Distensos verões

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M i r i a M V i e i r a da C u n h a

Distensos verĂľes memĂłrias


Miriam Vieira da Cunha

Distensos verões Memórias

Florianópolis

2020


Insular Livros

Distensos verões

Miriam Vieira da Cunha Editor Nelson Rolim de Moura

Projeto gráfico Eduardo Cazon

Revisão Carlos Neto Gilnei Silveira

capa Eduardo Vieira da Cunha

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP) C972d

Cunha, Miriam Vieira da. Distensos verões: memórias / Miriam Vieira da Cunha. – 1. ed. – Florianópolis, SC : Insular Livros, 2020. 239 p.; E-book: 2,14 Mb; PDF. ISBN 978-65-86428-25-4  1. Crônicas. 2. História de vida. 3. Narrativa. 4. Viagens. I. Título. II. Assunto. III. Cunha, Miriam Vieira da.

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CDD B869.93 CDU 82-94(81)

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Literatura Brasileira: Romance, crônica, conto, novela, memórias, cartas. 2. Literatura: crônica (Brasil). Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Cunha, Miriam Vieira da. Distensos verões: memórias. 1. ed. Florianópolis, SC: Insular Livros, 2020. E-book (PDF; 4,53 Mb). ISBN 978-65-86428-25-4.

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Ao Március, meu “coeditor”, que me incentivou muito a escrever este livro, compartilhando velhas lembranças, aventuras e histórias de Paris e de Estocolmo. Sua leitura cuidadosa de cada versão do livro e suas muitas sugestões foram fundamentais. Aos meus irmãos, Liberato e Eduardo, que trouxeram velhos acontecimentos da família, fizeram críticas e me encorajaram todo o tempo. Ao Liberato, pela leitura atenta e pela correção minuciosa. À Mafalda, Dominique, Silvia, Sylvia, Andrea, Saulo Marçal, Lícia, Estela, Marina e Lu, pelo estímulo de vocês.


Sumário 9 - Apresentação 12 - Nasce uma escritora 14 - Introduzindo 16 - Liberato e Jenny 18 - Seu Achilles e dona Delfinha 22 - A festa dos 100 anos do vô 23 - Tio Xico 25 - Vó Angelina 27 - Granja da Penha e o quarto da escada, anos 50 30 - Lembranças de Cachoeira 31 - Capão da Canoa, anos 50 33 - Colégio Sévigné 35 - Festa de 15 anos 36 - Ada’s Club 37 - A Universidade 39 - Buenos Aires, depois da formatura 40 - Primeira visita ao Rio, 1964 42 - Rio, Conselheiro Lafayette, 38 45 - Descendo a Serra do Mar, anos 70 46 - Búzios, anos 70 47 - Cabo Frio, anos 70 49 - Salvador, atrás do trio elétrico, anos 70 51 - Uma Páscoa em Petrópolis, anos 70 52 - Paraty, anos 70 53 - Santiago, 1973 55 - Buenos Aires, um dia qualquer 56 - A descoberta de Paris, 1974 60 - 2, rue Desnouettes e o hóspede “clandestino”


63 - Primeira viagem a London, London 64 - London, London, 1975 67 - UNESCO 69 - Estocolmo, 1976 – distenso verão, Carmen 78 - Estocolmo, na cozinha do Stureby, um dia qualquer 79 - Agosto, 1976, de Estocolmo para o sul 81 - Palehora, Creta, distenso verão, 1976 86 - Paris, um dia qualquer 88 - Paris, outro dia qualquer 89 - Escola de Samba em Paris 91 - A casa da Dominique em Paris 93 - Joaozinho e a viagem ao castelo 95 - Rodrigo, porteiro noturno em Paris 97 - Detynha, dezembro 1979 100 - Natal no Sul da França 102 - Ibiza, anos 80 103 - Cairo, dezembro 1980 105 - Bruges, um dia qualquer dos anos 80 106 - Paris-Lisboa, on the road again 108 - Chegada em Maputo, 1981 112 - Os brasileiros em Moçambique 114 - Ponta do Ouro, Moçambique, anos 80 116 - Ilha de Moçambique, anos 80 120 - Mbabane, Suazilândia, anos 80 122 - Em uma das reservas da Suazilândia 123 - Maputo,1983, festa de final do curso 124 - Uma festa de casamento. Maputo, outubro, 1983 126 - Maputo, 1983 133 - Dar-es Salaam – Arusha, Tanzânia, janeiro 1984 140 - Zanzibar, fevereiro, 1984


142 - Deixando Paris, abril, 1984 143 - No navio Le Havre-Santos, 1984 149 - Impressões da volta ao Brasil 152 - Em um lugar qualquer 153 - Os baús azuis 156 - Rio 159 - Rio, um dia qualquer 161 - Em Belém com Jean-Pierre 163 - Brasília, um dia qualquer 166 - Sampa, um dia qualquer, anos 80 170 - New York, anos 80 173 - Fernando de Noronha, anos 80 174 - Lisboa, 1986 175 - Praia, Cabo Verde, fevereiro 1986 180 - Voltando para Paris 181 - Roma, 1986 182 - Porto, voltando de Roma 184 - Bireme 186 - ABECIN 190 - Le Lapin Agile, anos 90 192 - Île de Ré, anos 90 193 - Santorini, 1998 194 - Zaragoza, 1999 196 - Havana, 2000 200 - Puebla, 2002 202 - Atoladas na areia, Florianópolis, 2005 204 - Santiago de Compostela e La Coruña, Espanha, 2006 207 - Um congresso sui generis em Atenas, 2006 210 - Lençóis Maranhenses, 2015 212 - Cartagena de las Índias, Colômbia, 2016


214 - Dublin, 2019 215 - Iuli, 2020 223 - Ainda o Iuli 225 - Num dia e num lugar qualquer 226 - Diários do coronavírus, 2020 230 - Floripa 231 - Última página 233 - Posfácio 236 - Glossário


Apresentação Marcius Freire

Sim, são muitos verões! Distensos? Os verões da Miriam são as quatro estações! E, como estas, são variadas as cores, diversos os sons e múltiplos os perfumes que emanam de cada uma das páginas através das quais faremos tantas viagens. Aqui, pois que estamos embarcados no ballet mecânico de que toma parte o nosso planeta, não encontraremos apenas verões, mas também invernos. O primeiro e mais rigoroso deles, por ter se tornado tão longo e penoso para a nossa geração, levou-a a buscar, custasse o que custasse, uma primavera redentora. Esta, no entanto, parecia encontrar-se longe daqui, do outro lado do Atlântico. Sim, porque à nossa volta já quase não havia luz. Aquela última, a brilhar obstinadamente e que por três anos acenara com uma alternativa à nossa desesperança abrigando quem daqui era arrancado, se apagara um ano antes, esmagada pelo peso de botas renegadas e substituída pelo brilho infame das labaredas que fizeram arder o La Moneda. E aquele que era um refúgio às vítimas das botas brasileiras sucumbia à violência daquelas dos seus próprios algozes. Estávamos em 1974. O extenso inverno que se abatera sobre todos nós brasileiros já durava dez anos. Enxergar através da densa bruma que encobria a nossa América havia se tornado praticamente impossível. Portanto, reencontrar o 9


verão que havíamos perdido tão jovens exigia rupturas. E foi o que a Miriam e muitos de nós fizemos naquela primeira metade dos anos 1970. Os pontos de partida se espalhavam pelas cinco regiões do Brasil, mas era o Galeão que nos levava para longe. Movidos por impulsos interiores os mais diversos, éramos tantos a emprestar essa mesma rota de partida que, qualquer que fosse o porto de chegada, uma comunidade nostálgica e apaixonada por suas raízes nele se instalava. Por razões que só a história de cada um pode explicar, no caso da Miriam e do nosso pequeno grupo de deportados voluntários, o encontro não marcado se daria às margens do Sena. Ali nos acomodamos por anos, intercalando os nossos verões parisienses com os midsommars suecos. Como que consumando os mais recônditos dos nossos presságios instintivos, chegamos à Europa quando os dias são tão longos que não parece haver noite. A luz de que há pouco precisávamos se espalhava sobre nós, reverberando em nossos corpos e em nossos espíritos como um bálsamo remissor. Em Lisboa, onde Iuli e eu decidimos fazer uma escala não programada antes de desembarcar em Orly, trocando-o pela Gare d’Austerlitz, os cravos do 25 de abril, colhidos apenas dois meses antes, estavam por toda parte. A névoa que havíamos deixado em casa começava a se dissipar justamente naquele que é um dos nossos berços primordiais. Uma peregrinação àquele outro de que tanto nos orgulhamos, a Miriam faria por nós. Moçambique, Cabo Verde, Tanzânia... lhe ofereceram outros verões, outros encontros e muitas outras luzes, reconstituídos através da sua escrita, da sua poesia em forma de prosa. 10


As crônicas aqui reunidas vão fazer muitos de nós rever com o espírito aquilo que já vimos com os olhos. E, nesse processo, vamos imprimir novas cores às nuances das nossas diferentes lembranças, muitas delas já esmaecidas pela ação dos anos. Os tantos verões reconstituídos pela Miriam são uma elegia a toda uma geração de brasileiros que, de alguma forma, conseguiu escapar àquele longo inverno. Contudo, são também um canto a quem deles faz parte mas, por qualquer razão, com eles não poderá embarcar rumo às inúmeras viagens que oferecem. De Cachoeira do Sul ao Leblon; de Gentilly a Gärdet; da rue Stendhal ao Père Lachaise – onde as cinzas do Iuli foram espalhadas, lá deixando um rastro perene de nossa presença naquele abrigo parisiense – todos nos reencontramos nestes distensos verões com que a generosidade e o talento da Miriam nos presentearam em meio à rigorosa noite invernal – mais uma – que ora atravessamos.

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Nasce uma escritora Liberato Vieira da Cunha

Pra começo de conversa, devo desdizer o título aí em cima. É que, embora este seja seu primeiro livro (fora teses, dissertações e conferências acadêmicas no Brasil e no exterior), Miriam Vieira da Cunha, minha irmã, respirou literatura desde que nasceu. Na casa da Rua Sete, em Cachoeira, nos apartamentos da Rua João Manoel, em Porto Alegre, jamais faltavam pessoas lendo, pessoas comentando o que tinham lido, volumes abertos sobre os móveis mais inesperados e até ocultos no fundo das prateleiras mais altas das estantes. Esses eram os livros proibidos, os muito avançados, para nossas idades infantis (eu os descobri logo, não sei se a Miriam também). Aqui está ela, em sua estreia definitiva no mundo das letrinhas. Aqui estão seus momentos, suas músicas, suas cores, suas muitas viagens, seus passos na calçada, seus distensos verões, como ela própria os descreve. Aqui estão seus amigos e seus amores, nos dois casos, me atrevo a dizer, incontáveis. Miriam é bem assim: não só uma mulher que sabe escrever excepcionalmente bem, mas que parece ter um ímã no coração: ela atrai e enfeitiça pessoas. Jamais deem bola para seu jeito, na aparência reservado. Ela é, ao contrário, uma sedutora, que gosta de conquistar pessoas, por vezes com olhares ou silêncios, mas muito mais vezes por sua sensibilidade. Minha irmã é também uma andeja. Não se assustem com esse adjetivo. Está em todos os dicionários. Traduz-se por pessoa que anda por muitas terras (no seu caso, também por muitos mares). Fico sempre impressionado com a quantidade 12


de gentes e lugares por onde andou seu coração (menos um, o mágico Kilimandjaro, que se vestiu de nuvens bem no dia da visita dela). De Cachoeira, de Porto Alegre, do Rio, ela partiu para sua escala inaugural e morada de muitos anos: Paris. De lá tocou-se para pequenos e grandes pousos em Creta, Lisboa, London, London, Praga, Cairo, a Ilha de Elefantina (em pleno Nilo), outra ilha, Santorini, mais uma, Moçambique, Atenas, Bruges, Ngorongoro, Zanzibar, Arusha, Amsterdam, Kopenhagen, Tanzânia, Suécia, Milão, Madrid – e olhem que estou deixando de fora muitas outras ilhas, cidades e países, pois é hora de vocês chegarem a todos eles nas páginas seguintes Mas, antes devo dizer que há um capítulo neste livro que me tocou de forma muito especial e profunda. É o dedicado à Dety, nossa irmã, que no auge de sua beleza e de sua realização profissional como jornalista, vivendo numa das praias mais paradisíacas do Rio, se demitiu da vida, numa noite de Natal, em seus jovens 30 anos. Dety é uma presença que jamais se ausenta dos pensamentos de Miriam, nunca se distancia dos de Eduardo ou dos meus. Mais não conto. Todo o essencial está nas páginas que começam aqui, escrito pelo talento e o savoir-faire de Miriam.

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Introduzindo

Minha escrita é feita de momentos, de música e de cores, de viagens, de passos na calçada. De vinhos, de invernos e de verões distantes. Procuro nas palavras registrar momentos, sensações, pessoas. Lembrar cidades estranhas, pores de sol, grãos de areia. O nascer da lua na Costa do Sol, em Maputo. O Sena entre a Notre Dame e St. Michel. A Île St.Louis. A Place Furtensberg que a Lícia me apresentou. Aquele passeio pela beleza selvagem da ilha de Elefantina, no Nilo. O pôr do sol de Santorini, na Grécia. A majestade da Acrópole de Atenas. Lugares onde passei ou vivi. Carlo, em Paleohora. Caminhadas no Bois de Boulogne. A chegada a Estocolmo de madrugada, quando o sol nascia. As ruas douradas do amanhecer. Os irmãos que me hospedaram e me apresentaram a Budapeste. Nossas festas em Maputo regadas a vinho português. Ruas que atravessei, montanhas que subi. Creta, Lisboa, Paris, London, London, Ngorongoro, Zanzibar, Arusha, Santorini, Roma, Atenas. O olhar de um menino, a senhora que me ajudou a chegar à estação de trem em Praga. Teus olhos, que descobri em um parque de Amsterdam, naquele café em Kopenhagen. O verde do mar da Tanzânia, as mulheres da ilha de Moçambique. Instantes, pousadas, passagens. O lindo violão no entardecer de Atenas. Aquela pequena ilha grega perdida no distenso verão. Cores esquecidas. Teu sorriso quieto no meu canto. A beleza do relógio da cidade velha de Praga. A alegria das festas em Praia, Cabo Verde. Momentos de vida. A paz da Ponta Malongane. 14


O Duomo de Milão, uma poeira na esquina. O vento do final da tarde, o vazio das manhãs. Telefonemas perdidos, encontros ao acaso, grãos de areia, conchas. Cartões postais, lembranças, pedaços de vida. Inocência e loucuras. Risos e sonhos. A gente já não se encontra por inteiro. Talvez para um café no Lamas ou num bar em Lisboa. Naquele restaurante à beira do canal de Floripa. Ou num bistrô em Paris, num dos nossos muitos invernos. Ou, ainda, numa cachaça à beira-mar em Bombinhas com Eduardo, Dani, Dada e Oli. Talvez no começo da primavera romana, ou numa noite em Ponta de Ouro, Moçambique, com Nilson, Marina, Manuel e Alice. Lua, silêncio, charos e poesias antes da chuva. Perto do Kilimanjaro, numa fazenda de café, como em um romance de Hemingway. Charos na neve em Portillo, no Chile, com Soledad em azuis de lua e inocência. Nos parques de Santiago, com minha blusa estampada de golas enormes, abrindo as janelas da cabeça e do coração. Meu lento amadurecer de perdas e ganhos. Num Citroën, com Manuel, indo para Évora no começo da primavera. Em conversas fiadas e gostosas. No terraço da casa da Marina, olhando Roma pela janela. Quarta-feira que acaba. As horas se repetem na manhã de sol e vento. Goles de Porto, chegadas e partidas. Aquele quarto de estudante em Estocolmo num Natal, vendo a neve cair devagar. Dias de sonhos coloridos. Essas idas e vindas formaram camadas na minha cabeça e no meu coração, um melting pot desses anos.

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Liberato e Jenny

Onde barulhos, cheiros, gostos, lembranças? Vocês dois, apaixonados um pelo outro e pela vida. Escreveste muitas cartas para a mãe. Uma delas me impressionou por muito tempo. Dizias que querias morrer junto com ela. Para os meus 10 anos, aquela revelação foi uma grande traição que acabou acontecendo. Coisas da vida. Enquanto Paco dedilha seu violão, lembro para tentar sentir cheiros e gostos infantis, para voltar no tempo. Não é fácil. Fica um cheiro de coisas perdidas, esquecidas. Os restos de bolo cru, os pavês. As muitas sobremesas. O gosto por vinho, música e livros. Lembro de vocês, lendo Sparkenbroke, no jardim do chalé onde passávamos o mês de fevereiro em Capão da Canoa. Dos passeios à tarde para tomar sorvete. Tu saindo do mar com uma touca amarela. O grampo que colocaste na minha franja para que eu tomasse sol na testa. O pai, enorme, à beira-mar, segurando o Eduardo com aquela carinha de bebê comportado. As matinês naquele cinema na travessa ao lado do Hotel Rio-Grandense. A escolha dos filmes que iríamos ver aos domingos. As melancias enormes que compravas. O vinho com água e açúcar das crianças. “La vie en rose” depois do jantar. Jacqueline François, “Les feuilles mortes”, Bach ou Beethoven. Teus pratos enfeitados, jantares com pessoas importantes onde as crianças não podiam entrar. Éramos apresentados a todos e depois tínhamos que ir dormir. Ficávamos até tarde no quarto, ouvindo de longe os risos e a música. 16


Os sonhos de uma viagem a Paris que eu fiz no lugar de vocês. Teu vestido de renda lilás, combinando com o chapéu, para o jantar no palácio. Brahms. Tua voz sonora que ficou numa gravação de uma noite de inverno em Cachoeira. As malas que chegaram depois do acidente, sem vocês, trazendo aquele vazio. Tuas poesias. Teus artigos no Jornal do Dia. Aquela árvore de Natal enorme. Íamos para a rua e ficávamos esperando que tudo ficasse pronto. Depois, cantar “Noite Feliz”, jantar e esperar os presentes. Tantas pequenas lembranças, tantos sonhos esquecidos, tantas coisas que se foram com vocês. Nossas brincadeiras na rua João Manoel até tarde. A tua campanha para deputado estadual. Nós três na esquina distribuindo cédulas. As pessoas que vinham falar contigo a toda hora pedindo uma matrícula para o filho, um emprego. Os risos, as músicas, os livros. As viagens para a praia. O mês de janeiro na Granja da Penha. Teus churrascos memoráveis. Os presentes quando voltavas das tuas muitas viagens. Fantoches trazidos do Rio, livros, muito livros, roupas escolhidas pela mãe. A chegada do novo irmãozinho. Teus doces, tua elegância. Pequenas lembranças. Muita saudade.

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Seu Achilles e dona Delfinha

O vô e a vó casaram-se muito cedo. Eram primos-irmãos. Ambos muito religiosos. O vô mais falante, a vó mais quieta. Quando meus pais faleceram, a vó foi para Porto Alegre morar conosco. Ficou lá até eu fazer 18 anos. Foi difícil para ela e para nós. Brigávamos muito. Mas ela era uma pessoa terna e carinhosa atrás da sua seriedade. Estava sempre preocupada conosco. A diferença de gerações era muito grande. Lembro que quando começamos a ir a festas, tínhamos que estar acompanhadas do Liberato, nosso irmão mais velho. Não podíamos sair todos os sábados. — Uma moça não pode ser muito vista – dizia a vó. Ela fazia muitos doces. Como tinha vivido muito tempo no campo, conhecia bem a natureza. Algumas vezes, quando a gente estava saindo para a escola e tinha uma ou duas nuvens no céu, dizia: — Levem o guarda-chuva. Sempre tinha razão nesse ponto. Se não o levávamos, voltávamos inevitavelmente ensopados. Quando ela abria a porta, dizia: — Eu não falei? Ia até à cristaleira e nos trazia um copo de licor para a gente não se resfriar. Foram anos difíceis para todos nós. Mas ela teve muita paciência, aguentando nossas crises, nossas chatices, nossas reclamações. Faleceu de problemas intestinais. Foi difícil esquecer aquela figura séria, doce e serena. O vô tinha muita curiosidade pela vida. Olhos vivos, querendo conversar, perguntar e se informar sobre tudo. Uma vez, quando estava em Porto Alegre para uma exposição do Eduardo, quis conhecer um shopping. Fomos com ele ao Iguatemi. Era sábado, o local estava cheio e alguém tocava piano. Ele olhou para tudo, deslumbrado. 18


Quando a música parou, pediu para o pianista tocar “Fascinação”. Ficou ouvindo e disse para nós: – E eu, em Cachoeira, sem conhecer essa maravilha! Nesse dia, ele comprou um sobretudo. Gostou tanto que resolveu levar dois. A vendedora perguntou quantos anos ele tinha. Quando disse orgulhoso: 101, ela falou: — O senhor ainda quer viver muito! Ouvia o noticiário no rádio a todo o volume. À noite via o jornal na tv. Caminhava todo o dia. Antes de ser hospitalizado, ia diariamente ao escritório, onde ainda tinha sua sala. Ficava um pouco, recebia as pessoas. Depois, ia até o café Frísia conversar com os amigos. Quando era mais moço, gostava de caçar perdizes no mês de julho com o seu Picolotto, um vizinho, e outros amigos. Lembro dele voltando cansado e feliz, carregando perdizes. A mão apressada no cabelo escovinha. A cara morena. A mão fechada em frente da boca. Descubro-me fazendo o mesmo gesto. Heranças, hereditariedades. Nossos passos nas tábuas de madeira fazendo estremecer a cristaleira e o relógio. O barulho das horas soando devagar na tarde. As manchas da velhice nas tuas mãos morenas, nervosas, abrindo e fechando a carteira. Trocamos frases banais no sofá sob o olhar calmo da Gessy, embaixo do retrato da vó. Estavas sempre lá, sentado, imutável, vestido para uma festa invisível, de terno e gravata desde cedo, tomando mate, dormindo a sesta, ouvindo as notícias. Penteando o cabelo prateado para trás. Chegando e saindo a intervalos regulares. Voltavas para a laranja das dez, o almoço ao meio-dia, o copo de leite das 19


três. O mate das cinco, o café das sete, com direito às notícias da tv e às novelas. Depois, um telefonema para ver se a tia Candinha está bem. Para o padre Antônio, para saber da reunião da irmandade. Ias para a cama invariavelmente às dez, com bolsa de água quente e chá, que a Gessy, sempre presente, levava. Liberato e Eduardo ligavam de Porto Alegre. A tia Olga vinha da fazenda, entre apressada e nervosa, dando ordens na cozinha, abrindo armários, fazendo perguntas. Quando chegavam visitas, buscavas galinhas, ovos e leite da chácara. Gessy fazia ambrosia e doce de coco. Da padaria, chegavam cucas. A casa tinha barulho e confusão por um ou dois dias e ficavas contente, mas também aliviado quando as visitas iam embora. Mais tarde, o silêncio, a televisão, e o barulho dos passos, das conversas e dos risos nos teus ouvidos. E a presença ausente da vó nas flores do jardim, agora descuidado e cheio de folhas secas. Nos licores de ameixa e de pêssego. Nas compotas de laranja, de abóbora, nos doces de batata com coco. Nas visitas de domingo ao cemitério. Fui te ver uma vez na minha época rebelde, em que eu usava só jeans e camisetas. Quando viste que eu não usava vestidos, me disseste: — Vou te dar dinheiro para comprares umas roupas. Uma moça tem que se vestir direito. O que é que os outros vão pensar? Quando voltei da loja, com mais jeans e camisetas, percebeste que seria difícil tentar que eu me transformasse numa moça bem vestida. Perguntas sobre computadores, sobre a Unesco, sobre Paris. Contas mil vezes a mesma história. Te ouço 20


aborrecida, mas com uma velha ternura que não nos deixa, apesar das andanças, dos caminhos, dos aviões, das pessoas que passam. Viveste 105 anos bem vividos. Nos últimos tempos, já no hospital, conservavas o bom humor e brincavas com as enfermeiras. Foste o último da tua geração a morrer em Cachoeira. Cheiros e sons da infância. Piúnas, pitangas e ambrosia. E o relógio com aquele som metálico nos nossos passos no corredor.

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A festa dos 100 anos do vô

Uma missa. A igreja cheia. Dissemos para o vô que a família iria comemorar num restaurante. Ele ficou meio decepcionado. Fizemos-lhe uma surpresa, não sem um certo medo dele se emocionar demais. Seu olho brilhava quando entrou no salão lotado. Depois dos abraços, dos presentes, o churrasco foi servido. Na hora da sobremesa, algumas pessoas fizeram discursos. Ele não parava de sorrir. Estavam lá seus irmãos e cunhados ainda vivos, seus filhos, netos e bisnetos, muitos primos, sobrinhos e amigos. Encontrei, entre outras pessoas, minhas primas Erecina, Evelin, Ana Lúcia e Ana Maria, que não via há mais de vinte anos. Foram feitas muitas fotos, como ele gostava. Depois do café, cantamos “Parabéns pra você”. O conjunto tocou uma valsa e eu o convidei para dançar. Ele ficou radiante. Foi uma linda festa, um dia alegre e barulhento.

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Tio Xico

No calor da tarde, sentado embaixo da árvore. Tio Xico, 90 anos, olhos azuis na cara pretíssima. No cabelo grisalho onde passa a mão de vez em quando, num gesto largo. No fundo de tudo, aquele jeito familiar e antigo das coisas da chácara, o vô satisfeito no meio da mesa grande. Isso talvez seja outra história. A geladeira cheia daquele guaraná champagne doce que ninguém gostava. E um gosto de carne assada misturada com velhas histórias. Tio Xico, bêbado, lembrando as fotos que fizemos num churrasco, na fazenda do tio Saul, embaixo das árvores. A tua sombra embala o nosso sono na rede. Granja da Penha, tio Xico, preto velho, o sol bate na tua cara. Sorriso aberto. Domingo. Tarde de Natal e todos têm um ar engraçado. Vestidos à vontade, mas um pouco engomados, afinal, é Natal. Preto velho, tomando mate. Vida simples e sofrida. Um olhar firme para tudo. Uma camisa preta num gesto grande, braços abertos. O vento derruba os vasos. Tu, no degrau do botequim, ou no banco da praça. Teu chapéu amassado. A vida escorrendo nesse minuto. Tu, no vento morno da praça em frente da igreja. Vento assobiando. Mudaste de bar, tio Xico. Ou passeias pelas ruas solitárias. Mais tarde, uma camisa verde, um não sei o que no teu olho vivo. A noite sem lua, um gosto de limão. Todos foram dormir e a cidade é preguiçosa. Tua família, tio Xico, lá do outro lado do mato, espera pela carne assada que vai chegar fria. Querendo ouvir as histórias que levas junto com o churrasco e o resto da 23


salada. Talvez nem leves histórias. Tu és a história. A história dos Felix, a família dos patrões onde nasceste, quase por acaso, num resto de escravidão que sobrou nos campos do sul.

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Vó Angelina

Doçura sem fim. Angelina tinha uma cara redonda, olhos azuis e sorridentes. Foi morar no apartamento ao lado do nosso quando meus pais faleceram. Ficou viúva cedo, com sete filhos. Sustentava a família como professora, equilibrando-se com um salário pequeno. Morava naquele apartamento, com a tia Liliza e o Chico, seus filhos solteiros e a sua irmã Filomena. Quando o Chico se casou, continuou a viver com ela por algum tempo. Recebia hóspedes de Cachoeira o tempo todo. Nunca se queixava. Tinha sempre uma palavra para cada um, um carinho, um sorriso enorme. Como os apartamentos eram térreos com quintais, o vô abriu um portão no muro que os separava. Passávamos os dias andando de um apartamento para o outro. Lembro-me das duas avós, Delfinha e Angelina, as cabecinhas brancas, conversando no portão entre os pátios. Sempre que estávamos tristes, vó Angelina nos estreitava no seu abraço enorme. Cozinhava divinamente, espaguetes, pizzas, raviólis, canelones. Cantava canções italianas enquanto cozinhava. Tinha vindo da Nocera Superiore, no sul da Itália, para Cachoeira com os pais e irmãos quando era pequena. Contava histórias da sua infância. Histórias do Vesúvio. Tinha muitos amigos. Quando ia a Cachoeira, a casa onde estava se enchia de gente. Lembro que dizia: é preciso cultivar as amizades. Apesar de viver com pouco dinheiro, ajudava sempre todo mundo. Quantas vezes chegamos lá atrás de carinho e de consolo? 25


Teve uma trombose e morreu de repente, deixando um enorme vazio no apartamento 2 da JoĂŁo Manoel.

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Granja da Penha e o quarto da escada, anos 50

Como começar? Anabela era a “filha de criação” da tia Olga, adotada para brincar com a Cris, nossa prima, coisas do Brasil profundo. Anabela devia ter 7-8 anos franzinos. Era bonita, tímida e doce. Estávamos na granja, como em todos os janeiros. Meus pais, meus irmãos, meus avós, a tia Olga e o tio Saul, a Cristina e a Anabela. Como dizia meu avô, sempre cabia mais um naquela casa. Brincávamos de sapata, de esconde-esconde. Tomávamos banhos maravilhosos de chuva. Íamos escondidos até o riachinho no fundo do mato. Quando voltávamos para casa, trazendo areia (a prova fatal), minha avó descobria. E nos proibia de ir de novo. No dia seguinte, na hora da sesta, voltávamos ao riacho. Anabela nos acompanhava sempre. Era nossa irmã, nossa companheira de aventuras. Íamos comprar picolé na venda do seu João. Um picolé vermelho, com gosto de xarope de framboesa. Quando a piscininha ficou pronta, passávamos a tarde entrando e saindo da água. Depois do almoço, comíamos melancia ou uvas colhidas na parreira. Dormíamos, às vezes, em uma das redes. O vô tinha instalado balanços. Fazíamos concurso para ver quem chegava mais alto. Andávamos de gangorra embaixo da figueira. Conversávamos com o caseiro, ficávamos olhando meio assustados a “carneação dos porcos” com seus gritos estridentes. Íamos colher uvas, ameixas e pêssegos no pomar. Meu pai, que adorava reunir as pessoas, organizava enormes churrascos. Às vezes, um padre chato, amigo da família vinha passar uma semana conosco. Era uma tortura para nós. Fazíamos festa quando ele ia embora. 27


À noite, depois do jantar, tia Olga puxava uma cantoria. Cantávamos até perder a voz. Ou então o vô contava uma de suas muitas histórias de caçadas com seu Picolotto. Às vezes, o tio Xico aparecia. Ou o Rodrigo com a tia Virgínia. E de repente estávamos todos acamados, com sarampo. Um a um, acordamos com braços e pernas pintados. E ficamos aos cuidados da vó. Queríamos histórias. Não queríamos comer. Tínhamos febre. Quando ficamos curados, minha vó colocou Anabela, que ainda não estava boa, no quarto da escada. Eu não gostei nada. — É para ela ficar mais tranquila, disse minha vó. E ficar boa depressa. Íamos visitá-la todos os dias. Anabela foi perdendo aos poucos a consciência. Não nos reconhecia mais. Não ria com a nossa chegada. Fomos proibidos de vê-la. Ela tem que ficar quieta, nos disse a vó. Contavam histórias estranhas do quarto da escada, histórias de bolas de fogo, de assombrações, de figuras noturnas. Por que misturar Anabela nisso tudo? Me dava medo. De repente, vimos chegar um padre às pressas, num carro preto. Alguém nos levou a passear. Quando voltamos, Anabela tinha ido embora. Com ela, foram seu riso, sua cor de jambo, sua timidez. Tinha morrido de complicações do sarampo, talvez de doenças prévias, vindas de uma casa pobre, onde se comia pouco. As pessoas falavam baixo. A porta do quarto da escada ficou fechada. Como é que uma criança pode desaparecer assim, com sorriso e tudo? Por que levaram Anabela para o quarto da escada? Por que ela foi embora assim, de sarampo? 28


Perdemos um pouco da inocência naquele dia. Começamos a acreditar que os adultos mentem (tinha alguma coisa estranha no desaparecimento da Anabela). Fui aprendendo, a custo, com Anabela, Dety, Bety, meus pais, que as pessoas vão embora um dia. Com elas, vai alguma coisa de nós. Com Anabela, a primeira inocência. A inocência dos sete anos, da chácara, junto com o cheiro de verão. As noites ficaram mais silenciosas. As brincadeiras foram difíceis nos primeiros dias. Tínhamos medo de passar pelo quarto da escada para ir dormir. Foi difícil entender.

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Lembranças de Cachoeira

Saci, Cachoeira. Cinco copos d’água para nos fazer importantes e poder sentar-nos na sorveteria. O sorvete chegando enquanto nossos corpos nos diziam suor. Distenso verão soando como música em meus ouvidos. No Fusca, Loreto e Maydana nos chamando para o passeio proibido au delà du pont. Sol na ponta dos nossos desejos escondidos, com medo. Sol na estrada poeirenta. No rock do carro ligeiro. A volta e um picolé apressado, nossos 14-15 anos. Rostos afogueados, suados. Desejos escondidos na grama molhada. Sete horas. Hora de voltar. Na casa da vó, a tv ligada e o relógio vibrando nossos passos nas tábuas de madeira. Guisadinho com milho e arroz. E a fala raivosa da Delfinha: isso são horas meninas? Por onde andavam? As notícias da tv na minha cabeça, lembrando a festa do sábado, o passeio na ponte, tua mão quente que me dá arrepio. Outro dia qualquer, passar na Mafalda. Seu Joãozinho no jardim. Calor. Paralelepípedos fervendo. Erecina e Evelin na casa da tia Angélica. Tio Virgílio fazendo canteiros para os netos com seu ar doce e risonho. — Meninas, não voltem tarde! Chácara. Passeios de moto. Ericina, avançadinha, puxa um cigarro com ares de moderna. Na saída do cinema, passar correndo nos terrenos baldios da rua Sete. Depois, na casa da tia Angélica, jogar travesseiros e rir aos montes.

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Capão da Canoa, anos 50

O vô era apaixonado pelo mar. Adorava ficar boiando no meio das ondas. No início dos anos 50, comprou, com o seu Santinho, um prédio térreo com oito apartamentos que eles chamaram de Solar Cachoeirense. Venderam cada unidade para a família e os amigos. O vô e o Santinho ficaram com um apartamento cada. Todos os anos, passávamos o mês de fevereiro lá. O solar, era cheio de crianças, primos e filhos de amigos da família. Crescemos juntos naqueles fevereiros de sol e mar. Era uma festa ir à praia todos os dias. À tardinha, depois do banho, íamos dar uma volta na praça. Levávamos o Eduardo, pequeninho nos seus macacões bufantes para andar de balanço. Podíamos andar sozinhos para todo o lado descobrindo bairros novos, novas sorveterias, lugares para tomar sucos, revistarias. Um novo circo chegando. O cinema de Atlântida, a praia vizinha. À noite, íamos em bando ao Balneário Rio-Grandense, um hotel com um restaurante enorme, para encontrar amigos, tomar sorvete e ver os meninos. Comíamos melancias, íamos contrariados às missas. Fazía‑ mos passeios de carro pela praia até Tamandaí ou a Torres. Eu usava shorts vermelhos com debrum azul. Camisetas listradas, com cheiro de roupas de férias. Uvas e ameixas na frente de casa. A rua da igreja. Meu medo fóbico dos cachorros que me fez levar muitos tombos. Passar em frente ao cinema na saída da praia para ver qual seria o filme do dia. Lembro que fui, com uma prima, ver o ousado (para a época) filme “E deus criou a mulher” com Brigite Bardot. Não tínhamos ainda 18 anos. Nos maquiamos 31


para parecer mais velhas e funcionou. Me senti adulta assistindo àquele filme tão sensual. O vô tinha mandado construir, no sótão do apartamento, um quarto que era o “refúgio das gurias”. Na hora da sesta, ficávamos naquele sótão, conversando e rindo com amigas e primas, fazendo confidências, sonhando. Lembro também de nossas excursões por toda a extensão do sótão. Entrávamos na porta ao lado do nosso quarto e percorríamos, entre fascinadas e assustadas, aquela escuridão com uma lanterna. Nunca descobrimos nada, além de pequenas raposas e gambás. Uma carreta, vinda da Terra de Areia, passava de manhã cedo na frente do solar, trazendo abacaxis e melancias maravilhosos. O carrinho de sorvete chegava no final da tarde. Cami‑ nhávamos até Atlântida pela praia. Íamos a Cidreira visitar parentes. Descíamos rolando os cômoros à beira-mar no meio de risadas. O “Dindinho”, o bondinho local, dava voltas pelo balneário e nos levava até as praias vizinhas. Crescemos. Nunca mais voltei a Capão. Ficou em mim, um gosto de fim de infância, de descobertas, de cores, de sol e de maresia.

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Colégio Sévigné

Estudamos, eu e a Dety, no Sévigné, um colégio de freiras francesas, do curso primário até o clássico. Começamos logo a achar muito chatas as aulas de religião e as missas que tínhamos que assistir às sextas-feiras. Lembro nitidamente do primeiro dia em que voltamos ao colégio depois da morte dos meus pais. Entramos nas respectivas salas levadas pelas freiras. Quando cheguei, se fez um silêncio pesado que me fez mal. Na hora do recreio, as freiras não nos deixaram ir para o pátio com as colegas, temendo, talvez, que elas nos fizessem perguntas inconvenientes. Ficamos numa sala com uma freira, eu e a Dety, odiando aquele castigo, querendo estar no pátio como todo mundo. Até o final do primário, eu fui uma aluna comportada e quieta. A partir do ginasial, apesar de continuar com boas notas, comecei a ficar rebelde. Cabulava aulas, ria durante as missas, puxava o véu das freiras, falava sem parar na sala de aula. Era como se eu precisasse dessa rebeldia para seguir em frente. Meu avô seguidamente era chamado no colégio para ouvir queixas do comportamento da neta. Fui parar algumas vezes na sala da Madre Diretora, o cúmulo do castigo. Lá, eu ficava ouvindo preleções sobre o meu comportamento rebelde. Apesar de tudo, tenho boas lembranças daquela época, do começo da minha rebeldia adolescente, das primeiras amizades, das festas, dos passeios à serra, das quermesses, dos recitais de poesia, das broncas, dos castigos. De mim tocando “Pour Elise” no palco, ou declamando nas festas da escola. Depois de muitas dúvidas existenciais, resolvi, junto com três amigas do colégio, fazer vestibular para Biblioteconomia. 33


Eu conhecia muito pouco do curso, mas fui convencida, principalmente, porque era fácil conseguir trabalho como bibliotecária. Tudo o que eu queria, depois de concluir o curso, era ser independente, ganhar meu salário e morar sozinha, se possível, longe da família.

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Festa de 15 anos

Em 1961, fiz a clássica festa das meninas de boa família. Lembro que fomos, eu e a tia Olga, na costureira para escolher o modelo do vestido, como se fazia na época. Eu passei a tarde toda folheando figurinos, cada vez mais ansiosa, porque não encontrava um modelo que gostasse. Depois de algumas horas, minha tia perdeu a paciência e escolheu o modelo por mim. Saímos para comprar o tecido, um organdi cor de rosa. Quando o vestido ficou pronto, cheio de babados, eu odiei. Mas não tinha mais jeito de voltar atrás. Tive que encarar aquele modelito. No dia da festa, que foi no Hotel Umbu, um hotel chic da cidade, resolvi raspar os pelos das pernas, o que eu nunca tinha feito. Desajeitada como era, e ainda sou, fiz um corte enorme na perna. Não parava de sair sangue e eu fiquei um tempão secando a ferida. Eu estava apavorada. Liguei para um amigo que cursava Medicina e perguntei a ele o que eu poderia fazer para estancar o sangramento. Ele me disse para colocar açúcar e funcionou. Minha perna doía muito e eu tinha que dançar à noite. Aquele corte ia ficar visível. Na hora da festa, minha tia colocou base em cima do corte, pus uma meia de nylon e entrei no salão. Não lembro se minha perna doeu. Acho que a emoção da festa, as danças, a presença da família e dos amigos me fizeram esquecer do corte e daquele vestido horroroso.

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Ada’s Club

Quando eu tinha 13-14 anos, criamos, um grupo de meninos e meninas, um “clube”. A sede era no apartamento da Heloísa e do Fernando, que moravam no Edifício Ada, em Porto Alegre, daí o nome. A mãe deles, Dona Paquita, era uma das maiores entusiastas do clube. Na realidade, ele só existia para organizarmos festas, passeios e concursos de dança. As “reuniões dançantes” aconteciam na casa das meninas quase todos os sábados. Lembro que a vó Delfinha não gostava que fôssemos a festas todos os finais de semana. Ela dizia que não era bom que uma menina fosse “muito vista”. Acho que ela pensava nas “donzelas recatadas” do século XIX. Eu e a Dety ficávamos furiosas, mas tínhamos que obedecer. O Liberato, como era homem, podia ir a todas as festas que quisesse. Lembro de excursões para a serra gaúcha e de apresentações de dança. Cada casal apresentava um tipo de música: tango, valsa, rock, bolero, chá-chá-chá, twist, entre outras. Foi um período muito divertido.

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A Universidade

Entrei no curso de Biblioteconomia em 1966, com minhas amigas do Sévigné. Na sala, só meninas. Repartíamos o prédio com os alunos do curso de Economia, onde a maioria era homem. Compartilhávamos com os meninos o bar, o auditório, os corredores e o centro acadêmico. Foi uma revolução, na minha cabeça, sair daquele ambiente protegido do colégio de freiras e entrar na universidade, onde algumas aulas eram vivas e cheias de discussão. Lembro das aulas de História da Arte, com o professor Jairo, que me abriram para um outro mundo, com visitas aos museus da cidade e palestras de artistas gaúchos. Lembro das aulas de disciplinas técnicas, dadas, em sua maioria, por professoras sem imaginação. A professora Lucília, que lecionava Referência, era nossa melhor mestra. Suas aulas eram muito criativas, com visitas às bibliotecas da cidade e conversas com bibliotecários. Os bailes na Reitoria eram muito animados e duravam até o amanhecer. Lembro das passeatas contra a ditadura, que endurecia pouco a pouco. Sentia-me importante caminhando na rua, gritando palavras de ordem. O diretório da Faculdade de Economia era bastante engajado politicamente e conseguiu recrutar muitas alunas da Biblioteconomia. Fui descobrindo aos poucos o horror da ditadura que estávamos vivendo nas muitas reuniões no centro acadêmico. Quando concluí o curso, fui trabalhar no arquivo que armazenava as plantas do setor de Obras da Universidade. As aulas de Arquivística não tinham me preparado para esse trabalho. Depois de muitas leituras e de conversas com outros bibliotecários, consegui criar um sistema para recuperar 37


documentos. Depois de um ano, pedi demissĂŁo do arquivo para uma nova aventura, o Rio de Janeiro.

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Buenos Aires, depois da formatura

Eu e algumas colegas da Universidade fomos conhecer Buenos Aires quando terminamos o curso de Biblioteconomia. Era a primeira vez que eu viajava para o exterior. Estava empolgadíssima com aquela aventura. Juntamos o dinheiro para custear parte da viagem com a rifa de livros, discos e outros objetos. Um dia, fizemos uma barraquinha de churros para vender na saída das aulas. Compramos uma quantidade enorme de churros e não conseguimos vender nem a metade. Em Buenos Aires, dançamos tango nos Cabarés do Barrio de La Boca. Nos maravilhamos com o metrô. Lembro do dia em que estávamos indo para a avenida Santa Fé, a Rosária saiu na estação anterior a que tínhamos que descer. Quando nos demos conta, esperamos na plataforma. Ela chegou um pouco depois, com uma cara assustada. Andamos de roda gigante, caminhamos nos parques. Fomos ao teatro Colón. Vimos porteños dançarem tango em San Telmo. Conhecemos um grupo de rapazes argentinos, Lucho, Enrique, José e Juan, com quem saímos algumas vezes. Como meninas faceiras e fúteis de 18 anos, gastamos quase todo o dinheiro comprando blusas de caxemira, lenços, sapatos e bolsas. E enviando postais à família e aos amigos. Eu já lia muito naquela época, mas, nessa viagem, não lembro de ter comprado nenhum livro. Tudo o que eu queria era namorar, dançar, ir aos bares noturnos, percorrer os parques e andar pela Avenida Santa Fé, o paraíso das compras. Voltei muitas vezes a Buenos Aires, lembrando sempre do meu encantamento quando pisei, pela primeira vez, naquela cidade cosmopolita e alegre. 39


Primeira visita ao Rio, 1964

Quando fiz 18 anos, fui conhecer o Rio de Janeiro com minha tia Edna. Ficamos na casa da Tia Ledy, na Tijuca, uma tia muito liberal e avançada para a época. Ela tinha uma filha da minha idade, a Elisa, que me ciceroneou pela cidade. Fiquei fascinada pelo Rio. Fizemos o roteiro clássico: Corcovado, Pão de Açúcar, Copacabana e Floresta da Tijuca. Copacabana era, na época, o must da cidade. Íamos à praia lá e voltávamos à noite para um show, uma peça de teatro ou para um dos bares da moda. Saíamos, quase sempre, eu, Elisa e Gustavo, um grande amigo dela. Aquela viagem foi, de certa forma, minha entrada no mundo adulto. Um dia, saí sozinha com o Gustavo. Fomos jantar, depois a um show da Elis, que estava no auge nessa época, e dançamos de “rosto colado” numa boate em Copacabana. Lembro que ele pagou todas as despesas, como faziam os cavalheiros à época. Claro que, em Porto Alegre, aquela saída nunca teria acontecido. Para os meus avós, uma moça precisava sempre de um “chá de pera” (uma companhia) para sair com o namorado. O show da Elis foi maravilhoso. Era a primeira vez que eu via a “baixinha” no palco. Nunca esqueci daquela presença, daquele carisma, da sua voz perfeita e daquele sorriso. Até hoje, foi a única vez que vi uma intérprete que ria cantando. Íamos muito ao Barril 1500, um bar e restaurante no Arpoador. Ipanema começava a ser conhecida. Fui, algumas vezes, ao centro da cidade caminhar pela Rio Branco e pelo centro histórico. Almoçamos no Lamas e comemos doces na Confeitaria Colombo. Não lembro se fomos a Santa Teresa. 40


Mandei muitos postais à família e às amigas, contando minhas aventuras. Quando voltei para Porto Alegre, decidi ir morar naquela cidade tão “moderna”, pela qual me apaixonei. Instalei-me lá no início dos anos 70.

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Rio, Conselheiro Lafayette, 38

Chegamos ao Rio, eu, Dety e Maria Inês, em 1971. Alugamos um apartamento no Posto 3, em Copacabana, por telefone. Queríamos as três ficar longe da família e entrar na vida adulta. Nossa chegada foi horrível. O prédio onde era o apartamento tinha de tudo: pequenas lojas, escritórios e “apartamentos de encontros”. Quando abrimos a porta, uma dezena de baratas enormes surgiu nas paredes. Tivemos que fazer uma grande faxina e dedetizar o lugar para poder viver ali. Começamos a procurar trabalho em seguida. Fui contratada para organizar a biblioteca do escritor Afrânio de Melo Franco, em Ipanema. Dety foi trabalhar no jornal O Dia. Maria Inês conseguiu trabalho numa biblioteca. Aos poucos, fomos nos habituando àquela vida movimentada da cidade grande, a ir ao cinema, ao teatro, a conhecer pessoas. O Xico, namorado da Dety, nos apresentou a várias pessoas simpáticas. O apartamento onde morávamos era muito precário e barulhento. A Dety foi morar com o Xico em Santa Teresa. Eu e a Maria Inês alugamos outro apartamento no Posto 6, também em Copacabana. A Maria Inês ficou um tempo lá e foi morar com um amigo. Nesse meio tempo, descobrimos, eu e a Dety, dois apartamentos na rua Conselheiro Lafayette. Mudamos para lá ao mesmo tempo. A Dety foi morar com o Xico no décimo andar e eu, no terceiro do mesmo prédio. Como a casa dela era mais organizada, eu ia muitas vezes fazer as refeições com eles. O Eduardo, nosso irmão, vinha sempre passar as férias conosco. Tivemos o privilégio de ter o Carlos Drummond de Andrade como vizinho. Víamos o poeta caminhando, de manhã, pela rua, devagar, talvez criando versos enquanto andava. 42


Na minha casa passava muita gente. O Yeti, um amigo, chegava trazendo atores dos grupos de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone e Ornitorrinco. Estávamos em plena ditadura, mas as peças desses grupos tinham um texto despojado, leve, cheio de humor, de alegria e de críticas sutis. Num sábado, no início de julho, eu cheguei em casa e o Eduardo não estava. Fui procurá-lo no apartamento da Dety e ela não o tinha visto. —Talvez tenha ido à praia ou saiu com um amigo. Lá pelas dez da noite, comecei a me preocupar. Liguei para vários amigos e ninguém sabia dele. Esperei mais um pouco. Ele não voltava. Fui dormir apreensiva. No domingo cedo me vesti para ir à polícia, pensando: meu irmãozinho foi preso. Quando eu estava saindo, ele chegou com uma cara despreocupada. Fiquei furiosa, dizendo que ele era menor de idade e tinha que avisar aonde ia. Ele me disse que havia deixado um bilhete (que eu não encontrei) e que estava com o Jorge e o Sérgio, amigos nossos, numa festa de São João no Posto 6. Quando a festa acabou, dormiram na praia. Suspirei aliviada. Em outro mês de julho, emprestei meu apartamento para uns amigos do Eduardo, os gêmeos Ubiratan e Tiaraju, conhecidos como Secos. Eles trabalhavam com teatro de bonecos em Porto Alegre e vieram com alguns amigos. O meu apartamento, naquele julho, foi uma festa só, com pessoas entrando e saindo o tempo todo. Quando voltei, encontrei a vidraça da janela da sala com uma linda e colorida pintura em têmpera, obra coletiva do grupo. Aqueles foram anos de festa e efervescência cultural no Rio. Peças de teatro com novas linguagens, shows musicais 43


despojados. A literatura também estava em plena efervescência, apesar da censura constante. O Posto 9, em Ipanema, era o lugar de encontro dos artistas e jovens “desbundados”, seguidores da contracultura dos anos 70. Eu, recém-chegada de Porto Alegre, absorvia tudo com curiosidade e espanto. Um dia, a Helena, namorada do Jorge, um amigo de Porto Alegre, veio morar comigo, vinda de Curitiba. Lembro que, no início, nos estranhávamos um pouco. Depois, ficamos amigas e não nos perdemos mais de vista. Aos poucos, o governo foi endurecendo. Pessoas próximas desapareciam, alguns amigos perseguidos pediam pousada por uma noite, para depois irem para algum lugar desconhecido. Nesse clima, decidi conhecer Santiago do Chile que, em pleno governo Allende, acolhia refugiados de toda a América Latina. As famílias de vários refugiados me deram dinheiro, cartas e fotografias para entregar a seus parentes em Santiago. Fui para o Chile bastante apreensiva, porque temia ser presa na saída do Brasil com documentos comprometedores. Deu tudo certo. Fiquei um mês em Santiago, aproveitando os estertores do socialismo de Allende.

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Descendo a Serra do Mar, anos 70

Fui passar o Natal na casa da Helena, em Curitiba. Minha avó ficou furiosa. Natal é com a família, me disse ela. Foram dias alegres e cheios de música, com comidas ótimas feitas pelo Oscar, irmão da Helena, e bons vinhos. No dia seguinte, descemos a Serra do Mar numa velha e simpática Maria Fumaça, até Paranaguá, a cidade mais antiga do Paraná. Lembro que fomos no último vagão, fumando charos e olhando a descida da serra. Foi uma viagem inesquecível. Paranaguá é uma cidade histórica, um dos principais portos do Brasil. Seu casario, com azulejos portugueses, e suas ruas de pedra são testemunhas da época colonial. Chegando lá, vimos o Museu Histórico, que narra a chegada dos imigrantes japoneses, poloneses e alemães. Andamos pelas ruas de pedra, olhando, com calma, lindos sobrados, igrejas e mercados. Na cidade, muitos turistas japoneses que vinham conhecer a história dos seus antepassados. Andavam em grupo, com um guia. Fiquei impressionada porque eles não olhavam a cidade, nem as pessoas. Viam tudo através das lentes das câmeras, fotografando o tempo todo. Ao meio-dia, comemos “barreado”, um prato típico do litoral paranaense, feito com três tipos de carne, muito saboroso. No meio da tarde, pegamos o trem de volta para Curitiba.

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Búzios, anos 70

Fomos para Búzios no fusca do Jorge. Éramos cinco: Helena, Sérgio, Jorge, Eduardo, meu irmão, e eu. Ficamos acampados perto da praia da Ferradura. Depois de instalados, demos um mergulho naquelas águas esverdeadas e transparentes e saímos para conhecer as outras praias. O Eduardo, que tinha 15 anos na época, ficou fascinado com as meninas tomando sol e fazendo topless. Não queria sair mais dali. O Jorge o convenceu, dizendo que, em quase todas as praias, iria encontrar meninas sem sutiã. O Eduardo saiu mudo da praia e ficou assim até a próxima. Ficou mais impressionado ainda quando soube que Brigitte Bardot tinha passado quatro meses por lá, e que a Ferradura era uma de suas praias preferidas. Ficamos quatro dias ouvindo as muitas histórias do Jorge, tomando caipirinha, chimarrão, caminhando pelas praias, comendo peixinhos gostosos, fotografando, lendo, fumando. Voltei lá, muitas vezes, com outras pessoas. Mas a primeira descoberta daquele paraíso ficou na minha lembrança para sempre.

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Cabo Frio, anos 70

Eu trabalhava nessa época no escritório de arquitetura do Maurício Roberto. Lá, conheci Julinha, Crica, Estela, Lélia, Gordo, seu marido e muitas outras pessoas. O escritório era uma festa permanente. Eu era responsável pela biblioteca. Como era um pouco afastada das salas de trabalho, a biblioteca era o local ideal para fumar um “cigarrinho”. Vivia cheia. Todos os dias, por volta das 10 horas, apareciam os primeiros fumantes, que nem sempre eram leitores. E o cheiro de fumaça seguia na biblioteca o dia inteiro. Foi um tempo divertido, mas, naturalmente, como as funções da sala de leitura foram “transformadas”, era difícil levar o trabalho a sério. Quando alguém chegava para fazer uma pesquisa, eu tinha problemas em me concentrar. Depois de alguns meses trabalhando naquela animada biblioteca, comecei a fazer amigos entre os “pseudo-leitores”. Num final de semana, o Marcio, um dos arquitetos nos convidou para passar o final de semana na casa dele em Cabo Frio. Fomos eu, a Julinha, a Estela, a Ana Maria e mais quatro ou cinco pessoas. Lembro que, quando acordávamos, o Márcio e a Ana Maria estavam sempre na mesa da varanda tomando vodca, comendo ostras e fumando. Foi um final de semana de pura festa. Às vezes, íamos dar um mergulho, mas a maior parte do tempo passamos naquela varanda bebendo vodca e conversando. Entre as pessoas que conheci naquele escritório, ainda tenho contato com a Estela e com a Crica. Elas, de vez em quando, me dão notícias da Julinha, que está cada vez mais 47


caseira. Perdi os outros de vista. Mas lembro que eu chegava no escritรณrio por volta das nove, de short, depois de um mergulho no Posto 6, onde morava. Soube, pela Estela, que aquela casa na rua Real Grandeza nรฃo existe mais. Ficaram na lembranรงa as muitas risadas daquele ambiente festivo.

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Salvador, atrás do trio elétrico, anos 70

Passei muitos carnavais em Salvador com Helena, Graça e meu irmão Eduardo, entre outras pessoas. Eram os anos 70, de muitos delírios e sonhos. Vínhamos do Rio de ônibus. Dormíamos algumas horas na casa da Graça e passávamos o dia na folia sem fim da cidade, até o amanhecer, brincando atrás dos trios elétricos, tomando cervejas no meio da alegria contagiante da multidão. Te encontrei muitas vezes nas esquinas, sentado numa calçada, ou no meio da folia. Saíamos para tomar fôlego, uma coca ou uma cerveja num dos muitos botecos do caminho. Trocamos histórias de encontros ao acaso, de risos na multidão. Ou descíamos até a praia para mergulhar e ficar secando ao sol ouvindo o barulho da folia. De manhãzinha, voltávamos exaustos para casa. Um banho e um sono de pedra para acordar ao meio-dia e entrar de novo na festa daqueles dias de sol e cerveja. Uma noite, dormimos nas areias da Praia da Barra, coisa impensável nos dias de hoje. Acordamos de manhã, fomos em casa tomar um banho e seguimos na folia. Foi uma época de trocas e sonhos, de alegrias delirantes, de encontros ao acaso nas esquinas, ou no meio da multidão bonita e alegre descendo ou subindo as ladeiras entre as igrejas, os becos e o sol. Às vezes a multidão ficava compacta demais e era impossível continuar sem levar empurrões. Saíamos de mansinho, esperando a loucura acalmar. Reinaldo, um amigo nosso, estava tão cheio de cerveja e “outras coisinhas mais” que um dia foi parar embaixo de um trio elétrico. Teve mais sorte do que juízo (como diria minha avó), passou entre as rodas e não se machucou. 49


Nos anos seguintes, a violência tomou conta do carnaval de Salvador e ficou difícil voltar a brincar naqueles dias de sol e cerveja atrás dos trios elétricos. O sonho começava a acabar.

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Uma Páscoa em Petrópolis, anos 70

Fui com a Estela, o Fernando e a Vera acampar em Petrópolis num feriado de Páscoa. Assim que montamos nossa barraca, começou a chover. E choveu durante os cinco dias que estivemos lá. Todo dia, a gente acordava pensando: hoje não vai chover. Mas a água continuou, inclemente. Saíamos para renovar nosso estoque de comida, comprar vinhos, dar uma volta de guarda-chuva, mudar de ares. Jogamos baralho, lemos, conversamos muito para não perder o humor. Tomamos muito vinho. Fazíamos pequenos passeios e voltávamos ensopados. Fomos até à cidade algumas vezes para comer, tomar um café, entrar numa livraria, renovar nosso estoque de leituras, conhecer o Museu Imperial, a Casa Stefan Zweig e a Casa do Santos Dumont. Continuamos, inevitavelmente, esperando a chuva amainar. Mas isso não aconteceu. Eu e Estela, naquela época, tínhamos começado a fazer planos para ir para Paris. Essa ideia voltava sempre nas nossas conversas. Fernando ficava mudo. Não gostava nada daqueles planos, porque ia ficar no Rio. Poucas vezes na minha vida tinha visto tanta água. Nosso estoque de bom humor nos seguiu firme dia a dia, na esperança do sol na manhã seguinte. E assim chegamos ao domingo de Páscoa. Desarmamos a barraca e colocamos tudo no carro. Fomos comer um bacalhau regado a vinho português. Depois, tomamos um café com doces no Museu Imperial e descemos a serra. No final da tarde, quando chegamos ao Rio, o sol voltou a aparecer. 51


Paraty, anos 70

Chegamos a Paraty eu, Maurício e Damião, numa tarde de sexta-feira depois de uma viagem de ônibus descendo a serra. Eu já tinha ido algumas vezes lá, mas adorava voltar sempre àquele lugar sereno cheio de cores, àquela montanha enorme atrás da praia, àquelas ruelas irregulares e casinhas coloridas. Pessoas sentadas no fim da tarde em frente às casas trocando novidades, lembrando histórias, rindo. Nos instalamos numa pousada e fomos tomar uma caipirinha na praça principal da cidade. Fumamos um charo. Pedi a segunda caipirinha, que tomei depressa demais. Fiquei tonta e comecei a passar mal. Damião e Maurício me pegaram pelos braços, um de cada lado, e começamos a dar voltas na praça. Depois da décima volta, me dei conta de onde estava, olhei devagar a praça, meus amigos, a luminosidade do final da tarde, a linda igreja matriz e aquela cidade colonial perdida no tempo. Era verão. Fomos dar um mergulho. Na volta, vimos a lua nascer devagar no mar. Sentamonos outra vez no boteco e ficamos dizendo bobagens e rindo. Eram os anos 70, dourados e sonhadores. A vida seguia aberta em frente e as casas de Paraty nos contavam histórias.

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Santiago, 1973

Tom Jobim. Fim de tarde. Luiza me transporta para Santiago do Chile da época de Allende. Lembro dos refugiados brasileiros que abraçaram o socialismo moreno que os acolheu. Dos nossos passeios nos parques do inverno socialista. Eu me deslumbrava com a euforia do período Allende. Todos os dias conhecia novos refugiados brasileiros. Ouvia, assustada, os muitos relatos de tortura nas prisões brasileiras. Aquelas vidas que me eram contadas me faziam crescer todo o dia um pouco. Lembro do Xavier me mostrando as marcas de cigarro nas suas costas. Dos discursos maravilhosos do Allende nos comícios. Dos vinhos com empanadas na casa da Marisa e do Sérgio, amigos do Rio. Das discussões políticas, noite adentro, que eu seguia com ouvidos atentos. Ao fundo Violeta Parra ou Inchi Ilimani. Eu aprendia muito no contato diário com os brasileiros. Relatos de um Brasil de lutas, de resistência, de muita esperança. Compartilhava com muitos deles de longos almoços num restaurante do centro, regados a vinho branco. Passeatas. Depois do almoço, as pessoas saíam, sacolas na mão para tentar conseguir comida para o jantar. Naquele período, os caminhoneiros chilenos boicotavam a entrega da comida que desaparecia dos mercados. Na minha viagem de volta, passei por Buenos Aires, lembrando, com carinho, daqueles dias vibrantes de muito aprendizado e alegria. Em setembro de 1973, um mês depois da minha viagem, o golpe do Chile acabou com os sonhos do socialismo 53


moreno de forma sangrenta. Os refugiados brasileiros que estavam lรก foram para a Europa. Era mais um sonho que terminava.

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Buenos Aires, um dia qualquer

Fui para Buenos Aires de trem, voltando de Santiago. A passagem pelo Chile tinha dado uma sacudida nos meus sonhos. Comecei a entender melhor as injustiças, as brigas políticas, as diferentes facções da esquerda, as lutas. Conheci Flaco no trem Santiago-Buenos Aires, uma figura terna com um olhar de mel. Caminhamos pela cidade cantando músicas dos Beatles a plenos pulmões. Quando ouço “Rocky Racoon” ou “Martha My Dear”, me vêm à cabeça aquelas caminhadas e conversas sem fim. Os passeios na noite de Buenos Aires se confundem, na minha cabeça, com caminhadas em Lisboa, com estrelas, chuvas de outono e teus olhos risonhos de criança. Saíamos caminhando e rindo pelas ruas de Buenos Aires. Fazia frio, a gente entrou num café e continuou aquela longa conversa iniciada de manhã. Contamos histórias um para o outro, sonhos, bobagens, aventuras. Lembro que falamos em percorrer a América Latina de carona. Ou de nos encontrar em Paris no ano seguinte. Depois entramos naquela linda Livraria O Ateneu, no cenário de um velho teatro. No cinema ao lado, passava “Yellow Submarine”. Terminamos o dia sonhando com as doces e coloridas aventuras dos Beatles. Fomos andando, devagar, até à casa da Marta, que nos recebeu com um vinho. Ficamos ouvindo Keith Jarrett em silêncio. Era hora de voltar para o Brasil. Retornei a Buenos Aires muitas vezes, mas nunca mais encontrei os olhos risonhos do Flaco.

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A descoberta de Paris, 1974

Cheguei em Paris, em abril de 74, com um pouco de dinheiro e alguns endereços. Trazia comigo o sonho dos meus pais e uma enorme curiosidade pela vida. Planejei essa viagem com a Estela em muitos encontros. Na sua casa, no Rio, abríamos o mapa da Europa e ficávamos viajando. Pedi dinheiro para meu avô e para a tia Liliza para a passagem. Comprei um bilhete de ida, que incluía paradas em Londres, Amsterdam, Copenhagen e Roma, em aberto (como era possível fazer naquela época), que me permitiria fazer essas viagens quando eu quisesse. Paguei só a primeira prestação. Chegando em Orly, peguei um táxi até o quarto da prima da Estela, que iria me receber por uns dias. A Estela, que já estava lá, foi minha primeira guia na cidade. Eu estava deslumbrada com o que via. Queria conhecer tudo, olhar tudo, desfrutar de tudo. Fui um dia até a casa da Caty e do Beto, que me acolheram de braços abertos. Morei na sala daquele estúdio por alguns dias. A casa deles, na rue St Jacques, em pleno Quartier Latin, era um lugar de encontro de brasileiros, franceses e latino-americanos. Lembro que, nos primeiros dias, à noite, quando o papo corria solto em francês, eu tinha que prestar muita atenção para entender alguma coisa. A sala daquele estúdio era uma surpresa: quando acordávamos, sempre tinha um novo agregado. Uma manhã, quando o entregador de gás chegou, oito pessoas dormiam ali. Ele olhou aquela confusão e saiu rindo. Eu andava sem parar pela cidade, deslumbrada com as cores da primavera chegando, com as caras das pessoas, as 56


muitas línguas que eu ouvia nos cafés, nos metrôs, nos mercados: inglês, espanhol, tcheco, romeno, chinês, árabe e muitas outras que eu não distinguia. Sentia-me solta no mundo. A vida se abria, enorme. Fiquei fascinada com o colorido das roupas africanas, os turbantes. As túnicas dos árabes, os cheiros da cidade, as cores. A lista de filmes em cartaz, que me possibilitava escolhas infinitas. A primavera chegava, devagar. As muitas livrarias, os parques, as árvores começando a renascer depois do inverno. Livros aos borbotões. Os clochards com suas garrafas de rouge e seus olhares risonhos ou perdidos nas brumas do álcool. Foi uma época viva, com alegrias em cada esquina, com as descobertas dos cafés, onde a gente podia ficar a tarde inteira lendo. Olhava embevecida para tudo. Me emocionava, como me emociono, até hoje, cada vez que atravessava as muitas pontes do Sena, olhando aquela paisagem que eu tinha visto tantas vezes no cinema. Descia devagar as escadas para caminhar à beira do rio, olhando as pessoas que passavam, as peniches que navegavam devagar. Como o dinheiro que eu tinha não era muito, assim que meu parco francês permitiu, comecei a cuidar de crianças, buscá-las na escola e levá-las aos parques. Lembro que, quando as mães me confiavam seus filhos, davam algumas instruções sobre o que as crianças poderiam comer e o que fazer. Eu entendia a metade. Uma delas me perguntou se eu sabia fazer des oeufs à la coque (ovos quentes). Eu não tinha a mínima ideia do que se tratava e dei ovos cozidos ao bebê. 57


Aos poucos, com as conversas, a leitura do Le Monde, o jornal da TV e os primeiros filmes, comecei a entender cada vez melhor a língua. Meu maior aprendizado foi a rua, com papos improvisados à beira do Sena, nos jardins e nos cafés. Eu fazia novos amigos todos os dias. Naquela época, os refugiados da ditadura brasileira eram mais de cinco mil em Paris. Uma vez por mês, a Mutualité fazia uma discussão sobre um tema específico, com convidados franceses e brasileiros. A sala, sempre lotada, era um ponto de encontro de pessoas, muitas dos quais recém-chegadas. As discussões eram intensas. A Caty me apresentou a Lígia Clark, que abria as portas de sua casa aos brasileiros aos sábados. Entre queijos e vinhos, trazidos por todos, e muita conversa, Lígia nos convidava para participar de uma de suas muitas experiências corporais. Outro lugar que eu frequentava era a Casa do Brasil, na Cidade Universitária, um lugar nostálgico onde se projetavam filmes ou se apresentavam peças de teatro, seguidas de discussões e de muito vinho. Depois de muito andar pela cidade, comecei a assistir a um seminário sobre História e Cinema do Marc Ferro aos sábados de manhã, na École des Hautes Études, na rue Tournon. A escolha de cursos na universidade era enorme. Frequentei seminários de cinema e de documentação. Participei da filmagem de alguns vídeos em Vincennes. Paris fazia seus efeitos em mim. Montes de informação, músicas, filmes em profusão, concertos de rock, de música chilena, de jazz, de blues. Museus, aulas, gentes, viagens. Uma aventura sem fim e eu, no meio de tudo, seguindo o fluxo, querendo ver, sentir estar com tudo e todos ao mesmo tempo 58


em noites que podiam acabar num café em St. Michel, na beira do Sena, ou numa chambre de bonne, gelada, ao som de Dylan. Meus horizontes se abriam todos os dias. Lembro de passar uma tarde lendo a biografia da Isadora Duncan num café de St.Germain, da visita ao Procope, o restaurante mais antigo de Paris, frequentado por Voltaire, Marat e Danton, entre outros. Naquela época, eu não tinha dinheiro para comer lá, mas entrei algumas vezes para sentir o ambiente, imaginando as muitas revoluções vividas ali. Quando nossas finanças se estabilizaram, alugamos, eu, a Estela e o Oscar, um pequeno apartamento na rue Thiboumery, no 15ème. Um dia, recebi a visita do Iuli, também recém-chegado em Paris. Ele, direto como sempre, me perguntou se eu tinha maconha. Fui apresentada ao Marcius, à Dina e ao Joãozinho no dia seguinte na casa do Gael. De repente, começamos a ir juntos à Cinemateca, ao Restaurante Universitário, à Vincennes. Fizemos passeios no velho carro do Carlinhos, nosso amigo português. Fomos a Fontainebleau, a Vallée de la Loire, a Versailles. Paris foi, aos poucos, se tornando a nossa casa, o nosso porto seguro.

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2, rue Desnouettes e o hóspede “clandestino” Depois da rue Thibouméry, aluguei uma chambre de bonne na rue Desnouettes, na Porte de Versailles, por meio de um anúncio da Aliança Francesa. Fomos morar lá, eu e o Marcius como “passageiro clandestino” (uma das regras para alugar aquele quarto era, ridiculamente, não permitir a presença de homens). A chambre de bonne ficava no oitavo andar. O elevador só ia até o sétimo, numa clara demonstração de que as empregadas domésticas, para as quais esse infame sistema tinha sido criado, eram proibidas de andar de elevador. Como a maioria dos franceses não empregava mais domésticas, esses quartos eram alugados a estudantes. Em geral, tinham somente uma pia. A toalete, no corredor, era coletiva. Tomávamos banhos de pia. De vez em quando, íamos à casa de amigos tomar uma chuveirada. Uma noite estávamos no quarto, eu, Marcius e Iuli, tomando vinho, conversando e ouvindo Bob Dylan quando a proprietária abriu a porta com sua chave, sem bater. Fez um escândalo porque eu estava com homens no quarto e me disse que eu deveria desocupá-lo em três dias. Passamos os próximos dias procurando um novo lugar para morar. Alugamos um quarto bem menor no Boulevard de la Bastille. Em troca, eu deveria buscar uma criança na escola e me ocupar dela todos os dias até às oito da noite. A menina, de quem eu estava encarregada de cuidar, era insuportável. Gritava o tempo todo, não obedecia, um inferno. O quarto era mínimo. Só tinha lugar para uma cama e a pia. 60


Saímos daquele quarto para um apartamento bem precário num “hotel” na rue Jeanne d’Arc, perto da Place d’Italie. A proprietária, Madame Tolédano, alugava quartos e pequenos apartamentos. O prédio era meio torto. Nosso apartamento era gelado e as paredes úmidas. Lembro que quando eu ficava em casa durante o dia no inverno tinha que me cobrir com um cobertor para esquentar. Ficamos naquele espaço alguns meses. Então, a Irina, uma brasileira que tínhamos conhecido em Vincennes, estava liberando um apartamento em Gentilly, uma banlieue ao sul de Paris, e nos avisou. O apartamento tinha dois quartos e, o máximo do luxo, um chuveiro “desmontável” na cozinha. A toalete era no corredor, usada apenas pelos inquilinos dos dois apartamentos do 6º andar. O proprietário, Monsieur Rabin, vinha todo o mês buscar o dinheiro do aluguel. Fiquei cinco anos naquele apartamento, onde tivemos muitos hóspedes. O Tuomo, nosso amigo finlandês, chegou num mês de julho. Nessa época, o Marcius estava colhendo uvas no sul da França. Eu tinha ficado naquele verão em Paris, trabalhando numa gráfica, monitorando o empacotamento de livros e revistas numa máquina, um trabalho aborrecidíssimo. Eu trabalhava oito horas em pé. Chegava em casa exausta e encontrava o Tuomo lépido e fagueiro me esperando para passear. Saí com ele durante uma semana. Depois, disse-lhe que iria viajar e pedi que fosse embora. A Dina e o Bernard, que estavam reformando o apartamento deles, ficaram uma época em Gentilly, até acabarem as obras. O Edu, quando chegou do Brasil, se hospedou lá 61


até conseguir um quarto na Cidade Universitária. Mas, isso é outra história. O Iuli vinha do sul da França, de quinze em quinze dias, para um seminário de doutorado e era nosso hóspede. Hospedamos também a Tania por um tempo. Deixei Gentilly em 81, quando fui para Moçambique. Mas essa viagem também é outra história.

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Primeira viagem a London, London

Fui com a Estela conhecer Londres no início de uma primavera nos anos 70. Nos instalamos num hostel e saímos para jantar num restaurante indiano. Lembro que, apesar de estar morta de fome, não consegui comer, porque o prato que pedimos era muito apimentado. Nos primeiros dias, tive problemas em entender o inglês e me fazer compreender, porque eu estava acostumada com o inglês norte-americano. Aos poucos, fui me habituando ao sotaque britânico. Ficamos deslumbradas com aquela cidade, tão diferente de Paris, com a gentileza das pessoas. Algumas saíam do seu caminho para nos mostrar o lugar que estávamos buscando. Caminhamos muito pelas ruas, pelos parques, nos museus. Fomos aos muitos mercados de rua. Encantei-me com a variedade de comidas, artesanatos, discos e livros em Portobello Road. Ia para os parques na companhia da minha câmera, de um caderninho, da Doris Lessing ou da Virginia Woolf. Encontrei muitas vezes na cidade, com surpresa, os locais relatados em um dos livros que estava lendo. Visitei muitas vezes a Tate Gallery, enchi meus olhos com as coleções de Turner, Paul Klee, os impressionistas e os clássicos. Fomos a muitos pubs. Saímos várias vezes sem pagar de um restaurante suíço em Picadilly Circus. Viajamos de trem a Oxford, visitamos a Universidade. Passamos um dia em Bath, no norte de Londres, conhecendo suas abadias, os banhos termais e os parques. Voltei muitas vezes àquela cidade encantadora.

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London, London, 1975

London, London so beautiful, so lovely. Andar perdida, devagar pelo frio, pela chuva. Procurando as coisas, tentando descobri-las. Segunda-feira. O sol me esquenta do frio. A vida corre no parque, na livraria. No violão do Emílio, da Estela, nas conversas no meio das almofadas. Nossas perguntas do ano passado. Uma exposição de fotografia no Hyde Park. O café do cineclube quase vazio. O pôr do sol no Tâmisa azul e dourado. Quinta feira. As pessoas se desentendem devagar. Lembro dos pores de sol em Ipanema, em Portillo com muita neve, em Salvador com muita cachaça, em Viña del Mar. Na Île St.Louis, indo para a casa da Caty, levando vinhos e chocolate. Naquele verão em Londres encontramos muita gente. Nos fins de tarde, eu gostava de me sentar à beira do Tâmisa, em frente do Westminster e olhar a cidade. Dás as costas para mim na nossa noite fria, depois do crepe com vinho no Asterix. Tudo isso poderia estar acontecendo na beira do Sena, mas é outono, o rio é o Tâmisa, a rua é King’s Road. Nossos passos ressoam nas folhas amarelas. Já é 29 de setembro e o ano corre. Na tv, alguém fala de História Contemporânea e de estúdios. De repente, a gente esquece que o outono chegou. Queria te descobrir no meio dos risos. O tempo voa em nossas mãos vadias. Nossa paz de risos no meio do olho. Lembro de uma cena de filme: Jean-Pierre Léaud caminhando com um livro de Balzac. St. James Park. O verde se espalha e o vento é frio. Essa estadia em Londres foi repleta de filmes depois que descobrimos o Electric Cinema, um cinema de arte ao norte 64


da cidade. Em alguns dias, chegávamos a ver três filmes, um depois do outro. Holland Park, solta no tempo-espaço. Xícaras de chá e calor. Alguém falou trinta anos esta noite. Os anos passam. Um dia, no Hyde Park, comecei a conversar com duas ladies inglesas. Elas me falaram de suas casas, de suas vidas, das viagens, dos filhos. Nos seus relatos, as datas eram marcadas por eventos da realeza. Diziam, por exemplo: meu primeiro filho nasceu no ano da coroação da Elisabeth, ou fui à África do Sul no ano do casamento do príncipe Charles com Diana. Passamos a tarde conversando no parque. Às cinco horas elas me convidaram para o five o’clock tea numa casa de chá do parque. Historinhas coladas. Não perturbe meu ensaio de ser gente grande. Te deixo nesse 29 de setembro. Na hora em que o relógio bate meia-noite, eu saio andando por essa noite de mil outonos. O filme terminou há algum tempo. Ouço o barulho de tamancos na calçada. O quarto aqueceu meu frio. Nossos passos na chuva na tarde. Meu choro desconsolado. O inverno passa correndo pelo outono. Pensei de novo no cinema de Bremen e nas cinematecas da vida. No Electric Cinema e nos filmes experimentais sem pé nem cabeça. Victoria Station. Gentes e cores. Abraços. Portobello Road. A solidão das pessoas. Os hippies descalços no meio dos bêbados. Um pub, aquele ar de festa. Teu olhar cheio de coisas não ditas. Talvez seja mais fácil dizer gosto da vida e de brincar de viver. No barulho da Euston Road, esperando Jan Garbarek, que vai tocar aquele pequeno sax, com sua cara de anjo drogado. 65


Frases sem fim. Gentes, gentes e teu olhar cheio de coisas não ditas. As pessoas tomando sol no Hyde Park na primavera. Se perder na Tate num sábado à tarde. Depois, sair andando à toa em Covent Garden.

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UNESCO

Quando cheguei em Paris, eu tinha o sonho de trabalhar numa organização internacional. Esses lugares eram, para mim míticos, porque me permitiriam muitas viagens, em que teria contato com pessoas do mundo todo. A Unesco era, para mim, um lugar especial, por sua missão educativa e cultural. Depois de várias entrevistas, comecei a fazer um estágio remunerado, que durou dois anos. Fui contratada para indexar documentos e era paga pela minha produtividade. Meu salário representava cerca de um décimo do que recebiam meus colegas, funcionários permanentes da organização, mas, para meus padrões, era muito bom. Além disso, eu esperava, com essa experiência, concorrer a um cargo definitivo naquela agência. Comecei a trabalhar em pleno inverno. Comprei duas calças de veludo e algumas blusas para me apresentar melhor. Mas meu único casaco não era muito “elegante”. Assim que eu entrava na sede da Unesco, tirava o capote e o virava do avesso, para que as pessoas não o vissem. Todos os dias às dezoito horas, eu saía da Unesco com Madame Forestier, minha chefe. Nessa época, o metrô tinha duas classes. No momento em que nos despedíamos, ela entrava no vagão da primeira classe, enquanto eu ia para a segunda. Em agosto de 1991, esse sistema de classes foi abolido Aprendi muito na Unesco. Tinha que me comunicar em três línguas: francês, inglês e espanhol, o que era um bom exercício. Além disso, gostei muito de analisar os documentos e indexá-los. Meu trabalho era feito diretamente no computador, o que era uma novidade para mim e, ao mesmo tempo, me fascinava. 67


Escrevi para o meu avô contando que estava trabalhando na Unesco e que meu trabalho era feito no computador. Ele, curioso como sempre, me fez mil perguntas. Depois, passou a dizer para todo o mundo que eu “era chefe dos computadores da Unesco”. Conheci muitas pessoas de várias nacionalidades. Tinha acesso a uma ótima livraria com documentos editados pela Unesco a preços subsidiados. Podia fazer compras em um pequeno mercado com produtos de vários países a preços especiais. Lembro das deliciosas geleias, das bolachas amanteigadas inglesas e dos pães suecos. Além disso, a programação cultural da agência era muito variada. Assisti a peças de teatro, espetáculos de balé e concertos. Quando eu almoçava com alguém num dos restaurantes da organização, tinha que escolher os pratos que cabiam no meu orçamento. Nos dois anos em que lá trabalhei, quase todos os dias, verificava as ofertas de emprego da Unesco. A maioria delas exigia uma experiência que eu não tinha. Apesar dos meus esforços, dos currículos enviados e do meu trabalho ter sido bem avaliado, não consegui um lugar definitivo na Unesco. Uma amiga chilena bibliotecária, que estava trabalhando em Moçambique nessa época, me pediu para lhe enviar um currículo, porque o governo moçambicano estava precisando de bibliotecários. Ofereceram-me um contrato de dois anos. Fui para lá em julho de 1981.

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Estocolmo, 1976 – distenso verão, Carmen

A primavera ainda era fria. Mochilas. Na estrada, cedo, rumo à Suécia, sem pressa. Recebi dois cheques do Brasil. Somos ricos por um mês. Depois, a mãe Suécia garante. Podemos nos permitir quinze dias vagabundos na estrada. O dia começa bem: uma carona Paris-Amsterdam. Chegamos à noite, famintos. Fomos para um hostel. No dia seguinte, sol e frio. Descobrimos a cidade-brinquedo, a cidade-sonho, os canais e as putas nas vitrines. Andamos pelos parques, vimos os museus de Van Gogh e de Rembrandt. No dia seguinte, cedo, fomos para a estrada. Um holandês ruivo, cinquentão, para o carro. Entramos. Depois de 30 quilômetros, ele nos deixa em pleno campo, no meio de moinhos de vento. Rio e olho a paisagem plana desse país de bonecas. Verde, castanheiras. Caminhamos um pouco para esquentar. Pegamos carona num Citroën de um velho magro com cara de intelectual. Ele fala inglês e faz as perguntas de praxe: o que fazem? De onde vem? Para onde vão? Ao meio-dia, para num albergue da estrada e nos oferece almoço, nos avisando que ficará ali. Indica um posto de gasolina, alguns metros adiante, onde podemos pedir carona. Não temos pressa, a primavera começa. A grama é tentadora. Nos enrolamos numa sesta gostosa, tendo as mochilas como travesseiro. Na próxima etapa, Bremen, outra cidade-boneca. Vamos à estação de trem. Impossível conseguir um albergue. Dormimos sentados no bar da estação em meio a vagabundos, depois de assistir a um filme pornô no cinema da gare. No café da manhã, um dos bêbados nos faz companhia tomando cerveja. 69


As estações de trem são tristes e alegres ao mesmo tempo. Esperas, malas, personagens estranhos. Às oito da manhã vamos para a estrada. Faz um frio de rachar. Eu, enrolada no sleeping bag, desisto da aventura. Morro de sono, quero conforto, choro. Te convenço a subir num trem. Relutas em aceitar. É muito caro, dizes. Retruquei dizendo que podemos tentar não pagar, como fizeram o Iuli e a Crica. Mas, cinco minutos depois de instalados no trem, chega o cobrador. Compramos bilhetes até a próxima cidade, mas conseguimos driblar o resto do trajeto e viajamos de graça até Copenhagen. Lá, em casa da Marisa e do Sérgio, calor, conforto, uma cama enorme e passeios de bicicleta. Te apaixonas perdidamente pela sereiazinha à beira-mar. Andamos à toa, risonhos. Temos tempo, o mundo gira, é enorme. As aventuras estão na estrada. Às vezes, minhas manias de menina de família contradizem com o meu ar aventureiro e despachado. Chegando em Estocolmo, repartimos um quarto com Iuli, em Freskati, na cidade universitária. O quarto é barato. Estamos habituados a viver em pequenos espaços. Saímos para ver a cidade e procurar trabalho. Vagabundeamos, telefonando para hotéis, restaurantes e hospitais. Quando a fome batia, comprávamos sorvete e Coca e nos deitávamos num parque. Consegui um emprego de camareira num hotel de bêbados para arrumar doze quartos por dia. No primeiro dia, cansada, subi com dificuldade as escadas de Merborgarplatsen, onde me esperavas à entrada do metrô com sorvete e Coca-Cola. Festejamos às 5 horas no parque. Lembro da chegada a Estocolmo em outro verão. Eram duas da manhã, junho, e o dia amanhecia à minha frente. A 70


cidade velha – Gamla Stan, azul e dourada. Eu chegava de Copenhagen com Fernando num velho caminhão barulhento. Fiquei absolutamente deslumbrada com aquela beleza, a cidade no meio da água e do verde, com torres ocres, vermelhas e douradas. Quando a rotina já se instalava em nossas vidas, nos encontrávamos na estação central para olhar o movimento, comer um cachorro-quente, comprar um disco, ouvir os músicos ambulantes e fazer compras para o jantar. Na cozinha comum do andar onde estávamos, Ulla, Gunther, Wagner e Maria. Iam surgindo histórias de trabalho, de refugiados, fofocas de corredor. Às 10 horas, íamos dormir porque o dia começava cedo para nós. Nos nossos muitos verões de trabalho em Estocolmo, conhecemos muitos refugiados brasileiros, chilenos, uruguaios e argentinos, que a social democracia sueca acolheu nos anos 70. Guerrilheiros, dirigentes de partidos clandestinos e seus companheiros ou companheiras. Figuras maravilhosas. Fomos entrando, pouco a pouco, nesse universo dos refugiados, feito de precariedade, com poucas perspectivas, de nostalgia, de festas e de saudades. Muitos, como Carmen, traziam, dentro de si, amarguras de uma vida interrompida, de uma luta sem fim, de filhos, de famílias que deixaram para trás. Outros, como Vagner e Maria, levavam a vida tranquilamente na sua rotina diária. As crianças, filhas desses guerrilheiros, trazidas da América Latina ou nascidas em Estocolmo, levavam uma vida cheia de amanhãs, de possibilidades de volta, sem entender direito o que estavam fazendo naquela realidade estranha. Aprenderam desde cedo que aquela vida que levavam era 71


provisória, que a verdadeira vida iria recomeçar na América Latina, no reencontro com a família, com uma cultura e com paisagens que não conheciam. Alguns não falavam do que tinha ficado, mas faziam planos de volta, quando a situação mudasse. Outros tratavam de refazer a vida com parceiros suecos, sempre com um fundo de nostalgia. Houve quem escrevesse memórias, como Gabeira. Alguns descobriram a meditação, ou uma seita qualquer. Outros pintavam. Para muitos refugiados brasileiros, como Carmem e Gabeira, a Suécia era o segundo país onde tinham buscado refúgio. Isso contribuía para aumentar a sensação de estranhamento. Alguns ex-líderes sindicais, como Pedro, não se enquadravam nas conversas intelectuais da maioria dos guerrilheiros. Tinham dificuldade de falar de outro assunto além dos planos para uma guerrilha permanente. Outros entraram na universidade, tentando terminar um curso que tinham abandonado na terrinha. Um casal que conhecemos de perto como Os Castores (talvez um codinome de guerrilha) levava a vida com leveza, entre música, artesanato, viagens de ácido e muito fumo. Tinham assumido uma filosofia hippie feita de sonhos. Para desanuviar o ambiente, todo o fim de semana, aconteciam festas memoráveis, onde se bebia e se dançava muito. No verão de 1979, estávamos em Estocolmo mais uma vez para o indefectível trabalho de verão na cozinha do Hospital Stureby, com um certo prazer em deixar Paris por um tempo. Marcius e Iuli por necessidade, eu para mudar de ambiente, acompanhar os amigos de sempre, desapertar o cinto, juntar dinheiro para mais uma viagem. 72


A cozinha do Stureby era um melting pot. Trabalhávamos com suecos, finlandeses, iugoslavos, turcos, nigerianos, marroquinos, entre outros. Naquele verão, repartimos um apartamento com Cuchito, um chileno terno, infantil e meio pirado. E com Hugo, também chileno, 40 anos e túnicas brancas. Cuchito a gente via duas, três vezes por semana. Sumia nas noites de sexta, sorridente e misterioso no seu coletinho bordado, nos seus cabelos enormes, depois de um charo conosco e algum papo em espanhol, of course. Voltava, às vezes, na terça ou na quarta, para mudar de roupa, buscar dinheiro e perguntar como a vida corria para nós. Cuchito e Hugo tinham vindo do Chile junto com a leva de refugiados considerados “perigosos” pelos outros países. Hugo era o permanente, aliás, o único. Inevitavelmente, 24 horas por dia, com algum desconto para o banco e o correio, lá estava ele na cozinha fazendo arroz integral e verduras cozidas, cereais com temperos orientais. Ou na sala, meditando com música oriental ao fundo e incenso. Ou ao telefone, em papos intermináveis e transcendentais com Luís. Hugo passa correndo, quase transparente na sua túnica e na sua meditação. Velocidade mil, abertura nenhuma, pouco foco. Máquina trêmula (o dia brinca de amanhecer em Estocolmo). Quantas vezes, entre um mate e outro, Carmen nos falou de Hugo em Paris? Seus projetos? Juntar dinheiro, ir para a Suíça estudar meditação numa universidade criada por um Mahavishnu qualquer. E tornar-se iogue, desses de canudo e tudo. Difícil relacionar-se em Estocolmo com uma cabeça dessas. Marcius, com sua eterna curiosidade pelas pessoas e pelo 73


mundo, ficava horas na cozinha, ouvindo, pedindo explicações sobre meditação e tentando entender o mundo de Hugo. Eu desistia antes de começar. Acho que Iuli nem pensava no assunto. Estava em outra sintonia, simplesmente. Impossível esquecer Carmen, figura forte, quebrada em mil pedaços, giros e vidas pelo mundo. Buenos Aires, Rio, São Paulo, Santiago, Estocolmo, Paris, sul da França e a morte estúpida em um acidente de carro. Carmen, que pensávamos que um dia iria se suicidar, abrindo as veias ou o gás, morrer assim, bêtement. Carmen, choro no metrô de Paris. Carmen, num café de Trocadéro, numa tarde qualquer de inverno, em frente a mim pedindo ajuda e força. Ajuda e força que eu não soube dar. No fundo, Carmen, eu tinha medo dos teus 37 anos de mulher sozinha – lúcida na solidão. Carmen – o chimarrão passando de mão em mão junto com um charo num dos nossos quartinhos de Paris, tão cheios de nós, tão cheios de sonhos. Nesse verão, levamos a vida aos pontapés com Hugo e com nós mesmos. Em toda a casa, pairava o cheiro da Carmen, a presença forte da Carmen nos panos de batik rosados, nas luminárias de pano, nas almofadas. Carmen, nessa época, vivia em Paris, repartia, por um tempo, um quartinho com Iuli, rue Remy Dumoncel. Mas sua presença seguia no apartamento de Estocolmo-Saltsjöbaden, inevitável. Carmen, histórias de mil revoluções abortadas, de mil amantes, de mil ácidos, de solidões. Carmen, buscando saídas na meditação, nos budas e em suas estátuas de manteiga. Buscando pessoas nas ruas, nos bares, levantando as saias enormes de índia latino-americana. Carmen, ao telefone, pedindo socorro. 74


Pedindo casa. Soltando risadas abertas e debochadas para o mundo. Carmen, rindo e chorando das revoluções latino-americanas. Das serras do Brasil, dos esconderijos das serras do Brasil. Carmen que muitas vezes deixei passar à côté, de medo talvez. Medo de tanta força e loucura. Ela passou um tempo naquele e em muitos outros apartamentos em Estocolmo. Tempo de crises, de carinhos e violências. Que levaram a mais uma das muitas separações (que quebram todos nós, todo dia um pouco). Assim, ela desembarcou em Paris. Na Gare du Nord a esperá-la, Ilton, Reinaldo, Dina, Iuli, Marcius e eu. Esperávamos alguma coisa daquela figura de saias enormes, ponchos, cachecóis e lenços que desceu do trem? Esperava ela alguma coisa de nós? Carmen apostou demais em Paris – quando já não encontrava saída para o seu mundo. E daí para a crise, que ela trazia, devagar, de Estocolmo, do Chile, de Buenos Aires, foi simples. Um entrar mais fundo cada dia. Às vezes, Carmen se punha silenciosa. De repente, lágrimas nos olhos, lembrava a filha que tinha deixado pequena ao sair correndo do Brasil. Filha que ela via um pouquinho, de vez em quando, nos últimos tempos de refúgio no Brasil. Que não viu crescer. Levamos mais aquele verão brigando com os horários dos transportes suecos, absurdamente infalíveis, com raiva daquela roupa branca do hospital, daquela língua nórdica rude, daquela gente loira que se bronzeava no parque enquanto corríamos de um metrô para o outro para não perder a correspondência. Para descontar aquela raiva toda, na volta do trabalho, assávamos no forno folhas daquelas plantinhas mágicas do Cuchito, fazíamos um imenso charo, virávamos, pela enésima vez, a 75


cassete do Pink Floyd ou da Billie, conforme o humor, e fazíamos planos... comprar um barco, trabalhar um ano na Suécia para juntar dinheiro (nunca nos perguntamos se aguentaríamos um ano sueco), virar o mundo pelo mar, que duraria enquanto durasse o dinheiro (Álvaro, mais tarde, materializou o sonho do barco por nós). Em jantares chez Iuli, ouvíamos embevecidos detalhes do avanço da construção. A aventura e o sonho embalavam nossos dias. Às vezes, também para descontar, nos fins de semana, pegávamos o barco para Åland. Quatro horas de mar, uma hora de terra naquela pequena ilha finlandesa. Uma coca e uma caminhada. Quatro horas de mar novamente. De volta a Estocolmo, àquela bela cidade velha Gamla Stan. Atordoados, mareados, tínhamos queimado mais um dia de verão. Ou então fazíamos planos para remar em Bredang. Ou para uma festa numa residência universitária qualquer (charos nos cantos, vinho, reggae e, pela janela, o entardecer interminavelmente vermelho-azulado da cidade nórdica.) Ou comprar um Liebfraumilch e fazer um estrogonofe de camarão. Experimentar a Pentax novinha em folha, dinheiro das primeiras semanas de trabalho. Aos domingos quando não estávamos trabalhando, a piscina e a inevitável sauna. Depois, flanar pelo centro. Rever o museu do Carl Larson com suas estátuas bar‑ rigudinhas. Estocolmo no final da tarde-noite. O trenzinho de Saltsjöbaden azul e verde. O belo campo de Gardet. Bergman. Os suecos chutando latas. 76


O verão sueco terminava, enfim. Tu e Iuli seguiriam para a colheita de uvas no sul da França. Eu iria para a Grécia, buscar outras emoções.

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Estocolmo, na cozinha do Stureby, um dia qualquer

Estação Gardet, seis da manhã. Jeans desbotados, camisetas, sono. Mais um dia de trabalho. Aventais brancos, tamancos, panelas imensas. Algumas ordens mal-humoradas. Outras, risonhas. O sorriso da Crica. A cara de desvario do Eduardo. O olhar maroto do Tuomo. O olhar de conquistador do Tanju. Jan, o estudante polonês, conta histórias da destruição de Varsóvia na Segunda Guerra. Tomo uma vodca com ele, à tardinha, ao som de Dollar Brand. Falamos de literatura e da Polônia. Fala-se sueco, português, inglês, finlandês, turco e espanhol na babilônica cozinha. A confusão é maior às 11 horas, quando enchemos os recipientes de comida para os doentes. Sal de mais, purê aguado. Compartilhamos nossas loucuras e rimos uns para os outros enchendo as vasilhas. Amanhã vamos à casa do Hussein, um dos estudantes turcos que trabalha conosco. Narguilé com músicas lânguidas e hard rock. Pinceladas de Artaud. Depois de três meses, a temporada no Stureby terminava. Eu tomava um trem para o Sul, até à Grécia.

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Agosto, 1976, de Estocolmo para o sul

Deixo Estocolmo. Tua figura ao longe me abana, na noite. Cheiro dos teus carinhos que ficaram. E da distância que se aproxima. De repente, já longe de tudo e ainda tão perto. O relógio marca quatro e vinte. Passa uma criança correndo. Mais uma manhã cinzenta. Queria te contar que tem comigo, no trem, um menino de circo húngaro que carrega trinta malas e fala alemão. Eu respondo no meu parco sueco. Traz um monte de cartas dos amigos do circo para as famílias. E um sorriso de olho torto. O trem entra na Alemanha do Leste. Mais tarde, desembarco em Praga. É tarde da noite e não encontro nenhum albergue. É difícil se comunicar. Pouquíssimas pessoas falam inglês ou francês. Um garoto que estava no trem se oferece para me alojar no quarto dele, numa casa de estudantes. Avisou que eu teria que acordar cedo para não ser descoberta. Levantei-me às seis e quando ia passando sorrateiramente pela portaria o porteiro me fez parar. Pediu meu passaporte e olhou demoradamente. Quando eu achava que seria presa, me liberou. Perguntei para a primeira pessoa que vi, uma senhora cheia de pacotes, onde era a estação de trem. Ela me levou até lá, onde deixei minha mochila. Fiquei andando por aquela linda cidade. Ao meio-dia entrei num restaurante simples. Não tinham cardápio em inglês. A única palavra que entendi foi ris. Pensei que na pior das hipóteses eu comeria arroz branco. Qual não foi minha surpresa quando me serviram um arroz doce. Depois do almoço, andei pela cidade velha, que ficava numa colina. Na hora do jantar, procurei um restaurante com 79


cardápio em inglês e me deliciei comendo um bife com batatas fritas, minha primeira refeição depois de muitos dias de lanches no trem. Peguei o trem noturno para Budapeste. Na manhã seguinte, entraram dois garotos húngaros na minha cabine. Começamos a conversar e me convidaram para ficar uns dias na casa deles. Desembarquei, agradecida por ser apresentada àquela cidade linda que mostrava, nos seus prédios, a pujança do Império Austro-Húngaro. Fiquei três dias lá, andando fascinada pelas ruas, caminhando à beira do Danúbio, descobrindo devagar a cidade velha e ouvindo violinos pelas ruas à noite.

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Palehora, Creta, distenso verão, 1976

Fui parar em Creta depois de um verão sueco de muito trabalho. Depois de conhecer Atenas, fui para o porto de Pireus e perguntei para onde ia o próximo barco. Para Creta, me disseram. No convés do navio, entrei no saco de dormir e, com a insouciance de la jeunesse, dormi a noite toda. Cheguei na madrugada a Heraklion, capital de Creta. O céu de verão era uma festa entre o vermelho e o amarelo. Na luz da ilha tudo era transparente. O mar, azul profundo. Sentei-me num café para esperar o amanhecer e peguei um ônibus para Paleohora, no nordeste da ilha. O calor era sufocante dentro do ônibus que subia a montanha devagar. A estrada estreita e seca deixava o mar aos poucos. Na estrada, burrinhos, muitas oliveiras e velhas de preto caminhando. Cabras, velhos olhando a vida na preguiça morna da tarde. No meu ouvido, grego, alemão, inglês e francês. Um velho enorme roncava no banco duro e encostou a cabeça no meu ombro. Mais uma curva grande. Outra cidadezinha. Um homem falador subiu e foi contando novidades para o motorista. Quando chegamos à Paleohora, encontrei um quarto numa pousada, larguei a mochila e fui dar uma volta. Nos muito cafés à beira-mar, gente lendo, conversando, jogando ou, simplesmente, olhando a tarde que passava devagar. Alguns turistas, velhos e crianças. Entrei no café do Giorgio, na ponta da praia. Pedi um ouzo. Entre as três ou quatro palavras gregas que eu sabia e algum inglês, eu conseguia conversar com as pessoas, a maioria muito simpática, simples, aberta. 81


Antes e depois da praia, eu passava lá para um café, um almoço ou um ouzo. Giorgio, o dono, me apresentou à sua mulher, Thalia. Fui conhecendo, aos poucos, os frequentadores. O velho Nikos, 95 anos, apoiado numa bengala, olho miúdo, passava lá todas as tardes. Ficava sentado num canto, conversando com os amigos ao redor de um jogo de tabuleiro. No primeiro dia, quando Giorgio me trouxe café e viu que eu olhava para o velho Nikos, disse, no seu inglês macarrônico: Menina, você sabe quantos anos ele tem? É velho como o mundo. Nikos ria sempre que eu dizia alguma coisa. Mas não conseguíamos conversar. Nossa conversa se resumia a alguns gestos, mímicas e à batida de sua bengala no chão. Às duas horas, infalivelmente, Kiriakos, falador e grande, ia entrando e me oferecia um café ou uma limonada. Se eu me aproximava do balcão para pagar, ele fazia não com um gesto. E ficava me fazendo perguntas. De onde eu vinha? O que fazia? Por que tinha ido para Paleohora? Quando ele chegava, a roda ia se formando. O velho Nikos, trazia sua cadeira de mansinho. Giorgio deixava o balcão com a madame. Chegavam Vassilis, Elias e Manolo. Ficavam horas no jogo, ou contando histórias sem fim, acompanhados por cafés e copos de ouzo. Numa dessas tardes conheci Carlo, filho do casal dono do café. Sete anos, magro no seu corpo pequeno. Olhos claros e blusa azul. Depois da aula, ele ajudava a servir. Fui me chegando a ele devagar, como a moça da fotografia e do caderninho. O riso olhando no olho era nossa fala. Quando eu lhe dava um beijo, a mãozinha pequena e fina tocava a minha e saía correndo. Às vezes, a gente se encontrava na rua, eu 82


passando, ele brincando em um canto qualquer. Me olhava fundo e ria. Me mostrava para Demétrio, espantado. Com eles, às vezes, Melissa com seu caminhãozinho vermelho. Outras vezes, nos encontrávamos na padaria em frente à pousada. Com sua cara lambuzada, ele me olhava sério por trás de um doce. A polícia passa, o entregador de café. O burrico de franja. O silêncio quente do dia. O banho de mar, Carlo, com a vizinha à tarde. O caminhão na calçada com Demetrius. No café, começa a agitação nas mesas da rua. Carlo corre para o café. Come batatas no canudo e soulaki. Mais tarde, a calma do outono, o vento cada vez mais forte, levando os barquinhos de papel. Demetrius vai para a escola em Chania, a maioria dos turistas vai embora, a cidade fica vazia. A noite chega com mil estrelas. Os pescadores voltam. A moto do caçador passa. Olha a bandeja, Carlo presta atenção. Olha o café para o moço. Olha o padre, que quer cerveja e vem contar histórias. Olha o sino, que chama para a missa. Outro domingo chegando de mansinho, Carlo. O pai em casa, a mãe no café, balas verdes embaixo da parreira. Melissa, que vem brincar. A bola que furou. A chuva chegando, forte. Corre para casa, Carlo, molhado. Lá vão, Demetrius e Melissa, com o caminhão para o café. É de manhã e a essa hora Carlo não serve as mesas. São poucas pessoas, todas do lado de dentro, por causa do vento que sopra forte. Melissa, casaco vermelho, tranças morenas e a ponta do vestido cinza levantada. As pernas gorduchas correm no vento, levando o caminhãozinho. 83


Alguma coisa a dizer, talvez no fundo seja isso – que é tarde e você passa. Não sei por que, Carlo, pequeno, riso nervoso. Não sei por que teu caminhãozinho azul. Eu queria te olhar passando agora. Na tua camisa azul, desbotada, no fim da tarde, no teu riso de menino, na tua inocência. Carlo, é bonito te ver, a gente não se entende, tua língua é outra, mas ao lado disso ficou um riso cúmplice, um riso ligeiro, fácil. Todos os dias, eu te via pequeno, andando na praia, brincando com o caminhãozinho à beira-mar. Olho vivo, curioso. Nos gostamos, mas não tínhamos uma língua para nos entender. Carlo caminhando na encosta do morro. Onde tua praia cheia de vento, onde tua gente no café, onde os jogos, a simplicidade das pessoas? Eu queria te dizer que é bonito te ver, no fim da tarde, brincando na areia. Enquanto o burrinho de franja passa. E as pessoas se arrumam para o jantar na tarde amena, à beira mar. Todos os dias, depois da praia, com um livro comprado na única livraria da aldeia, eu almoçava no café do Giorgio. Carlo vinha, invariavelmente, para perto de mim, e conversávamos sem falar, trocando olhares e risos. Gente simples, serena. Casas baixas, brancas. Num domingo, eu passei em frente da casa do Carlo, atrás do café. Giorgio me chamou para entrar. Carlo veio devagar e me deu uma bala. Fazia calor embaixo da parreira. Tomamos alguns banhos de mar juntos, fizemos castelos de areia. Me mostraste orgulhoso teu caminhão novo. Eu era a tua companheira grande, com quem não falavas. Não teríamos muito a nos dizer, acho. Às vezes tentavas me 84


contar uma história, que parava quando vias meu olhar perdido de quem não entende. Nessas horas, ficavas triste e saías correndo. Para me chamar mais tarde e me mostrar o burrinho de franja da casa do Sarkis, ou o incêndio no quintal da dona Zenia, que corria assustada, chorando e pedindo socorro. De repente, Carlo, figura magra, teu sorriso tímido e o mar verde de Paleohora. O sino batendo forte na tarde. O cais na chegada da pesca. O cinema embaixo das palmeiras. A tua blusa azul e o vento. A tua figura frágil e morena, sempre em movimento. No dia em que eu fui embora, me olhaste muito todo o tempo que fiquei no café esperando o ônibus. E ficaste perguntando coisas à Giorgio. Acho que não entendias por que eu estava indo embora. Para os teus 7 anos, eu tinha chegado para ficar, como Melissa, como Nikos, como toda a gente. Não voltei a Paleohora, Carlo. Não nos vimos mais. No fundo do meu olho ficaram o teu sorriso, as perguntas de Kiriakos, o cheiro forte do café, o azul sem fim do mar de Creta e a cara simples das pessoas. De Creta, ficou o cheiro de maresia, aquele azul profundo do mar, os burrinhos de franja, um gosto de ouzo, teus olhos risonhos, as montanhas áridas, as oliveiras. Ficou certo ar de distenso verão, de sol, de vento, de sorrisos e de histórias partilhadas.

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Paris, um dia qualquer

Inverno chegando. Desordem geral. Notícias do Brasil, cartas, pessoas. Algumas falam, mas não ouvem, cada um com seus problemas. A noite se faz escura e fria, com Dylan ao fundo. O vento gela as orelhas, ouço barulho de tamancos no corredor. Talvez tua figura apareça mais forte. E talvez eu esqueça. Juro que queria esquecer ao menos um dia, juro, menina. E deixar as coisas a descoberto. Talvez o ser criança, o te olhar devagar, direto, bonito, triste e cheio de sono. O te dizer, de repente, qualquer coisa ao telefone. Qualquer coisa que já sabes. Alguém diz não sei na minha frente, num português que parece tcheco. Eu penso no mundo e nas coisas da vida. Nesses mundos que não são nossos. Nessas gentes que nos procuram. Nessa vaga noite de arrepios, cheia de domingos e de Tom. Vontade de te contar a vida, os sorrisos, as estrelas, o mês de setembro, o menino de olho grande na esquina. Te contar da vontade de tomar vinho, dos olhos arregalados. Das gentes, dos livros, dos discos novos. Das velhas cartas. Dos planos de viagens para a Índia com a Aninha. Ou do gosto de Liebfraumilch na garganta. Tu, o negro dos dias, a folha pesada. Essa luz incrível de lua cheia, um barulho de domingo à noite, verão. Tu podias aparecer de repente. Não, é melhor que eu fique sozinha agora. Palavras mortas que eu engulo, gastas. Alguém assobia um velho ar de “Fascination”. Eu me senti sozinha numa quarta-feira de céu azul. De repente, me senti feliz e confusa. E não tinha ninguém para quem contar. 86


O que queres de mim? Te dei meu sorriso, minha tristeza. Meus olhos contra os teus que olham fundo, tentando talvez descobrir alguma coisa. NĂŁo descubro, mas adivinho teu segredo. Porque, no fundo, quero que seja igual ao meu.

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Paris, outro dia qualquer

Queria te encontrar todos os dias num café. Te ver devagar. Descobrir, mais uma vez, teu corpo com calma. Os passarinhos me acompanham no telhado de Gentilly. Parece que, amanhã, vai ter sol. Um ar de verão em Saint Michel. E aquela atmosfera meio hippie, gente sentada no chão, com mochilas ao lado. Dylan na manhã cinzenta. Bolinhos de bacalhau na tarde fria. Sheila vestida de vermelho e preto. Preciso de solidão. E de um café ou dois. Fechar a porta e esquecer o mundo por um tempo. Eu não sei mais do ficar junto com a tarde caindo. Detynha, deixa o teu cabelo cair e me olha grande enquanto eu me perco por aí. Queria te contar um filme de Godard, olhar a gente que passa no fim da tarde luminosa. Olhar o lustre kitsch, a luz no teu cabelo. As palavras se transformam, os desconhecidos passam. Um livro, um disco novo, uma luz quebrada, o fim do dia. Foi difícil até descobrir esse arrepio de repente, teu olhar de carinho. Scott Joplin, um verão fora de época, minhas meias, uma música, um livro.

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Escola de Samba em Paris

Edu, meu amigo do Rio, chegou em Paris no final dos anos 70. Ficou alguns dias lá em casa até encontrar um quarto na Cidade Universitária. Veio para trabalhar como professor de Português na Sorbonne por um ano. Chegou entusiasmadíssimo. Assim que se instalou, e começou a conhecer pessoas, foi convidado a fazer parte de uma escola de samba, a Unidos da Rive Gauche. A motivação principal da escola era tocar pela Anistia. Cada um conseguiu seu instrumento. Fizemos uma vaquinha para comprar o surdo. As “meninas” acompanhavam cantando. Algumas, como a Lícia, tocavam instrumentos de percussão. Os ensaios aconteciam na Casa do Brasil. Faziam parte da escola: Edu, Beto, Tania, Lícia, Dominique, Milton Baiano, Marcius, eu, Meca, Lalinha, Jader, Luis, Ricardo, Sandrinha, Gonzaga, entre outros. Sempre tinha gente nova chegando. O Jader trabalhava em Aulnay-sous-Bois, uma banlieue de esquerda ao norte de Paris, e conseguiu nossa primeira apresentação: tocar numa sala da Prefeitura da cidade. A partir desse convite, surgiram outros. Nossa escola começou a se tornar conhecida. Fomos, aos poucos, formando uma família barulhenta. Tudo era motivo para festa. Naquele maravilhoso ano da escola de samba, ninguém conseguiu estudar nem trabalhar direito. O ápice daquela aventura foi a apresentação na Place de la Contrescarpe, em Paris, no dia 14 de julho, festa nacional francesa. Eu não estava lá para ver, mas todos contam que a banda botou a moçada toda a rebolar na praça. 89


Soube também que a escola se apresentou em Colônia, na Alemanha, numa festa da Anistia. Tocaram também em Metz, no nordeste da França. Acho que aquela foi uma das últimas apresentações do grupo. Eu tinha ido trabalhar em Maputo e não vi o final dessa história. A anistia política fez muita gente voltar ao Brasil. Os que tinham ido para estudar ou mudar de ares também começaram a voltar. Alguns poucos ficaram. Foi o fim de um lindo sonho.

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A casa da Dominique em Paris

Localizado na rue de La Glacière, o apartamento da Dominique tornou-se, quando formamos a escola de samba, um ponto de encontro dos brasileiros. Era um apartamento grande, com um entra e sai sem fim. Ela é ótima cozinheira e fazia jantares maravilhosos. Juliette e Marguerite, suas filhas, que tinham, na época, 6 e 7 anos e eram muito dadas, foram “adotadas” por todo o mundo. Tiveram vários baby-sitters. O apartamento recebia hóspedes o tempo todo: recém-chegados, gente de passagem, ou alguém que tinha bebido muito e não conseguia voltar para casa depois de um jantar. Num final de mês, chegou uma conta de telefone enorme. Algumas pessoas sem escrúpulos que passaram por lá aproveitaram para fazer ligações para o Brasil, que, na época, eram caríssimas. Dominique teve que trancar o telefone com um cadeado. Num dos verões, ela viajou com as meninas para o sul da França por quinze dias. O apê ficou com o Carlos e o André, que estavam morando lá por um tempo. Elas chegaram de volta um dia à meia-noite. As meninas, tontas de sono. Quando a Dominique entrou, descobriu a casa lotada. Cinco pessoas dormiam na sala e todos os quartos estavam ocupados. Além disso, todas as roupas de cama e toalhas de banho estavam sujas. Finalmente, Dominique conseguiu desocupar uma cama e ela e as meninas dormiram juntas. No dia seguinte, chamou o André e perguntou para ele por que tinha deixado isso acontecer. Ele sabia que elas estavam por chegar naquele final de semana e as crianças precisavam do seu espaço. Ele respondeu, meio sem graça: Dominique, eu não sei dizer não, e as pessoas foram ficando sem dar nenhuma 91


satisfação. Desculpa! Eu estava desesperado com uma situação que não conseguia controlar. No dia seguinte, Dominique expulsou todo mundo. E ainda foi chamada de careta! Coisas de pessoas abusadas, que se aproveitavam do clima de paz e amor dos anos 70.

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Joaozinho e a viagem ao castelo

Joãozinho, um amigo de Brasília, foi para Paris estudar música. Ganhava dinheiro tocando flauta e violão no metrô. Era um amor de pessoa, mas meio desligado. Fomos, uma vez, tomar um ácido num velho castelo ao norte de Paris. Eu estava meio apreensiva, porque ele era uma figura doce, mas muito frágil. Chegamos lá num final de tarde de outono. O castelo era um squat. Alguns amigos hippies dele estavam morando lá há dois ou três meses. As instalações eram bem precárias. Ficamos num quarto no último andar e tomamos o ácido. Quando ele “bateu” no meu cérebro e iniciei a minha doce “viagem”, Joãozinho começou a delirar. Via homenzinhos entrando por baixo da porta e começou a ficar com medo. Eu tive que segurar a minha loucura e a dele. Peguei a sua mão e saímos para dar uma volta, para ver se ele se acalmava. Fazia frio e eu esperava que a caminhada na natureza e o ar fresco fossem tranquilizá-lo. Depois de algum tempo caminhando, ele começou a serenar. Conversamos muito, ele me contou algumas histórias complicadas da sua família e foi ficando mais calmo. Dei uma canseira nele, caminhando no frio. Quando voltamos para o castelo, ele pegou o violão e começou a tocar. Ficou tocando o mesmo trecho de uma música sem parar. Eu não aguentava mais, mas não queria melindrá-lo. Finalmente, para minha tranquilidade, por volta das duas da manhã, ele adormeceu. O pânico da situação acabou completamente com meu doce delírio. Ainda fiquei acordada por algum um tempo, 93


depois adormeci. Voltamos para Paris no dia seguinte. Essa foi a minha pior “viagem”. Depois dessa, eu nunca mais quis tomar outro ácido.

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Rodrigo, porteiro noturno em Paris

Conheci o Rodrigo através da Bety. Ele trabalhava, na época, como porteiro noturno em um pequeno hotel perto da Gare de l’Est. Era bom de papo, lia muito e adorava cinema. Tinha ido passar um tempo em Paris. Matriculou-se no curso de cinema de Vincennes só para ter a carteira de estudante e, dessa forma, poder pedir uma carta de residente. Por conta dos seus horários no hotel, era difícil vê-lo completamente desperto. Estava sempre indo ou voltando de suas noites de vigília. Nos seus fins de semana de folga, ia muitas vezes a Deauville, uma cidade ao norte de Paris, para jogar no cassino. Nos encontramos, numa tarde flanando em St. Michel e entramos num café. Ele me contou que estava ficando viciado no jogo e gastava todo o seu salário no cassino. Já tinha pedido dinheiro adiantado várias vezes no hotel e não sabia mais o que fazer. Disse-me que quando se dava conta já estava na frente das máquinas caça-níqueis. Uma noite, fui até o hotel onde ele trabalhava para bater um papo. Quando cheguei, a pessoa que estava lá me disse que o Rodrigo tinha sumido. Passei noutro dia, à tarde, para falar com o gerente no hotel. Queria saber se tinha o seu endereço. Ele me recebeu educadamente. Disse-me que a dívida que o Rodrigo tinha com o hotel era enorme. Ele foi pedindo cada vez mais dinheiro emprestado. Não conseguia pagar os empréstimos, que foram se acumulando. Seu salário só servia para pagar a dívida. Começou a chegar atrasado e a beber em serviço. Enfim, o gerente lhe deu um prazo para quitar a dívida. Ele disse que ia conseguir o dinheiro, mas nunca mais apareceu. 95


Como eu não tinha o seu endereço, não pude procurá-lo. Não sei se voltou ao Brasil ou se estava trabalhando em outro hotel. Talvez tenha se mudado para Deauville, para ficar mais perto do cassino e jogar todos os dias.

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Detynha, dezembro 1979

Alguma coisa morreu dentro de mim. Talvez o te ver de novo, enrolando o cabelo devagar ou nervosa. Teu convite para a praia, tuas botinhas novas e a vontade de dançar como Isadora. Mas alguma coisa bonita também ficou no fundo de tudo isso, tua foto de vestido branco, cabeça baixa. Bonita e faceira. Uma bolsa de palha comprada numa lojinha do Leblon naquele dia, depois do almoço no La Mole. Uma Coca no Amarelinho da Cinelândia. Teu bilhetinho pelo correio outro dia, coisas assim. Desencontros, aquele jantar estranho, um copo de vinho branco, apressado, e tua casa nova cheia de plantas. Mais uma Coca à beira-mar, tinhas que sair rápido para o trabalho. Quantas coisas mais, pedacinhos de vida, como o vasinho azul. O cheirinho do Pará. Aquelas botinhas que te mandei. Os sonhos de vida que deixaste. Queria te contar de Paris, de Moçambique, da Tanzânia, de Creta e dos burrinhos de franja. Queria ouvir teu riso, tua voz doce. Vai dançar, Detynha, rindo, enrolando o cabelo nas pontinhas. Ouço Brahms e lembro de ti, e nem sei se ouvias Brahms. Não importa. O distenso verão lembra o burrinho de franja, que talvez esteja numa parede do teu apartamento. As palavras se transformam, os desconhecidos passam. Um livro novo, uma lua quebrada. Fim do dia. Esse arrepio de repente, teu olhar carinhoso. Teus-nossos sonhos. O muro branco no pátio da João Manoel, o abacateiro. Os armários de madeira clara ao lado da janela. No canto da tua cama, papéis de bala, chocolates, folhas amassadas, copos. Tua enorme desordem interior de menina prodígio. Teu mutismo, tuas risadas. 97


Ouvias os Beatles. Eu não sabia como chegar perto de ti. Nos olhamos assustadas. Teu olhar estava meio perdido, num lugar onde eu não conseguia chegar. Essa enorme perda da nossa pequena cumplicidade. Nos teus escritos, descubro uma criança inquieta. Os horários familiares nos enclausuravam. As hipocrisias. Os sermões. Fomos juntas dar um salto para fora. O meu seguiu e está na viagem de volta. O teu não aguentou. Estados de espírito. Dias de um verão que não veio. Passou e deixou a sua marca no travesseiro. A janela aberta. Domingo outra vez. Chuva. E tu nos meus sonhos. Terna, distante e triste. No fundo de mim, tua morte vem nos sonhos, em pedaços de ti. E esse vazio das palavras, dos encontros, a vontade de continuar aqueles papos no Amarelinho. Teu escrever bonito. A casa vazia que eu queria te mostrar, as solidões por telefone, o filme que acabei de ver. O calor do chá, uma dor de cabeça. Distenso verão. Detynha, na aparente desordem da minha cabeça, a angústia das palavras trancadas na garganta. Nossos burrinhos de franja cresceram e perderam a graça. Fizeram barulhos, festas, vinhos, fumos e solidão. Encontraste talvez o caminho certo para essa loucura de vida. Chegando no Rio, em Porto Alegre, em Cachoeira, com o vazio da tua presença-ausência, ouvi da família os relatos da tua loucura. Um diálogo imaginário nasce entre nós. No Rio, visitei os lugares onde moraste. Sentei-me no Amarelinho te imaginando ao meu lado. Jantei no La Mole. Li velhas reportagens tuas. Abri os teus diários um a um, entre curiosa, encantada e com medo da tua loucura. Chorei velhas lágrimas, de certa forma para pensar em ti. Deixaste um vazio enorme. 98


Teu lado doce, meus pedaços que foram embora. Teus bilhetinhos coloridos. Fragilidades minhas, tuas, nossas. Coisas que se foram contigo. Lembra, Detynha, do bar do Dudu? Vamos tomar um vinho? Sabe, guria, achei a Liliza mais velha. Vamos à praia? Difícil diálogo esse. Difícil e inevitável, quando falo com os tios, com os primos, com meus irmãos. Procuro gentes, estou deslocada no tempo, no espaço e no milênio. Durmo e espero. Não existo, agora. Busco pedaços de ti, de mim, da nossa infância, da nossa adolescência, das cubas-libres, dos fusquinhas, dos sarros, dos porres, dos risos, das decepções, das festas. Os pedacinhos dos nossos reencontros. Horas, ouvindo Milton e Luiz Melodia, deixaram muito de ti. Tuas loucuras, tuas ternuras deixaram um arrepio na minha pele. Pela tua coragem. Pela tua força.

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Natal no Sul da França

Dina, eu, Bernard e Marcius fomos passar o Natal em Bagnolssur-Cèze, no sul da França, com o Iuli e a Pitou, sua mulher. Bernard nos levou na sua Deux Chevaux, um carro popular e muito econômico, que começou a ser fabricado depois da Segunda Guerra. O do Bernard tinha cerca de 40 anos, uma peça de museu. Não tinha calefação. As portas e janelas não fechavam direito. O frio era uma constante. A cada 100 km, tínhamos que procurar uma oficina para reparar algum problema do carro. Mas ele conseguiu fazer bravamente 700 km, apesar dos percalços. Aquela foi sua última viagem, para nossa tristeza. Apesar de tudo, tínhamos nos afeiçoado àquela charanga pequena e barulhenta com seu ar retrô. Passamos a noite de Natal na casa da Huguette, mãe da Pitou e do Antoine, seu marido. Eles eram pessoas muito religiosas e, antes da ceia, fizeram várias orações e cantos. Nós, como convidados, tínhamos que respeitar a cerimônia. Mas a Dina não aguentou, teve um ataque de riso e não conseguia parar. Foram momentos de muito constrangimento. A família tentando disfarçar o mal-estar e nós tentando fazer a Dina parar de rir. A sua risada nos contagiou e foi difícil manter um ar sério. Finalmente, Marcius conseguiu levar a Dina para a rua, depois de longos instantes de desconforto. As rezas continuaram. Ela voltou e pediu desculpas. A ceia foi servida, tentamos recomeçar a conversa normalmente, mas o ambiente ficou estranho. Um pouco mais tarde, naquela mesma noite, descobrimos, na estrada, uma cabine telefônica que permitia fazer 100


ligações para o exterior sem pagar. Nos anos 70, alguns telefones públicos franceses permitiam, por alguma falha no sistema, fazer essas chamadas. Naquela época, as ligações internacionais eram caríssimas. Em Paris, essa prática se tornou popular entre os estrangeiros. Quando um estudante hábil conseguia fazer uma chamada gratuita, rapidamente a nova se espalhava. Quando estávamos andando em Paris e víamos uma fila numa cabine, sabíamos que dali era possível ligar para o Brasil sem pagar. Nessa noite, no sul da França conseguimos falar com as nossas famílias daquela cabine perdida na campanha francesa. A Pitou, mulher do Iuli, era ceramista. O seu ateliê, em Pouzilhac, na estrada Nationale 20, era passagem para as praias do Mediterrâneo. Por essa razão, nas férias, era muito visitado. Lá, podíamos vê-la no torno, dando forma aos objetos e tirando-os do forno. Ela fazia lindas peças. Passamos os próximos dias andando pelas cidadezinhas das redondezas. Conhecemos Montpellier, Avignon, a bela cidade dos papas, Aix-en-Provence e os desfiladeiros do Ardèche. Foram dias agradáveis, ensolarados, regados a vinho, que acompanhavam os gostosos quitutes do Iuli.

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Ibiza, anos 80

Fomos para Ibiza num feriado de Páscoa, Edu, Marcius, eu, Fred e Evelyne. Chegamos lá, depois de quase um dia de viagem de carro, vindos de Paris. Ficamos hospedados na casa de um amigo do Edu, o Michel, que morava numa casa um pouco retirada do centro. Como lá não tinha lugar para todos, eu, o Március e o Edu dormimos num camping-car no quintal da casa. Perto dali, tinha uma praia de nudismo, onde íamos todos os dias. Nós nunca tínhamos frequentado uma praia dessas. Logo nos acostumamos com o ambiente. Lembro que era engraçado ver “os meninos” jogando bola pelados. Como era feriado, o centro da ilha de Ibiza estava cheio. Espanhóis, franceses, ingleses, norte-americanos, nórdicos, entre outros. A sangria, coquetel tipicamente espanhol, corria solta. Ibiza ainda guardava um pouco dos ares do sonho hippie dos anos 70. Muita gente com cara de perdido na vida, com um sorriso no rosto. Viviam fazendo artesanato, traficando drogas, ou faziam pequenos trabalhos como guias turísticos. A ilha ia se transformando num lugar de turismo de massa. Conseguimos ver parte daquele sonho. Mas os moradores já se queixavam que Ibiza estava ficando muito cara para eles com o turismo predatório que começava a surgir. Lembro das muitas sangrias, das conversas sem fim na madrugada, da cara de menininha ofendida da Evelyne toda vez que alguma coisa não ia como ela queria. Das caminhadas sem fim.

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Cairo, dezembro 1980

Fomos, eu, Lícia, Márcia, Beth, Fernando e Marçal passar os feriados do final do ano no Egito. Quando chegamos no Cairo, nos instalamos numa pousada. Ficamos alguns dias lá, andando e conhecendo as pirâmides, o Vale dos Reis e o Museu do Cairo. Andamos de barco pelo Nilo. Descemos de trem até Assouan, passando por Memphis e Luxor. Estávamos embevecidos com aquele mundo tão diferente do nosso, com o bazar, os homens fumando narguilés, as caras das pessoas, os templos, as tumbas, as muitas maravilhas daquele mundo milenar. No dia 30 de dezembro, estávamos de volta ao Cairo. Saindo de um templo, Marçal achou uma nota de 100 libras e nos convidou para passar a noite do 31 em um cabaré, para ver as danças das odaliscas. Foi um espetáculo fantástico, com aquelas mulheres gordas, lânguidas e sensuais dançando. Os homens colocavam dinheiro no peito delas. As ruas eram muito barulhentas, uma confusão de pessoas, carros buzinando em todas as direções, motoristas gritando, bicicletas. As túnicas brancas e os turbantes. Os véus das mulheres. O bazar, na sua confusão colorida, o cheiro das especiarias e dos narguilés. O ritual lento das compras. Um pouco de paz num dia barulhento. Uma casa de chá, doce de coco, cansaço. As mesquitas chamam para a reza das 3 horas. Queria te contar do dourado das pirâmides no céu azul, da tempestade de areia, do menino desdentado, do inglês caipira, dos ônibus na madrugada. Dos véus das mulheres. Da 103


nossa chegada de bicicleta para ver as maravilhas do Vale dos Reis, da minha falta de ar, descendo a escada de um dos túmulos do Vale. Da confusão desordenada do Museu do Cairo. Das viagens nos trens barulhentos. Da calma no passeio de barco pelo Nilo. Da majestade da esfinge de pedra com o nariz quebrado. Um minuto quieto no meu canto. Sol e o barulho d’água, vento morno. Ilha Elefantina, Nilo. Ao longe, os gritos do mercado. Ruínas. O barqueiro que nos leva até a ilha, um garoto magérrimo e lindo na sua túnica branca, nos convida para tomar chá na sua casa. Somos apresentados a seus pais, duas figuras serenas. O seu pai nos pergunta sobre a França, quer saber o que fazemos. A mãe nos serve calmamente chá de menta, com doces de mel. A casa é modesta. Nos sentamos no chão com as pernas cruzadas. A conversa é difícil, o inglês deles é parco. Depois da visita, saio caminhando sozinha pela ilha. De repente, começo a ser acompanhada por muitos meninos de olhos transparentes e sorrisos abertos. A meninada aumenta cada vez mais enquanto ando. Fico com um pouco de medo, mas me dou conta que eles querem só seguir caminhando comigo. Quando encontro, aliviada, Lícia, Márcia e Marçal no outro lado da ilha, os meninos nos pedem bakshish insistentemente. Já estamos acostumados com esse pedido. É uma constante em todos os passeios pelo Egito. Voltamos à tardinha com uma sensação da paz e do silêncio da Ilha Elefantina. 104


Bruges, um dia qualquer dos anos 80

Desembarcamos do trem numa manhã ensolarada, na “Veneza do norte”, uma cidade medieval, pequena e calma. Vínhamos, eu e Silvia, de Paris, levando conosco uma grande expectativa. Nos perdemos, encantadas, nas pontes, nos canais, nas ruas. Paramos no tempo, de certa forma, ouvindo aquela língua ao mesmo tempo sonora e rude. Entramos nos pequenos cafés para conversar bobagens e comer doces. Olhamos devagar a paisagem no meio das casas baixas e do verde ao longo dos canais. Algumas vezes, as pessoas se dirigiam a nós em flamengo. Na verdade, acho que nossos cabelos claros e o cantado do português brasileiro levavam as pessoas a nos confundir com belgas. Descobrirmos os encantos e as cores calmas dos quadros de Brueggel, Van Eick e Memling nos pequenos museus. Degustamos delicados chocolates. Subimos as escadas da torre da catedral para olhar lá de cima as curvas da cidade. Sentamo-nos à beira dos canais, apesar do frio outonal, para sentir o rumor silencioso dos barcos. Nos deliciamos com as batatas fritas com maionese, vendidas nos quiosques da praça do Grote Markt. As casas medievais, as cores calmas do outono e o tapete de folhas nas calçadas nos fizeram sonhar com os personagens dos séculos XV e XVI, retratados de forma delicada por Memling. Bruges é, sem dúvida, uma cidade para degustar devagar e voltar muitas vezes.

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Paris-Lisboa, on the road again

Sábado, nove da manhã, 3 de março. Uma neve fina que derrete antes de chegar ao chão. O trem acaba de sair. Nos meus olhos, os arredores de Paris que acorda. Comprei, ontem, o último Beauvoir. Achei que a Simone seria uma ótima companhia de viagem. Pensei que teria uma viagem tranquila. Doce ilusão. A cabine se enche de imigrantes portugueses que falam sem parar. É preciso fazer um grande esforço para desligar o ouvido. Na minha cabeça, lembro a tão sonhada viagem a Capetown, que não aconteceu. Os portugueses vão, em família, visitar a terrinha. Falam da casa que estão construindo com janelas tipo fenêtre (é isso mesmo!). Na hora do almoço, distribuem sanduíches e tomam café. E sonham com a família que deixaram lá, com as pessoas que vão encontrar. Com a cidade branca. Na chegada, malas e malas. Presentes para a família. Presentes para os amigos. Perfumes, roupas. Pedaços de Paris. Em Paris, falam de Lisboa. Em Lisboa, falam de Paris. E eles no meio do caminho. Procuro Manuel na estação. Será que ele esqueceu? Dou uma volta, tomo um café. Olho para todos os lados. Depois de uma hora de espera, pego um táxi e vou até a casa dele. Chegando lá, nada de Manuel. Saio, mais um café. Volto para a frente do prédio. Uma hora depois, ele chega, vindo do aeroporto, onde tinha ido me esperar! Quando perguntei para ele por que achava que eu chegaria de avião, me disse com sua lógica bem lusitana: a Vera veio de Paris de avião. Logo, achei que virias de avião. Durmo um pouco e saímos para descobrir Lisboa 106


devagar. A Baixa, os cafés, aquele ar de Fernando Pessoa. Andar de bonde. Entrar nas livrarias. Almoçar numa tasca. Comer sardinhas. Ver o pôr do sol do castelo. Tomar mais um vinho. Ir à Fundação Gulbenkian. Flanar à toa. Foram dias simpáticos, cheios de vinho do Porto e de um subir e descer de ladeiras.

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Chegada em Maputo, 1981

Naqueles dias, eu estava esperando que o governo de Moçam‑ bique me enviasse a passagem para Maputo. Continuava em Paris, mas me sentia no meio do Mediterrâneo. O apartamento de Gentilly não era mais meu e minha mala estava pronta. Mas o bilhete não chegava. Eu deixava, aos poucos, a cidade, os amigos, os cafés, os cinemas. Estava numa enorme expectativa para chegar a Moçambique. Finalmente, era hora de embarcar. Fui com Marcius e um amigo para o aeroporto. Quando chegamos a Roissy, lembro que estavam chamando meu nome no alto-falante. Quase perdi o voo. Chorei muito durante a viagem. Um choro de despedida dos anos de longas aventuras, das viagens, dos muitos amigos, dos amores, das coisas deixadas para trás. Fui, aos poucos, me acalmando e dormi. Chegando lá, não tinha ninguém me esperando. Eu não tinha visto de entrada no país e não sabia para onde ir. Depois de alguns telefonemas e da longa burocracia da entrada, alguém veio me buscar. Olhando através da janela do carro, eu via muita gente caminhando na estrada, bebês pendurados nas “capulanas” nas costas das mães. Muita pobreza e crianças correndo descalças na beira da estrada. Casebres de taipa ao longo do caminho. O motorista me deixou no Hotel Rovuma, no centro da cidade. Tomei um banho, dei uma olhada na paisagem da minha janela do 12º andar e caí no sono. Apresentei-me no dia seguinte no Cedimo, Centro Nacional de Documentação de Moçambique, onde eu iria trabalhar. Fui recebida pela diretora. Lembro que ela disse que eu não precisaria trabalhar na primeira semana. Pediu que eu 108


aproveitasse aqueles dias para me familiarizar com a cidade. Deu-me ingressos para o festival de cinema português, que estava começando naquele dia. Saí para caminhar e cheguei no mercado da cidade. Fiquei impressionada com a escassez de produtos: alguns molhos de couve, mangas verdes, uma barraca de peixes, arroz e farinha. Encantei-me com o colorido das roupas das mulheres descalças com suas caras sorridentes. Entrei num café. Depois de buscar uma mesa, me dei conta que eu era a única mulher e a única branca no ambiente. Pedi um chá (não tinha café) rapidamente, e saí em direção ao hotel. No caminho, descobri o Tunduru, um pequeno parque muito bonito. À noite, o motorista do Cedimo veio me buscar para o cinema. Quando ele me deixou na frente do prédio, me dei conta que havíamos percorrido dois quarteirões e que eu poderia, perfeitamente, ter ido caminhando. O filme daquele dia era do Manuel de Oliveira, um cineasta português que fazia filmes herméticos. Além disso, os personagens falavam num dialeto e eu não entendi nada. Alguns dias depois, encontrei a Sylvia, minha amiga chilena que me apresentou à Fernanda, uma bibliotecária moçambicana. Nos meus primeiros dias de trabalho, lembro que ficamos conversando. Eu fazia um milhão de perguntas para elas. Comecei a entrar, devagar, em contato com a realidade do país, os problemas de abastecimento e a pobreza. Mais tarde, fui convidada para organizar a biblioteca do Arquivo Histórico, com cerca de 30 mil volumes. Os livros dessa biblioteca eram organizados por ordem de chegada. Apenas três pessoas eram capazes de localizar um livro nas estantes. 109


Depois de algum tempo, consegui convencer a Diretora do Arquivo a reorganizar a biblioteca. Comecei pelos livros de História de Moçambique, os mais utilizados. Separei todos, coloquei-os numa mesa, e disse aos alunos que estavam me ajudando, que colocassem aqueles livros em ordem numérica numa estante. Saí para almoçar. Quando voltei, os livros estavam todos com a lombada para dentro. Tive vontade de rir. Segurei o riso e perguntei, com a cara mais séria que consegui fazer, por que eles tinham colocado os livros daquela forma. Um deles me disse: experimentamos colocar os livros de dois jeitos. Dessa forma, cabiam mais na estante. Eu e a Sylvia não tínhamos uma missão específica no Cedimo. Por essa razão, começamos a traduzir alguns capítulos de um manual de documentação da Unesco para o português. Depois de traduzido, esse manual nos serviu no curso de iniciação à documentação, que criamos para os moçambicanos que trabalhavam nas bibliotecas do país, e que fez muito sucesso. Lembro que vieram pessoas de todas as províncias. A sala ficou cheia. No início, lecionar para eles foi difícil. A realidade dos moçambicanos era outra. Nas primeiras aulas, tivemos que ensinar alguns deles a abrir as páginas dos livros, porque nunca tinham visto um. Apesar da dificuldade de alguns, todos se esforçaram para aprender. Mais tarde, criamos outro curso para os funcionários que trabalhavam em bibliotecas e tinham feito um curso superior. Apesar da dificuldade, fomos em frente. Na verdade, essa experiência me levou, voltando ao Brasil, a fazer um concurso 110


para professora na Universidade Federal de Santa Catarina, em FlorianĂłpolis. Mas, isso ĂŠ outra histĂłria.

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Os brasileiros em Moçambique

Lembro que um dia, quando eu ainda estava morando no hotel Rovuma, cruzei com o Saulo e a Andrea saindo do elevador. Estavam junto: a Eliane, a Djanira, o Paulo, seu companheiro, e o Aderbal, recém-chegados do Brasil. Todos, com exceção do Saulo, eram arquitetos. Fui almoçar com eles no restaurante do hotel e ficamos conversando um tempão. Mais tarde, chegaram a Maria Alice e a Marta, também arquitetas. Formamos um grupo que não se perdeu mais de vista. Nos encontrávamos em todas as refeições. A nossa diária era paga pelo governo moçambicano. Por causa disso, tínhamos que fazer as refeições no hotel durante a semana. O Rovuma era o hotel do único partido que existia naquele momento, a Frelimo (Frente de Liberação de Moçambique). Por causa disso, todos os cooperantes (estrangeiros que iam trabalhar em Moçambique) ficavam hospedados lá. A Frelimo se tornou um partido depois da independência, em 1974. Era o único, reconhecido internacionalmente, que tinha lutado pela independência do país. Dirigiu Moçambique como partido único até 1994. O hotel tinha quatro restaurantes. Cada pessoa, dependendo do seu “status”, almoçava em um determinado restaurante. O mais modesto era o dos moçambicanos que trabalhavam ali perto. Era uma sala grande, mas, como muita gente ia lá comer ao meio-dia, tinham sempre que enfrentar uma longa fila. Depois vinha o “nosso” restaurante. Nossa comida era um pouco melhor, mas bem simples. O terceiro, era para os funcionários das Nações Unidas. A comida lá era mais refinada do que a nossa. Minha amiga Vera, que veio para Maputo 112


com um contrato da Unesco, fazia as refeições lá. Um dia me convidou para almoçar com ela na sala dos funcionários internacionais. Quando me sentei, um garçom se aproximou e disse que eu não poderia comer ali porque não era funcionária internacional. Acho que a Vera também tentou comer com a gente, mas foi impedida por um dos garçons. O último restaurante ficava no décimo andar e era utilizado somente pelos funcionários da antiga Alemanha Oriental, que ainda existia naquela época. Coisas do socialismo crioulo. Os encontros diários com a turma dos brasileiros foram nos aproximando. Passamos a nos encontrar nos fins de semana, para tomar vinho, jantar em um dos poucos restaurantes da cidade, e nas muitas festas. A trilha sonora da maioria era sempre a mesma. Um brasileiro tinha gravado um pot-pourri que tocava em quase todas. A maioria dos brasileiros que estava no Rovuma ficou em Maputo por dois anos, o tempo do contrato com o governo. Alguns iam embora antes, outros renovavam o contrato. Nunca esqueci das nossas reclamações diárias da comida, dos transportes, da dificuldade de encontrar uma casa. Alguns, como o Mário, não aguentaram os problemas do dia a dia, a corrupção que acontecia entre funcionários de alto nível do governo, a enorme pobreza de muitos moçambicanos, as diferenças de classe, e foi embora. Sempre que nos encontramos, lembramos algumas de nossas aventuras, as viagens, os pores de sol, os dias de praia, os almoços e jantares. Apesar das dificuldades, foi uma época divertida.

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Ponta do Ouro, Moçambique, anos 80

Sexta feira, final de tarde. Na “carrinha” (palavra moçambicana para van), Fernando e Maria Alice, Saulo e Andrea, Vera, Sylvia, eu e Djanira, a caminho da Ponta do Ouro, com um motorista bêbado, que dirigia em ziguezague pela estrada poeirenta. Ansiosos, nos segurávamos como podíamos, pedindo que ele reduzisse a velocidade. Ele fingia que não ouvia. No caminho, “paragens” para verificar nossas “guias de marcha” (documento que nos permitia viajar pelo país). Cantávamos a plenos pulmões velhas músicas de carnaval, sambas, ares de Tom Jobim. Ponta do Ouro era um paraíso perdido ao sul de Moçam‑ bique, na fronteira com a África do Sul. Quilômetros e quilômetros de areia branca, mar azul e um hotel no meio do nada. Um enorme silêncio. Chegamos à noite, exaustos pela tensão da viagem com aquele doido. Depois de instalados nos bangalôs, fomos para a praia com algumas garrafas de Casal Garcia olhar a lua se refletindo nas ondas. Aos poucos, fomos voltando para os quartos. No sábado de manhã, o “mata-bicho” (café da manhã) foi copioso. Enquanto as pessoas chegavam, fomos repartindo bules de café, geleia e torradas. Foram cinco dias de risadas, de vinhos e de muitas histórias. Saulo, com seu histrionismo maravilhoso, nos matava de rir. Sylvia tinha um sorriso maior que o mundo. Vera, quieta, compartilhava a alegria daqueles momentos. Maria Alice e Fernando, em plena paixão, sumiam de repente com caras de cumplicidade. Andrea, na sua alegria de sempre, todos os dias depois do café da manhã, sumia nas ondas do mar. 114


Nos muitos almoços e jantares regados a vinho português, observamos um casal na mesa ao lado, ele, loiro com cara de nórdico e ela, uma negra lindíssima. E íamos criando histórias sobre os dois. No primeiro dia, ele era sueco e ela trabalhava num hotel no centro de Estocolmo. No dia seguinte, ele era um investigador inglês, ela moçambicana, que tinham se conhecido num hotel em Dares-Salaam. Dois dias depois, ela era adida na embaixada de Angola, em Paris, e ele, gerente do hotel onde ela estava. Na quarta-feira, ele era um francês em missão em Adis-Abeba e ela, ministra da cooperação internacional. Nunca soubemos quem eram eles, de onde vinham, o que faziam em Maputo, se eram casados ou se tinham se encontrado ali. Nas manhãs à beira-mar, fazíamos concursos de adivinhação de músicas por meio de palavras. Fernando fotografava os pássaros. Muitas caminhadas, muitos porres, muita música e sol depois, voltamos à Maputo numa tarde ensolarada, levando nossa alegria de volta.

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Ilha de Moçambique, anos 80

Estamos na famosa ilha. Viemos passar cinco dias para os festejos de inauguração da Sociedade de Amigos da Ilha, que fica ao norte de Moçambique, a oito quilômetros da costa. A ilha foi habitada por árabes no século XV. Vasco da Gama, numa de suas viagens à Índia, passou por ali. Os portugueses se instalaram e fizeram um forte. A ilha foi a capital de Moçambique até fins do século XIX. Os indianos também passaram por ali. Durante muito tempo, foi parada obrigatória dos navios que iam para a Índia. Tudo isso resultou numa mistura incrível de raças e de culturas. As mulheres são lindíssimas. Se vestem com “capulanas” coloridas, lenços lindamente amarrados na cabeça, tem um andar gingado. Têm o rosto às vezes pintado de branco (uma máscara para a pele). As danças são acompanhadas por tambores, batuques, gritos, bater de bundas, pés, mãos e cantos. A paisagem é feita de coqueiros, um mar transparente, casas de taipa, uma mesquita (a maioria da população é muçulmana), um templo hindu, igrejas católicas, um forte, casas portuguesas, casas árabes. No meio disso, o sorriso e a simpatia das pessoas. Aqui se fala macúa e swahili. Pouca gente fala português. Estamos alojados numa escola, dormindo em colchonetes, por cima de esteiras em frente ao mar, com o barulho das ondas. Na primeira noite, uma menina nos acordou aos gritos: percevejos, percevejos! Acendemos a luz e descobrimos que nossos colchonetes estavam infestados daqueles bichos. Alguns de nós tinham sido picados por eles. 116


Sacudimos tudo, abandonamos os colchonetes e fomos dormir na sacada, em sacos de dormir, depois de nos ver livres daqueles monstrinhos. No outro dia pela manhã, duas pessoas levaram os colchões e fizeram uma limpeza na peça aonde estávamos. Em seguida, trouxeram colchões novos, que nos permitiram dormir tranquilos nas próximas noites. No dia seguinte, ao meio-dia, depois de uma caminhada pela ilha, começamos a procurar um restaurante. Todos estavam cheios. Passamos por um botequim e perguntamos se tinham comida. O dono nos respondeu: tínhamos apenas uma galinha, mas ela fugiu... Na nossa busca por um restaurante, passamos por uma casa de indianos, onde se realizava uma festa. Entramos, sorrateiramente, e nos acomodamos num dos cantos da sala. Nas mesas, camarões, leitão assado, “caril”, “matapa” e outras delícias. Tínhamos começado a nos servir quando uma senhora nos disse: “esta é uma festa privada, por favor, se retirem.” Pedimos desculpas e saímos disfarçando. Encontramos, finalmente, um restaurante modesto e perguntamos se podíamos almoçar. O dono nos disse: não temos nada, só arroz, e “carapau”. Naquela época de muita penúria no país, o carapau era um dos únicos peixes que se podia encontrar nos restaurantes populares. Tivemos que nos contentar com aquele peixe, que tinha um gosto muito forte. Hoje, como todo dia, tem festas, danças, cantos e depois um baile. Quando chegamos (um bando que veio de Maputo em um avião fretado pela associação) fomos recebidos por mulheres com danças e cantos, num espetáculo tão lindo que me fez chorar. 117


O avião veio até Nampula, capital da província. Depois, pegamos um trem, que nos trouxe até o litoral. Atravessamos a ponte, que liga a ilha ao continente, em um ônibus. Viagem complicada, mas valeu cada instante. Hoje, chove. Estamos esperando que o tempo melhore para a festa que começa às seis. As badaladas do relógio anunciam que são quatro da tarde. É um relógio daqueles antigos, com som de sino. Tomamos banhos de balde com água de uma cisterna. Saulo conta histórias da infância, que nos matam de rir, entre uma cerveja e outra. As pessoas da ilha são incrivelmente gentis, nos levam para todo o lado. Passamos os dias caminhando pela ilha, buscando esculturas de sândalo e de ébano, tomando cerveja Laurentina nos bares, lembrando músicas, vendo as mulheres da ilha dançando, conversando com um dos poetas de lá, que passava as tardes bebendo e contando histórias. Em cada canto descobríamos mulheres catando mariscos, crianças brincando na areia e velhas calçadas. Os dias passaram rápidos e cheios de cores, entre as festas, a música, aquela luz incrível e o azul do mar. O ar era transparente. As noites, azuis. São sete horas da matina de uma sexta-feira. Tenho os olhos ainda cheios da ilha, de cores de jacarandás em flor, de mar transparente e na boca um gosto de quero mais. Da janela do trem, na volta, olhavas o pôr do sol ao longe, junto com os meus olhos. Estivemos parados mais de uma hora. Cantamos velhas músicas de carnaval, tomamos um café meio frio. Cheios de cansaço, esperamos que o maquinista descobrisse a avaria do trem. 118


O sol desceu, a noite se instalou devagar no horizonte. Perdi a cor dos teus olhos na janela. Depois te vi descer do trem falando italiano. E meus sonhos desceram contigo pelas escadas irregulares do trem em “Nampula City�.

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Mbabane, Suazilândia, anos 80

Chegamos a Mbabane, capital da Suazilândia, no final de uma tarde, vindos de Maputo, eu, Mariana, Marina, Cláudio e Alice. Fomos passear e fazer compras. Nessa época, em Moçam‑ bique, faltava tudo, desde as utilidades básicas do dia a dia, a roupas e frutas. Nós, estrangeiros que trabalhávamos lá, tínhamos acesso a uma loja especial, que vendia produtos a que os moçambicanos não tinham acesso. Mas os produtos eram caros e essa loja, muitas vezes, estava desfalcada. Sempre que possível, íamos a um dos países vizinhos comprar frutas, roupas, vinhos, entre outras coisas. A Suazilândia, desde 2018, é conhecida como o Reino de Swatini. É o menor país da África. Fica entre Moçambique e a África do Sul. Mbabane, a capital, é uma cidade pequena nas montanhas. Seu rei tinha, na época em que lá estivemos, 120 esposas. Todos os homens swazi podiam se casar com mais de uma mulher desde que tivessem dinheiro para o dote. Para as mulheres, era uma honra casar-se com o rei. As esposas eram escolhidas durante um festival. A rainha tinha que aprovar a nova consorte. Doce sol de inverno na montanha. As fantásticas cores ao entardecer. Um não acabar de horizontes verdes de mil tons. Cafés da manhã enormes. Grilos, mosquitos, hipopótamos, gansos, zebras, gazelas, pássaros amarelos e vermelhos. Patos selvagens, javalis, no meio da paisagem calma e do verde. Pretos de pés descalços, um inglês difícil de entender. Livros que pego e abandono um a um. Paz, cheiro de mato, cigarros. Nove da noite, um café abandonado, sono, cansaço. 120


Leituras, Cocas, cheiro de chácara. Indianos recém-chegados, Mercedes e roupas novas. Música o tempo todo. A sensação de estar um pouco fora da vida das pessoas, just passing by. Gente sorridente, amável e falante. Ficamos encantados com as cores da natureza, o lindo contraste entre as montanhas e o céu, com as crianças sorridentes e uniformizadas saindo das escolas, com os velhos, com suas saias de pele ou capulanas, com as cores e os cheiros dos mercados, com as mulheres e seus chapéus maravilhosos dos anos 50. Visitamos os parques naturais, onde vimos leões, antílopes, girafas, rinocerontes e outros animais, e alguns vilarejos nos arredores, com suas casas de sapé. Ficamos impressionados com os mercados que tinham um pouco de tudo, contrastando com os de Maputo. Quando terminamos nosso passeio e estávamos nos preparando para a volta, o carro da Mariana (tínhamos ido em dois automóveis) pifou. O seu conserto levaria uma semana. Cláudio, Marina e Alice seguiram viagem e eu fiquei fazendo companhia à Mariana. Passamos aquela semana caminhando pela cidade, pelos seus muitos parques e praças, conversando com as pessoas que falavam inglês, descobrindo os entornos das montanhas da cidade, a comida local, frequentando os cafés. Lembro de um velho com quem conversamos numa praça, vestido com uma saia de pele. Ele falou das esposas do rei e da poligamia dos homens como um fato natural. Voltamos para Maputo depois de uma semana de paz no meio das montanhas, desfrutando da gentileza das pessoas e da sua generosidade. 121


Em uma das reservas da Suazilândia

Um amigo, que trabalhava na Unesco, me convidou a ir com ele à Suazilândia. Ele iria para uma missão de três dias. Pedi que me deixasse, na ida, num hotel que ficava dentro de uma das reservas. Eu sabia que nessa reserva a gente podia caminhar pela savana, desde que acompanhada por um guia. Fui acomodada numa cabana simples e confortável. A única desvantagem é que o quarto não tinha banheiro. Na primeira noite, quando saí para ir à toalete, que ficava a alguns passos da cabana, encontrei um javali no caminho. Fiquei com medo de continuar. Voltei para o quarto e esperei que o bicho saísse. No dia seguinte, fui caminhar com um dos guias. No caminho, encontramos gazelas, corças, elefantes e zebras acostumados a ver as pessoas caminhando pelo parque. Foi uma aventura fantástica caminhar entre os bichos comendo, deitados ou andando pela savana. No início dos passeios eu tinha um pouco de medo, mas logo vi que os animais eram pacíficos. O guia carregava uma espingarda para amedrontá-los. A reserva tinha muitos cartazes pedindo para preservar a natureza e os animais. Fiquei surpresa ao ver que, no almoço e no jantar, comíamos churrascos daqueles bichos, o que contrariava, a meu ver, o espírito do parque. Foram dias de calma, de muitas caminhadas, da descoberta daqueles animais andando livres no meio da natureza.

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Maputo,1983, festa de final do curso

Cadeiras alinhadas na parede, “chamussas”, bolinhos de bacalhau, cocas, vinho, cerveja, “matapa”, feijoada, “caril”. Música estridente, luz fluorescente. Sábado, 4 da tarde. As pessoas entram pouco a pouco, tímidas, algumas com crianças. Discursos, elogios, flores para a professora. Depois, ao ataque. Pratos, barulho de copos, risos. A descontração ainda demora. É preciso que o vinho desça nas gargantas masculinas (por uma estranha convenção, as mulheres do curso não bebem). Nem a mulher do ministro, acostumada a coquetéis. Timidamente, uns e outros começam a dançar. Pacheleque chega cheio de palavras, dizendo que vai mostrar os seus quinze estilos. Julieta, de trancinhas e vestido claro, acompanha o rebolado. A maioria permanece nas cadeiras, com um prato na mão. Toca uma “marrabenta.” Mate pula para o salão e estiliza as danças da sua terra com vontade. O pior aluno é o melhor dançarino. Alguns insistem para a professora dançar, por pura delicadeza. Estariam, seguramente, mais à vontade se ela não estivesse lá. A festa segue até acabar o vinho e a cerveja. Os alunos saem rindo, satisfeitos. A professora segue seu caminho em direção à casa...

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Uma festa de casamento. Maputo, outubro, 1983

O verão anunciava muito sol. A cidade estava calma naquele sábado do casamento da Fernanda, com o Raul. Ambos eram amigos e colegas do Cedimo onde eu trabalhava. A festa aconteceu numa sala reservada do restaurante Safari. Presentes, as famílias, alguns ministros, amigos e colegas do trabalho. Fotos dos melhores fotógrafos da cidade. O almoço foi acompanhado por cerveja, vinho sul-africano e refrigerantes. No cardápio “caril”, feijoada, sarapatel, “matapa”, rissoles e outros quitutes deliciosos servidos por garçons solícitos. Uma grande mesa no centro foi ocupada pelos noivos, seus pais e irmãos. Depois do almoço Fernanda e Raul foram de mesa em mesa conversar com os convidados enquanto as crianças corriam pelo salão se esbarrando e pegando um doce pelo caminho. De vez em quando acontecia uma briga e uma delas saía chorando. Todos com suas melhores roupas, vestidos longos, vestidos curtos, sáris, trajes indianos, trajes tradicionais moçambicanos. Os ministros e suas mulheres ficaram numa mesa à parte. Alguns convidados paravam para cumprimentá-los. A música saia perfeita de um aparelho sofisticado trazido de Londres. O ambiente era de pura alegria. A dança inaugural da festa foi um tango. Quando o baile começou, a grande maioria dos convidados tirou os sapatos e foi para a pista, naquela alegria típica dos moçambicanos, gingando, rindo e rebolando. Como acontece em todas as festas moçambicanas, de tempos em tempos um par entrava para o centro da roda e 124


fazia evoluções enquanto as pessoas ao redor batiam palmas. Depois entrava outro inventando novos passos numa sucessão de ritmos e alegria. Marrabentas, sambas, rock, reggae e música latina iam se sucedendo. No início da noite, as crianças começaram a chorar, mostrando cansaço. Alguns adultos estavam bêbados. A festa terminava. Hora de ir para casa depois daquela tarde cheia de risos.

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Maputo, 1983

Do lado de cá, em frente ao Oceano Índico, o inverno se instala. Olho para a minha mesa em desordem, artigos para ler, listas, programas, planos. Tenho vontade de jogar tudo para o alto, pegar minha bicicleta amarela e sair pedalando pela avenida beira-mar, olhando essa estranha luz hibernal, tentando sentir um cheiro de mar inexistente. Mas alguma coisa me prende a esta cadeira. Minha briga é entre a cabeça e o coração, entre a ordem e o anarquismo, entre o sonho e a realidade. Na rua em frente, gente esfarrapada, mal agasalhada, malnutrida, descalça, passa carregando baldes d’água. Na cabeça, cestos de compras para o patrão, crianças amarradas às costas, lindas e sérias Em alguns, a convicção de que o socialismo vai trazer um futuro bem nutrido. Em outros, a indiferença. Apesar disso, muito riso, um falar alto de línguas que não compreendo: ronga, xangana, swahili e outras. Árvores, terra na calçada, buracos na rua, poeira, cheiro de eucalipto, carros caindo aos pedaços, ônibus superlotados, bicicletas. O carro do presidente passa, branco, impecável, com sirenes, batedores, bandeirinhas, uma autêntica parafernália. Um pouco de capim no poste. Luzes, cores. Crianças gingando nos uniformes da escola. Postais para todo mundo (é preciso contar tudo antes que eu esqueça). A memória nos trai e perdemos muitas coisas pelo caminho. Ontem, um comício na praça, o presidente falou. Sua fala é forte e mostra um enorme carisma. Seu discurso é longo, 126


pausado por danças e por músicas. Muitas cores na roupa das pessoas, nas faixas, no céu azulão. Uma autêntica festa. Tambores, danças, mulheres enroladas em “capulanas”. Depois do comício, entramos no Scala, ao lado da praça. Camisas coloridas, feias, rasgadas. Magrezas. Pés descalços. Um mar de sol por trás das árvores. Sinto marcas de racismo nas esquinas, nos hotéis, nas filas, nas crianças, que nascem servis e me chamam de senhora. É difícil ser branco neste país. Ou fácil demais. Um velho maluco passa aos gritos. Tocos de cigarro, mosquitos, ventiladores. Um homem de calças cor de rosa. Às duas, o bar esvazia. As crianças famintas entram para pegar os restos de sanduíche, tomar o gole que ficou na garrafa ou no copo, pegar os saquinhos de açúcar. Saudades azuis. Meninos de Málaga, belas esculturas de sândalo ou de ébano, colares, cestos, “capulanas”. A arte moçambicana mostra tristeza no olhar. Verão, descendo a Patrice Lumbumba todos os dias, para trabalhar no Cedimo. No meu segundo ano em Maputo, recebi um convite para trabalhar no Arquivo Histórico, dando aulas de Introdução à Documentação. Lembro das carinhas empolgadas dos alunos, loucos para aprender. Uma tarde, estávamos iniciando a aula quando ouvimos o barulho de um míssil. Ficamos, todos, bastante assustados. Uma das alunas, que trabalhava no jornal da cidade, telefonou para lá para saber o que tinha acontecido. O jornalista que atendeu disse que não podia dar a notícia porque as autoridades não tinham liberado nenhuma informação. Tive que continuar a dar aula no meio daquela 127


tensão. Às cinco da tarde, finalmente, saiu a notícia oficial: um avião sul-africano havia invadido o espaço aéreo moçambicano sem avisar e tinha sido abatido. Eu fiquei imaginando uma guerra iminente. Os alunos reagiram com tranquilidade dizendo: é só mais um avião que tenta entrar no nosso espaço. De repente, pedaços de vida no caderninho verde. As memórias se perdem em linhas. Um domingo lindo com Manuel, Alice, Marina, Coca-Cola, bananas, tangerinas e a luz bonita do mar de inverno de um azul silencioso se espalhando ao longe. Holandeses muito brancos, corridas com Alice, que tem medo de caranguejos. É verão, talvez. Encontro uma pasta amarela com velhos escritos de outros tempos. Muito tempo passou, muitos verões, muitas histórias. A lua prateada nascendo no Oceano Índico em Maputo numa noite de verão. Eu, Nilson e Manuel sentados na areia, em silêncio. Outro dia qualquer, Ponta Malongane. Tinha lua? Não sei. Peguei um livro de Ferreira Gullar. Lembrei de ti, do Marcius, do Iuli, da Lícia e da Dina, com um montão de saudades. Jantei com um velho poeta moçambicano, Sam Koukhele, que me encheu o coração de histórias bonitas. De repente, no final do jantar ele me pediu em casamento. Just like that. Com a simplicidade dos africanos, com seu casaco preto de colegial e sua cara cor de mel, seu sorriso, seu olho doce. É pena, estou a quilômetros de sua inocência. Inverno, Suazilândia, Wimpy. Marina, Alice, Cláudio, Mariana. Estou no sol de inverno da montanha e sonho com o verão de Paris. Te busco nas esquinas, num copo de vinho, na caixa do correio, na música do Chick Corea, do Rão Kiao. Te busco nas estrelas e no vento. 128


Outro dia. Nilson corre na sua casa para cima e para baixo. Traz café. Depois, cuba-libre com laranja. Acendemos mais um cigarro com cheiro de café e gosto de Casal Garcia. Amanhã ou depois de amanhã, no meio das almofadas coloridas, olhas no fundo do meu olho. Procuras, talvez, uma resposta para a vida que eu também não tenho. Tua mão encontrou a minha no sofá, enquanto ouvíamos Tamba Trio, com rum e gelo. Lá fora estava escuro e chovia. Minha bicicleta ficou na porta. Alguém falou de estrelas. Sonhamos algo e procuramos um bom filme para ver. Sol na rua. Paz na paisagem. Até quando, Maputo? Dollar Brand. Barulho de latas d’água. Minha mão segura a caneta com força. Uma hora da tarde no café Scala. Barulho, vozes, confusão. Gente que passa faminta vendo se sobrou algum pedaço de bolo nas mesas. Não tem mais sorvete. As torradas acabaram. Olho para as pessoas com ar triste e faminto. Barulho, vento de chuva, gulodices. Má vontade dos garçons. Camisas coloridas, feias, rasgadas, magrezas. Pessoas descalças. Vai chover. Puxo meu casaco. Um ar de sol por trás das árvores. Passarinhos na manhã. Chegas devagarinho para confidências e queijo. Noite fria, Porto. Sábado, fim de tarde, Art Pepper e uma festa no ar. Um pôr de sol rosado, olhos ardidos. Vinhos e danças no ar. Fim de verão, folhas caindo. Ouvir Roberto Carlos na sessão das cinco. Ver “Assalto ao Trem Pagador”. Encontrar Mônica na fila do cinema. A música para. É o primeiro toque antes das luzes apagarem. Daqui a pouco, luzes vermelhas e verdes, gritos da moçadinha que 129


vem ao cinema para se divertir, para esquecer da fome, do trabalho chato, da longa caminhada até em casa. No cinema, algumas pessoas sentam-se no meio de duas ou três que não sabem ler e narram o filme. Isso cria uma grande confusão de vozes na sala. Segunda-feira. Enfrentar o edifício laranja do Cedimo, ouvir os bons dias sorridentes, simpáticos ou hipócritas. As revistas, as transferências de fundos, minha angústia diária que, às vezes, se aprofunda, este desejo de ir embora todas as manhãs. Sol e mar. Gismonti. Lembrei de Creta. Outros mares, outros sóis, outros dias. Aqui-agora, minha cabeça sonhadora. Corridas na praia com Alice, desenhos na areia. Música à noite. Depois, ver a lua nascendo no mar e olhar as estrelas. O mar mudando de cor a cada segundo. Uma paz não sonhada. Eu viro mais para dentro de mim mesma. Passar no mercado. Levar os alunos à biblioteca. Ver esculturas de sândalo. Tomar mais uma vez Casal Garcia branco, gelado, em meio a slides de Pemba e Namaacha. A vida segue com domingos de praia (embora as pessoas digam que é inverno), bons amigos, alguns namoradinhos de passagem. Sentir o tempo passar, um pouco através dos dedos. Brincar com o nada. Segurar o possível. Largar o resto. Sonhar. Trocar histórias do bazar com Leontina. Madrugar para conseguir tomates, esse é o dia a dia de Maputo. Mais tarde, encontrar Nilson, Marina e Alice. E se deixar levar pelo prazer dos papos, do vento, do sol. A paisagem bucólica e tranquilizante do verde, da água e do silêncio. A cascata. Apertar o dedo, andar de bicicleta, dormir pouco, sair num céu estrelado cheio de vento. 130


Às vezes, me dá uma vontade de conversar contigo, de te contar devagar desse socialismo crioulo, dos risos na rua, das cores das roupas das pessoas, da confusão de línguas. Ronga, changana, português de Portugal, português de Moçambique, português brasileiro, sueco, dinamarquês, holandês, russo, búlgaro, francês... Nos fins de semana, a gente dançava muito. Um dos brasileiros servia de disc jockey, um disc jockey não muito criativo. Depois da terceira ou quarta festa, já sabíamos de cor a ordem das músicas que seriam tocadas. “Lança Perfume” cantada pela Rita Lee, Djavan, Caetano, Gil, Bob Marley, Jimmy Cliff. É lindo ver os moçambicanos dançando, gingando. Às vezes, um par vai para o centro fazendo evoluções, enquanto os outros formam uma roda e ficam batendo palmas. Muito sol, céu estrelado, cheiro de eucalipto nas ruas. A maioria dos moçambicanos se alimenta de chá, farinha de milho e arroz. Numa noite na casa do Saulo e da Andrea, depois de um jantar com muito vinho, risos e a voz do Milton ao fundo, Sylvia nos disse que era hora de voltar para casa. Entrou no carro e já estava chegando em casa quando se deu conta que tinha deixado a Javiera, sua filha, dormindo numas almofadas da sala. Meu apartamento, onde a música escorria pelos cantos. Manuel, Marina, Nilson, Alice, Cláudio, Bety, Andrea, Saulo, Aderbal. Luís, Marta, Maria Alice e Fernando, Euler e Berruer. Pores de sol. Nascer da lua no mar. Cores. Casa do Nilson. Cozinha da Marina com Porto, em noites de muitos risos. 131


Saí de Moçambique em janeiro de 1984. Aqueles dois anos me abriram para outro mundo, outra história, outra cultura, outra realidade, outra ideia da vida. Muita pobreza, desprendimento, companheirismo e solidariedade.

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Dar-es Salaam – Arusha, Tanzânia, janeiro 1984

Sairemos daqui a pouco, eu e Marina, de Dar-es-Salaam para Lake Maniara e Ngorongoro. Tudo parece uma grande máfia: companhias turísticas, excursões, carros para alugar. Difícil entender e sair do esquema oficial de turismo. Dá a impressão de que nos enganam em cada esquina, como no Egito. A viagem Dar-Es-Salaam – Arusha durou dezoito horas. Saímos às 7 horas da noite, de ônibus. Cadeiras duras, espaço mínimo para sentar-se. Crianças chorando, rádios, pessoas no corredor. O cansaço de duas noites maldormidas (mosquitos, pulgas) mais o calor, aumentavam um pouco o desconforto. A noite tem uma luz lindíssima, como aquelas noites azuis do verão sueco, talvez, com um pouco mais de tinta no pote do céu. As cigarras dão aquele toque ‘’distenso verão” dos trópicos. As aldeias por onde passamos mostram uma superatividade. Mercadinhos de frutas em pequenas mesas iluminadas por lanterninhas. Som de batuques, um vai e vem sem fim de gentes. Lá em cima, a lua gorda ilumina o céu. O ônibus para de hora em hora: banheiro e outras paradas inexplicáveis. A terceira ou quarta foi incrível: um mercado – sete ou oito mesinhas na beira da estrada, todas com seus lampiões vendiam galinha assada na brasa, carne assada no espeto, ananás em fatias, mangas, bolinhos fritos. Uma linda confusão de gritos, moedas, lama, braços passando de um lado para o outro. Eu reviso mentalmente mil outras viagens. A mais viva (talvez porque é a mais próxima culturalmente) é a do Egito. 133


Marina por sua vez conta histórias do Lesotho, Zimbabwe, Zâmbia, Portugal. Cada viagem é uma volta por mundos já visitados, uma renovação e um aumentar sem fim de vida. Mas estávamos na terceira parada, ou paragem, como se diz em Moçambique. Dalí para a frente mais nenhuma parada até a meia noite. O ônibus começa a falhar e para. Pessoas descem e sobem, falam, discutem. Nós, sem entender nada, levamos certo tempo para perguntar. O ônibus quebrou. Foram buscar a peça deus sabe onde. Voltarão ninguém sabe quando. O melhor é tentar dormir na confusão do entra e sai, do calor, dos centímetros que nos cabem e esperar o dia nascer. Comemos uma banana, algumas bolachas e água com gosto de couro e tentamos entrar num sono cortado por vozes e confusão. Cinco minutos de sono de chumbo, quinze de pensar como sair daquela situação. Às sete da matina, o dia nasce meio nublado. Estamos ao lado de uma plantação de sisal com um sol cor de laranja aos pedacinhos entre as nuvens. Faz frio. Tiramos as malas do ônibus e vamos para a estrada ler, e receber banhos de pó a cada caminhão que passa. Uma hora mais tarde, um Land Rover com dois tanzanianos brancos nos dá carona, pela simples razão que somos brancas. Na parte dianteira do jeep, dois brancos e um garoto negro, que descobrimos mais tarde ser o mecânico-escravo, o faz tudo da família. O jeep é aberto. Nos acomodamos na parte traseira, no meio de tonéis e latas de óleo, e começamos a sentir os golpes dos buracos da estrada. Meia hora depois, o jeep quebra. Fogo nos freios. Descemos correndo. Os dois tanzanianos (que descobrimos mais tarde serem irmãos) apagam a fumaça junto com o empregado. O 134


menino, pacientemente, desmonta as rodas e monta tudo de novo. Uma xícara de café com leite nos tirou um pouco do torpor da noite maldormida. Recomeçamos a viagem. Mangueiras, mamoeiros, coqueiros, sisal a perder de vista. Escolas na rua. Montanhas ao fundo. Aldeias. Mercados. Mais buracos, poeira às toneladas sobre nós. Lindos massai levando gado à beira da estrada. Elegantes, altos, orgulhosos e conscientes da sua beleza, todos cumprimentam e acham graça ver duas mulheres brancas na carga do jeep. A região tem muitos massai, um povo que vive ao norte da Tanzânia e ao sul do Kenya em estado seminômade. São pastores de gado. Alimentam-se de leite e de sangue de boi. Comem carne de vez em quando. Acreditam ser o povo escolhido. O inevitável choque com a civilização mostra neles sinais de decadência, a merda de sempre. Entramos no asfalto. Parece que vai chover. Paramos por volta do meio-dia para comer algo. O empregado tem que limpar o carro enquanto nos sentamos para tomar um suco de manga maravilhoso, conversando e esperando nossos sanduíches. Os “meninos” são de origem alemã. Falamos o óbvio: o que fazemos em Maputo, há quanto tempo, como está Moçambique etc. Essas perguntas inevitáveis seguirão por toda a viagem. A cada novo encontro, até a saturação (de repente, em algum momento, passamos a inventar histórias novas). Sanduíches de carne de porco. Um café. Levamos um sanduíche para o menino que não tinha sido convidado a almoçar. 135


Voltamos para a traseira do jeep. Começa a chover. Depois de muita chuva, algumas paradas na entrada de Moshi e Arusha, chegamos a uma casa de campo com um lindo jardim. É a residência dos meninos. Uma mulher loiríssima vem nos receber. Não ficamos lá, como tínhamos pensado por um momento. O menino, que também é o motorista da casa, nos leva para Arusha. Enquanto descarregam o jeep, ouvimos conversas de entradas e saídas de fronteiras. Minha cabeça imagina altos trambiques com o Kenya. O Kilimanjaro, para a nossa tristeza, está encoberto e permanecerá assim por um tempo. Chegamos à Arusha. O motorista para em frente do hotel mais chique da cidade. Pedimos para nos levar para um mais modesto. Não temos força para exigir muito. Depois de um banho frio (eu sonhava com um banho morno), eu desmaio literalmente por duas horas, enquanto Marina anda pela cidade, com energias tiradas não sei de onde. Depois, jantar e sono de doze horas. No dia seguinte, andamos pelas agências turísticas. Os preços para Ngorongoro são absurdos. Depois de muito entrar e sair de agências, conseguimos uma kombi com mais quatro pessoas, que deve sair, em princípio, por volta do meio-dia. Mas uma das pessoas está doente e resolvem sair no dia seguinte. É sábado, temos que procurar outro hotel e trocar dinheiro. O Kilimanjaro continua escondido atrás das nuvens. Damos mil voltas na cidade para trocar dinheiro. Voltamos ao mesmo hotel. As histórias de mil viagens passam pela minha cabeça. Tomamos sucos de manga. Algumas mulheres massai 136


andam pela cidade oferecendo miçangas, brincos e cantis aos turistas num inglês de dez palavras. Incrível. Genuine massai, miss. Os preços são explicados por um complicado sistema: para dizer oitenta, por exemplo, elas mostram os dedos das mãos e dizem: “twenty, twenty, twenty, twenty”. Uma maravilha! Tentam enrolar as pessoas ao máximo. Detestam ser fotografadas (é o espírito que se vai, dizem elas). Depois de muita confusão, conseguimos sair para Ngorongoro, uma reserva de animais dentro da cratera de um vulcão. Nossos companheiros de viagem são dois italianos com cara de filhos de boa família. A conversa é inevitavelmente em italiano. Eu entendo alguma coisa. Marina me traduz o resto. O motorista é engraçadíssimo: um homem de uns 50 anos que dirige de maneira infernal. Parece ter medo dos carros. Paramos para o almoço em pleno território massai. Eu fico louca para fotografar, mas o motorista me diz que é perigoso. Chegamos no alto da montanha que circunda a cratera. É quase noite. Somos instalados em quartos com uma linda vista. Uma beleza irreal, aquele espaço fundo, com um lago no meio. Uma profundidade incrível, paz e frio. Jantamos com os italianos. No dia seguinte, breakfast autenticamente inglês com a cratera ao fundo. Entramos num jeep e começamos a descida da montanha, que durará uma hora, por um caminho pedregoso e semideserto. Grupos massai passam. Mulheres, crianças, guerreiros com lanças Ao longe, uma aldeia massai com casas baixíssimas. Chegamos ao fundo da cratera: zebras, búfalos, leões, hienas, 137


chacais, rinocerontes e gazelas passeiam tranquilamente. Nós, como bons turistas, fotografamos tudo. O silêncio é cortado pelos passos dos animais, o sussurro dos pássaros, um mugido perdido e o som dos jeeps na terra. Revejo, mentalmente, mil filmes, mil fotos de safaris semelhantes: jeeps abertos e cabeças para fora, olhando. Depois da visão completa da fauna, vamos à floresta em busca dos elefantes. Nada. Sentamo-nos um pouco, conversando com o guia, um tipo bem-humorado e simpático. Ele conta histórias de bichos e turistas. Fazemos a subida da montanha por um caminho mais íngreme, mais bonito e mais rápido. Chegamos no hotel na hora do almoço. Logo em seguida, saímos para outro parque no Lago Maniara. Girafas passeiam ao longo da estrada. Na entrada do parque, as formalidades de sempre: passaportes, formulários, taxas. Os elefantes passeiam aos bandos. Girafas, flamingos, hipopótamos em grupos. O motorista está com pressa e nos faz ver o parque a toda velocidade. Vemos pas‑ sar, com pena, os animais que gostaríamos de olhar com calma. Impossível. Meia hora depois, sem muito entender, voltamos à estrada para Arusha. Começa a chover. Descobrimos que o teto do nosso “transporte de luxo” fecha mal e nos molhamos todos. Pagamos nossa economia com um carro que funciona mal e um guia apressado. Chegamos em Arusha à noite. Ficamos num hotel de beira de estrada modernoso e de mau gosto. No dia seguinte, é preciso confirmar o voo para Dar-es-Salaam. Damos uma volta pela cidade. Entramos nas lojas de artesanato. Comemos bolinhos. Sentamo-nos num jardim para ler e escrever. 138


O voo, previsto para às sete, sai às dez. Chegamos a Dares-Salaam à meia-noite. Pegamos o último táxi do aeroporto que, depois de muita discussão, nos levará por 300 shillings (25 dólares no câmbio oficial). No caminho, o motorista começa um discurso interminável e cansativo, dizendo que é um homem honesto, que aquele trajeto não se faz por menos de 40 dólares, que temos que compreender, numa lengalenga insuportável.

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Zanzibar, fevereiro, 1984

Passou uma semana da chegada de Zanzibar. Nos olhos e nos ouvidos, a sensação de um mundo mágico, estranho, perdido e encantador. O cheiro de cravo no nariz. (Zanzibar é o maior produtor de cravo do mundo). Nossas conversas, nossas risadas. O cachorrinho numa corda atrás da porta do quarto do hotel. Os enormes mosquitos. As lembranças de pessoas queridas que nunca mais veremos. Os sonhos, surrealisticamente familiares. Mulheres de preto para todo o lado, nas ruazinhas, em grupos de duas, três, nas esquinas, conversando soltas apesar do véu. Um mundo que ficou isolado, tranquilo, acolhedor e irreal. A cidade tem um ar decadente e destruído. Apesar disso, tem seu encanto. As pessoas seguem para o mercado para as compras diárias. Zanzibar permanece uma ilha de tranquilidade. Túnicas, bicicletas, botequins mínimos com música lânguida, que parece repetir a mesma nota indefinidamente. Nas nossas cabeças, um sol de chumbo. Ao longe, o mar esmeralda. A cor do mar de Jambiane, uma prainha ao norte da cidade principal que tem o mesmo nome do país. O mercado, as bananas enormes, o sol se pondo rápido. A praça à noite. O sorvete com salada de frutas, as mulheres de preto no ônibus pela estradinha, sacolejando minha febre. E aquele mar esmeralda, surgindo nas curvas do ônibus no meio dos coqueiros. Teu riso solto. No terceiro dia que estávamos em Jambiane, comecei a ficar com febre alta e com calafrios, os sintomas típicos da malária. Passei a noite suando frio. No dia seguinte, Marina saiu pelo vilarejo atrás de cloroquina. Não encontrou. Num café, um 140


garoto deu a ela dois comprimidos embrulhados em um guardanapo. Eu fiquei com medo de tomá-los. Mas estávamos longe da capital, o surto da malária demora de três dias a uma semana e não se pode ficar sem cloroquina. Arrisquei-me e tomei um dos comprimidos. Resolvemos ir para a capital. Fomos para a estrada e, para nossa sorte, o ônibus não demorou a passar. Mas estava lotadíssimo. Marina explicou para uma pessoa que falava inglês que eu estava doente e gentilmente ela me cedeu o seu lugar. Chegando em Zanzibar, fomos a uma farmácia e conversamos com o farmacêutico. Fui medicada novamente e fui para o hotel. Para minha sorte, três dias depois, o surto passou e pude novamente caminhar por aquela cidade com cheiro de cravo, olhar para tudo com calma, sentir a sua pulsação.

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Deixando Paris, abril, 1984

O relógio não despertou. Acordei às seis e vinte, com os passarinhos de Gentilly, e chamei o Iuli correndo. Em dez minutos, escovar os dentes, tomar uns goles de leite e levar as malas até à rua. O táxi estava esperando. Achar um carrinho de bagagens na gare St. Lazare, um café com croissant, sono e a sensação de deixar coisas para trás. Os filmes, a cidade, vocês, o Sena, a Île St. Louis, as castanheiras em flor, a música, os charos, uma certa paz e a expectativa da viagem. Alguém estará à minha espera em Santos? Deixo Paris com sol. Iuli passeia pelas ruas na manhã na cidade vazia. Eu inicio uma nova aventura de quinze dias. Dura, alegre, estranha aventura da volta para casa. Atravessar o Atlântico à antiga. Paris passa ao meu lado. O trem atravessa o Sena. Tenho a cara assustada de quem acordou depressa demais. Um cartaz anuncia que estamos a 7 km de Paris.

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No navio Le Havre-Santos, 1984

Eu estava num cargueiro, voltando para o Brasil, depois de seis anos em Paris e dois em Maputo. Éramos cinco passageiros. O cozinheiro vinha nos perguntar o que queríamos comer no dia seguinte. Eu me sentia dentro de um filme. Minha cabine é confortável, atapetada, com uma cama grande e um banheiro. Armários, cadeiras, escrivaninha, rádio. Uma biblioteca com livros policiais, uma mesa de tênis, uma sala de cinema, espreguiçadeiras e colchões para tomar sol, máquina de lavar e secar roupa. Sala de esportes. Chá às cinco. Aperitivo às sete. Os passageiros: um casal, ela francesa, ex-funcionária da Unesco, ele argentino, jornalista, desempregado. Ambos com 35-40 anos e uma filha, Sophie, com 3 anos e um sorriso lindo. Um alemão de 50 anos, feio, míope, falando um inglês horrível. No terceiro dia comecei, antes do aperitivo diário com os oficiais, a ler Buzzati, Mystères à l’italienne, emprestado da biblioteca do navio. O navio carrega carros, produtos químicos, alimentos. Comeremos na mesa do capitão todos os dias, juntamente com os oficiais, três homens e uma mulher. O café da manhã do primeiro dia foi simpático. Depois, fomos todos para o sol. Hoje faz frio. Ainda não se pode tirar o pulôver. A francesa tricota. O argentino e o alemão estão ao sol sem fazer nada o dia inteiro. O cozinheiro, magro, de olhos azuis e um olhar terno, vem à noite contar histórias da família do navio. O Petit Louis, chefe dos marinheiros, é bretão e fala um francês enrolado. 143


Depois do terceiro whisky, conta histórias de Nermoutiers, sua ilha. O comandante, cabelos brancos, uma cara simpática e um corpo atlético, vem dar um mergulho na piscina e conversar. Eu, entre idas e vindas, me instalo ao lado da piscina e vejo os marinheiros que, nas horas vagas, vêm tomar sol. Um dos oficiais, um galã, loiro de olhos verdes e óculos escuros, deixa-se levar pela intriga de um policial e pelo sol. O ajudante de cozinha, atlético, louro, de olhos claros, mergulha como se estivesse numa piscina olímpica. Yves, o marinheiro gordinho, traz o seu gravador enorme e nos perturba com sua música alta e suas tiradas fora de hora. O ajudante do maître sorri com um olhar angelical. Sophie, com seu sorriso enorme, cativa a todos com sua voz e seu mundo fantástico de menina mimada. Passei a tarde do primeiro dia lendo ao sol. O navio é enorme. Tem uma sala para os passageiros com uma geladeira. Alguns homens charmosos entre a tripulação. O livro da Nadine Gordimer começa a me fascinar. Naquele dia, o oficial das comunicações tinha anunciado a posição do navio. Estávamos ao largo de Gibraltar. Tínhamos acabado de almoçar, um daqueles lautos almoços regados a vinho. Eu escrevia um diário de viagem, conversava com os oficiais, com o camareiro, com os outros passageiros. Tomava chá, às cinco, com a Martine e a Sofia, lia muito, dava algumas braçadas na piscina e explorava o navio. Gostava também de sentar-me numa cadeira de lona ao sol, de olhos fechados. Ou, então, de me debruçar e olhar para a imensidão ao meu redor e para a espuma branca e azul do navio. 144


Come-se muito em todas as refeições: duas entradas, um prato, queijo, fruta ou doce. Vinho em profusão. Café e água. O alemão fala de suas viagens ao redor do mundo sem dizer nada. Tóquio, beautiful, Singapura, lovely. Hoje o capitão nos convidou para o coquetel que acontece todos os dias às 19 horas. Uísque, vermute, porto, gim e salgadinhos. A tripulação passa três meses no mar. Hoje é domingo de Páscoa. Tivemos doce e St. Emilion no almoço. Martine escondeu ovos para a Sophie. Ao redor, um azul sem fim, mar e céu. Olho ao longe. Relembro conversas com Marina esperando a saída do barco para Zanzibar. Coisas que ficaram por ser ditas, amigos que deixo pelo mundo. Daqui a seis dias, chegaremos ao Brasil. Como será minha chegada? Olho o alemão como uma criança na piscina. Um ser de outro planeta, míope e triste. Ele chega no convés todos os dias, carregando sua cadeira laranja e marrom, sandálias de lona e um calção enorme. Seu corpo está vermelho do sol. Parece um corpo estranho no navio, fora de lugar e de tempo. Apesar de tudo, parecendo ser o mais à vontade, é o mais estranho. Converso com Patrice, um dos oficiais, ao pôr do sol. No menu, Miller, Sartre, Mishima, Paris, Beaubourg. Histórias e mais histórias de viagens de navios. Ele me leva à casa de máquinas. Conversamos até às 22h30, tomando Coca-Cola. Hoje, fui visitá-lo na ponte de comando onde se faz a navegação. O sol é forte. Como os deliciosos chocolates que o alemão me deu, cheia de sol. Acabei de ler Vaincue para la brousse, da Doris Lessing. 145


O navio joga muito. Azul para todo o lado. Descubro a sensação da redondeza da Terra. No dia seguinte, acordo na hora do café da manhã, e resolvo controlar a paciência do cozinheiro dormindo mais um pouco. Levantei-me devagar, tomei banho com calma. Cheguei às nove da manhã na sala de refeições, pedindo desculpas. Fui muito bem recebida. O dia todo luz, sol, a imensidão do mar e o azul nos rodeando. Conversei novamente com o mesmo oficial: jazz, filmes, política, Moçambique, Brasil, racismo. Pequenas, grandes, lembranças que ficam comigo. Vou caminhar no convés. Está um pouco frio e o vento é muito forte para ficar ao ar livre. Visito o navio todo como se fosse um dever. Na sala de máquinas, um barulho infernal. Na proa e na popa o azul sem fim, a espuma e o vento. A sensação de estar em lugar nenhum. Um dos oficiais nos dá a posição do navio. Dentro de dois dias, passaremos ao largo dos Açores. Hoje, os relógios atrasaram uma hora e vi o final do pôr do sol: as cores do mar mudando, as primeiras estrelas, o lento anoitecer. Acabamos de jantar. Como sempre, um jantar regado a vinho. Os dias diminuem. O responsável pela música coloca uma canção bonita. O dia está lindíssimo. Nos aproximamos dos trópicos. Amanhã cruzaremos o Equador. O ar é fresco e transparente. Hoje, às sete horas, passamos por Fernando de Noronha. Um dos oficiais sintonizou a rádio da ilha. Senti uma volta no estômago, um frio. Estarei chegando em casa? Entre papos, tomo chá com Patrice e o bretão. Vamos chegando ao fim da viagem. Estamos ao largo da costa brasileira, 146


mais ou menos perto da Bahia. A rádio é Alvorada com música de Cely Campelo. Hoje à noite teremos um churrasco no convés. Olho no horizonte e procuro pedaços do Brasil ao longe. O churrasco de despedida foi simpático, com uma leve nota de tristeza. Fiquei ao lado de Philippe, Jean Pierre e do bretão. Falamos de tudo e de nada embaixo de um céu sem estrelas, ao lado da piscina. O vinho corria solto e cada um assava seu pedaço de carne no fogo, numa grande confusão. O cozinheiro quase me deu uma indigestão de profiteroles, feitos especialmente para mim. Quando a festa acalmou, descemos um a um para o bar dos oficiais. Eles ficaram rememorando viagens, como sempre, servindo-se de whisky e comendo chocolates belgas. Logo que descemos, eu tinha um papel bem definido no meio daqueles homens. Pouco a pouco, eles navegaram nas suas histórias, nos seus portos, nas fofocas costumeiras. De vez em quando, o moreno estúpido soltava uma bobagem grosseira. Senti que já não tinha mais lugar no meio dos oficiais e fui me deitar. Penúltima noite. Amanhã, hora de arrumar as malas. Começo, de repente, a deixar o porto seguro desse quarto, dos jantares, dos almoços, da rotina de sol, piscina e livros. Chegamos finalmente em Santos. Eu estava ansiosa por desembarcar, sentir o cheiro do Brasil e abraçar o Eduardo e a Suzana que estavam me esperando. O navio para ao largo, depois de uma complicada manobra. Daqui a pouco, alguém vem me buscar. Os outros passageiros desembarcarão em Buenos Aires. Minha espera ansiosa parece durar anos. Finalmente entro numa embarcação em direção ao porto. Comigo, dois oficiais. 147


Vejo o Eduardo e a Suzana ao longe. Depois da burocracia do desembarque, finalmente, posso dar um abraço neles. Esperamos pela liberação da minha bagagem. Enfim, os baús azuis chegam e são submetidos à inspeção da Alfândega. Após uma olhada rápida, liberam tudo. Agora, tenho que despachá-los para o Rio. Depois de muita burocracia, entramos num ônibus para São Paulo. Eu estou silenciosa. Com muitas perguntas na cabeça. Tenho que absorver a chegada, sentir os cheiros devagar, olhar os muitos rostos de todas as cores, entrever a pobreza. Olhar o verde luminoso da serra, o azul do céu. Faço mil perguntas ao Eduardo sobre a lei da anistia, que havia sido derrotada no Congresso. Em São Paulo, procuramos um hotel e saímos para jantar. Fico meio tonta com tanta agitação, com tanto barulho, depois dos dias silenciosos do navio. Voltamos ao hotel e eu caio na cama exausta. No dia seguinte cedo, quando acordo, vejo a cara risonha do Eduardo ao lado da minha cama.

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Impressões da volta ao Brasil

Passaram-se apenas dois dias da chegada, mas parece que foi uma semana, tantas foram as emoções. Eu tenho que olhar para tudo devagar, embora o ritmo seja a dois mil por hora. Em São Paulo, calças justas, cores, nordestinos, gritos, poluição. Edu, ternura, criança, nervoso, igual. Talvez mais maduro, não sei. A chegada confusa no Rio. Aqui-agora, o medo. Assaltos, violência. Acho que ficarei pouco tempo por aqui. Um banho de família e uma passagem por Florianópolis me farão bem. Preciso de um mapa da cidade para saber onde estou. A cabeça dói. Emoções demais, viagens demais, mudanças demais, barulhos demais. Estou flanando num continente desconhecido, me irrito com o barulho, não entendo nada. Tenho vontade de fechar os olhos e acordar em Paris, território conhecido. Mas decidi vir. Naveguei por quinze dias num barco fantástico, tomando sol. Trouxe comigo 250 quilos, oito anos de vida: som, discos, livros, coisinhas, cartazes, bugigangas, fotos, slides e mil histórias. No meio do mar, senti que aqueles quinze dias eram uma virada para a próxima etapa. O fim de um capítulo. Procurar trabalho, onde? Como? Mil perguntas ao mesmo tempo. Olho o Rio e não me emociono muito. Acho bonito tudo isso, mas estou longe, chegando de outro planeta. Nessa chegada interplanetária, queria desembarcar um pouco contigo aqui. Fui à Ipanema ver uma exposição e 149


tomei suco na esquina da praça. O mesmo garoto de 1977 me serviu. Me deu uma grande saudade! Já faz três meses que estou aqui. A solidão se forma como uma coisa normal das grandes cidades. Brigo entre o estar aqui e o estar nowhere ou somewhere else. Fico a maior parte do tempo no lugar do sonho e da fantasia, de encontros bonitos e de paz. São Paulo no final de semana. Silvia. Reencontros, trocas, uma linguagem que vai fundo, bonita, sincera. De volta ao Rio, domingo. Ainda não são quatro e meia, mas a tarde cai atrás do Corcovado. Leio Cacilda e tenho Clarice e Barthes ao meu lado. Revivo-pressinto a mesma indizível solidão. Quando o telefone tocar, Clarice, talvez a espera já tenha cortado os fios... Minhas vagabundagens vão acabar. Pintou um trabalho que não vou poder recusar. Fui convidada para trabalhar na Biblioteca Nacional. Fui designada para a seção de classificação, que utiliza métodos arcaicos. Um trabalho que poderia ser interessante, mas que é chatíssimo. Racionalmente, isso significa, talvez, um reencontro com a profissão. Depois, pode ser que eu seja transferida para um trabalho mais interessante. O ambiente é bonito. Decidi fazer um estágio de quinze dias lá, o que me dará tempo de conhecer o trabalho, o ambiente, as pessoas e pensar. Restaurante alemão no Joá. Vinho de caneco. Tua tristeza que eu tento segurar, mas que escorre nos meus dedos. Teu carinho imenso, mesmo triste. Agora, terça-feira. Ouço Keith. Dia luminoso de cigarras. Preciso andar na praia, ouvir o silêncio, sentir o verão solitário em mim. 150


Don de Lillo. Verão tardio. O barulho dos vizinhos. A claridade, o frescor, o silêncio. Uma escrita suave, pacífica e luminosa como uma praia da Grécia. A atmosfera kitsch do Maksoud. A performance cool do Nouvelle Cuisine. Mulheres de dourado, homens barrigudos. Outro dia qualquer, Penedo, mato, piscina, sauna. “Pour Elise”. Flores nas minhas violetas, cor de carmim no meu verão. Quinta, aniversário da Dety. Calças novas, cinzentas. “Yellow Submarine” ou a capacidade de sonhar. Manhã de sol. Sontag, o vazio, o silêncio da arte. Sábado, o polonês com calças de palhaço, Itamar magérrimo e a mágica do sax do Paulo Moura. Sol, gripe, festival de cinema. Sexta-feira, chuva, expectativas, medo e ansiedade. Escrever e ler, ler e escrever. Onde te leva essa tarde chuvosa, esse início de fim de semana? Por onde vagueiam teus olhinhos curiosos, tuas mãos secas, teu jeito distraído, criança, chato às vezes de ser? Manda tuas poesias, menino! De repente, te descobri assustada e feliz na tua casa. Difícil estar ali sem te ver. A cadeira de balanço, o açucareiro, o móvel do banheiro, a escova de cabelo. Catarina, triste. Só ela entendeu como é difícil estar naquela casa sem ti. Tuas fotos, teus discos, teus livros, um velho cabide. Coisas que te seguiram da casa da Epitácio Pessoa e ficaram no fundo do meu olho. Que saudades de mil conversas! Outro dia, chopinho na Gávea com Tania, Carlos, Lícia e Dina. Perguntas, verão, enfim. Tua presença ainda forte. Desvendaremos os mitos que fizemos de nós mesmas por nós mesmas? Diremos alguma coisa de nós?

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Em um lugar qualquer

Converso contigo como se nossos papos fossem possíveis agora. Morro de sono. De repente, uma sensação de coisa errada, uma carta urgente a ser escrita. Expectativas demais, sonhos demais. Um telefonema a dar. Um copo que quebrou. Depois, a TV, o parque. Coisas que a gente pensava que tinham ficado para trás. Que surgem na frente e se afogam como grãos de açúcar na mesa. As flores erradas, coisas assim. Tua voz que sumiu no telefone. Teu violão. Alguém dobrou a esquina. Eu tinha uma viagem programada e mil emoções soltas. Depois, o verão. E a noite desencontrada. O riso. O medo de perder a hora. A palavra que ficou escrita. A bola de neve girando rápido. No fundo, os passarinhos e o gato da vizinha. Alguém grita na porta de casa. A estrela caiu, por descuido, no fundo do papel. Enquanto as horas passam dentro do ônibus, eu penso em ti, em mim, em vocês. O ônibus corre em direção a Porto Alegre e eu sonho histórias fantásticas e banais. Olho a paisagem familiar das serras. Volto às origens num calmo Natal na Granja da Penha. Cheiro bom de terra molhada e uma velha promessa. Eu quero dormir com a paz do vento no meu colo, no arrepiar do braço. De repente, não mais que de repente. Existe uma calma nas coisas. Uma calma e uma ansiedade. Não sei bem por quê. A vida é cheia de porquês. Enquanto os carros passam na lagoa.

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Os baús azuis

Sonhei, esta noite, com três baús azuis que me seguiram por algum tempo. Na minha viagem de navio, voltando de Paris, trouxe parte das minhas coisas nesses baús. Quando eu estava me preparando para voltar para o Brasil, lembro quando os arrumei, minuciosamente, para que todos os meus livros, discos e objetos coubessem naquele espaço, cuidando para que nada fosse quebrado. Lembro que o Iuli, com seu jeito especial, me ajudou muito. Os baús me acompanharam por muito tempo. Nas minhas primeiras casas brasileiras, serviram de armário, de mesa ou de sofá. Eram o testemunho de parte da minha história. Cada objeto que eu trouxe nos baús representava um momento de minha vida: as estátuas de ébano e sândalo lembram minha casa em Maputo, as feiras e as visitas aos artesãos, onde eu descobri cada uma delas. Algumas foram compradas na Ilha de Moçambique, no momento da festa da associação de amigos da ilha. Lembro que, em Paris e Estocolmo, eu não podia passar por uma loja de discos sem vasculhar toda a coleção de jazz. Eles foram o pano de fundo de muitos instantes de vida, festas, jantares, risadas e histórias. Discos do Traffic e da Roberta Flack me levam ao apartamento da Conselheiro Lafayette, no Rio, onde eu morei com a Helena e o Sérgio. Lembro que, quando saíamos para trabalhar, deixávamos sempre, na vitrola algum disco para o primeiro de nós que voltasse. Ouvindo o disco branco do Keith Jarrett, o Köln Concert, volto à Gentilly e chego a sentir o cheiro do pano que forrava a parede do nosso quarto. Ouvindo Lilás, do Djavan, me vejo dançando em uma das festas de Maputo. Não sei por que Bob 153


Dylan me lembra o quartinho da Rue Desnouettes, na Porte de Versailles. Lembra também o concerto do Dylan, que vimos nos anos 70 em uma das banlieues do norte de Paris. Rão Kyao me evoca o apartamento do Manuel em Lisboa. O primeiro disco dos Tribalistas é a cara da casa do Iuli, na rue Stendhal. O apartamento da rue de Javel, em Paris, surge quando ouço algumas músicas do Jobim. Os primeiros discos comprados por mim eram aqueles “bolachões” de vinil, que foram substituídos aos poucos pelos CDs. Pequenos objetos, trazidos de Creta, Cabo Verde, Paleohora, Praga, Cairo, Budapeste e Dar-es-Salaam, trazem pedaços do meu caminho. Livros comprados em Londres, Paris, Lisboa, Maputo e Estocolmo, me seguem até hoje. A primeira página da maioria deles traz a data, o local e, muitas vezes, uma frase que lembra algum momento de minha vida, nos meus muitos ensaios para me tornar escritora. Na minha lembrança, ficou o momento em que li o primeiro livro de André Brink, um escritor sul-africano que gosto muito. Foi-me emprestado pela Mariela. Seu título era An instant in the wind. Foi um daqueles livros que a gente não consegue largar, que nos pegam pelo pé. Nesse tipo de livro, eu entro na história e vou seguindo, maravilhada, os personagens até a última página. Lembro da biografia da Isadora Duncan, que comprei chegando em Paris. Fiquei tão encantada com o livro, que me sentei num café durante horas, acompanhando o magnetismo daquela mulher. Nas minhas estantes, as páginas amarelecidas dos livros voltam a ser abertas e relidas de tempos em tempos. Outros ficaram esquecidos. Às vezes, são emprestados a alguém. 154


Alguns não voltam mais. Os muitos quadros, as esculturas de madeira e alguns cartazes seguem espalhados pela casa. Não lembro exatamente quando me desfiz dos baús azuis. Deve ter sido em São Paulo ou em Florianópolis. Tenho a impressão de que eu os dei para alguém. Eles foram testemunho de uma época maravilhosa, cheia de aventuras da minha vida cigana.

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Rio

Luminosa manhã (porque tanto azul). Pino Daniele, Corcovado ao longe. Certa ansiedade. Tu, via aerograma, fazendo voltar um pouco o tempo, os portos, viagens, sóis de Moçambique. Tanzânia, Zanzibar, companheirismo, estados de espírito. Rir juntos e não perder o humor nessa loucura. Um cinzeiro francês, outro egípcio, um cesto tanzaniano. E eu, onde? Pertenço a este verde dos morros de Santa Teresa? Passa um ônibus no meio das árvores. Parece que vai chover. Os passarinhos anunciam a umidade, assanhados. Você, onde, ao meio-dia? Norma Bengel, lânguida, em filmes branco e preto. Anos 60. Cinemateca da Urca. Filmes emendados. Discussões sem fim. Depois, voltar para a mesa verde e falar doce contigo, menina de voz macia. Ao som das estrelas vazias. No fundo dos teus olhos azuis de verão. Verão, vida, mangas maduras. As coisas talvez fiquem mais simples agora. Julinha, Crica, Estela. Lélia. Ciano. O Gordo se ajeitando na areia. Nossos muitos charos antes ou depois da praia. Os filmes da meia-noite de sábado. As idas a Búzios e Cabo Frio. Ipanema como centro das nossas vidas. Os planos para viagens à Europa, os sonhos, as loucuras. Ácidos com Jorge, Helena, Eduardo, Sérgio. Chopes nos bares da vida. Os sucos da esquina da praça General Osório. As butiques novas abrindo, mostrando roupas hippies que nos fascinavam. Janis Joplin, “Submarino Amarelo”, o apartamento da Conselheiro Lafayette. Nosso vizinho Drummond. 156


Os mergulhos antes de ir trabalhar no Maurício Roberto. A biblioteca cheia de fumaça. Os planos e sonhos da viagem a Paris. Tua presença morena. La Mole. O JB matinal. Nossos chás das cinco, apesar do calor. As aulas de fotografia com a Lena e a Claudinha. A primeira alcachofra. O Rio tem uma alegria de viver contagiante. Aterrisso aos poucos. Procuro os amigos devagar. Os encontros são emocionantes. Estou na rua todo o tempo, olhando, ouvindo. No cinema, na praia, nos bares “cachaceando”. Olho esse verde, esses morros ao meu redor. Tudo é claro e confuso ao mesmo tempo. Uma casa minha, onde eu possa abrir as malas devagar. Juntar pedaços de Paris, de Londres, Maputo, Tanzânia, ilhas, pores de sol, fotos, discos, objetos, livros, fitas. Sonhos, ideias, textos. Juntar pedaços de mim. Continuo com sede e estou de volta. Ontem, um lindo concerto do Baden. Num parque à beira da Lagoa, um concerto do Sonny Rollins. Os sons melodiosos do sax, no meio do colorido e dos risos, naquela festa inesperada do sábado. As pipocas que passam, as pessoas que se encontram fazendo aquela algazarra típica dos cariocas. Mais tarde, Keith me traz, com saudade, meu cantinho de Paris. O outono chega devagar. Faz um ano que cheguei e parece que foi ontem. Aqui-agora, ouço os mil carros que passam. Um festival de cinema à noite. No meio de Carolina do Chico, as cigarras anunciam o verão verde, uma mesa redonda. Mais chuva e a vontade de pegar um avião para uma praia azul. 157


Arpoador transparente, cervejas e sol. Batucada. A velha cidade reencontrada. Santa Teresa, caminhos tortos, bondes, risos, porres, chopes no Bar Lagoa. Mais tarde, em Brasília, ouço Caetano num såbado indefinido entre sol e chuva. Da janela de uma casa emprestada, tons bonitos de verde depois da chuva.

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Rio, um dia qualquer

Segunda-feira, Ella & Louis, Porgy & Bess, eu e Virgínia. Dia sombrio. Café. Na claridade da cozinha, o barulho da máquina. O medo, o cansaço. Um fim de semana com Helena, Iuli e praias. E, depois, Gismonti e um copo de vinho. Um jantar cheio de mulheres, com bolo de nozes. Manhã que começa com Jean-Pierre Rampall e Claude Bolling. Na cozinha, esperando o café com uma suave promessa para o dia. Passarinhos, oito e meia. Menino, te levarei um dia para sairmos juntos, fumar um charo, esperando a lua sair no meio das buganvílias do verão. Te verei pela voz ao telefone? Aonde, você? Sexta-feira à noite. Repartirei conversas mornas e musicais. Promessas de um fim de semana no ar. Esperei por ti. Comprei Porto. Ouvi “My Song” até a exaustão Fumei um charo e comecei a ler o jornal. Terminei de ler As escolhas de Sofia. De repente, tive saudades de mil pessoas. E uma vaga tristeza. Escrevi postais. Ficou tudo intemporal de repente. E um riso nervoso que surge. Tantos dias começaram e o sol desceu rindo. Tantos dias quentes e o barulho da lagoa. A luz acesa, o mar batendo nas areias da Urca, Arica. As partidas, endereços, bobagens que eu disse e quis engolir. Receitas de vida. O Ivan Ângelo agora. Teu carinho, talvez. O te sentir de novo. Não sei por quê. Xiquinho me deu medo. E a gente nem falou disso. Depois, talvez eu tivesse mais medo. Um outro medo. De repente, ficou frio. É mais difícil falar, porque a porta abre, o dia seca. E eu quero te ver. 159


O relógio. O barulho da rua. E uma sensação estranha de estar no Rio. Eu te tenho perto e, de repente, isso é uma sensação distante.

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Em Belém com Jean-Pierre

Conheci Jean- Pierre através do Edu, em Paris. Ele é uma pessoinha muito simpática e risonha. Nos anos 80, trabalhava na Nouvelles Frontières, uma agência de viagens que fazia voos e excursões baratas. Ele fez uma viagem ao Brasil com um grupo onde a maioria das pessoas era da terceira idade. O roteiro incluía um périplo por várias capitais brasileiras. Foram a São Paulo, Rio, Brasília, Salvador e Recife. A última etapa da viagem seria Belém. Algumas pessoas estavam muito cansadas e não quiseram continuar a viagem até o norte. O Jean-Pierre ficou com bilhetes que não seriam utilizados e me perguntou se eu queria ir com ele. Naquela época, não havia controle de identidade nos voos. Eu topei logo a aventura e viajei com o bilhete de uma francesa. Quando chegamos a Belém, eu, ele e o Gunther, um alemão que fazia parte da excursão, fomos até a casa do Sérgio, um amigo que não víamos há muito tempo. Tocamos a campainha da casa dele, à meia-noite, sem avisar. O Sérgio quase morreu de susto quando abriu. Ele nos convidou a ir a um bar do centro da cidade, frequentado por pessoas de todas as classes. Assim que encontramos lugar, uma índia muito bonita se aproximou de nós e sentou-se no colo do alemão, que sorriu de orelha a orelha. Quando saímos dali, o Gunther levou a índia para o hotel onde estava hospedado. Os dois passaram o dia seguinte andando de barco pelo Amazonas. O alemão estava encantado com a índia. No final do dia, quando voltaram para o hotel, ela apresentou a “conta 161


pelos serviços prestados”. Ele ficou pasmo. Na sua ingenuidade, achou que tinha encontrado uma namoradinha. Depois dessa viagem nunca mais vi o Jean-Pierre. Há uma semana, para minha surpresa, ele me ligou. Ficamos uma hora conversando. Atualizamos nossas vidas e lembramos velhas histórias. Foi um belo momento.

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Brasília, um dia qualquer

Fui trabalhar em Brasília como coordenadora de um sistema de informações. Fiquei na casa da Lícia por um tempo, até o MEC me instalar no Hotel das Nações. Enfim, um espaço meu depois de tanto tempo. Abrir malas, espalhar livros. Olhar Brasília do alto, no meio do néon e do espaço. No Teatro Nacional, com salada e vinho branco, eu, Selma e Lícia viajamos, inevitavelmente, por Paris, Zanzibar e outros lados. Ao fundo, a cidade que não se descobre: está ali, sem surpresas. No alto, a lua cheia, poucas estrelas. Barulhos ao longe, no décimo andar do Hotel das Nações. Música no parque, verão que chega. Marie Cardinal, “Les Mots pour le dire”. Tenho os dentes cerrados, os ombros doídos de tensão. Um mês de Brasília, uma semana de hotel. Um pouquinho de paz. Muita TV, leituras dispersas. Hoje, almoço com Carneiro, Lu, Carol e Flavinho. Brin‑ cadeiras de saquinhos d’água. Depois, a casa do Lago Norte, o silêncio do Planalto ao fundo. A horta, as crianças, as cores, a paz da casa. A beleza em cada cantinho. Passaram-se quase dois meses entre viagens de trabalho ao Rio, Sampa, São José dos Campos, Brasília e Recife. Pessoas e aviões, aviões e pessoas. Rever Júlia, Caty, Beto, Ciano, Helena, Saulo, Andréa, Marçal, Dina, Carla, Xiquinho e Júnior na sua doçura magra e agitada. Rever aqui-agora em Brasília, Yeda e Marco, Lalinha e Lurdes. Vinho, poesias, violão, cordel, pepinos, cachaça. Depois, voltar de madrugada e ter um dia cheio de ressaca. No restaurante, as famílias de classe média e seus homens 163


barrigudos. Outro dia, Rita Lee, uma carta do Xico. Chuva, um carro novo. Depois, Paranoá, um entardecer frio e calmo. Pescadores, gatos, crianças esfarrapadas. Outra Brasília. Barracos, bares, gente simples. Celina, Márcia, Edmond, Lu, Flavinho, Carol e Selma. Bicicletas na chuva. Domingo no parque. O cerrado, as pernas cansadas, os cheiros do domingo. A cara vermelha. Estou em outra sintonia com o mundo, num lugar e num tempo meus. Brasília, cidade aberta, inacabada, estranha. Muito álcool nas esquinas invisíveis da cidade. Discos voadores, mapas astrais, natureza, mel. Às voltas numa cidade onde é difícil chorar, como dizia Clarice. Aquela luz chapada da cidade. Os filmes nas embaixadas, as feirinhas nas quadras. O pôr do sol vermelho no horizonte. Brasília, futilidades, vinho e a sombra do poder por todo o lado. Uma cidade que parece sempre vazia. Pouca gente nas calçadas, sem encontros ao acaso, onde os endereços são números. Depois, no parque da cidade, as orquídeas, os eternos encontros nos bares. O lago, a lua. Tu, chegando de repente. Teu riso, nossas trocas, nossas lembranças vazias, vadias. Talvez amanhã seja outro dia. Não sei. Pode ser que chova. A cidade está seca. Encontrar um filme. Ou voltar para o hotel. Lembrar de ti num dia sem esquinas. Caminhar no parque. Tomar um vinho, pedir demissão. Ir a Goiás Velho. Encontrar a Tânia. “Amanhã ninguém sabe, traga meu violão antes que o amor acabe”, diria o Chico. 164


Deixo Brasília no fusquinha branco por aquela estrada reta até o Rio. A monotonia da estrada, o barulho do carro, as paradas para um café. Uma viagem longa e chata. No início da noite, chego em Sete Lagoas e procuro um hotel. Minhas pernas doem. Subo para dormir um pouquinho e acordo no dia seguinte. Pego a estrada de novo, rumo ao Rio. Posto de gasolina, café, seguir viagem. No final da tarde, entro na avenida Brasil, no Rio. Vou para a casa do Xiquinho em Santa Teresa, onde tem sempre um quarto. Quem sabe para onde me leva o mundo agora.

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Sampa, um dia qualquer, anos 80

Juntar as coerências (ou incoerências) da minha voz pela mão, com a caneta. Esquecer para onde leva a máquina. Tua figura. O não vivido, o não falado, o esquecido. Domingo, os dias se esvaem no vazio. Violões nesse verão que não chega, nesses dias cinzentos, canetas perdidas. Luas. Marcas de facas nos dedos. Cheiro de alcachofra. Pat Metheny, chá com pão preto. Outro domingo chuvoso depois de um sábado com vodca, lembranças de Moçambique, Alice, Fernando e Luiz Antonio. Domingo com Dashiell Hammett, um pouco de Szabo. Depois, uma pizza com Silvia e Iraí. Pêssegos, vontade de aventuras, chaves de vidro. Chet Baker. Sabonete de Araxá. Domingo. O barulho do relógio. Calor, mesas geladas. Escapamentos de ônibus, simpatias. Pedaços de mim. Sol na rua. Cheiro de fim de inverno, bergamotas, sal e sol. Milton. Ar de verão. Há momentos que é melhor não brigar com a vida. São instantes que passam. É melhor se agarrar, com força, nas asas do pato selvagem e deixar as paisagens, voar os sonhos possíveis. A doçura do Semprun. A chuva forte. O sol que cai na montanha. Ouço Milton. O som e a casa quase em ordem. Ouvir de novo Gismonti, lembrando dias de sol em Moçambique, a leveza, a despreocupação, a festa. Saudade de você, menina. Do teu olho arregalado, do teu cabelo loiro caindo na cara, do teu riso-carinho, da tua voz fina, teu olhar desconfiado. Saudade de te ver entrando e saindo, colocando um disco – Roberta Flack, Joe Cocker ou outro qualquer. 166


Rampall, Mulligan, Piazzola, Simone, Porto, Virgínia, a cor da pele. Manhã sem sol. Ontem, Nilson, Vera, Manuel e experiências compartilhadas. A doçura do Marçal. O mar, o sol, a tensão nos meus músculos, as cores, os prateados, os dourados, a dificuldade de aceitar as pessoas, as críticas ao longe, a insegurança. Ouvir Gerry, dançar, destilar a música no corpo. Ler, voltar a escrever, uma espichada de olho para ver se tem sol. Ir ao cinema. Chet Baker, noite quente, máquina de lavar, uma pálida lua no céu. Um intermezzo de verão (Detynha, teu sorriso perdido em algum lugar). Mil livros começados, telefonemas a dar. O próximo final de semana. Lu, Marçal, Lícia. Livros, amigos, Brodski, a relação com os livros. Trocar figurinhas, trocar cores e sóis, vida simples, sem grilos, fumo sem ânsia, Sampa. Brás, Marcal, Silvia, Iraí, Jed e Luisa. Expos, comidas, vinhos, risos. Jazz, orquestras. Parques, chás. Some minutes of quietness, Nena’s birthday. Days coming, going. Lots of people. Outro dia. Cinema, Alain Parker. Lágrimas no sábado cinzento. Fumaça, Chet Baker, Porto, Folha, Henry Miller. Parker no limite da ternura, como uma lâmina. Onde o equilíbrio? As coisas mais bonitas estão nos limites? As que não chegam a lugar nenhum, mas se sustentam entre dois mundos como nós? Queria te dizer bobagens todo o dia, te enviar rosas, tomar chá. Rir, ouvir rock. Queria o silêncio do Bergman, a câmera dentro da criança, a criança do Bergman solta. Janjan sentado me olhando. Keith, lua cheia, eu pela casa. Pausa para um sanduiche. Agosto, o sol já dando sinais de fim de inverno, Coca-Cola, Duke Ellington ao fundo. O 167


sol batendo nas minhas costas. E uma luz doce de fim de tarde. Um velho filme na TV. Chuva. Almoço na casa tranquila de madeira. Um sol tímido entra pela janela. Mais um momento. Um momento preso talvez para sempre na memória, como diria Virginia Woolf (To the lighthouse). Um silêncio de verão, uma grande espera. Uma da manhã, Keith Jarrett. Ou um momento como qualquer outro, um instante solto nesse junho, nesse dia que começou com a Nara espiando por trás da cortina do chuveiro. Tua figura. O não vivido, o não falado, o esquecido. Domingo. Os dias se esvaindo no vazio. Violões nesse verão que não chega, nesses dias cinzentos, canetas perdidas. Luas. Paraty. Bem-te-vis. Livros para o Nilson. JJ Cale. Verão frio e eu aqui trabalhando. Encontros fugazes. Uma expo. Uma peça de teatro. Um verso. Venha tomar um vinho comigo, comer bolachas, fazer bainhas, ouvir Bach. Acabar o domingo. Jean-Pierre Rampall. Primavera. A casa da Lu. Na claridade da cozinha, o barulho da máquina. Um cafezinho. O susto do veludo azul, o cansaço. Cheiro de bananas com canela. Lembro Gismonti, Manuel, Lisboa. Sol, jazz, vinhos. Domingo, sol e frio. Te levarei algum dia à caixa postal 1692 na minha moto vermelha. Um charo esperando a lua surgir no meio das buganvílias. Verão. Frases do Quintana e a mala enorme do Edu, back from New York. Banhos de vinho com Jorge e Helena. Discos, charos, almoços. Recuperação lenta e terna do passado. 168


Sigo tentando colar cacos de mim mesma. Incolรกveis. Sรกbado. Ternuras fugidias no ar Teu telefone que nรฃo responde.

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New York, anos 80

Cheguei em New York, pela primeira vez, em pleno verão. O Eduardo, meu irmão, que fazia mestrado na City University, estava me esperando no aeroporto e me levou para a casa dele no Brooklyn. A primeira fotografia da cidade, que guardei no fundo do meu olho, foi a vista de Manhattan a partir do Brooklyn, que me lembrou um filme do Woody Allen. Depois de largar a mala, atravessamos a ponte caminhando e fomos para o sul da cidade. Entramos numa livraria onde comprei uma biografia do Scott Fitzgerald. Vimos a Estátua da Liberdade no extremo sul de Manhattan. Aos poucos, fui me familiarizando com a geografia simples da cidade e com o metrô e passei a circular sozinha. Apesar do forte calor, andei à toa, fazendo devagar o reconhecimento daquela metrópole vibrante e acolhedora. Numa das minhas muitas caminhadas, descobri a Tower Records, com cinco andares repletos de discos. Todos os dias dava uma passada lá para renovar o meu estoque de jazz e de rock. Andei fascinada pelo Central Park com a Suzana, descobrindo pequenos concertos de jazz ou de rock pelo caminho, vendo as crianças brincando, andando de bicicleta, tomando sol, gentes de todas as nacionalidades e idades caminhando ou fazendo piqueniques. Conheci, através do Eduardo e da Suzana, muitos brasileiros que estavam passando um tempo lá, uns como aventura, outros para ganhar dinheiro, outros para estudar. Uma das pessoas que lá encontrei foi a Graça, que eu conhecia de Porto Alegre. Fomos algumas vezes almoçar na casa dela e da Sheila, ouvir blues ou jazz, bater papo, tomar 170


vinho. Lembro do velho Deux Chevaux dela com o porta-malas cheio de latas de cerveja e refrigerantes. O Eduardo foi comigo a alguns dos vários museus da cidade, o MoMa, o Metropolitain, o Guggenheim, o Whitney, entre outros. Fiquei fascinada pela diversidade de pessoas circulando na cidade, uma verdadeira babel moderna. A Time Out me trazia, toda a semana, o roteiro cultural da Big Apple. Além dos concertos diários no metrô e no Central Park, descobri os clubes de jazz, onde assisti a concertos inesquecíveis. Lembro da enorme bochecha do Dizzie Gillespie num concerto no Village Vanguard. Fui, num sábado ao meio-dia, ouvir jazz num dos muitos pubs da cidade. Cheguei cedo e me sentei no balcão, ao lado de uma senhora branca, com cerca de 60 anos, com um jeito modesto e tímido, tomando seu uísque. Achei que ela era uma dona de casa que tinha ido ao pub da esquina ouvir jazz antes de almoçar com a família. Conversamos um pouco. Ela me pediu licença e entrou no palco. Quando começou a cantar, sua voz tinha a potência de uma Ella Fitzgerald, com um timbre invejável. Cantou vários standards com sua voz melodiosa e potente. Quando me sentei ao seu lado no balcão, eu não imaginei que aquela senhora tranquila e simples era dona daquela voz maravilhosa. Foi um verão de muitas descobertas. Livrarias, parques, cachorros-quentes nas esquinas de Manhattan, piqueniques no Central Park, festas na casa dos amigos do Eduardo, muitas exposições. Voltei para o Brasil com o Eduardo e a Suzana, que também se despediam da cidade. No aeroporto encontramos o Jorge, um amigo que estava embarcando com seu gato. Eu o 171


conhecia de Paris. Ele vivia, nessa época, com seu bichano entre as duas cidades. De seis em seis meses mudava de uma para a outra. Grande figura! Voltei muitas vezes à New York, levando comigo a sensação de redescoberta daquela primeira viagem.

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Fernando de Noronha, anos 80

Depois de esperar uma semana por uma vaga num dos voos da FAB para o arquipélago, chegamos, eu e Márcia, na Vila dos Remédios, a capital de Fernando de Noronha. Fomos muito bem recebidas pelo Carlos, amigo do Saulo, numa casa serena, de gente simples. Uma luz maravilhosa, silêncio, poucos carros, poucos turistas. Percorremos a ilha toda caminhando. Um dos lugares que mais me encantou foi a praia do Sancho. O acesso àquele lugar era feito através de uma passagem entre duas pedras, por meio de uma corda. A descida tinha que ser devagar, escorregando aos poucos. Quando chegamos, tive a impressão de que éramos as primeiras pessoas que caminhavam naquela praia numa enseada no meio das rochas. Silêncio e uma sensação de paz. Parecia ser o último paraíso na Terra, intocado. Muitas caminhadas, mergulhos no meio das cores da fauna marinha na praia de Atalaia. O morro Dois Irmãos onipresente na paisagem da ilha. As invasões de mosquitos à noite. A longa espera do avião da volta. Pingos de chuva. Vontade de ficar nesse paraíso verde azulado. Enquanto o mar se espraia num verde transparente e o silêncio é quebrado pelos poucos carros, vou me despedindo da ilha. Do verde, da calma dos dias, do silêncio das águas. Depois, Recife. Dija, teu riso bonito, tua força. Se encontrar nas esquinas, no sol de Olinda. Tiago, Recife e Olinda.

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Lisboa, 1986

Reencontrei Manuel. Foi bonito. Um encontro com muito vinho e jazz. Ruas de Lisboa na madrugada chuvosa. Pingos de chuva na calçada. Tuas mãos. A cidade branca. O castelo. Os comícios na rua. Andamos um pouco de carro pelas redondezas na primavera que se anunciava. Mostravas para mim, com teu olhar de poeta, os cantinhos, os detalhes de luz e sombra, uma janela colorida, uma porta, a cor do céu, um passarinho. Paisagens, castelos, janelas. Fomos até Évora, onde conheci Teresa, atriz de teatro, e seu sorriso doce de menina. Caras ingênuas, gentis, simpáticas. Doces maravilhosos. Depois, teu olhar azul. Um charo num hotel em Lisboa. Vinho, azeitonas, fados. Cafés e sanduíches. Uma grande mesa na cozinha. Calor e frio, chuva e sol. Sobrevoo Lisboa sem saber de onde parto e para onde vou. Os contornos se confundem. A Torre de Belém e a ponte me asseguram. Converso no avião com uma espanhola que viveu em Moçambique. Vim de Paris ontem. Falávamos de Florença e de ti. Ouvíamos jazz e pessoas bonitas circulavam na madrugada. De novo, partidas e chegadas. A viagem para o Cabo Verde começa cheia de promessas.

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Praia, Cabo Verde, fevereiro 1986

Eu tinha voltado de Brasília para o Rio. Tinha sido demitida e estava desempregada, fazendo bicos, dando um curso de vez em quando. Recebi um convite de uma ONG francesa para dar um curso no Cabo Verde por dois meses. Aceitei no ato. Passei um mês preparando as aulas. No início de dezembro, me enviaram a passagem Rio-Paris-Lisboa-Praia, capital do Cabo Verde. Chegando em Paris, conheci as pessoas da ONG que me contratou, PARIS-SUD-SUD. Recebi as instruções, o nome da pessoa que me esperaria no aeroporto, e embarquei para lá. Cheguei na Ilha do Sal, a porta de entrada do Cabo Verde. A primeira mostra que eu estava entrando na África foram as malas colocadas no chão, na rua, à entrada do pequeno aeroporto. A Ilha tem esse nome porque é grande exportadora de sal. Além disso, seu aeroporto é um hub entre a Europa, a África e a América Latina. Peguei outro avião com destino à Praia, capital das ilhas. No aeroporto, me esperava o Ministro da Saúde. Simpático e falante, ele me deu as boas-vindas com um sotaque português cantado e me levou ao hotel. Dormi doze horas. Na manhã seguinte, saí para conhecer a simpática cidadezinha localizada num planalto e rodeada de mar. Ao meio-dia, o ministro veio me buscar para o almoço. Lagostas e vinho branco. O país é um grande exportador de lagostas. Regalei-me com essa maravilha quase todos os dias, durante os dois meses que passei lá. 175


Como a cidade é pequena, eu era a novidade. Todo o mundo me cumprimentava nas ruas e nos cafés, me fazendo mil perguntas. Fala-se português e crioulo, a língua local, derivada do português. Alguns cooperantes estrangeiros, franceses, italianos e brasileiros. O embaixador do Brasil era uma pessoa muito simples e simpática. Jantei várias vezes na casa dele, onde conheci os brasileiros que viviam lá. Na segunda feira, fui apresentada às alunas, todas mulheres, secretárias de ministros. Tivemos uma conversa inicial. Tomamos café e trocamos histórias. Logo, senti que meu desconhecimento das novelas da Globo, exportadas para lá, seria um handicap. A conversa delas era entremeada pelas cenas das novelas que faziam sucesso. A rotina se instalou nos meus dias. No início do curso, quando as alunas não queriam que eu compreendesse o que falavam, conversavam em crioulo. Depois de algum tempo, entendia a língua relativamente bem. Elas gostaram do curso e eram aplicadas. Comecei a ser convidada para as festas que aconteciam todas as sextas e sábados, cada dia na casa de uma pessoa. As festas eram muito alegres. Aprendi rapidamente a dançar a morna e a coladeira, os ritmos locais. Algumas mulheres nas festas dançam e riem. Outras, ficam em casa porque são proibidas de sair pelos maridos. Se são vistas na rua à noite (todos se conhecem), recebem pancada em casa... Albertina, uma das melhores alunas do curso, chegava na sala de aula, toda a segunda-feira, com a cara inchada. Discretamente, perguntei a uma amiga dela, que me contou: o marido a proíbe de ir a festas. Depois que ele sai, ela sai também. Na volta, o marido bate muito nela. 176


Conversando com uma aluna numa situação dessas, trancada em casa, com um filho, que só sai de casa para trabalhar e fazer compras, me sinto impotente. O que dizer? Vai embora, foge, se ela não tem dinheiro nem para onde ir? Numa das muitas festas, conheci um psiquiatra brasileiro. Foi um encontro bonito, que se seguiu entre muitas conversas e carinhos. Chovia muito nesse dia. Ele me mostrou a cidade, as belíssimas praias de areia negra, os pores do sol à beira mar. Fazíamos passeios, olhando, a cada momento, o mar batendo na areia escura. A cidade tem sempre muita música. As aulas começavam, na segunda-feira, inevitavelmente, com conversas sobre as festas do fim de semana. Na sexta-feira à tarde, era difícil dar aula, porque todas falavam das festas que iriam acontecer. O mar, por uns dias sem sol. Histórias das mulheres cabo-verdianas, de machismos, como pano de fundo da alegria. Jantar com conhecidos, um deles, um moçambicano de passagem. Uma francesa simpática e risonha, um pouco fora do mundo real do Cabo Verde. Expectativas, trabalho, rotinas, surpresas. Encontros inesperados. Como a cidade é pequena, as pessoas me convidavam para um café ou uma cerveja o tempo todo. Sol no corpo. Encontro conhecidos na rua. As pessoas param para oferecer carona. Convites para o almoço. Um jeito calmo de viver. Roberto. Rosa. O começo do sábado. O barulho do mar. A espanhola faladora. Pedaços de vida. Romances. Fim de tarde. Uma norte-americana borrifa o ar com um spray cada vez que vê um mosquito. 177


Vontade de te mostrar esses homens bonitos, essa alegria das festas. Esse mar, por uns dias, sem sol. Por ser um país com poucos recursos, na época que estive lá, metade da população das ilhas tinha migrado para os Estados Unidos ou para Portugal. Quando viajavam com a família, colocavam tijolos nas janelas das suas casas, para que não fossem invadidas. Andando pela cidade, vi muitas casas assim. Os reflexos das montanhas ao longe. O silêncio e a calma da cidadezinha. Os barulhos da natureza. Os pássaros, os galos de manhã. As cores do sol. As descobertas. O mês de dezembro passou rápido. O curso tinha sido um sucesso até aquele momento. Fui passar os feriados de Natal em Paris e voltei em janeiro para concluir as aulas. Depois do final das aulas, fui conhecer as Ilhas do Fogo e São Felipe. Montanhas, vales, lavas enormes, uma floresta. A Ilha do Fogo tem esse nome por causa dos seus vulcões, um dentro do outro. Encontrei, no hotel, duas francesas que falavam sem parar. Janeiro chega ao fim. Na praia, muito vento. Fim de tarde. Um pôr de sol. Mais tarde, a lua cheia e o vulcão. No fundo, o balanço intenso das ondas. Somos poucos no hotel da ilha. Um americano e duas francesas. A Ilha Brava, em frente, envelopada numa nuvem. Meus olhos azuis de sol e mar. O silêncio do domingo à tarde. As francesas comem lagostas. Daqui a pouco, o motorista vem me buscar para um passeio no norte da ilha, onde vou ver o mosteiro e o monte Genebra. Um vento doce me acaricia. Jorge Bem ao fundo. Esta manhã andei nos vulcões. Lavas e casas negras de fuligem. 178


Lá em cima, o olhar calmo dos habitantes de um canto perdido do mundo, no meio da lava negra, com o verde do mar ao fundo. Silêncio no final da tarde e todo o cansaço do mundo. À minha frente um pôr de sol. Atrás, a Ilha Brava. Mais tarde, a lua cheia e o vulcão, imenso. No fundo, o barulho das ondas. Mais uma vez meus olhos surpresos fotografam as encostas estriadas do vulcão, a montanha sem cabeça. A paisagem negra no fundo da cratera. Brava, as montanhas da Ilha de Santiago. Ao longe, nos dias claros, dá para ver as ilhas de São Nicolau e Santa Luzia. O desenho dos guarda-sóis laranjas com o mar ao fundo lembram um quadro de Hockney. Ouço Beethoven. Charlotte, teu riso, daqui a pouco, na Esplanada, o centro da cidadezinha. Salada, queijos e vinhos na noite fresca. A calma da cidade pequena. O funaná. Violas, cheiro de mar. Uma menina vestida de rosa com um laço na cintura. A calma das ilhas e das pessoas. A música onipresente. No meu ouvido, mornas na madrugada com cheiro de linguiça no pátio da casa do Johnson. Um belga, com seu chapéu de palha, conversa com o piloto ao lado do avião. A menina de azul, babados e chapeuzinho rosa. Martine, Claire, Annie e Luís. O cavaquinho do velho desafinando mornas. Histórias da Albertina. Algumas festas depois e uma prova final, deixei o Cabo Verde, novamente, em direção a Paris. Na despedida, ficou um gosto de quero mais, o canto da língua crioula, o som alegre das músicas. No meu olho, as cores do mar, os risos, a música, a simpatia e o carinho das pessoas, a calma da cidadezinha. 179


Voltando para Paris

Chegando em Paris do Cabo Verde, a temperatura era menos cinco. Descendo do táxi, em frente à casa da Marie Laure, pisei em uma poça gelada. No dia seguinte eu tinha febre alta. O Philippe me levou ao hospital. Depois da consulta, me disseram que eu tinha uma infecção e teria que ficar internada. No hospital, entre os muitos exames, eu recebia visitas do Iuli, da Marie Laure, do Philippe, da Miriam Motta, do Brás e do pessoal da associação que tinha me contratado. O diagnóstico foi hepatite. Voltei para a casa da Marie-Laure e do Philippe. Eles moravam num apartamento pequeno. Como eu precisava ficar um mês de repouso, minha presença lá ficou inviável. A Marina, que tinha um apartamento grande em Roma, me ofereceu hospitalidade. Peguei um avião para lá.

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Roma, 1986

Em Roma eu passava os dias deitada, lendo ou escrevendo, e olhando o início da primavera romana pela janela. Francesco vinha de vez em quando me ver, tomar a temperatura e, depois do jantar, punha um disco e me convidava para dançar. Eu protestava, dizendo que tinha que fazer repouso. Ele me respondia: o médico sou eu. Não faz mal um pouco de exercício. Cíntia passava para ver se eu precisava de alguma coisa. Tomávamos um café juntas. Alice, nos seus 10 anos, me olhava de longe, sem entender por que eu não podia passear com ela. Vai chover. Fim de tarde. Na sacada, olho a vida do bairro. Mulheres com crianças indo para o parque. O carteiro, as primeiras roupas da primavera, o La Repubblica todas as manhãs. Roma, da sacada, tem um ar familiar. Uma velha senhora passa com seu bolo. Domingo. Lembramos uma noite de lua em Ponta do Ouro, Moçambique. Nilson, Manuel, eu e tu. Uma grande lua no céu, enquanto trocávamos histórias, silêncios, charos e poesias. Aquela fazenda de café com o Kilimanjaro ao fundo nos lembrou um romance de Hemingway. Eu tinha torcido o pé e não pude subir o Kilimanjaro, mas me encantava com aquela beleza enorme e branca ao fundo da cidade. Passei em Roma um mês em quarentena, até um exame mostrar que eu estava curada. Fim de tarde. Saio andando com o mapa na bolsa. Caminhar nas ruas pela primeira vez. Sentir a primavera.

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Porto, voltando de Roma

Primavera e calor numa tarde de sábado. Almoço com teus olhos risonhos de menino e com tuas mãos secas e carinhosas. Estou virada para o rio. Numa tasca tosca, bebemos vinhos à nossa saúde. Foi o começo de um dia lindo, de uma embriaguez sem fim. Éramos ainda a novidade do reencontro, para as nossas mãos, nossos corpos, nossos olhos. Falávamos sem parar, lembrando Maputo, Marina, Nilson, Alice. Fomos crianças naquela tarde. Visitamos a cave do homem da capa preta. Fingimos ser franceses entre risos disfarçados. O Porto nos mostrou suas ladeiras, suas roupas estendidas, suas lavadeiras, suas tascas. Seus mercados, seus cafés de estudantes. Andamos de bonde, eu já bêbada, depois da cave do homem da capa preta, segurava tuas mãos, te beijava, te acarinhava. Tu, meio ansioso e envergonhado, não sabias o que fazer. O bondinho nos levou a um doce pôr do sol. Num fim de linha do bonde, alguns velhos conversavam em bando, com aquele olhar calmo e corado (minha câmera guarda a foto dos velhos portugueses, todos de costas para o mar numa amurada, conversando no fim da tarde). Terminamos o pôr de sol com mais porto no Jardim do Solar, com a ponte, o mar ao fundo e a cidade vermelha e dourada. As cores mudavam nos nossos olhos cheios de vinho. Lembramos mais histórias de Maputo, de Marina, de Alice. Procuramos um hotel, mais bêbados, rindo e falando sem parar. Tu, com teu fôlego sem fim, ainda querias ir ao teatro e a um bar no centro. 182


Foi um daqueles dias cheios de momentos. De guardar no fundo do olho o pĂ´r de sol na ponte, tuas mĂŁos secas, teus olhos risonhos de menino-moleque. Um copo de porto.

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Bireme

Quando eu estava em Roma, me curando da hepatite, recebi um telefonema de São Paulo me oferecendo trabalho na Bireme – Sistema de Informação em Saúde da América Latina. Cheguei no Rio, onde estavam as minhas coisas, e viajei em seguida para São Paulo para conversar com o diretor daquela instituição. O salário era razoável. Eu deveria chefiar uma equipe de trinta pessoas, que trabalhavam nos serviços da Biblioteca do Sistema. Nunca gostei muito de ser chefe. Mas eu estava voltando ao Brasil depois de seis meses e não tinha trabalho. Não gostava muito da ideia de ir morar em São Paulo. Passei uns dias pensando e finalmente aceitei. Trouxe meu fusquinha do Rio, encontrei rapidamente um pequeno apartamento num lugar simpático da cidade e mudei para lá. Fiquei cinco anos na Bireme, entre greves por melhores salários, reuniões com funcionários, cursos, viagens e visitas a bibliotecas. Os dias eram monótonos, mas, quando era possível, no final do dia, eu ia a um cineminha. Fiz alguns amigos, com os quais ia almoçar e tomar café. Com exceção de alguns homens que trabalhavam na seção de informática, minhas amigas eram todas secretárias dos diversos departamentos da Bireme. As bibliotecárias de lá eram, em sua maioria, mulheres de médicos, quase todas dondocas de cabeça oca. Eu não tinha muito o que conversar com elas. Além disso, eu era a única bibliotecária que fazia greve. De vez em quando, aconteciam festas e almoços simpáticos na Bireme. Mas aquele lugar tinha um clima de 184


competição, um incentivo à excelência que me cansava. Naqueles cinco anos em que estive lá, nunca me senti fazendo parte daquele lugar. Além disso, tive lá dois carros roubados, um fusquinha e um Gol. A Escola Paulista de Medicina, onde funcionava a Bireme, e os muitos consultórios que existiam na região atraíam roubos. Eu já estava procurando outro trabalho quando soube da abertura de concurso para professor na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, na minha área de atuação. Passei no concurso e, seis meses depois, fui chamada para trabalhar lá. Terminou, naquele momento, minha temporada paulistana.

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ABECIN

Comecei a fazer parte da Associação Brasileira de Educação em Ciência da Informação – Abecin quando voltei da França, onde tinha ido fazer o doutorado. A primeira reunião da qual participei, aconteceu em Rio Grande, no extremo sul do Rio Grande do Sul. Era o mês de julho de 2000. Aquela reunião foi meu primeiro contato com os professores da Associação. O evento era pequeno, éramos cerca de quinze pessoas de universidades do sul do Brasil, alguns dos quais eu conhecia de Porto Alegre. As reuniões aconteciam em um hotel na praia do Cassino, onde estávamos hospedados. Essa praia tem 22 km de litoral completamente reto e é considerada uma das maiores do mundo. As luzes do inverno e aquela imensidão lhe dão um toque todo especial. Antes da reunião, eu sempre dava uma caminhada à beira-mar, aproveitando para sentir a maresia e apreciar as cores hibernais. Permaneci por cerca de dez anos nesta associação, onde tive várias funções. Também participei, algumas vezes, como representante da Abecin nas reuniões das escolas de Biblioteconomia do Mercosul para discutir um currículo comum. Fui a reuniões em Montevidéu, Buenos Aires, Mar del Plata, Valparaíso, Assunção, entre outras. Lembro perfeitamente da reunião de Montevidéu. Tínhamos chegado no Uruguai num sábado de manhã. Deixamos nossas malas no hotel e saímos para caminhar eu, Mara, e José Augusto. Depois do almoço, entramos numa confeitaria, onde tinha um pequeno conjunto musical. A primeira música que 186


tocaram foi uma milonga. Apesar do espaço ser pequeno, um casal começou a dançar. Em seguida, eu e o José Augusto fizemos a mesma coisa. Descobri que ele era um ótimo dançarino e ficamos dançando durante algum tempo. Era absolutamente surreal para mim, dançar às três da tarde de um sábado numa confeitaria. Várias outras duplas foram para a pista e o ambiente da confeitaria virou uma festa. Ficamos lá até o conjunto terminar de tocar. A vida noturna de Montevidéu é bem animada. Durante aqueles dias, eu e vários colegas saímos para dançar em bares da cidade. A próxima reunião das escolas do Mercosul foi em Assunção, no Paraguai. Quando chegamos, a Mara precisava ir a um shopping para comprar alguma coisa que tinha esquecido e fui com ela. Quando entramos lá, vimos vendedores ambulantes com suas mercadorias espalhadas no chão em frente às lojas em todos os andares do shopping, uma visão insólita de um mercado dentro do outro. Assunção é uma cidade feia e com poucos atrativos. Uma noite, fomos jantar num restaurante afastado do centro. Quando chegamos, vimos uma cena hilária: um conjunto tocando com uma tv no palco. Era a hora do jogo de futebol e os músicos não queriam perdê-lo. Então levaram a tv para o cenário. Participei também de um encontro em Viña del Mar, no Chile. Já tinha ido à Valparaíso e Viña, com Soledad e José, nos anos 70, quando conheci o Chile. Naqueles dias do nosso encontro, fazia muito frio. As reuniões aconteciam em Valparaíso, que fica ao lado de Viña. Nunca esqueci a vista maravilhosa daquela cidade com 187


casinhas coloridas na montanha. Lá do alto, podia-se ver grande parte do litoral sul do Chile. A comida era muito boa, com vários frutos do mar que eu não conhecia. Um professor espanhol, que havia sido convidado àquela reunião, teve uma participação ridícula. Todos os dias, chegava com uma professora, sua colega, que o acompanhava somente para carregar suas coisas. Ela não participava das discussões e ficava sentada ao lado dele, sem dizer nada. Quando ele se levantava, ela pegava a pasta e os documentos que ele tivesse na mão e os carregava. Nunca tinha visto um machismo tão explícito. Fiquei mais um dia em Viña para conhecer melhor Valparaíso. Como todos os dias de reuniões alguém nos buscava de carro, eu não sabia como ir. Quando perguntei na portaria do hotel, tentaram me dissuadir do passeio, dizendo que Valparaíso era uma cidade muito violenta. Fui mesmo assim e não encontrei nenhum problema. Lembro que subi até o topo da cidade de elevador e desci caminhando devagar. Quando estava no alto, vi um senhor, com cerca de 70 anos, subindo aquelas ruas íngremes, carregando um carrinho cheio de peças de artesanato que iria vender em uma das praças da cidade. Quando passei por ele, lhe perguntei onde ficava um centro de artesanato que eu estava procurando. Parou para me dar a informação e ficamos conversando. Ele fazia aquele trajeto com o carrinho todos os dias pela manhã, com uma agilidade incrível. Fui com a Dada mais uma vez à Viña no início de 2000. Andei muito pela cidade, visitei as livrarias, fui a um dos parques e descobri vários cafés simpáticos. A Dada estava dando um curso de Acrobacia Aérea. Nos encontrávamos todos os dias para almoçar e à noite. 188


Estávamos alojadas numa pousada muito simpática num lugar alto, onde se tinha uma linda vista da cidade. Viña tem um litoral rochoso e recortado, muito bonito. O mar é gélido. No fundo do meu olho, guardo uma imagem de Soledad e José, sentados no alto da cidade, conversando e olhando aquela paisagem azul calma.

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Le Lapin Agile, anos 90

Meu irmão Liberato foi, com sua mulher, Flávia, passar uns dias em Paris na época em que eu morava lá. Passava o seu tempo visitando os lugares míticos da “geração perdida”: a Closerie des Lilas, um café perto de Étoile, que o Scott Fitzgerald frequentava, o Deux Magots e o Café de Flore, entre outros. Um dia, me pediu para ouvir música tradicional francesa. Levei-os ao Lapin Agile, o cabaré mais antigo da cidade, fundado em 1860. Esse lugar foi frequentado por Picasso, Maupassant e Brassens, entre outros. Passamos uma noite muito agradável ouvindo canções francesas e bebendo a tradicional cerise à l’eau de vie, o coquetel típico do lugar. Acho que acertei em cheio. O Liberato ficou fascinado pelo ambiente. Cantou, conversou com as pessoas que estavam na nossa mesa, observou o público e tomou notas para uma crônica. Liberato voltou várias vezes a Paris. Cada vez que ia, tinha seu ritual: sentava-se, todas as tardes, num café para escrever na companhia de um bom vinho. À noite, eu me encontrava com ele para jantar e o apresentava a um de meus amigos. Lembro de uma noite agradável que passamos na rue de Javel, onde eu morei por um tempo. Além deles, convidei a Marie-Laure, o Philippe e a Charlotte. Passamos um momento simpático, entre queijos e vinhos. Nos encontramos, algumas vezes, no final da tarde, no Sarah Bernhardt, um café ao lado do Théâtre de la Ville, para tomar um vinho ou escolher um restaurante para jantar. O Liberato e a Flávia voltaram para o Brasil no dia da “Fête de la Musique”, que inaugura o verão em Paris, com 190


música em toda a cidade. Quando entramos no táxi em frente ao hotel, um pianista tocava as primeiras notas de “La vie en rose” na esquina da avenue des Gobellins.

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Île de Ré, anos 90

Em um agosto qualquer dos anos 90, fui com o Iuli passar um longo final de semana na Île de Ré, no oeste da França, em frente a La Rochelle. Fomos recebidos na casa de Jacques e Helène, amigos do Iuli, numa casa simpática a um quilômetro de uma das praias da ilha. Nosso dia a dia começava com um lauto café da manhã na varanda, com Sonny Rollins ao fundo. Saíamos depois para uma das muitas praias, munidos da parafernália de guarda-sóis, cadeiras e brinquedos para o Thomas, o bebê da família. Depois dos almoços, feitos, em geral, pelas mãos mágicas do Iuli e regados a bons vinhos, saíamos, eu e ele, de bicicleta para descobrir a ilha. No final do dia, tomávamos o aperitivo na varanda da casa, ouvindo jazz. Depois, saíamos para jantar num restaurante. O Iuli, com seu temperamento agitado, queria estar sempre em movimento e me convidava para conhecer um forte, ir ao porto, visitar o estuário das baleias, fumar um cigarrinho. Nunca pedalei tanto. Nos nossos passeios de bicicleta, quando eu conseguia alcançá-lo, ele partia de novo como uma bólide em direção à próxima meta. Na sua curiosidade de sempre, queria percorrer a ilha toda em três dias. Foi um fim de semana simpático. Não lembro se conseguimos conhecer a ilha toda ou se eu desisti na metade. Sei que foram dias alegres, ensolarados, com o Sonny Rollins nos acompanhando e o sorriso do Thomas ao nosso lado.

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Santorini, 1998

Eu tinha acabado de depositar minha tese para a banca. Tinha que esperar o parecer de dois relatores, o que é exigido na academia francesa para fazer a defesa. Resolvi passar uma semana em Santorini, na Grécia para relaxar um pouco. Fui em um voo charter por uma semana. Eu precisava estar às cinco da manhã em Orly. Quando cheguei lá, não tinha ninguém no balcão da Olympic Airways, a companhia aérea pela qual iria viajar. Depois de alguns telefonemas, me dei conta que o voo sairia do Aeroporto Charles de Gaulle. Perdi a viagem. Consegui transferir meu voo para o dia seguinte. Fiz outra madrugada e, finalmente, cheguei em Santorini no final da manhã. Essa ilha faz parte das Cíclades. Foi devastada por um vulcão em 16 a.c., o que a deixou com o formato de lua crescente. Tem duas cidadezinhas, Fira e Oia, que ficam no alto da montanha, acima da cratera submersa. A posição geográfica de Oia, num dos extremos da ilha, proporciona um lindo pôr do sol. A vista dali é um sonho. Abaixo, a cratera. Nos caminhos da montanha, burrinhos carregados, conduzidos por pastores. Mulheres de preto. Ao longe, pequenas ilhas. Depois de um soninho reparador, fui explorar a ilha. Montanhas, as tradicionais casinhas azuis e brancas e o mar azulão ao fundo. A simpatia e o charme dos gregos. Passei uma semana visitando templos, praias de seixos pretos, fotografando, lendo, tomando ouzo, conversando com as pessoas nas praças.

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Zaragoza, 1999

O Departamento de Ciência da Informação da Universidade de Zaragoza, na Espanha, organiza, todos os anos, um congresso de documentação. Fui algumas vezes lá apresentar trabalhos. Nessa época, era um congresso pequeno, muito agradável, com espaço para discussões. Os palestrantes ficavam hospedados todos no mesmo hotel e faziam as refeições juntos. Esse ambiente nos dava a oportunidade de conversar e fazer planos em conjunto. Permitiu também uma cooperação entre universidades brasileiras e a de Zaragoza, além de nos dar a oportunidade de fazer ótimas amizades. A primeira vez que eu fui, em 1999, desembarquei em Madrid e fiquei o dia inteiro no aeroporto, esperando por um voo para Zaragoza. Cheguei lá às dez da noite, exausta. O cansaço da viagem internacional, somado à longa espera no aeroporto, acabaram com as minhas energias. Chegando ao hotel, fiquei sabendo que minha reserva era para o dia seguinte e eles não tinham um quarto disponível para aquele dia. A pessoa que me atendeu conseguiu, depois de vários telefonemas, um quarto para mim num hotel no centro da cidade. Cheguei lá à meia-noite em um estado lamentável. Dormi doze horas. No dia seguinte, deixei minha mala no hotel e saí para caminhar. Zaragoza é uma cidade plana, de tamanho médio, o que permite fazer quase todos os trajetos a pé. Tem tons de marrom e bege, o que lhe dá um ar sisudo. As pessoas são muito gentis e a comida, ótima. Estávamos no início de outubro e a temperatura era amena. Aproveitei o primeiro dia para 194


andar pelo centro, entrar nas principais igrejas e no palácio da Alfajeria, depois sentar-me em um dos muitos cafés para ver a cidade em movimento. Para mim, os cafés são um ótimo espaço para sentir a temperatura de uma cidade, sua pulsação, observar as pessoas e conversar, eventualmente, com alguém. Quando o congresso começou, encontrei vários colegas brasileiros que eu já conhecia. Fazíamos todas as refeições juntos em ótimos restaurantes escolhidos pelo Javier, o professor que organizava o congresso, o que permitiu um ambiente muito agradável. No final da tarde, depois de findas as sessões de trabalho, fazíamos, quase todos os dias, uma visita a algum ponto da cidade, sempre com um ótimo guia. Aquela cidade foi, por algum tempo, meu destino anual para apresentar trabalhos e participar de mesas. Depois de Zaragoza, eu sempre passava em Paris ou Madri. Fiz vários amigos lá, como a Carmen e o Javier, organizadores do congresso. Ambos vieram algumas vezes a Floripa ministrar cursos na UFSC.

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Havana, 2000

Fui apresentar um trabalho num congresso em Havana no ano 2000. Na viagem de ida, encontrei com a Marta e a Patrícia, professoras de cursos de Biblioteconomia do Paraná. Ficamos alojadas num ótimo hotel, onde se realizava o Congresso. Quando cheguei no quarto, encontrei, em cima da cama, um bilhete da camareira se apresentando e pedindo pasta de dentes, sabonete e qualquer coisa que eu pudesse deixar para ela. Nessa época, faltavam muitas coisas em Cuba. Largamos as malas e fomos dar uma volta na parte restaurada da cidade velha. É um belo conjunto arquitetônico de pequenas casas, praças e muito movimento na rua. Os cubanos são alegres e expansivos. Música para todo o lado. Uma das coisas que me chamou a atenção quando cheguei foram os carros dos anos 50 e 60, relativamente bem cuidados, andando pela cidade. Os táxis faziam viagens coletivas. Fizemos algumas e conversamos com os cubanos que estavam no carro. Apesar das dificuldades do dia a dia, ninguém falou mal do governo. Fomos visitar uma das fábricas dos célebres charutos cubanos. As operárias que enrolavam os charutos eram todas mulheres. O cheiro era maravilhoso. Andamos pelo Malecón, a avenida beira-mar. É um dos centros nevrálgicos de Havana, onde se encontra gente pescando, namorando e conversando. Fomos também comer na Bodeguita del Medio, frequentada por Hemingway e outros escritores e atores. A comida é excelente, assim como o mojito. Sempre tem música ao vivo. Este restaurante ficou fechado por muito tempo depois da revolução. Allende foi um dos responsáveis por sua 196


reabertura. Suas paredes são cheias de fotos. Uma delas traz Fidel e Hemingway juntos. Quando andávamos pela rua, sempre apareciam meninos que nos guiavam pela cidade para ganhar gorjetas. Quando eles falavam, dava para ver que sentiam orgulho do seu país e conheciam bem sua história. Eu tinha esquecido de levar minha escova de dentes. Tive que percorrer umas dez farmácias até conseguir uma. Quase todas as mercadorias, naquela época, tinham dois preços: um para os turistas, em dólares, e outro para os cubanos. Um dos restaurantes do nosso hotel era reservado aos turistas. Os cubanos só podiam entrar se fossem convidados. Apesar de estarmos num hotel luxuoso, o cardápio apresentava sempre um menu fixo e a comida variava muito pouco. Quando fomos visitar a Reitoria da Universidade, nos mostraram o salão de atos onde se realizavam as principais cerimônias. Ali, Fidel tinha uma cadeira especial. Lembro que, quando os cubanos se referiam a ele, o tratavam sempre com muita deferência, como se fosse um deus. O congresso foi muito bom. Os cubanos apresentaram ótimos papers e as discussões foram bem animadas. Fiquei impressionada com o nível dos alunos. Fomos, um dia, a Varadero, uma das praias cubanas mais conhecidas. A praia tinha areia bem fina e águas azul-turquesa transparentes. Estávamos caminhando à beira-mar quando um grupo de rapazes chegou perto de nós e nos perguntou se queríamos almoçar num “paladar”. Aceitamos e fomos comer lagostas grelhadas no pátio da casa de um deles. A comida excelente foi acompanhada por muito rum. Passamos uma tarde agradável. 197


Um dia fomos, cerca de vinte latino-americanos, convidados a jantar na casa de uma professora cubana. Levando-se em conta a realidade do país, passamos antes num supermercado e compramos salgadinhos, vinhos e queijos para reforçar o jantar. Quando chegamos, em cima da mesa, havia apenas uma grande travessa de pipoca e rum à vontade. Nossa ideia de passar no supermercado tinha sido acertada. No apartamento, não tinha água corrente. No banheiro, a água estava armazenada em bacias e baldes. Os cubanos nos falaram muito do seu “período especial”, a época da grande crise econômica pela qual o país passou depois da implosão da União Soviética, com escassez de comida e de combustíveis. Ao longo das ruas de Havana, vimos cartazes elogiando a revolução, com a figura do Fidel, do Che e de outros dirigentes. Visitamos algumas feiras de artesanato com lindos objetos. Tenho uma caixinha de madeira em marchetaria que trouxe de lá. No último dia, fomos a um coquetel num lindo palácio à beira-mar. Parecia um cenário de filme, com os garçons de libré circulando pelo salão. Os salgadinhos que serviram, acabaram logo. Quando passava uma bandeja, se a gente não estivesse por perto, ficava sem comida. Em compensação, os mojitos corriam soltos. Quando fui embora, deixei algumas roupas para as camareiras do hotel. Na viagem de volta, ficamos contando, uns para os outros, histórias da nossa estadia lá. Como os voos de e para Havana eram semanais, a maioria dos brasileiros voltou junto. Alguns professores cubanos vieram ao Brasil 198


algumas vezes depois desse congresso, para dar aulas ou para algum evento. Deixei Havana, levando comigo o gosto dos mojitos, o som das músicas, o riso dos cubanos e das crianças.

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Puebla, 2002

Fui convidada a dar uma palestra num congresso de Ciência da Informação em Puebla, no México, em 2002. Quando cheguei na cidade do México, uma professora estava me esperando e me levou para Puebla. Fiquei hospedada numa residência universitária, dentro de um lindo bosque. Lembro que, todos os dias, depois de tomar café, ia caminhar no bosque. Puebla é uma cidade no centro do México. É considerada patrimônio da humanidade pela Unesco. Tem quatro vulcões ao seu redor e inúmeras igrejas. Uma de suas principais atrações é o Callejon de los Sapos, um conjunto de ruas do centro, onde acontece, nos finais de semana, uma feira de antiguidades e artesanato. É um lugar bonito, com casinhas coloridas, cafés, bares e restaurantes, casas de artistas e artesãos. É fácil conversar com as pessoas de lá, abertas, simples e muito gentis. Sua universidade é uma das mais importantes do México. Puebla é também uma cidade cheia de lendas. Depois do congresso, fiquei uns dias lá para conhecer melhor a cidade, andar à toa, entrar nos cafés, visitar algumas igrejas. No último dia, fui com dois professores para a cidade do México. Quando lá cheguei, me senti um pouco desambientada naquela cidade enorme e barulhenta. Aos poucos, comecei a me deslocar, fazer muitas caminhadas, conhecer o famoso Museu de Antropologia, o Palácio de Bellas Artes e o Museu Diego Rivera, entre outros. No dia seguinte fui com um grupo de pessoas conhecer a Pirâmide de Teotihuacan, um colosso arquitetônico cheio de história. Subi na pirâmide bem devagar para não escorregar nos estreitos degraus. Estava com uma professora chilena muito simpática. 200


Não consegui conhecer, naquela vez, a Casa Azul da Frida Kahlo, mas isso é outra história. Voltei, depois de alguns anos, para uma reunião com colegas da América Latina, quando consegui visitar a Casa Azul. Andando pela cidade do México, as ruínas das várias civilizações que povoaram a cidade, olmecas, astecas, toltecas e maias, estão por toda a parte. Saí de lá com vontade de voltar.

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Atoladas na areia, Florianópolis, 2005

Viviane, era professora da Université Paul Sabatier, de Toulouse. Veio a Florianópolis para discutirmos um convênio entre a UFSC e a sua universidade. Era a primeira vez que ela vinha a Florianópolis e ao Brasil. Estava deslumbrada. Queria conhecer todos os cantos da ilha. No final de uma manhã, depois de uma reunião, saímos, eu e Edna, para mostrar as praias do leste para ela. Passamos pela Lagoa, onde tomamos um café. Depois, subimos o morro da Praia Mole, passamos pelo mirante da Lagoa e seguimos em direção à Praia de Moçambique. Para entrar nessa praia é necessário pegar um dos muitos caminhos de areia que saem da estrada principal. Inadver‑ tidamente, entramos no caminho errado e o carro da Edna atolou. Pedimos ajuda para um senhor que vinha passando e ele chamou uns amigos. Tentaram desatolar o carro, mas foi impossível. Era meio-dia, o sol estava forte e, no lugar onde estávamos, tinha apenas uma pequena sombra. Contatamos o seguro, que levaria uma hora ou mais para nos resgatar. Viviane não estava habituada a um sol tão forte e começamos a ficar preocupadas. Apesar de tudo, ela levou aquela aventura inesperada com humor. Quando vimos que a demora seria maior do que o normal, que a Viviane estava mostrando sinais de desconforto e estava ficando vermelha com o sol, ligamos para a Estera, uma colega, que veio buscá-la. Eu fiquei fazendo companhia à Edna, esperando pelo guincho, que demorou mais uma hora para chegar. 202


Depois dessa passagem por Floripa, encontrei Viviane muitas vezes no Brasil ou na França em congressos ou reuniões. Sempre que ela encontrava comigo, lembrava daquela história. Ela nunca esqueceu daquela aventura numa manhã quente e cheia de areia em uma ilha no sul do Brasil.

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Santiago de Compostela e La Coruña, Espanha, 2006

Fui convidada para fazer a conferência de abertura de um Congresso em Santiago de Compostela no início de 2006. Desembarquei em Madrid por volta do meio-dia. Meu voo para Santiago sairia só à noite. Meu amigo Carlos Tejada, professor da Universidade Carlos III, foi gentilmente me buscar no aeroporto e me levou para almoçar. Andamos um pouco pela cidade, tomamos um café e fui até à casa dele dormir uma sesta. No início da noite, ele me deixou no aeroporto. O voo para Santiago estava muito atrasado. Desembarquei às onze da noite e minha mala não apareceu. Depois de algum tempo, um funcionário da Ibéria me trouxe a mala, rasgada, com o fecho rebentado. Apesar disso, não faltava nada. O funcionário que me atendeu informou que eu receberia uma mala nova dentro de dois dias. O pessoal que organizou o congresso tinha me reservado um hotel muito simpático no centro da cidade. Santiago é o ponto de chegada do famoso Caminho de Compostela, uma rota milenar de peregrinação, considerada o Primeiro Itinerário Cultural Europeu e Patrimônio da Humanidade. A maioria das pessoas faz a caminhada com um propósito religioso. Outras por curiosidade. A peregrinação termina na Catedral de Santiago, onde se encontra o túmulo do profeta Santiago Maior. Andando pela cidade, encontrei, todo o tempo, peregrinos de todas as idades com mochilas e cajados. É uma cidade pequena e agradável, cheia de ladeiras, com ótimos restaurantes e cafés. É a capital da Galícia, uma província do norte da Espanha. A língua falada é o galego, derivado do português 204


no século XIV. Quando eu estava preparando minha apresentação, perguntei a eles em que língua eu deveria falar. Português, me disseram. Nossas línguas são muito próximas. Eu conseguia entender perfeitamente as pessoas. O congresso foi realizado na Universidade de Compostela, fundada no século XV. Assim que terminou, fui convidada por um dos professores para conhecer La Coruña. Fui até lá, num sábado, almoçar com um grupo de bibliotecários. Cheguei por volta das 10 horas. Tiago, professor da Universidade, estava me esperando na estação de trem. Demos uma volta no centro. Ele me mostrou alguns belos monumentos. Depois, fomos para um dos cafés e ficamos conversando. La Coruña fica no litoral da Galícia e é a maior cidade da província. É chamada de cidade de cristal, por suas belas sacadas de madeira e vidro à beira-mar. A cidade tem muitas tavernas e cafés, sempre cheios e animados. Os habitantes de La Coruña são boêmios e alegres. Imagino que a presença constante do mar contribui para isso (La Coruña fica numa península, onde o mar está sempre presente). O almoço com os bibliotecários foi muito simpático. Começou às duas horas e foi até as cinco. As refeições dos espanhóis são sempre longas, cheias de histórias e muito riso à medida que as garrafas de vinho vão se esvaziando. Passei a noite num hotel do centro da cidade e, na manhã seguinte, voltei para Santiago de Compostela, onde cheguei por volta do meio-dia. Naquele dia, eu era convidada para um almoço na casa de Isabel, uma bibliotecária da Universidade. Conheci sua família e depois fizemos uma caminhada pelos 205


arredores. Além do almoço delicioso, a Isabel me ofereceu vários livros e alguns discos. Foi uma tarde muito simpática. Voltei no dia seguinte para Madri tendo no fundo do olho a visão do mar de La Coruña, os lindos prédios e as pessoas simpáticas.

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Um congresso sui generis em Atenas, 2006

Fui apresentar um trabalho em Atenas, em agosto de 2006. O congresso, apesar de internacional, tinha cerca de dez pessoas, todas palestrantes e alguns alunos que pareciam ter sido recrutados na última hora. Os gregos estavam tentando divulgar a pesquisa em Ciên‑ cia da Informação no seu país e aquela foi a primeira tentativa. Foi muito agradável participar de um congresso “inter‑ nacional-doméstico”. Nosso grupo se compunha de uma sul-africana, um nigeriano, um inglês, uma francesa, uma holandesa, duas norte-americanas, dois gregos e eu. Ouvimos a nós mesmos todos os dias de manhã. Cada trabalho era seguido de pouca discussão. O melhor, como em quase todos os congressos de que participei, eram as conversas na hora do café, onde conheci um pouco das discussões da minha área em vários países, mas principalmente a vida dos professores que ali estavam. Todas as tardes fazíamos um passeio pela cidade com um historiador. Andávamos a pé conhecendo as muitas preciosidades de Atenas. Subimos na Acrópole, tomamos deliciosas retzinas em Plaka, o bairro dos deuses, o mais antigo e boêmio da cidade. Em todos os lugares, conhecemos um pouco da história daquela cidade milenar, que nos foi apresentada pelo nosso excelente guia. Foi uma delícia caminhar pelas ruas da cidade, parar num dos muitos anfiteatros, entrar no Partenon, caminhar pelas ruínas da Acrópole, com aquela vista fantástica da cidade ao redor da montanha. Imaginei a Dety, minha irmã, que foi apaixonada pela vida dos gregos antigos, andando ali comigo. 207


No último dia do congresso, um sábado, faríamos uma excursão pelas ilhas próximas. Como iríamos visitar três ou quatro ilhas numa tarde, descendo e saindo de um barco, sem poder olhar as coisas devagar, desisti de ir. Passei o dia caminhando pela cidade à toa, uma das melhores coisas a se fazer num lugar que a gente conhece pouco. No final da tarde, quando eu voltava para o hotel, encontrei um senhor, de cerca de 60 anos, que tocava um violão maravilhoso numa praça. Ao seu lado, um chapéu para moedas. Parei para ouvir a música. No final do recital, ficamos conversando. Ele trabalhava numa orquestra e tinha sido despedido. O concerto diário nas ruas era o seu ganha-pão naquele momento. A Grécia vivia mais uma de suas muitas crises econômicas, consequência das absurdas regras de austeridade da União Europeia, que levaram o país ao desemprego e à ruína de muitas pessoas. Depois do congresso, eu queria passar uns dias numa das ilhas, para olhar aquele mar azulão devagar, andar à toa, mergulhar, ler. Uma pessoa que trabalhava no hotel me indicou a ilha de Agistri, perto de Atenas e relativamente calma. Estávamos no mês de agosto, o mês de maior turismo na Grécia e eu temia as hordas de viajantes. A indicação foi perfeita. Fiquei numa pousada, numa pequena colina ao lado do mar. A ilha era pequena e dava para fazer quase tudo caminhando. A grande maioria dos turistas era grega. Estavam espalhados pelas muitas praias da ilha. Passei cinco dias de sol e mar, caminhando, visitando alguns monumentos, conversando com algumas pessoas, lendo e fotografando. 208


Lembro de uma praia que ficava numa pequena enseada ao sul da ilha, no meio das árvores. Um pequeno quiosque, mesinhas de madeira e um cartaz enorme: “Desligue o seu celular. Converse com as pessoas, aproveite este instante.” Passei ali uma tarde tranquila, lendo, entrando e saindo da água. Por todo o lado, as conversas e os risos naquele cenário bucólico. A milenar arte do bem viver.

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Lençóis Maranhenses, 2015

Chegamos em São Luís, eu e a Dada, na tarde de uma sexta-feira de fevereiro, uns dias antes do carnaval. Tínhamos planejado passar o fim de semana lá. Ficamos num hotel perto de uma praia meio sem graça, mas lotada. Pegamos um táxi até o centro da cidade e ficamos caminhando por lá. Naquele momento, o centro tinha um ar desolado. A maioria das casas estava em ruínas. Almoçamos por lá, demos mais uma volta e seguimos para o hotel. Decidimos ir para os Lençóis no dia seguinte. Pegamos uma van e três horas depois estávamos em Barreirinhas, uma das cidades que dão acesso aos Lençóis. É um lugar pequeno e calmo com vários hotéis e pousadas. As visitas ao parque são sempre monitoradas para garantir a preservação da natureza. Ninguém pode ir sozinho. Todos os dias, acordávamos cedo e íamos conhecer um pedaço do parque, um lugar fantástico, com suas dunas e lagunas escuras. Uma van nos deixava sempre na entrada do lugar e ficávamos caminhando na areia. Cada dia, éramos levados para uma parte diferente do parque. A paisagem com sua calma, seu silêncio e seu contraste de cores me dava a impressão de um passeio lunar. À tardinha, quando voltávamos do parque, íamos almoçar. Nossa sobremesa diária era um sorvete de manga maravilhoso. Eu tentava, todo o dia, mudar o sabor do sorvete, mas nunca consegui. Numa das tardes, fomos pelo rio Preguiças até à entrada do mar. É um lugar lindo, com alguns restaurantes nas margens. Almoçamos lá e ficamos, a tarde toda, ouvindo o barulho do mar e a brisa. 210


No último dia, a Dada queria descer o rio Preguiças numa boia, sendo levada pela correnteza. Eu pensei: – Isso não é para mim, não vou conseguir dominar a boia, vou ficar em pânico com as correntezas fortes. Depois de muita conversa, a Dada conseguiu me convencer a tentar a descida. Fui e adorei. O passeio era bem tranquilo e a única coisa que a gente tinha que fazer era evitar que a boia ficasse presa numa das margens. Foi um passeio maravilhoso. Voltamos para casa no dia seguinte, depois de uma semana de encantos e caminhadas e o gosto daquele sorvete de manga.

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Cartagena de las Índias, Colômbia, 2016

Depois de muita hesitação, e um monte de mensagens entre Sampa e Florianópolis, fomos conhecer Cartagena de las Índias, na Colômbia. Cartagena foi, durante uma época, a capital da Colômbia. Foi um dos maiores portos comerciais da América espanhola, com um importante comércio de escravos. O seu centro histórico é considerado Patrimônio da Unesco e está muito bem preservado. Viajei com Mara, Asa e Nair. Eu e Mara chegamos em Guarulhos na véspera porque nosso voo sairia às cinco da manhã. Depois de dormir algumas horas num hotel perto do aeroporto, fomos para o embarque, onde encontramos Nair e Asa numa fila imensa. O avião fez uma escala de quatro horas em Panamá City, capital do Panamá. O aeroporto de lá é um enorme shopping center sempre lotado. Logo que chegamos ao Panamá, me dei conta que o roteiro que eu tinha escolhido para chegar a Cartagena era o pior possível. Exaustas por ter acordado tão cedo, as horas naquele aeroporto barulhento e lotado pareciam séculos. Pensamos em conhecer o Canal, mas ficamos com medo de perder o voo. Finalmente, embarcamos e, quando chegamos a Cartagena, descobrimos que o hotel que eu tinha reservado era horrível. Os quartos não tinham janelas. Decidimos dormir lá na primeira noite e procurar outro no dia seguinte. Depois do café da manhã, encontramos um hotel simpático a poucos metros do outro. Andamos pelo belo centro histórico, entrando nas igrejas coloniais, no centro de artesanato e na fortaleza San Felipe de Barajas. Caminhando pela cidade, encontramos 212


belas esculturas de metal representando cenas do dia a dia. Vimos também algumas de Botero, um dos maiores escultores colombianos. Cartagena é uma cidade muito alegre e colorida, onde a música está presente em todos os lugares. À noite, a cidade vira uma festa, com pequenos concertos pelas ruas e gente dançando. Garcia Márquez tinha uma casa lá, onde passava as férias. Num domingo, resolvemos ir a uma praia que ficava longe do centro, seguindo o conselho de uma das funcionárias do hotel. Tomamos um ônibus, que nos deixou na praia depois de uma hora de viagem. Estava lotadíssima, parecia Copacabana em pleno verão. Alugamos cadeiras e assim que nos acomodamos, todos os espaços estavam cheios. Lembro que tinha uma pessoa sentada à minha frente, tão perto que, para me mexer, eu tinha que pedir licença a ela. Saímos para caminhar, tentando encontrar um lugar mais tranquilo para entrar na água, mas nos demos conta que isso era impossível. Mergulhamos no belo mar do Caribe com muita atenção para não encostar nos outros banhistas. O ônibus, no qual tínhamos ido, nos buscaria no final da tarde. Tivemos que esperar sua chegada para voltar a Cartagena. Foi uma tarde bem desagradável no meio daquela multidão. A comida colombiana é muito boa e as pessoas muito gentis. Nos outros dias, andamos à toa pela cidade, entrando nos cafés, tomando ótimos sorvetes, nos reunindo no final da tarde num café à beira-mar para ver o pôr do sol. Saí de Cartagena com vontade de descobrir mais a Colômbia.

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Dublin, 2019

Passei três dias em Dublin, com a Dada, em novembro de 2019. Ficamos encantadas com a gentileza das pessoas, com a quantidade de pubs pela cidade, muitos com música tradicional irlandesa ao vivo e com pessoas de todas as idades conversando animadas. Os pubs são uma parte importante da cultura irlandesa, locais de encontros, trocas e festas. Vimos a Catedral de St. Patrick, o Trinity College, onde estudaram Oscar Wilde e Beckett. No pub Temple Bar, um dos mais animados da cidade, uma escultura de Joyce, sentado numa mesa, dá um toque especial ao ambiente. Fizemos um passeio de barco pelo rio Liffey, vendo a cidade de outra perspectiva. Passamos por um edifício em forma de harpa, o símbolo da Irlanda. Ela pode ser vista em todos os passaportes irlandeses, nas moedas de Euro, no selo presidencial e em muitos documentos oficiais. A Irlanda é o único país do mundo a ter como símbolo um instrumento musical, o que diz muito sobre esse país. Andamos pelo Phoenix Park, o maior parque urbano da Europa, onde os cervos passeiam livremente. Depois, tomamos chá com doces numa casinha agradável no meio do parque. Nos pubs, um ambiente alegre, animado, solto. Uma festa diária. À beira do rio Liffey, prédios coloridos, restaurantes, pubs e muita animação. Os irlandeses são considerados os latinos da Europa setentrional, pelo seu temperamento aberto e alegre. É fácil conversar com as pessoas nos pubs e na rua, todas orgulhosas de sua cidade cheia de alegria e festa. Deixamos Dublin depois de três dias agradáveis, com vontade de voltar. 214


Iuli, 2020

Alguma coisa morreu dentro de mim. Foi assim que comecei a escrever, depois de outra morte dura, como só algumas mortes podem ser, algum tempo atrás. E volto a pensar que alguma coisa morreu dentro de mim ontem. De ti, lembro nossos muitos encontros, muitos momentos e muitas alegrias. Lembro da primeira vez em que nos vimos, rue Thibouméry. Foste lá buscar um cigarrinho. Depois, muitas outras vezes, na casa do Gael, na rue Brezin, quando eu conheci o Marcius, a Dinoca, o Joãozinho, o Gael e muitos outros. Andávamos em bando por Paris, na cinemateca, nos cafés, em Vincennes, nos metrôs da vida. Paris era uma festa para nós naquela época. Cigarrinhos na Suécia e em muitos outros lugares, muitos cálices de vinho, viagens de metrô, festas, muitas festas. Nosso trio, às vezes em duo. Jantares, expos, muitos, muitos filmes. O último foi no Halles em novembro: “The adults in the room”. Viagens ao sul da França, caronas na estrada, conversas sem fim noite adentro, com vinhos e cigarrinhos. Telefones quebrados. Muitas risadas. Alguns porres. Concertos. Jazz, rock, Patty Smit, Dr John. 40 anos de encontros, telefonemas e conversas intermitentes. Algumas brigas. Lembro de uma, quando ficamos um mês sem nos falar, até nos darmos conta do ridículo da situação. Inauguração do Pompidou. Petit Marcel. Bulier. Passeios de bicicleta. “School Days”, “It`s only rock and roll, but I like it”, tocando sem parar, numa viagem de ácido na rue Thiboumery com o Ilton Paula. Músicas. Tuas muitas casas em Paris antes da rue Sthendal. Fofocas. Às vezes, silêncios, histórias sem palavras. Em janeiro, maratona de cerimônias, os muitos jantares e almoços. Dominique, Marie Laure, Phillipe, Beba, Hans, 215


Claude e Brigitte, Simone, Fabio e François, Irina, Marcius, Charlotte, Jacqueline... Os filmes sem a tua companhia. As caminhadas no frio. O esvaziar do teu apartamento. Os discos, os livros, teus lindos objetos, teus móveis, teus copos e taças, pratos, talheres. Teus quadros coloridos. O periquito, no espalhar de tuas cinzas, numa tarde de céu azul. Uma enorme saudade de ti. De passear pelas ruas de St. Michel contigo. De ver um mímico em Montmartre. Ou de entrar num café ao acaso. Fumar um charo no Sena. Entrar num cinema. Passar chez Dinoca. Vou escrevendo, tentando reconstruir essa história, feita de memórias, de lembranças, de risadas. Tentando recontar muitas vidas. Talvez isso se transforme em um todo conexo numa hora dessas. Com calma, recortar-colar pedaços. Sexta-feira antes do carnaval de 2020. Ouço George Harrison. Virias para este, como para todos os carnavais, desta vez, para Sampa. Não sei o que esperavas desse carnaval, mas vinhas atrás de alegria ou para festejar tua alegria de sempre, onde alguma tristeza se escondia no fundo. Deixaste dúvidas, muitas, muitas perguntas, junto com parte de nossa história que se foi. Tento colocar teu quadro na parede, espalhar tuas caixinhas pela casa, gravar alguns dos teus discos que eu trouxe, olhar, mais uma vez, as tuas mil fotos. Meu estômago dói, tenho taquicardia, acho que vou ter um ataque de pânico. Estou triste, muito triste. Nunca pensei que fosse tão duro perder um amigo. Nunca pensei que fosse doer tanto. Minhas tripas reviram, parece tudo irreal. Não consigo acreditar. Não é verdade. O Iuli não morreu. Não é possível. Afinal, passaste por um transplante, por uma metástase, entraste em coma. Tinhas vencido um câncer, tinhas 216


sobrevivido. E como se a gente não imaginasse, ou não acreditasse, teu coração falhou. Nas palavras do François, parecia tudo tão lógico: o teu coração não aguentou, estava debilitado. Nada, nada mostrava isso. Será que desconfiavas de algo? Será que pensavas na morte e não dizias nada? Será que sabias que o teu coração não ia mais suportar toda aquela carga? Nas músicas, volta nossa história em Paris. As músicas como fundo das muitas conversas, das muitas festas, das muitas risadas. Depois ou antes de mil encontros. Estou, em algum café, te esperando e lembrando histórias, afinal nossas vidas se construíram com muitas histórias que voltam à minha mente. Sigo escrevendo, escrevendo. Para lembrar de ti. Para não te esquecer. Talvez para me preparar para a tua despedida. Afinal, fomos um trio de irmãos que se descobriu em Paris, no meio de tanta gente. A casa do Gael nos juntou de alguma forma. As ruas de Paris, a cinemateca, o restaurante universitário, as muitas caminhadas, apesar do frio, fizeram o resto. Criaram nossa história, construíram nossa história de alguma forma. E ficamos unidos, apesar de não estarmos juntos todo o tempo. Esse escrever sem fim é um jeito de te ter perto. E vejo como é estranho que minhas memórias não tragam o Iuli que vi em novembro passado, mas o Iuli dos anos 70 ou 80. Talvez porque eu tenha que reconstruir-lembrar dessa história toda. Talvez porque seja mais fácil olhar para trás, apesar dos últimos encontros de novembro no meio do frio, dos almoços na tua casa, da festa do Philippe, descendo contigo o Boulevard St. Michel depois da festa, de alguns filmes que vimos juntos. 217


Momentos de silêncio num café do Marais, na FNAC (lembro que compraste uma coleção de livros de filosofia), esperando um filme. Ou de poucas palavras, de silêncios cheios de significados. Algumas fofocas, of course. De pessoas próximas ou distantes. Alguns planos. Alguns arrependimentos. Muitos cafés. Te revejo, te repenso, tentando entender os mistérios da vida. Éramos um trio, que algumas vezes andava em duo, outras, com muita gente. Repartimos espaços em Gentilly, em Gardet, quartos em London, London, em Estocolmo. Éramos jovens, loucos, sonhadores. Descobríamos Paris sem pressa, éramos duros. Alguns dias, o dinheiro dava para o Le Monde, a cinemateca ou o restaurante universitário. Pulávamos a catraca do metrô, saíamos do supermercado sem pagar, corríamos dos raros restôs, onde ousávamos entrar sem pagar a conta. Apesar de já termos quase trinta anos quando nos co‑ nhecemos, de alguma forma, crescemos juntos, redescobrindo a vida. Muitas pessoas fizeram parte desses momentos, umas mais do que outras. Algumas se aproximavam mais de ti, outras do Marcius, outras de mim. Mas tinha um grupo, que mudava sempre, com o qual trocávamos risos e muitos momentos: Dinoca, com seu lindo sorriso, Joaozinho, com sua inocência, Gael, com suas histórias, Ilton Paula, com seus cotovelinhos, Roberto, Augusto, Irina e Piu Piu. A turma da escola de samba, da qual não fizeste parte: Meca, Edu, Lícia, Dominique, Milton Baiano e tantos outros. A doçura da Pitou. Tuas muitas casas no sul, que fomos descobrindo. Tuas visitas a Paris, de quinze em quinze dias, para um seminário. Teu jeito desordeiro de ser, que me deixava 218


louca. As muitas descobertas dos verões da Suécia. Aquelas festas. Os bosques, as festas do midsommar, as cores do bosque de Gardet. A estação central, onde as pessoas se encontravam. O Systembolaget, onde a gente comprava vinhos. A linda caminhada até à cinemateca. A época em que o Baiano repartiu um quarto conosco e quase nos enlouqueceu com seus medos e loucuras. O louco que te deu um tapa no centro de Estocolmo. As cores do verão. Os filmes do Bergman. As muitas festas. O Tuomo, os Castores, as iugoslavas, os turquinhos. Os discos de jazz que o Tuomo nos apresentou. O passeio de barco até à ilha de Åland, na Finlândia, junto com os bêbados de plantão. Agora, em Paris, depois das cerimônias, dos muitos reencontros e despedidas, dos muitos almoços, jantares e cafés, das entradas e saídas de muita gente no teu apartamento, que nos exasperava e, às vezes, nos fazia rir, a tua casa vai se esvaziando. E a gente se despedindo mais uma vez. Malas pelos cantos, um colchão na sala, um sofá-cama que escapou das vendas e a tua cama que ficou para o último dia. Nas paredes, agora, só os teus quadros coloridos, cheios de vida. Teu lindo sorriso nas muitas fotos que ficaram. Os discos, os livros que vão embora. As garrafas de vinho se esvaziando na mesa, onde compartilhamos risos, tristezas e alegrias. Uma última foto tua na parede, sorrindo, como sempre, com alguém que não conheço. Os espelhos e as lâmpadas que se despedem. Tua presença ainda forte. Um pouco de ti, ou muito de ti, ficou aqui. E vamos lembrando, de alguma forma, as histórias que voltam sempre. Nossas caras insolentes no trem para Estocolmo, tentando driblar o cobrador. 219


Teu choro numa noite de natal na Notre Dame, onde entramos por acaso. “Ne me quitte pas” na voz da Nina. O concerto do Dr. John no dia de um dos teus aniversários. Nosso encontro, num café do Halles, num inverno, numa de tuas muitas voltas do Brasil. Aquela viagem, num carro emprestado, até à Île de Ré. As muitas festas onde dançávamos juntos. Muito vai ficar, espero. Alguma coisa será esquecida. Mas nunca tua cara, muitas vezes debochada, sorrindo. Muitas feijoadas, caminhadas sem fim por Paris, no Rio, em Estocolmo, em Barcelona, em Petrópolis... como sempre, muito rápido... para uma expo, um filme, algum bistrô ou simplesmente à toa. Muitas risadas com Dinoca no metrô. Cinquenta anos de encontros, telefonemas e conversas intermitentes. Res‑ taurantes universitários. Teu texto, que falava de uma viagem feita na UTI do hospital, num momento de perigo, que nos assustou. Desenhos, muitos. Gardet, Saint Remeze, Amsterdam, London, London. Portobello Road. Réveillons, festas de Natal, tu sempre companheiro e pronto para aventuras. O quarto do Joãozinho, rue des Pyramides. Tudo isso foi formando camadas na minha cabeça e no meu coração enquanto lembro de ti. Camadas de um grande melting pot destes anos todos. Nossos 20 anos, nossos 30, nossos 40, nossos 50... nossos 60, meus 70, chambres de bonne em Odeon, no 15ème, o apê do Gael, Gentilly, a casa da Dina. A casa do Brasil. A Cinemateca de Chaillot. A inauguração do Pompidou. Passeios de bicicleta. Viagens de ácido. 220


Tuas aventuras, nossas muitas viagens. Nossos sonhos. Nossos planos. Construir um barco, ir morar na Itália, voltar para o Brasil, escrever um livro. Aprender a fotografar. Tu, o teatro. Eu, algum país africano. Fui para Moçambique, nunca escrevemos um livro, trocamos textos, cartas, desenhos, fotos, sonhos. Fomos felizes, entramos em crise, houve rupturas, reaproximações. Não nos perdemos nunca de vista. De tudo isso fica muita saudade. Vontade de voltar no tempo, entrar correndo num supermercado, ao lado das Galeries Lafayette, ou na Fnac, para provar alguma coisa para nós mesmos, trocar o preço de um livro. Voltar à rue Brezin, à Gardet, lembrar das crises do Baiano na Suécia, reencontrar a Crica numa esquina, o Tuomo, descobrir o jazz, ouvir histórias dos Castores. Numa das minhas idas a Paris, te dei o primeiro disco dos Tribalistas, que ouviste, sem parar, durante uma semana. Eras, como sempre, excessivo em tudo. Voltar a Londres. Encontrar a Arica, comer na creperia do Luciano. Entrar em um dos muitos cinemas de lá ou do Quartier Latin. Ver Marcel Marceau, vender fotos na saída do Nureyev. Rever vocês indo para as vendanges. Voltar a Bulier. Descobrir uma música nova. Morrer de rir. Ou ouvir Erik Satie num disco arranhado. “It`s only rock and roll, but I like it”, Pink Floyd, Stanley Clark. Queria te encontrar, ao acaso, na rua e te convidar para um café. Depois, ir caminhando contigo até a praia e ver o pôr do sol, dizendo bobagens e rindo contigo. Pedir um porto e brindar à vida, aos encontros, às histórias, aos amores passageiros e voltar devagar, ouvindo estrelas. 221


Vais fazer muita falta todas as vezes que eu for a Paris, todas as vezes que eu ouvir alguma velha música ou redescobrir um slide perdido. Teu riso, tuas chatices, teu companheirismo. Teus telefonemas. Tua força de vida.

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Ainda o Iuli

Hoje o Marcius me enviou uma foto de nós três, eu, ele e Iuli, na mesa da casa dele, Iuli, em Paris. É uma foto bonita, mas a lembrança de um tempo difícil. O Iuli, que teve um câncer no fígado, tinha tido a volta do câncer, dessa vez, no pulmão. Ficamos pensando e ele também, dessa vez não tem jeito, ele não vai aguentar. Olhando a foto, vejo que a cara do Iuli é triste, ele tem um sorriso meio forçado. Naqueles dias, quando conversávamos, eu e o Marcius, não conseguíamos falar de outra coisa, pensando numa perda que se aproximava. O momento do transplante de fígado foi duro. Era uma cirurgia delicada, não sabíamos se ele ia aguentar. Duas irmãs dele foram para Paris, para ver qual delas seria compatível para o transplante. A Beba, a irmã mais próxima dele, foi a compatível. A cirurgia foi bem sucedida. Seguiram-se longos meses de recuperação. E ele conseguiu se safar da doença com muita determinação, como sempre. A partir dali, seguiu-se, apesar da vida normal que ele levava, um tempo de muita medicação, de controles constantes, que ele fez à risca. No momento da volta do câncer no pulmão, lembro um dia que estávamos entrando na FNAC para olhar discos, ele me disse: — Já que vou morrer mesmo, vou gastar meu dinheiro. Deu-me uma volta no estômago e não soube o que dizer. Ele tinha uma alimentação que seguia à risca, muito cuidada. Fazia musculação todo dia, ia à feira todo sábado para as compras da semana. Continuou viajando muito, namorando muito, indo muito ao cinema, a exposições e ao teatro. Exagerado como 223


sempre, depois de se aposentar, via todas as peças ou quase todas, todos os filmes, várias vezes, a mesma exposição. Teve uma vida intensa, repleta de amigos, festas e viagens. Tinha uma generosidade enorme com as pessoas. A casa dele sempre foi um ponto de chegada para muitos brasileiros. Chegou um momento em que ele recebia tanta gente, que resolveu dar um basta e começar a selecionar as pessoas. Alguns, chegavam na casa dele e iam ficando. Uns chegaram a ficar um ano. Eram pessoas recém-chegadas do Brasil, franceses que tinham se separado e ficado sem casa, pessoas sem dinheiro. A lista era enorme. Sua vida foi plena e alegre, apesar de tudo.

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Num dia e num lugar qualquer

Talvez eu te reveja novamente num dia qualquer em Maputo, em Paris ou em Lisboa num entardecer. Num bar à beira-mar. Para lembrar histórias, dar risadas, tomar um vinho, deixando a lua surgir, devagar, entre nossos risos. Talvez a gente lembre daquela viagem a Pemba, daquela casinha à beira-mar e das caminhadas na praia vazia. Talvez não seja assim e o momento seja outro. A paisagem e a latitude sejam outras. Um outono em Gotemburgo, a gente caminhando no meio das folhas do outono, naquelas lindas cores escandinavas. Ou entrando numa loja de chocolates em Bruges. Vendo os prédios de Kopenhagen do alto da roda-gigante do Tivoli Park. As latitudes mudam. Os dias passam. Os encontros são outros. E a memória nos trai em certos momentos. Teus momentos não são mais nossos. Ficaram as doces memórias fugazes, as fotografias, os instantes quietos nos cantos. Bougainvilles. Praias desertas. Pores de sol vermelho-fogo. Crianças com roupas rasgadas, falta d’água. Praia, festas, namoros na Ponta do Ouro. João Gilberto. Passarinhos e meu coração pesado. Dia luminoso de segredos secretos. Sol se pondo. Confusão saindo pelos meus poros em forma de alegria. Um café chez Juan, naquela cozinha rústica em Floripa, com Marta e Luis e música uruguaia ao fundo. O barulho de uma criança perturbando meu silêncio. Grilos de verão. Descubro pedaços meus no chão da sala Entre passarinhos e pedras Nas folhas dos livros trazidos ao acaso das livrarias. 225


Diários do coronavírus, 2020

E, de repente, ficamos confinados no espaço de nós mesmos, de nossa casa. Trocando mensagens diárias com os amigos e a família, buscando e repassando notícias desse período triste da nossa história. Lembrando raivas e emoções. Nos divertindo com bobagens. Vamos adiando viagens marcadas, idas ao médico, pequenos consertos em casa. Deixando o cabelo crescer, lendo, ouvindo música, inventando passatempos. Adiando a faxina. Fazendo compras pela internet. Vendo séries e filmes. Trocando solidariedades. Ajudando os índios pataxós, as comunidades do bairro, os moradores de rua. Fazendo ginástica on-line. No início, parecia tudo meio irreal. E esse irreal foi aos poucos se transformando no nosso dia a dia. E foi necessário viver esses instantes da melhor forma possível. Quarentena de solidariedades. A Marta traz uma torta pasqualina. A Cris traz alfaces e couves. Entrevista do Morin, texto do De Masi, quadros do Hopper, Monica Salmaso, a história da pianista tcheca com 109 anos de vida e alegria. Chico Buarque. Mensagens da Eliane, da Terezinha, da Mafalda, do Vinicius. Recados da Bea, da Márcia. Fotos da Oli, da Dada, da Dani, do Eduardo. O silêncio se instala na noite e os passarinhos fazem um concerto. “Amanhã ninguém sabe. Traga-me um violão antes que o amor se acabe”. Procuro ideias no fundo do baú. Espero mensagens que não chegam. Tomo porto, leio, escrevo, tomo café. Busco um iogurte na geladeira. Como uma fruta. Olho para a rua silenciosa. 226


A noite cai, enquanto o vírus assusta as pessoas. Eu tento juntar pedaços de memórias de mil lugares. E ensaio uma rotina dentro de casa, meu lugar nos próximos meses. Ioga com a Dada e com a Oli. Sonhos com a Tania. Cartas do Manuel. Textos da Dety. Saudades. Trocas com Andrea, com Marcius, com as Kikis ao telefone. Vinho do porto. Histórias da infância com Mafalda. Músicas para a Cris. Saudade de cinema, do François, do Café Paris, dos encontros, do restaurante francês. Murakami, de histórias loucas dos povos pequenos. Mais mensagens. Trocas de afeto. Velhas amigas de infância de Cachoeira, que surgem no meio das músicas dos Stones. Noite de sábado. Vinho uruguaio, enquanto ouço Sinatra ou JJ Cale e danço. Domingo de Páscoa. Muitas mensagens. Escritos meus que circulam e emocionam as pessoas. Alguma coisa move meus textos sábado à noite. Véspera de Páscoa de lindas trocas. Ao fundo, Eric Clapton. Caderninhos, romãs amargas, saudades da Dety. Queria te contar que comecei uma oficina de escrita. Mais uma tentativa, trazida pela tristeza da morte do Iuli. Keith de outras eras, de dias de Paris. De coisas que voltam, pequenas sensações. Pequenos nadas, frestas da vida. Estrelas que las hay, las hay. Terminar as coisas. Mexer as pernas. Manter a ordem. Escrever para o Marcelo. Folhas soltas, manuscritas, datilografadas. Cartas não enviadas, recebidas de pessoas que não lembro quem são. Amores de um dia, de um momento. Passeios em uma nova cidade, contos da carochinha. No meio disso tudo, dessa corrente de lembranças, saudades de ti, Detynha. E a do Iuli, que se instala, enorme. 227


Saudades daqueles tempos em que a gente falava mais da gente. Sempre fui meio chegada nos saudosismos. Herança do seu Achylles, talvez. Lembrar ou juntar as histórias do Carlo, da Melissa, e da linda figura do seu Natalício. Quinta-feira. Um silêncio inquietante. Distenso verão que se prolonga, enquanto o silêncio me envelopa com promessas de amanhã. Sinto falta de finais para as pequenas histórias do dia a dia. Enquanto a solidão do coronavírus me acompanha silenciosa. Tento traçar meus limites, meus ganhos e perdas, ouvindo Keith Jarrett numa manhã ensolarada. Incerteza no trinado dos passarinhos. Enquanto te busco em algum lugar do mundo, inventando novas viagens. Descer o Reno com Marina. Voltar a Liverpool e a Dublin. Visitar Edimburgo com a Oli e a Dada. Ir a San Francisco, dar um mergulho naquela praia de Portugal. Ouvir blues em New Orleans. Voltar, mais uma vez, a Paris. Subir aquela fantástica montanha da Grécia para ver o monastério de Meteora. Conhecer a África do Sul, ir a Punta Arenas. De Masi analisa as ideias do futuro. Eu tenho música na cabeça e volto a ser criança por um momento. Garcia Rosa num policial perfeito. Conversas virtuais com Mafalda. Um tempo no meu afã de escrevinhar. Tempo de paz comigo mesma nesses dias de quarentena, ajudados por uns goles de Porto. Dia nublado. Sartre e Simone. As simpáticas e ternas relações no meio da quarentena. Deixar um livro é como a tristeza de deixar um amigo, sem saber se vamos nos reencontrar. Uma página de agosto em junho. Restos de inverno. Descobrir o insólito. Paisagem pintada com chá. Torta de morango, Amelita Baltar, chuvarada. Fim de semana no 228


Rio com Andrea, Saulo, Dija, Gerardo e Maria. Depois dos encontros, as despedidas. A Cris traz vinhos e chocolates e leva máscaras. O Eduardo traz queijo colonial. Leio uma biografia do Man Ray. Escrevo mais uma crônica a partir de uma lembrança ou de um sonho. Encomendo uma pizza. Vejo o sol se pôr atrás da montanha e as cores mudando devagar. Sonho com um mundo sem vírus. Com um governo decente. Respondo para a Lícia e para a Dominique. Olho as fotos da Lena no whats e lembro de nossas aulas de fotografia no Rio dos anos 70. Meus sonhos lembram mergulhos em Copacabana, viagens sem rumo, festas malucas. Envio pedaços de crônicas para a Sylvia e ficamos lembrando episódios de Maputo pelo whats. Alguém me fala de uma nova série. Vou até à tia Alzira levar um floral. Sentamo-nos à beira da piscina, com o mar ao fundo e nossas incontornáveis máscaras, a uma distância recomendável, e ficamos trocando novidades da família ao redor de uma xícara de café.

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Floripa

Vontade de pegar um avião e descer em New Orleans. Passar o dia ouvindo jazz e blues, sentindo aquele ambiente onde se respira música. Depois, andar à toa pela cidade e te encontrar espantada, sorrindo numa esquina. Traga-me um violão... Ver o sol cair na montanha, ouvir estrelas, dar uma risada. Tomar café, ouvir a voz da lua apressada, ver uma criança passando, devagar. Talvez, estrelas mais tarde, na hora do porto. Quem sabe. O sol se põe, a chuva vem e eu te espero. A espera é grande, é longa. Quem sabe, chegas amanhã, quem sabe, depois.

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Última página

Meu escrever ressurgiu com a morte de um amigo, um irmão. Assim que eu soube de sua morte, comecei a rabiscar, lembrando os momentos que passamos juntos, as muitas caminhadas pela vida, os nossos sonhos de juventude. E isso me levou a buscar caderninhos, folhas soltas, cartas não enviadas, pedacinhos de vida. Perdi algumas vezes os fios da meada, no meio de páginas esquecidas e amareladas. Nesse escrever, as lembranças foram surgindo, as viagens, os momentos voltando. Enquanto a lua ia nascendo serena, fui montando esse quebra-cabeças, juntando pedacinhos, recriando lembranças. Reencontrei muita gente que tinha perdido por aí, lembrei de outras, ri e chorei em muitos momentos. Voltei aos natais perdidos da infância, ao cheiro dos banhos de chuva, aos sonhos de menina, aos vestidos engomados que eu detestava. Revi instantes, lugares, pessoas. Senti cheiros, barulhos, lembrei de músicas, e de pedaços de livros. Vieram até mim, devagar, cores, sons e sensações de muitos momentos. Entre folhas espalhadas pela casa, reencontrei sonhos, velhas fotos, dias cinzentos, dias ensolarados, invernos, verões, folhas amarelas de outono, árvores secas de inverno, um pouco de neve. Muitas vezes fiquei confusa ao juntar os pedaços de frases, ao tentar situar uma ou outra aventura no tempo. A fantasia e o sonho, as cartas não enviadas e recebidas me ajudaram. Os amigos que compartilharam essas aventuras, meus irmãos, primos e sobrinhas me ajudaram lembrando episódios esquecidos e instantes compartilhados. Foi uma bela viagem que pretendo continuar. 231


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Posfácio Memória, afeto, viagem e bons vinhos Eduardo Vieira da Cunha

Acompanhei muito de perto o nascimento do livro de minha irmã Miriam. Estávamos juntos nas últimas férias de verão, no final do ano passado, quando houve um fato marcante: ela recebeu a notícia de que seu grande amigo Iuli acabara de morrer, em um dia frio do inverno parisiense. Creio que este acontecimento foi fundamental para o surgimento dessa obra, como em um trabalho de recuperação de histórias vividas com seus grandes amigos. Antes mesmo da cerimônia de despedida de Iuli com o encontro dos muitos daquela geração, houve uma numerosa troca de fotografias entre o grupo formado. Ali, acredito, começou o processo de latência das belas crônicas que pudemos agora ler. O posterior recolhimento, imposto pela pandemia foi o elemento catalisador que permitiu à Miriam a revelação dessa matéria da memória. Fui um dos primeiros a receber seus textos. Particularmente, não pude deixar de percorrer, ao lê-la, três caminhos: primeiro, fui levado a passar por minha memória no resgate das lembranças muito tênues de nossos pais, que partiram quando eu tinha apenas um ano. Recuperei aqui sentimentos, perdidos em minha própria infância. Nas crônicas iniciais desse livro, pude sentir toda a generosidade e o carinho da Miriam. Resgato pela memória dela esse afeto. Um sentimento que se multiplica na alegria de ver a qualidade que Miriam teve e 233


tem com seus queridos amigos, construída ao longo de suas muitas viagens pelo mundo. Os registros de suas andanças, com a estrutura de uma colagem de fragmentos, fotos, papéis soltos, foram a matéria compositiva de seus belos textos. Fotografias, registros e anotações provisórias, com o sentido inacabado de documentos de viagens, foram guardados por ela, que sempre trabalhou com arquivos, em uma memória resgatada nas constantes adaptações e descobertas das novas paisagens. Muitos atravessaram o Atlântico junto com baús azuis que trouxeram suas mudanças, que acompanhei de perto ao ir esperá-la no antigo terminal do porto de Santos. E acabaram se transformando nesses textos curtos, comoventes, engraçados e deliciosos. Por isso, antes de viagem, podemos localizar no livro a noção de passagens. Ao falar de deslocamentos pelo mundo, Miriam nos conta de suas diversas saídas, residências e retornos. Como houve tantas saídas, vimos que permanecer longe também foi uma viagem, pois o retorno para sua casa em Florianópolis nunca é definitivo. Ela está sempre pronta para por o pé na estrada novamente. Sei que memória, afeto e viagem são sentimentos muito difíceis de resumir nesse epílogo. Em todo o caso, sonhos, objetos, quadros, mapas, planos que por ela reapresentados, ajudaram a compor a obra dessa viajante. Aquela que nos demonstra ao mesmo tempo o prazer da amizade, do ócio e desse livro se elaborando em segredo nesses seus distensos verões. Aprendemos, como a fotografia que ela praticava com sua antiga câmera que a acompanhava, que o desejo das imagens é algo ausente, e que se revela depois de um tempo. Como os 234


bons vinhos. Se a fotografia hoje se modificou, os vinhos que ela adora continuam os mesmos. Seu trabalho de tessitura da memória no isolamento, se trouxe como resultado também momentos nostálgicos de introspecção, revelam estas incertezas que são reflexos do momento. Mas se transformaram em uma maneira de trabalhar, pelo texto, o medo da incerteza e das perdas, comuns a todos. Miriam nos mostrou que a escrita permite criar as representações que fazem aflorar a memória, o afeto, a imaginação e o sentido da viagem. E que o ato de escrever, assim como o de ler, pode nos completar, fazendo-nos voltar às nossas próprias histórias.

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Glossário

Bakshish – gorjeta. Banlieue – cidades nos arredores de Paris, geralmente habitadas por imigrantes. Capulana – pano tradicionalmente usado pelas mulheres em Moçambique, para cingir o corpo ou a cabeça, podendo ser usado como saia, ou para cobrir o tronco. A capulana pode ser usada pelas mulheres para carregar os filhos nas costas, ou para transportar roupas e alimentos. Carapau – o peixe mais popular de Moçambique, nos anos 80, por ser muito barato. Tem um gosto muito forte. Caril – mistura de especiarias, muito utilizada na culinária de Moçambique. O pó de caril é feito à base de açafrão-da-terra, cardamomo, coentro, gengibre, cominho, casca de noz-moscada, cravinho, pimenta e canela. Serve para temperar o arroz ou o frango. Cerises à l’eau de vie – coquetel à base de cerejas maceradas na aguardente. Chamussa – também conhecida como samosa ou samusa, é uma especialidade de origem indiana. São pastéis fritos em forma triangular, recheados com uma mistura condimentada de feijão ou grão, batata ou carne picada, ervas aromáticas e vegetais. Funaná – gênero musical do Cabo Verde, relativamente recente. Segundo a tradição oral, o funaná surgiu quando, numa tentativa de aculturação, o acordeão teria sido introduzido na ilha de Santiago, no início do século XX, para que a população conhecesse a música portuguesa. Marrabenta – forma de música-dança típica de Moçambique. Seu nome é derivado da palavra portuguesa “rebentar”. 236


Matapa – prato moçambicano feito com a folha da mandioca pilada, cozida num molho à base de amendoim pilado e leite-de-coco, e temperado com um marisco, que pode ser camarão (fresco ou seco) ou caranguejo. Midsommar – dia mais longo do ano, marca o início do verão, na Escandinávia, com festas. Paladar – em Cuba, o paladar designa um restaurante que funciona na casa de uma família cubana. Retzina – vinho branco grego resinado, fabricado há cerca de 2000 anos. Seu sabor único é originário da prática milenar de fechar as ânforas com resina de pinho na Grécia Antiga. Soulaki – prato grego popular, servido num espeto de carne de carneiro grelhada e vegetais. Squat – essa palavra foi usada, nos anos 70 e 80, para designar moradia invadida, de forma ilícita, por um grupo de pessoas. Swazi – pessoa nascida na Suazilândia. Systembolaget – empresa estatal de lojas de bebidas alcoólicas na Suécia

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Este livro foi publicado pela Editora Insular em outubro de 2020


Meu escrever ressurgiu com a morte de um amigo, um irmão. Assim que eu soube de sua morte, comecei a rabiscar, lembrando os momentos que passamos juntos, as muitas caminhadas pela vida, os nossos sonhos de juventude. E isso me levou a buscar caderninhos, folhas soltas, cartas não enviadas, pedacinhos de vida. Perdi algumas vezes os fios da meada, no meio de páginas esquecidas e amareladas. Nesse escrever, as lembranças foram surgindo, as viagens, os momentos voltando. Enquanto a lua ia nascendo serena, fui montando esse quebra-cabeças, juntando pedacinhos, recriando lembranças. Reencontrei muita gente que tinha perdido por aí, lembrei de outras, ri e chorei em muitos momentos. Voltei aos natais perdidos da infância, ao cheiro dos banhos de chuva, aos sonhos de menina, aos vestidos engomados que eu detestava. Revi instantes, lugares, pessoas. Senti cheiros, barulhos, lembrei de músicas, e de pedaços de livros. Vieram até mim, devagar, cores, sons e sensações de muitos momentos. Entre folhas espalhadas pela casa, reencontrei sonhos, velhas fotos, dias cinzentos, dias ensolarados, invernos, verões, folhas amarelas de outono, árvores secas de inverno, um pouco de neve. Muitas vezes fiquei confusa ao juntar os pedaços de frases, ao tentar situar uma ou outra aventura no tempo. A fantasia e o sonho, as cartas não enviadas e recebidas me ajudaram. Os amigos que compartilharam essas aventuras, meus irmãos, primos e sobrinhas, me ajudaram lembrando episódios esquecidos e instantes compartilhados. Foi uma bela viagem que pretendo continuar.

978-65-86428-27-8 ISBN 978-65-86428-25-4

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786586

428254 428278


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