alguns, neste aspecto, falariam em gênero de texto ou em gênero do discurso. Os de natureza temática, por sua vez, são aqueles conhecimentos que o leitor já tem sobre aquilo de que o texto trata, sobre seu assunto. E os de natureza sociocultural são os que orientam a produção de sentidos, posto abarcarem a maneira como vemos e nos relacionamos com o mundo, os lugares sociais, os valores, as crenças, as experiências. Quanto mais conhecimentos temáticos e socioculturais o leitor tiver sobre o assunto tratado, maiores serão as antecipações e as possibilidades de construção de inferências de natureza integrativa e elaborativa, por exemplo. Isso vale também para os conhecimentos linguísticos e formais. A experiência contribui para a formação de memórias, e as memórias são acionadas na execução das atividades que as requerem. Todavia, há que se considerar o risco que a especialização pode trazer ao processo de leitura (ou aos processos de compreensão de modo mais geral), uma vez que um especialista em determinado assunto, se não for um exímio leitor, corre o risco de se impor ao texto e, ao se impor, ele desrespeita os espaços de produção de sentido propostos e até autorizados por aquele texto. Não que todos os textos criem fronteiras claras e relativamente precisas de produção de sentidos (como o fazem, por vezes, os textos acadêmicos). Mas, de certa forma, a produção de sentidos, embora fique sob a responsabilidade do leitor na atividade de leitura, não dá a ele o direito de chegar aonde bem quiser dizendo que leu o texto. Ir, ele pode até aonde quiser; dizer que foi por meio da leitura é que não poderia, neste caso. E é aí que ocorrem alguns dos problemas de compreensão e interpretação indevida de textos, de distorção de sentidos. Da competência, ou seja, do conjunto de habilidades, estratégias e comportamentos implicado no ato de ler ou no como ler, destacam-se, neste trabalho, os processos de descodificação, reconhecimento da palavra escrita, de computação sintática e dos mecanismos textuais, e os processos de inferenciação e de monitoramento. Aqui, talvez você, leitora ou leitor, possa se perguntar: “Mas tudo isso não é automático? Como leitor ou leitora, não tenho consciência, tampouco controle de tais processos!”. É exatamente esta a intenção quando se ensina a ler: que esses processos, por implicarem procedimentos, sejam automatizados e se tornem implícitos, que eles não mais 168
sejam controlados, a fim de que se possa alocar os recursos atencionais e de processamento à produção de sentidos e ao alcance dos objetivos. Ocorre que só se automatiza aquilo que se conhece, aquilo que se sabe fazer, a tal ponto que não se tem mais consciência de como se está fazendo. A grande questão aqui, como enfatiza a Professora Leonor Scliar-Cabral, na entrevista que faz parte do capítulo primeiro deste livro (Heinig; Souza; Finger-Kratochvil, 2019), é que tais habilidades não se desenvolvem com base no espontaneísmo ou a partir da inserção e vivência em contextos de letramento. O ensino é necessário, a sistematização é requerida, já que se está falando do acesso a uma tecnologia que, em origem, serviu, não apenas mas também, para driblar a efemeridade da fala, que materializa a língua. Tal tecnologia foi inventada e precisa ser aprendida. O cérebro precisa aprender a lidar com ela, a processá-la (Dehaene, 2012; Scliar-Cabral, 2013). E, uma vez que isso acontece, esse conhecimento passa a retroalimentar o que sabemos sobre e como usamos a língua (Weirich, 2016; Souza; Weirich; Procailo, 2017). A escrita parece possibilitar que tomemos a língua entre aspas, tal como propõem Olson e Oatley (2013)5. Voltando ao conjunto de habilidades, estratégias e comportamentos que constituem a competência, é relevante compreender o que cada um dos processos mencionados significa, mas, antes disso, entender o porquê de se falar em habilidades, estratégias e comportamentos. Conforme sintetiza Seimetz-Rodrigues (2017), as estratégias se referem ao movimento deliberado, planejado, monitorado, autocontrolado e flexível do leitor com vistas à obtenção de objetivos e tomada de medidas de ajuste sempre que necessário. O comportamento é compreendido como o engajamento em determinada ação. Assim, ao proceder à leitura de um texto, por exemplo, ao receber a instrução para lê-lo, o leitor estaria adotando o comportamento de leitura, mas, ao decidir interromper a leitura para se autoquestionar ou para reler determinada porção textual, ele estaria sendo estratégico. As estratégias, segundo Solé (1998, p. 69, com base em Valls, 1990)6, “não detalham nem prescrevem totalmente o curso de uma ação”, sendo “suspeitas 5
No quarto capítulo deste volume, Maria da Graça Lisboa Castro Pinto apresenta brevemente a proposta de Olson e Oatley. Recomendamos a leitura do texto da autora.
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A fonte citada por Solé (1998) é: VALLS, E. Ensenyança i aprenentatge de continguts procedimentals. Una proposta referida a l’Àrea de la Història. Tese de doutorado. Universidade de Barcelona, 1990.
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inteligentes, embora arriscadas, sobre o caminho mais adequado que devemos seguir”. Para a autora, estratégias são distintas de procedimentos, embora tenham em comum com eles a regulação da atividade humana, uma vez que permitem “selecionar, avaliar, persistir ou abandonar determinadas ações para conseguir a meta” almejada. Os procedimentos, por sua vez, estão bastante próximos aos comportamentos, pois dizem respeito ao modo como as ações são executadas. As habilidades, por sua vez, envolvem o conjunto de conhecimentos estratégicos e procedimentos de que o leitor dispõe para executar a atividade, e nisso estão implicados os processos e subprocessos de leitura, o que inclui aqueles que se automatizam, como ocorre, por exemplo, com a descodificação durante o período de alfabetização. Quanto a ela, a descodificação, trata-se do processo mais específico e elementar da leitura, que se dedica à atribuição dos valores aos grafemas, a fim de convertê-los em fonemas para o reconhecimento da palavra escrita. Se há algo que caracteriza a leitura, está na descodificação, está no que diz respeito ao mecanismo que permite o estabelecimento das relações grafêmico-fonológicas no interior das palavras. Sem isso, o acesso ao sistema de escrita permanece lacrado, e o leitor permanece do lado de fora dele, contemplando-o como quem contempla um castelo em uma fotografia, sem poder tocá-lo ou adentrá-lo ou explorá-lo, posto não estar disponível, tampouco acessível. E, mesmo que possa se transportar para perto do castelo real, vai, no máximo, poder tocá-lo, de fora, e continuar contemplando-o, se não dispuser das chaves para abrir suas portas. Há que considerar, entretanto, que, ainda que a descodificação constitua mecanismo essencial ao processo de leitura, ela não é a leitura em si, tratando-se apenas de um passo, fundamental, para que se chegue à compreensão e à interpretação do escrito, a fim de atingir objetivos, que podem envolver a internalização de conteúdos, a ampliação ou o aprofundamento de conhecimentos, a informatividade, a consulta, a contemplação, o prazer, o deleite. No que diz respeito ao reconhecimento da palavra escrita, explora-se o papel que possui a representação fonológica, justificado pela natureza dos sistemas de escrita alfabéticos (Snowling; Hulme, 2013). De modo bastante amplo e explorando a perspectiva de modelos de dupla rota de processamento lexical (Coltheard, 2013), que buscam descrever como a palavra 170
impressa é processada silenciosamente por adultos considerados leitores, identificam-se dois caminhos para se chegar à representação mental das palavras escritas: a rota lexical ou direta e a rota fonológica ou indireta. A primeira delas opera a partir da representação ortográfica da palavra, buscando na memória a sequência ortográfica ou o item lexical, sem promover a análise dos seus subcomponentes. A seu turno, a rota fonológica mapeia os grafemas relacionando-os aos fonemas aos quais correspondem. Daí, promove o pareamento com o léxico mental, objetivando encontrar um significado. O papel atribuído às representações fonológicas em uma leitura experiente e competente é secundário, já que, além de ser mais dispendioso ao processamento, ele pode intervir negativamente no alcance do objetivo da tarefa de leitura, posto se interpor à fluência que a leitura requer. A rota fonológica é acionada, nestes casos, apenas quando o indivíduo não pode operar pela via de acesso lexical em razão de alguma demanda maior apresentada pela tarefa ou pela situação de leitura. Para que haja eficiência no processo de reconhecimento da palavra escrita, o ideal é que o leitor possa operar prioritariamente pela via direta, uma vez que ela possibilita o rápido e preciso acesso ao léxico mental de que a leitura fluente necessita. Há que se considerar, todavia, que para operar de modo eficiente pela rota lexical, deve ter havido aprendizagem das regras de descodificação grafofonológicas, o que garante o protagonismo desse processamento na aprendizagem inicial da leitura, ou seja, na alfabetização. A computação sintática e os mecanismos que regem a organização e o funcionamento dos textos é fundamental à leitura eficiente, já que o encadeamento, a continuidade, a progressão e a informatividade de um texto resultam de uma espécie de equilíbrio entre dois movimentos: o de retroação e o de progressão, tal como descreve Koch (2006, 2014). Assim, o conteúdo semântico do texto se constitui basicamente pelas informações dadas e pelas informações novas, cuja distribuição e graduação na elaboração do texto, ação promovida pelo autor, participam da produção de sentido não apenas na escrita mas também na leitura. O estabelecimento de relação entre o velho e o novo, ou seja, entre o dito e o que está por vir, ou o que vai permanecer nas entrelinhas ou para além delas, é requisito cognitivo para o sucesso em qualquer atividade de leitura. 171
A descodificação, o reconhecimento da palavra escrita, a computação sintática e o reconhecimento e o acesso aos modos como o texto está tecido em seus movimentos de idas e vindas entre o dado e novo constituem o que possibilita, em primeira análise, a compreensão literal do texto. Todavia, a leitura não se satisfaz com a compreensão literal, que, sendo necessária, não pode ser suficiente. Há, portanto, que se considerar e operar sobre os processos implicados na compreensão inferencial, que não é de natureza una, podendo requerer preenchimento de lacunas, integração de informações dadas, novas ou subentendidas, sumarização e elaboração, tanto nos níveis micro quanto nos macrotextuais, permitindo que se acesse e constitua a base do texto e, então, se complete com a criação de uma possível representação mental dele cuja constituição é iniciada, por vezes, antes mesmo de ser iniciada a leitura propriamente dita. A inferenciação está fortemente vinculada aos domínios do raciocínio dedutivo. Diferentemente do que ocorre nos processos de evocação de conhecimentos prévios, que podem preencher alguma lacuna do texto pela recuperação de conhecimentos pré-existentes nos sistemas de memória, a inferenciação, mesmo quando preenche lacunas, opera a partir das informações tramadas no próprio texto, indo para além dele (Kintsch, 1998). Nota-se que tanto as inferências quanto a recuperação de conhecimento podem ser ou automáticas e não deliberadas, ou controladas e possivelmente conscientes e estratégicas. Conforme esclarecem Baker e Brown (1984), o monitoramento da compreensão é um tipo de monitoramento cognitivo, que, por sua vez, faz parte da metacognição, não se tratando, portanto, de aspecto específico à leitura, embora esteja nela implicado quando se trata de leitura competente. Monitorar a compreensão envolve ação estratégica de estabelecimento de objetivos para a leitura e a checagem dos processos, procedimentos e comportamentos com vistas ao alcance efetivo e eficiente desses objetivos, de modo a prosseguir com a leitura ou tomar medidas corretivas ou remediativas quando necessário. Gagné e colaboradores (1993) explicitam os seguintes processos relativos ao monitoramento da compreensão: definição de objetivos, seleção de estratégias, checagem de objetivos e remediação. Considerando todo o exposto, quando se tem a atribuição, a intenção e o desejo de ensinar a ler, surgem questões como “O que ensinar?” e “Como 172
ensinar?”. Entre os fatores que precisam ser observados para que se possa responder a essas questões estão: qual é o público ao qual vão se voltar as propostas de ensino, o quanto e como este público lê, o que caracteriza a leitura e o leitor competentes, em que medida e em quais aspectos o público-alvo da instrução se distancia da leitura competente, o que se espera do leitor em termos de leitura considerando sua faixa etária, seu contexto, seu tempo de escolarização e os objetivos do ensino. Uma vez mapeados os fatores acima mencionados, têm-se condições de mergulho e proposição de um programa instrucional de ensino de leitura que possa ser eficiente e efetivo ao público-alvo e aos propósitos do ensino. É justamente no aspecto instrucional que propomos que o roteiro de leitura seja elaborado, explorado e empregado, já que ele serve como ferramenta para o desenvolvimento da competência leitora em níveis posteriores à alfabetização, quando os aprendizes já dominam o sistema de escrita e sabem operar a partir dele e com ele. Dos propósitos aos quais os roteiros podem servir, salientamos o ensinar a ler, a estudar, o ensinar conteúdos, o avaliar o quanto e como os estudantes leem. Trata-se de objetivos autônomos mas não independentes, pois, ao se ensinar a ler, está-se ensinando também a estudar e de alguma forma criando contexto para que conteúdos possam ser aprendidos, por exemplo, além, é claro, de se poder avaliar enquanto se ensina a ler. Há que se considerar, entretanto, que, ao propor programas, projetos ou atividades e ações de ensino, deve-se selecionar o foco, de acordo com os objetivos do ensino, que possivelmente não coincidem com os objetivos da leitura. Assim, é fundamental que estejam no alvo da proposta sempre o que se espera com aquilo que se ensina e o que se intenta com a leitura do texto selecionado especificamente. Afinal, quando se solicita que o estudante leia determinado texto, o objetivo da leitura não será reconhecer e compreender relações anafóricas, por exemplo, se este for o objetivo do ensino. Quanto ao que é o roteiro de leitura, nós o concebemos não como um questionário ou um teste, tampouco como um mapa ou esquema do texto. O roteiro é uma forma de leitura orientada e assistida, que tem como propósito incidir sobre as habilidades de leitura, o que envolve o trabalho sobre estratégias, procedimentos e comportamentos, bem como o seu pro173
duto, enquanto a atividade de leitura ainda está em curso. Seu princípio é a desautomatização da leitura, focalizando aspectos que são alvo do ensino, lembrando que se há de ter em conta os objetivos pedagógicos do ensino e os objetivos da leitura, a experiência leitora do público-alvo (que modula tanto a definição do que ensinar quanto a seleção do texto e a elaboração das questões), o conhecimento de mundo, temático e contextual do público e ainda seu conhecimento e vivência linguística. Quando os roteiros são propostos pela professora ou pelo professor, conforme se vai demonstrar nas próximas seções, é ela ou ele quem toma as rédeas no que diz respeito ao monitoramento do processo. A ideia é que, progressivamente, a responsabilidade de controlar e monitorar a leitura passe para as mãos dos estudantes, tornando-se um autocontrole e um automonitoramento, e que, junto disso, passe também para o estudante a responsabilidade de elaborar seus próprios roteiros a depender dos seus objetivos.
“Onde há pum, há vida”: texto-base para a elaboração dos roteiros Os estudantes aos quais os roteiros de leitura desenvolvidos e apresentados neste texto se destinam são reais e estão ou estiveram, no ano de 2017, sob a responsabilidade da segunda e da terceira autoras deste capítulo, em disciplinas de Língua Portuguesa. Embora os roteiros não tenham sido, até este momento, implementados em sala de aula7, o conhecimento de cada um dos estudantes das turmas permitiu que se ponderasse sobre as dificuldades e facilidades dos estudantes em leitura, a fim de propor material que seja efetivo para aquilo a que se destina: ensino de leitura e avaliação a fim de desenhar um programa instrucional em leitura. Trata-se de duas turmas de primeiro ano do ensino médio, uma delas (aquela para a qual foi desenvolvido o roteiro de ensino) de Instituto Federal de Santa Catarina, e outra (aquela para a qual foi elaborado o roteiro de avaliação) de escola particular também catarinense, ambas constituídas por estudantes que visam acessar a universidade. 7
Os roteiros foram apenas pilotados em turmas semelhantes, com o intuito de serem aprimorados para então serem discutidos neste capítulo. A implementação nas turmas às quais os roteiros se destinam será discutida em trabalho posterior das mesmas autoras.
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Figura 1: Texto “Onde há pum, há vida” Reprodução
Fonte: Texto extraído e adaptado de: <http://super.abril.com.br/ciencia/onde-ha-pum-ha-vida>. Acesso em 20 set. 2017. 175
A seleção do texto-base levou em conta a possibilidade de os estudantes-alvo poderem ter contato com ele em situações não escolares, independentemente de acompanhamento, sugestão ou instrução de professor, o que possibilita uma aproximação a situações reais nas quais a leitura é requerida. Tal texto, que se encontra disponível nesta seção a fim de que o leitor possa não apenas conhecê-lo mas também acompanhar e analisar os roteiros que seguem nas próximas seções, passou por criteriosa escolha na qual foram considerados os seguintes aspectos: qualidade do tecido textual, tema de possível interesse dos estudantes, organização textual relativamente familiar aos estudantes, emprego de linguagem verbal escrita que respeita a variedade padrão sem ser excessivamente formal, rebuscada e complexa. Quanto à versão textual apresentada, procedeu-se a adaptações do texto original no que diz respeito a: exclusão da quase totalidade das duas últimas partes do texto, que se localizavam entre as linhas 52 e 53, equivalentes a 38% do conjunto textual, com o objetivo de controlar a extensão e o tempo dedicado à leitura e às atividades, evitando levar os estudantes à exaustão, à queda de desempenho e ao abandono das tarefas; adaptação da introdução do parágrafo final, com o propósito de garantir o encadeamento textual após a exclusão de porções do texto; acréscimo da informação que consta entre parênteses da linha 52; exclusão de “e”, na linha 47, em expressão “e ou” empregada pelo autor do original; e substituição de ponto final por vírgula, no final da linha 57. As questões dos roteiros que se apresentam e analisam a seguir estão organizadas e apresentadas por vezes de modo linear em relação ao texto, agrupando-se por tipo de questão, apenas com o intuito de facilitar a explanação neste capítulo. Além de respeitarem a organização e o sequenciamento textual e o agrupamento tipológico, elas seguem, aqui, da análise micro à análise macrotextual, chegando, ao final, à representação mental, que se espera que seja tentativa e paulatinamente elaborada e produzida desde o início dos processos de compreensão, na microestrutura, durante a leitura do texto. Isso é o que se espera, normalmente, da leitura dos textos com vistas à compreensão. Neste capítulo, apenas algumas das questões dos roteiros foram selecionadas para fins de análise 176
e explicação. Os roteiros completos estão disponíveis nos apêndices 1 e 28. A numeração das questões no corpo do texto não coincide com a numeração das questões nos apêndices. Esse critério foi adotado, a fim de garantir maior fluência ao texto, utilizando numeração sequencial para as questões selecionadas. É relevante registrar que, em parte, os critérios de elaboração e análise das questões propostas se baseia nos princípios de leitura do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), consideradas sua robustez teórica e clareza de especificidades quanto ao que se avalia particularmente e globalmente em termos de leitura (Brasil, 2001, 2016; INEP, 2012). Baseamo-nos somente em parte no PISA não por discordâncias de fundamentos, mas por diferenças de propósitos e expectativas. Se há divergências, elas incidem, principalmente (pelo menos no que diz respeito ao que interessa neste capítulo) à terminologia empregada para a explicação dos aspectos das questões, fato sobre o qual não nos deteremos neste capítulo, mas que facilmente será percebido pelas leitoras e pelos leitores que conhecem o PISA. Recomenda-se que a aplicação dos roteiros em sala de aula, dependendo do propósito de ensino e do planejamento previamente delineados, não siga a linearidade textual (a menos que este seja o propósito), pois ela facilita e até antecipa a elaboração ou a localização das respostas. A razão para se ter escolhido um único texto para a elaboração dos dois roteiros é evidenciar a possibilidade de se elaborarem roteiros distintos a partir de um mesmo texto em função de haver mudança de propósito, de situação, de público etc. Em se tratando de uma perspectiva que visa ao ensino (mesmo o roteiro de avaliação almeja o ensino, uma vez que se trata de avaliação diagnóstica e com perspectiva formativa), é importante que a resolução das questões propostas seja discutida oralmente com o grupo de estudantes. Contudo, é fundamental, para que se garanta a leitura, que os/as estudantes busquem responder, talvez uma a uma, as questões individualmente, 8
Você observará, leitor, que os roteiros 1 e 2 são distintos. Isso se justifica não apenas porque se trata de roteiros com propósitos gerais diferentes: um visa ao ensino e o outro à avaliação, mas também porque o que se ensina em termos de leitura em 1 não é coincidente com o que se avalia, também em termos de leitura, em 2. Lembre-se de que os roteiros foram elaborados para dois grupos reais de estudantes.
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para então poderem avaliar suas estratégias, procedimentos e desempenho quando da discussão aberta com o grupo. Se as respostas serão discutidas uma a uma ou em blocos maiores, depende do desempenho que os/as estudantes e que todo o grupo forem demonstrando à proporção que o trabalho sobre o texto avança.
Roteiro de leitura com vistas ao ensino (de leitura) A proposta de roteiro apresentada à frente foi desenhada considerando-se o perfil leitor de turma de primeiro ano de ensino médio ainda em início de curso, ou seja, recém-ingressados. Para delinear o perfil leitor individual e coletivo da turma, atividades de leitura de textos diversos foram realizadas tanto coletivamente quanto individualmente, revelando que, naquele momento de sua vida escolar, os estudantes eram capazes, na média, de localizar informações explícitas, realizar preenchimento de lacuna, integrar passagens textuais próximas e realizar sumarização de informações encontradas em nível microestrutural. Entre as dificuldades mais flagrantes, figuraram a insuficiência em lidar com integração e sumarização em nível macroestrutural, principalmente porque os estudantes demonstraram não se valer de pistas textuais que sinalizam o que é importante no texto. Uma vez que a produção de sentidos encontrava nesses processos uma espécie de gargalo, o objetivo pedagógico no que concerne ao ensino da leitura nessa turma passou a ser ensinar a reconhecer essas pistas do texto que orientam o olhar do leitor. A expressão que encerra o período anterior é aqui utilizada para fazer menção, a um só tempo, aos mecanismos de tecitura textual que são responsáveis, nas palavras de Koch (2014, p. 100), “[...] não apenas, em grande parte, pela coesão textual, mas também por um número bastante significativo de indicações ou sinalizações destinadas a orientar a construção interacional do sentido [...]”. Trata-se de recursos linguísticos que viabilizam a progressão textual na medida em que realizam a progressão referencial, sequencial, temática e tópica (acerca desses conceitos, cf. Koch, 2006 e 2014). Assim, o roteiro que se discute a seguir foi desenvolvido com a finalidade de intervir em processos de compreensão e interpretação que requerem 178
integração e sumarização de informações em nível macroestrutural, para o qual o reconhecimento de pistas relativas à progressão textual é condição necessária. Com relação ao objetivo de leitura, este consistiu em construir uma representação mental acerca do cerne do texto. Dito isso, podemos passar à organização da exposição e discussão do roteiro. Em primeiro lugar, as questões foram agrupadas em dois grandes grupos, nível microestrutural e nível macroestrutural, de acordo com a demanda de processamento do texto implicada na resolução da questão. Desse modo, questões alocadas no grande grupo microestrutural apresentam demanda que pode ser atendida com a leitura de apenas um período ou, no máximo, um parágrafo. Já questões alocadas como relativas ao nível da macroestrutura, apresentam demanda cuja resolução requer a leitura de todo o texto. Em segundo lugar, uma vez que a meta fundamental do roteiro planejado é ensinar a ler reconhecendo pistas textuais que favorecem os processos de integração e sumarização, questões que compõem o roteiro de ensino de leitura são apresentadas consoante agrupamentos que contemplam elementos linguístico-textuais que realizam a progressão/continuidade do texto. Por último, antes de lançarmo-nos à discussão do roteiro, cabe observar que os agrupamentos propostos refletem uma escolha metodológica de exposição e discussão, visto que as noções de progressão referencial, sequencial, temática e tópica são interdependentes, retroalimentando-se na tecitura do texto, sendo, por vezes, impraticável tratá-las de modo individualizado. Quadro 1: Nível microestrutural Nível Microestrutural Progressão referencial: 1. A palavra assim, empregada na linha 23, é usada para resgatar uma expressão mencionada anteriormente no mesmo parágrafo. Identifique essa expressão que é resgatada. 2. A palavra assim, empregada na linha 23, também é usada para introduzir, na sequência do mesmo parágrafo, uma série de características sobre a expressão resgatada pelo assim. Identifique essa série de características.
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Progressão sequencial: 3. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta vermelho. 4. A expressão só que, na linha 16, poderia ser substituída, sem prejuízo para o significado, pela palavra: a. por isso b. então c. mas d. e Fonte: Dados da pesquisa.
Ainda que o objetivo do roteiro aqui apresentado seja permitir a instrução acerca de pistas textuais que possibilitem integrar e sumarizar informações em nível macrotextual, não se podem descartar perguntas que requeiram processamento microtextual. Isso porque o estudante não pode ser levado a refletir sobre as pistas textuais em um nível que apresenta uma demanda que, já se sabe, ele ainda não é capaz de atender. Desse modo, levar o leitor em formação a analisar mecanismos de progressão textual no nível do período ou entre um período e outro é uma estratégia de instrução que favorece a apreensão dos modos de organização do texto escrito, habilidade necessária a processos de compreensão e interpretação que implicam integração e sumarização. A aprendizagem acerca dos mecanismos de progressão e retomada do texto advinda da atividade de análise e reflexão em nível microtextual figura, então, como espécie de base fundacional em que o aprendiz se apoia para progredir no processamento em nível macroestrutural. O recurso da progressão referencial é o foco das questões 1 e 2. É preciso observar que ambas as questões recaem sobre o mesmo elemento linguístico do texto, a palavra assim (linha 23), que opera a progressão referencial na medida em que retoma o referente micróbios metanogênicos (linhas 21-22), com a finalidade de manutenção do foco sobre esse referente e também com o propósito de progredir na explicação e atualização desse referente (linhas 23-25), o que culmina em progressão temática. A primeira pergunta recai sobre o processo de retomada (anáfora) e a segunda pergunta, sobre o processo de atualização do referente (sinalizado pela catáfora operada pelo assim). O propósito de chamar a atenção dos estu180
dantes para esse operador de progressão textual tem como pano de fundo o interesse em trabalhar com a habilidade de integração de informações que podem ser localizadas explicitamente no texto e que estão adjacentes umas às outras. Informações estas cuja interdependência é sinalizada pela palavra assim, tanto quando opera a anáfora – para associar micróbios a metanogênicos – quanto quando opera a catáfora – para associar micróbios metanogênicos a suas características definidoras. O desmembramento em duas perguntas, uma visando à anáfora e outra visando à catáfora, é reflexo de escolha didático-pedagógica. Apenas uma pergunta, incidindo sobre os dois papéis do assim nessa porção textual, poderia ser feita. Entretanto, a pergunta resultaria mais complexa, posto que a identificação da anáfora é requisito para a compreensão da catáfora, neste caso. É preciso ainda observar que a intervenção do professor em relação a essas perguntas do roteiro depende das respostas trazidas (ou não) pelos estudantes. Por exemplo, no que concerne à primeira pergunta, é necessária a intervenção do professor como aquele que mostra os caminhos percorridos na compreensão adequada do texto, se os aprendizes apontarem como resposta micróbios metanogênicos marcianos. Frente a tal resposta, o professor deve mostrar por que é inadequado retomar toda a expressão como foco da anáfora. Essa demonstração requer análise do excerto que precede o assim, de modo a levar o leitor em formação a (I) identificar o tópico do parágrafo – a origem do metano encontrado em Marte –, manifestado por meio de duas perguntas, (II) a perceber que a resposta às perguntas-tópico do parágrafo é encabeçada pela expressão uma hipótese e (III) a concluir que a base para o levantamento dessa hipótese é o conhecimento de que micróbios assim (que dispensam oxigênio, se alimentam de CO2 e produzem metano, isto é, micróbios metanogênicos) existem na Terra, ou seja, é a existência de micróbios metanogênicos “terráqueos” que permite hipotetizar a existência de micróbios metanogênicos marcianos – o que é sinalizado no texto com o período É bem possível, que incide sobre a hipótese anunciada, seguido do período em que se revela a origem dessa hipótese: Na Terra, existem micróbios assim, que [...]. Logo, quando o assim é empregado para realizar a anáfora, o que se coloca em foco é o referente micróbios metanogênicos, a fim de sustentar a hipóte181
se de que eles podem existir em Marte – visto que, conforme explicitado no texto, as condições do planeta favorecem a existência de uma forma de vida como essa – e podem, portanto, ser a fonte do metano lá encontrado. Ainda sobre as questões 1 e 2, cabe observar o cuidado que a professora e o professor devem ter em fornecer, já no enunciado da pergunta, dicas que orientem o olhar dos/as estudantes. É por essa razão que, na primeira pergunta, empregou-se a expressão mencionada anteriormente no mesmo parágrafo, para indicar o lugar para o qual o leitor deve direcionar o olhar, a procura. Do mesmo modo, na segunda pergunta, recorre-se à [...] introduzir, na sequência do mesmo parágrafo, uma série de características [...], para indicar o ponto do texto em que a busca deve começar e para assinalar que o que se quer não é mais apenas uma expressão, mas um grupo/série de características, ensejando, dessa forma, a integração e a sumarização das informações apresentadas no texto acerca desse referente (micróbios metanogênicos). Observe-se que o objetivo é ensinar a lidar com pistas textuais que operam a progressão do texto – ensinar a ler –, mas, como consequência da construção de sentidos para o lido, fomenta-se a aprendizagem dos conteúdos explorados no texto. Por fim, no que diz respeito ao objetivo de leitura (compreender o centro do texto), as questões 1 e 2 requerem a leitura de excerto (linhas 21-27) que tem como foco introduzir a discussão sobre a fonte/origem do metano encontrado em Marte, priorizando a hipótese de se tratar de uma fonte orgânica, reforçada com a conclusão do parágrafo Em suma: há condições básicas para que exista vida em Marte, e o metano pode ser um sinal de que ela está lá. A questão número 3 do roteiro, da perspectiva do objetivo da leitura, volta a direcionar o olhar do estudante para o papel do metano como possível evidência de vida em Marte. Como esse é o centro do texto, ele é reiterado ao longo da matéria produzida e cabe ao professor ou à professora, durante sua intervenção (tanto no desenho do roteiro quanto na discussão das respostas a esse roteiro), mostrar essa reiteração e pontuar que ela não é gratuita; antes cumpre a função de assinalar a ideia principal do texto. Desse modo, o roteiro e a intervenção a partir dele contemplam o que foi previsto como objetivo de leitura. Da perspectiva do objetivo colocado ao ensino da leitura, essa questão possibilita explorar a progressão sequen182
cial operada pelo conectivo daí (linha 10) e a relação de sentido que ele estabelece entre dois períodos do texto (relação de causa e consequência), implicando processo de integração de informação para responder àquilo que a pergunta solicita. A reflexão sobre a relação de sentido manifestada por conectivo também é o alvo da questão 4 do roteiro. A diferença é que, na 4, o foco da questão recai apenas sobre a compreensão desse elemento que permite a progressão sequencial do texto; não se requer do estudante a construção explícita de sentido para os períodos conectados pelo elemento só que (linha 16). A discussão das respostas a esta pergunta deve assegurar a compreensão de que esse conectivo é empregado no texto para evidenciar quebra de expectativa e para demarcar a oposição entre o momento da pesquisa em que a busca por metano na superfície do planeta vermelho resulta em índices insignificantes (linhas 15-16) e o momento em que resulta em índices significativos (linhas 16-17). Esta pergunta, de maneira diversa das anteriores, é de múltipla escolha. Decisão tomada para evitar a complexidade de uma pergunta aberta, que poderia inviabilizar o objetivo de reflexão sobre como esse conectivo integra as informações no interior do parágrafo, posto que já se conhecia a fragilidade de conhecimento dos/as estudantes em relação à compreensão de sequenciadores textuais. O formato de múltipla escolha responde, ainda, ao desejo de se trabalhar com os/as estudantes os sentidos estabelecidos por conectivos altamente frequentes. Daí que o trabalho do professor ou instrutor de leitura na correção de uma questão como esta não é apenas indicar a resposta correta e demonstrar por quê, mas também levar os aprendizes a refletirem sobre por que as demais alternativas são inadequadas, o que demandaria o contraste com exemplos em que o uso dessas alternativas fosse adequado. Por fim, esta pergunta permite refletir sobre o uso de só que tomando como parâmetro para comparação uma expressão que, atualmente, é muito empregada na oralidade ou em textos escritos muito próximos à oralidade (postagens de Facebook, Instagram, Twitter, conversas de WhatsApp), principalmente por adolescentes e jovens: só que não (ou sqn). É possível, inclusive, que os próprios estudantes tragam a expressão à tona durante a discussão dessa pergunta, cabendo o esclarecimento acerca de no que se assemelham e no que se distinguem esses elementos linguísticos. 183
Quanto a questões que requerem processamento em nível macrotextual, trabalhou-se também com progressão referencial e acrescentou-se a progressão temática e a progressão tópica9. Quadro 2: Nível macroestrutural Nível Macroestrutural Progressão referencial: 5. As expressões peido extraterrestre (linha 6) e gás marciano (linha 50) podem ser consideradas sinônimas no contexto do artigo Onde há pum, há vida, porque: a. o autor as utiliza para falar de assuntos diferentes, ou seja, que o metano é resultado de pum de seres vivos na Terra, mas não em Marte. b. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o gás metano encontrado em Marte pode revelar a existência de vida extraterrestre. c. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o metano é um tipo de gás leve, associado à vida, muito comum na Terra e em Marte. d. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que um pum marciano contém o mesmo gás utilizado em fogões, conhecido como metano. Progressão temática: 6. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano em Marte. Progressão tópica: 7. Liste as características do metano citadas no texto. Fonte: Dados da pesquisa.
Na questão 5, o nível de processamento requerido é macrotextual em virtude do que ela solicita (comparar referenciações em pontos distantes do texto para concluir se elas dizem respeito ao mesmo tema/tópico), mas a progressão referencial se dá em nível microtextual. Isso significa que fenômenos que ocorrem em nível micro podem ser explorados de uma perspec9
Cabe observar que a progressão temática é um mecanismo de tecitura do texto que se observa tanto em nível micro quanto em macrotextual. O mesmo se dá com o recurso de sequenciamento do texto. Apenas a progressão referencial parece ser um mecanismo mais local, cuja manifestação é mais facilmente observada em nível microtextual e que leva à progressão temática e à tópica. Logo, a progressão tópica é um mecanismo mais global, cuja realização depende de progressão referencial, temática e sequencial, sendo, por isso, observada em nível macrotextual. A opção por enfatizar os mecanismos de referenciação e sequenciamento em perguntas que requerem processamento micro e progressão temática e tópica em perguntas que demandam processamento macro é, de um lado, escolha metodológica e, de outro, reflexo da maneira como os textos se organizam.
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tiva macro. A resolução dessa pergunta requer localização de informações apresentadas no primeiro e nono parágrafos, comparação das informações encontradas e interpretação, a fim de concluir se as expressões são, de fato, empregadas para fazer menção ao mesmo referente. A habilidade de sumarização é também explorada, visto que as alternativas de resposta que compõem a questão, que é de múltipla escolha, são exemplos de sumarização de informações encapsuladas pelas expressões nominais descritivas peido extraterrestre e gás marciano. Dessa forma, o estudante é confrontado com o desafio de lidar com processo de sumarização, mas recebe, na formulação da própria questão, apoio para operar com tal demanda. Além de permitir explorar o uso de duas expressões nominais descritivas distintas para retomada, em pontos distantes do texto, do referente metano encontrado em Marte que pode revelar a existência de vida extraterrestre, essa pergunta possibilita discutir como a primeira forma de referenciação/retomada (peido extraterrestre) revela a orientação argumentativa do texto: ênfase na expectativa de que o metano marciano tenha se originado de um ser vivo. O foco da sexta pergunta do roteiro de leitura é levar o aprendiz, agora sem apoio fornecido na formulação da pergunta, a se engajar em processo de sumarização de informações. Chegar à resposta dessa questão exige do estudante não só identificar as hipóteses aventadas no texto para explicar a origem do metano no planeta vermelho (discutidas nos parágrafos 4, 5 e 6), mas também selecionar as informações principais em detrimento das secundárias e apresentá-las retextualizando o original. Para identificar as possíveis explicações para a existência de metano em Marte, o leitor deve seguir as pistas deixadas pelo autor do texto, que sinalizam a progressão do tema fonte do metano por meio de elementos de sequenciação chamados por Koch (2014, p. 133) de articuladores que visam à organização textual. Esses articuladores – tais como uma hipótese (linha 21), mas também pode ser outra coisa (linha 28) e outra hipótese (linha 33), sinalizam a linha de exposição ou de argumentação acerca de um tema desenvolvido no texto, demonstrando as informações relevantes para a construção de sentidos relativos àquele tema. A intervenção do professor ou da professora durante a correção dessa questão deve contemplar a demonstração de como esses articuladores organizam o texto e, ao organizá-lo, indicam o que é importan185
te acerca do tema fonte do metano. Novamente no que concerne ao objetivo de leitura para o qual o roteiro foi pensado, tem-se uma pergunta que toca na linha expositiva e argumentativa central do texto. A sétima pergunta do roteiro, por sua vez, requer a integração e sumarização de informações apresentadas ao longo de todo o texto sobre o tópico metano, muitas das quais foram focalizadas (pergunta 3) ou apareceram como informações secundárias (pergunta 6) em questões anteriores do roteiro, recorrência que não é gratuita. Para poder responder adequadamente a este item, o estudante deve atentar para elementos que operam progressão referencial (introdução e retomada de referente, seja por meio de uso de expressões nominais, seja por meio de dêiticos), temática (atualização do tema à medida que informações novas são apresentadas) e, consequentemente, tópica (uma vez que o tópico é desenvolvido pela apresentação de temas distintos a ele associados) no decorrer de toda a matéria. Sob essa perspectiva, cabe ao professor ou à professora demonstrar que o referente metano aparece referenciado de maneiras diversas ao longo do texto, a exemplo de gás associado a seres vivos (na linha de apoio da matéria), gás corriqueiro (linha 1-2), pum (linha 7) e que, conforme o texto avança, várias características desse gás vão sendo apresentadas: ele é comum na Terra (linha 1-2), inodoro (linha 7), sua principal fonte de origem é orgânica (linha 8), também pode se originar de processo químico (linha 28-30), a fórmula do metano (linha 43), os diferentes tipos de carbono na fórmula química do metano (linha 45-48), metano associado a seres vivos costuma apresentar carbono-12 (linhas 47 e 48). As questões aqui apresentadas são apenas um exemplo, das tantas alternativas possíveis, de como trabalhar com processos de integração e sumarização em nível micro e macrotextual, enfatizando elementos linguísticos que sinalizam para o leitor os sentidos que o autor pretendeu com seu texto. Trabalhar com o dito e com o como é dito no texto é uma etapa fundamental à formação de leitores competentes, para que ganhem condições de compreensão da base textual do que leem e, assim, possam, paralelamente, progredir na interpretação do lido, lidando com os implícitos do texto e com a apreciação crítica não só do texto, mas também de sua representação mental acerca dele. 186
Roteiro de leitura com vistas à avaliação (de leitura) A proposta de roteiro de leitura que será apresentada foi, assim como o roteiro explicado anteriormente, planejada para estudantes ingressantes no ensino médio. Difere-se do modelo precedente em relação ao seu objetivo final, tendo como intuito avaliar, em uma perspectiva formativa, a competência leitora desses sujeitos no que diz respeito ao esperado para esse nível de escolarização. Espera-se que estudantes que cumpriram o Ensino Fundamental tenham desenvolvido habilidades de leitura relativas a operações sobre a linguagem, sobre a base textual (micro e macroestrutura) e sobre a elaboração de um modelo mental do texto. Em vista disso, o roteiro foi elaborado em três grandes grupos de questões: 1) Nível linguístico-textual e microestrutural; 2) Nível macroestrutural; 3) Modelo situacional. Esses grandes blocos, conforme explicado anteriormente, dizem respeito à demanda de processamento do texto implicada na resolução da questão. A organização citada permite ao professor/avaliador diagnosticar problemas nesses três níveis de processamento e, a partir disso, traçar um perfil do grupo de trabalho. Essa avaliação permitirá uma intervenção baseada nos conhecimentos implícitos e explícitos reais dos alunos, evitando-se que as habilidades dos estudantes sejam sub ou superestimadas, o que poderia gerar frustração tanto do projeto ou programa de ensino quanto dos estudantes pela facilidade ou dificuldade extrema ao se depararem com textos e atividades sobre ele. Somente por meio de um diagnóstico preciso é possível elaborar um programa de leitura eficaz, levando-se em consideração as especificidades e conhecimentos de cada estudante e do grupo e, sendo possível, promover e observar avanços. Acredita-se, portanto, que as atividades de leitura somente podem ser sistematizadas e devidamente orientadas por meio da prévia avaliação das habilidades e processos executados pelos/as estudantes.
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Quadro 3: Nível linguístico-textual e nível microestrutural Nível linguístico-textual e nível microestrutural Localização: 1. Identifique a descoberta que está dando o que falar. Localização e vocabulário: 2. Qual o significado de orgânica no texto (linha 8)? Integração e interpretação: 3. Em que planeta o metano é considerado um gás corriqueiro? 4. Por que a presença de metano em Marte pode significar a existência de vida naquele planeta? 5. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta vermelho. Preenchimento de lacuna: 6. Identifique a palavra que preencheria adequadamente a lacuna a seguir: “O robô encontrou metano numa concentração bem baixa: 7,2 partes por bilhão. Ou seja, a cada bilhão de moléculas da atmosfera de Marte, que é quase toda formada por CO2, apenas sete _________________ são metano.” Resolução de anáfora: 7. A que se refere o pronome ele no 7º parágrafo do texto (linha 36)? Fonte: Dados da pesquisa.
A pergunta número 1 exemplifica a habilidade de localizar informações em um texto. Neste caso, o estudante deve ser capaz de buscar a informação solicitada, na superfície textual, isto é, na literalidade do texto. Espera-se que o/a estudante localize no texto a informação uma quantidade significativa de metano no planeta vermelho para responder adequadamente a questão, podendo produzir paráfrase no momento do registro. O verbo que introduz a questão ilustra a habilidade requerida. Identificar se refere à possibilidade de reconhecimento, por meio de comparação entre a informação proporcionada pela pergunta e o texto. A questão número 2 tem como foco o léxico do ponto de vista contextual. É possível que o sujeito avaliado conheça o significado da palavra orgânico em outros contextos, tais como: alimentos orgânicos, feira orgânica etc., associando, assim, a palavra àquilo que é natural ou livre de agrotóxicos. No entanto, na linha 8 do texto (indicada na própria questão), fica 188
evidente que orgânico se refere àquilo que pode ser decomposto por bactérias. Para que chegue a essa resposta, é preciso que o/a estudante localize a informação, levando em consideração o conhecimento da pontuação, já que o uso dos parênteses depois da expressão em foco evidencia a adição de uma informação explicativa. As questões que avaliam a integração e a interpretação de informação em nível microestrutural permitem avaliar se o/a estudante é capaz de unir, comparar e contrastar informações próximas – mesmo período ou parágrafo – produzindo uma interpretação coerente. A questão número 3, por exemplo, requer que, depois de identificar o trecho pertinente (Todo dia, você produz o equivalente a 50 ml de metano – simplesmente soltando pum. Mas esse gás tão corriqueiro, que também alimenta o fogão da sua cozinha, está por trás de um dos maiores mistérios do Universo: a existência de vida fora da Terra.), logo na introdução do texto, o estudante associe as informações você e fogão da sua cozinha com Terra, descartando a possibilidade de associar o adjetivo corriqueiro ao Planeta Marte, introduzido posteriormente no texto, que produziria uma interpretação incoerente. Há que se considerar que, na resposta a essa questão, o nível de conhecimento enciclopédico do estudante pode contribuir, permitindo igualmente uma resposta adequada. Ao mesmo tempo, questões de integração e interpretação podem requerer a integração de informações requeridas pela questão com informações do texto, que não sejam identificadas literalmente, desenvolvendo raciocínios lógicos, de causalidade, explicação, temporalidade, semelhança, condição, etc., como no caso da pergunta de número 4, que requer o estabelecimento de uma relação entre o que acontece na Terra e o que pode estar acontecendo em Marte. Ou seja, na Terra a maior parte do metano tem origem na decomposição de material orgânico (vivo), o que leva a crer que em Marte esse gás também deve ter origem orgânica. Dessa forma, a questão atua em nível inferencial ou interpretativo. A questão número 5, por sua vez, pode gerar indícios do entendimento de uma relação estabelecida pelo conector daí (linha 10), que tem um papel fundamental na progressão temática/continuidade tópica. A questão número 6, além de requerer a localização e recuperação de informação, solicita que o/a estudante preencha uma lacuna textual, onde 189
há um elemento elíptico, a palavra moléculas (linha 13). Esse tipo de questão atua em um nível inferencial básico. A questão número 7, igualmente, exige a integração de informações, requerendo a resolução de anáfora, que também demanda raciocínio inferencial. O estudante deve buscar o referente do pronome (linha 36), por meio da proximidade e semelhanças estruturais (gênero, número), gerando uma possibilidade coerente dentro da microestrutura. Quadro 4: Nível macroestrutural Nível macroestrutural Localização, integração e progressão temática: 8. Liste as características do metano citadas no texto. Integração, interpretação e sumarização: 9. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano em Marte. 10. Do que tratam os três primeiros parágrafos do texto? Fonte: Dados da pesquisa.
As questões de nível macroestrutural dizem respeito ao entendimento global do texto, sendo elaboradas, portanto, a partir de porções inteiras relacionadas semanticamente. Para respondê-las, é necessário que o/a estudante reconheça os principais tópicos do texto e suas inter-relações, o que fica evidente por meio das sinalizações do texto. A questão número 8 avalia se o/a estudante é capaz de arrolar várias características que aparecem no texto em relação a um mesmo aspecto de o gás metano. Para isso, é necessário que o sujeito leia o texto por completo e encontre as seguintes informações: gás corriqueiro, inodoro, gerado normalmente por decomposição de matéria orgânica, pode ser gerado por serpentinização – processo químico –, sua fórmula é CH4. Desse modo, essa questão pode evidenciar se o aluno é capaz de acompanhar a progressão temática/ tópica em relação ao referente metano e selecionar as informações pertinentes à sua caracterização. A questão 9, por sua vez, exige síntese, ou seja, que o/a estudante considere as informações principais em relação às explicações para a existência 190
de metano em Marte. Essas explicações devem ser obtidas levando-se em consideração a integração e a interpretação do que consta dos parágrafos 4, 5 e 6, por meio da omissão de informações secundárias e seleção e generalização das informações relevantes, levando à resposta: micróbios metanogênicos marcianos vivos, serpentinização acontecendo na atualidade, metano antigo por serpentinização ou por forma de vida. A seu turno, a questão 10, de modo semelhante ao solicitado na questão 9, também requer integração e interpretação, a fim de que seja possível esclarecer o assunto dos três primeiros parágrafos do texto. A resposta a essa questão também implica sumarização, já que se pergunta do que trata o texto, sem que se tenha solicitado detalhes ou explicações. Além do exposto, a fim de chegar às respostas das questões 9 e 10, o leitor precisa ter compreendido o propósito do texto de modo mais amplo, de sorte a conseguir selecionar apenas o que é necessário para responder a questão. Quadro 5: Modelo situacional Modelo situacional Compreensão, interpretação, análise e avaliação: 11. Explique o título do texto e diga se ele é adequado ou não, justificando sua resposta. 12. Considere o seguinte trecho: “No finzinho do ano passado, um robô enviado pela Nasa descobriu uma quantidade significativa de metano na superfície do planeta vermelho – com o perdão da expressão, é o mais perto que uma de nossas sondas robóticas já chegou de cheirar um peido extraterrestre”. Tendo lido todo o texto, você considera a afirmação em destaque adequada ou inadequada? Justifique sua resposta com base no texto. Compreensão e elaboração criativa fundamentada (a) ou sumarização do texto (b): 13. A professora ou o professor pode optar por uma destas questões: a. Agora, imagine que você é o autor do texto e precisa revelar, de forma breve, que há possibilidade de existir vida em Marte. Produza seu texto com base nas informações contidas no texto “Onde há pum, há vida”. b. Produza um resumo do texto “Onde há pum, há vida”. Fonte: Dados da pesquisa.
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As questões que dizem respeito ao modelo situacional requerem que o/a estudante forme uma representação mental do texto, integrando o seu conhecimento prévio às informações oferecidas pelo próprio texto. Essas questões vão além da base textual, no sentido de que envolvem a retextualização. Em atividades cotidianas de leitura, tal processo normalmente é requerido do leitor apenas no plano mental, ou seja, o leitor representa o texto mentalmente. Todavia, a fim de poder acessar tal representação e poder incidir sobre ela em uma perspectiva de ensino e orientação, é preciso ter acesso ao desempenho. Daí a solicitação para que o/a estudante produza um texto, que é de natureza complexa. Esse tipo de questão implica que a professora ou o professor se assegure de que o grupo de estudantes tem condições de, além de compreender o texto, produzir seu próprio texto. Isso pode significar a necessidade de trabalhos paralelos e interdependentes de ensino, ao passo em que se ensina a ler. Há que se considerar, também, que, se a questão proposta tem por objetivo avaliar leitura, é na leitura que a avaliação deve focar. Isso pode parecer óbvio; todavia, não é incomum que, anunciando leitura, nas atividades escolares se focalize, equivocadamente, a escrita. Não se está com isso querendo dizer que leitura e escrita não estejam implicadas uma na outra. O que se pretende é esclarecer que se trata de processos distintos, que requerem ações de ensino também distintas, ainda que complementares. A questão número 11 solicita a avaliação do título em relação ao todo textual. Nesse sentido, é necessário que o/a estudante conheça o texto de tal maneira, que seja capaz de observar que, ainda que o autor afirme no título que “Onde há pum, há vida”, o texto evidencia claramente que a existência do metano (pum) não é necessariamente indicativa da existência de vida. O/A estudante pode, portanto, argumentar nesse sentido, apontando uma contradição entre título e texto. Por outro lado, pode também estabelecer um contra-argumento, já que o objetivo do texto é chamar a atenção para a hipótese de que, havendo metano (pum) em Marte, há vida naquele Planeta. Para contra-argumentar é necessário que o/a estudante perceba a contradição aparente, elemento indicativo da compreensão e interpretação dos sentidos do texto. A questão 12, igualmente, requer que o/a estudante avalie e dê o seu parecer sobre um fragmento do texto, levando em consideração que as hi192
póteses apresentadas no texto mostram claramente que o metano não deve vir de um peido extraterrestre, mas sim de outros processos, que podem ser orgânicos ou inorgânicos. Nesse sentido, a analogia seria mais apropriada em um contexto em que já se soubesse que o metano marciano provém de fonte orgânica. A questão número 13 foi elaborada de duas formas diferentes e pode ser aplicada de uma ou outra maneira, dependendo do conhecimento que os/a estudantes possuem acerca da escrita ou produção de textos. Há que se considerar que, em termos da produção requerida, as questões são distintas. Entretanto, elas se assemelham no que diz respeito ao que se pretende avaliar por meio deste roteiro. Nessa questão, tanto na alternativa a quanto na b, o sujeito avaliado deve, tendo compreendido todo o texto, organizar suas informações, a fim de selecionar aquilo que é principal, suprimir o que é acessório e generalizar, de modo a obter bom desempenho na tarefa. A alternativa a, além disso e por sua vez, requer elaboração criativa, o que pode, a depender do público-alvo, representar acréscimo de dificuldade à tarefa. Não se pode negligenciar que, havendo a opção pela alternativa b, a dificuldade que se adiciona à tarefa é justamente a que requer capacidade de síntese. Com as questões selecionadas para análise e explicação, esperamos ter oferecido a você, leitora e leitor, exemplos de como ensinar e avaliar aspectos específicos de leitura, considerando um público-leitor real, constituído por estudantes do primeiro ano do Ensino Médio. Os roteiros completos estão disponíveis nos apêndices 1 e 2 deste texto.
Considerações finais A potência dos roteiros de leitura ultrapassa o previsto e explorado neste capítulo. O que se pretendeu foi, além de delinear e fundamentar o trabalho docente para ensino de leitura em fases posteriores à alfabetização, a partir da preparação de roteiros, demonstrar possibilidades e caminhos para a elaboração desta promissora ferramenta, por meio de dois exemplos, que foram cuidadosamente explicitados e analisados em algumas de suas partes. 193
Quanto às recomendações que esperamos poderem contribuir para o planejamento dos professores e das professoras que ensinam a ler, salientamos a centralidade de sempre se ter clareza acerca dos propósitos da atividade, considerando os objetivos pedagógicos e os objetivos de leitura, do contexto e da situação de implementação e dos indivíduos ou turmas às quais o material se destina. Quem são os sujeitos a quem o roteiro específico se dirige? O quanto e como leem? Quais são seus interesses? Em que medida eles têm experiência com leitura e com qual leitura? O que se objetiva ensinar e por quê? Como condição ótima para o ensino e para a aprendizagem, busca-se trabalhar em um espaço que se situa entre o velho e conhecido e o novo e desconhecido, que precisa ser explorado, apreendido e aprendido. Ademais, é sempre relevante se assegurar de que o texto-base do roteiro seja integralmente lido, antes de se iniciar a elaboração das respostas, e que seja retomado sempre que necessário, a fim de se garantir que o texto escrito e o processo de leitura estejam no foco da execução da atividade. Se necessário, pode o professor proceder à leitura em voz alta e, então, assistir as leituras silenciosas. Interessa considerar, também, que, pelo fato de a leitura ser um processo silencioso, que ocorre de modo complexo e ativo na mente do leitor, importa ter acesso às produções de sentido, em todos os níveis e aspectos trabalhados, de cada indivíduo-leitor. Daí a recomendação de que se caminhe na direção da instrução para a leitura silenciosa e para a elaboração de respostas escritas individuais, anteriores à discussão em grupos, e que tais respostas possam então ser revisitadas e revistas pelos seus leitores-autores. Se nas instruções (seção anterior à apresentação dos roteiros) se recomendou iniciar pela discussão oral foi tão somente porque é preciso se assegurar de que há condições de leitura e de quais condições são essas, de modo a não criar uma falsa ilusão de que os estudantes estão silenciosamente lendo. Dessa forma e com tais cuidados, criam-se condições para a aprendizagem da leitura e para o seu efetivo desenvolvimento. Por fim, tomamos as palavras que Gagné, Yekovich e Yokovich (1993, p. 268, tradução nossa) empregam para introduzir seu texto, pois elas sintetizam o papel que a leitura pode desempenhar para o sujeito e para a sociedade:
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A leitura é uma habilidade básica tremendamente valiosa, que abre o mundo dos animais da selva para uma criança urbana de seis anos de idade e o mundo da tecnologia sofisticada para uma criança de dez anos de uma vila de Gana. Ela permite que os adultos mudem suas carreiras profissionais através de estudos independentes. Ela oferece às pessoas de todas as idades uma maneira barata de descobrir a variedade de ideias e paisagens sociais e culturais que formam nosso mundo.10
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Apêndice 1 – Roteiro para ensino de leitura 1. Qual o significado da palavra corriqueiro no texto? 2. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta vermelho. 3. Ao falar sobre a descoberta e a quantidade de metano em Marte (linhas 14 a 23), o autor emprega as expressões bem baixa, bem pouco, apenas, mísera e nada. Selecione, de acordo com o texto, a alternativa que explica a relação entre as expressões: a. Bem baixa, bem pouco e apenas demonstram que há quantidade significativa de metano em Marte, enquanto mísera e nada demonstram que não há quantidade significativa do gás naquele planeta. b. Mísera e nada demonstram que há quantidade significativa de metano em Marte, enquanto bem baixa, bem pouco e apenas demonstram que não há quantidade significativa do gás naquele planeta. c. Bem baixa, bem pouco, apenas e mísera demonstram que há quantidade significativa de metano em Marte, enquanto nada demonstra que não há quantidade significativa do gás naquele planeta. d. Bem baixa e apenas demonstram que há quantidade significativa de metano em Marte, enquanto bem pouco, mísera e nada demonstram que não há quantidade significativa do gás naquele planeta. 4. Com que finalidade a palavra sim é empregada na linha 14 do texto? 197
5. A expressão só que, na linha 16, poderia ser substituída, sem prejuízo para o significado, pela palavra: a. por isso b. então c. mas d. e 6. Identifique qual ideia a palavra isso, empregada na linha 18, retoma no interior do parágrafo (linhas 12-20). 7. A palavra assim, empregada na linha 23, é usada para resgatar uma expressão mencionada anteriormente no mesmo parágrafo. Identifique essa expressão que é resgatada. 8. A palavra assim, empregada na linha 23, também é usada para introduzir, na sequência do mesmo parágrafo, uma série de características sobre a expressão resgatada pelo assim. Identifique essa série de características. 9. Liste as características do metano citadas no texto. 10. As expressões peido extraterrestre (linha 6) e gás marciano (linha 50) podem ser consideradas sinônimas no contexto do artigo Onde há pum, há vida, porque: a. o autor as utiliza para falar de assuntos diferentes, ou seja, que o metano é resultado de pum de seres vivos na Terra, mas não em Marte. b. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o gás metano encontrado em Marte pode revelar a existência de vida extraterrestre. c. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o metano é um tipo de gás leve, associado à vida, muito comum na Terra e em Marte. d. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que um pum marciano contém o mesmo gás utilizado em fogões, conhecido como metano. 11. Com que objetivo, ao falar da quantidade de metano descoberto em Marte, o autor emprega as expressões bem baixa, bem pouco e apenas, de um lado, e mísera e nada, de outro lado? 12. Quais são as expressões empregadas pelo autor, no primeiro parágrafo, para identificar o lugar onde o metano foi encontrado? 13. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano em Marte. 14. Qual a importância de os cientistas conseguirem identificar o tipo de carbono presente no metano encontrado em Marte? 15. Há relação entre o título “Onde há pum, há vida” e o texto? Por quê?
Apêndice 2 – Roteiro para avaliação de leitura Nível linguístico-textual e microestrutural: 1. Como produzimos metano no nosso dia a dia? 2. Qual o significado da palavra corriqueiro no texto? 3. Em que planeta o metano é considerado um gás corriqueiro? 4. Identifique a descoberta que está dando o que falar. 198
5. Qual é o nome do planeta vermelho? Você já sabia disso ou aprendeu lendo o texto? 6. Por que a presença de metano em Marte pode significar a existência de vida naquele planeta? 7. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta vermelho. 8. Identifique, no segundo parágrafo, o exemplo de matéria orgânica que se transforma em metano. 9. Qual o significado de orgânica no texto (linha 8)? 10. O que faz crer que pode existir uma fonte ativa de produção de metano em marte? 11. Por que o texto faz menção a dias marcianos e não apenas a dias (linha 17)? 12. Localize no texto o parágrafo que contém a seguinte frase “Isso quer dizer que deve haver uma fonte ativa na superfície, gerando ou liberando o gás” e identifique que acontecimento a palavra isso retoma. 13. Identifique a palavra que preencheria adequadamente a lacuna a seguir: “O robô encontrou metano numa concentração bem baixa: 7,2 partes por bilhão. Ou seja, a cada bilhão de moléculas da atmosfera de Marte, que é quase toda formada por CO2, apenas sete _________________ são metano.” 14. Micróbios metanogênicos são organismos que produzem grandes quantidades de gás metano. Descreva suas características, conforme citadas no texto. 15. O micróbio metanogênico marciano é uma forma real ou suposta de vida extraterrestre? Justifique sua resposta. 16. Qual o significado da expressão em suma, encontrada no 4º parágrafo do texto, linha 26? Como você chegou a essa resposta? 17. O que é o fenômeno chamado de serpentinização? 18. Como foi descoberto que há olivina em Marte? 19. Qual o significado da palavra plausível dentro do texto (linha 33)? Você já conhecia o significado ou aprendeu lendo o texto? 20. Caso o metano fosse de um passado remoto, como ele teria sido liberado na atualidade? 21. De acordo com o texto, é possível afirmar que o metano encontrado em Marte foi gerado lá? Justifique sua resposta. 22. A que se refere o pronome ele no 7º parágrafo do texto (linha 36)? 23. Qual a importância de o monitoramento pelo jipe-robô não haver parado? 24. A que se refere o termo isso no 8º parágrafo (linha 42)? 25. O que significa dizer que a fórmula do metano é CH4? 26. Os átomos de carbono são sempre do mesmo tipo? Justifique sua resposta. 27. Identifique a configuração do tipo de carbono mais comum. 28. Por que o astrobiólogo Dirk Schulze-Makuch afirma: “a vida é, essencialmente, preguiçosa. Obtém o mesmo efeito com menos trabalho.” (linhas 48 e 49)? 29. Com base no texto, explique o que significa dizer que nosso lugar no Universo depende da descoberta de vida em Marte. 30. Identifique o referente do termo deles na linha 58. 199
31. Localize no texto o parágrafo que contém a seguinte frase “Da resolução dessa charada depende o nosso lugar no Universo” e explique a “charada” a que o texto se refere. Nível macroestrutural: 32. Por que há condições para que exista vida em Marte? 33. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano em Marte. 34. Liste as características do metano citadas no texto. 35. Qual dos processos de formação de metano o autor considera mais empolgante em relação a Marte? Justifique sua resposta. 36. Do que tratam os três primeiros parágrafos do texto? 37. Qual o objetivo da seção intitulada Quem soltou o gás? 38. Com base em todas as informações contidas no texto, explique o envolvimento do robô Curiosity nas pesquisas sobre o metano em Marte. 39. No sétimo parágrafo do texto (linhas 37-38), há a informação de que a quantidade de metano detectada em Marte é grande demais para se pensar no choque de um asteroide. Com base nessa informação, pode-se afirmar, conforme o texto, que há muito metano em Marte? Justifique sua resposta. Modelo situacional: 40. Explique o título do texto e diga se ele é adequado ou não, justificando sua resposta. 41. Considere o seguinte trecho: “No finzinho do ano passado, um robô enviado pela Nasa descobriu uma quantidade significativa de metano na superfície do planeta vermelho - com o perdão da expressão, é o mais perto que uma de nossas sondas robóticas já chegou de cheirar um peido extraterrestre”. Tendo lido todo o texto, você considera a afirmação em destaque adequada ou inadequada? Justifique sua resposta com base no texto. 42. A professora ou o professor pode optar por uma destas questões: a. Agora, imagine que você é o autor do texto e precisa revelar, de forma breve, que há possibilidade de existir vida em Marte. Produza seu texto com base nas informações contidas no texto “Onde há pum, há vida”. b. Produza um resumo do texto.
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9 As tarefas de leitura, o livro didático e a formação do leitor Luciane Baretta
Introdução Desde o ano 2001, após divulgarem os resultados obtidos pelos países participantes do PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos – entre os quais se encontrava o Brasil, não houve mais como ignorar a realidade brasileira quanto a sua fragilidade nas competências em leitura. Os problemas existentes no processo de ensino e aprendizagem do letramento, desenvolvido ao longo do Ensino Fundamental e Médio, se tornaram evidentes (Suwwan, 2001). Desde então, na última década e meia, diferentes indicadores nacionais (Saeb, Prova Brasil, Enem, INAF) têm corroborado os dados preocupantes apontados e relembrados pelo PISA a cada três anos, quando os dados relativos à Educação Básica do Brasil são comparados aos resultados do desempenho de outros países partícipes do PISA. A análise da pesquisa realizada pelo INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional) entre 2001 e 2011, divulgada no Estudo Especial sobre Alfabetismo e Mundo do Trabalho, coordenado pela Ação Educativa e do Instituto Paulo Montenegro, revela que 42% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são classificados no nível elementar de alfabetismo. Isto significa que quase metade da população brasileira é capaz de realizar a leitura de textos diversos, de extensão média, realizar inferências simples e resolver problemas que envolvem operações básicas, apenas. Com relação aos estudantes do Ensino Médio, 48% se enquadram neste mesmo nível; 31% no nível intermediário, i.e., são capazes de localizar múltiplas informações em um texto, de sintetizar 201
as ideias centrais, de perceber os efeitos de sentido e de resolver problemas matemáticos complexos; e apenas 9% estão no último grau de alfabetismo – proficiente – demonstrando as habilidades necessárias para compreender e interpretar textos variados e resolver problemas complexos (Ação Educativa; Instituto Paulo Montenegro, 2016, p. 7). Diante desse quadro, alarmam-se pais e educadores das diferentes áreas do conhecimento e instâncias sociais. O que fazer para mudar o fato de que os jovens em idade escolar, principalmente, não possuem as competências e habilidades necessárias para compreender satisfatoriamente um texto? Tradicionalmente, apesar de a habilidade de leitura ser amplamente trabalhada e necessária a todas as disciplinas do currículo escolar, a disciplina de Português bem como seus respectivos professores tendem a ser responsabilizados como os únicos partícipes na formação do leitor proficiente (Braga; Silvestre, 2002; Kleiman, 2004; Nova Escola, 2011). Assim, se o estudante em idade escolar, no Ensino Superior ou mesmo o adulto leem mal e não conseguem elaborar uma resposta satisfatória e consistente a partir das informações de um texto, o ‘culpado’ é o professor de português. É ele, dentre os profissionais da educação, que não é suficientemente qualificado e não sabe como promover condições em sala de aula para que o aluno saiba ler adequadamente. Contudo, apesar do ‘fardo’ carregado pelo professor de Português, todos experienciamos em nossa vida escolar a aprendizagem dos conteúdos de Ciências, Geografia, História, dentre outros, através da alternância de aulas expositivas e da leitura de textos oriundos de livros didáticos (impressos ou copiados do quadro negro), semelhantemente à prática adotada nas aulas de português. Observando-se os textos disponibilizados nos livros didáticos adotados nas diferentes disciplinas, pode-se constatar que nem sempre está explícito ao estudante o objetivo da leitura proposta pelo livro, ou seja, a interação entre o leitor e o texto na busca de informações para aprender com ele (Braga; Silvestre, 2002; Jamet, 2000; Kleiman, 1996; 1999; 2004; Leffa, 1996; 1999; Miguel; Pérez; Pardo, 2012; Paris; Wasik; Tuner, 1991; Rumelhart, 1981). Frequentemente, a única razão que se estabelece “para quê” ler na sala de aula é o cumprimento da tarefa de responder às questões formuladas após a leitura do texto, a título de verificação da compreensão 202
do aluno pelo professor. Diante deste pano de fundo e dos indicadores do frágil desempenho em leitura dos estudantes brasileiros inseridos na educação básica e superior, estabeleceu-se a questão norteadora desta pesquisa descritiva: de que forma o livro didático das diversas disciplinas do currículo tem contribuído para a formação e desenvolvimento das competências e habilidades em leitura? Para buscar respostas a essa questão de pesquisa, apresenta-se, na primeira parte deste texto, uma breve contextualização sobre as contribuições das pesquisas em leitura que analisam materiais didáticos e buscam por soluções para reverter a fragilidade do quadro leitor. Na segunda parte, é descrita a metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa, seguida da análise e discussão dos resultados. Finalmente, apresentam-se as considerações finais e as referências.
Pesquisas em leitura: o que sabemos sobre as perguntas de compreensão? A busca por compreender o que ocorre na mente do leitor a partir do momento em que ele se depara com um texto escrito até que a compreensão seja alcançada é um tema complexo que tem estimulado muitas pesquisas e debate na academia. Independentemente da perspectiva teórica adotada, estudos têm demonstrado que há vários fatores (e.g., características pessoais do leitor, tipos e gêneros textuais, língua-alvo, atividade relacionada à leitura) que influenciam a maneira que lemos (Baretta, 2003; 2008). Dentre as diferentes possibilidades de pesquisa que se propõem a investigar as diversas atividades (antes, durante e após) que influenciam o processo da leitura, há aquelas que apresentam evidências de que há uma relação direta entre a aquisição do conhecimento e a formulação de perguntas de compreensão (Dubravac; Dale, 2002; Miciano, 2004; Oliveira, 2000; Paris; Lipson; Wixson, 1983; Pearson; Johnson, 1978; Smith, 1991). As pesquisas nessa área têm muito a oferecer aos professores, pois elas podem auxiliá-los a compreender como os diferentes tipos de perguntas e o lugar que elas ocupam na tarefa de leitura podem afetar a compreensão de seus alunos (Nist; Mealey, 1991). As perguntas tradicionalmente postuladas após a leitura do texto como uma forma de checagem de compreensão têm sido amplamente aceitas na 203
academia e no contexto escolar como uma medida válida da compreensão leitora. Na pesquisa conduzida por Oliveira (2000), a autora analisa sessenta questões relativas a seis textos, de seis livros didáticos de língua portuguesa, com o intuito de verificar como as perguntas desenvolvem a leitura crítica de estudantes de Ensino Médio. De acordo com sua análise, 46,6% das perguntas trazidas pelo livro didático demandam compreensão literal, de informações explícitas (right there); 35% requerem a compreensão de informação implícita ao texto (think and search), e apenas 18,3% exigem que o estudante acione seu conhecimento anterior (on my own)1 para responder à pergunta. A autora conclui que os resultados encontrados revelam a pedagogia tradicional, centrada no professor e no material didático, mas que a porcentagem de perguntas implícitas sinaliza que estamos avançando para o ensino da leitura crítica, inferencial, que requer interpretação e análise das informações apresentadas no texto. Numa pesquisa mais recente, Azevedo (2015) faz uma análise das tarefas (perguntas de compreensão) de leitura de livros didáticos para o ensino da Língua Inglesa, aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e adotadas em 2014, em escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio no Núcleo Regional de Educação de Guarapuava, Paraná. A autora analisou 196 tarefas de leitura, oriundas de duas coleções didáticas, isto é, 84 (28x3) tarefas para a 1ª, 2ª e 3ª séries do Ensino Médio e 112 (28x4) tarefas de leitura para o 6º, 7º, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental. A análise das tarefas de leitura foi feita de acordo com a Subescala de Leitura do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), de 20002. Os resultados revelados pela pesquisa documental mostram que os livros didáticos de inglês apresentam uma concentração de tarefas de leitura nos dois primeiros níveis da Subescala, que é composta por cinco (do mais básico ao mais complexo). Há algumas perguntas de compreensão no nível 3, para o Ensino Médio, mas a frequência das tarefas é quase que insignificante, pois a porcentagem é relativamente baixa: 3,57% para o domínio Identificação e Recuperação da Informação, na 2ª série; 10,71% na 1ª série e 3,57% na 2ª 1 Estes termos podem ser traduzidos como: está ali (no texto); pense e procure (no texto) e por minha conta. Tradução minha. 2 Para visualização do trabalho completo, acesse: <http://tede.unicentro.br:8080/jspui/bitstream/ tede/72/1/PR%20LUCIANE%20MONTEIRO%20AZEVEDO.pdf>.
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série para o domínio Reflexão (além dos cinco níveis, a Subescala é dividida em três domínios, supracitados). Os níveis 4 e 5, por sua vez, os mais complexos da Subescala, não são exemplificados por nenhuma tarefa de leitura, em nenhum dos três domínios. De acordo com Azevedo (2015), as porcentagens de perguntas de compreensão leitora relativas a cada nível e domínio não são suficientes para que o aluno do Ensino Médio, ao concluir o ciclo da educação básica, seja capaz de desempenhar satisfatoriamente as tarefas requeridas pela sociedade que o cerca e que demanda um cidadão ativo e crítico. Para minimizar essa lacuna, a autora sugere que: os professores de língua inglesa, especialmente os da Rede Estadual da Educação do Paraná, incentivem seus alunos a refletir sobre o propósito das TL [tarefas de leitura] encontradas nos LDLI [livros didáticos de Língua Inglesa], reflexão que pode colaborar para o desenvolvimento cognitivo e crítico dos alunos. Além disso, é importante destacar a necessidade dos professores de língua inglesa avaliar as TL trazidas nos livros didáticos, tanto no ensino Fundamental quanto no Médio (p. 98).
Conforme demonstrado nos estudos de Oliveira (2000) e Azevedo (2015), aparentemente, os livros didáticos produzidos no Brasil, para o ensino de língua materna e estrangeira inglês, pouco se modificaram quanto ao tipo (profundidade) de perguntas de compreensão leitora nos últimos 15 anos. Apesar dessas duas pesquisas analisarem corpora diferentes, com livros didáticos de língua portuguesa publicados entre 1974 e 1996, na pesquisa de Oliveira, e livros didáticos de língua inglesa, publicados em 2010 e 2012, na pesquisa de Azevedo, podemos perceber que os resultados não são muito diferentes, infelizmente. Embora o interesse por pesquisar a leitura seja do interesse de diferentes áreas (neurociência e neurolinguística, por exemplo), percebe-se que há carência de estudos que investiguem o amplo contexto de ensino da compreensão leitora. Diante disso, propõe-se o presente estudo, que busca verificar de que forma o livro didático das diversas disciplinas do currículo tem contribuído para a formação e desenvolvimento das competências e habilidades em leitura. Para buscar alcançar este objetivo geral, são levantados alguns ques205
tionamentos: (a) qual o nível de compreensão requerido pelas tarefas de compreensão em leitura (superficial, profunda, crítico-reflexiva)? (b) qual a ocorrência (%) de tarefas de leitura que requerem apenas a compreensão da informação superficial? (c) qual a ocorrência (%) de tarefas de leitura que demandam a compreensão profunda e crítico-reflexiva? (d) há algum gênero textual que é recorrente nos livros didáticos? Na tentativa de responder esses questionamentos, passamos à descrição do método.
Método Materiais O corpus desta pesquisa é composto de livros didáticos selecionados dentre aquelas disciplinas que adotavam o material fornecido pelo Governo Federal, por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), nos níveis Fundamental e Médio, nas escolas estaduais do Núcleo Regional de Educação de Guarapuava (NRE), Paraná, no período de 2011 a 2012. Conforme a disponibilização dos livros didáticos em forma de doação à pesquisadora, definiu-se que fariam parte deste estudo as duas coleções didáticas disponibilizadas aos professores/escolas estaduais do NRE, para cada disciplina que é contemplada pelo PNLD. As disciplinas de Português e Inglês foram automaticamente selecionadas para compor a amostra, tendo-se em vista a sua tradição no ensino da habilidade da leitura. Dessa forma, o Ensino Fundamental é retratado por duas coleções de livros didáticos para as disciplinas de: Português, Inglês, História, Geografia, Ciências e Matemática. Para o Ensino Médio, os livros didáticos das disciplinas de Matemática e Ciências foram substituídos pelos de Biologia e Química, em razão da indisponibilidade de material no NRE.
Coleta e análise dos dados A coleta dos dados foi feita tendo como base o número de 20 tarefas de leitura para cada disciplina/ano escolar em estudo, ou seja, 20 tarefas X6 disciplinas X4 anos = 480 tarefas de leitura para o Ensino Fundamen206
tal, e 20 tarefas X6 disciplinas X3 anos = 360 tarefas para o Ensino Médio. Conforme descrito na seção Materiais, duas coleções didáticas foram analisadas para cada disciplina, ficando estabelecido, dessa forma, o número de 10 tarefas de leitura para cada uma das coleções. Como a disciplina de Português apresenta, tradicionalmente, um número elevado de tarefas de leitura por texto apresentado, decidiu-se por aumentar esse número para 40, ou seja, 20 tarefas para cada livro didático/ano escolar. Essa medida foi necessária para que a amostra dos livros de Português não ficasse restrita a apenas um ou dois gêneros textuais por livro didático, tendo-se em vista que muitos textos traziam muito mais que 10 tarefas de leitura, diferentemente das outras disciplinas, que tendem a apresentar um número inferior de tarefas para cada texto. Assim sendo, o número total de tarefas analisadas para o nível fundamental é de 560 e, para o nível médio, 420 tarefas. A seleção das tarefas de leitura seguiu três critérios básicos. Primeiro: a tarefa de leitura, para ser definida como tal, precisava estar vinculada a um ou mais textos do livro didático. Segundo: as tarefas de leitura selecionadas não poderiam estar vinculadas a atividades de revisão, verificação e/ou checagem de conteúdos abordados no decorrer do capítulo/unidade estudada. Terceiro: a seleção da primeira metade das tarefas (10) foi feita a partir do primeiro texto do livro didático e assim sucessivamente; a seleção da outra metade (10) foi realizada de maneira inversa, iniciando pelo último texto do livro e assim retrospectivamente, até que o total, para aquela coleção, fosse alcançado. A análise dos dados foi feita tendo como embasamento a taxonomia de perguntas de compreensão em leitura proposta por Pearson e Johnson (1978): textualmente explícita (compreensão superficial), textualmente implícita (compreensão profunda) e implícita no script (compreensão crítico-reflexiva). Esta categorização será contextualizada na próxima seção, juntamente com a análise e discussão dos dados.
Análise e discussão dos dados O estudo de Pearson e Johnson (1978) na área de ensino e aprendizagem de leitura inclui uma taxonomia de perguntas de compreensão (ado207
tada no estudo de Oliveira (2000), discutido anteriormente, na revisão de literatura). Essa taxonomia, segundo os autores, é desenhada para capturar as relações existentes entre as perguntas elaboradas a partir de um texto e as respostas referentes a esse mesmo material. De acordo com os modelos de processamento em leitura (ascendente, descendente e interativo)3 e conforme explicam Pearson e Johnson, as fontes de informação necessárias para que o leitor produza uma resposta, isto é, o texto, o conhecimento do leitor ou ambos, são os elementos norteadores dessa taxonomia. Uma pergunta (ou tarefa, conforme adotado nesta pesquisa) de compreensão textualmente explícita (TE) é aquela que se baseia na informação que está diante dos olhos do leitor e demanda uma compreensão rasa, superficial. São as típicas perguntas/tarefas literais de leitura, que tendem a apresentar as seguintes palavras sinalizadoras em sua estruturação: quem, o que, onde, quando (Oliveira, 2000). As perguntas/tarefas de leitura textualmente implícitas (TI) são aquelas em que a resposta está no texto, mas para obtê-la, é necessária a geração de inferências: “both question and answer are derivable from the text but there is no logical or grammatical cue tying the question to the answer and the answer given is plausible in light of the question4” (Pearson; Johnson, 1978, p. 163). Em outras palavras, a resposta está no texto, mas não é óbvia, como nas TEs descritas acima; o leitor precisa ler nas entrelinhas para alcançar a compreensão profunda. Neste tipo de pergunta, são frequentes as palavras interrogativas: por que, como, de que maneira. As perguntas/tarefas de leitura denominadas implícitas no script (TIS) são aquelas que requerem, basicamente, o conhecimento prévio do leitor, armazenado em sua memória. Para responder a esse tipo de pergunta, o leitor precisa usar seus esquemas mentais para elaborar a resposta; neste tipo de questão, o leitor precisa ler além das linhas do texto, para responder a proposições do tipo: imagine, suponha, prediga, defenda, elabore, 3 Os modelos ascendentes postulam que a leitura é um processo linear de decodificação que parte das menores unidades textuais até a compreensão; o sentido está no texto. Os modelos descendentes estabelecem que o sentido do texto está na mente do leitor que traz seus conhecimentos para o texto. Os modelos interativos, por sua vez, estabelecem que tanto o texto quanto o leitor precisam interagir para que a compreensão se efetive (SOUZA, 2012). 4
Tradução minha: pergunta e resposta são oriundas do texto, mas não há sinalização lógica ou gramatical relacionando a pergunta à resposta e a resposta dada é plausível à luz da pergunta.
208
justifique, explique, quais são as possíveis consequências, entre outras. Para responder satisfatoriamente a esse tipo de questionamentos, o leitor precisa alcançar a compreensão crítico-reflexiva daquilo que lê. Conforme podemos visualizar no Gráfico 1 a seguir, 54,38%, um pouco mais da metade do total (n=980), das tarefas de leitura são do tipo TE, que exigem apenas a compreensão literal do texto. 29,48% das tarefas enquadram-se naquelas que requerem a elaboração de algum tipo de inferência (TI) e apenas 16,73% são tarefas que estimulam o leitor a ir além daquilo que está no texto, através da ativação de seu conhecimento de mundo (TIS). Observa-se, portanto, que os textos analisados apresentam mais que o triplo de TE em relação às tarefas TIS, mostrando similaridade aos resultados discutidos na pesquisa de Azevedo (2015), que trabalhou com livros didáticos de língua inglesa. Gráfico 1: Porcentagem da frequência de tarefas explícitas (TE), implícitas (TI) e implícita no script (TIS) nos livros didáticos: nível Fundamental, Médio e Geral
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Fonte: Dados da pesquisa.
Resultados análogos podem ser percebidos ao se analisar os dados separados do Ensino Fundamental (560 tarefas) e do Médio (420 tarefas). Conforme verifica-se no Gráfico 1, há uma forte tendência pela preferência de tarefas TE sobre os outros dois tipos, principalmente no ensino Médio 209
que apresenta um índice quase 10% maior de TE do que no nível Fundamental. Dados semelhantes podem ser observados com relação à frequência de tarefas do tipo TI, novamente com uma diferença de 9% entre o nível Fundamental e Médio. Note-se que para as tarefas TI e TIS, quanto maior a porcentagem, mais positivo o resultado, pois essas tarefas requerem maior envolvimento do leitor com o texto. Fato contrário deve ser concluído com relação às tarefas TE, isto é, quanto maior a porcentagem deste tipo de tarefa, mais fragilizado é o resultado, uma vez que demonstra a alta frequência de tarefas de compreensão que requerem, basicamente, a compreensão literal e superficial do texto. Como podemos explicar a distribuição desproporcional entre TE e TIS nos livros didáticos fornecidos pelo Governo Federal, que, supostamente, deveriam estar em consonância com as propostas educacionais brasileiras, pautadas no letramento crítico, no preparo do aluno para ser atuante na sociedade atual? Conforme argumentado por Oliveira (2000), a desproporção entre os tipos de tarefas explícitas (TE) e implícitas no script (TIS) não deve ser considerada tão extraordinária, tendo-se em vista o paradigma tradicional de ensino adotado no Brasil. Apesar dos avanços no campo da educação (programas sociais de incentivo à educação básica e aos outros níveis de educação, expansão de escolas e universidades públicas, mecanismos internos de avaliação educacional, queda no índice de analfabetismo, ênfase na formação, qualificação e carreira do professor, entre outros), é recente ainda o conceito de democracia, que apenas engatinha em nossa sociedade e, consequentemente, ainda está distante das salas de aula. A despeito de encontrarmos alunos mais questionadores e menos passivos nas nossas escolas, encontramos também uma presença acentuada da pedagogia tradicional de ensino, bastante marcada por uma abordagem instrucional centrada no professor, que tem, como uma de suas características, a utilização de perguntas factuais, pois a preocupação é com o repasse da informação e não com o aprendizado; com o ponto de vista do professor, não dos alunos; com respostas básicas, não com justificativas/explicações; (...) com as informações NO texto somente e não com aquelas que 210
CIRCUNDAM o texto” (Oliveira, 2000, p. 48, ênfase no original, minha tradução).5
Contudo, é importante destacar que a mudança para práticas de ensino mais centradas no aluno, instauradas em círculos educacionais ao redor do mundo, parece começar a refletir uma mudança qualitativa dos materiais didáticos e, consequentemente, na prática do professor. Ainda com base no Gráfico 1, acima, pode-se observar que no cômputo geral, 29,48% das tarefas de leitura – categorizadas como TI – demandam a participação do leitor para, colaborativamente com o texto, (re)construir suas próprias experiências de aprendizado, através da utilização e internalização de operações de nível mais alto de leitura (inferência: integração, resumo, elaboração; monitoramento da compreensão: estabelecimento e checagem de objetivos, seleção de estratégias e remediação) (Gagné; Yekovich; Yekovich, 1993; Tomitch, 2011). Essa porcentagem, apesar de tímida, quando comparada à frequência das tarefas TEs (54,38%), demonstra uma tendência ambivalente (Oliveira, 2000) do contexto educacional brasileiro, no que tange aos materiais didáticos utilizados para instrução. Esse dado, associado à frequência de TIS, parece demonstrar que os recursos investidos na área da educação começam a surtir efeitos, demonstrando que o modelo de ensino brasileiro está passando por um momento de transição entre o ensino centrado no professor, com tarefas de compreensão de leitura baseadas na informação explícita, e o ensino mais democrático, centrado no aluno, que precisa refletir, inferir e analisar informações para responder aos questionamentos do material didático e/ou do professor. Com o intuito de melhor visualizar a distribuição de tarefas de leitura por disciplina e ano escolar, passemos à análise dos dados tendo como referência as disciplinas dos níveis Fundamental e Médio que compuseram o corpus desta pesquisa. De acordo com a visualização dos Gráficos 2 a 8, organizados por ano escolar/disciplinas, pode-se afirmar que há diferenças significativas entre as variáveis: disciplina, ano escolar e tipo de tarefa de leitura. 5
“because the preoccupation is with the delivery of instruction, not with learning; with the teacher’s point of view, not with the student’s; with plain answering, not justifying / explaining; (...) with information IN the text only, not AROUND it.”
211
Gráfico 2: Tipos de tarefa de leitura: 6º ano
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Fonte: Dados da pesquisa. Gráfico 3: Tipos de tarefa de leitura: 7º ano
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Fonte: Dados da pesquisa. Gráfico 4: Tipos de tarefa de leitura: 8º ano
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Fonte: Dados da pesquisa. 212
Gráfico 5: Tipos de tarefa de leitura: 9º ano
Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.
Um dos primeiros resultados que chama a atenção é a baixa porcentagem de tarefas TIS na disciplina de Português. De acordo com a representação social (Luckesi, 2002) imbuída a essa disciplina, os dados apresentados são dissonantes da expectativa para a disciplina que, teoricamente, têm especialistas – linguistas, linguistas aplicados, pedagogos – como autores do livro didático e que têm conhecimento específico e aprofundado a respeito do trabalho com a leitura em sala de aula. Além disso, espera-se, principalmente da disciplina de Português, não excluídas as outras dessa responsabilidade, um trabalho mais aprofundado na leitura e discussão de textos, incentivando o aluno a refletir, questionar, criticar aquilo que lê, tendo-se em vista que o enfoque da disciplina é a utilização da língua(gem) como prática social. No Ensino Fundamental, observa-se que há uma porcentagem fragilizada das tarefas TIS nos primeiros anos, não ultrapassando os 10% do total de tarefas analisadas. No 9º ano, temos um aumento significativo, com quase 30% das tarefas de leitura requerendo do leitor a extrapolação do texto para responder questionamentos críticos-reflexivos. Esse avanço, contudo, retrocede no nível Médio, quando a porcentagem mais alta de tarefas TIS é encontrada no 2º ano (15%).
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Gráfico 6: Tipos de tarefa de leitura: 1º ano
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Fonte: Dados da pesquisa. Gráfico 7: Tipos de tarefa de leitura: 2º ano
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Fonte: Dados da pesquisa. Gráfico 8: Tipos de tarefa de leitura: 3º ano
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Fonte: Dados da pesquisa. 214
As porcentagens referentes à ocorrência de tarefas TE também chamam a atenção, principalmente nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental (Gráficos 2 a 5), em que a frequência dessas tarefas, em Português, é superior a todas as outras disciplinas. Poder-se-ia argumentar que, tendo-se em vista os dados apresentados pelos indicadores nacionais referentes ao Ensino Básico (Saeb), aliados às dificuldades de leitura apresentadas por alunos que iniciam o 6º ano do Ensino Fundamental, o objetivo do livro didático é de fazer uma espécie de retomada dos processos de nível mais básico da leitura, envolvendo, portanto, tarefas que requerem a decodificação fluente e a compreensão literal. De acordo com Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), o processo de decodificação é subdividido em associação e recodificação; é neste nível de processamento que os leitores atribuem significado às palavras, associando o conceito que já possuem à palavra escrita. Se a palavra não fizer sentido, eles a recodificam para obter o significado correto. O próximo passo corresponde à compreensão literal, momento em que os leitores se atêm ao nível superficial do texto. É somente a partir de dominados ou compreendidos esses níveis mais básicos, mas fundamentais da leitura, que o leitor é capaz de prosseguir para os níveis mais altos de processamento, que envolvem as tarefas do tipo TI e TIS, mais frequentes a partir do 8º ano, quando, teoricamente, o aluno estaria mais preparado para atuar ativamente na construção de seu conhecimento e superação dos obstáculos inerentes à compreensão leitora. No entanto, não se pode deixar de observar que esse padrão não se estende ao Ensino Médio, que mostra resultados que, de certa forma, anulam o trabalho desenvolvido nos quatro anos do Ensino Fundamental, tendo-se em vista que se tem uma retomada à preferência por tarefas de leitura TE. Esse dado, mais uma vez, está dissonante da representação social referente ao preparo do aluno para: (a) os concursos de vestibular, que a cada ano estão mais voltados para tarefas de compreensão do tipo TI e TIS e (b) para a sua participação crítica e ativa na sociedade, dando-lhe condições de continuar a aprender de forma autônoma. Outro resultado que chama a atenção é a superioridade de tarefas TI nas disciplinas de Matemática (no 7º, 8º e 9º anos), Ciências (8º ano) e Química (1º e 2º anos) sobre as tarefas TE. Esses dados estão em conso215
nância com os números apresentados por Baretta (2013), em que é feita uma análise preliminar desse mesmo corpus, tendo como embasamento a categorização das tarefas de leitura em ativas (são contextualizadas e primam pela compreensão inserida num contexto significativo de interação social) e passivas (enfocam a compreensão compartimentada e descontextualizada de itens linguísticos), proposta por Davies (1995). Além disso, há a discussão sobre os comentários dos docentes das áreas de exatas que percebem com maior clareza as fragilidades apresentadas pelos seus alunos quanto à habilidade da leitura, uma vez que há uma frequência maior de tarefas de compreensão que demandam níveis de processamento mais altos nas disciplinas ministradas por eles. Os resultados da dificuldade do leitor em compreender o que está implícito fica logo evidente nessas disciplinas quando o estudante demonstra que não consegue resolver uma tarefa porque não compreendeu o não dito do enunciado proposto. É importante a observação de que algumas disciplinas (Ciências e Matemática no 6º ano; Geografia no 7º; Português e Ciências no 9º; Inglês e História no 1º e Química no 3º ano), apresentam certo equilíbrio entre os três tipos de tarefas de leitura, não priorizando um tipo em detrimento de outro. Parece-nos que este seria o encaminhamento ideal para a formação (ou desenvolvimento, nas palavras de Menegassi, 2010) do leitor, que estaria mais bem preparado para lidar com os diferentes desafios inerentes ao uso competente da leitura e escrita em práticas sociais, que perpassam o ambiente escolar. Tendo-se em vista que o objetivo da escola não se limita mais à simples transmissão de conhecimentos, mas diz respeito à formação/desenvolvimento do cidadão competente para que seja capaz de atuar na sociedade contemporânea, frente às diversas facetas inerentes às práticas letradas, é fundamental que todas as disciplinas do currículo escolar trabalhem para o desenvolvimento de um leitor autônomo e crítico, através da elaboração dos diferentes tipos de tarefas de compreensão em leitura. No entanto, esse não é o panorama que se percebe ao analisarmos os Gráficos 6 a 8, acima, referentes aos dados do Ensino Médio, nível esse que, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), é a “etapa final da educação básica” (Art. 36), que deveria oportunizar a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensi216
no Fundamental. Conforme podemos observar nos gráficos, das seis disciplinas analisadas em cada ano do Ensino Médio, três delas (Português, Geografia e Biologia) mostram porcentagem bastante superior de TEs no 1º ano; cinco disciplinas (Inglês, Português, Geografia, Biologia e História) no 2º ano e quatro disciplinas no 3º ano, último ano da Educação Básica (Inglês, Português, Geografia e História). Esses números, juntamente com aqueles referentes ao Ensino Fundamental, estão em consonância com os índices apresentados pelos indicadores nacionais (Saeb, Prova Brasil, Enem, Inaf) e internacionais (PISA) de avaliação de desempenho dos estudantes brasileiros nos últimos anos. De acordo com dados recentes publicados pela 8ª edição do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), já mencionados no início deste texto e repetidos aqui, “entre 2001 e 2011, o domínio pleno da leitura6 caiu de 22% para 15% entre os que concluíram o Ensino Fundamental II, e de 49% para 35% entre os que fizeram o Ensino Médio” (Estadão, 2012). 57% dos concluintes do Ensino Médio permanecem no nível básico de alfabetização, que envolve a leitura e compreensão de textos de média extensão e a localização de informações com inferências simples, e 8% classificam-se como analfabetos funcionais, isto é, são capazes de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares (anúncio, carta, bilhete). Ao se comparar esses indicadores com as porcentagens gerais para cada tipo de tarefa de leitura investigadas nesta pesquisa, percebe-se uma relação de causa e efeito. Ora, se 532 (54,38%) das 980 tarefas de leitura trabalhadas nos livros didáticos nos níveis Fundamental e Médio são aquelas que requerem a compreensão de informações literais do texto; outras 288 (29,48%) envolvem a compreensão a partir de algum tipo de inferência relacionada ao texto, e apenas 163 tarefas (16,73%) demandam a relação entre o texto lido com outras fontes de informação (extratextuais), não há como se esperar escores de desempenho muito diferentes desses que têm sido reportados por diferentes exames, nos últimos anos. Conforme amplamente discutido por edu6
Para enquadrar-se no nível pleno de leitura, as pessoas devem ser capazes de ler e compreender textos longos, por exemplo, um artigo de jornal, comparar suas informações com as de outros textos e fazer uma síntese desse texto. Consideram-se inclusas no nível pleno em Matemática aquelas pessoas capazes de resolver problemas envolvendo percentuais e proporção, além de fazer a interpretação de tabelas e gráficos simples.
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cadores, pesquisadores e aqueles envolvidos, direta ou indiretamente com o processo educacional brasileiro, o primeiro passo, a inclusão das pessoas na escola, através de diferentes incentivos, foi dado. Chegou o momento de investir na segunda e mais importante etapa, que é a qualidade do ensino (Gazeta Online, 2012). De acordo com os dados da presente pesquisa, um dos aspectos inerentes a essa etapa, é o estudo aprofundado dos materiais didáticos disponibilizados pelo Governo. É importante que se tenha consciência (autores e editores) que o livro didático, além de apresentar o conteúdo específico à área do conhecimento, deve estar pautado nos documentos oficiais e nos propósitos gerais de formação comum indispensável para o exercício da cidadania, fornecendo os meios (conhecimentos e habilidades) para que os estudantes progridam no trabalho e em estudos posteriores (Portal Brasil, 2012). Um aspecto importante e merecedor de destaque é a preocupação dos autores/editores dos livros didáticos com a diversidade de gêneros textuais apresentados no decorrer das unidades. Apesar do enfoque nos gêneros textuais estar mais associado às disciplinas que trabalham diretamente com a língua(gem), como Português e Inglês, há que se observar que dentre os objetivos gerais do Ensino Fundamental, conforme proposto pelos PCNs, terceiro e quarto ciclos (Brasil, 1998), temos que os alunos devem ser capazes de: utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical, matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar suas (sic) ideias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação (p. 6 e 7).
Os PCNs para o Ensino Médio (Brasil, 2000) também enfatizam “a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania” (p. 56, ênfase minha). Dessa forma, tendo-se em vista o que preconizam os documentos oficiais, engajados nas contribuições do interacionismo sociodiscursivo, a percepção de que para se comunicar com competência é necessário o acesso e o estudo de diferentes gêneros textuais para interagir em diferentes contextos discursi218
vos, parece estar sendo incorporada aos livros didáticos, que demonstram, mesmo que ainda timidamente na maioria das disciplinas, excetuando-se Português e Inglês, que o trabalho com o texto, enquanto prática social, não é responsabilidade apenas dos professores que trabalham com o ensino de línguas. Na Tabela 1, a seguir, pode-se observar a variedade de gêneros textuais7 trazidos pelos livros didáticos analisados e o número de tarefas de leitura trabalhadas por gênero textual, nos níveis Fundamental e Médio. Tabela 1: Distribuição dos Gêneros Textuais e de Tarefas de Leitura (TL) nos níveis Fundamental e Médio Gênero Textual TL – Nível Fundamental TL – Nível Médio Total de TL anúncio 20 7 27 artigo 9 57 66 biografia 4 - 4 blog - 2 2 carta do leitor 38 4 42 carta pessoal 3 1 4 cartão postal 1 - 1 cartaz 9 - 9 cartum - 4 4 chat 4 - 4 citação 3 - 3 classificados 2 - 2 conto 20 2 22 convite 7 - 7 crônica 20 3 23 declaração dos direitos - 1 1 diálogo 4 - 4 discurso didático 58 110 168 entrevista 22 2 24 folder 1 - 1 foto - 2 2 gráfico 31 14 45 história em quadrinhos 14 - 14 homepage 7 - 7 infográfico 13 9 22 7
Os gêneros textuais listados neste trabalho foram categorizados de acordo com os exemplos de gêneros apresentados nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica-Língua Estrangeira Moderna, do Estado do Paraná (2008).
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julgamento lista manual mapa música narrativa de aventura narrativa de terror notícia pesquisa piada pintura placa poema prefácio quiz receita relato experiência científica relato histórico relato pessoal reportagem resenha crítica romance tabela texto argumentativo texto de opinião tirinha verbete de enciclopédia website
- - - 4 4 20 19 42 5 7 - 4 6 - - 5 - 29 9 27 17 - 3 6 - 32 9 -
10 5 10 6 8 1 - 23 15 2 10 4 23 12 5 - 3 5 10 4 13 60 2 5 11 4 - 8
10 5 10 10 12 21 19 65 20 9 10 8 29 12 5 5 3 34 19 31 30 60 5 11 11 36 9 8
Fonte: Dados da pesquisa.
É possível perceber que os gêneros textuais dos livros didáticos se inserem nas diferentes esferas sociais de circulação (Bakhtin, 1988), extrapolando as esferas cotidiana e escolar, tradicionalmente incluídas no discurso da prática pedagógica. As esferas literária, artística, científica, da imprensa, publicitária, jurídica, da produção e consumo e a midiática, entre outras, são automaticamente inseridas na discussão a partir do trabalho com os gêneros textuais, que precisam ser compreendidos em suas esferas sociais de circulação, desenvolvendo, dessa forma, as competências e habilidades necessárias ao estudante para que se integre ao mundo contemporâneo nas dimensões fundamentais da cidadania e do trabalho (Brasil, 2000). 220
No entanto, apesar da diversidade de gêneros (53), é preciso destacar que vários deles são apresentados apenas uma vez, em uma disciplina específica, como é o caso da maioria dos gêneros que apresentam número reduzido de tarefas, como: biografia (4), blog (2), carta pessoal (4), cartão postal (1), cartum (4), chat (4), citação (3), classificados (2), declaração dos direitos (1), diálogo (4), folder (1), foto (2), homepage (7), lista (9), piada (9), placa (8), quiz (5), receita (5), relato de experiência científica (3) e tabela (5). É importante lembrar aqui que os números apresentados são referentes aos textos nos quais as tarefas de leitura analisadas nesta pesquisa foram baseadas, não revelando, portanto, um retrato completo dos gêneros textuais abordados nos livros didáticos analisados. Sabe-se que, para que o trabalho com qualquer conteúdo seja eficaz, é necessário que ele seja retomado à medida que os anos escolares avançam, respeitando-se o princípio da complexidade crescente. O mesmo ocorre com o trabalho com gêneros textuais. Na verdade, importa menos a diversidade de gêneros trabalhados do que a qualidade do trabalho sendo desenvolvido a partir do texto em questão. Nesse caso, é procedente a conclusão de que, quanto maior o número de tarefas de leitura para um determinado gênero textual, maior é (ou tende a ser) a frequência com que esse gênero é trabalhado com os alunos e em diferentes disciplinas do currículo. Se tomarmos como exemplo os gêneros: discurso didático, artigo e notícia, que mostram os maiores índices de tarefas de leitura (168, 66 e 65, respectivamente), é plausível concluir que esses gêneros textuais foram abordados por mais de uma disciplina e em diferentes momentos (aulas). No entanto, é preciso cuidado para não tecer conclusões generalizadoras. Um caso específico, referente ao gênero romance, chama a atenção para a ocorrência de 60 tarefas, todas trabalhadas nos livros didáticos do nível Médio, apenas. Outros gêneros textuais também são abordados em apenas um dos níveis de ensino. No entanto, o número de tarefas de leitura é bem menos significativo, como por exemplo, narrativa de terror, pintura e prefácio, com 19, 10 e 12 tarefas, respectivamente. Retomando o olhar para o cômputo geral das tarefas de leitura por gênero textual, observa-se que o discurso didático é o gênero mais trabalhado pelos livros, apresentando quase o triplo de tarefas (168) em comparação com o segundo gênero, o artigo, com 66 tarefas. Esse resultado, apesar de 221
um pouco alarmante – pois revela que quase um quinto das tarefas de leitura em análise nesta pesquisa são propostas a partir de um único gênero textual que se enquadra na esfera de circulação escolar –, é também animador. Conforme mencionado anteriormente, a amostra considerada revela que os livros didáticos trabalham com 53 gêneros textuais distintos, fato que demonstra tentativas de descentralização do texto didático, escrito com propósitos pedagógicos, como fonte única do saber. Aparentemente, essas tentativas começam a surtir efeito, pois quatro quintos das tarefas de leitura analisadas nesta pesquisa são elaboradas a partir de gêneros textuais diversificados, pertencentes a diferentes esferas de circulação. Tomando como exemplo os próximos gêneros textuais com maior número de tarefas de leitura, organizados em ordem decrescente, temos: o artigo (66 tarefas), notícia (65), romance (60), gráfico (45), carta do leitor (42), tirinha (36), relato histórico (34), reportagem (31) e resenha crítica (30), que se inserem em outras esferas sociais de circulação, além da escolar: a científica, da imprensa e a artística/literária. Portanto, é possível concluir que, mesmo havendo a predominância dos livros didáticos em utilizar-se de textos escritos com cunho essencialmente pedagógico, há que se considerar a inserção de textos diversos efetivados nas práticas discursivas (Bakhtin, 1988), que de uma ou outra forma preparam o estudante para deparar-se com a sociedade letrada do século XXI. Quase que a totalidade das instâncias (sociais, econômicas, culturais, educacionais) com as quais o cidadão do século XXI precisa interagir estão permeadas pela língua escrita. Resumir e comentar sobre uma notícia que leu no jornal ou acompanhou pela televisão, receber e enviar mensagens de texto através do telefone celular, preencher e enviar a declaração do imposto de renda, são tarefas que fazem parte do nosso cotidiano e requerem diferentes graus de letramento, que a escola, se pautada apenas no gênero discurso didático, não dará conta de prover ao seu estudante.
Considerações finais Os resultados reportados nesta pesquisa revelam apenas uma fração da esfera do processo de formação e desenvolvimento do leitor competente. 222
Embora o estudo apresente suas limitações quanto ao número de tarefas analisadas por cada disciplina/livro didático (10 tarefas para todas as disciplinas investigadas, excetuando-se a de Português, que teve o dobro de tarefas analisadas por livro), os dados apresentados sinalizam a necessidade de pesquisas mais amplas e detalhadas, envolvendo um número maior de materiais didáticos e de tarefas de leitura para cada disciplina, para que possamos ter uma visão mais clara acerca da contribuição do livro didático na formação do ser letrado. Contudo, conforme discutido no decorrer deste capítulo, não podemos negar que se desnuda a estreita ligação entre as tarefas de leitura trabalhadas pelos livros didáticos e os resultados de desempenho dos nossos estudantes em diferentes exames, amplamente divulgados pela mídia. Infelizmente, não há como se esperar êxitos diferentes por parte desses estudantes quando nos defrontamos com porcentagens alarmantes de tarefas de leitura que demandam apenas a compreensão superficial (TE) para que sejam respondidas a contento. Um primeiro passo foi dado: iniciou-se um estudo diagnóstico acerca do papel do livro didático na formação e desenvolvimento do leitor competente, que deve ser capaz de, além de compreender a informação literal, “extrair informações de textos, de interpretar essa informação a partir de conhecimentos e metas pessoais, e de refletir sobre os conhecimentos elaborados ou interpretados e sobre o processo seguido para obtê-los e entendê-los” (Miguel et al., 2012, p. 39). A partir do momento que professores, autores e editores de livros didáticos tiverem clareza quanto aos êxitos a serem alcançados, i.e., tarefas que se esperam que uma pessoa consiga resolver depois de ler um determinado material, teremos condições de propor o passo seguinte para conceber alguma intervenção eficaz e vislumbrar um quadro diferente para o sistema educacional.
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Parte IV
Ensino de leitura nos anos iniciais e no contexto da surdez
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10 A prática sistematizada da leitura de livros de literatura infantil no processo de alfabetização Ana Carolina da Conceição Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig
Malas prontas: vamos iniciar a aventura Iniciamos nossa viagem submergida na prática da leitura de livros de literatura infantil em uma turma do segundo ano do Ensino Fundamental. Nossa aventura, ao escrever, traça análises iniciais sobre esse recurso utilizado pela professora em sala de aula. Cada título de seção é entrelaçado com o apoio de Marques (2011) nessa caminhada da pesquisa. Escrever é o começo dos começos. Depois é aventura. Uma mochila com alguns poucos pertences do ofício artesanal, uma bússola [...] Uma lâmpada para iluminar os caminhos à medida que se apaga a luz do dia. É desse jeito que a teoria ilumina a prática, mas só quando a própria prática a deslocou para a situação a que deve servir e produzir adequada. Por isso, de saída não se pode saber os interlocutores. Surgirão eles durante a caminhada. Isso faz parte da aventura. (Marques, 2011, p. 31)
O presente trabalho integra uma pesquisa de dissertação de mestrado que aborda as ações docentes para a sistematização da linguagem escrita nos anos iniciais. Partindo do pressuposto da mediação como princípio da organização do trabalho pedagógico (Fontana, 2005), o estudo tem seu foco nos modos como a linguagem escrita é sistematizada nas aulas de leitura, produção de texto e conhecimentos linguísticos e, por meio da qual, se transforma em objeto ensinado (Dolz Ronveaux; Schneuwly, 2007). 227
Batista (2011) alerta que há poucas pesquisas que problematizam o desenvolvimento e consolidação do processo de aprendizagem da língua materna. Por isso, é necessário abordar discussões sobre a consolidação da alfabetização que, muitas vezes, ultrapassam a idade estipulada pelos documentos oficiais, que seria no máximo até o terceiro ano do ensino fundamental. Por esse motivo, a geração dos dados aconteceu em uma turma do segundo ano do Ensino Fundamental de nove anos. Além disso, é preciso refletir sobre o termo alfabetização o qual, para Soares (2014), é de uso comum e frequente, não só no léxico específico de profissionais do ensino da educação, mas também no léxico de todos os indivíduos, alfabetizados ou não, de uma sociedade letrada. Entre estes últimos, há em geral concordância quanto ao conceito que a palavra alfabetização nomeia: pergunte-se a qualquer pessoa o que é a alfabetização, e a resposta dificilmente será outra que não a de que alfabetização é “o processo de ensinar a ler e a escrever”? (Soares, 2014, p. 21).
De acordo com Smolka (2014), o conceito de alfabetização foi se transformando e sendo concebido como um processo discursivo, mediante diálogos com autores do campo da psicologia, da educação e dos estudos da linguagem, em sincronia com as investigações realizadas com as crianças da pré-escola e das classes de alfabetização. Ancorada prioritariamente nas contribuições de Vigotski e Bakhtin, essas perspectivas consideram a atividade mental da criança não apenas em seu aspecto cognitivo, mas em seu aspecto discursivo. Ou seja, a linguagem, a palavra oral ou escrita – é, ou pode ser, ao mesmo tempo, meio/modo de interação, meio/modo de (inter e intra) regulação das ações, e objeto do conhecimento. A ênfase na relação social e na prática dialógica caracteriza a dimensão discursiva (Smolka, 2014, p. 23).
Visto que a apropriação da linguagem escrita é um trabalho contínuo, formado de interações e reflexões sobre a ação, oportunizando a criança o contato com diferentes gêneros discursivos desde muito cedo, 228
reforçamos a importância da ação docente nesse processo de ensino e aprendizagem. Nessa perspectiva, como mirante na ação docente, o trabalho objetiva analisar a leitura do livro de literatura infantil, sendo esse um recurso mobilizado na sala de aula pela professora, a fim de compreender, se e como os diferentes materiais didáticos atuam no processo discursivo de sistematização de conhecimentos sobre a linguagem escrita. A leitura de livros no processo de alfabetização é um evento em que requer interação professor-aluno, aluno-aluno e estabelece uma relação entre a leitura e a escrita. Para capturar os eventos de letramento (Hamilton, 2000) em sala de aula, os instrumentos de pesquisa utilizados abrangem uma gama ampla de técnicas para a geração de dados típicos da pesquisa interpretativa de cunho etnográfico, a saber: (a) realização de entrevistas semiestruturadas individuais com o professor da turma pesquisada; (b) gravação em áudio de duas semanas de aula; (c) produção de diários e notas de campo; (d) análise do planejamento e dos recursos utilizados na sala de aula pelo professor; (e) análise de cadernos de alunos para observar o processo de sistematização da linguagem escrita. A geração de dados aconteceu em uma escola municipal situada no Vale do Itajaí, que atende aproximadamente trezentos alunos do segmento da educação infantil aos anos finais. Na escola, há dois segundos anos: um no período matutino e outro no período vespertino. Por opção da professora regente, foi observada a turma do período vespertino. Os dados para a pesquisa foram gerados no ano de 2015, com duração de duas semanas, em uma turma composta por vinte e dois alunos e uma professora efetiva da rede de ensino, cursando o Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) como professora alfabetizadora por três anos e lecionando há mais de cinco anos no ciclo de alfabetização. A seguir, traremos um breve trecho das análises da pesquisa sobre um dos recursos pedagógicos utilizados pela professora no ambiente escolar: a literatura infantil.
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Destino de viagem: a prática sistematizada da leitura de livros de literatura infantil A professora, nos dias em que foram gerados os dados da presente pesquisa, realizou a leitura de livros da literatura infantil para os alunos. Vale salientar que compreendemos literatura infantil como um conjunto de obras que são destinadas ao público infantil nas quais há conteúdos para brincar ou instruir. Entretanto, vale ressaltar que a obra destinada a crianças é escrita por um adulto o qual tem suas intencionalidades. Conforme salienta Meireles (1984, p. 29): De modo que, em suma o “o livro infantil”, se bem que dirigido à criança, é de invenção e intenção do adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais úteis à formação de seus leitores. E transmite-os na linguagem e no estilo que adulto igualmente crê adequados à compreensão e ao gosto do seu público.
Ao observar a sala de aula, percebemos que, no fundo, há um espaço para que os alunos tenham acesso aos livros e um tapete para que possam sentar no momento da leitura realizada pela professora. Conforme as figuras 2 e 3, os alunos têm acesso aos livros expostos, cujas capas estão organizadas viradas para frente, facilitando a visualização na hora da leitura. A porta da sala é um suporte para os diferentes gêneros discursivos (Bakhtin, 2011), pois possibilita a familiarização com suas diferentes dimensões. Os estudantes interagem com os diferentes gêneros (poema, mapa, histórias em quadrinhos, gráfico, bilhete, convite) fixados na porta da sala de aula, conforme registros na figura 11 e em um trecho do diário de campo que segue: “Para minha surpresa, os alunos param em frente à porta para lerem os textos escritos adesivados na porta da sala de aula. Muitos leem baixo e outros apontam para o texto e leem alto para os colegas” (Diário de Campo, 19/10/2015).
1
A autorização para o uso de imagem consta no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Salientamos que a imagem das crianças foi preservada e que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética na Pesquisa em Seres Humanos, vinculado à FURB, conforme número do parecer 1.335.736.
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Figura 1: Porta da sala de aula
Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.
A porta da sala de aula é utilizada como um “suporte de texto” (Marcuschi, 1996), conceito que será aprofundado na seção seguinte, possibilitando aos alunos uma interação com esses gêneros discursivos dispostos de uma maneira acessível e visível no ambiente escolar. A professora, ao ter o gesto de escolher esses gêneros que circulam na escola, indica uma intencionalidade pedagógica, promovendo e mediando possíveis momentos de leitura e reconhecimento de textos. Durante a leitura do livro, são constituídos elementos visíveis nesse evento; os participantes que “interagem com materiais escritos”, o ambiente formado pelas “circunstâncias físicas imediatas”, os artefatos que são compostos pelos “materiais utilizados nesse processo” e as atividades que são “ações praticadas pelos participantes” (Heinig, 2013, p. 27). Sendo assim, compreendemos a aula como um evento de letramento (Hamilton, 2000). No momento da leitura do livro, os alunos, em roda, sentam no tapete, disposto no fundo da sala, para escutar a história do livro, sendo uma prática diária da professora. Lerner (1996) reitera que as atividades realizadas semanalmente ou quinzenalmente, de forma sistemática, oferecem a opor231
tunidade de interagir com um tipo determinado de texto, apropriado para comunicar certos aspectos do comportamento leitor. O ambiente, no qual a professora conta as histórias, também é utilizado pelos alunos para leituras individuais ou para momentos de jogos. Ao término de cada atividade proposta, os alunos escolhem um livro da estante para realizarem a leitura silenciosa que pode ser na sua carteira ou no tapete no fundo da sala. Nesses momentos, a professora não precisa direcionar os alunos para escolherem os livros, pois essa atividade rotineira propicia a sua participação, registrada em um trecho do diário de campo: “Ao término da atividade proposta pela docente, o aluno tem autonomia para escolher um livro e sentar no tapete para aguardar os outros que ainda não finalizaram as atividades solicitadas” (Diário do Campo, 19/10/2015). Figura 2: Cantinho da leitura: apresentação dos livros
Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras. 232
Figura 3: Cantinho da Leitura: espaço disponível na sala de aula
Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.
A situação 12, a seguir, ocorrida no primeiro dia da geração de dados, indica que a escolha da leitura para esse momento de contação da história, realizado no tapete com os alunos em roda, foi objetivada pela temática animais, conteúdo que foi abordado pela professora posteriormente.
Situação 1: Leitura sobre a temática animais 1. P: Essa semana nós vamos voltar a falar sobre os animais. Na semana que vem, nós vamos lá conhecer o zoológico, ver eles de pertinho e a gente tem que relembrar algumas coisas que ficaram, tá? ((Nesse momento, a professora está se referindo ao passeio que farão ao zoológico, localizado em um município vizinho. Os alunos estão sentados em roda no tapete localizado no fundo da sala)). E é por isso que a gente, nesses quinze, um mês, vamos falar dos animais. Então, todo dia eu vou ler uma história sobre... Algumas eu já li, outras eu não li, algumas vocês mesmos leram e quem quiser trazer alguma coisa sobre, algum livro que tem em casa, pode ser qualquer tipo, qualquer história, qualquer formato, pode trazer tá::? Só que a gente tem um livro do Rafael pra ler ainda, a gente vai ler mais pra frente e vai aproveitar esses dias, então, para ler sobre os animais. Eu trouxe hoje, que eu vou ler com vocês, que é bem:: legal! Eu quero que vocês prestem atenção, que a gente vai falar sobre ele, tá bom? ((O aluno Pedro estava com a mão levantada e inclinada para frente para que a professora o visse e permitisse sua fala)) Fala, Pedro...
2 Optamos pelo termo “situações”, por abarcar um conjunto de elementos para compor esse momento internacional. Salientamos que “o interagir uns com os outros, face a face, é construído continuamente, é uma aprendizagem, um processo complexo e inacabado” (CAJAL, 2001, p. 128).
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2. Pedro: Mas e aquele livro que, que... 3. P: Eu parei, porque aquele livro começou a ficar um pouco difícil, daí, depois a gente retoma ele, eu faço um resuminho, porque ele era numa linguagem um pouco difícil e alguns não estavam prestando atenção. Era o “Pequeno Príncipe”, só que alguns, sabe, a leitura não estava fluindo, sabe, quando não dá certo a gente tem que parar, sabe? Mas a gente retoma ele um outro dia, mais para frente um pouquinho. ((Nesse momento, a professora justifica a interrupção da leitura do livro “O Pequeno Príncipe”, olhando para a pesquisadora)) Então::, a história que eu trouxe hoje é “Bichos são todos bichos”. Quem já conhece a história?
Entre as condições de produção do enunciado, no contexto escolar, como é possível verificar no trecho transcrito, está a retomada do projeto sobre os animais, pois o grupo iria finalizá-lo com um passeio de estudo. Esse passeio aconteceu na semana seguinte ao episódio, com a participação das famílias ao visitarem o zoológico em um município vizinho. A professora, que leciona para essa turma pelo segundo ano, retoma em sua fala nós vamos voltar a falar sobre os animais (turno 1), conteúdos referentes ao que iniciou no 1º ano. Para abordar a temática, aproveitou a literatura infantil, que é uma atividade constante (Lerner, 1996) contemplada pela professora, já que, diariamente, realiza a leitura de livros para os alunos, conforme trecho da entrevista, em que a docente afirma a importância da literatura infantil em sua ação docente. Assim, a literatura infantil, todos os dias, ela é contemplada, todos os dias, independente do que aconteça, ela sempre é trabalhada, às vezes, acontece um dia, por exemplo, que tem Arte, muita coisa num dia só e eu tô pouco com eles, de repente, aquela literatura já vai ser o suporte para o trabalho, mas independente disso, todo dia tem leitura deleite, todo dia tem a parada, o momento que é aquela rotina calendário, que dia é hoje, que dia da semana hoje. Enfim, aquela rotina e, junto com ela, a literatura (Entrevista, 11/12/2015).3
Nesse enunciado, a professora afirma que de repente aquela literatura já vai ser um suporte para o trabalho, referindo-se aos livros de literatura infantil selecionados para ler aos alunos atrelados a uma temática que subsidiará o planejamento da professora. Por isso, na situação 1 (leitura sobre 3 Excerto do enunciado produzido a partir do questionamento: Nas situações interacionais, então, eu percebi que tu trabalhas com a literatura infantil. E como ela é contemplada no teu planejamento?
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a temática animais), o dizer da professora: na semana que vem, nós vamos lá conhecer o zoológico, ver eles de pertinho e a gente tem que relembrar algumas coisas que ficaram, tá? (turno 1), referindo-se ao passeio de estudo, salienta a utilização do recurso pedagógico, literatura infantil, como um instrumento material didático para a temática que será abordada em seu planejamento. Essa escolha pedagógica se distancia da sua fala na entrevista, mencionando que todo dia tem leitura deleite. Essa leitura, intitulada deleite, é reforçada nas formações do PNAIC, Programa do qual a professora participa. Isso sinaliza que a professora se constitui pelas diversas vozes sociais no seu campo/esfera (Bakhtin, 2011) de participação na construção de práticas pedagógicas, há um revozeamento das vozes de autoridade que produziram os materiais de formação e dos formadores. Quanto aos materiais, os cadernos de estudo, utilizados nas formações pelos professores alfabetizadores, apontam a leitura deleite, como a “[...] leitura de textos literários, com conversa sobre os textos lidos, incluindo algumas obras de literatura infantil, com o intuito de evidenciar a importância desse tipo de atividade” (Brasil, 2012, p. 28). Essa prática, que já era utilizada pela professora, tornou-se rotineira (Lerner, 1996) por meio das formações, para que os alunos fossem incentivados à prática da leitura. Ao analisarmos as situações interacionais nas quais a literatura infantil está presente, depreende-se uma prática que, mesmo sem a intencionalidade de ser um artefato para abordar um tema ou conteúdo, torna-se escolarizada, pois, embora implicitamente, há uma intencionalidade na ação da professora. Para Soares (2003, p. 92), a palavra escolarização é: [...] substantivo derivado do verbo escolarizar, que é um verbo transitivo direto, isto é, exige um complemento; este pode ser de duas naturezas: ou pode designar um ser animado – escolarizar alguém, escolarizar pessoas, ou pode designar um ser inanimado, uma ‘coisa’, um conteúdo – escolarizar um conhecimento, uma prática social, um comportamento.
Nesse sentido, a leitura do livro de literatura infantil passa a ser um conhecimento escolarizado pelo professor com objetivos pré-determinados, almejando a aprendizagem do aluno. A escola, muitas vezes, pretende es235
colarizar um conhecimento, um conteúdo ou uma prática social, pois não são vivenciadas de uma forma espontânea. A partir do momento em que os eventos de letramento são planejados com o objetivo de promover uma aprendizagem, deve-se ter cautela, pois de certa forma, a escola “[...] automatiza as atividades de leitura e de escrita em relação às suas circunstâncias e usos sociais, criando seus próprios e peculiares eventos e suas próprias e peculiares práticas de letramento” (Soares, 2003, p. 107). A intencionalidade da professora, ao escolher a leitura em consonância com seu objetivo proposto para a aula, denota uma intenção de propiciar aos alunos um movimento para sistematização da linguagem escrita. Para tanto, a professora escolhe um livro registrado na figura 4. Figura 4: Capa do livro da história contada pela professora
Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.
Na situação 1, o diálogo entre professor e aluno é ponto de partida para o início da leitura do livro. No turno 1, por meio da fala da professora: então todo dia eu vou ler uma história sobre... Algumas eu já li, outras eu não li, algumas vocês mesmos leram e quem quiser trazer alguma coisa sobre, algum livro que tem em casa, pode ser qualquer tipo, qualquer história, qualquer formato, pode trazer tá::, os alunos são convidados a participarem desse momento de leitura. A capa do livro é mostrada para a turma (figura 4), e risos começam a surgir entre os alunos, como mencionado no trecho do diário de campo: “A cada momento que a professora realiza a leitura das 236
frases, os alunos riem muito, pois percebem que o jogo das palavras utilizadas pelo autor faz um livro engraçado. Nesse momento, eles se cutucam” (Diário de Campo, 19/10/2015). Durante o período da leitura da história, os alunos manifestam suas alegrias, participam, brincam com os sentidos atribuídos na leitura, promovendo atitudes responsivas ativas (Bakhtin, 2004). Todas as aprendizagens propiciadas pela leitura de histórias “[...] são de natureza sociocultural, portanto, não ocorrem espontaneamente como decorrência do desenvolvimento biológico, mas resultam da participação de crianças em práticas socialmente circunscritas, em que ouvem histórias, lidas ou contadas, com a mediação do adulto” (Brandão; Rosa, 2011, p. 35). Nesse caso, a mediação foi propiciada por meio da leitura do adulto, na qual o jogo de palavras ficou perceptível para os alunos, pelo ritmo e entonação utilizados pela professora, ocasionado uma resposta de risos pelos alunos. A situação 1 prosseguiu, partindo do questionamento da professora, após o término da história:
4. 5. 6. 7. 8. 9.
P: Va: P: Va: P: Va:
E aí, gostaram? Sim::. Que legal, né::? Sobre o que fala essa história? Bichos::. Animais::. De que forma ela foi escrita? Rimas::
A partir do questionamento da professora (turno 6), os alunos elaboram as suas hipóteses, mediante “estratégias de compreensão leitora” (Solé, 1998) ensinadas pela professora, a fim de sistematizar a prática da leitura. Essas estratégias “[...] são procedimentos de caráter elevado, que envolvem a presença dos objetivos a serem realizados, o planejamento das ações que se desencadeiam para atingi-los, assim como sua avaliação e possível mudança” (Solé, 1998, p. 69). Nesse sentido, a ação docente da professora é fundamental para estabelecer “[...] pontes conceituais entre o que o leitor já conhece e o que se deseja que aprenda e compreenda” (Solé, 1998, p. 31). Já a outra pergunta (turno 8) conduz os alunos a analisarem os recursos estilísticos utilizados pelo autor, o que indica uma concepção de língua em uso. Dessa maneira, 237
a professora aproxima leitura e escrita, favorecendo a não dicotomização dos eixos do ler e escrever e como também faz a reflexão oralmente. Esses gestos apontam para uma sistematização, pois exigem uma tomada de consciência sobre a constituição do texto escrito. No movimento da sala de aula, “[...] como um evento social, a vida ali construída na interação entre alunos e professores [...]” (Cajal, 2001, p. 126), presencia-se um momento, registrado no diário de campo e nas figuras 5 e 6, a seguir. A aluna sentada ao meu lado retira da mochila uma agenda, que não é a escolar, e começa a listar títulos de livros que estão na estante ao fundo da sala. Questiono o porquê da lista e ela responde que são livros que ainda irá ler, porque gosta muito de ler livros e a lista é para não esquecer os títulos das futuras leituras (Diário de Campo, 20/10/2015). Figura 5: Agenda com o título dos livros “Achei” e “ Cartum” registrados pelo aluno
Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras. 238
Figura 6: Capa dos livros listados pelo aluno
Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.
A aluna, ao registrar os títulos dos livros que pretende ler e ao responder à pergunta realizada pela professora na continuidade da situação 1, de que forma ela foi escrita? (turno 8), destaca que leitura e escrita se relacionam permanentemente. Isso reforça a compreensão de que, para desenvolver projetos para a produção de textos, é necessário um intenso trabalho de leitura (Lerner, 1996), indicando a relação entre a leitura e a escrita. Percebemos, nessa situação, que o objeto de ensino se transformou em objeto de aprendizagem, transpondo uma prática escolarizada. Para Geraldi (1997, p. 166), a leitura é integrada à produção em dois momentos, “o que se tem a dizer”, pela responsividade possibilitada pela “contrapalavra do leitor à palavra do texto que se lê” e as “estratégias do dizer”, no qual o locutor/autor de constitui com tal.
A viagem não chegou ao seu fim: novos lugares para percorrer Este trabalho aborda análises sobre a utilização do recurso do livro de literatura infantil em uma turma do ciclo de alfabetização. Esse recurso utilizado pela professora ocupa um espaço significativo em suas ações pedagógicas. No período da geração dos dados, percebemos que o livro, muitas 239
vezes, estava atrelado a alguma temática a ser abordada no planejamento das aulas. Compreendemos que, no eixo da leitura, alguns artefatos, como o livro de literatura infantil, foram contemplados diariamente na dinâmica da sala de aula e que esse recurso ocupa um espaço significativo nas ações pedagógicas da professora. Os alunos demonstraram sua familiarização com a prática da leitura de livros de literatura infantil, interagindo e participando desses momentos. Essas situações de interação foram favorecidas pela leitura da professora dos livros de literatura infantil, proporcionando condições para sua sistematização. Nos momentos de leitura, os participantes refletiam, questionavam, perguntavam sobre o objeto de ensino, apontando para uma possível sistematização da linguagem escrita. Para esse processo discursivo de sistematização ser consolidado, os gestos didáticos são ferramentas fundamentais. Quando nos direcionamos para a sala de aula, o professor normalmente escolhe um determinado objeto de ensino o qual será sistematizado. Para essa escolha, alguns questionamentos devem emergir, como, por exemplo, para quê e como, além de estabelecerem-se objetivos didáticos e pedagógicos para transformarem-se em objeto de aprendizagem. Para que a sistematização se estabeleça, é necessária uma relação entre o objeto do conhecimento, o professor e o aluno. Percebemos um movimento de sistematização quando os alunos registravam espontaneamente títulos de livros para futuras leituras, ou mesmo quando interagiam com os gêneros discursivos fixados no suporte (Marcuschi, 1996) porta, nos momentos que acontecem fora da sala de aula, como: o recreio e na entrada e saída da escola. Sinalizamos que, a partir do momento em que esses artefatos e atividades são mobilizados na dinâmica da sala de aula, tornam-se inevitavelmente, como afirma Soares (2003), práticas escolarizadas. A professora tem uma intencionalidade pedagógica com uma finalidade específica de transformar esse objeto de ensino em objeto de aprendizagem, entretanto, esse letramento ensinado pode se tornar um letramento adquirido fazendo, então, parte das práticas letradas dos alunos em outros campos/esferas. Enfim, a pesquisa aponta para a continuidade dos estudos referentes à sistematização da linguagem escrita, pois os dados gerados possibilitaram 240
futuras análises e novos horizontes. Ainda temos muito a percorrer nessa caminhada da pesquisa, pois “[...] escrever é o começo dos começos. Depois é aventura” (MARQUES, 2011, p. 31). Que esse começo seja entrelaçado por descobertas e novos lugares a conhecer.
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242
11 Jogos virtuais para desenvolver compreensão leitora e consciência textual de crianças de 2º ano inicial Vera Wannmacher Pereira Leandro Lemes do Prado
Introdução Este texto está vinculado a um projeto voltado para alunos de 2º ano inicial, com apoio da FAPERGS e do CNPq, e a estudos e pesquisas que vêm sendo realizados com destino a docentes de anos iniciais (Pereira, 2009a, 2009b, 2010a, 2010b; Pereira; Scliar-Cabral, 2012). A temática aqui desenvolvida mantém a consciência textual e compreensão leitora, no contexto do aprendizado e do ensino da leitura, com foco sobre suas dificuldades e necessidades, formulando o problema - em que medida jogos virtuais de consciência textual e compreensão leitora contribuem para o desenvolvimento de alunos de 2º ano inicial em relação a esses aspectos? O problema assim definido encaminha o objetivo geral do projeto de contribuir para os estudos psicolinguísticos com suporte na tecnologia virtual sobre consciência textual e compreensão de textos e para a identificação de caminhos linguístico-pedagógicos que atendam às necessidades de superação das dificuldades no aprendizado e no ensino da leitura. Considerando o problema e o objetivo geral, o estudo é delineado em perspectiva integradora – ensino, pesquisa e extensão; Psicolinguística, Estudos do Texto, Computação e Educação; Universidade e comunidade escolar e teoria e prática. Com base nesse delineamento, o projeto prevê, para 243
o ensino, geração e aplicação de materiais virtuais de ensino da leitura; para a pesquisa, uso de pré e pós-teste de consciência textual e de compreensão de textos (alunos) e, para a extensão, divulgação dos processos e resultados por meio de um e-book e de um curso de socialização destinados a professores de anos iniciais. Para explicitação do trabalho realizado, são apresentados a seguir, sucessivamente, o fundo teórico, a metodologia e alguns dos resultados obtidos, no que se refere ao desempenho dos alunos em compreensão e consciência textual.
Fundo teórico A consciência humana vem sendo objeto de curiosidade popular e científica, gerando reflexões, convicções e definições ao longo dos tempos. No entanto, é de grande complexidade toda tentativa de caracterização de um estado consciente. As atitudes científicas do homem ou pelo menos a busca de entendimentos explicáveis têm produzido historicamente concepções possíveis para aquele momento, para aquele lugar. Constituem-se em importantes referências as concepções sobre consciência desenvolvidas por Baars (1993), Bachler (2006) e Dehaene (2009). Desenvolvida por Baars, tem-se a teoria do espaço global da consciência (global workspace), segundo a qual os conteúdos conscientes estão contidos num espaço global: uma espécie de processador central usado para mediar a comunicação com um conjunto de processadores especializados não conscientes. Quando esses processadores especializados precisam transmitir informação para o resto do sistema, mandam informação para o espaço global que atua como uma espécie de quadro comunitário, acessível a todos os outros processadores (Teixeira, 1997). Bachler (2006) apresenta as propriedades da consciência com base em Chafe: tem um foco circundado por informações que proporcionam um contexto, é dinâmica, tem um ponto de vista, necessita de uma orientação. Consiste no traço central da mente, o que significa que ela é indispensável para compreender qualquer processo cognitivo, sendo que sua estrutura intencional a vincula ao mundo. No caso da consciência sobre a linguagem, é fundamental a significação das palavras, das frases e dos discursos. 244
Dehaene (2009) relata que em seus experimentos evidencia-se o fato de que, apenas a partir do tempo de 270-300 milissegundos, é possível ver diferença entre o processamento consciente e o inconsciente. Isso ocorre a partir do momento em que diferentes áreas do cérebro entram em sincronia. Desse modo, a consciência não é realizada por uma área isolada do cérebro, mas pela sincronia entre muitas regiões, a partir de um tempo de trabalho, conforme indicado acima. Essas concepções de consciência (Dehaene, 2001, 2007) são importantes para tratar especificamente da consciência linguística (Spinillo; Mota; Correa, 2010). Pode ser então explicitada como apresentando as seguintes propriedades: ativa em sincronia com diversas áreas do cérebro; tem um foco linguístico específico; utiliza informações periféricas a esse foco – o contexto; é intencional na busca da análise de algum ponto específico. A consciência linguística, que aqui interessa especialmente por seu vínculo com a compreensão do texto, pode estar voltada para o conhecimento da própria linguagem em todos os modos de constituição e organização, estando predominantemente associada à memória declarativa e pode estar direcionada para o manejo desses elementos linguísticos, associando-se especialmente à memória procedimental. Nesse entendimento, a consciência linguística (Gombert, 1992) pode focalizar determinado segmento linguístico, considerando sempre o contexto dos demais segmentos. Essa condição faz com que ela seja categorizada de acordo com cada um desses segmentos em foco. A consciência fonológica tem como foco os fonemas (consciência fonêmica) e as sílabas (consciência silábica) que constituem a estrutura da língua e as propriedades entonacionais e rítmicas da língua em uso. Pode voltar-se para o segmento inicial, para o segmento medial ou para o segmento final. Pode ainda ter em vista processos de supressão, inserção, substituição, comutação, separação e junção. A consciência morfológica tem como focos: o vocábulo – limites do seu começo e fim, a estrutura (constituintes lexicais e gramaticais), os processos flexionais (gênero, número, pessoa/número, tempo/ modo) e os processos derivacionais. A consciência sintática direciona seu olhar para a frase internamente: seu limite (início e final da frase), estrutura da oração (constituintes e ordem), estrutura do período (constituin245
tes e ordem), processos de construção (coordenação/subordinação/misto, paralelismo, combinações entre as palavras) e pontuação. A consciência léxico-semântica abrange o léxico mental, o significado e o sentido; o léxico mental está vinculado à memória lexical. O significado consiste na significação básica que os membros de uma mesma comunidade atribuem a uma palavra, incluindo a polissemia; está arquivado na memória semântica. O sentido é a parte mais ativa no processo de leitura, consistindo numa construção ad hoc pelo leitor, dependendo do cruzamento entre texto, conhecimentos prévios e significação básica e estando associado à capacidade de inferências do leitor. A consciência pragmática volta-se para a situação de uso da língua – o texto é considerado do ponto de vista do enunciador/ receptor, do objetivo, do suporte comunicativo, do momento e espaço da comunicação. A consciência textual focaliza o texto em suas relações textuais internas e suas relações com o contexto. Sendo essa consciência um dos eixos deste projeto, está mais densamente desenvolvida a seguir. Conforme Gombert (1992), a consciência textual focaliza a superestrutura, a coerência e a coesão do texto. A superestrutura envolve os traços que definem o texto como um determinado gênero, contribuindo para isso a situação comunicativa (autor, leitor, tempo, espaço, suporte) e o modo de organização – moldura, componentes constitutivos (unidades linguísticas), sequências dominantes – narrativa, descritiva, argumentativa, injuntiva, expositiva (Adam, 2008), traços linguístico-estruturais (próprios dos diversos planos linguísticos). A coerência se refere predominantemente ao conteúdo e suas relações internas e com o entorno, que podem ser explicitadas com base em Charolles (1978) – a manutenção do tema, indicando que o texto deve girar em torno de um eixo temático; a progressão do tema, indicando que o tema, embora precisando ser mantido, deve, ao mesmo tempo, progredir, avançar, se desenvolver; a ausência de contradição interna, indicando que não pode haver contradições temáticas ou linguísticas (emprego dos tempos e das pessoas verbais); a relação com o mundo, indicando que as afirmações têm que ter vínculo com a realidade – de verdade no caso do texto não ficcional e de verossimilhança no caso do texto ficcional. A coesão consiste nos liames linguísticos do texto que contribuem para sua amarração e, assim, para a construção de seus sentidos. Apresen246
ta-se em duas dimensões – a coesão lexical e a coesão gramatical (Halliday; Hasan, 1976). A coesão lexical realiza-se por meio de relações entre vocábulos lexicais – substantivos, adjetivos e verbos. Essas relações constituem-se em um conjunto de regras: repetição de palavra – com frequência ocorre com o substantivo quando se constitui em palavra-chave; sinonímia ou quase-sinonímia – consiste na substituição vocabular para o mesmo referente, evitando a repetição excessiva e favorecendo a evolução do conteúdo; superordenado – estabelece relação de inclusão entre hiperônimo e hipônimo; associação por contiguidade – consiste na aproximação de vocábulos de um mesmo campo semântico. A coesão gramatical ocorre por meio de relações entre vocábulos gramaticais – preposição, conjunção, advérbio, pronome, artigo, numeral. Essas relações se expressam em um conjunto de regras: referenciação – retomada de elemento linguístico (referente) por meio de pronomes (referência); elipse – retomada vazia de um referente, podendo ser de uma palavra, de um segmento, de uma frase, de um parágrafo...; conjunção – relação de conexão estabelecida por elementos gramaticais: de adição, de tempo, de causa, de oposição, de continuidade. Tendo a consciência textual como ponto de atenção o texto, é preciso ter presente que ele é organizado em planos linguísticos que se inter-relacionam e se amarram – o fônico, o morfológico, o sintático, o léxico-semântico, o pragmático e o textual. Desse modo, a observação da superestrutura, da coerência e da coesão implica a observação de todos esses planos e de todas as unidades linguísticas constitutivas do texto. Isso significa que a consciência textual direciona sua atenção para a superestrutura, a coerência e a coesão, mas no trânsito por todos os planos linguísticos e as unidades que os constituem. Considerando a natureza da consciência textual, acima explicitada, e da compreensão leitora como processamento cognitivo, como exposto a seguir, evidenciam-se seus vínculos. Nessa acepção, ler significa compreender (Colomer; Camps, 2002), sendo para isso necessário realizar fundamentalmente dois processamentos simultâneos – bottom-up e top-down (Scliar-Cabral, 2008, 2009). 247
O processamento bottom-up caracteriza-se como ascendente, fazendo o movimento da informação textual em direção à cognição. Constitui-se numa leitura, minuciosa, vagarosa, em que todas as pistas visuais são utilizadas. É um processo de análise e de síntese em que, após o reconhecimento da palavra escrita, vão sendo construídos os sentidos, gradativamente, de palavras, frases, orações, até a macroestrutura, graças ao cruzamento com as informações provindas do processamento top-down. O processo top-down caracteriza-se como um movimento que provém dos conhecimentos prévios armazenados nas várias memórias, sejam eles linguísticos, ou extralinguísticos, baseando-se na concepção antecipatória da leitura, segundo a qual são utilizadas simultaneamente as informações linguísticas do texto e os conhecimentos prévios do leitor. O processo cognitivo de leitura se altera (Goodman, 1991) a partir de algumas variáveis: objetivo da leitura, conhecimento prévio do conteúdo, condições de produção do texto, tipo de texto e estilo cognitivo do leitor. Tais variáveis determinam o processo de leitura – ascendente ou descendente. Smith (2003) considera que a informação não visual é de grande importância, uma vez que o significado, que é indispensável para o leitor, está não só nas marcas deixadas pelo autor no texto, mas nos conhecimentos prévios sobre o assunto e sobre a linguagem que o leitor traz e que podem fazê-lo perceber determinados aspectos do texto. Nesse sentido, os dois movimentos são utilizados pelo leitor, dependendo da situação que se apresenta durante a leitura, envolvendo o próprio texto, o objetivo da leitura e o leitor (conhecimentos prévios, motivação, estilo cognitivo). O sucesso do desempenho na compreensão da leitura está na escolha do processo mais eficiente para dar conta dessa situação, em que variáveis se inter-relacionam e influenciam as decisões do leitor. Considerando os fundamentos aqui expostos, desenvolver a compreensão da leitura na sala de aula supõe assumi-la como processo cognitivo, o que exige dar um lugar especial ao texto, ao seu funcionamento linguístico e à consciência do leitor sobre ele, isto é, à sua consciência textual, donde a importância da seleção dos materiais de leitura. Tem havido historicamente o entendimento de que o trabalho de leitura escolar deve estar apoiado no texto do livro didático, ficando submersas 248
suas propriedades. Isso começou a sofrer algumas mudanças a partir do desenvolvimento de estudos sobre gêneros e tipos textuais (Adam, 2008), o que, dado o longo percurso histórico, pode ser considerado recente. O desenvolvimento de pesquisas sobre portadores de texto também trouxe sua contribuição, oportunizando a ampliação da concepção de material de leitura para o material escrito que está na sociedade, que está imerso numa situação comunicativa, tendo uma função social. Nesse sentido, o entendimento de leitura também se amplia de modo a cobrir todas as manifestações escritas. No caso do aprendizado da leitura, mais especificamente nos anos iniciais, constituem-se em materiais desejáveis para seu ensino os gêneros textuais como calendário, convite, cartão, mapa, diário, embalagem, agenda telefônica, agenda de aniversariantes, etiqueta, álbum de figurinhas, instruções, poema, adivinha, curiosidade, trava-língua, cantiga, anedota, fábula, conto, entre outros. Quanto às estruturas (tipos) textuais, as mais desejáveis são, nessa etapa de aprendizagem, a narrativa, a descritiva, a injuntiva, cabendo lugar também para a expositiva. Na concepção aqui exposta, o aprendizado da leitura está vinculado ao desenvolvimento da consciência linguística do aluno, com ênfase na consciência textual, o que supõe a reflexão sobre as pistas fônicas, mórficas, sintáticas, semânticas, pragmáticas e textuais deixadas pelo autor no texto (Smith, 2003). Isso indica que a exploração linguística do texto e o desenvolvimento da consciência abrem o caminho para a compreensão da leitura (Pereira, 2010b). Constituem-se também como referência as relações entre leitura e escrita. Há uma convicção, que está até no senso comum, de que a leitura é importante para a escrita. Na escola, isso se traduz usualmente da seguinte forma: o professor oferece um texto para que os alunos realizem a leitura – uma fábula, por exemplo. Após uma série de atividades de compreensão, propõe a escrita de um texto – por exemplo, um comentário sobre o conteúdo da notícia lida. Os estudos psicolinguísticos mostram, no entanto, que a escrita deve ser realizada no mesmo gênero textual lido, uma vez que as atividades de desenvolvimento da consciência textual, se realizadas no texto tipo/gênero A, devem encaminhar também para escrita de texto tipo/gênero A. 249
Para o trabalho escolar, cabe, então, observar sempre a relação entre a leitura e a escrita, estando no mesmo tipo/gênero de texto a amarração entre ambos os processos. Esse entendimento pode ser assim exemplificado: um trabalho de leitura com uma fábula implica, durante o processo de leitura, o exame das marcas linguísticas desse texto favorecedor do desenvolvimento da consciência do leitor e, consequentemente, a escrita também de uma fábula. Em suma, na concepção aqui exposta, o desenvolvimento da compreensão leitora está vinculado ao desenvolvimento da consciência textual do aluno (Pereira, 2010; Pereira; Scliar-Cabral, 2012). Isso supõe a reflexão sobre a linguagem do texto no que se refere à estrutura, à coerência e à coesão, com apoio em suas pistas fônicas, mórficas, sintáticas, semânticas, pragmáticas e textuais deixadas pelo autor no texto, confrontando-as com os conhecimentos prévios armazenados na memória, o que, por sua vez, supõe a reflexão sobre o próprio processo de leitura realizado (Gombert, 1992; Smith, 2003).
Metodologia e resultados Com apoio no fundo teórico exposto anteriormente, o estudo aqui relatado desenvolveu atividades de ensino, pesquisa e extensão. As atividades de ensino consistiram em jogos virtuais gerados em HTML, abrangendo 16 módulos, cada um constituído de tarefas para desenvolvimento da compreensão e da consciência textual, com foco em um gênero textual - módulo 1 – trava-língua; módulo 2 – cantiga; módulo 3 – aviso; módulo 4 – convite; módulo 5 – cartão; módulo 6 – bilhete; módulo 7 – instrução; módulo 8 – científico; módulo 9 – quadrinhos; módulo 10 – quadrinhos; módulo 11 – fábula; módulo 12 – fábula; módulo 13 – história; módulo 14 – história; módulo 15 – anedota; módulo 16 – para descobrir. Esses módulos foram aplicados na sequência elencada acima, em oficinas na escola selecionada. Os sujeitos, 20 alunos de 2º ano inicial, com competência para decodificação, mas ainda não plena, foram orientados 250
pelos bolsistas do projeto, com apoio da professora da turma. Cabia aos aplicadores das oficinas orientarem com precisão o trabalho e estimularem os processos metacognitivos de reflexão linguística (explicitação do processo de pensamento). As atividades de pesquisa consistiram na aplicação de pré-teste e pós-teste de compreensão e consciência textual, antes do início das oficinas e após seu término, respectivamente. Os itens dos instrumentos utilizados no pré-teste e pós-teste envolviam conteúdos e procedimentos correspondentes aos dos módulos de ensino e foram elaborados pelos pesquisadores, mantendo o mesmo formato de atividades, porém com textos diferentes no pré e no pós-teste. Os dados coletados por meio desses instrumentos foram organizados de modo a permitir análises, considerando o problema e o objetivo da pesquisa. A tabela 1, apresentada adiante, evidencia os dados referentes à compreensão e à consciência, por sujeito e em sua totalidade. No que se refere à compreensão, percebe-se que os 20 sujeitos apresentaram escores mais elevados no pós-teste em relação ao pré-teste, ocorrendo o crescimento na faixa entre 3 e 16 pontos. Cabe registrar que o crescimento menor nem sempre está relacionado a um desempenho melhor no pré-teste. O escore total do grupo evidencia um crescimento de 154 pontos, o que corresponde a um percentual de 23,33%. No que tange à consciência textual, os 20 sujeitos evidenciaram crescimento na relação pré e pós-teste, ocorrendo o crescimento na faixa entre 48 e 169 pontos. Cabe também registrar aqui que o crescimento menor nem sempre está ligado a um desempenho melhor no pré-teste. O escore total do grupo evidencia um crescimento de 1950 pontos, equivalendo a 26,85%. Avaliando os dados da compreensão e da consciência comparativamente, observa-se que houve apropriação de conhecimentos nos dois tópicos em investigação, cabendo destacar uma certa correspondência entre os dois desempenhos, fortalecendo a ideia de que são tópicos interligados (consciência 26,85% e compreensão 23,33%).
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Tabela 1: Compreensão e consciência textual: pré-teste e pós-teste, por sujeito e total Sujeito COMPREENSÃO CONSCIÊNCIA PRÉ PÓS CRESCIMENTO PRÉ PÓS CRESCIMENTO 1 17 29 12 137 284 147 2 27 31 4 235 324 89 3 12 27 15 148 228 80 4 25 32 7 253 319 66 5 13 22 9 109 246 137 6 27 33 6 270 341 71 7 12 20 8 127 210 83 8 17 29 12 168 299 131 9 22 32 10 206 361 155 10 26 31 5 230 309 79 11 28 33 5 284 332 48 12 25 28 3 229 309 80 13 26 31 5 244 349 105 14 9 12 3 87 136 49 15 24 32 8 202 309 107 16 8 12 4 83 131 48 17 8 17 9 54 185 101 18 10 26 16 98 267 169 19 10 14 4 74 141 67 20 8 17 9 64 172 108 TOTAL 354 508 154 3302 5252 1950
Fonte: Dados da pesquisa.
Comentários finais O presente artigo decorre de projeto desenvolvido com apoio da FAPERGS e do CNPq. Teve como norte a pergunta de pesquisa – “em que medida jogos virtuais de consciência textual e compreensão leitora contribuem para o desenvolvimento de alunos de 2º ano inicial em relação a esses aspectos?” e um objetivo a alcançar – “contribuir para os estudos psicolinguísticos com suporte na tecnologia virtual sobre consciência textual e compreensão de textos e para a identificação de caminhos linguístico-pedagógicos que atendam às necessidades de superação das dificuldades no aprendizado e no ensino da leitura”. Nessa configuração, o estudo foi 252
realizado, contando, para isso, com a geração de jogos virtuais para alunos de 2º ano inicial. Os dados coletados e apresentados anteriormente permitem o reconhecimento de que as oficinas realizadas com os jogos gerados contribuíram para o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual dos alunos que delas participaram, pois houve crescimento na relação pré-teste e pós-teste. Esse reconhecimento, por sua vez, indica o estudo desenvolvido como uma contribuição para a Psicolinguística, na medida em que evidenciou com clareza a possibilidade de aplicação de fundamentos teóricos sobre leitura no ensino de crianças utilizando tecnologia virtual, o que fortalece sua natureza interdisciplinar. Tendo o estudo se voltado para a escola, naturalmente aponta a situação desenvolvida como sinalizadora de contribuição potencial para o ensino de suas crianças. Desse modo, no quadro em que a educação brasileira se encontra, cabe fazer um encaminhamento aos professores – que busquem apoio na Psicolinguística e organizem um ensino voltado para o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual de seus alunos, utilizando tecnologias virtuais. Pode aí estar um caminho produtivo para as difíceis circunstâncias do momento.
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12 A estratégia de predição na leitura de fábulas: uma proposta para o ensino da leitura nos anos iniciais Caroline Bernardes Borges
Introdução Este estudo tem por objetivo realizar uma reflexão acerca da importância do desenvolvimento do uso das estratégias de leitura, mais especificamente da estratégia de predição, nas aulas de leitura e escrita do 3° ano do Ensino Fundamental. A estratégia de predição é definida por Goodman (1976) e Smith (2003) como o processo em que o leitor constrói hipóteses em relação ao conteúdo do texto, fazendo “adivinhações” quanto às informações e aos conteúdos ainda não lidos, e pode auxiliar consideravelmente na compreensão dos textos. Sabe-se que os leitores utilizam estratégias na realização da leitura, e que tal processo é realizado de forma inconsciente, na maioria das vezes. Porém, deve ser evidenciada a importância de estimular o aluno a utilizar essas estratégias de forma eficiente e de dar início a um processo de conscientização sobre esse uso. Para que o objetivo deste estudo seja atingido, o gênero fábula foi escolhido para servir de suporte para a elaboração de atividades pedagógicas que visam estimular o desenvolvimento da estratégia de predição, a partir da observação de aspectos de coerência textual dos textos selecionados. Assim, as reflexões poderão ser construídas a partir de exemplos práticos da aplicação da teoria, a fim de que os professores e demais profissionais 255
da área possam entender como pode ser realizado esse trabalho de forma eficiente com os alunos em sala de aula. Dessa forma, este estudo traz a teoria da predição em sua primeira parte; logo após, na segunda parte, os aspectos que envolvem a coerência textual e as metarregras que a subjazem; e, por último, são apresentadas as atividades elaboradas seguidas da sua análise. Espera-se que, a partir dessa transposição didática, os professores desenvolvam o uso das estratégias de leitura em sala de aula e, para isso, elaborem atividades interessantes que propiciem esse desenvolvimento.
A estratégia de predição leitora Sabe-se que a leitura é um processo cognitivo a partir do qual o leitor compreende o que está escrito a partir da decodificação de letras e sons, e da união desse conteúdo decodificado com os conhecimentos já adquiridos previamente. Esse processo é uma construção de significados a partir daquilo que está escrito, das características físicas do texto lido – superestrutura, aspectos linguísticos e estilísticos – e também das vivências do leitor. A compreensão leitora, então, “é examinada não só como a apropriação do conteúdo lido, mas como o processamento realizado pelo leitor para realizar essa apropriação” (Pereira, 2012, p. 82). Para que a compreensão seja atingida com eficácia é necessário que o uso das estratégias de leitura seja desenvolvido, já que são procedimentos que ajudam o leitor a regular sua atividade de leitura e, a partir deles, tornar-se capaz de selecionar, avaliar, persistir ou abandonar determinadas ações para atingir os objetivos de leitura que possui. O leitor faz uso das estratégias de leitura inconscientemente, na maioria das vezes, mas é importante que ele entenda como as utiliza e quais são os caminhos que percorre para chegar à compreensão (Solé, 1998). Relacionando a estratégia de predição especificamente, salienta-se que fazemos previsões durante a leitura de qualquer tipo de texto. Assim, podemos dizer que a leitura “pode ser considerada um processo constante de elaboração e verificação de previsões que levam à construção de uma 256
interpretação” (Solé, 1998, p. 27). Smith (2003) postula, ainda, que todos fazemos previsões a todo o momento, pois não seria possível vivermos se não tivéssemos ideia do que faríamos alguns instantes após o momento da antecipação. Segundo Goodman (1976), a predição é “um jogo psicolinguístico de adivinhação”, ou seja, o leitor, a partir de seus conhecimentos prévios sobre o assunto e das pistas linguísticas deixadas pelo autor no texto, faz adivinhações sobre os conteúdos que ainda não foram lidos à medida que vai realizando a leitura. O processo cognitivo de leitura sofre modificações em virtude de algumas variáveis – aspectos linguísticos e dicas oferecidas pelo texto lido –, tais como os objetivos de leitura, o tipo de texto (no caso deste trabalho, a fábula), as capacidades cognitivas do leitor, os conhecimentos que o aluno já têm acerca do conteúdo abordado e as condições de produção do texto. Essas variáveis têm papel fundamental no processo de leitura e no êxito da compreensão e da interpretação dos textos. Conforme as considerações de Goodman, a leitura eficiente não resulta da percepção precisa e da identificação exata de todos os elementos, mas da habilidade em selecionar o menor número de pistas produtivas necessárias à elaboração de adivinhações que estarão certas desde o início (1976, p. 3).
Quando se fala em adivinhação, tem-se a falsa ideia de que essa palavra está relacionada à compreensão apressada, superficial ou inconsistente, que pode fazer o leitor chegar a conclusões inadequadas, com meras suposições sem suporte algum, “inventadas”. Porém, todas as predições são feitas a partir das características e dicas do texto, bem como a partir das condições cognitivas do leitor. Para complementar esses pressupostos, Pereira (2002, p. 51) define a preditibilidade como um jogo linguístico que ocorre durante o processo de leitura. Esse jogo situa-se no âmbito da interação do leitor com o texto, realizando-se através de jogadas que implicam apostas com diferentes graus de risco. O jogo assim estabelecido é um instrumento que o leitor utiliza para antecipação do conteúdo do texto. Faz o seu lance, isto 257
é, prediz o que seus olhos ainda não leram, tentando adivinhar o jogo do próprio texto. Nesse momento, corre riscos cuja intensidade está associada à possibilidade de confirmação da predição realizada. Por sua vez, a dimensão da possibilidade de êxito depende de uma correlação entre as condições do leitor (universo de conhecimentos e crenças) e as pistas oferecidas pelo texto.
No que se refere às pistas linguísticas deixadas pelo autor no texto, podemos destacar as mais importantes em relação aos planos de linguagem, como as que são constituídas a partir do plano grafo-fônico (que corresponde às relações fonemas-letra, aliteração, rima), do plano morfossintático (que corresponde à estrutura vocabular, às combinações mórficas, à estrutura frasal, à retomada coesiva gramatical), do plano semântico (que corresponde aos elementos coesivos lexicais, significado, sentido das palavras), do plano pragmático (que corresponde à relação texto-situação de uso) e do plano textual (que corresponde à organização, moldura, distribuição, coerência, coesão), esse último o escolhido para ser foco das análises deste trabalho, como já foi salientado anteriormente. Do ponto de vista de Pereira (2011), a utilidade dessas pistas está intrinsecamente relacionada às condições do leitor e à natureza do texto. A autora diz que a estratégia de predição é de grande relevância e amplitude, já que é constituída por outras estratégias mais específicas, como o automonitoramento (o leitor deve estar atento aos seus conhecimentos prévios, às pistas linguísticas e às próprias predições de leitura), a autoavaliação (o leitor observa essas antecipações e constata se estão de acordo com as pistas e os conhecimentos prévios) e autocorreção (modifica essas antecipações à medida que julgue-as impróprias ou improváveis). É importante que o uso das estratégias de leitura seja desenvolvido em sala de aula, ainda mais em séries iniciais. Segundo estudos realizados por Pereira (2009), atividades que envolvam o desenvolvimento da estratégia de predição devem ser criadas e aplicadas desde as séries iniciais, pois é nesse nível que o leitor está em seu processo inicial do aprendizado da leitura e, portanto, precisa aprender a desenvolver o uso dessas estratégias, tanto de forma inconsciente como de forma consciente. 258
Aspectos envolvidos na coerência dos textos Charolles (1978, p. 40) afirma que “tanto ao nível do texto como no plano das frases, existe, então, critérios eficientes de boa formação que instituem uma norma mínima de composição textual”, ou seja, não é qualquer combinação de palavras que produz uma frase, assim como não é possível que qualquer combinação de frases produza um texto. Uma certa ordem combinatória, que siga o sistema culturalmente compartilhado da língua, deve ser mantida para que o sentido do que queremos comunicar seja construído e passado aos nossos interlocutores. Dessa forma, é quase impossível que encontremos frases que contrariem de maneira arbitrária o sistema que constitui a língua. A coerência, dessa forma, refere-se, assim, à relação entre o conteúdo do texto e suas relações internas e com o mundo. Percebe-se que a coerência textual envolve o sentido construído não só no nível microestrutural – relações estabelecidas entre as frases inseridas nas sentenças –, mas também no nível macroestrutural – relações estabelecidas entre as sequências consecutivas do discurso. A coerência do discurso, então, “deve ser conjuntamente determinada de um ponto de vista local e global, pois um texto pode muito bem ser microestruturalmente coerente sem o ser macroestruturalmente [...]” (Charolles, 1978, p. 47). De acordo com o autor, para que um texto seja coerente, numa apreensão geral, quatro metarregras devem ser utilizadas para a sua produção. São as denominadas metarregra de repetição, metarregra de progressão, metarregra de não contradição e metarregra de relação, que serão melhor explicadas a seguir. • Metarregra de repetição ou manutenção do tema: parte do princípio de que o autor do texto pensou em um assunto que desejou abordar e que esse será o assunto desenvolvido em todo o texto, embora outros sejam relacionados a esse assunto principal. Assim, é somente a partir do uso da repetição e da recorrência que a manutenção do tema de um texto pode ser mantida. Em resumo, um texto tem um assunto principal e se vale de elementos lexicais e gramaticais para que o eixo de sentido (tema) seja mantido do início ao fim de sua extensão. 259
• Metarregra da progressão temática: para que o texto não repita as mesmas ideias em toda a sua extensão, a ponto de se tornar circular, há a necessidade de que o tema, além de ser mantido, progrida, avançando e se desenvolvendo a partir das novas ideias que vão sendo acrescentadas para renovar o assunto principal. Para tanto, itens lexicais de ligação e retomada são utilizados para estabelecer o sentido do texto, contribuindo para a progressão do tema. • Metarregra da não contradição interna: para que um texto seja coerente, não pode haver contradição linguística ou temática em sua estrutura. Assim, não é possível afirmar algo e escrever algo totalmente contrário em seguida, pois isso causaria uma contradição interna no texto. A contradição não está apenas entre as ideias e informações, mas pode estar também no nível formal da linguagem, como quando, por exemplo, na conjugação verbal expressa ao longo do texto, há a contradição entre os tempos verbais. • Metarregra da relação com o mundo: as afirmações constituintes de um texto devem estar de acordo com a realidade. Assim, em textos não ficcionais, há que se ter a relação de verdade e, em textos ficcionais, a relação de verossimilhança. Essas quatro metarregras apresentam um determinado número de condições linguísticas para que textos coerentes possam ser elaborados e sejam bem formados. Dessa forma, os locutores e interlocutores poderão entender o sentido das mensagens que devem ser passadas. Portanto, a consciência acerca dessas estimações de coerência torna-se indispensável para que os falantes da língua a utilizem de maneira adequada e eficaz dependendo do uso e da situação de comunicação. É importante ressaltar que, além de constituir uma marca intrínseca ao texto, a coerência também está no nível das relações do texto com o mundo.
Atividades propostas Para refletir sobre o desenvolvimento do uso da estratégia de predição, então, foram elaboradas quatro atividades a partir de quatro fábulas sele260
cionadas, todas de Esopo: A cigarra e as formigas, A lebre e a tartaruga, O ratinho da cidade e o ratinho do campo e Os viajantes e o urso. A primeira atividade serve para identificação das características do gênero, portanto, envolve perguntas de compreensão leitora e identificação dessas características, e as demais atividades têm o objetivo de desenvolver o uso da estratégia de predição leitora, sob a observação de aspectos da coerência textual: neste caso, a progressão temática e a manutenção temática. ATIVIDADE 1 Etapas: 1) Apresentar aos alunos a fábula A cigarra e as formigas e lê-la juntamente com o grupo (o professor lê e os alunos ouvem e acompanham a leitura na folha entregue a eles com a fábula impressa). A cigarra e as formigas Num belo dia de inverno as formigas estavam tendo o maior trabalho para secar suas reservas de trigo. Depois de uma chuvarada, os grãos tinham ficado completamente molhados. De repente aparece uma cigarra: — Por favor, formiguinhas, me deem um pouco de trigo! Estou com uma fome danada, acho que vou morrer. As formigas pararam de trabalhar, coisa que era contra os princípios delas, e perguntaram: – Mas por quê? O que você fez durante o verão? Por acaso não se lembrou de guardar comida para o inverno? – Para falar a verdade, não tive tempo – respondeu a cigarra. – Passei o verão cantando! – Bom... Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno o inverno dançando? – disseram as formigas, e voltaram para o trabalho dando risada. Moral: Os preguiçosos colhem o que merecem. ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.
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2) Fazer perguntas de compreensão sobre os componentes do texto para que os alunos mesmos percebam quais são as características da fábula ao mesmo tempo em que a compreendem: • Quais são os personagens da história? Quais são suas características? • O que acontece na história? • Onde se passa a história? • Essa história apresenta algo diferente no final. O que é? • O que aprendemos com essa história? 3) Após a conversa, explicar aos alunos que entre os textos desse tipo (que contêm essas características), estão aqueles que são chamados de fábulas. Depois, pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê uma parte do texto (aqueles que já souberem ler). ATIVIDADE 2 Etapas: 1) Apresentar aos alunos cada parte da fábula A lebre e a tartaruga, na ordem relacionada abaixo. Um excerto será apresentado de cada vez, nessa ordem. O professor lerá o excerto e os alunos ouvirão. Depois, um dos alunos poderá reler o excerto para a turma. Após a leitura, o professor perguntará o que acontecerá em seguida na fábula. À medida que os alunos dão as respostas, o professor media a conversa, constatando se seria possível ou não tal previsão, solicitando aos alunos que justifiquem suas apostas e entendam porque não são viáveis, caso não sejam, e porque poderiam acontecer, caso sejam coerentes. Após a conversa, o professor apresentará a parte correspondente à continuação da fábula. Repetirá o mesmo método até chegarem ao final da fábula, ou seja, à moral. A lebre e a tartaruga Um dia uma tartaruga começou a contar vantagem dizendo que corria muito depressa, que a lebre era muito mole, e enquanto falava a tartaruga ria e ria da lebre. Mas a lebre ficou mesmo impressionada; foi quando a tartaruga resolveu apostar uma corrida com ela. 262
“Deve ser só de brincadeira!”, pensou a lebre. A raposa era o juiz e recebia as apostas. A corrida começou, e na mesma hora, claro, a lebre passou à frente da tartaruga. O dia estava quente, por isso lá pelo meio do caminho a lebre teve a ideia de brincar um pouco. Depois de brincar, resolveu tirar uma soneca à sombra fresquinha de uma árvore. “Se por acaso a tartaruga me passar, é só correr um pouco e fico na frente de novo”, pensou. A lebre achava que não ia perder aquela corrida de jeito nenhum. Enquanto isso, lá vinha a tartaruga com seu jeitão, arrastando os pés, sempre na mesma velocidade, sem descansar nem uma vez, só pensando na chegada. Ora, a lebre dormiu tanto que esqueceu de prestar atenção na tartaruga. Quando ela acordou, cadê a tartaruga? Bem que a lebre se levantou e saiu zunindo, mas nem adiantava! De longe ela viu a tartaruga esperando por ela na linha de chegada. Moral: Devagar e sempre se chega na frente.
2) Refletir com o grupo sobre as sequências formadas, a fim de que eles percebam quais marcas linguísticas e textuais fizeram com que a história se organizasse corretamente dessa forma e não de outra (adequar as falas e explicações ao nível de escolaridade dos alunos, obviamente). 3) Apresentar a fábula original (completa e ordenada) para que os alunos acompanhem a leitura final do texto. O professor lê o texto e os alunos ouvem, acompanhando a leitura na folha impressa com a fábula. Depois, pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê uma parte do texto (aqueles que já souberem ler). A lebre e a tartaruga Um dia uma tartaruga começou a contar vantagem dizendo que corria muito depressa, que a lebre era muito mole, e enquanto falava a tartaruga ria e ria da lebre. Mas a lebre ficou mesmo impressionada; foi quando a tartaruga resolveu apostar uma corrida com ela. “Deve ser só de brincadeira!”, pensou a lebre. A raposa era o juiz e recebia as apostas. A corrida começou, e na mesma hora, claro, a lebre passou à frente da tartaruga. O dia estava quente, por isso lá pelo meio do caminho a lebre teve a ideia de brincar um pouco. Depois de brincar, resolveu tirar uma soneca à sombra fresquinha de uma árvore. 263
“Se por acaso a tartaruga me passar, é só correr um pouco e fico na frente de novo”, pensou. A lebre achava que não ia perder aquela corrida de jeito nenhum. Enquanto isso, lá vinha a tartaruga com seu jeitão, arrastando os pés, sempre na mesma velocidade, sem descansar nem uma vez, só pensando na chegada. Ora, a lebre dormiu tanto que esqueceu de prestar atenção na tartaruga. Quando ela acordou, cadê a tartaruga? Bem que a lebre se levantou e saiu zunindo, mas nem adiantava! De longe ela viu a tartaruga esperando por ela na linha de chegada. Moral: Devagar e sempre se chega na frente. ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.
ATIVIDADE 3 Etapas: 1) Apresentar aos alunos cada parte da fábula O ratinho do campo e o ratinho da cidade, na ordem relacionada abaixo. Um excerto será apresentado de cada vez, nessa ordem. O professor lerá o excerto e os alunos ouvirão. Depois, um dos alunos poderá reler o excerto para a turma. Após a leitura, o professor perguntará o que será que acontecerá em seguida na fábula. À medida que os alunos dão as respostas, o professor media a conversa, constatando se seria possível ou não tal previsão, solicitando que os alunos justifiquem suas apostas e entendam porque não são viáveis, caso não sejam, e porque poderiam acontecer, caso sejam coerentes. Após a conversa, o professor apresentará a parte correspondente à continuação da fábula. Repetirá o mesmo método até chegarem ao final da fábula, ou seja, à moral. O ratinho da cidade e o ratinho do campo Certo dia um ratinho do campo convidou seu amigo que morava na cidade para ir visitá-lo em sua casa no meio da relva. O ratinho da cidade foi, mas ficou muito chateado quando viu o que havia para jantar: grãos de cevada e umas raízes com gosto de terra. – Coitado de você, meu amigo! – exclamou ele. – Leva uma vida de formiga! Venha morar comigo na cidade que nós dois juntos vamos acabar com todo o toucinho deste país! 264
E lá se foi o ratinho do campo para a cidade. O amigo mostrou para ele uma despensa com queijo, mel, cereais, figos e tâmaras. O ratinho do campo ficou de queixo caído. Resolveram começar o banquete na mesma hora. Mas mal deu para sentir o cheirinho: a porta da despensa se abriu e alguém entrou. Os dois ratos fugiram apavorados e se esconderam no primeiro buraco apertado que encontraram. Quando a situação se acalmou e os amigos iam saindo com todo o cuidado do esconderijo, outra pessoa entrou na despensa e foi preciso sumir de novo. A essas alturas o ratinho do campo já estava caindo pelas tabelas. – Até logo – disse ele. – Já vou indo. Estou vendo que sua vida é um luxo só, mas para mim não serve. É muito perigosa. Vou para minha casa, onde posso comer minha comidinha simples em paz. Moral: Mais vale uma vida modesta com paz e sossego que todo o luxo do mundo com perigos e preocupações.
2) Refletir com o grupo sobre as sequências formadas, a fim de que eles percebam quais marcas linguísticas e textuais fizeram com que a história de organizasse corretamente dessa forma e não de outra (adequar as falas e explicações ao nível de escolaridade dos alunos). 3) Apresentar a fábula original (completa e ordenada) para que os alunos acompanhem a leitura final do texto. O professor lê o texto e os alunos ouvem, acompanhando a leitura na folha impressa com a fábula. Depois, pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê uma parte do texto (aqueles que já souberem ler). O ratinho da cidade e o ratinho do campo Certo dia um ratinho do campo convidou seu amigo que morava na cidade para ir visitá-lo em sua casa no meio da relva. O ratinho da cidade foi, mas ficou muito chateado quando viu o que havia para jantar: grãos de cevada e umas raízes com gosto de terra. – Coitado de você, meu amigo! – exclamou ele. – Leva uma vida de formiga! Venha morar comigo na cidade que nós dois juntos vamos acabar com todo o toucinho deste país! E lá se foi o ratinho do campo para a cidade. O amigo mostrou para ele uma despensa com queijo, mel, cereais, figos e tâmaras. O ratinho do campo ficou de queixo caído. Resolveram começar o banquete na mesma hora. Mas mal deu para 265
sentir o cheirinho: a porta da despensa se abriu e alguém entrou. Os dois ratos fugiram apavorados e se esconderam no primeiro buraco apertado que encontraram. Quando a situação se acalmou e os amigos iam saindo com todo o cuidado do esconderijo, outra pessoa entrou na despensa e foi preciso sumir de novo. A essas alturas o ratinho do campo já estava caindo pelas tabelas. — Até logo – disse ele. – Já vou indo. Estou vendo que sua vida é um luxo só, mas para mim não serve. É muito perigosa. Vou para minha casa, onde posso comer minha comidinha simples em paz. Moral: Mais vale uma vida modesta com paz e sossego que todo o luxo do mundo com perigos e preocupações. ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.
ATIVIDADE 4 Etapas: 1) Apresentar aos alunos cada parte da fábula Os viajantes e o urso, na ordem relacionada abaixo. Um excerto será apresentado de cada vez, nessa ordem. O professor lerá o excerto e os alunos ouvirão. Depois, um dos alunos poderá reler o excerto para a turma. Após a leitura, o professor perguntará o que acontecerá em seguida na fábula. À medida que os alunos dão as respostas, o professor media a conversa, constatando se seria possível ou não tal previsão, solicitando que os alunos justifiquem suas apostas e entendam porque não são viáveis, caso não sejam, e porque poderiam acontecer, caso sejam coerentes. Após a conversa, o professor apresentará a parte seguinte, correspondente à continuação da fábula. Repetirá o mesmo método até chegarem ao final da fábula, ou seja, à moral. Os viajantes e o urso Um dia dois viajantes deram de cara com um urso. O primeiro se salvou escalando uma árvore, mas o outro, sabendo que não ia conseguir vencer sozinho o urso, se jogou no chão e fingiu-se de morto. O urso se aproximou dele e começou a cheirar as orelhas do homem, mas, convencido de que estava morto, foi embora. O amigo começou a descer da árvore e perguntou:
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— O que o urso estava cochichando em seu ouvido? — Ora, ele só me disse para pensar duas vezes antes de sair por aí viajando com gente que abandona os amigos na hora do perigo. Moral: A desgraça põe à prova a sinceridade da amizade.
2) Refletir com o grupo sobre as sequências formadas, a fim de que eles percebam quais marcas linguísticas e textuais fizeram com que a história de organizasse corretamente dessa forma e não de outra (adequar as falas e explicações ao nível de escolaridade dos alunos). Apresentar a fábula original (completa e ordenada) para que os alunos acompanhem a leitura final do texto. O professor lê o texto e os alunos ouvem, acompanhando a leitura na folha impressa com a fábula. Depois, pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê uma parte do texto (aqueles que já souberem ler). Os viajantes e o urso Um dia dois viajantes deram de cara com um urso. O primeiro se salvou escalando uma árvore, mas o outro, sabendo que não ia conseguir vencer sozinho o urso, se jogou no chão e fingiu-se de morto. O urso se aproximou dele e começou a cheirar as orelhas do homem, mas, convencido de que estava morto, foi embora. O amigo começou a descer da árvore e perguntou: — O que o urso estava cochichando em seu ouvido? — Ora, ele só me disse para pensar duas vezes antes de sair por aí viajando com gente que abandona os amigos na hora do perigo. Moral: A desgraça põe à prova a sinceridade da amizade. ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.
Análise teórico-prática das atividades Todas as atividades elaboradas (exceto a atividade 1) permitem que os alunos desenvolvam o uso da estratégia de predição através dos elementos de coerência textual (dos aspectos de progressão e manutenção temática). As atividades requerem que o aluno realize predições referentes ao conteú267
do das histórias para que consiga concluir a atividade. Além disso, para que as hipóteses sejam testadas e verificadas, os leitores deverão desenvolver suas habilidades de observação da progressão e da manutenção temática dos acontecimentos, a fim de que consigam elaborar hipóteses coerentes para a continuação das fábulas. Na atividade 1, os alunos deveriam acompanhar a leitura da fábula A cigarra e as formigas, que seria realizada pelo professor e, em seguida, responderiam algumas perguntas que seriam feitas oralmente pelo professor, como: quem eram os personagens da história, quais eram suas características, o que aconteceu na história, onde se passava a história, o que a história apresentou de diferente no final e o que aprendemos com essa história. A partir da reflexão acerca dessas características, os alunos mesmos as observariam e as explicitariam, para que depois o professor dissesse que, entre textos desse tipo, estão aqueles que são chamados de fábulas. Com isso, os próprios alunos chegariam à conclusão de o que seria uma fábula, a partir da leitura e da observação de uma. Após o reconhecimento das características desse tipo de narrativa, os alunos já poderiam observar os demais aspectos do texto para realizar suas predições. Na atividade 2, a fábula A lebre e a tartaruga seria apresentada aos alunos em partes ordenadas. Cada parte seria apresentada de cada vez, ou seja, o professor leria o trecho (um dos alunos poderia reler para a turma) e, em seguida, o professor perguntaria aos alunos o que eles acham que aconteceria em seguida na fábula. À medida que os alunos iriam dando as respostas, o professor mediaria a conversa, constatando se seria possível ou não tal previsão, solicitando que os alunos justificassem suas apostas e entendessem porque não eram viáveis, caso não fossem, e porque poderiam acontecer, caso fossem coerentes. Após a conversa, o professor apresentaria a parte seguinte, correspondente à continuação da fábula. Repetiria o mesmo método até chegarem ao final de cada fábula, ou seja, à moral da história. O mesmo ocorreria com as atividades 3 e 4. Para finalizar cada atividade, a fábula original (completa e ordenada) seria apresentada aos alunos, para que acompanhassem a leitura final do texto. O professor leria o texto e os alunos ouviriam, acompanhando a leitura na folha impressa com a fábula. Depois, poderia ser realizada uma 268
rodada de leitura, em que cada aluno leria uma parte do texto (os que já soubessem ler). Com exceção da atividade 1, correspondente às perguntas de compreensão e reconhecimento do gênero, todas as demais atividades seguiriam a mesma metodologia descrita, conforme foi explicitado anteriormente. As atividades não seriam realizadas todas no mesmo dia, por exigirem bastante atenção e serem extensas. O professor poderia realizá-las conforme achasse mais adequado, de modo a ficar mais adequado para o andamento das aulas. Nas atividades 2, 3 e 4, os alunos desenvolveriam o uso da estratégia de predição à medida que fossem pensando nas possibilidades de continuação para o excerto da fábula lido pelo professor e por seus colegas. Realizando as previsões necessárias, o aluno deveria anunciar o que aconteceria em seguida e justificar tal predição, ou seja, explicar quais os fatos e características do texto o levaram a realizar tal previsão e não outra. Quando a predição realizada estivesse equivocada, o professor deveria refletir com os alunos sobre os motivos pelos quais aquela hipótese não poderia ser confirmada, ou seja, explicar quais fatores linguísticos e contextuais – adaptando à fala para uma turma de 3° ano inicial – impediriam que aquela hipótese pudesse ser confirmada. De acordo com os postulados de Goodman (1976), a predição é baseada nas pistas linguísticas deixadas pelo texto e também nos conhecimentos prévios acerca do assunto, como já foi evidenciado anteriormente. A partir disso é que os alunos conseguirão formular hipóteses e testá-las. Ao pensar em como a sequência do texto se formaria, os alunos precisariam entender os princípios de manutenção e progressão temática, para que as hipóteses elaboradas por eles tivessem sentido e coerência, conforme as ideias de Charolles (1978). Assim, para propor hipóteses coerentes, eles deveriam observar a manutenção temática do texto, já que não haveria como apontarem continuações descabidas, que não contemplassem o tema proposto no excerto em questão e nos anteriores. Deveriam ter em mente, portanto, que o tema da fábula deveria ser mantido. Além disso, eles deveriam observar a progressão temática do texto, apresentando hipóteses que envolvessem a progressão das ideias apresentadas, não repetindo o que já 269
havia sido dito no excerto em questão ou em excertos anteriores, sabendo que as ideias precisam progredir dentro de um texto, para que não se torne algo circular e sem sentido, que não avança. A partir das análises aqui descritas, pode-se entender como as atividades funcionariam e como devem ser aplicadas em sala de aula. Além disso, todas as atividades são fundamentadas teoricamente, como evidenciado tanto nas seções dedicadas a esse fim, como nesta seção de análise das atividades. Dessa forma, espera-se que tenha sido esclarecida a importância de desenvolver a compreensão leitora desde as séries iniciais, bem como o uso das estratégias de leitura.
Considerações finais A partir do estudo realizado, buscou-se mostrar a importância do trabalho com vistas a desenvolver o uso das estratégias de leitura, mais especificamente o da estratégia de predição, por parte dos leitores iniciantes. Na fase inicial do aprendizado da leitura, é essencial que o professor fique atento às dificuldades dos alunos e, por consequência, os ensine a utilizar as estratégias de leitura, mesmo que de maneira inconsciente, através do desenvolvimento do seu uso por meio de atividades direcionadas a esse fim. Sob essa perspectiva, acredita-se que o objetivo de refletir sobre os pressupostos teóricos que subjazem essa prática tenha sido atingido, bem como o objetivo de exemplificar a transposição didática de tópicos da teoria para a prática em sala de aula. Os modelos de exercícios apresentados podem auxiliar consideravelmente no desenvolvimento do processo de compreensão leitora dos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Foi a partir dessa constatação que foram criados e deseja-se que sejam reproduzidos, assim como novas atividades sejam elaboradas e sirvam como meio de desenvolver a compreensão leitora por parte dos nossos pequenos leitores.
Referências ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p. 270
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13 O início da alfabetização para uma criança com desvio fonológico: algumas reflexões Cristiane Lazzarotto-Volcão
Introdução O português apresenta uma escrita alfabética, baseada nas relações entre sons e letras e mediada pelas relações abstratas entre fonemas e grafemas. Dessa forma, para aprender a escrever, a criança necessita apropriar-se desse sistema alfabético durante o processo de alfabetização. A descoberta das relações grafofonológicas só é possível através da reflexão e da manipulação dos sons da fala, já que a noção de fonema é fundamental para o entendimento do princípio alfabético (Vandervelden; Siegel, 1995; Scliar-Cabral, 2003). A essa capacidade é dado o nome de consciência fonológica, a qual faz parte do conhecimento metalinguístico, ou seja, é uma capacidade que permite refletir sobre as características estruturais da fala e manipulá-las (Moojen; Santos, 2001; Zorzi, 2003). Essa habilidade é imensamente importante para compreender a mensagem escrita, uma vez que, para ler e escrever, é preciso realizar as correspondências grafofonológicas, analisar os signos semiológicos em fonemas e sintetizar os fonemas em signos semiológicos (Cielo, 2001). A consciência fonológica surge gradualmente, ao longo de um continuum que engloba desde um grau nulo de consciência, passando pela sensibilidade, pelo “dar-se conta”, até a consciência em si, que pressupõe a capacidade de explicitação verbal do resultado desse tipo de conhecimento (Poersch, 1990). As crianças vão desenvolvendo essa habilidade ao longo de sua maturação 272
desenvolvimental e a partir da interação com o meio, incluindo a instrução formal. Assim, deve haver tarefas de consciência fonológica mais e menos difíceis de resolver, conforme o estágio de desenvolvimento infantil (Cielo, op cit.). Dessa forma, pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que a criança adquire a linguagem oral, ela vai desenvolvendo a capacidade de refletir e de “brincar” com essa linguagem. Ao ingressar na classe de alfabetização1, teoricamente, todas as crianças já adquiriram a fonologia de sua língua e já possuem um bom nível de consciência fonológica, embora não apresentem, ainda, uma consciência fonêmica, ou seja, ainda não são capazes de isolar os fonemas do fluxo da fala, bem como substituí-los, apagá-los, invertê-los, de forma intencional. Essa habilidade só será desenvolvida a partir da exposição e do aprendizado da língua escrita (Cielo, 2001; Lazzarotto; Cielo, 2002, Blanco-Dutra; Scherer; Brisolara, 2009). Em se considerando o padrão da maioria das crianças, é esperado que, ao iniciarem o processo formal de alfabetização, os alunos já tenham o sistema fonológico da língua plenamente adquirido. Porém, algumas crianças iniciam o processo de aprendizagem da escrita sem ter terminado o processo de aquisição fonológica, por apresentarem um atraso no desenvolvimento fonológico, ou um Desvio Fonológico (DF). Os DF podem ser caracterizados por uma alteração ou por uma demora na organização do sistema fonológico, durante seu processo de aquisição. Várias pesquisas em aquisição da linguagem2 já comprovaram que toda criança com DF, apesar do desvio, apresenta um sistema, embora seja um sistema próprio, cuja organização pode estar bem distante daquela da língua-alvo (Matzenauer-Hernandorena, 1995; Mota, 2001; Lamprecht, 2004; Lazzarrotto-Volcão, 2009). Diante de um fato como o mencionado – a entrada de uma criança com DF no primeiro ano do ensino fundamental – podemos questionar: o que esperar do seu desempenho no que se refere à aprendizagem da escrita? Que tipo de relações grafo-fonológicas serão estabelecidas por esse sujeito? Que tipo de consciência fonêmica poderá ser desenvolvido, em se 1
Não será feita distinção entre o termo alfabetização e letramento neste trabalho.
2
O primeiro autor a fazer referência à existência de um sistema nos casos de DF foi Ingram (1976).
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tratando de um caso de DF? O fato de apresentar um sistema fonológico incompleto implicará em um atraso na aprendizagem da escrita? A partir desses questionamentos, este trabalho tem como objetivo analisar as produções escritas de um menino (doravante J) com DF, em fase de alfabetização inicial, e verificar como esse sujeito está se apropriando da escrita alfabética do português. A fim de delimitar o objeto de estudo, pretende-se analisar como J representa, através de grafemas, o segmento /t/, ausente em seu inventário fonológico.
Metodologia O sujeito deste estudo, J, tem 7 anos e 1 mês e é do sexo masculino. Esse menino tem DF e iniciou o tratamento fonoaudiológico no mesmo ano em que ingressou na escola, na primeira série (equivalente ao primeiro ano). As avaliações fonológica e da escrita que serão apresentadas neste artigo foram realizadas no início do tratamento fonoaudiológico de J, o que coincidiu com a metade do primeiro ano de escolarização. É importante referir que a participação de J foi autorizada por sua mãe, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados de fala de J foram retirados de Lazzarotto (2005). Sua coleta deu-se por meio do instrumento Avaliação Fonológica da Criança (Yavas, Matzenauer-Hernandorena; Lamprecht, 1991), constituído de cinco desenhos temáticos (“zoológico”, “sala”, “banheiro”, “cozinha” e “veículos”), acrescido do “circo” elaborado por Matzenauer-Hernandorena e Lamprecht (1991; 1996). Esse instrumento permite, através da nomeação espontânea, a eliciação de todos os segmentos consonantais do português brasileiro (PB), em todas as posições licenciadas pela fonologia dessa língua – Onset simples Absoluto (OA), Onset simples Medial (OM), Onset Complexo (OC), Coda Medial (CM) e Coda Final (CF). Em seguida, a autora (idem ibiden) apresenta uma análise através da Teoria da Otimidade (Prince; Smolensky, 1993)3, por meio de hierarquias de restrições, para analisar a dificuldade que J tem no emprego da plosiva coronal /t/. 3
Uma análise mais apurada desse sistema pode ser encontrada em Lazzarotto (2005), onde J é o sujeito 1 da pesquisa.
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Já a produção escrita de J será analisada a partir de informações de seu prontuário, onde está registrado seu desempenho no Ditado para levantamento ortográfico (Costa, 2000) – Anexo 1 –, instrumento utilizado como triagem da escrita no serviço de saúde em que J era atendido na época. Esse ditado consta de 20 palavras, as quais permitem averiguar como o aprendiz lida com as seguintes questões ortográficas: sonora/surda, encontros consonantais, dígrafos, “r” em final de sílaba, gu/qu, c/qu, “m” em final de sílaba, antes de “p” e “b”, nasalização, transcrição da fala, j/g e m/n em início de sílaba. Para este trabalho, também daremos enfoque nas produções escritas de J. na tentativa de representar o fonema /t/.
Resultados a) Sistema fonológico de J Conforme Lazzarotto (2005), o inventário fonético de J está incompleto, pois em sua fala espontânea são produzidos apenas os sons [p, b, k, g, f, m, j, w], conforme pode ser visto no Quadro 1. Quadro 1: Inventário fonético de J. labial dent/alv pal plosiva pb fricativa fv africada nasal m liq lateral n-lateral glide j
Velar kg
w
Fonte: Dados da pesquisa.
Já no Quadro 2, temos o sistema de fones contrastivos de J, também segundo Lazzarotto (op cit.).
275
Quadro 2: Sistema de fones contrastivos de J. OA
Reprodução
OM Reprodução
CM
CF
Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.
A partir desses dados, podemos verificar que J apresenta um sistema fonológico com poucos contrastes. Em relação à plosiva coronal surda, pode-se observar que, tanto na posição de OA, quanto na de OM, J demonstra uma dificuldade no estabelecimento do contraste do ponto articulatório, enquanto preserva os traços relativos a modo ([-contínuo]) e à sonoridade ([-sonoro]), como revelam os exemplos em (1). 276
(1) Exemplos de produções de J: ‘bateu’ è [ba’kew] ‘teto’ è [‘keku]
b) Aspectos da escrita Para avaliação da escrita de J foi utilizado o Ditado para levantamento ortográfico (Costa, 2000), enquanto um procedimento de triagem. Os dados utilizados neste estudo estavam no prontuário de J; portanto, não foram coletados para fins de pesquisa. No Quadro 3 podemos verificar as produções escritas de J, seguidas da palavra-alvo ditada. Quadro 3: Produção escrita de J
1. parato (prato) 2. mióga (minhoca) 3. penta (perguntar) 4. caobo (campo) 5. seti (seguir) 6. fuca (flores) 7. difemote (diferente) 8. tãobo (tambor) 9. matia (máquina) 10. coita (corrida)
11. fota (voltar) 12. oeia (orelha) 13. bito (pintor) 14. fugão (fogão) 15. rebia (respirar) 16. grafato (gravador) 17. ateta (atleta) 18. boto (bloco) 19. vido (vidro) 20. etãodito (esconderijo)
Fonte: Dados da pesquisa.
Com base nessas produções escritas, observamos que J não apresenta problemas na representação gráfica do fonema /t/ (destacada pela cor cinza claro). Contudo, chamamos a atenção para a representação gráfica do fonema /k/ (destacada pela cor cinza escuro), cujo som é realizado na fala de J em lugar da coronal. Há três produções escritas em que o fonema é representado adequadamente, mas há três produções em que J emprega o grafema <t> em seu lugar. 277
Discussão Podemos observar, a partir das informações descritas na seção anterior, que J não apresenta o fonema /t/ em seu inventário fonológico, por apresentar problemas com o traço [coronal]. Além disso, em todas as suas produções, esse fonema é realizado como uma plosiva dorsal [k]. Já em relação à escrita, notamos que J, apesar dessas dificuldades fonológicas, é capaz de representar esse fonema ausente através do grafema correto em todos os vocábulos do ditado, ou seja, todas as palavras que apresentam o fonema /t/ e que, portanto, deveriam ser escritas com o grafema ‘t’, estão representadas de forma correta, em relação a esse fonema. Esse é o caso dos itens 1, 3, 7, 8, 11, 13 e 17. Curiosamente, em alguns dos itens lexicais que possuem o fonema plosivo dorsal /k/, J o representa através do grafema <t>, o que pode ser observado nos itens 9, 18 e 20. Diante desse aspecto da produção de J, tecemos as seguintes considerações: 1) J possui conhecimento linguístico que o permite saber que a língua oral e a escrita não são espelho uma da outra, ou seja, nem sempre se escreve da forma como se fala; 2) J emprega uma estratégia muito comum em dados de escrita infantil, que é a hipercorreção e que significa a aplicação de uma regra em contextos não esperados; 3) J apresenta capacidade de manipulação (consciente ou não) dos fonemas de sua língua, uma vez que produziu palavras escritas de uma forma inusitada, de acordo com seus padrões de fala, por meio dessa hipercorreção. Diante disso, é possível formular as seguintes asserções na tentativa de explicação dos fenômenos: – J não apresenta um DF, mas sim uma dificuldade articulatória que o impede de produzir corretamente a plosiva coronal /t/, tendo a representação mental correta desse segmento; – J, embora possua um DF, em que a representação mental do /t/ esteja alterada, apresenta um bom nível de consciência fonológica e do seu desvio, o que o leva a representar corretamente o segmento através da escrita. 278
Se a primeira hipótese for a correta, seria possível pensar que as produções escritas de uma criança com DF seriam muito úteis num diagnóstico diferencial entre um desvio fonológico e um desvio fonético ou articulatório. Além disso, esse fato romperia com a ideia que muitos educadores possuem em relação à aprendizagem de crianças que ainda possuem alterações de linguagem oral: nem todas estão destinadas ao fracasso, muitas delas, apesar do desvio de fala, apresentam um bom desempenho nas habilidades de leitura e escrita. Se for considerada a segunda hipótese como a mais aceitável, podemos concluir que uma intervenção baseada na consciência fonológica de segmentos adquiridos e ausentes é capaz de garantir uma representação grafofonológica correta no período inicial de aprendizagem da escrita. Essa tese seria reforçada pelo fenômeno de supercorreção que J realiza nos vocábulos “máquina”, “bloco” e “esconderijo”, em que as plosivas dorsais foram representadas pelo grafema <t>. Assim, sua atenção e consciência para o desvio estariam maiores que a consciência fonêmica de segmentos produzidos corretamente, o que o estaria levando a produzir esse tipo de “erro”. Obviamente, se tivéssemos mais dados de escrita de J, em especial, dados longitudinais, talvez essas perguntas pudessem ser respondidas. Contudo, o presente estudo parece reforçar a hipótese de que a consciência fonêmica é decorrente do processo de apropriação da escrita, ou seja, é pelo fato de estar escrevendo que a criança adquire a capacidade de lidar com unidades menores que a sílaba.
Considerações finais Por meio deste breve estudo, pudemos verificar que uma criança com DF é capaz de representar segmentos ausentes de seu inventário fonológico de forma adequada na escrita. Esse fenômeno merece atenção de futuras pesquisas e precisa ser mais bem investigado. As duas hipóteses lançadas para explicar os dados encontrados, se corroboradas por estudos mais aprofundados, podem trazer contribuições importantes tanto para o diagnóstico e terapia dos DF, quanto para o processo de aprendizagem da escrita em crianças com alterações da linguagem oral. 279
Esse fato aponta para a necessidade de mais estudos com crianças que iniciam a alfabetização, ainda apresentando um sistema fonológico incompleto, visto que, na prática fonoaudiológica, temos observado alguns casos apresentarem boa evolução no processo de aprendizagem da escrita, enquanto outros não. É preciso que se investigue se essa diferença está apenas relacionada a características individuais ou se o ambiente pode contribuir para o bom desempenho, ou não, dessas crianças.
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14 Uma reflexão teórica acerca do papel atribuído à imagem no ensino da leitura a surdos Cristiane Seimetz-Rodrigues
Introdução Embora o direito de acesso à língua portuguesa escrita como segunda língua a estudantes surdos tenha sido institucionalizado no Brasil com a Lei Federal 10.436/2002 e sua respectiva regulamentação tenha ocorrido pelo Decreto 5.626/2005, é de se considerar que os surdos têm estado em nossas salas de aula muito antes; por isso, mais do que o aumento do número de estudantes surdos nas redes de ensino, a mudança introduzida pela legislação relativa aos direitos linguísticos das pessoas surdas recai sobre a concepção de ensino-aprendizagem desses sujeitos. Graças a essa mudança, a educação brasileira, ao menos nos documentos oficiais, tem demonstrado a preocupação em trabalhar os conteúdos didáticos de forma a respeitar as diferenças linguísticas e culturais do aluno surdo, bem como o seu estilo de aprendizagem, que tem sido identificado como visual (Campello, 2007). Muito dessa identificação vem do fato de que a língua desses estudantes é de natureza visuoespacial, o que significa que eles organizam o mundo ao seu redor em esquemas imagéticos. Perceber e organizar o mundo visualmente não é, contudo, uma prerrogativa de pessoas cuja língua é de modalidade visuoespacial. Resguardadas certas proporções, devemos assumir que pessoas cuja língua é de modalidade oral-auditiva também concebem e organizam suas experiências em esquemas imagéticos. Exemplo disso é que, mesmo 282
para a comunicação, não apenas pessoas surdas usam recursos visuais – excetuando-se os expedientes especificamente verbais. Para além das possibilidades de comunicação gestuais e corporais não verbais, o mundo contemporâneo tem buscado dinamicidade nas comunicações por meio do uso da imagem. Vivemos, surdos e ouvintes, imersos em um mundo altamente midiatizado e imagético. Lidar com esse contexto comunicacional não é uma tarefa simples. E a situação piora quando se concebem as imagens como signos transparentes ou quando se trabalha com uma concepção de sujeito para o qual a compreensão de imagens é naturalizada. Esta última é a razão pela qual o uso de imagens e de outros recursos visuais vem sendo enfatizado na educação de surdos como recurso de fundamental importância para a aprendizagem desses estudantes. Concepção, inclusive, que atravessa muitas das propostas e práticas pedagógicas de ensino da língua portuguesa escrita a surdos. É desse último caso que o presente estudo se ocupa: o uso de imagens para o ensino da língua portuguesa escrita a surdos e as possíveis armadilhas implicadas por ele. Empregar recursos visuais é, sim, muito útil durante o processo de instrução de estudantes surdos, bem como o de ouvintes. Os problemas aparecem, no entanto, quando há pouca clareza entre o que seja leitura de textos escritos e o que seja leitura de imagens; quando se deposita na imagem o poder de esclarecer ou antecipar o que se encontra codificado verbalmente; quando se incentiva o estudante surdo a priorizar a compreensão da imagem sobre a da palavra escrita, negligenciando a realidade de que os textos contemporâneos, geralmente, empregam recursos verbais e imagéticos de forma assimétrica no que diz respeito à informatividade. Assim, para demonstrar que esses problemas existem, que atingem as propostas de ensino de português a surdos e para questionar a naturalização da compreensão de imagens que parece reinar no imaginário dos professores de surdos, este capítulo procede a uma discussão sobre o emprego de imagens aliadas ao texto escrito para a comunicação em uma sociedade midiatizada e a uma discussão sobre por que lidar com textos dessa natureza é uma tarefa que requer ensino.
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O uso da imagem na comunicação midiática: implicações no ensino da leitura1 É impraticável pensar no exercício da comunicação sem pensar nos veículos que a midiatizam. Vivemos em uma era em que a comunicação face a face deixou de ser o único meio pelo qual as pessoas interagem. Essa realidade é fruto de várias conquistas tecnológicas relacionadas à comunicação. A primeira delas, fundamental para o desenvolvimento das demais, é a escrita, que nasce, entre outros propósitos, com a finalidade de tornar perene algo tão fugaz como a fala. Com tal objetivo, a escrita se torna um instrumento de mediação entre pessoas que se encontram em lugares e/ou tempos diferentes. Convém observar que, como meio de registro, a escrita depende, desde seu surgimento, de suporte e de instrumentos adequados para sua notação, preservação e transporte. Essa é uma característica importante porque o suporte e os instrumentos empregados para o registro do código verbal delimitam o horizonte de expressão e influenciam, além disso, o uso social da escrita. Para entender tal implicação do suporte e dos instrumentos sobre a expressão escrita, é conveniente pensar nas diferentes possibilidades de expressão facultadas, de um lado, por livros e revistas na era da imprensa e, de outro, na era da computação gráfica. A invenção da imprensa, no que concerne ao uso social da escrita, permitiu que a disseminação do conhecimento se desse de forma mais rápida e com menor custo financeiro, incentivando a alfabetização universal (Dondis, 2007). Evidentemente, essa é uma tarefa ainda incompleta ou mal-acabada em muitos países. Todavia, não se pode negligenciar que começa aí a caminhada em direção ao mundo letrado e globalizado de hoje. Quanto às possibilidades de expressão, verifica-se o reinado do verbal sobre o não verbal, já que “[e]m textos impressos, a palavra é o elemento fundamental, enquanto os fatores visuais, como o cenário físico, o formato e a ilustração, são secundários ou necessários apenas como apoio” (Dondis, 2007, p. 12). Essa marginalidade da imagem nos textos impressos se devia à falta de tecnologias apropriadas para sua captura e reprodução. Até o surgi1 Esta seção é uma versão revisada e ampliada de parte do artigo “O ensino da leitura numa sociedade midiática e imagética: lições do Design Gráfico”, de Seimetz-Rodrigues (2012).
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mento da fotografia, o uso de imagens em textos impressos era totalmente dependente da colaboração de artistas para fazer as ilustrações, cenário que se modificou diante a criação das máquinas fotográficas. Elas permitiram não só apreender a realidade visual de forma mais objetiva e fiel do que a pintura, xilogravura, litografia ou gravura em metal, mas também facilitaram ainda mais a reprodução de imagens em massa: [...] o meio de transmissão mais legítimo para as fotografias não é o porta-retratos, mas os jornais, revistas, outdoors, etc. Tanto isso é verdade que não demorou muito para o cinema realizar o potencial massivo latente nas fotografias, que o processo de difusão da televisão levaria às últimas consequências. É o espaço da comunicação. (Santaella; Nöth, 2005, p. 173)
Esse foi o passo inicial para a imagem sair da marginalidade que ocupava nos textos impressos e na sociedade em geral, tendo, segundo Dondis (2007), um imenso impacto sobre o estilo de vida contemporâneo. O auge do processo de ascensão da imagem como signo na composição de comunicações escritas ocorre com a conquista da computação gráfica, pois projeta possibilidades ilimitadas de sofisticação na elaboração da mensagem por meio do uso da fotografia digital, programas de ilustração digital, programas de manipulação e tratamento do texto e da imagem. Tal mudança já é anunciada, inclusive, como o início de um novo paradigma na maneira de se conceber a mídia bidimensional, como se pode observar no relato de Santaella e Nöth (2005, p. 69): [...] já nos meios gráficos, impressos, também se assistia ao desabrochar de uma nova linguagem híbrida, entretecida nas misturas entre a palavra e a imagem diagramática e fotográfica. Agora, com a nova geração de designers gráficos que se deliciam na manipulação das letras, palavras, configurações e desenhos nas telas informatizadas movidas a luz e cores que se multiplicam ao infinito, esse código híbrido já preenche todas as condições para se tornar dominante.
Por código híbrido, Santaella e Nöth (2005) se referem a textos cuja mensagem é composta pela união de linguagem verbal e não verbal. Na 285
área educacional, textos dessa natureza são chamados, por exemplo, no relatório do PISA 2000 (Brasil, 2001), de descontínuos e, nos estudos promovidos na área de letramento, de multimodais. Independentemente da nomenclatura adotada, o que se constata no cotidiano é a onipresença da mídia bidimensional e, com ela, o bombardeio de imagens a que somos submetidos. Inicialmente, a importância da imagem nos meios de comunicação impressos se fez sentir de maneira mais inequívoca nas mensagens elaboradas com fim publicitário. Como o objetivo do texto publicitário não é informar, mas sim persuadir, a combinação de texto e imagem serve bem ao propósito de divulgar produtos e serviços (Heskett, 2008). A imagem prevalece sobre a palavra no que diz respeito à rapidez com que é percebida. Uma vez avistada, uma imagem não pode ser ignorada. Isso não implica, no entanto, que o mero fato de vê-la leve à sua compreensão. Razão pela qual, em muitos contextos comunicacionais, a imagem não prescinde da palavra, pois esta, usualmente, determina a leitura daquela. Ciente disso, o meio publicitário tem explorado ao máximo a capacidade de atração da imagem. Exemplo disso são os outdoors, cartazes, anúncios publicitários em revistas e jornais que nos chegam a todo momento. Na verdade, o fluxo desse tipo de material é tamanho, e nosso contato com ele tão efêmero – andando pelas ruas da cidade, sentado no metrô, folheando distraidamente uma revista ou jornal à espera de uma consulta –, que sai na frente quem consegue comunicar mais com menos. Nessa corrida pela condensação de informações, chegou-se à convergência entre o verbal e o imagético. Basta pensar na composição das mensagens veiculadas pelas mídias citadas acima. Mais do que chamar a atenção do interlocutor, o uso de imagens permite transmitir informações de maneira rápida e inovadora, servindo não mais como apoio, mera ilustração representativa do codificado verbalmente, mas antes complementando a informação escrita, assumindo a posição de signo e, assim, delimitando os significados passíveis de serem interpretados numa determinada peça gráfica. Essa mesma corrida pela condensação da informação, além de explorar o potencial sígnico da imagem, tem buscado aproximar a materialização do código verbal escrito à simultaneidade da imagem, minimizando o aspecto linear da escrita, como bem aponta Dondis (2007, p. 12-13) ao 286
observar que “[a] impressão ainda não morreu, e com certeza não morrerá jamais; não obstante, nossa cultura dominada pela linguagem já se deslocou sensivelmente para o nível icônico”. Esse deslocamento, sentido primeiramente em textos publicitários, já migrou para gêneros de outras esferas sociais que buscam coadunar sua expressão linguística às novas possibilidades de codificação das mídias modernas. Nesse processo, o uso de imagens como recurso para condensar informações gera textos cujos significados precisam ser construídos a partir do processamento de figuras de linguagem como a metonímia e a metáfora no plano visual, o que traz consequências para uma metodologia de ensino que visa ao letramento pleno do estudante brasileiro – seja ele surdo ou ouvinte. Portanto, se a função da escola quanto ao ensino de língua é propiciar que “os alunos adquiram progressivamente uma competência em relação à linguagem que lhes possibilite resolver problemas da vida cotidiana, ter acesso aos bens culturais e alcançar a participação plena no mundo letrado” (Brasil, 1997, p. 33), há que se considerar, para o alcance de tal objetivo, que as formas de interação no mundo letrado do século XXI apresentam características multifacetadas. Uma dessas características diz respeito ao fato de que, atualmente, somos comunicados mais do que comunicamos. Exemplar é o caminho de casa para a escola. Nele, a criança se depara com inúmeras mensagens verbais escritas, como cartazes; outdoors; adesivos em veículos, nos pertences do colega; placas de sinalização (de trânsito, de comércio); faixas comemorativas; entre tantas outras possibilidades. Outra característica é que os meios pelos quais as informações nos chegam se diversificaram, se especializaram, mantendo em comum, no entanto, o desejo de atingir o maior número possível de pessoas no menor tempo ou espaço possível. Para alcançar esse objetivo, as mídias bidimensionais, conforme já discutido, têm investido na produção de textos híbridos, que articulam signos verbais e não verbais na composição de suas mensagens. Nessa perspectiva, o esperado é que nossos estudantes – ouvintes e surdos – sejam ensinados a produzir sentido para as comunicações com as quais travam contato por meio de diferentes mídias. Esse ensino requer que o aprendiz seja não apenas introduzido no sistema de escrita da comunidade letrada da qual faz parte, mas também seja levado a lapidar sua inter287
pretação da linguagem visual não verbal, o que requer aquilo que Dondis (2007) chama de alfabetização visual. Isso porque as imagens empregadas em textos híbridos apresentam diferentes níveis de informatividade, podendo ser meramente ilustrativas, complementar ao verbal ou superior ao verbal, conforme Santaella e Nöth (2005). Na discussão aqui proposta, o interesse recai sobre textos em que imagem e código verbal se complementam, relação na qual a imagem é usada de forma não literal, manifestando figuras de linguagem como a metonímia e a metáfora, sendo, por isso, uma relação muito explorada em comunicações cujo papel persuasivo é bem marcado. Como exemplo dessa complementaridade entre verbal e não verbal, podemos considerar o cartaz publicitário abaixo: Figura 1: Cartaz publicitário
Reprodução
Fonte: Cereja; Magalhães (1999, p. 95).
Aqui, o uso da imagem não é meramente ilustrativo. Ele veicula um significado específico, o qual não é acessado sem que o leitor dessa peça gráfica proceda a um trabalho de compreensão integrando as informações visuais às verbais. Ao leitor proficiente pode não parecer, mas construir a interpretação para a imagem em destaque nesse anúncio demanda um alto esforço cognitivo. De um lado, exige-se a mobilização de conhecimento 288
prévio sobre o ditado popular “mais apertado do que uma lata de sardinha”, sobre o qual a metáfora visual no cartaz é construída. De outro, exige-se que ele reconstrua esse significado a partir das pistas textuais e visuais fornecidas na peça. É necessária também a associação dessa imagem metafórica àquilo que se pretende conceituar por meio dela: roupas da marca Hering, conforme indica o símbolo da marca na parte inferior do cartaz. A associação entre a marca e a imagem já se dá na própria configuração imagética da lata de sardinhas, a qual remete ao símbolo representativo da marca Hering. De posse de todos esses elementos, o leitor deve se perguntar qual a relação sígnica entre eles. Confrontando a imagem com o fato de que se trata de uma peça publicitária sobre uma marca de roupas e com a palavra “superconfortável”, o esperado é que o significado de “mais apertado do que uma lata de sardinha” seja realocado, uma vez que não seria coerente anunciar roupas “mais apertadas do que uma lata de sardinha”. Tanto é assim que o cartaz dirige a interpretação desejada em dois planos: o visual, dando destaque ao espaço confortável dividido por apenas duas sardinhas na lata e o layout básico da peça gráfica, e o verbal, com a palavra “superconfortável” e o slogan da marca: Hering, o básico do Brasil. Não obstante, muitos aprendizes – surdos e ouvintes – apresentam dificuldade em integrar essas informações e ficam perplexos sobre o porquê da lata de sardinhas na imagem, que é tomada apenas no sentido já conhecido (fato vivenciado pela autora em sua prática como professora no ensino básico). Frente a essa dificuldade, “cabe ao professor de leitura desenvolver em seus alunos a consciência de buscar as pistas linguísticas para os conceitos que às vezes são mais obscuros, acionando, ou até mesmo criando, os esquemas necessários para a compreensão do texto” (Grimm-Cabral, 2000, p. 68). Disso, conclui-se que, tanto quanto ser ensinado a lidar com a leitura da escrita, o estudante necessita ser ensinado a lidar com a leitura do que não é verbal, uma vez que se assume que “a própria operação de ler ultrapassa os limites da decifração linguística, atingindo um campo semiótico amplo que não se esgota nas práticas escolares nem no ensino disciplinar da língua” (Brasil, 2001, p. 73).
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O ensino da leitura a estudantes surdos atrelado à imagem como ilustração do texto: o exemplo de documentos de orientação a professores Lidar com o contexto comunicacional descrito na seção anterior não é uma tarefa simples. Contudo, a situação cresce em complexidade quando se concebem as imagens como signos transparentes, ou quando se trabalha com uma concepção de sujeito para o qual a compreensão de imagens é naturalizada porque seu modo de apreensão da realidade circundante é visual. Esta última é a razão pela qual o uso de imagens e de outros recursos visuais vem sendo enfatizado como de fundamental importância para o sucesso educacional de surdos, concepção, inclusive, que atravessa muitas das propostas e práticas pedagógicas de ensino da língua portuguesa escrita a esses estudantes. Exemplo dessa concepção pode ser encontrado nas orientações nacionais para o ensino de língua portuguesa a surdos, elaboradas por Salles et al. (2004, v.1, p. 115), em que se lê, entre os critérios de adequabilidade do texto selecionado para o trabalho com leitura em turmas de surdos, o seguinte: “[...] estar associados a imagens – a boa opção seria artigos de revistas e jornais, que costumam estar ilustrados, bem como propagandas”. É compreensível que, se o texto apresenta linguagem não verbal, o estudante seja orientado a refletir sobre que significados essa linguagem apresenta e como eles se coadunam com a leitura da linguagem verbal. Todavia, em momento algum da proposta elaborada por Salles et al. (2004), há a preocupação de se esclarecer ao professor que, não raro, linguagem verbal e não verbal se complementam para comunicar significados específicos, extrapolando o uso meramente ilustrativo de imagens. Assim, apesar do esforço das pesquisadoras na proposição de estratégias eficazes para o ensino da leitura, a maneira como abordam o papel da imagem durante o trabalho de compreensão textual dos alunos surdos pode levar seu público-alvo – os professores desses alunos – a apostar em um ensino em que a imagem é cultuada como uma espécie de porto seguro, a qual, se não substitui a leitura da palavra, se coloca em situação de superioridade à medida que serve de guia durante a compreensão textual. Ainda que pareça radical, essa afirmação encontra respaldo no fato de que 290
não é difícil encontrar exemplos de que usos pouco criteriosos da imagem como base para a leitura de textos escritos encontram-se disseminados entre professores e pesquisadores interessados em discutir o ensino da leitura e escrita a surdos, conforme demonstram os excertos abaixo relacionados. Em seu planejamento o professor deverá destacar as pistas visuais que serão indicadas para conduzir à leitura da palavra. De nada adianta termos ilustrações coloridas e atrativas se em nada auxiliam na compreensão da escrita (Fernandes, 2006, p. 21). Utilizar as ilustrações como recurso para antecipar o conteúdo de um texto escrito, nesse caso, um poema. [...]. Proponha que alguns alunos recontem a história em Libras, observando os desenhos. Trata-se de uma forma interessante de favorecer o uso da imagem para antecipar a leitura do texto. (SME /DOT, 2007, p. 63)
As citações acima foram retiradas de documentos de orientação a professores de alunos surdos elaborados, respectivamente, pelo governo do Paraná e pelo governo de São Paulo. Percebe-se que essas orientações convergem com o que é proposto na obra que estabelece as orientações nacionais para o ensino de língua portuguesa a surdos: a imagem-ilustração como elemento capaz de antecipar a leitura do texto, como meio de compreender o escrito. Mesmo havendo em tais orientações as melhores intenções possíveis, como fornecer ao estudante surdo pistas visuais que, em tese, podem ser mais bem aproveitadas por ele, dada a natureza visual de suas interações com o mundo, essa crença no poder autoexplicativo da imagem, apresentada como boia de salvação às dificuldades do aluno surdo em lidar com a escrita, é, na verdade, uma atitude com alto risco de resultar perniciosa quando o objetivo é a formação de leitores. Ora, a leitura do texto escrito não prescinde da leitura da palavra. Recorrer a pistas visuais para antecipar a leitura só pode significar mobilização dos conhecimentos prévios do leitor antes de engajar-se, de fato, na leitura do texto escrito. Compreender as imagens ilustrativas de um texto é um passo necessário, mas não suficiente para construir o significado do que se encontra escrito. Ainda é preciso considerar que, muitas vezes, mesmo as imagens empregadas no texto não sendo metafóricas, é o conteúdo verbal que orienta como o não verbal deve 291
ser interpretado. Para sustentar esse ponto de vista, propomos uma breve análise do exemplo de atividade de leitura fornecido por Salles e colegas (2004, p. 46-47): 1. Para iniciar a compreensão do texto verbal, comecemos a ler os textos não verbais. Observem-se as figuras abaixo: Reprodução
Constituído de várias etapas, as quais procuram dar conta dos procedimentos necessários a uma leitura eficaz, a primeira etapa do exemplo se dedica a mobilizar o conhecimento prévio do leitor por meio da exploração de aspectos mais gerais do texto, entre eles os imagéticos, e aconselha que o educador: 1. Estabeleça a relação entre as figuras: Elas têm algo em comum? O quê? O que sugere a presença do cão sempre junto à(s) pessoa(s)? Como é demonstrado o comportamento da(s) pessoa(s) em relação ao cão? (Salles et al., 2004, p. 47)
As questões sugeridas objetivam levar o estudante a criar hipóteses sobre o texto a ser lido com base nas imagens. Todavia, é essencial notar que entre as imagens há a presença de código verbal: “Projeto Cão Guia”. Sem este, ou sem que o professor diga a seus alunos o título do texto a ser lido, ou o tema dele, mais do que um trabalho de elaboração de hipóteses sobre o conteúdo do texto, o que os alunos realizariam sem o suporte do código verbal seria, possivelmente, uma saga de adivinhação frente às inúmeras inferências que podem ser acionadas pela associação apenas das imagens umas com as outras até chegarem ao assunto pretendido: cães guias. Isso é verificado se tentamos responder às perguntas acima elidindo do conjunto de imagens apresentadas na página anterior deste estudo a parte verbal: 292
Reprodução
Não podemos assegurar que sem a presença da parte verbal a hipótese sobre cães guias seria a primeira a ser acionada. Do mesmo modo, não podemos assegurar o inverso. Ainda assim, é mais do que plausível aceitar que, sem a presença do verbal, a imagem fica aberta a muitas interpretações e, nesse caso, como o estudante saberia qual a apropriada, a que antecipa o sentido do texto? Nesse ponto, acreditamos ter demonstrado com essa breve reflexão que a imagem empregada em textos de natureza descontínua nem sempre é suficiente, sozinha, para antecipar os sentidos do texto escrito. Relação que se torna ainda mais problemática ao tomarmos consciência de que a dinâmica entre linguagem verbal e não verbal pode, muitas vezes, extrapolar o eixo da “ilustração” (cf. discussão sobre usos metafóricos da imagem neste texto). Com isso, não se pretende defender que a linguagem não verbal seja inócua para o processo de construção de significados do texto escrito, pretende-se, apenas, levar a uma reflexão que redimensione as funções atribuídas ao uso da imagem durante o ensino de leitura a surdos e que desmistifique a naturalização atribuída ao sujeito surdo no que concerne à interpretação de imagens empregadas na composição de textos reais, que circulam socialmente. Afinal, há um abismo entre a visualidade natural específica à língua usada por esses sujeitos e a visualidade programada nos textos que circulam socialmente. Mais uma vez resguardadas as devidas proporções, esse é o tipo de abismo que há, por exemplo, entre ser dotado de uma escuta natural e a capacidade de compreender uma ópera. De forma a esclarecer o sentido de “real” na passagem anterior, basta que o leitor considere quão real, no cotidiano da sociedade letrada em que vivemos e para realizarmos as tarefas que ela nos exige, é o encontro com poemas (textos) a que cada verso (linha) corresponde uma imagem para ilustração. Aqui fazemos referência à atividade de leitura proposta pelo documento de orientação aos professores do estado de São Paulo (SME /DOT, 293
2007, p. 63-64), que sugere que “a sequência de figuras garantirá a correspondência com os respectivos versos, sendo uma atividade indicada para alunos a partir do 2º ano do Ciclo I, que terão mais condições de refletir sobre o sistema da escrita”. Ora, a reflexão sobre o sistema de escrita requer que ele seja o objeto considerado (Britto, 2012; Faraco, 2012; Souza, 2012; Cagliari, 2009), e não a substituição por figuras. Lidar com textos descontínuos, por sua vez, exige o conhecimento de que a imagem não é um signo transparente, de que ela demanda esforço de compreensão e consideração do contexto verbal que a acompanha (Seimetz-Rodrigues, 2012).
Considerações finais Talvez, até aqui, este texto possa ter soado ao leitor como uma crítica ferrenha ao uso de imagens no que diz respeito ao processo de leitura de estudantes surdos, como se a pesquisadora quisesse sustentar que recorrer a imagens é inútil. Não se trata disso. Trata-se apenas do desejo de alertar sobre os riscos implicados numa prática que tem se sustentado em lugares-comum sobre: a maneira como o surdo aprende; a aparente transparência da imagem face à escrita; a desconsideração de que, seja para a escrita, seja para imagens, a competência leitora é uma habilidade que deve ser ensinada formalmente aos estudantes – surdos e ouvintes –, mediante metodologias adequadas e fundadas em conhecimento científico. Nesse tocante, tal como afirma McGuinness (2006, p. 246), ensinar uma criança a ler “não precisa ser uma loteria”, visto que já há a uma vasta e consolidada literatura sobre o que é leitura e como se pode efetivamente ensinar a ler (para uma introdução à questão, cf. Snowling; Hulme, 2013; Dehaene, 2012; McGuiness, 2006a). O modo como o surdo aprende é, sim, pelo canal visual, mas isso não pode ser entendido como uma justificativa para que, durante os anos de escola, esses sujeitos lidem preferencialmente com textos ilustrados, selecionados pelo professor porque “a imagem antecipa a leitura do texto escrito”. O significado de uma imagem, quando usada como signo, não é autoevidente, tanto é assim que o potencial comunicativo dessa linguagem é enorme, podendo ser empregada em diferentes contextos com propósitos muito 294
díspares. Esta é, certamente, uma das razões pelas quais Dondis (2007, p. 01), pesquisadora na área de comunicação visual, traça o paralelo de que “[s]e a invenção do tipo móvel criou o imperativo de um alfabetismo verbal universal, sem dúvida a invenção da câmera [fotográfica] e de todas as suas formas paralelas, que não cessam de se desenvolver, criou, por sua vez, o imperativo do alfabetismo visual universal (...)”. Esse ensino requer dos educadores o conhecimento sobre o que seja ensinar a ler – palavra e imagem. Ademais, verifica-se, nas salas de aula, de forma geral, a necessidade de se convencer os educadores de que o processo de construção dos significados de um texto deve ser ensinado aos educandos (Britto, 2012; Souza, 2012; Scliar-Cabral; Souza, 2011; Possenti, 2001; Solé, 1998). É imperiosa a consideração desse fato porque, embora ler seja um processo individual – apenas o leitor pode acionar as capacidades de que necessita para decodificar, fazer previsões, checar a validade de suas previsões, confrontar seu conhecimento prévio com o proposto pelo material lido, monitorar o desempenho e o nível de atenção etc. –, ele precisa ser formalmente ensinado, pois é improvável o aprendiz desenvolver a leitura da mesma forma como desenvolveu a fala: apenas em contato informal com outros leitores (Souza, 2012; Scliar-Cabral; Souza, 2011; McGuinness, 2006a; Solé, 1998). Em relação ao aprendiz surdo, esse desafio ganha proporções hercúleas, posto que educador e educando têm diante de si a tarefa não apenas de ensinar-aprender a ler, mas mais propriamente a tarefa de ensinar-aprender uma língua nova, “estrangeira”. Ainda assim, professores e documentos de orientações a esses profissionais não podem desconsiderar que a aproximação do aluno surdo à língua portuguesa exige deles a habilidade de leitura, a qual, para ser ensinada, necessita antes da compreensão de como se chega a tal habilidade. Parece, mais especificamente, que é essa compreensão que tem faltado aos professores (Britto, 2012; Souza, 2012; Kleiman, 2011; Scliar-Cabral, Souza, 2011; McGuinness, 2006a; Brasil, 2001), por isso a dificuldade enorme de nosso país em formar leitores eficientes – ouvintes e surdos.
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15 Ato de ler e o leitor: pistas de um processo (não) emancipatório de leitura em um 5º ano do ensino fundamental Marina Vieira Cardoso Angela Cristina Di Palma Back
Introdução O presente tema surgiu das significativas experiências que foram vivenciadas no projeto denominado Observatório da Educação – OBEDUC (Projeto Ler & Educar), programa vinculado à Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior – CAPES, que visa proporcionar a articulação entre pós-graduação, licenciaturas e escolas públicas de educação básica, com a finalidade de estimular a produção acadêmica. Tendo em vista todo o conhecimento acumulado por ocasião da participação junto ao Projeto Ler & Educar, defende-se que a leitura é uma das principais atividades relacionadas à educação. Os livros permeiam a vida de docentes e discentes, e seu ensino-aprendizagem requer o esforço de correr os olhos sobre as muitas letras, palavras e sentenças de um texto, de modo a compreendê-las. Ler, às vezes, pode ser enfadonho, e, para aqueles que não alcançam a compreensão, passa a ser desestimulante na medida em que demanda um esforço para o qual não se está preparado. Tudo isso atesta, de certo modo, que ler não é uma tarefa fácil: exige dedicação, atenção e persistência do leitor. A partir do referencial teórico compartilhado no projeto OBEDUC e com base no já dito, entende-se que ler demanda um processo complexo, 298
que implica muito mais do que mero gosto e prazer; ler é, sobretudo, apropriação de conhecimentos e envolve a elaboração de capacidades superiores do sistema cognitivo, uma vez que a leitura que abordaremos aqui se dá no âmbito escolar, necessária para o desenvolvimento do sujeito. Nesse contexto, questões atinentes à concepção de leitura e processos cognitivos no entorno do ato de ler são necessárias para entender os recorrentes (in) sucessos na compreensão de um texto. Diante do exposto, supõe-se necessário compreender os efeitos da formação de leitores. Posto isso, este estudo é fundamentado em autores como Britto (2012); Costa (2009); Gerhardt e Silveira (2009); Gil (1991); Lakatos (1989); Kato (1999); Leffa (1996); Scliar-Cabral (2013); Smith (1989); Kleiman (2013); Souza (2012); Snowling (2013); Viana (2002) e Piper (2015), que podem contribuir com práticas pedagógicas que ensinem alunos a ler com autonomia, de modo a se desenvolverem enquanto sujeitos de suas próprias produções, isto é, autores. Logo, o presente artigo tem por objetivo analisar, a partir do processo de leitura instalado com alunos de 5º ano, os avanços ou lacunas no ato de ler pertinentes à formação do sujeito (não) emancipado. Assim sendo, pensou-se na relevância de estudar quais as dificuldades que os alunos do 5º ano do Ensino Fundamental encontram ao se deparar com um texto, entendendo que essa problemática se faz necessária para compreender a importância da leitura proficiente na formação do sujeito leitor emancipado. O presente texto organiza-se em três seções que discorrem sobre o que vem a ser leitura dentro da perspectiva interacionista, concepção de leitura adotada para a elaboração deste artigo. Ademais, traz uma breve análise de dados mediante pesquisa de campo, realizada com alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, em que foram ministradas duas aulas de leitura à luz de diferentes concepções, uma que denomino ‘aula tradicional’, por entender que sua prática pedagógica está fundamentada em um “não lugar” teórico e que, por vezes, parece não ser significativa, e outra, no arcabouço teórico interacionista, que concebe a leitura como um aspecto processual e complexo. Por conseguinte, há uma triangulação entre as respostas dos alunos, coletadas numa roda de conversa, correlacionadas a um olhar da autora no 299
desfecho das aulas ministradas e, também, à visão dos teóricos que embasam os estudos do artigo.
Leitura Saber o que é leitura, para além da mera decifração do código escrito ou para além do simples prazer que ela nos proporciona, é indispensável para compreender os processos tão complexos que envolvem essa área do conhecimento. Além disso, essa conceituação é fundamental, num viés mais pedagógico, para pensarmos sobre que tipo de leitores somos, e quais queremos formar, na condição de profissionais da educação. Em sua obra “Inquietudes e desacordos: a leitura além do óbvio”, Britto (2012) relata os vários sentidos expressos para o conceito de leitura. Ele descreve algumas definições provindas do dicionário, que incluem significados muito abrangentes, como leitura de texto, de luz, da mão, de um filme ou de uma obra de arte. Nesses casos, em todas as definições, ler significou uma [...] ação interpretante em função da atividade intelectual organizada; em outras palavras, todo e qualquer gesto interpretante de fatos do mundo seria um gesto leitor- uma definição, sem dúvida, possível, mas certamente desinteressante para compreender leitura, uma vez que se perderia exatamente a especificidade da atividade intelectual mediada pela escrita (Britto, 2012, p. 23).
Ler, nesse contexto, tem relação direta com a leitura do texto mediada pela presença do código escrito e sua consequente automatização. Na área pedagógica, apesar de a leitura ter relação direta com a prática social, ela não se limita apenas a saber fazer, mas sim a capacidades intelectuais do sujeito que envolvem cognição e metacognição, e isso sugere a leitura de textos cada vez mais complexos e sofisticados ao longo dos variados gêneros presentes em uma sociedade letrada. Algumas práticas, sob a análise de Kleiman (2013), parecem insuficientes para atender todas as demandas do que vem a ser leitura e, quando professores entendem a leitura fora de sua “especificidade mediada pela 300
escrita”, podem potencializar alguns equívocos no processo de ensino-aprendizagem. A partir dos comentários da autora, algumas atitudes frente à leitura merecem, no mínimo, muita reflexão. São elas: i) práticas que concebem a leitura como extração de significados, que dão ao leitor uma conotação passiva perante o texto; ii) leitura como decodificação, que se faz mecânica e rapidamente e não exige que o leitor pense muito; iii) leitura autoritária, que também inibe o leitor a compreender o texto, uma vez que desconsidera totalmente seus conhecimentos prévios, dando a entender que a interpretação correta é apenas a autorizada pelo professor. Portanto, a autora enfatiza que a concepção mais adequada para se ler de forma proficiente, envolve, necessariamente, o processamento cognitivo, posto que a leitura não se limita a uma aprendizagem desconexa do processo de ensino-aprendizagem, não se confunde com facilidades ou mero desejo de cada aluno. Ler é uma atividade intelectual que demanda esforço, objetivo e determinação e, para definir leitura, é preciso conhecer o aspecto “psicológico, cognitivo da leitura” (Kleiman, 2013, p. 46); só assim será possível detectar e propor métodos exitosos. Diante do exposto, ler está para além da identificação de letras, palavras ou sentenças. Ler é pensar e interagir. Logo, este artigo abordará que, durante a leitura, a compreensão não se dá apenas ao atribuir ou extrair sentidos, mas estes se constroem na medida em que ocorre interação entre texto e leitor, o que será discutido na próxima subseção.
Leitura: interação e pensamento A respeito da leitura, Leffa (1996) traça uma comparação entre o processo de olhar-se, ou olhar algo no espelho, e a própria leitura. Conforme o autor, ocorre, nessas ocasiões, o que é chamado de “processo de triangulação” (Leffa, 1996, p. 11). Essa triangulação é formada pela interação entre leitor, código escrito, refletindo ou não na compreensão, e a interpretação do sujeito que lê. Ele analisa, cria estratégias segundo seu objetivo e compreende o texto, ou ainda, não o compreende, sendo que, quando isso ocorre, não há processo de triangulação, ocasionado, por vezes, pela falta de conhecimento prévio sobre o assunto. Entender isso é importante para que possamos definir o que é leitura. 301
De acordo com o autor supracitado, a leitura pode ser uma questão de extrair sentido do texto, atribui-lo ou mesmo de interagir com ele, sendo esses três processos, respectivamente, concepções de leitura numa perspectiva ascendente, descendente e interacionista. A leitura enquanto extração de significado “está associada à ideia de que o texto tem um significado preciso, exato e completo” (Leffa, 1996, p. 12), em que o leitor não precisa ativar seus conhecimentos prévios para obter respostas, muito menos supor alguma resposta que não esteja estritamente no texto, tornando o leitor passivo perante ele. A leitura numa perspectiva descendente parte do posto de que “o texto não contém a realidade, reflete apenas segmentos da realidade, entremeados de inúmeras lacunas, que o leitor vai preenchendo com o conhecimento prévio que possui do mundo.” (Leffa, 1996, p. 14). Dessa forma, apenas o leitor tem sua relevância no processo, não importando qualquer objetivo que o autor traçou em sua obra, pois ao leitor cabe dar sentido ao texto. A concepção abordada neste artigo opta por uma terceira via, segundo a qual ler é interagir com o texto. Portanto, [...] leitura implica uma correspondência entre o conhecimento prévio do leitor e os dados fornecidos pelo texto. Leitor e texto são como duas engrenagens correndo uma dentro da outra; onde faltar encaixe nas engrenagens leitor e texto se separam e ficam rodando soltos. Quando isso acontece, o leitor fluente, via de regra, recua no texto, retomando-o num ponto anterior e fazendo uma nova tentativa. Se for bem sucedido, há um novo engate e a leitura prossegue (Leffa, 1996, p. 22).
Além disso, a perspectiva interacionista sugere que o ato de ler é um processo complexo, sendo mobilizadas, na tarefa, estratégias cognitivas e metacognitivas, as quais Leffa (1996) denomina, respectivamente, conhecimento declarativo - que “envolve apenas consciência da tarefa a ser executada. O indivíduo sabe o que tem que fazer e é capaz de fazê-lo (ex.: resumir um texto)” (Leffa, 1996, p. 49) – e conhecimento processual, que “envolve não apenas a consciência da tarefa a ser executada, mas, de certo modo, consciência da própria consciência” (Leffa, 1996, p. 49). 302
Segundo Kleiman (2013, p. 75), “as estratégias cognitivas da leitura seriam aquelas operações inconscientes do leitor, no sentido de não ter chegado ainda ao nível consciente, que ele realiza para atingir algum objetivo de leitura”, são automatizadas e incluem processos no nível de decodificação como: relação entre grafema e fonema, realização de inferências textuais, domínio de regras gramaticais, conhecimento de vocabulário etc. Logo, as estratégias metacognitivas “seriam aquelas operações (não regras), realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação.” (Kleiman, 2013, p. 74). Isto é, são ações desautomatizadas sob o texto, em que o leitor pode ir e vir quando desejar. Muitas são as estratégias metacognitivas, e Souza (2012, p. 76) se preocupa em apresentar algumas, tais como: [...] a marcação, manifestada por meio de sublinhado, colchetes, parênteses, traçados à margem ou destaca texto, [...] o autoquestionamento, estratégia não muito popular, que implica a formulação de perguntas durante a atividade de leitura e a tentativa de respondê-las retextualizando aquilo sobre o que discorre o texto. [...] A construção textual de uma síntese ou resumo [...]. Ambas, por meio da identificação do esqueleto textual, permitem que se produzam tópicos organizados ou desenhos do texto.
Dessa maneira, Kato (1999) afirma que as estratégias leitoras podem facilitar a compreensão de determinado texto ao leitor, conforme a quantidade de estratégias utilizada para compreender o texto. Kleiman (2013) também observa isso ratificando que o leitor proficiente possui uma estratégia natural de automonitoração da compreensão, isto é, ele tem um objetivo quanto a sua leitura, ancorado no autor, no ano, no gênero ou em algum outro aspecto do texto, e, ainda, compreende o que lê, visto que, quando não obtém compreensão, ele retoma a leitura do texto. Todavia, para compreender um texto, muitos são os processos que o leitor precisa automatizar e desautomatizar concomitantemente, para então alcançar o que é chamado de proficiência em leitura.
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Alguns aspectos cognitivos: inferências, memórias e consciência fonológica Como já dito, muitos são os processos que envolvem o ato de ler. Nesta seção, explanar-se-ão alguns desses processos que parecem, inicialmente, relevantes para a compreensão de que ler é uma atividade cognitiva processual e intensa. Primeiramente, faz-se necessário entender como é a estrutura de um texto, pois o texto escrito é o objeto do leitor. Segundo Kintsch e Rawson (2013), todo texto possui uma microestrutura e uma macroestrutura. A microestrutura refere-se ao significado das palavras dentro do texto, enquanto a macroestrutura representa a estrutura global do texto. As duas formam a base textual, que é o sentido do texto. Nesse caso, [o] conteúdo textual deve ser usado para construir um modelo situacional; ou seja, um modelo mental da situação descrita pelo texto. Geralmente, isso exige a integração de informações fornecidas pelo texto com o conhecimento prévio relevante e os objetivos do indivíduo que compreende (Kintsch; Rawson, 2013, p. 229).
Diante dessa informação, pode-se analisar alguns processos relacionados à construção de significado do texto, isto é, à formação da base textual, inerentes aos processamentos da leitura. Segundo os autores supracitados, para a formação da base textual, é necessário que o leitor faça inferências textuais, que nada mais são que o preenchimento das lacunas no texto, em que o leitor terá que fazer uma conclusão lógica de uma ideia que não foi deixada explícita pelo autor. As inferências podem ser automáticas ou controladas. As automáticas “são feitas de forma rápida e fácil [...]”, enquanto os processos controlados “podem demandar muitos recursos, como será o caso de um texto que exija raciocínio silogístico” (Kintsch; Rawson, 2013, p. 237). De acordo com Kleiman (2013), a adivinhação, como também é chamada a habilidade de fazer inferências, pauta-se no ato de buscar pistas dentro do contexto linguístico do texto para descobrir ou chegar perto do 304
significado da palavra ou sentença desconhecida. Quando o leitor iniciante faz isso, ele evita o maior problema com que se depara “quando a proporção de palavras desconhecidas interfere e impossibilita a leitura fluente, que deve ir de ideia em ideia com base nos conhecimentos que a palavra mobiliza” (Kleiman, 2013, p. 110). Outro elemento importante para a formação da base textual e, consequentemente, para a compreensão de um texto é o papel das memórias, desde a memória sensorial, aquela que capta a materialidade textual, passando pela memória de curto prazo, também conhecida como memória de trabalho, segundo Baddeley (2011), até a memória de longo prazo. O componente de longa duração [...] contém todos os itens da memória de longa duração do leitor que estão relacionados com os conteúdos atuais da memória de curta duração [...] por meio das estruturas de recuperação. Deste modo, as estruturas de recuperação disponibilizam informações armazenadas na memória de longa duração que sejam diretamente relevantes para a tarefa em questão, sem necessidade de processo de recuperação que demandem muito tempo e recursos (Kintsch; Rawson, 2013, p. 242).
Dessa forma, a memória de longa duração é fundamental para compreendermos um texto a respeito do qual temos demasiado conhecimento prévio, visto que as estruturas de recuperação, para Kintsch e Rawson (2013), são ativadas quando possuímos domínio e conhecimento sobre o tema que lemos. Smith (2011) abrange em sua obra, ‘Compreendendo a leitura’, um aspecto da memória denominado armazenamento sensorial. Ele representa esse processo como o primeiro aspecto considerável no momento da leitura, em que o indivíduo recebe a informação visual por meio de fixações (movimentos de sacada), “processo em que os olhos se fixam num lugar do texto, para depois pular num trecho (a sacada), e fixar-se num ponto mais adiante” (Kleiman, 2013, p. 48). Então, essa informação é levada ao cérebro para ser processada e produzir algum sentido, visto que tudo isso ocorre muito rapidamente. Sendo assim, 305
[...] o que faz diferença na leitura é a efetividade do cérebro para utilizar o que já sabe (a informação não visual) para extrair sentido da informação recebida (informação visual) mantida por curto espaço de tempo no armazenamento sensorial (Smith, 2011, p. 114).
Posto isto, os leitores proficientes lidam mais facilmente com a memória sensorial, recuperando, sempre que necessário, informações importantes para a compreensão do texto. Já os leitores iniciantes não possuem essa habilidade tão acentuada, pela falta de experiência em decodificação e pelo defasado conhecimento sobre os significados das palavras e do assunto. Decorrente, portanto, do exposto, o papel das inferências e do modo como elas operam a partir das memórias têm impactos substanciais na aquisição da leitura, em especial quanto ao domínio dos conhecimentos básicos adquiridos durante o processo da alfabetização. Vamos discorrer aqui sobre a consciência fonológica, uma das habilidades desenvolvidas quando se aprende a ler e escrever. Conforme Scliar-Cabral (2013, p. 101), [...] a consciência metalinguística e a consciência fonológica na qual ela se insere decorrem de o ser humano poder se debruçar sobre um objeto, no caso, a linguagem, de forma consciente, utilizando a linguagem [...]. No caso particular da consciência fonológica, o objeto sobre o qual você se debruça conscientemente são os fonemas, e a linguagem utilizada é o alfabeto.
A autora coloca que, sem esse domínio, não é possível obter fluência em leitura a fim de compreender um texto. Conforme Bowey (2013, p.179), “a memória fonológica pode permitir que as crianças aprendam a associar letras aos seus nomes e sons”. Portanto, a habilidade bem desenvolvida da percepção auditiva das palavras, também influencia na compreensão de textos. Viana (2002) aborda sobre a massificação do termo consciência fonológica, pautando que, quando se fala sobre esse conceito, estudam-se diferentes “níveis de conhecimento” (Viana, 2002, p. 44). A consciência fonológica “seria reservada para designar a capacidade de prestar atenção consciente aos sons das palavras, como entidades abstratas e manipuláveis” 306
(Viana, 2002 apud Adans, 1994, p. 45). O termo adequado para designar os “comportamentos que revelam a discriminação precoce de sons, evidenciada desde muito cedo na produção linguística das crianças, mas que ocorrem de forma intuitiva, não consciente” (Viana, 2002, p. 44), seria o conceito de epifonologia, que poderá ser discutido em outra pesquisa. Segundo Piper (2015, p. 27), [c]ompreender que a fala possui uma estrutura fonêmica subjacente é de extrema importância para a aprendizagem da leitura porque possibilita a conversão da ortografia em fonemas, permitindo que a criança leia palavras novas, embora a leitura das palavras irregulares ainda seja realizada com muitos erros. Isto permite a autoaprendizagem pelo leitor, pois ao se deparar com uma palavra nova, ele a lerá por decodificação fonológica.
Portanto, o desenvolvimento da consciência fonológica está estritamente relacionado ao desenvolvimento da habilidade leitora, de modo que quanto mais a criança consegue diferenciar e operar os sons da língua, maior facilidade terá em compreender um texto.
Metodologia, apresentação e análise de dados Nas próximas subseções, serão apresentadas a análise de dados, e conseguinte metodologia utilizada, relacionada à observação das aulas ministradas e roda de conversa. A investigação mostra a interação estabelecida entre os alunos e o objeto de estudo, a saber, o texto escrito, sendo analisados, nesse processo de ensino-aprendizagem, os avanços e/ou lacunas no ato de ler que contribuem ou não para a formação do sujeito leitor emancipado.
Metodologia: percurso desta pesquisa Para fazer uma pesquisa, é necessário, em primeiro lugar, que o pesquisador tenha algum conhecimento sobre o tema que irá investigar. Além disso, qualidades como curiosidade, criatividade, confiança e ati307
tude são fundamentais na obtenção de êxito na exploração. Dessa forma, para Gil (1991, p. 19), a pesquisa é “um procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos”. O presente estudo buscou analisar, a partir do processo de leitura instalado com 25 alunos do 5º ano do ensino fundamental de uma escola municipal de Criciúma, os avanços e/ou lacunas pertinentes à formação do sujeito emancipado. Para atender aos objetivos deste trabalho, foi realizada uma pesquisa de natureza exploratória, que, segundo Gil (1991), baseia-se no contato direto com o campo, fazendo uso de levantamento bibliográfico, entrevistas com sujeitos e proporcionando maior compreensão sobre o assunto a partir da análise dos dados coletados. A abordagem metodológica do problema é de cunho qualitativo, isto é, “não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização” (Gerhardt; Silveira, 2009, p. 31) e com as dinâmicas e relações sociais de determinado meio. A pesquisa aplicada, conforme Gerhardt e Silveira (2009, p.35), “objetiva gerar conhecimentos para aplicação prática, dirigidos à solução de problemas específicos. Envolve verdades e interesses locais”. Nesse caso, para atender aos objetivos aqui propostos, optou-se por uma espécie da investigação de característica aplicada. O procedimento desta pesquisa é a pesquisa campo, sendo que esta, segundo Lakatos (2003, p. 187), tem seu objetivo “voltado para o estudo de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e outros campos, visando à compreensão de vários aspectos da sociedade”. Logo, a população de estudo compreendeu alunos do 5º ano de uma instituição municipal localizada em Criciúma/SC. A escolha da turma se deu em virtude de se esperar que os alunos que se encontram nessa fase escolar já tenham passado pelo processo inicial de alfabetização, dominando estratégias cognitivas essenciais para prosseguir com uma leitura fluente. A pesquisa se deu em quatro momentos. No primeiro, foi realizada a observação da turma do 5º ano, com o intuito de criar vínculo com os alunos. No segundo e terceiro momentos, foram ministradas aulas de leitura 308
com a turma, pautadas na concepção tradicional e interativa, respectivamente. Por último, no quarto momento, todos os alunos participaram de uma roda de conversa, inspirada na metodologia do Grupo Focal, que propiciou ao pesquisador uma interação mais direta com o grupo, ajudando a coletar dados sobre a aprendizagem dos participantes em ambas as aulas. A essência do grupo focal consiste justamente na interação entre os participantes e o pesquisador, que objetiva colher dados a partir da discussão focada em tópicos específicos e diretivos (por isso é chamado grupo focal) (Lervolino; Pelicioni, 2001, p. 116).
Os planejamentos das aulas serão explicitados à medida que formos articulando acerca dos dados coletados na pesquisa de campo.
Formação de leitor: o que a análise dos dados aponta Em face dos apontamentos sobre o ato de ler e o leitor, contemplados neste trabalho, apresentar-se-ão, agora, a descrição dos dados coletados na pesquisa de campo e a discussão dos resultados. Quanto à preparação das aulas, o texto da primeira aula de leitura, que chamaremos de aula tradicional, foi selecionado de acordo com uma experiência vivenciada pela pesquisadora, enquanto professora em formação, no Estágio Obrigatório de Jovens e Adultos, no qual teve a oportunidade de assistir a uma aula em que a professora da turma trabalhava compreensão textual. Na ocasião, a ação da professora foi a de transcrever o texto no quadro e solicitar aos alunos que respondessem a algumas perguntas de interpretação, não ocorrendo em nenhum momento uma mediação no processo de leitura e compreensão dos alunos, que apresentavam dificuldades em responder perguntas simples e que estavam explícitas no texto. No final da atividade, a professora fez a correção das perguntas, porém, como os alunos não as respondiam conforme sua expectativa, ela simplesmente transcreveu as respostas no quadro, não oportunizando a interação e a reflexão. Postos os termos do que se considera aula tradicional, elaborou-se o tratamento didático a partir do texto utilizado – “O Sonho de Ícaro”, adaptação de Paulo Netho – com base no qual se solicitou aos alunos para lerem 309
silenciosamente e responderem algumas questões de interpretação. As perguntas restringiam o ato de pensar. Por exemplo, a questão “a” questionava por que Dédalo construiu dois pares de asas, sendo que a resposta estava explícita no segundo parágrafo do texto. Figura 1: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”
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Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-para-5o-ano
Assim também acontecia nas demais perguntas: em b), “Que conselho ele deu a seu filho?”, como a resposta era encontrada no 4º parágrafo do texto, os alunos realmente apenas copiaram o trecho; o que também ocorre de modo explícito em (c) que, sem exigir esforço cognitivo consistente, possuía o comando: “Copie o trecho do texto que comprova se Ícaro obedeceu ou não seu pai”; e em (d) “Qual o título da história?” Figura 2: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”
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Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-para-5o-ano Figura 3: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”
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Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-para-5o-ano 310
Figura 4: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”
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Fonte: Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-para-5o-ano
Além disso, solicitou-se a leitura de trechos do texto em voz alta, com a finalidade de enfatizar que ler bem e sem erros é uma das características principais do bom leitor, aspecto esse acentuado na aula tradicional. Logo, as perguntas foram corrigidas no quadro e, caso a resposta do aluno estivesse diferente da professora, era considerado um erro que deveria ser corrigido. Então, como sobrou algum tempo da aula, os alunos que iam terminando podiam desenhar algo sobre o texto, sem objetivo específico, apenas para passar o tempo e evitar as conversas paralelas, aspecto também específico da aula tradicional. O processo de ensino-aprendizagem descrito anteriormente, segundo Kleiman (2013), norteou-se em práticas insuficientes e que não atendem às exigências do processo de compreensão textual. Já o segundo texto, utilizado para aplicar o modelo de aula de leitura com enfoque interacionista, foi selecionado conforme o livro Programa de Intervenção “O ensino da Compreensão leitora. Da teoria à prática pedagógica”, da autora Fernanda Viana. Nesse livro, há sugestões para se trabalhar a compreensão textual e, inclusive, a autora já propõe algumas questões de interpretação mediante cada texto exposto. Essa concepção do ensino da leitura refere-se ao texto escrito propriamente dito e não a outros tipos de leitura, conforme expõe Britto (2012), não se confundindo com leitura de filmes e imagens. Sendo assim, o professor ensina o aluno a ler e interpretar, dando a eles objetivos significativos para que compreendam o texto. Além disso, estratégias de leitura são ensinadas, conhecimentos prévios são explorados. Enfim, o conhecimento é mediado por uma série de ações que visam a contribuir com a formação de um sujeito leitor emancipado. Para o tratamento didático, foram selecionados quatro textos, entre os quais, “Firmino, o amigo dos pássaros”1, do autor José Jorge Letria, foi o 1
Ver anexo, texto na íntegra.
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escolhido para a prática de leitura em questão. A escolha se deu por se tratar de um texto com linguagem mais acessível, com apenas algumas palavras no idioma português de Portugal, mas que podiam ser entendidas pelo contexto. Os demais apresentavam vocabulários também no idioma de Portugal; podendo apresentar dificuldades demasiadas à faixa etária, em função de o vernáculo lusitano ser distinto do vernáculo brasileiro sob vários aspectos. Tendo isto em vista, questionou-se aos alunos que assunto o título do texto sugeria e forneceram-se pistas sobre ele com o intuito de ativar esquemas mentais e conhecimentos prévios sobre o assunto, uma vez que a memória de longa duração é fundamental para compreendermos um texto a respeito do qual temos demasiado conhecimento prévio (Kintsch; Rawson, 2013). O comando seguinte foi o de que lessem silenciosamente o texto, fazendo uma leitura global, para ter uma ideia sobre o assunto, e uma leitura pausada, sublinhando e escrevendo o que entenderam de cada parágrafo. Nesse momento, foi mencionado que o objetivo da leitura era a compreensão do texto na íntegra, pois seriam respondidas algumas questões posteriormente. Segundo Viana (2002), quando queremos estudar um texto, são recomendadas, no mínimo, duas leituras; daí estarem adotando essa estratégia, que se difere bastante de leitura para informação, ou da leitura para prazer (ler um romance, uma piada, uma receita). Feito isso, leu-se o texto no grande grupo, refletindo e fazendo comentários, por vezes inferenciais, sobre cada parágrafo. Conforme Souza (2012), a ação de mediar a leitura do texto, ou seja, de ensinar os alunos a ler, tem relação direta com a concepção de leitura que o professor adota e é fundamental no processo de compreensão. Após o processo descrito acima, disponibilizaram-se algumas questões para que os alunos respondessem. A primeira atividade tratava da compreensão inferencial, que, segundo Kleiman (2013), é uma estratégia pautada no ato de buscar pistas dentro do texto para descobrir ou chegar perto do significado da palavra ou sentença desconhecida, o que colabora no processo de compreensão, pois as afirmações da atividade não se tratavam de questões explícitas: o aluno precisava procurar informações dentro do texto que o ajudassem a confirmar suas decisões, bem como utilizar seus conhecimentos prévios sobre espantalhos a fim de obter êxito. 312
Figura 5: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”
Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 111)
A segunda atividade se refere à habilidade de metacompreensão. Foi pedido ao aluno que descrevesse como tinha certeza de ter respondido corretamente à questão anterior, pois fazer essa reflexão evoca o pensamento e requer habilidades metacognitivas, que, de acordo com Kleiman (2013), relacionam-se ao ato do sujeito ser capaz de explicar sua decisão, mas lembrando que as correções aconteciam no coletivo, além do que a professora (pesquisadora em questão) circulava mediando e interagindo com os alunos. Figura 6: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”
Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 112)
O exercício de número três reportava-se à reorganização das sentenças, habilidade também de nível inferencial. De acordo com Kintsch e Rawson (2013), o texto possui uma macroestrutura que se refere ao seu sentido global. Para que o leitor consiga formar a base textual e obter compreensão, é necessário entender a organização do texto, o que a atividade que se segue possibilitou, uma vez que facilitou a identificação da mensagem central, permitindo ao aluno sintetizar as informações e dar sentido à leitura. 313
Figura 7: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”
Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 112)
Posteriormente, requisitou-se que fizessem um resumo de um trecho do texto, mediante explicação prévia do que este gênero vem a ser e de como elaborá-lo. Dessa forma foi possível proporcionar aos alunos a experiência de produção escrita, evidenciando que se torna fácil escrever sobre algo, quando há a compreensão do texto a partir de uma leitura estratégica. O ato de ler, segundo Leffa (1996), é um processo complexo que implica a análise e elaboração de estratégias que auxiliam na compreensão, e, quanto mais o leitor adota uma leitura estratégica segundo seus objetivos, melhores serão os resultados obtidos. Figura 8: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”
Reprodução
Fonte: VIANA (2010, p. 112)
Os alunos desempenharam essa atividade com dificuldade, conforme relatado mais adiante nas respostas coletadas na roda de conversa. Porém, 314
possibilitou-se a mobilização de estratégias de leitura, fazendo-os utilizar habilidades cognitivas e metacognitivas com o propósito de pensar sobre o texto e explicar suas deduções, realizando a ação de extrair o sentido de cada parágrafo, registrando o que entendeu e sublinhando o que não obteve compreensão, para então, elaborar o resumo. No final, apresentou-se uma pergunta de compreensão crítica, em que o aluno precisava expor sua opinião sobre se o espantalho deveria ou não ter partido com os pássaros. Fazer essa reflexão permitiu a interação com o texto, pois o leitor poderia, por meio da avaliação que fez durante todo o processo de leitura, discordar ou não do autor e de como este deu fechamento a sua história. Desse modo, foi propiciado aos sujeitos, mais uma vez, tornarem-se leitores emancipados, que conseguem ir e vir no texto, fazendo cumprir seu objetivo e se tornando mais críticos e pensantes. Figura 9: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”
Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 113)
Essa tarefa atingiu seu objetivo, pois os 25 alunos conseguiram emitir juízo de valor sobre o desfecho da história, explicando o porquê de sua opinião. A título de exemplo, registrou-se a atividade acima quando tiveram a oportunidade de emitir sua opinião sobre Firmino, o personagem principal da história, ter partido com os pássaros. Formularam respostas como: “Sim, porque ele estava triste na seara e era o sonho dele”, “Sim, porque é o sonho dele” e “Sim, porque ele queria que os pássaros fossem amigos dele”. Em concordância com o exposto, a análise de dados foi realizada com base no andamento e na observação das aulas ministradas e na roda de conversa instituída, dado que esta última consistiu numa avaliação que os alunos fizeram referente às duas aulas que vivenciaram, sendo que no per315
curso da conversa, foram feitas a eles algumas perguntas semiestruturadas. Mediante esses instrumentos de pesquisa, obteve-se um olhar criterioso para os avanços ou lacunas no ato de ler pertinentes à formação do sujeito emancipado, sobretudo leitor. Conforme referencial teórico, pôde-se compreender como a abordagem interacionista propõe o trabalho da leitura, que consiste na [...] ação interpretante em função da atividade intelectual organizada; em outras palavras, todo e qualquer gesto interpretante de fatos do mundo seria um gesto leitor – uma definição, sem dúvida, possível, mas certamente desinteressante para compreender leitura, uma vez que se perderia exatamente a especificidade da atividade intelectual mediada pela escrita (Britto, 2012, p. 23).
Partindo desse pressuposto, na realização da roda de conversa, os alunos foram questionados sobre como descreveriam um bom leitor, dado que alguns mencionaram que seria uma pessoa que “usa a cabeça, é inteligente, tem ideias”, indo ao encontro do que Leffa (1996) destaca, a saber, que o ato de ler é processual e requer esforço intelectual. Já outros responderam que seria uma pessoa que “não fica gaguejando na hora que lê, lê alto e lê bem”, o que conota uma visão, mesmo que não intencional, reducionista da leitura, ancorada numa perspectiva tradicional de ensino, que coloca em evidência a visão nacional da “Arte do bem falar”. Similarmente, questionou-se sobre o que faz com que uma pessoa goste de ler e que tipo de pessoa lê mais. Algumas respostas como: “gostar de estudar e aprender e gostar de ler” definiram o que indica Britto (2012), quando cita que a leitura escolar tem relação direta com a leitura do texto, não se limitando apenas ao saber fazer ou ler por mero gosto, mas sim com capacidades intelectuais do sujeito, uma vez que as afirmativas expostas acima estão diretamente relacionadas à leitura realizada na escola e com objetivos escolares. Questionados sobre por que as pessoas leem ou por que as pessoas leem na escola, de 25 alunos, 14 responderam que as pessoas leem para passar na prova, sustentando a reflexão de Kleiman (2013), segundo a qual o ensino de leitura tem pouca significação e contextualização dentro das 316
escolas, suscitando essa atitude: ler apenas para passar de ano. Quanto ao restante da turma, 9 responderam que as pessoas leem para entender um assunto, e 1 respondeu que as pessoas leem para poder aprender, o que são respostas mais plausíveis, mostrando que esses alunos possivelmente entendem a necessidade da leitura. Tendo em vista a aula de leitura ministrada com enfoque tradicional, que chamaremos de aula I e a interacionista, que chamaremos de aula II, constatou-se que na aula I os alunos leram o texto rapidamente, não tiveram muitas dúvidas, realizaram a atividade em silêncio e com facilidade, correspondendo ao que se pressupôs em relação a uma aula tradicional, tendo em vista que nas respostas coletadas na roda de conversa, os 25 alunos responderam achar fácil a atividade solicitada na aula I. Logo, no momento da correção das perguntas de interpretação, eles acertaram a maioria das repostas. Ressalta-se que, dentro do contexto da aula tradicional, conforme aponta Kleiman (2013), a aula foi dirigida concebendo a leitura como extração de significados, isto é, os alunos ficaram passivos perante o texto, fazendo uma leitura mecânica e rápida, uma vez que não foram orientados a pensar e refletir sobre o texto, em função de que as respostas às perguntas estavam na superfície, não oferecendo nenhum desafio ao leitor. Além disso, o momento da correção das atividades aconteceu de forma autoritária, já que apenas as respostas mencionadas pela pesquisadora é que estavam corretas e isto, segundo a mesma autora, inibe o leitor a compreender o texto. Portanto, a aplicação da aula de leitura I reduziu-se, a partir do que ponderamos com Kleiman (2013), a uma aprendizagem desconexa do processo de ensino-aprendizagem, uma vez que não se levou em consideração os conhecimentos prévios dos alunos e sua participação no processo de compreensão textual. Por intermédio da aplicação da aula II e da roda de conversa efetuada, verificou-se o papel das estratégias cognitivas e metacognitivas durante a compreensão da leitura. Nesse ínterim, os alunos foram orientados a ler duas vezes o texto, uma leitura geral e outra detalhada, utilizando algumas estratégias como sublinhar e escrever o que entenderam ou não, sobre cada parágrafo do texto. Essa ação, segundo Kleiman (2013), refere-se à utilização de estratégias metacognitivas, que tratam, como já grafado, de ter 317
consciência da própria consciência. Congruente, foi possível constatar por meio da observação da pesquisadora e andamento das aulas, algumas dificuldades encontradas pelos alunos do 5º ano durante a leitura de um texto. Por conseguinte, apesar da explicação prévia e mediação constante, observou-se que os alunos possuíam dificuldades em entender como se dá a elaboração de um resumo, como se executa o registro do que é significativo no texto e o que não se compreendeu a partir da leitura, porque quando não entendiam alguma frase ou palavra, muitos deles não tinham consciência disso, prosseguindo a leitura mesmo sem obter a compreensão. Sobre isso, Kleiman (2013) observa que o leitor proficiente possui uma estratégia natural de automonitoração da compreensão e, quando não obtém compreensão, ele retoma a leitura do texto, o que não aconteceu com esses alunos, constatando a falta de proficiência em leitura. Concernente à pergunta relativa a já terem feito um resumo e gostarem de fazê-lo, todos os alunos responderam que já o haviam feito, mas que gostavam mais ou menos ou não gostavam da elaborá-los, talvez, justamente por essa prática ainda não ter sido efetivada no cotidiano das aulas, requerendo dos sujeitos mais envolvimento e autonomia na produção. Embora os alunos atestassem já terem executado essa estratégia de compreensão textual, percebeu-se por meio da observação da pesquisadora durante a aplicação da aula II, que o exercício não é frequente, pois que, como mencionado anteriormente, houve muita dificuldade em sua realização. Essas respostas corroboram com a indicação de Kleiman (2013), ao dizer que as estratégias cognitivas e metacognitivas precisam ser automatizadas e desautomatizadas ao mesmo tempo, apesar de que, neste caso, há a necessidade da automatização da elaboração de resumos por meio da prática progressiva. Alguns alunos comentaram que era difícil realizar o que era pedido, pois tinham que pensar muito, outros perguntaram se eu não poderia apenas mandar sublinhar as palavras que não entenderam ou que os ajudassem, dizendo a eles exatamente o que era para anotar em cada parágrafo do texto. Como vimos anteriormente, Kleiman (2013) pontua que ler é uma atividade intelectual que demanda esforço, objetivo e determinação; desse jeito, mediante a experiência da aula II, observou-se a pouca habilidade e 318
frequência desse tipo de tarefa. Faz-se necessário ressaltar aqui que, de vinte e cinco alunos, aproximadamente, seis alunos, entenderam a atividade e fizeram resumos apropriados. Em relação à pergunta voltada para a estratégia de sublinhar o texto, ou seja, se esta havia facilitado na sua compreensão, as respostas confirmaram a premissa de Kato (1999), de que as estratégias leitoras podem sim facilitar a compreensão de determinado texto ao leitor, já que quase todos os alunos, com exceção de um que mencionou não ter feito diferença, responderam que sim, que a estratégia de sublinhar o texto havia facilitado para responder as perguntas. Outra questão da roda de conversa se referia sobre qual fora a aula mais significativa, a I ou II, e em qual delas achavam que haviam aprendido mais. A resposta prevalente foi que aprenderam mais na aula II, evidenciando a produção de sentido por parte dos alunos. Dessa maneira, por meio da ministração da aula II, foi proporcionado aos alunos que interagissem com o texto, contribuindo para o início de um processo emancipatório do sujeito, concordando sobre o aspecto interacionista da leitura sobre o qual observa Leffa (1996), quando afirma que ler é pensar, é uma questão de construir sentidos, que se dá na medida em que o leitor ativa suas memórias, respectivos esquemas mentais e conhecimentos prévios, e interage com o texto. Logo, não existe leitor sem texto e texto sem leitor. Questionou-se, também, se sentiram dificuldade em entender o texto e responder as perguntas de interpretação da aula II. De vinte e cinco alunos, dez responderam que o grau de dificuldade foi mais ou menos e apenas quatro responderam sentir realmente dificuldade. Todavia, no percurso dessa aula, apesar dos alunos atestarem que acharam a aula II mais ou menos difícil, percebeu-se por meio da realização das atividades, a falta da prática em leitura por parte da grande maioria do grupo, o que gerou a dificuldade em compreender o texto, uma vez que se prolongaram três dias para a conclusão da execução dessa aula. Dessa forma, atesta-se o que salienta Smith (2011) acerca de que o ato de ler é processual. O sujeito não se torna proficiente em leitura de um dia para o outro, pois despende esforço cognitivo, portanto, verifica-se que é possível que a leitura, quando mediada e ensinada, contribua positivamente para a formação do leitor emancipado. 319
Conclusão Fundamentando-se nas análises apresentadas na seção precedente e refletindo sobre o que os autores mencionados apontam sobre a complexidade do ato de ler e estabelecer sentido ao texto, entendeu-se que o conhecimento sobre os processos cognitivos, quando se lê, é uma questão importante para a compreensão textual. Por isso, é necessário pesquisar sobre esse aspecto da leitura nas escolas, pois saber como é o desenvolvimento cognitivo no que tange ao processamento da leitura se faz relevante para poder analisar quais as lacunas e os avanços existentes ou não na compreensão leitora de alunos de 5º ano. A partir das aulas, tradicional e interativa, respectivamente, que foram ministradas com os alunos do 5º ano de uma escola Municipal e da roda de conversa estabelecida, foi possível detectar que a aula de leitura tradicional, ministrada de forma descontextualizada, fragmentada, concebendo o leitor como mero receptor de informações e, portanto, sem significação para o aluno, não contribuiu para a formação do sujeito pensante, ou melhor, do leitor autônomo, que controla suas ações e sabe explicá-las. Além disso, evidenciou-se que sem a mediação e intervenção do professor, como ocorreu nessa aula, não houve o ensino da leitura propriamente dito e, consequentemente, não se efetivou o processo de construção do leitor proficiente. Já na aula interativa, foi possível verificar que a mediação e intervenção da pesquisadora, por meio do estabelecimento de objetivos, ensino da utilização de estratégias de leitura como sublinhar o texto, fazer um resumo, fazer anotações sobre o texto, realizar atividades inferenciais, iniciou um processo de emancipação do sujeito enquanto leitor, tendo em vista que essa aula foi ministrada entendendo a leitura como um processo complexo e concebendo o leitor como sujeito ativo e participativo na construção do significado do texto, isto é, priorizando a interação entre leitor e texto e contribuindo para a formação do processo de triangulação, tendo como produto final a compreensão. Igualmente, foi possível constatar que os alunos do 5º ano possuem dificuldades em compreender um texto mais extenso e com vocabulário com maior grau de dificuldade, em razão de não saberem utilizar estratégias 320
de leitura, como retomar a leitura quando necessário e por apresentarem dificuldades em explicar o que compreenderam por meio da escrita. Contudo, verificou-se, por meio das falas dos alunos, que as estratégias leitoras, como sublinhar e anotar o que entendeu do texto, facilitam esse processo de compreensão. Portanto, constata-se que se o professor ensinar o aluno a ler, dentro de uma perspectiva interacionista, estará contribuindo gradativamente com a formação do leitor emancipado, que sabe ir e vir no texto quando precisa, a fim de compreendê-lo. De forma que, cada vez mais, esse aluno conseguirá fazer leitura de textos mais complexos. Congruente às informações explanadas, espera-se alcançar as intenções propostas neste trabalho, contribuindo para uma Educação mais qualitativa no que tange à formação de sujeitos para que possam usufruir da leitura para sua emancipação e autonomia. Espera-se que este texto possa promover mais estudos, em particular, no curso de Pedagogia, que fomentam os processos cognitivos e psicológicos da leitura, sendo uma referência de pesquisa e um ascendente para a prática interacionista da leitura nas salas de aula, colaborando, assim, para o cumprimento da função social da escola de formar cidadãos emancipados, em especial, que façam uso da leitura para atuar na sociedade de forma crítica e reflexiva.
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Anexo A- Texto aula tradicional O sonho de Ícaro Contam os que sabem que Dédalo foi um homem muito sábio na Grécia. Ele era o pai de Ícaro. Quando eles estavam presos no labirinto do Minotauro, teve a ideia de construir dois pares de asas para ele e o filho fugirem dali. Dédalo construiu-as com as penas dos pássaros, depois as colou com cera. Antes de levantar voo, disse ao filho: — Não voe muito alto, perto do sol a cera derrete. Nem voe muito baixo, perto do mar a umidade deixa as penas pesadas e você pode cair. Mas a sensação de voar foi tão estonteante para Ícaro que ele esqueceu a recomendação e elevou-se tanto nos ares a ponto do pior acontecer. A cera derreteu. Ícaro perdeu as asas, caiu ao redor do mar de Creta e morreu afogado. (Adaptação de Paulo Netho)
Anexo B – Texto aula interativa Firmino, o amigo dos pássaros — Porque não gostam os pássaros de mim, se os pássaros são a coisa de que mais gosto na vida? – lamentava-se, choroso, o espantalho Firmino, vendo bandos de pardais, tentilhões e pintassilgos a voar muito distantes, a caminho de terras quentes. Tinham-no colocado no meio de uma grande seara para afugentar a passarada. Estava ali de pé firme, com um ar muito triste, roupas esfarrapadas e lágrimas secas ao canto dos olhos pequeninos. Quando chegava a Primavera e os pássaros chegavam de muito longe, com as suas penas coloridas e chilreios alegres, tentava acenar-lhe com as mãos de pano, mas não conseguia fazer sequer um movimento porque estava preso a grossas estacas de madeira. Por mais que tentasse, por maiores que fossem os seus esforços, não conseguia deixar de assustar os pássaros. Gostava de ser amigo deles, de ajudá-los, de abrigá-los, cansados da longa viagem, debaixo dos seus grandes braços de pano, madeira e arame. O dono das terras queria-o ali, carrancudo e ameaçador, para evitar que os pássaros estragassem as plantações e as culturas. Mas Firmino, embora compreendesse o que se esperava dele, não conseguia estar de acordo. Não podiam fazer dele um espantalho mau à força. Ele gostava de flores, de rios de água azul, do riso das crianças, de estrelas, de fios de luar e palavras doces. Ano após ano chegavam bandos de pássaros de muito longe, mas com nenhum conseguiu fazer amizade. Mal o viam lá de cima mudavam de rota. 323
Firmino ainda tentou se embelezar. Encheu de lindas papoilas vermelhas o grande chapéu preto, sujo e esburacado. Mas nem assim conseguiu melhores resultados. Que podia ele fazer numa situação daquelas? Fugir? Deixar de ser espantalho? Explicar aos pássaros que não queria e nem podia fazer-lhes mal? Foram ideias que teve, mas nenhuma podia tornar-se realidade, porque cada vez se sentia mais enterrado no chão mole da seara, incapaz de se mexer, de fazer um gesto sequer. Ia já adiantada a Primavera, quando viu desenhar-se no grande céu azul um bando de pássaros coloridos. Foi então que tudo se tornou cinzento e frio e Abril, de súbito, outubro se transformou num Dezembro de tempestade. Era a primeira vez que via uma coisa assim. Empurrados pela forte ventania, os pássaros afastaram-se da rota e foram cada um para seu lado, muitos aflitos. Alguns caíram exaustos no meio da seara. Só lhes restava um caminho e foi esse precisamente que escolheram: num esforço final, juntaram-se todos e pousaram no chapéu e nos braços de Firmino que, feliz, os protegeu para evitar que fossem arrastados pela tempestade. Enfiou uns debaixo do casaco, outros embaixo do chapéu, outros ainda dentro das mangas largas e cheias de palha macia. Quando o temporal amainou, os pássaros agradeceram-lhe e prepararam-se para seguir de novo a sua rota. A rota tranquila da Primavera. — Levem-me convosco. Porque gosto muito de pássaros e estou farto de ser espantalho. Pediu Firmino, cheio de timidez. Ainda não tinha acabado de falar e já os pássaros o elevavam no ar, a grande altura. Tão alto que nunca mais ninguém o viu. E agora, sempre que chega o mês de abril e as árvores se cobrem de folhas muito verdes e os campos de erva fresca e macia. Firmino voa alegre sobre as searas, suspenso nos bicos dos seus maiores amigos.
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16 “Ursinho Pooh 1, 2, 3”: uma contribuição fílmica para a alfabetização matemática na infância Rosangela Silveira da Rosa Mauro José da Rosa
Introdução A fase de alfabetização infantil se desenvolve tanto dentro quanto fora da escola, tendo em vista que a criança convive diariamente com situações que exigem conhecimento da leitura e da escrita para entender significados. Pode-se citar aqui o uso de jogos e mídias eletrônicas, a observação de rótulos de produtos alimentícios, o manuseio de gibis, a visualização de imagens e outdoors, documentos, filmes cinematográficos, entre outros. Aproveitar o conhecimento que a criança já possui para fazer associações com a base curricular é extremamente necessário para que a criança possa entender o sentido do tema a ser aprendido na escola. Nessa perspectiva, os filmes cinematográficos fazem parte do cotidiano das crianças; encantam o público infantil, auxiliam no desenvolvimento das habilidades e dos sentidos e fazem com que a criança potencialize seu senso crítico. Por meio de cenas fílmicas, a criança passa a vivenciar a história do personagem, incitando alegria, tristeza, orgulho, raiva, entre outros sentimentos e tirando suas próprias conclusões acerca dos acontecimentos fílmicos. Ademais, a criança, na fase de alfabetização, necessita de estímulos para ampliar o seu universo lúdico e, quanto mais diversificadas, coloridas e inovadoras forem as práticas educativas, melhor será o desempenho dos 325
aprendizes que precisam desenvolver habilidades como atenção, memorização, criatividade, imaginação, entre outras (Pena; Neves, 2014). O uso de filmes nas práticas educativas foi recomendado por vários educadores, dentre os quais podemos citar: Napolitano (2004), Gomes et al. (2012), Fresquet (2013), Souto (2013), Viana (2013), Teixeira e Lopes (2014), entre outros. Além disso, o cinema foi considerado um recurso de grande potencial didático desde as décadas de 1920 e 1930, período em que o cinema já era explorado para fins educativos. De acordo com Morettin (1995), [o] cinema educativo, entendido como um importante auxiliar do professor no ensino e um poderoso instrumento de atuação sobre o social, foi debatido e defendido por muitos pedagogos e intelectuais paulistas e cariocas nos anos 20 e 30, como Manuel Bergstron Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Edgar Roquete Pinto e Jhonatas Serrano, entre outros, que também estavam preocupados com a introdução dos princípios da chamada Escola Nova nos currículos (Morettin, 1995, p. 13).
Nesse contexto, este trabalho objetiva ressaltar a importância do lúdico na alfabetização matemática tal como uso de filmes e, a partir da análise desse recurso, discutir cenas do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” que possam contribuir com a aquisição de saberes matemáticos, necessários para a alfabetização infantil.
Alfabetização Matemática Aprender Matemática é um processo essencial, tanto para a aquisição e desenvolvimento de capacidades cognitivas, quanto para as múltiplas aplicações no cotidiano das interações sociais. Tal prática requer sua introdução já nos primeiros ciclos da alfabetização, juntamente com a alfabetização da língua materna. Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais estabelecem que é necessário que a criança aprenda Matemática e compreenda os seus sig326
nificados desde a fase inicial de alfabetização, pois assim será capaz de interpretar [...] as informações veiculadas, especialmente pelos meios de comunicação, para tomar decisões e fazer previsões que terão influência não apenas na vida pessoal, como na de toda a comunidade. Estar alfabetizado, neste final de século, supõe saber ler e interpretar dados apresentados de maneira organizada e construir representações, para formular e resolver problemas que impliquem o recolhimento de dados e a análise de informações (Brasil, 2000, p. 84).
De acordo com Santos (2005), a linguagem matemática é uma estrutura simbólica formal construída de maneira intrínseca ao processo de construção do conhecimento matemático. Por meio dela, é possível converter ideias matemáticas em objetos mais materializáveis e calculáveis, viabilizando generalizações, estimativas e a realização de novos cálculos. Realizar a decodificação dos signos e símbolos expressos pela linguagem matemática implica atribuir e construir significados a esses símbolos. Na “alfabetização matemática” a decodificação da linguagem expressa pelas noções iniciais de lógica, aritmética e geometria pode ser considerado o alfabeto matemático. De acordo com Danyluk (1991), [c]onsiderando que a palavra ‘alfabeto’ refere-se às primeiras noções de qualquer ciência e que a Matemática é uma ciência que possui primeiras noções, tais como as noções iniciais de lógica, as de aritmética e as de geometria, é possível afirmar que a escrita e a leitura dessas primeiras ideias podem ser aprendidas e, desse modo, fazer parte do contexto alfabetização (Danyluk, 1991, p. 44, Sic).
Sobre a alfabetização Matemática, Souza (2010), conceitua: Define-se alfabetização matemática, como a ação inicial de ler e escrever matemática, ou seja, de compreender e interpretar seus conteúdos básicos, bem como, saber expressar-se através de sua linguagem específica (Souza, 2010, p. 2). 327
A autora argumenta, também, que a criança alfabetizada matematicamente deve ser capaz de fazer a leitura, compreender o que leu e decifrar os signos e símbolos explícitos pela linguagem Matemática. Esse conhecimento matemático inicia com a alfabetização da língua materna, pois se sabe que toda criança é, por natureza, curiosa e questionadora; e é por meio desse comportamento que ela constrói o seu conhecimento. Nesse pensamento, é impossível separar completamente a Matemática da língua materna, haja vista que “[...] se reconhecemos que alfabetizar em Matemática implica em trabalhar com a compreensão, interpretação de suas ideias básicas, bem como, com a expressão e comunicação dessas ideias [...]” (Souza, 2010, p. 2, sic), entender Matemática implica entender a língua materna. Machado (1990) chama a atenção para o fato de que [...] a Matemática faz parte dos currículos desde os primeiros anos da escolaridade, ao lado da Língua Materna. Há um razoável consenso com relação ao fato de que ninguém pode prescindir completamente de Matemática e, sem ela, é como se a alfabetização não se tivesse completado (Machado, 1990, p. 15).
Diante do exposto, aprender Matemática de forma lúdica, utilizando-se do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” como recurso didático na alfabetização infantil, além de contribuir no sentido de construir e compreender o uso dos signos, favorece a criatividade, a concentração, o espírito crítico e propicia uma maior motivação para o processo de iniciação matemática.
O Lúdico na Matemática O vocábulo da palavra “lúdico” tem sua definição bastante imprecisa, uma vez que, devido às múltiplas atividades que denota, apresenta na língua portuguesa um grande número de sinônimos. Como exemplo dessa inconsistência semântica, podemos citar: divertido, recreativo, alegre, brincante, entretenido, jocoso, brincalhão, entre outros. O Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa fornece o seguinte significado para esse termo: “Que se refere a jogos e brinquedos e aos jogos 328
públicos dos antigos” (Michaelis, 2009, p. 542). No minidicionário contemporâneo de Aulete, novamente encontramos: “Referente a jogo ou brinquedo” (Aulete, 2011, p. 550). Contudo, uma postura lúdica na educação não significa, impreterivelmente, ensinar com o uso de jogos, mas sim com ações que utilizem os atributos do lúdico. Nesse ínterim, Pinto e Tavares (2010) esclarecem: Uma postura lúdica não é necessariamente aquela que ensina conteúdos com jogos, mas na qual estejam presentes as características do lúdico, ou seja, no modo de ensinar do professor, na seleção de conteúdos e no papel do aluno. O professor reconhece a importância da ludicidade e tem uma postura ativa nas situações de ensino. O aluno, nessa situação, aparece como sujeito da aprendizagem, em que a espontaneidade e a criatividade são constantemente estimuladas (Pinto; Tavares, 2010, p. 232).
Conforme os autores, por meio do lúdico, é possível dar condições à criança para externar suas energias, liberar suas fantasias e aprender a superar dificuldades por meio de uma fonte de prazer que pode vir tanto do ato de brincar ou jogar como também de outras atividades que possam contribuir para o desenvolvimento da linguagem, da concentração e do raciocínio. Num esforço para conceituar o termo, Santin (2001) o define assim: [...] a ludicidade é fantasia, imaginação e sonhos que se constroem como um labirinto de teias urdidas com materiais simbólicos. A ludicidade é uma tessitura simbólica fecundada, gestada e gerada pela criatividade simbolizadora da imaginação de cada um (Santin, 2001, p. 54).
Para a alfabetização Matemática, a exploração do lúdico como estratégia de ensino é extremamente relevante, como nos informa Araújo (2000): Ao usar o lúdico como estratégia de ensino contribui-se efetivamente para o desenvolvimento do pensamento analítico-sintético do aluno, bem como, sua participação ativa na aprendizagem, possibilitando avançar na construção do conhecimento matemático e na consoli329
dação das habilidades assim que facilitem esta construção através do respeito à liberdade de pensar, do incentivo à descoberta e do encorajamento à criatividade (Araújo, 2000, p. 23).
As pesquisas de Pinto e Lima (2003) explicitam que, por meio de atividades lúdicas, a criança tem a possibilidade de vivenciar sentimentos que compõem sua realidade interior, o que facilita o autoconhecimento e o processo de aceitação dos outros nas relações sociais. Ainda, Ferreira (2012) ressalta que “[...] quando o educador utiliza o lúdico como ferramenta pedagógica educa-se para além da instrução porque proporciona-se nessa dimensão o questionamento, a crítica, a opinião e a construção de associações” (Ferreira, 2012, p. 40). Nesse sentido, a leitura do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3”, enriquece o universo lúdico da criança, uma vez que, ao assistir ao filme, a criança passa a viver a história do personagem, desenvolvendo a imaginação, a criatividade, a percepção, entre outras habilidades. Além disso, o filme traz em seu roteiro considerações importantes para a alfabetização matemática, tais como a leitura e escrita dos números, a importância da sequência numérica, bem como o processo de contagem. Alguns educadores defendem a utilização de filmes cinematográficos nas práticas de ensino de matemática. Como exemplo de filmes dessa natureza, pode-se citar: “A corrente do bem”, conforme sugere Viana (2013), que possibilita o aprendizado do conteúdo de “Progressões Geométricas”. De acordo com a autora, o roteiro do filme apresenta de forma clara a ideia do tema proposto, além de auxiliar na formação de valores morais como o de praticar o “bem”. De forma semelhante, Napolitano (2004) também sugere filmes para o ensino da matemática: “Uma mente brilhante”, um filme que explicita o conteúdo de Análise Combinatória e “O céu de outubro”, que se desenvolve em torno da análise e aplicação de uma fórmula, sendo possível sua utilização com foco nas técnicas para aplicação de fórmulas. Além disso, Souto (2013) ressalta que, ao assistir um filme cinematográfico, percebem-se outras maneiras de ver o mundo, introduz-se pessoas a mundos imaginários que jamais frequentariam ou vivenciariam. Para fins educativos, é possível, por meio dos filmes, realizar um ensino rico, e os significados nele inerentes de forma sábia podem ser transportados para a vida cotidiana. 330
De acordo com Teixeira e Lopes (2014), [...] o cinema é uma forma de criação artística, de circulação de afetos e de fruição estética. É também uma certa maneira de olhar. É uma expressão do olhar que organiza o mundo a partir de uma ideia sobre esse mundo. Uma ideia histórico-social, filosófico, estética, ética, poética, existencial, enfim. Olhares e ideias postos em imagens em movimento, por meio dos quais compreendemos e damos sentido às coisas, assim como as ressignificamos e expressamos (Teixeira; Lopes, 2014, p. 10).
Ainda, Gomes et al. (2012) apresentam uma sequência de aspectos que podem ser explorados na prática pedagógica com o uso de filmes: Defendemos que pensar o cinema em articulação com as Ciências envolve uma pluralidade de aspectos a serem explorados, tais como: narrativa, ficção, imaginação, futuro, estética, reflexões históricas sobre a realidade e sua transformação, concepções sobre a natureza, técnicas, métodos científicos, relações entre Ciência e sociedade, culturas científicas, relações de poder, imaginário social, educação, ética etc. (Gomes et al., 2012, p. 7).
É nesse contexto que se insere o filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3 - Aprendendo os números e as contas” para ser utilizado no processo de alfabetização matemática.
O filme da proposta didática: “Ursinho Pooh 1, 2, 3” O filme da proposta, com duração de 35 minutos, foi produzido pela Walt Disney, nos Estados Unidos, em 2004, e traz em seu roteiro, o personagem de um Canguru que passa por diversas experiências na busca por aprender o processo de contagem. Inicia-se o filme, exibindo um rapaz (Christopher Robin) organizando uma mesa onde serão acomodados os convidados de uma festa, “A Festa do Pote da Sorte”. Contudo, cada convidado deveria trazer um presente para os outros convidados que, de acordo com o personagem Christopher, 331
seriam 10. Os presentes poderiam ser um brinquedo, uma decoração ou até mesmo algo para comer. Nessa perspectiva, o enredo do filme gira em torno de um pequeno canguru (Guru), que gostaria de ir à festa, mas não sabe contar para organizar seus presentes. Assim, o Ursinho Pooh é designado pelo jovem Christopher, que se encontra nas proximidades, para ensinar o Guru a contar, haja vista que o rapaz ensinara o ursinho a contar na semana anterior. Ao chegar em casa, o ursinho percebe que não sabe mais contar, pois não praticou a contagem, deixando Guru bastante apreensivo, pois, se não conseguissem contar seus presentes, não poderiam ir à festa. Aflito, o pequeno canguru se dirige à casa do respeitado e sábio Sr. Corujão, que o convida a adentrar o mundo que chamou de “Destreza Numerológica”. O personagem do corujão explica para Guru o que são os números e para que servem. Demonstra como estão presentes em toda a parte e em todos os lugares (páginas de livros, contagem de dias, meses e anos do calendário, números de enciclopédias, horas do relógio etc.). O Sr. Corujão alerta o pequeno canguru para a importância de perseverar para aprender o que se deseja, bem como de praticar a contagem e o aconselha a procurar o amigo coelho, ganhador 3 vezes do concurso de contagem no Bosque. No Bosque, o amigo Coelho ensina Guru a contar as batatas, bem como outros produtos ali encontrados e ressalta a importância de memorizar a ordem dos números. Já o amigo Tigrão, apresenta-lhe um método exclusivo de contagem: “O método de contagem pulante”, que consiste em contar cada coisa com um pulo. Por exemplo: ao contar as pedras grandes, dever-se-ia pular em cima delas, uma de cada vez; o mesmo deveria acontecer nas poças de lama, ou em outras coisas do bosque em que fosse possível pular. Assim, Guru passou o dia praticando e conseguiu aprender a contar. Após, retornou à casa de Pooh para realizar a contagem dos potes de mel, que seriam os presentes de Pooh, e dos balões, que seriam os seus presentes. O filme finaliza mostrando os dois personagens chegando à festa com seus presentes e os amigos que o auxiliaram nessa jornada satisfeitos por terem atingido o objetivo de ensinar o pequeno canguru a contar. 332
Contribuições do Filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” para a Alfabetização Matemática O filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” explicita a importância dos números no convívio das interações sociais, exibe e reforça a importância da sequência numérica, ressalta a importância de utilizar diferentes estratégias para aprender o que se deseja e demonstra algumas técnicas de memorização. Além disso, serve de apoio para leitura e escrita dos números, visto que é possível visualizar a escrita e a leitura deles em diversas cenas do filme. Dessa forma, com o objetivo de contribuir com o ensino da Matemática nas séries inicias do Ensino Básico, realizou-se uma análise do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3”, enfocando o processo de alfabetização matemática e elaborou-se uma sequência de cenas do filme, buscando facilitar o ensino para os educadores que optarem por utilizar esse material em sua prática pedagógica. Ressalta-se que esse material pode ser utilizado em outra perspectiva, como para esclarecer os alunos acerca da importância dos números no mundo em que vivemos e a importância de praticar o que se aprende para não cair no esquecimento. Nesse contexto, o material pode ser apresentado no segundo, terceiro ou quarto anos, de acordo com o planejamento do professor. Abaixo, explicitam-se as cenas consideradas relevantes para dar suporte à alfabetização Matemática. Entre os primeiros 2’10” e 3’03” do filme é possível discutir com os alunos a importância de conhecer o processo de contagem, bem como mostrar um exemplo de ocasiões em que foi necessário se utilizar desse conhecimento. Essa cena retrata a situação na qual os personagens Canguru (Guru) e Ursinho Pooh foram convidados para ir a uma festa em que precisavam contar os presentes que, ao todo, seriam 10. Apresenta-se, pela primeira vez no filme, a escrita e a leitura dos números por meio da contagem das cadeiras dos convidados que estão numeradas de 1 a 10. Nessa cena é também possível abordar a ideia de que os números podem ser divididos ou contados de dez em dez. Dessa forma, vão se criando subsunçores1 para a abordagem do Sistema de Numeração Decimal. 1
Conhecimento presente na estrutura cognitiva do indivíduo que aprende e que propicia, por interação, dar significado a novos conhecimentos (MOREIRA, 2011, p. 18).
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A cena que se passa entre os 3’10” e 4’04” explicita o personagem Christopher Robin solicitando ao Ursinho Pooh que ensine seu amigo a contar, o que posteriormente observaremos que não aconteceu, pois, o mesmo esqueceu o processo de contagem. Aos 5’28” e aos 6’32”, aproximadamente, é possível perceber que o Ursinho Pooh não praticou a contagem e, por isso, esqueceu. Nessa cena é necessário explicitar aos alunos que para aprender algo que realmente se quer, é preciso praticar para não corrermos o risco de o conhecimento ser obliterado pelo tempo. A cena que se inicia aos 6’51” e vai até aproximadamente os 09’02”, apresenta a reflexão que o personagem do Senhor Corujão realiza com o pequeno Canguru, levando-o para uma viagem ao que ele chamou de “Destreza Numerológica”. Essa cena explicita a importância dos números no cotidiano para mensurar quantidades, medidas, códigos e ordens. Isso pode ser percebido quando o personagem do Senhor Corujão mostra os números nas páginas de um livro, no relógio, na ordem das enciclopédias, no calendário etc. Aos 9’30”, o personagem do Senhor Corujão demonstra a escrita e a contagem dos números de 1 a 10 e realiza a contagem com o Guru, para que este possa, assim, praticar o que acabou de aprender. Essa cena vai até aproximadamente 12’15”. Na cena que se passa entre os 12’15” e os 15’46” é possível perceber a persistência do pequeno canguru para aprender a contar, quando busca o auxílio do amigo coelho, considerado campeão de contagem no Bosque. Essa cena propicia a exploração de outros ambientes possíveis de se praticar a contagem. Como exemplo, o coelho realiza a contagem dos tubérculos no bosque. Essa cena também exibe a escrita e a pronúncia dos números diversas vezes, bem como a importância da ordem numérica. Entre os 23’00’’ e os 26’20”, apresenta-se a cena em que o amigo tigre ensina a Guru um método que ele chama de “Método de contagem pulante”. Nesse método, o personagem Guru deve pular em cima de cada coisa que conta, ampliando assim a sua capacidade de aprender a contar. O método de contagem pulante consiste em outra estratégia para facilitar o processo de memorização de cômputo de números. 334
Aos 28’35” é possível perceber que o esforço do pequeno canguru trouxe resultados benéficos, visto que ele aprendeu a contar. Além disso, quando conta seus 10 balões para dar de presente na festa e os 10 potes de mel do amigo Ursinho Pooh, o personagem insere a cada presente um número em sua devida ordem. Essa cena apresenta, também, a escrita e a leitura dos números, bem como a importância de memorizar a ordem deles. Nesse contexto, o personagem de Guru pôde ir à festa que tanto almejava com os seus 10 presentes e também pôde auxiliar seu amigo Pooh a contar os seus. Essa cena finaliza aproximadamente aos 30’57”.
Quadro organizador de cenas relevantes para a abordagem do conteúdo Para abordar aspectos inerentes à alfabetização matemática, o quadro organizador abaixo busca auxiliar os educadores que optarem por utilizar esse recurso em suas práticas educativas. O material foi elaborado com o propósito de servir de apoio pedagógico para crianças em fase de alfabetização infantil, visto que as cenas apontadas no quadro ilustram o processo de contagem, possibilitando, também, a visualização da escrita e da leitura dos números. Abaixo, seguem o tempo inicial e final das cenas consideradas relevantes para a alfabetização matemática: Quadro 1: Organizador de cenas relevantes para abordagem da Alfabetização Matemática na infância Tempo inicial da cena 2’10” 3’10” 5’28”
Cena considerada relevante para a alfabetização matemática Ilustra a utilização do processo de contagem numa situação cotidiana, em que os personagens precisam saber contar 10 coisas para presentear. Explicita também a escrita e a leitura dos Números. Apresenta o personagem do menino solicitando ao Ursinho Pooh que ensine o canguru a contar. Explicita a importância de se praticar algo que aprendemos para que não corramos o risco de o conhecimento ser obliterado pelo tempo. 335
Tempo final da cena 3’03”
4’04” 6’32”
6’51” 9’30” 23’00’’ 28’35”
Apresenta a reflexão do Senhor Corujão sobre a importância dos números em nosso cotidiano para mensurar quantidades, medidas, códigos e ordens. Exibe o personagem Corujão ensinando o canguru a contar anexando em cada objeto a sua quantidade. Também se visualiza nessa cena a escrita e a leitura dos números. Evidencia a importância de utilizar diferentes métodos de ensino na busca por significar o conteúdo. Isso pode ser observado através do “Método de contagem pulante” do Tigrão. Ilustra o bom resultado do esforço do Canguru para aprender a contar, visto que ele consegue contar seus 10 presentes (balões) e os presentes do Ursinho Pooh (potes de mel) para ir à festa. Nessa cena a escrita e a leitura dos números também podem ser observadas.
9’02”
12’15”
26’20”
30’57”
Fonte: A autora.
Considerações finais Ao realizar a pesquisa, foi possível perceber que inovar práticas de ensino para atingir melhores resultados no processo de alfabetização infantil é necessário e urgente, uma vez que, para o bom resultado do processo de ensino e aprendizagem, os educandos precisam ser continuamente estimulados para assimilar e se apropriar do conteúdo, objeto de estudo da aula. Introduzir recursos audiovisuais, tal como filmes, nas aulas das séries iniciais pode tornar o ensino mais significativo e prazeroso para o estudante. Além disso, ao utilizar a linguagem cinematográfica no processo de alfabetização matemática, o educador possibilita o desenvolvimento das múltiplas linguagens dos seus educandos, enriquece o universo lúdico da criança e potencializa o desenvolvimento de habilidades necessárias para sua formação. Uma criança que consegue fazer a leitura de uma imagem, compreender um filme, está desenvolvendo sentidos, atividade tão relevante quanto a leitura convencional. No caso do filme aqui sugerido é possível observar a escrita e a leitura dos números de uma forma mais divertida, “com personagens em movimento”. 336
Dessa forma, o uso do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3 – aprendendo os números e as contas” para a alfabetização matemática, harmoniza-se a um trabalho pedagógico que se preocupa com a interação e aperfeiçoamento da criança na leitura de novos códigos.
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Sobre os autores Ana Carolina da Conceição – Com Pedagogia pelo Centro Universitário de
Brusque (2005), é pós-graduada em Educação Infantil, Séries Iniciais e Gestão Escolar. Professora efetiva da Rede Municipal de Brusque em Séries Iniciais, exercendo a maior parte dos anos nas classes de alfabetização. Nos últimos anos atuou como coordenadora pedagógica da Rede Municipal de Brusque no Ensino Fundamental na Educação Infantil. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Alfabetização e letramento. Integrante do Grupo de Pesquisa em Língua Portuguesa (GPLP). Orientadora de estudos do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, em 2013 e 2014, e coordenadora municipal do mesmo da mesma formação de professores (PNAIC), no ano de 2016. Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau – FURB, na linha de pesquisa Linguagem e Educação. E-mail: ana_karol_conceicao@hotmail.com
Ana Cláudia de Souza – Professora associada do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Linguística, na área de concentração Psicolinguística, com pós-doutoramento pela mesma IES. Licenciada em Letras – Português e Inglês, pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Foi professora da UNESC entre 1998 e 2006. Como docente, desde 2007 na UFSC, atua, na graduação em Letras, em disciplinas de Metodologia de Ensino e Estágio de Língua Portuguesa, e, na pós-graduação, em disciplinas de Psicolinguística e Metodologia da Pesquisa em Aquisição e Processamento da Linguagem. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa NEL – Núcleo de Estudos em Leitura – e do Grupo de Pesquisa PAMEDUC – Patrimônio, Memória e Educação –, ambos da UFSC. Desenvolve pesquisas sobre leitura, cognição e ensino, abarcando também o processo de alfabetização e formação de professores. Foi subcoordenadora do Curso de Pedagogia da UFSC entre 2014 e 2015. Foi coordenadora do núcleo UFSC do projeto em rede – UNESC, UFSC, UFFS – intitulado “Ler & Educar: formação continuada de professores da rede pública de Santa Catarina”, entre 2013 e 2015, por meio do Programa Observatório da Educação (OBEDUC/CAPES). E-mail: ana.claudia.souza@ufsc.br Angela Cristina Di Palma Back – Doutora e Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Letras (Licenciatura) pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Desde 1999, exerce a docência na UNESC, e, em 2010, passa a integrar o quadro docente no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação (PPGE). Um projeto de relevância a ser destacado foi o aceite do nosso projeto em rede “Ler & Educar: formação continuada de professores da rede pública de SC”, em 2013-2015, pelo Programa 339
Observatório da Educação (OBEDUC) da CAPES, junto ao qual fui a coordenadora da Sede na UNESC, em Criciúma, tendo como parceiros os núcleos UFSC (Florianópolis) e UFFS (Chapecó). Pesquisadora associada e líder do Grupo de Pesquisa CNPq-LITTERA. No PPGE, insere-se na linha Educação, Linguagem e Memória, a partir da qual desenvolve pesquisas sobre leitura, cognição e ensino, abarcando também o processo de alfabetização e formação de professores; educação e linguagem; variação linguística e ensino. Foi Diretora da Unidade Acadêmica de Humanidades, Ciências e Educação da UNESC, de 2013 a 2017. E-mail: acb@unesc.net Carlos Alberto Ramos Souza – Cursa o último semestre de graduação em Letras Inglês e Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Estadual do Centro-Oeste, em Guarapuava, Paraná. Durante os anos de sua graduação, participou do Programa Institucional de Iniciação Científica, desenvolvendo pesquisas na área da Psicolinguística, buscando melhor compreender as questões relacionadas ao ensino e ao uso de estratégias de leitura. Também foi bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), onde trabalhou com o ensino de língua inglesa por meio de gêneros textuais na linha do Interacionismo Sociodiscursivo. Atualmente é bolsista do Programa Paraná Fala Inglês, financiado pela Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná, que tem como objetivo contribuir com os processos de internacionalização da comunidade acadêmica das universidades deste estado. E-mail: carlos_albertoramos@msn.com Caroline Bernardes Borges – Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Escola de Humanidades da PUCRS (Bolsista integral CNPq), sob orientação da Profa. Dra. Vera Wannmacher Pereira. Mestre em Linguística pelo PPGL/PUCRS (2018) (Bolsista integral CAPES/PROEX). Graduada em Letras (Licenciatura em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas) pela Faculdade de Letras da PUCRS (2015). Membro dos grupos de pesquisa “Estudos Cognitivos e Culturais das Linguagens” (CNPq) e “Aquisição, aprendizado e processamento cognitivo da linguagem: instrumentos, procedimentos e tecnologias” (CNPq), que estão inseridos no Núcleo de Pesquisa em Cognição, Cultura, Linguagens e Interfaces: Ciência, Arte e Tecnologia, da PUCRS. E-mail: caroline. bernardes@acad.pucrs.br /carolineh_borges@hotmail.com Claudia Finger-Kratochvil – Doutora em Linguística/Psicolinguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), graduada em Letra pela mesma instituição, atua na docência desde 1987. Na década de 1990, tem início sua trajetória na Graduação e na Pós-graduação. Docente em Letras desde 1994. Surpervisora e Coordenadora de Estágio na Educação Básica do curso de Letras. Diretora da Editora Unoesc e Coordenadora da Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa na mesma instituição. Atualmente, é docente da Universidade Federal 340
da Fronteira Sul na graduação e no programa de mestrado em Estudos Linguísticos, orientando trabalhos na área de Língua e Cognição. Foi Diretora de Registro Acadêmico e Pró-Reitora de Graduação. Esteve presente na Coordenação do ForGRAD Nacional e ForGRAD Sul entre 2011 e 2013. Coordenadora do Inglês sem Fronteiras. Coordenadora do OBEDUC – UNESC, UFSC, UFFS, projeto Ler & Educar, Núcleo Chapecó de 2013-2015. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística e Psicolinguística Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: letramento, leitura, ensino e habilidades de leitura, formação de professores, metodologia de ensino, competência lexical e linguagem da propaganda, áreas em que possui pesquisa e trabalhos publicados. Participa em grupos de assessoria na SESu e Capes por ocasião de trabalhos específicos. E-mail: cf-k@uffs.edu.br Cristiane Lazzarotto-Volcão – Mestre e Doutora em Letras (Linguística Aplicada) pela Universidade Católica de Pelotas. Realizou pesquisa Pós-Doutoral (com auxílio da CAPES) no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, em colaboração com a Prof. Dr. Maria João Freitas. É professora associada do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina, onde ministra aulas nos Cursos de Graduação em Letras (presencial e na modalidade a distância) e integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Linguística. No momento, coordena projeto de pesquisa, cujo tema é o processo de aquisição fonológica em crianças brasileiras e portuguesas com aquisição típica e atípica. Coordena também o Curso de licenciatura a distância Letras Português (Universidade Aberta do Brasil / Universidade Federal de Santa Catarina). E-mail: cristiane.volcao@gmail.com Cristiane Seimetz-Rodrigues – Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (2017) e graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (2006). Em sua tese de doutoramento, realizou, com bolsa Capes, a pesquisa Competência leitora no contexto da surdez: relações entre consciência fonológica, reconhecimento de palavras e compreensão do escrito. Atua como professora de Língua Portuguesa no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina, onde participa como colaboradora do Projeto de Extensão Libras +, que tem como propósito disseminar a língua de sinais entre a comunidade ouvinte da universidade. Possui experiência de pesquisa nas áreas de Psicolinguística e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: alfabetização, ensino e aprendizagem da leitura e português escrito como segunda língua para surdos. E-mail: cris.seimetz@gmail.com Gabriel Augusto Scheffer – Mestre em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos – PPGEL – na Universidade Federal da Fronteira Sul-Campus Chapecó. Graduado no curso de Licenciatura em Letras341
-Português e Espanhol – pela mesma instituição. Esteve envolvido em projetos de fortalecimento dos três eixos norteadores da instituição: ensino, pesquisa e extensão. Como membro de grupos de pesquisas relacionados à Psicolinguística, foi atuante em projetos, eventos e desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso com base nesta corrente teórica, abordando, sob o viés de um estudo comparativo, a competência leitora de acadêmicos ingressantes de Letras na UFFS. Com a dissertação abrangida na linha de pesquisa Língua e Cognição: representação e processamento da linguagem, estudou como os atuais livros didáticos de língua portuguesa destinados para professores e alunos dos anos finais do ensino fundamental abordam a atividade cognitiva de construir inferências em atividades de leitura e compreensão textual. E-mail: scheffer_gabriel@hotmail.com Helena Cristina Weirich – Mestre (2016) em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Na condição de bolsista do CNPq, concluiu sua Dissertação, intitulada “Domínio da leitura e compreensão oral do ‘mas’ argumentativo. Atua como professora de Língua Portuguesa e Língua Espanhola na Educação Básica. Sua história acadêmica conta com sua atuação como bolsista no Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), com o trabalho “Humanidades incentivando à Docência”. Vale destacar alguns desdobramentos de sua Dissertação em termos de sua socialização, com os artigos “A compreensão da argumentação linguística: hipótese de interação entre leitura e oralidade”, na Revista de Estudos da Linguagem (2017), e “Instrumentos de avaliação de leitura em fase inicial: habilidades e processos envolvidos”, publicado na revista SIGNUM (2017). E-mail: helenaweirich@gmail.com José Morais – Português, nascido em Lisboa, refugiado político da ONU entre 1968 e 1974, é doutor em Ciências Psicológicas da Universidade Livre de Bruxelas – ULB (1978), e doutor honoris causa da Universidade de Lisboa (2000). Foi presidente do Comité Nacional das Ciências Psicológicas da Academia Real da Bélgica e membro do Observatório nacional da leitura em França (1995-2007). Na ULB foi diretor do Laboratório de Psicologia Experimental e decano da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Aposentado desde 2008, é professor emérito e professor convidado da Unidade de Pesquisa em Neurociências Cognitivas, que faz parte do Centro de Pesquisa em Cognição e Neurociências. Sua tese de doutorado tinha por objeto o exame dos fatores cognitivos, em particular da atenção espacial, nos efeitos de lateralidade durante a percepção da fala. Depois, seus trabalhos incidiram nomeadamente sobre o reconhecimento da fala e das palavras orais, incluindo a influência da representação escrita nesse reconhecimento, e sobre a aprendizagem da leitura e as consequências do analfabetismo na cognição. Atualmente, participa em pesquisas experimentais e teóricas sobre a literacia no contexto biocultural e sociopolítico. Desde meados dos anos 1980, tem mantido relações de colaboração 342
fiéis e frutuosas com pesquisadores brasileiros, concretizadas em publicações comuns. Dentre seus interesses de pesquisa estão a literacia (aprendizagem da leitura, consciência fonêmica, efeitos cognitivos e neurais) e sua relação com a democracia. E-mail: Jose.Junca.De.Morais@ulb.ac.be Leandro Lemes do Prado – Doutor em Letras (estudos Linguísticos) pela PUCRS, e mestre em Letras Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa Maria (2002), com graduação em Letras Português e Inglês e respectivas Literaturas também pela Universidade Federal de Santa Maria (2000). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em ensino, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino, língua portuguesa, língua inglesa, tecnologia, revisão de texto, tradução, produção textual, leitura, técnicas de contação de histórias e gêneros textuais. E-mail: professorleoprado@gmail.com Leonor Scliar-Cabral – Professora Emérita da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e doutora em Linguística pela USP e pós-doutorada pela Universidade de Montréal. Eleita, em julho de 1991 na Universidade de Toronto, Presidente da International Society of Applied Psycholinguistics, e reeleita na Universidade de Bolonha; atualmente é Sócia Honorária. Foi presidente da União Brasileira de Escritores em Santa Catarina (1995-1997) e presidiu a ABRALIN, no biênio 19971999. Pertence ao Conselho Editorial de: International Journal of Psycholinguistics, Cadernos de Estudos Linguísticos, Letras de Hoje (fundadora), Revista da ABRALIN, entre outros. Coordenou os projetos ler & Ser: Combatendo o Analfabetismo Funcional. Cátedra UNESCO MECEAL na UFSC e criou e coordena o Sistema Scliar de Alfabetização (SSA). Com dezenas de trabalhos publicados no Brasil e no exterior, citam-se Introdução à Linguística (Globo, 7ª edição); Introdução à Psicolinguística (Ática, 1990); Romances e Canções Sefarditas – Século XV ao XX (Massao Ohno, 1990); Memórias de Sefarad (Athanor, 1994); De senectute erotica (Massao Ohno, 1998); Poesia espanhola do século de ouro (Letras Contemporâneas, 1998); ?O outro, o mesmo? (In J. L. Borges, Obra completa, Globo, 1999); Cruz e Sousa, o poeta do desterro (versão poética para o francês com M.-H. Torres das legendas do filme de Sylvio Back, Sete Letras, 2000); Princípios do sistema alfabético do português do Brasil e Guia Prático de alfabetização (Contexto, 2003), O sol caía no Guaíba (Prym, 2006); com C. R. Caldas-Coulthard (Orgs.), Desvendando discursos: conceitos básicos (EDUFSC, 2008); Psycholinguistics Scientific and technological challenges (Org., Porto alegre: EDIPUCRS, 2010). Foi pesquisadora do CNPq (1A) desde a década de 1970. Atualmente é coordenadora do Grupo de Pesquisa Produtividade Linguística Emergente, alimentando o banco mundial de dados CHILDES com dados do PB em transcrição fonética e áudio. Ultimamente vem se dedicando à prevenção ao analfabetismo funcional, com a proposta do Sistema Scliar de Alfabetização. Seus últimos livros são: Sagração do Alfabeto (São Paulo: Scortecci, 2009, finalista na categoria Poesia, Prêmio Jabuti), Sistema Scliar de Alfabetização – Fun343
damentos (Florianópolis: Editora Lili, 2013, Aventuras de Vivi (Florianópolis: Editora Lili, 2014), José (Florianópolis: Editora Lili, 2016, Prêmio Elisabete Anderle, na categoria literatura, da Fundação Catarinense de Cultura, 2015), Sistema Scliar de Alfabetização – Roteiros para o professor: Módulo 1, v. 1 e 2 (Florianópolis: Editora Lili, 2018). Entre suas inúmeras traduções científicas e poéticas, cabe registro a da obra de Stanislas Dehaene, Os Neurônios da Leitura (Penso, 2012). Com mais de uma centena de artigos publicados em periódicos, destaca-se o artigo “Neurons recycling for learning the alphabetic principles”; em Folia Phoniatrica et Logopaedica, v. 66, n. 1-2, p. 58-66, 2014. E-mail: leonorsc20@gmail.com Luciane Baretta – Doutora e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Letras Português-Inglês pela mesma instituição. Fez doutorado sanduíche no Center of Cognitive Neuoscience, na University of Auckland. Iniciou suas atividades como docente no curso superior em 1998, atuando, principalmente, no curso de Letras, com o ensino de língua inglesa. Foi coordenadora e supervisora de estágio em Língua Inglesa, tendo também coordenado o Curso de Metodologia do Ensino de Língua Inglesa. Atualmente, atua como professora adjunta do curso de Letras-Inglês na UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste, em Guarapuava, PR. Desde 2013, é professora do Programa de Pós-Graduação em Letras. Coordenadora Pedagógica do Programa Paraná Fala Inglês, na Unicentro. Suas principais áreas de interesse são: ensino-aprendizagem de inglês como língua estrangeira, habilidades de leitura em língua materna e estrangeira, estratégias de aprendizagem e processamento em leitura. E-mail: barettaluciane@gmail.com Maria da Graça Lisboa Castro Pinto – Doutora em Linguística Aplicada (Psicolinguística e Neurolinguística) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Sua tese de doutoramento intitulada “Abordagem a alguns aspectos da compreensão verbal na criança: Estudo Psicolinguístico genético do Token Test e de materiais de metodologia complementar” (496p), publicada em 1988, na Série linguística-8, pelo INIC (Lisboa), com o Depósito-Legal nº 21761/88, s/ISBN, foi prêmio Gulbenkian de Ciência em 1986. Atualmente é professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem experiência na área da Linguística, com ênfase em Psicolinguística Aplicada. De 1977 até 1995, colaborou no Laboratório de Estudos da Linguagem do Serviço de Neurologia e de Neurocirurgia do Hospital de São João/Faculdade de Medicina (Porto), dirigido pelo Professor Doutor Celso Cruz. De 1977 até 1998, investigou e publicou trabalhos sobre a linguagem oral e escrita (produção e compreensão) em crianças europeias falantes de línguas diferentes, conjuntamente com Andrée Girolami-Boulinier, Professora de Ortofonia na Faculté de Médecine Pitié-Salpêtrière (Paris) e ortofonista no Hôpital de St. Vincent de Paul (Paris). De 1998 a 2001, exerceu as funções de Vice-Reitora da Universidade do Porto. Fundou o Programa de Estudos Universitários 344
para Seniores da Universidade do Porto em 2006, sendo a docente responsável pelo referido programa. É membro honorário da International Society of Applied Psycholinguistics desde 2014. É Diretora da revista Linguarum Arena. Revista em Didática de Línguas da Universidade do Porto. E-mail: mgraca@letras.up.pt Marina Vieira Cardoso – Graduada em Pedagogia pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). No percurso acadêmico, participou do projeto em rede “Ler & Educar: formação continuada de professores de SC”, na sede de Criciúma, aprovado junto ao Observatório da Educação (OBEDUC) da CAPES, em que um dos objetivos principais foi o de aproximar a Pós-Graduação e a Educação Básica, e, em no caso específico do projeto, fomentar e socializar pesquisas na área da leitura. Como desdobramento da iniciação à pesquisa junto ao OBEDUC, o trabalho de conclusão de Curso (TCC) versou sobre o “Ato de ler e o leitor: pistas de um processo (não) emancipatório de leitura em um 5° ano do Ensino Fundamental”, em que foi realizada uma pesquisa de campo com o objetivo de analisar os avanços e lacunas no ato de ler, pertinentes à formação do sujeito (não) emancipado. Também foi bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), discutindo, pesquisando e aplicando em escolas campo, teorias e metodologias de ensino na área da Educação Infantil e Alfabetização e Letramento. E-mail: marina. vieiracardoso@hotmail.com Mauro José da Rosa – Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Atua nos Cursos de Educação Física – Licenciatura e Bacharel – na UNIVALI na disciplina Educação Física para pessoas com necessidades Especiais e Desenvolvimento Humano e Aprendizagem Motora. Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicomotricidade, Psicologia do Esporte, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental, desenvolvimento psicomotor, avaliação psicomotora. Atua na Área da Psicologia Educacional, ministrando disciplinas no Curso de Pedagogia: Linguagens e Formas de Expressão Corporal e Psicologia do Desenvolvimento. Atua também no curso de graduação em Enfermagem na disciplina de Psicologia Aplicada à Saúde. E-mail: maurojr@univali.br Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig – Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), com graduação em Letras Português-Inglês pela mesma instituição. Atualmente é professora titular da FURB, atuando no Mestrado em Educação, do qual foi coordenadora. Coordenou também o subprojeto de Letras no PIBID e é integrante do Núcleo de Estudos Linguísticos. Criou, há 18 anos, o grupo de educação continuada para professores 345
de língua materna, que está atualmente sob sua coordenação. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: professores, letramentos, ensino-aprendizagem, ensino fundamental e leitura. E-mail: otilia.heinig@gmail.com Régine Kolinsky – Doutora em Psicologia. Diretora de Pesquisa do National Fund for Scientific Research, Bélgica. É também Diretora da Unidade de Pesquisa em Neurociências Cognitivas, do Centro de Pesquisa em Cognição e Neurociências da Universidade Livre de Bruxelas (ULB), Bélgica. Seus principais temas de pesquisa são as consequências cognitivas e cerebrais da literacia e da escolarização, e as interações entre linguagem e música. Publicou 5 livros e em torno de 200 artigos e capítulos de livros, alguns em reconhecidos e proeminentes periódicos, tais como: Science, Nature Reviews Neuroscience, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, Brain, Journal of Experimental Psychology, Cognition. E-mail: Kolinsky.Regine@ulb.ac.be Rosangela Silveira da Rosa – Mestre pela Universidade Regional de Blumenau (FURB), linha de pesquisa Ensino de Ciências e Matemática. Está em doutoramento pela Universidade de Tuiuti do Paraná (UTP), na área de Educação. Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade do Planalto Catarinense e Curso de Formação Pedagógica para Docência na Educação Básica e na Educação profissional em nível Médio com habilitação em Matemática pela UDESC. Atualmente é professora efetiva da Escola Básica Municipal Maria Conceição Nunes. Tem experiência na área de Matemática para ensino fundamental e de nível médio. Cursou pós-graduação (especialização) em Prática Pedagógicas e Interdisciplinares: Educação Infantil, Séries do Ensino Fundamental e Médio pela Facvest (Faculdades Integradas FACVEST), Lages-SC. E-mail: rosangelasilveira_31@hotmail.com Vera Wannmacher Pereira – Doutora e Mestre em Letras (concentração em Linguística Aplicada), com pós-doutorado em Psicolinguística. É pesquisadora Bolsista de Produtividade DT do CNPq. Na Escola de Humanidades: Letras da PUCRS, é docente titular e permanente do PPGL. Desenvolve atividades como professora, pesquisadora e orientadora e coordena o Núcleo de Pesquisa em Cognição, Cultura, Linguagens e Interfaces: ciência, arte e tecnologia – NUCCLIN, que se caracteriza por trabalho integrado de ensino, pesquisa e extensão. Seus estudos e experiências, com ênfase na compreensão e no processamento da leitura, estão situados na Psicolinguística e interfaces, utilizando tecnologias, como processos e produtos. E-mail: vpereira@pucrs.br
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Este livro foi publicado pela Editora Insular em janeiro de 2019. 347