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Praia, Cabo Verde, fevereiro 1986

Praia, Cabo Verde, fevereiro 1986

Eu tinha voltado de Brasília para o Rio. Tinha sido demitida e estava desempregada, fazendo bicos, dando um curso de vez em quando. Recebi um convite de uma ONG francesa para dar um curso no Cabo Verde por dois meses. Aceitei no ato.

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Passei um mês preparando as aulas. No início de dezembro, me enviaram a passagem Rio-Paris-Lisboa-Praia, capital do Cabo Verde.

Chegando em Paris, conheci as pessoas da ONG que me contratou, PARIS-SUD-SUD. Recebi as instruções, o nome da pessoa que me esperaria no aeroporto, e embarquei para lá.

Cheguei na Ilha do Sal, a porta de entrada do Cabo Verde. A primeira mostra que eu estava entrando na África foram as malas colocadas no chão, na rua, à entrada do pequeno aeroporto.

A Ilha tem esse nome porque é grande exportadora de sal. Além disso, seu aeroporto é um hub entre a Europa, a África e a América Latina.

Peguei outro avião com destino à Praia, capital das ilhas. No aeroporto, me esperava o Ministro da Saúde. Simpático e falante, ele me deu as boas-vindas com um sotaque português cantado e me levou ao hotel. Dormi doze horas.

Na manhã seguinte, saí para conhecer a simpática cidadezinha localizada num planalto e rodeada de mar. Ao meio-dia, o ministro veio me buscar para o almoço. Lagostas e vinho branco.

O país é um grande exportador de lagostas. Regalei-me com essa maravilha quase todos os dias, durante os dois meses que passei lá.

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Como a cidade é pequena, eu era a novidade. Todo o mundo me cumprimentava nas ruas e nos cafés, me fazendo mil perguntas. Fala-se português e crioulo, a língua local, derivada do português.

Alguns cooperantes estrangeiros, franceses, italianos e brasileiros. O embaixador do Brasil era uma pessoa muito simples e simpática. Jantei várias vezes na casa dele, onde conheci os brasileiros que viviam lá.

Na segunda feira, fui apresentada às alunas, todas mulheres, secretárias de ministros. Tivemos uma conversa inicial. Tomamos café e trocamos histórias. Logo, senti que meu desconhecimento das novelas da Globo, exportadas para lá, seria um handicap. A conversa delas era entremeada pelas cenas das novelas que faziam sucesso.

A rotina se instalou nos meus dias. No início do curso, quando as alunas não queriam que eu compreendesse o que falavam, conversavam em crioulo. Depois de algum tempo, entendia a língua relativamente bem. Elas gostaram do curso e eram aplicadas. Comecei a ser convidada para as festas que aconteciam todas as sextas e sábados, cada dia na casa de uma pessoa.

As festas eram muito alegres. Aprendi rapidamente a dançar a morna e a coladeira, os ritmos locais.

Algumas mulheres nas festas dançam e riem. Outras, ficam em casa porque são proibidas de sair pelos maridos. Se são vistas na rua à noite (todos se conhecem), recebem pancada em casa... Albertina, uma das melhores alunas do curso, chegava na sala de aula, toda a segunda-feira, com a cara inchada. Discretamente, perguntei a uma amiga dela, que me contou: o marido a proíbe de ir a festas. Depois que ele sai, ela sai também. Na volta, o marido bate muito nela.

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Conversando com uma aluna numa situação dessas, trancada em casa, com um filho, que só sai de casa para trabalhar e fazer compras, me sinto impotente. O que dizer? Vai embora, foge, se ela não tem dinheiro nem para onde ir?

Numa das muitas festas, conheci um psiquiatra brasileiro. Foi um encontro bonito, que se seguiu entre muitas conversas e carinhos. Chovia muito nesse dia. Ele me mostrou a cidade, as belíssimas praias de areia negra, os pores do sol à beira mar.

Fazíamos passeios, olhando, a cada momento, o mar batendo na areia escura. A cidade tem sempre muita música.

As aulas começavam, na segunda-feira, inevitavelmente, com conversas sobre as festas do fim de semana. Na sexta-feira à tarde, era difícil dar aula, porque todas falavam das festas que iriam acontecer.

O mar, por uns dias sem sol. Histórias das mulheres cabo-verdianas, de machismos, como pano de fundo da alegria.

Jantar com conhecidos, um deles, um moçambicano de passagem. Uma francesa simpática e risonha, um pouco fora do mundo real do Cabo Verde.

Expectativas, trabalho, rotinas, surpresas. Encontros inesperados. Como a cidade é pequena, as pessoas me convidavam para um café ou uma cerveja o tempo todo.

Sol no corpo. Encontro conhecidos na rua. As pessoas param para oferecer carona. Convites para o almoço. Um jeito calmo de viver. Roberto. Rosa.

O começo do sábado. O barulho do mar. A espanhola faladora. Pedaços de vida. Romances. Fim de tarde. Uma norte-americana borrifa o ar com um spray cada vez que vê um mosquito.

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Vontade de te mostrar esses homens bonitos, essa alegria das festas. Esse mar, por uns dias, sem sol.

Por ser um país com poucos recursos, na época que estive lá, metade da população das ilhas tinha migrado para os Estados Unidos ou para Portugal. Quando viajavam com a família, colocavam tijolos nas janelas das suas casas, para que não fossem invadidas. Andando pela cidade, vi muitas casas assim.

Os reflexos das montanhas ao longe. O silêncio e a calma da cidadezinha. Os barulhos da natureza. Os pássaros, os galos de manhã. As cores do sol. As descobertas.

O mês de dezembro passou rápido. O curso tinha sido um sucesso até aquele momento. Fui passar os feriados de Natal em Paris e voltei em janeiro para concluir as aulas.

Depois do final das aulas, fui conhecer as Ilhas do Fogo e São Felipe. Montanhas, vales, lavas enormes, uma floresta. A Ilha do Fogo tem esse nome por causa dos seus vulcões, um dentro do outro. Encontrei, no hotel, duas francesas que falavam sem parar.

Janeiro chega ao fim. Na praia, muito vento. Fim de tarde. Um pôr de sol. Mais tarde, a lua cheia e o vulcão. No fundo, o balanço intenso das ondas.

Somos poucos no hotel da ilha. Um americano e duas francesas. A Ilha Brava, em frente, envelopada numa nuvem. Meus olhos azuis de sol e mar.

O silêncio do domingo à tarde. As francesas comem lagostas. Daqui a pouco, o motorista vem me buscar para um passeio no norte da ilha, onde vou ver o mosteiro e o monte Genebra.

Um vento doce me acaricia. Jorge Bem ao fundo. Esta manhã andei nos vulcões. Lavas e casas negras de fuligem.

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Lá em cima, o olhar calmo dos habitantes de um canto perdido do mundo, no meio da lava negra, com o verde do mar ao fundo.

Silêncio no final da tarde e todo o cansaço do mundo. À minha frente um pôr de sol. Atrás, a Ilha Brava. Mais tarde, a lua cheia e o vulcão, imenso. No fundo, o barulho das ondas.

Mais uma vez meus olhos surpresos fotografam as encostas estriadas do vulcão, a montanha sem cabeça. A paisagem negra no fundo da cratera.

Brava, as montanhas da Ilha de Santiago. Ao longe, nos dias claros, dá para ver as ilhas de São Nicolau e Santa Luzia. O desenho dos guarda-sóis laranjas com o mar ao fundo lembram um quadro de Hockney.

Ouço Beethoven. Charlotte, teu riso, daqui a pouco, na Esplanada, o centro da cidadezinha. Salada, queijos e vinhos na noite fresca. A calma da cidade pequena. O funaná.

Violas, cheiro de mar. Uma menina vestida de rosa com um laço na cintura. A calma das ilhas e das pessoas. A música onipresente.

No meu ouvido, mornas na madrugada com cheiro de linguiça no pátio da casa do Johnson. Um belga, com seu chapéu de palha, conversa com o piloto ao lado do avião.

A menina de azul, babados e chapeuzinho rosa. Martine, Claire, Annie e Luís. O cavaquinho do velho desafinando mornas. Histórias da Albertina.

Algumas festas depois e uma prova final, deixei o Cabo Verde, novamente, em direção a Paris. Na despedida, ficou um gosto de quero mais, o canto da língua crioula, o som alegre das músicas. No meu olho, as cores do mar, os risos, a música, a simpatia e o carinho das pessoas, a calma da cidadezinha.

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