7 minute read

No navio Le Havre-Santos, 1984

No navio Le havre-Santos, 1984

Eu estava num cargueiro, voltando para o Brasil, depois de seis anos em Paris e dois em Maputo. Éramos cinco passageiros. O cozinheiro vinha nos perguntar o que queríamos comer no dia seguinte. Eu me sentia dentro de um filme.

Advertisement

Minha cabine é confortável, atapetada, com uma cama grande e um banheiro. Armários, cadeiras, escrivaninha, rádio.

Uma biblioteca com livros policiais, uma mesa de tênis, uma sala de cinema, espreguiçadeiras e colchões para tomar sol, máquina de lavar e secar roupa. Sala de esportes. Chá às cinco. Aperitivo às sete.

Os passageiros: um casal, ela francesa, ex-funcionária da Unesco, ele argentino, jornalista, desempregado. Ambos com 35-40 anos e uma filha, Sophie, com 3 anos e um sorriso lindo. Um alemão de 50 anos, feio, míope, falando um inglês horrível.

No terceiro dia comecei, antes do aperitivo diário com os oficiais, a ler Buzzati, Mystères à l’italienne, emprestado da biblioteca do navio.

O navio carrega carros, produtos químicos, alimentos. Comeremos na mesa do capitão todos os dias, juntamente com os oficiais, três homens e uma mulher.

O café da manhã do primeiro dia foi simpático. Depois, fomos todos para o sol. Hoje faz frio. Ainda não se pode tirar o pulôver. A francesa tricota. O argentino e o alemão estão ao sol sem fazer nada o dia inteiro.

O cozinheiro, magro, de olhos azuis e um olhar terno, vem à noite contar histórias da família do navio. O Petit Louis, chefe dos marinheiros, é bretão e fala um francês enrolado.

143

Depois do terceiro whisky, conta histórias de Nermoutiers, sua ilha.

O comandante, cabelos brancos, uma cara simpática e um corpo atlético, vem dar um mergulho na piscina e conversar. Eu, entre idas e vindas, me instalo ao lado da piscina e vejo os marinheiros que, nas horas vagas, vêm tomar sol.

Um dos oficiais, um galã, loiro de olhos verdes e óculos escuros, deixa-se levar pela intriga de um policial e pelo sol. O ajudante de cozinha, atlético, louro, de olhos claros, mergulha como se estivesse numa piscina olímpica. Yves, o marinheiro gordinho, traz o seu gravador enorme e nos perturba com sua música alta e suas tiradas fora de hora. O ajudante do maître sorri com um olhar angelical.

Sophie, com seu sorriso enorme, cativa a todos com sua voz e seu mundo fantástico de menina mimada.

Passei a tarde do primeiro dia lendo ao sol. O navio é enorme. Tem uma sala para os passageiros com uma geladeira. Alguns homens charmosos entre a tripulação. O livro da Nadine Gordimer começa a me fascinar.

Naquele dia, o oficial das comunicações tinha anunciado a posição do navio. Estávamos ao largo de Gibraltar. Tínhamos acabado de almoçar, um daqueles lautos almoços regados a vinho. Eu escrevia um diário de viagem, conversava com os oficiais, com o camareiro, com os outros passageiros. Tomava chá, às cinco, com a Martine e a Sofia, lia muito, dava algumas braçadas na piscina e explorava o navio. Gostava também de sentar-me numa cadeira de lona ao sol, de olhos fechados. Ou, então, de me debruçar e olhar para a imensidão ao meu redor e para a espuma branca e azul do navio.

144

Come-se muito em todas as refeições: duas entradas, um prato, queijo, fruta ou doce. Vinho em profusão. Café e água. O alemão fala de suas viagens ao redor do mundo sem dizer nada. Tóquio, beautiful, Singapura, lovely.

Hoje o capitão nos convidou para o coquetel que acontece todos os dias às 19 horas. Uísque, vermute, porto, gim e salgadinhos.

A tripulação passa três meses no mar. Hoje é domingo de Páscoa. Tivemos doce e St. Emilion no almoço. Martine escondeu ovos para a Sophie. Ao redor, um azul sem fim, mar e céu.

Olho ao longe. Relembro conversas com Marina esperando a saída do barco para Zanzibar. Coisas que ficaram por ser ditas, amigos que deixo pelo mundo. Daqui a seis dias, chegaremos ao Brasil. Como será minha chegada?

Olho o alemão como uma criança na piscina. Um ser de outro planeta, míope e triste. Ele chega no convés todos os dias, carregando sua cadeira laranja e marrom, sandálias de lona e um calção enorme. Seu corpo está vermelho do sol. Parece um corpo estranho no navio, fora de lugar e de tempo. Apesar de tudo, parecendo ser o mais à vontade, é o mais estranho.

Converso com Patrice, um dos oficiais, ao pôr do sol. No menu, Miller, Sartre, Mishima, Paris, Beaubourg. Histórias e mais histórias de viagens de navios.

Ele me leva à casa de máquinas. Conversamos até às 22h30, tomando Coca-Cola. Hoje, fui visitá-lo na ponte de comando onde se faz a navegação.

O sol é forte. Como os deliciosos chocolates que o alemão me deu, cheia de sol. Acabei de ler Vaincue para la brousse, da Doris Lessing.

145

O navio joga muito. Azul para todo o lado. Descubro a sensação da redondeza da Terra.

No dia seguinte, acordo na hora do café da manhã, e resolvo controlar a paciência do cozinheiro dormindo mais um pouco. Levantei-me devagar, tomei banho com calma. Cheguei às nove da manhã na sala de refeições, pedindo desculpas. Fui muito bem recebida.

O dia todo luz, sol, a imensidão do mar e o azul nos rodeando. Conversei novamente com o mesmo oficial: jazz, filmes, política, Moçambique, Brasil, racismo.

Pequenas, grandes, lembranças que ficam comigo. Vou caminhar no convés. Está um pouco frio e o vento é muito forte para ficar ao ar livre. Visito o navio todo como se fosse um dever. Na sala de máquinas, um barulho infernal. Na proa e na popa o azul sem fim, a espuma e o vento. A sensação de estar em lugar nenhum. Um dos oficiais nos dá a posição do navio. Dentro de dois dias, passaremos ao largo dos Açores.

Hoje, os relógios atrasaram uma hora e vi o final do pôr do sol: as cores do mar mudando, as primeiras estrelas, o lento anoitecer. Acabamos de jantar. Como sempre, um jantar regado a vinho.

Os dias diminuem. O responsável pela música coloca uma canção bonita. O dia está lindíssimo. Nos aproximamos dos trópicos. Amanhã cruzaremos o Equador. O ar é fresco e transparente.

Hoje, às sete horas, passamos por Fernando de Noronha. Um dos oficiais sintonizou a rádio da ilha. Senti uma volta no estômago, um frio. Estarei chegando em casa?

Entre papos, tomo chá com Patrice e o bretão. Vamos chegando ao fim da viagem. Estamos ao largo da costa brasileira,

146

mais ou menos perto da Bahia. A rádio é Alvorada com música de Cely Campelo. Hoje à noite teremos um churrasco no convés.

Olho no horizonte e procuro pedaços do Brasil ao longe. O churrasco de despedida foi simpático, com uma leve nota de tristeza. Fiquei ao lado de Philippe, Jean Pierre e do bretão. Falamos de tudo e de nada embaixo de um céu sem estrelas, ao lado da piscina. O vinho corria solto e cada um assava seu pedaço de carne no fogo, numa grande confusão.

O cozinheiro quase me deu uma indigestão de profiteroles, feitos especialmente para mim. Quando a festa acalmou, descemos um a um para o bar dos oficiais. Eles ficaram rememorando viagens, como sempre, servindo-se de whisky e comendo chocolates belgas.

Logo que descemos, eu tinha um papel bem definido no meio daqueles homens. Pouco a pouco, eles navegaram nas suas histórias, nos seus portos, nas fofocas costumeiras. De vez em quando, o moreno estúpido soltava uma bobagem grosseira. Senti que já não tinha mais lugar no meio dos oficiais e fui me deitar.

Penúltima noite. Amanhã, hora de arrumar as malas. Começo, de repente, a deixar o porto seguro desse quarto, dos jantares, dos almoços, da rotina de sol, piscina e livros.

Chegamos finalmente em Santos. Eu estava ansiosa por desembarcar, sentir o cheiro do Brasil e abraçar o Eduardo e a Suzana que estavam me esperando. O navio para ao largo, depois de uma complicada manobra.

Daqui a pouco, alguém vem me buscar. Os outros passageiros desembarcarão em Buenos Aires. Minha espera ansiosa parece durar anos. Finalmente entro numa embarcação em direção ao porto. Comigo, dois oficiais.

147

Vejo o Eduardo e a Suzana ao longe. Depois da burocracia do desembarque, finalmente, posso dar um abraço neles. Esperamos pela liberação da minha bagagem. Enfim, os baús azuis chegam e são submetidos à inspeção da Alfândega.

Após uma olhada rápida, liberam tudo. Agora, tenho que despachá-los para o Rio. Depois de muita burocracia, entramos num ônibus para São Paulo. Eu estou silenciosa. Com muitas perguntas na cabeça. Tenho que absorver a chegada, sentir os cheiros devagar, olhar os muitos rostos de todas as cores, entrever a pobreza. Olhar o verde luminoso da serra, o azul do céu.

Faço mil perguntas ao Eduardo sobre a lei da anistia, que havia sido derrotada no Congresso. Em São Paulo, procuramos um hotel e saímos para jantar. Fico meio tonta com tanta agitação, com tanto barulho, depois dos dias silenciosos do navio.

Voltamos ao hotel e eu caio na cama exausta. No dia seguinte cedo, quando acordo, vejo a cara risonha do Eduardo ao lado da minha cama.

148

This article is from: