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Granja da Penha e o quarto da escada, anos 50
from Distensos verões
Granja da Penha e o quarto da escada, anos 50
Como começar? Anabela era a “filha de criação” da tia Olga, adotada para brincar com a Cris, nossa prima, coisas do Brasil profundo. Anabela devia ter 7-8 anos franzinos. Era bonita, tímida e doce. Estávamos na granja, como em todos os janeiros. Meus pais, meus irmãos, meus avós, a tia Olga e o tio Saul, a Cristina e a Anabela. Como dizia meu avô, sempre cabia mais um naquela casa.
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Brincávamos de sapata, de esconde-esconde. Tomávamos banhos maravilhosos de chuva. Íamos escondidos até o riachinho no fundo do mato. Quando voltávamos para casa, trazendo areia (a prova fatal), minha avó descobria. E nos proibia de ir de novo. No dia seguinte, na hora da sesta, voltávamos ao riacho. Anabela nos acompanhava sempre. Era nossa irmã, nossa companheira de aventuras.
Íamos comprar picolé na venda do seu João. Um picolé vermelho, com gosto de xarope de framboesa. Quando a piscininha ficou pronta, passávamos a tarde entrando e saindo da água. Depois do almoço, comíamos melancia ou uvas colhidas na parreira. Dormíamos, às vezes, em uma das redes. O vô tinha instalado balanços. Fazíamos concurso para ver quem chegava mais alto. Andávamos de gangorra embaixo da figueira.
Conversávamos com o caseiro, ficávamos olhando meio assustados a “carneação dos porcos” com seus gritos estridentes. Íamos colher uvas, ameixas e pêssegos no pomar. Meu pai, que adorava reunir as pessoas, organizava enormes churrascos. Às vezes, um padre chato, amigo da família vinha passar uma semana conosco. Era uma tortura para nós. Fazíamos festa quando ele ia embora.
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À noite, depois do jantar, tia Olga puxava uma cantoria. Cantávamos até perder a voz. Ou então o vô contava uma de suas muitas histórias de caçadas com seu Picolotto. Às vezes, o tio Xico aparecia. Ou o Rodrigo com a tia Virgínia.
E de repente estávamos todos acamados, com sarampo. Um a um, acordamos com braços e pernas pintados. E ficamos aos cuidados da vó. Queríamos histórias. Não queríamos comer. Tínhamos febre.
Quando ficamos curados, minha vó colocou Anabela, que ainda não estava boa, no quarto da escada. Eu não gostei nada. — É para ela ficar mais tranquila, disse minha vó. E ficar boa depressa.
Íamos visitá-la todos os dias. Anabela foi perdendo aos poucos a consciência. Não nos reconhecia mais. Não ria com a nossa chegada. Fomos proibidos de vê-la. Ela tem que ficar quieta, nos disse a vó.
Contavam histórias estranhas do quarto da escada, histórias de bolas de fogo, de assombrações, de figuras noturnas. Por que misturar Anabela nisso tudo? Me dava medo.
De repente, vimos chegar um padre às pressas, num carro preto. Alguém nos levou a passear.
Quando voltamos, Anabela tinha ido embora. Com ela, foram seu riso, sua cor de jambo, sua timidez. Tinha morrido de complicações do sarampo, talvez de doenças prévias, vindas de uma casa pobre, onde se comia pouco.
As pessoas falavam baixo. A porta do quarto da escada ficou fechada.
Como é que uma criança pode desaparecer assim, com sorriso e tudo? Por que levaram Anabela para o quarto da escada? Por que ela foi embora assim, de sarampo?
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Perdemos um pouco da inocência naquele dia. Começamos a acreditar que os adultos mentem (tinha alguma coisa estranha no desaparecimento da Anabela).
Fui aprendendo, a custo, com Anabela, Dety, Bety, meus pais, que as pessoas vão embora um dia. Com elas, vai alguma coisa de nós. Com Anabela, a primeira inocência. A inocência dos sete anos, da chácara, junto com o cheiro de verão. As noites ficaram mais silenciosas. As brincadeiras foram difíceis nos primeiros dias. Tínhamos medo de passar pelo quarto da escada para ir dormir. Foi difícil entender.
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