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Palehora, Creta, distenso verão, 1976

Palehora, Creta, distenso verão, 1976

Fui parar em Creta depois de um verão sueco de muito trabalho. Depois de conhecer Atenas, fui para o porto de Pireus e perguntei para onde ia o próximo barco. Para Creta, me disseram. No convés do navio, entrei no saco de dormir e, com a insouciance de la jeunesse, dormi a noite toda.

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Cheguei na madrugada a Heraklion, capital de Creta. O céu de verão era uma festa entre o vermelho e o amarelo. Na luz da ilha tudo era transparente. O mar, azul profundo. Sentei-me num café para esperar o amanhecer e peguei um ônibus para Paleohora, no nordeste da ilha.

O calor era sufocante dentro do ônibus que subia a montanha devagar. A estrada estreita e seca deixava o mar aos poucos. Na estrada, burrinhos, muitas oliveiras e velhas de preto caminhando. Cabras, velhos olhando a vida na preguiça morna da tarde.

No meu ouvido, grego, alemão, inglês e francês. Um velho enorme roncava no banco duro e encostou a cabeça no meu ombro. Mais uma curva grande. Outra cidadezinha. Um homem falador subiu e foi contando novidades para o motorista.

Quando chegamos à Paleohora, encontrei um quarto numa pousada, larguei a mochila e fui dar uma volta. Nos muito cafés à beira-mar, gente lendo, conversando, jogando ou, simplesmente, olhando a tarde que passava devagar. Alguns turistas, velhos e crianças.

Entrei no café do Giorgio, na ponta da praia. Pedi um ouzo. Entre as três ou quatro palavras gregas que eu sabia e algum inglês, eu conseguia conversar com as pessoas, a maioria muito simpática, simples, aberta.

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Antes e depois da praia, eu passava lá para um café, um almoço ou um ouzo. Giorgio, o dono, me apresentou à sua mulher, Thalia. Fui conhecendo, aos poucos, os frequentadores. O velho Nikos, 95 anos, apoiado numa bengala, olho miúdo, passava lá todas as tardes. Ficava sentado num canto, conversando com os amigos ao redor de um jogo de tabuleiro.

No primeiro dia, quando Giorgio me trouxe café e viu que eu olhava para o velho Nikos, disse, no seu inglês macarrônico: Menina, você sabe quantos anos ele tem? É velho como o mundo. Nikos ria sempre que eu dizia alguma coisa. Mas não conseguíamos conversar. Nossa conversa se resumia a alguns gestos, mímicas e à batida de sua bengala no chão.

Às duas horas, infalivelmente, Kiriakos, falador e grande, ia entrando e me oferecia um café ou uma limonada. Se eu me aproximava do balcão para pagar, ele fazia não com um gesto. E ficava me fazendo perguntas. De onde eu vinha? O que fazia? Por que tinha ido para Paleohora?

Quando ele chegava, a roda ia se formando. O velho Nikos, trazia sua cadeira de mansinho. Giorgio deixava o balcão com a madame. Chegavam Vassilis, Elias e Manolo. Ficavam horas no jogo, ou contando histórias sem fim, acompanhados por cafés e copos de ouzo.

Numa dessas tardes conheci Carlo, filho do casal dono do café. Sete anos, magro no seu corpo pequeno. Olhos claros e blusa azul. Depois da aula, ele ajudava a servir. Fui me chegando a ele devagar, como a moça da fotografia e do caderninho.

O riso olhando no olho era nossa fala. Quando eu lhe dava um beijo, a mãozinha pequena e fina tocava a minha e saía correndo. Às vezes, a gente se encontrava na rua, eu

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passando, ele brincando em um canto qualquer. Me olhava fundo e ria. Me mostrava para Demétrio, espantado. Com eles, às vezes, Melissa com seu caminhãozinho vermelho.

Outras vezes, nos encontrávamos na padaria em frente à pousada. Com sua cara lambuzada, ele me olhava sério por trás de um doce. A polícia passa, o entregador de café. O burrico de franja. O silêncio quente do dia.

O banho de mar, Carlo, com a vizinha à tarde. O caminhão na calçada com Demetrius. No café, começa a agitação nas mesas da rua. Carlo corre para o café. Come batatas no canudo e soulaki. Mais tarde, a calma do outono, o vento cada vez mais forte, levando os barquinhos de papel. Demetrius vai para a escola em Chania, a maioria dos turistas vai embora, a cidade fica vazia.

A noite chega com mil estrelas. Os pescadores voltam. A moto do caçador passa.

Olha a bandeja, Carlo presta atenção. Olha o café para o moço. Olha o padre, que quer cerveja e vem contar histórias. Olha o sino, que chama para a missa. Outro domingo chegando de mansinho, Carlo.

O pai em casa, a mãe no café, balas verdes embaixo da parreira. Melissa, que vem brincar. A bola que furou. A chuva chegando, forte.

Corre para casa, Carlo, molhado.

Lá vão, Demetrius e Melissa, com o caminhão para o café. É de manhã e a essa hora Carlo não serve as mesas. São poucas pessoas, todas do lado de dentro, por causa do vento que sopra forte. Melissa, casaco vermelho, tranças morenas e a ponta do vestido cinza levantada. As pernas gorduchas correm no vento, levando o caminhãozinho.

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Alguma coisa a dizer, talvez no fundo seja isso – que é tarde e você passa. Não sei por que, Carlo, pequeno, riso nervoso. Não sei por que teu caminhãozinho azul. Eu queria te olhar passando agora. Na tua camisa azul, desbotada, no fim da tarde, no teu riso de menino, na tua inocência.

Carlo, é bonito te ver, a gente não se entende, tua língua é outra, mas ao lado disso ficou um riso cúmplice, um riso ligeiro, fácil. Todos os dias, eu te via pequeno, andando na praia, brincando com o caminhãozinho à beira-mar. Olho vivo, curioso. Nos gostamos, mas não tínhamos uma língua para nos entender.

Carlo caminhando na encosta do morro. Onde tua praia cheia de vento, onde tua gente no café, onde os jogos, a simplicidade das pessoas?

Eu queria te dizer que é bonito te ver, no fim da tarde, brincando na areia. Enquanto o burrinho de franja passa. E as pessoas se arrumam para o jantar na tarde amena, à beira mar.

Todos os dias, depois da praia, com um livro comprado na única livraria da aldeia, eu almoçava no café do Giorgio. Carlo vinha, invariavelmente, para perto de mim, e conversávamos sem falar, trocando olhares e risos.

Gente simples, serena. Casas baixas, brancas. Num domingo, eu passei em frente da casa do Carlo, atrás do café. Giorgio me chamou para entrar. Carlo veio devagar e me deu uma bala. Fazia calor embaixo da parreira.

Tomamos alguns banhos de mar juntos, fizemos castelos de areia. Me mostraste orgulhoso teu caminhão novo. Eu era a tua companheira grande, com quem não falavas. Não teríamos muito a nos dizer, acho. Às vezes tentavas me

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contar uma história, que parava quando vias meu olhar perdido de quem não entende. Nessas horas, ficavas triste e saías correndo.

Para me chamar mais tarde e me mostrar o burrinho de franja da casa do Sarkis, ou o incêndio no quintal da dona Zenia, que corria assustada, chorando e pedindo socorro.

De repente, Carlo, figura magra, teu sorriso tímido e o mar verde de Paleohora. O sino batendo forte na tarde. O cais na chegada da pesca. O cinema embaixo das palmeiras. A tua blusa azul e o vento. A tua figura frágil e morena, sempre em movimento.

No dia em que eu fui embora, me olhaste muito todo o tempo que fiquei no café esperando o ônibus. E ficaste perguntando coisas à Giorgio. Acho que não entendias por que eu estava indo embora. Para os teus 7 anos, eu tinha chegado para ficar, como Melissa, como Nikos, como toda a gente.

Não voltei a Paleohora, Carlo. Não nos vimos mais. No fundo do meu olho ficaram o teu sorriso, as perguntas de Kiriakos, o cheiro forte do café, o azul sem fim do mar de Creta e a cara simples das pessoas.

De Creta, ficou o cheiro de maresia, aquele azul profundo do mar, os burrinhos de franja, um gosto de ouzo, teus olhos risonhos, as montanhas áridas, as oliveiras. Ficou certo ar de distenso verão, de sol, de vento, de sorrisos e de histórias partilhadas.

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